quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Titus Burckhardt - Para compreender o Islã

I
ISLAM

Islam é o encontro entre Deus como tal e o homem como tal.
Deus enquanto tal: isto significa Deus visto, não na medida em que Ele se manifesta de um modo particular em um dado instante do tempo, mas independentemente da história e na medida em que Ele é o que Ele é, assim como por Sua natureza Ele cria e revela.
Homem enquanto tal: isto significa que o homem é visto, não como um ser decaído que necessita de um milagre que o salve, mas como homem, um ser teomórfico dotado de uma inteligência capaz de conceber o Absoluto e de uma vontade capaz de escolher aquilo que conduz a este Absoluto.
Dizer “Deus” é o mesmo que dizer “ser”, “criar”, “revelar”; em outras palavras, equivale a dizer “Realidade”, “Manifestação”, “Reintegração”; dizer “homem” é como dizer “teomorfismo”, “inteligência transcendente”, e  “livre arbítrio”. Estas são, no entender do autor, as premissas da perspectiva islâmica, que explicam todas as suas aplicações e que não podem ser perdidas de vista para qualquer um que queira entender qualquer aspecto particular do Islam.
O homem aparece assim a priori como um receptáculo dual preparado para o Absoluto, e o Islam vem para preencher este receptáculo, em primeiro lugar com a verdade do Absoluto e em segundo com a lei do Absoluto. O Islam é, portanto, em essência, uma verdade e uma lei – ou a Verdade e a Lei -, sendo que a primeira responde à inteligência e a segunda à vontade. É assim que o Islam começa  por abolir tanto a incerteza quanto a hesitação e, a fortiori, tanto o erro como o pecado; o erro em sustentar que não existe o Absoluto, ou em relativisá-lo; ou em afirmar que existem dois Absolutos, ou que o relativo é absoluto; o pecado coloca estes erros no plano da vontade e da ação. Estas duas doutrinas sobre o Absoluto e sobre o homem encontram-se respectivamente nos dois “testemunhos” da fé islâmica, sendo o primeiro (La ilaha illa’Llah) concernente a Deus e o segundo (Maoméun’rasulu’Llah) concernente ao Profeta.
A idéia de predestinação, tão fortemente marcada no Islam, não exclui a idéia de liberdade. O homem está sujeito à predestinação porque ele não é Deus, mas ele é livre porque foi feito “à imagem de Deus”. Somente Deus possui a liberdade absoluta, mas a liberdade humana, apesar de sua relatividade – no sentido de ser “relativamente absoluta” – não deixa de ser liberdade, assim como uma luz débil não deixa por isso de ser luz. Negar a predestinação acarreta pretender que Deus não conhece os eventos antecipadamente e que portanto ele não é onisciente: quod absit.
Resumindo: o Islam confronta o que é imutável em Deus com o que é permanente no homem. Para o “exoterismo” Cristão, o homem é a priori vontade ou, mais exatamente, vontade corrompida; claramente, não se nega a inteligência, mas ela é vista apenas como um aspecto da vontade; o homem é vontade e a vontade humana é inteligente; quando a vontade é corrompida, também a inteligência é corrompida, na medida em que ela se torna incapaz de conduzir a vontade ao que é certo. Assim sendo, torna-se necessária uma intervenção divina: o sacramento. No caso do Islam, onde o homem é considerado como inteligência e a inteligência é “anterior” ao desejo, é o conteúdo ou a direção da inteligência que possuem esta eficácia sacramental: quem quer que aceite que apenas o Absoluto Transcendente é absoluto e transcendente, e que transfira as consequências disto para o campo da vontade, este estará salvo. O Testemunho da Fé – Shahadah – determina a inteligência, e a Lei islâmica – Shari’ah – determina a vontade; no esoterismo islâmico – Tariqah – existem graças iniciáticas que servem de chaves e que sublinham nossa “natureza sobrenatural”. Uma vez mais, nossa salvação, seu caráter e desenvolvimento, são prefigurados por nosso teomorfismo: uma vez que somos inteligência transcendente e livre arbítrio, é esta inteligência e este arbítrio, ou sua transcendência e liberdade, que irão nos salvar; Deus não faz mais do que encher os receptáculos que o homem esvaziou mas não destruiu; destruí-los não está ao alcance das possibilidades do homem.
Vamos insistir nisto: somente o homem possui o dom da fala, porque apenas ele dentre as criaturas terrestres é feito “à imagem de Deus” de modo direto e integral; ora, se é este teomorfismo que, graças à impulsão divina, leva à salvação e à libertação, a fala terá aí seu papel a desempenhar, tanto quanto a inteligência e a vontade. Estas últimas são de fato atualizadas pela prece, que é um discurso ao mesmo tempo divino e humano, sendo o ato relativo à vontade e o conteúdo à inteligência; a fala comparece como sendo o corpo, imaterial embora sensível, de nossa vontade e entendimento; mas o discurso não precisa ser necessariamente exteriorizado, porque o pensamento articulado também envolve a linguagem. No Islam nada possui maior importância do que as preces canônicas (salat) direcionadas à Kaaba e a menção dos Nomes de Deus (dhikru’Llah) direcionada ao coração; a recitação Sufi é repetida na prece universal da humanidade e inclusive na prece, no mais das vezes não articulada, de todos os seres.
O que constitui a originalidade do Islam é, não a descoberta da função salvadora da inteligência, da vontade e da fala – esta função é bastante clara e conhecida de todas as religiões – mas o fato de ter feito delas, dentro da estrutura do monoteísmo semítico, o ponto de partida de uma perspectiva de salvação e libertação. A inteligência é identificada com seu conteúdo que leva à salvação, e que não é outro que o conhecimento da Unidade, ou do Absoluto, e da dependência de todas as coisas diante disto; do mesmo modo a vontade se torna el-islam, ou, em outras palavras, a conformidade com o desejo de Deus, ou do Absoluto, seja quanto à nossa existência terrestre ou nossas possibilidades espirituais, seja quanto ao homem em si ou ao homem no sentido coletivo; a fala é comunicação com Deus e é essencialmente prece e invocação. Quando visto deste ângulo o Islam lembra ao homem não tanto o que ele deve saber, fazer ou dizer, mas antes o que são a inteligência, a vontade e a fala, por definição. A Revelação não acrescenta novos elementos, mas revela a natureza fundamental do receptáculo.
Isto também pode ser expresso da seguinte maneira: se o homem, feito à imagem de Deus, distingue-se das demais criaturas por possuir uma inteligência transcendente, o livre arbítrio e o dom da fala, então o Islam é a religião da certeza, do equilíbrio e da prece, para tomarmos pela ordem as três faculdades deiformes. Assim encontramos a tríade tradicional do Islam, formada por el-iman (a “Fé”), el-islam (a “Lei”, literalmente “submissão”) e el-ihsan (a “Via”, literalmente “virtude”): e o significado essencial deste terceiro elemento é a “lembrança de Deus” atualizada através da prece e baseada nos dois primeiros elementos. Do ponto de vista metafísico de que se trata aqui, el-iman é a certeza do Absoluto e da dependência de todas as coisas em relação ao Absoluto; el-islam – e o Profeta na medida em que ele personifica o Islam – é um equilíbrio em termos do Absoluto e tendo o Absoluto em vista; e el-ihsan conduz ambos às suas essências pela magia da recitação sagrada, especialmente por ser esta recitação ao mesmo tempo inteligência e vontade. O papel desempenhado pelos aspectos teomórficos humanos naquilo que podemos chamar de Islam fundamental e “pré-teológico” é a parte mais importante, uma vez que a doutrina islâmica – que enfatiza a transcendência de Deus e a incomensurabilidade entre Ele e nós – evita analogias que possam favorecer o homem; assim, o Islam está longe de depender explícita ou genericamente da qualidade humana de ser uma imagem divina, embora o Corão testemunhe isto nas palavras: “Uma vez que Eu o formei conforme a perfeição e assoprei nele uma porção de Meu Espírito (min-Ruhi), prostrem-se diante dele em adoração” (XV,29 e XXXVIII,72) e apesar de que o antropomorfismo de Deus no Corão implique o teomorfismo do homem.

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A doutrina do Islam prende-se a duas proposições: em primeiro lugar, “Não existe divindade (ou realidade, ou absoluto) senão a Divindade única (ou Realidade, ou Absoluto)” (La ilaha illa’Llah) e, em segundo lugar, “Maomé (o “Glorificado”, o Perfeito) é o enviado (o porta-voz, o intermediário, a manifestação, o símbolo) da Divindade” (Maomé rasulu’Llah); estes são od dois primeiros Testemunhos (Shahadat) da fé.
Estamos aqui na presença de duas assertivas, duas certezas, dois níveis de realidade: o Absoluto e o relativo, Causa e efeito, Deus e o mundo. O Islam é a religião da certeza e do equilíbrio, o Cristianismo é a religião do amor e do sacrifício. Queremos dizer com isso, não que as religiões tenham monopólios, mas que cada qual se desenvolve segundo um ou outro aspecto da verdade. O Islam procura implantar a certeza – sua fé única ergue-se como algo manifestamente claro sem de modo algum renunciar ao mistério que é como se fosse o infinito interior da certeza, que não pode ser exaurido pelo que vem depois – e está baseado em duas certezas axiomáticas, uma que diz respeito ao Princípio, que é ao mesmo tempo Ser e Além-Ser, e outra que diz respeito à manifestação, tanto formal quanto supraformal: trata-se assim, de um lado, de “Deus” – ou “The Goghead”, no senti do em que Eckhart usava este termo – e de outro da “Terra” e dos “Céus”. A primeira destas certezas é que “apenas Deus é” e a segunda é que “todas as coisas dependem de Deus”; estas duas relações são também expressas na seguinte fórmula corânica: “Verdadeiramente somos de Deus (inna lilLahi) e verdadeiramente a Ele retornaremos (wa-inna-ilayhi-raji’un)”. O Basmalah, a fórmula: “Em nome de Deus, o Clemente e Misericordioso” (Bismi’ Llahi’ Rrahmani’ Rrahim) expressa igualmente a dependência de todas as coisas em relação ao Princípio.
Em outras palavras: “nada é absolutamente evidente, salvo o Absoluto”; assim, seguindo esta verdade: “Toda manifestação, e também tudo o que é relativo, depende do Absoluto”. O mundo está ligado a Deus – ou o relativo ao Absoluto – tanto no que diz respeito à sua causa quanto ao seu fim: o termo “Enviado”, na segunda Shahadah, enuncia, portanto, primeiro uma causalidade e depois uma finalidade, aquela se referindo ao mundo e esta ao homem; novamente, a causa ou origem está na palavra rasul (Enviado) e a finalidade na palavra Maomé (Glorificado). O risalah (a “coisa enviada”, a “epístola”, o Corão) “desceu” na laylat el-Qadr (a “noite do Poder do destinado”) e Mohammad “ascendeu” na laylat el-mi’raj (a “jornada noturna”), prefigurando assim o fim do homem.
Todas as verdades metafísicas estão compreendidas no primeiro destes “testemunhos” e todas as verdades escatológicas no segundo. Mas também se pode dizer que o primeiro Shahadah é a fórmula do discernimento ou “abstração” (tanzih) enquanto o segundo é a fórmula da integração ou “analogia” (tashbih): no primeiro Shahadah a palavra “divindade” (ilah) – tomada aqui no seu sentido normal e corrente – designa o mundo a partir do momento em que este é irreal, porque somente Deus é real, enquanto que o nome do Profeta (Maomé) no segundo Shahadah designa o mundo a partir do momento em que ele é real, porque nada pode estar fora de Deus; sob certos aspectos, tudo é Ele. Compreender o primeiro Shahadah significa antes de mais nada – “antes de mais nada”, porque este Shahadah inclui eminentemente o segundo – tornar-se inteiramente consciente de que apenas o Princípio é real e que o mundo, embora este “exista” em seu próprio nível, “não é”;  num certo sentido isto significa compreender o vazio universal. Compreender o segundo Shahadah significa antes de mais nada tornar-se inteiramente consciente que o mundo – ou a manifestação – não é “outro” senão Deus ou o Princípio, uma vez que no nível em que ele possui realidade somente ele “é”, ou, em outras palavras, ele só pode ser divino; “antes de mais nada” significa neste caso que em última análise esta Shahadah, por ser, como a primeira, uma palavra divina ou “Nome”, ao final atualiza o mesmo conhecimento que ela em virtude da unicidade da essência da Palavra ou Nome de Deus. Compreender este Shahadah significa, portanto, ver Deus em toda parte e ver todas as coisas n’Ele. “Aquele que me viu – diz o Profeta – viu Deus”; agora, tudo é o “Profeta”, de um lado em respeito à perfeição da existência e de outro em respeito às suas perfeições de modo ou expressão. A propósito, falar-se, como afirmou um erudito espanhol a respeito de Ibn Arabi, em “Islam cristianizado”, equivale a perder de vista o fato de que a doutrina do Sheikh el-akbar era essencialmente maometana, e especificamente uma espécie de comentário do Maoméun rasulu ‘Llah no sentido do dito védico: “todas as coisas são Atma” e “Tudo é Aquilo”.
Se o Islam apenas procurasse ensinar que existe um Deus somente, e não dois ou mais, ele não teria tido força de persuasão. De fato, ele se caracteriza por seu ardor persuasivo e isto vem do fato de que na raiz ele ensina a realidade do Absoluto e a dependência de todas as coisas em face do Absoluto. O Islam é a religião do Absoluto assim como o Cristianismo é a religião do amor e do milagre; mas o amor e o milagre também pertencem ao Absoluto e não expressam outra coisa que a atitude que Ele assume em relação a nós.

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Se formos  à raiz das coisas somos obrigados a observar – deixando de lado qualquer questão dogmática – que a razão fundamental da mútua falta de entendimento entre Cristãos e Muçulmanos repousa no seguinte: o Cristianismo sempre vê diante de sua vontade – a vontade como se ela fosse ele próprio – e assim ele é confrontado por um espaço vocacional indeterminado no qual ele pode mergulhar, trazendo para o jogo sua fé e seu heroísmo; por contraste, o sistema islâmico de prescrições “externas” e claramente estabelecidas aparece para ele como a expressão de uma mediocridade pronta para fazer todos os tipos de concessões e incapaz de vôo planado; a virtude muçulmana aparece em teoria para ele – uma vez que ele ignora a sua prática – como algo artificial e vazio. A visão do Muçulmano é muito diferente: ele vê diante de si – diante de sua inteligência que busca o Um – não um espaço para a vontade como ele veria no caso da tentação de uma aventura individual, mas um sistema de canais divinamente predisposto para o equilíbrio de sua vida volitiva, e este equilíbrio, longe de ser  um fim em si mesmo como o supõe o Cristão, acostumado com um maior ou menor grau de idealismo da vontade, é, ao contrário, em última análise apenas uma base para escapar, numa contemplação libertadora e cheia de paz do Imutável, das incertezas e turbulências do ego. Resumindo: se a atitude de equilíbrio que o Islam procura e realiza aparece aos olhos cristãos como uma mediocridade calculada incapaz de alcançar o sobrenatural, o idealismo sacrificial do Cristianismo pode ser mal interpretado pelo Muçulmano como uma desobediência individualista ao divino dom da inteligência. Se for objetado que o Muçulmano médio não se ocupa da contemplação, a resposta é que tampouco o Cristão médio se preocupa com o sacrifício; no fundo da sua alma todo Cristão nutre um impulso para o sacrifício que talvez nunca chegue a ser atualizado, e do mesmo modo todo Muçulmano tem, em razão de sua fé, uma predisposição à contemplação que talvez também nunca seja atualizada em seu coração. Fora isso outra objeção pode ser feita, considerando que os misticismos cristão e muçulmano, longe de serem opostos, apresentam ao contrário analogias tão notáveis que se é levado à conclusão de que existiram empréstimos unilaterais ou recíprocos; para responder a isto, se supomos uma mesma origem para os Sufis e para os místicos cristãos, devemos nos perguntar porque eles se tornaram muçulmanos e como foram capazes de permanecerem muçulmanos; na realidade eles se tornaram santos não apesar de sua religião, mas através dela. Longe de serem Cristãos disfarçados, homens como Al-Hallaj e Ibn’Arabi ao contrário levaram as possibilidades do Islam ao seu ponto mais alto, tanto quanto seus predecessores o haviam feito. Apesar de certas aparências, como a ausência de monasticismo como instituição social, o Islam, que prega a pobreza, o jejum, a solidão e o silêncio, possui todas as premissas de um ascetismo contemplativo.
Quando o Cristão ouve a palavra “verdade” ele imediatamente pensa no fato de que “o Verbo se fez carne”, enquanto que, quando um Muçulmano ouve a mesma palavra ele primeiro pensa “não há divindade fora da Divindade única”, e irá interpretar isto de acordo com seu grau de conhecimento, tanto literal quanto metafísicamente. O Cristianismo está baseado num “evento”, e o Islam em “ser”, na “natureza das coisas”; aquilo que aparece ao Cristianismo como um fato único, a Revelação, é visto no Islam como a manifestação rítmica de um princípio. Se, para os Cristãos, a verdade é que o Cristo dispôs-se ao sacrifício da Cruz, para os Muçulmanos – para quem a verdade é que existe apenas um Deus – a crucificação de Cristo é de tal natureza que ela não pode ser “a Verdade”, e a rejeição islâmica à cruz é um modo de expressá-lo. O anti-historicismo islâmico – que por analogia poderia ser chamado “platônico” ou “gnóstico” – culmina nesta rejeição que é na raiz quase externa e para alguns até duvidosa na sua intenção, como é o caso, por exemplo, de Abu Hatim, citado por Louis Massignon em seu Le Christ dans les Evangiles selon Al-Ghazali.
Também a Queda – não apenas a Encarnação – é um “evento” único visto como capaz de determinar o “ser” – o ser humano – de um modo total. Para o Islam a queda de Adão é uma manifestação necessária do mal, mas não algo que signifique que o mal possa determinar a verdadeira natureza do homem, pois este não pode perder seu teomorfismo. No Cristianismo a “ação” divina surge de modo a ter primazia sobre o “ser” divino, no sentido de que a “ação” está refletida na própria definição de Deus. Este modo de ver as coisas pode parecer superficial, mas existe aqui uma sutil distinção que não pode ser negligenciada quando comparamos as duas teologias em questão.
A atitude de reserva adotada pelo Islam, embora não em relação a milagres em si, mas em relação à aceitação axiomática judaico-cristã (e mais especificamente cristã) dos milagres, é explicada pela predominância do pólo da “inteligência” em relação ao pólo da “existência”: a visão islâmica está baseada naquilo que é espiritualmente evidente, no sentimento do Absoluto, em conformidade com a própria natureza do homem que, neste caso, é visto como uma inteligência teomórfica e não como uma vontade que espera para ser seduzida no bom ou no mau sentido, seduzida, diga-se de passagem, pelos milagres ou pelas tentações. Se  o Islam, a última das grandes revelações a aparecer, não está fundamentado em milagres – embora aceitando-os por necessidade, caso contrário não seria uma religião -, isto é porque o Anticristo “desencaminhará muitos por suas maravilhas”; a respeito, um escritor católico do final do século XIX poderia exclamar: “O que precisamos é de sinais, fatos concretos!”. É inconcebível que um muçulmano pudesse dizer tal coisa; no Islam isto seria visto como infidelidade, ou mesmo uma apelação ao diabo ou ao anticristo, e de qualquer modo como uma vergonhosa extravagância. Mas a certeza espiritual (algo que está no extremo oposto desta “reviravolta” provocada pelo milagre), certeza que o Islam oferece na forma de uma fé unitária penetrante, é um elemento a que o mal não tem acesso; ele pode imitar um milagre, mas não uma evidência intelectual; ele pode imitar  um fenômeno, mas não o Espírito Santo, exceto nos casos daqueles que querem ser enganados e não tem noção nem da verdade nem do sagrado.
Fizemos antes uma alusão ao caráter não-histórico da perspectiva islâmica. Este caráter explica, não apenas sua intenção de ser não mais que uma repetição de uma realidade atemporal ou uma fase em um ritmo indefinido, e portanto uma “reforma” – no sentido estritamente ortodoxo e tradicional do termo, e mesmo num sentido transposto na medida em que uma revelação é inevitavelmente espontânea e provém apenas de Deus qualquer que seja a aparência –, mas explica também algumas idéias islâmicas tais como a da criação contínua: se Deus não fosse Criador todo o tempo o mundo passaria; uma vez que Deus é sempre Criador é Ele que intervém em todos os fenômenos e não existem causas secundárias, nem princípios intermediários, nem leis naturais que possam se colocar entre Deus e o fato cósmico, com uma única exceção no caso do homem, o qual, sendo o representante (imam) de Deus na terra, possui estes dons milagrosos, a inteligência e a liberdade. Mas em última instância nem mesmo estes bens escapam à divina determinação; o homem escolhe livremente aquilo que Deus quer; ele escolhe livremente porque Deus o quer assim, porque Deus não pode manifestar dentro da ordem contingente Sua absoluta Liberdade. Assim, nossa liberdade é real, mas num grau de realidade que é ilusória como a relatividade em que ela se produz e dentro da qual ela é um reflexo d’Aquela que verdadeiramente é.
A diferença fundamental entre o Cristianismo e o Islam expõe claramente o que cada um detesta: o que é detestável para o Cristão é, em primeiro lugar, a rejeição da divindade do Cristo e da Igreja e, em segundo uma moral menos ascética do que a sua, para não dizer relaxada; já o muçulmano odeia a rejeição a Allah e ao Islam porque a suprema Unidade em seu grau absoluto e transcendental se apresenta a ele como evidente e majestática e porque para ele o Islam, a Lei, equivale à Vontade divina e é a emanação lógica, na forma de equilíbrio, desta Unidade. Ora, a Vontade divina – aqui considerada acima das diferenças expostas acima – não necessariamente coincide com o sacrifício, e mesmo, em certos casos, combina o útil e o agradável; assim, afirma o muçulmano: “É bom o que Deus quer”, e não “Deus quer o que é doloroso”; logicamente o cristão possui a mesma opinião, mas sua sensibilidade e sua imaginação o levam com mais frequência à segunda formulação. No âmbito do Islam a Vontade divina tem em vista, em primeiro lugar, não o sacrifício e o sofrimento como provas de amor, mas o desenvolvimento da inteligência teomórfica (min Ruhi, “de Meu Espírito”), ela mesma determinada pelo Imutável e portanto incluindo nosso ser, caso contrário existirá “hipocrisia” (nifaq), porque saber é ser. Na realidade, a aparente “facilidade” do Islam tende para um equilíbrio, como já apontamos, para o qual a razão suficiente é em última análise o esforço “vertical”, a contemplação, a gnose. Num certo sentido o que devemos fazer é o oposto do que Deus faz; noutro sentido, devemos agir como Ele: isto porque por um lado somos semelhantes a Deus, desde que existimos, e por outro somos opostos a Ele porque, por existirmos, estamos separados d’Ele. Por exemplo, Deus é Amor; assim, somos levados a amar, por sermos como Ele; mas, por outro lado, Ele julga e sentencia, o que não podemos fazer por não sermos Ele; mas como estas posições são sempre aproximadas, a moral pode e deve sempre variar; sempre há lugar em nós – em qualquer grau, em princípio – para um amor culpado ou para uma vingança justa. Aqui tudo é uma questão de ênfase e delimitação; a escolha depende de uma perspectiva que não é arbitrária (caso contrário não seria uma perspectiva) mas é conforme à natureza das coisas ou a um aspecto específico desta natureza.

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Todas as posições descritas acima estão fundadas nos dogmas, ou, num senso mais profundo, na perspectiva metafísica que eles expressam, o que equivale a dizer a partir de um dado “ponto de vista” enquanto sujeito e de um certo “aspecto” quanto ao objeto. Uma vez que o Cristianismo está fundamentado na divinização de um fenômeno terrestre – não que o Cristo seja terrestre em si, mas apenas na medida em que ele se move no tempo e no espaço – o Cristianismo é forçado, como consequência disto, a introduzir a relatividade no Absoluto, ou antes a considerar o Absoluto em um nível relativo, o nível da Trindade; falar em distinção é falar em relatividade: o próprio termo “relações trinitárias” prova que o ponto de vista adotado – providencial e necessariamente adotado – permanece no nível apropriado a toda bhakti (a gnose vai além deste nível ao atribuir absolutividade ao “Godhead” no sentido de Eckhart, ou ao “Pai” quando a Trindade é considerada verticalmente, caso em que o “Filho” corresponde ao Ser – a primeira relatividade “dentro do Absoluto” – e o Espírito Santo ao Ato). Uma vez que um “relativo” específico é considerado como absoluto, o Absoluto deve possuir alguma coisa de relativo, e desde que a Encarnação é um fato da Divina Misericórdia ou Amor, Deus deve ser visto sob este aspecto e o homem sob o aspecto correspondente da vontade e do afeto; e igualmente o plano espiritual deve ser uma realidade de amor. A ênfase cristã na vontade é a contrapartida da concepção cristã do Absoluto e, se podemos nos expressar assim, esta aparece como se fosse determinada pela “historicidade” de Deus.


Analogamente, desde que o Islam está fundamentado no absolutismo de Deus, ele é forçado como consequencia – uma vez que ele se apresenta na forma como um dogmatismo semítico, caracterizado pelo fato de atribuir um escopo absoluto e um sentido exclusivo a um “aspecto” ou “ponto de vista” particular (enquanto que na metafísica pura todas as antonímias conceituais são resolvidas na verdade total – o que não deve ser confundido com resolver as oposições reais negando-as) – a excluir  do Absoluto tudo o que é terrestre e, a fortiori, ao menos no nível das palavras, a negar a divindade do Cristo;  ele não é obrigado a negar que de modo secundário o relativo está em Deus, porque ele admite os atributos divinos, caso contrário ele negaria a totalidade de Deus e também qualquer possibilidade de conexão entre Deus e o mundo; mas ele deve negar qualquer caráter diretamente divino fora da Princípio único. Os Sufis são os primeiros a reconhecer que nada pode existir fora da suprema Realidade, porque dizer que a Unidade exclui tudo equivale a dizer que de um outro ponto de vista – o da realidade do mundo – ela inclui tudo; mas esta verdade não é susceptível de uma formulação dogmática, porque ela está logicamente incluída no La ilaha illa’Llah.
Quando o Corão afirma que o Messias não é Deus ele quer dizer que ele não é um “deus” outro que Deus, ou que ele não é Deus na medida em que é o Messias terrestre; em termos cristãos: a natureza humana não é a natureza divina; se o Islam insiste nisto, como o faz,  de um modo particular e não de outro, é devido ao seu ângulo de visão. E quando ele rejeita o dogma da Trindade ele quer dizer que não existe uma tríade em “Deus enquanto tal”, ou seja, no Absoluto, que está além de toda distinção. Finalmente, quando o Corão chega a negar a morte do Cristo, podemos entender por isto que na realidade Jesus venceu a morte, ainda que os judeus acreditem haver matado o Cristo em sua verdadeira essência;  o Corão diz: “Não diga daqueles que foram assassinados no caminho de Deus que eles estão mortos; diga que eles estão vivos, embora não possamos perceber”; aqui a verdade do símbolo prevalece sobre a verdade do fato no sentido em que a negação espiritual toma a forma de uma negação material; mas, de outro ângulo, com esta negação, ou aparente negação, o Islam elimina a via do Cristo naquilo que diz respeito a ele, e é lógico que seja assim desde que sua própria via é diferente e ele não tem que apelar para os meios de graça que é próprios do Cristianismo. A mesma observação sobre a verdade do símbolo aplica-se ao Cristianismo quando, por exemplo, os santos do Antigo testamento – inclusive Enoch, Abraão, Moisés e Elias – são considerados como tendo permanecido fora do Paraíso até a “descida aos Infernos” do Cristo; não obstante, antes desta descida, o Cristo apareceu entre Moisés e Elias na noite da transfiguração e numa parábola mencionou “o peito de Abraão”; estes fatos são claramente sujeitos a várias interpretações, mas os conceitos cristãos nem por isso são incompatíveis com a tradição judaica. O que justifica tudo é o simbolismo espiritual e portanto a sua verdade: a salvação deve necessariamente vir através do Logos que, embora manifestado no tempo e numa forma particular, está além das limitações da condição temporal. Note-se igualmente a aparente contradição entre São João Batista negando ser Elias enquanto o Cristo afirma o contrário; caso esta contradição, que se resolve pela diferença de relação considerada, fosse entre uma religião e uma outra, ela teria sido explorada ao extremo sob o pretexto de que “Deus não pode contradizer a Si mesmo”.

No plano da verdade total, que inclui todos os pontos de vista, aspectos e modos possíveis, qualquer recurso à razão pura é inútil: consequentemente é vão apresentar contra qualquer dogma de uma religião “estrangeira” que um erro denunciado pela razão não possa se tornar verdade em outro plano, porque isto equivale a esquecer que a razão trabalha de forma indireta, ou por reflexos, e que seus axiomas são inadequados a partir do momento em que o plano do intelecto puro é alcançado. A razão é formal por natureza e formalista em suas operações; ela procede por “coagulações”, por alternativas e por exclusões – ou, podemos dizer, por verdades parciais. Ela não é, como o intelecto puro, sem forma como uma luz “fluida”; é certo que ela deriva sua maneira implacável, ou sua validação em geral, do intelecto, mas ela só alcançam as essências através de conclusões construídas, e não por uma visão direta; ela é indispensável para a formulação verbal mas não envolve o conhecimento imediato das coisas.
No Cristianismo a linha demarcatória entre o relativo e o Absoluto passa pelo Cristo; no Islam ela separa o mundo de Deus, e mesmo – no caso do esoterismo – os atributos divinos da essência, diferença que se explica pelo fato de que o exoterismo precisa sempre partir do relativo, enquanto o esoterismo parte do Absoluto ao qual ele empresta o significado estrito, e aliás o mais estrito que é possível. No Sufismo diz-se ainda que os atributos divinos são predicados como tais apenas em respeito ao mundo e que, em si mesmos, eles são indistintos e inefáveis: assim pode-se afirmar de Deus que Ele é, num sentido absoluto, “misericordioso” e “vingativo”, deixando momentaneamente de lado que ele é misericordioso “antes” de vingativo; assim como outros atributos da Essência, tais como a “sacralidade” ou a “sabedoria”, somente são atualizados em respeito à nossa mente distintiva, e o são sem que por isto percam seja o que for de sua infinita realidade, muito antes pelo contrário.
Afirmar que a perspectiva islâmica é possível equivale a dizer que ela é necessária e portanto não pode deixar de ser; isto é requerido pelo receptáculo humano. As diferentes perspectivas, enquanto tais, não possuem assim nenhuma qualidade absoluta, dado que a Verdade é uma; aos olhos de Deus suas diferenças são relativas e os valores de qualquer uma podem ser encontrados nas demais, de alguma forma. Não existe apenas um Cristianismo de “calor”, de amor emocional, de atividade sacrificial, mas, misturado com tudo isto, existe também um Cristianismo “frio”, de gnose, de pura contemplação, de “paz”, e do mesmo modo o Islam “seco” – legal e metafisicamente – incorpora um Islam que é “úmido” (sempre empregando estes termos no sentido alquímico), um Islam, se podemos dizê-lo, mais preocupado com a beleza, o amor e o sacrifício. É preciso que seja assim porque a unidade, não apenas da Verdade mas também do homem, é sem dúvida relativa, desde que existem as diferenças, mas não obstante suficientemente real para conduzir, ou para impor, a reciprocidade – ou a ubiquidade espiritual – de que se trata.

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Aqui existe um ponto que deve ser tratado, a questão da moralidade muçulmana. Se quisermos compreender algumas das contradições visíveis nesta moralidade devemos levar em consideração que o Islam distingue o homem enquanto tal do homem coletivo, sendo que este aparece como uma nova criatura sujeita num certo grau, embora não muito distante, às leis da seleção natural. Isto equivale a dizer que o Islam coloca todas as coisas no seu devido lugar e trata cada qual conforme sua natureza própria; ele encara o homem coletivo, não da perspectiva distorcida de um idealismo místico que é de fato inaplicável, mas levando em conta as leis naturais que regulam cada ordem e que são, dentro dos limites de cada ordem, estabelecidas por Deus. O Islam é a perspectiva da certeza e da natureza das coisas, mais do que de milagres e improvisação idealista. Isto é dito sem intenção de diminuir indiretamente o Cristianismo, que é aquilo que ele deve ser, mas para melhor colocar a intenção e a justificativa da perspectiva islâmica.
Se partirmos da idéia que o esoterismo por definição considera antes de mais nada o ser das coisas, e não toma por base nossa situação em relação à nossa vontade, então para o gnóstico cristão o ser das coisas é o próprio Cristo, o “Verbo do qual todas as coisas são feitas e sem o qual nada foi feito”. A Paz de Cristo é, deste ponto de vista, o repouso do intelecto “naquilo que é”.
Se existe uma clara separação no Islam entre o homem enquanto  tal e o homem coletivo, estas duas realidades não deixam de estar profundamente ligadas, dado que a coletividade é um aspecto do homem – nenhum homem pode nascer fora de uma família – e que reciprocamente a sociedade é uma multiplicação de indivíduos. Note-se que falamos em “homem enquanto tal” e não usamos a expressão “homem só” porque ela apresenta a desvantagem de definir o homem a partir da coletividade e não a partir de Deus; a distinção feita não é entre um homem e muitos homens, mas entre a pessoa humana e a sociedade. Segue-se desta interdependência ou reciprocidade que qualquer coisa feita em vista da coletividade, como a esmola para os pobres ou a guerra santa, possui um valor espiritual para o indivíduo e vice-versa; esta relação recíproca é tão mais verdadeira na medida em que o indivíduo vem antes da coletividade, pois todos os homens descendem de Adão, e não Adão descende dos homens.
O que foi dito explica porque o muçulmano, ao contrário dos budistas e hindus, não abandona os ritos externos para seguir um método espiritual que lhe convenha, ou porque tenha atingido um estágio espiritual cuja natureza autorize tal abandono. Um determinado santo pode não ter mais necessidade das preces canônicas, desde que se encontre num estado permanentemente mergulhado em prece, um estado de “intoxicação” – e apesar disto ele continua a cumprir as orações de modo a rezar com todos e para todos, e para que todos rezem com ele e para ele. Ele é a encarnação do “Corpo místico” que toda comunidade crente constitui, ou, de outro ponto de vista, ele encarna a Lei, a tradição e a prece enquanto tais. Desde que ele é um ser social ele deve ensinar com seu exemplo e, desde que ele é um indivíduo humano, permitir que aquilo que é humano se realize e se renove através dele. É interessante lembrar que o Corão diz: “Não se dirija para a prece em estado de embriaguez”, e isto pode ser entendido num sentido elevado e positivo; o Sufi que desfruta de uma “estação” (maqam) paradisíaca, ou meramente o dhakir (o homem entregue ao dhikr, o equivalente islâmico do japa hindu) pode, considerando sua prece secreta como um “vinho” (khamr), em princípio abster-se das orações comuns; “em princípio” porque de fato o cuidado com o equilíbrio e a solidariedade, tão enfatizados no Islam, apontam para a outra direção.
Aqui é preciso salientar que o princípio do abandono dos ritos comuns não deixou de ser conhecido e algumas vezes manifestado no Islam, caso contrário Ibn Hanbal não teria reprovado os Sufis por desenvolverem a meditação em detrimento das orações, como se pretendessem livrar-se das obrigações da lei. De fato, existe uma distinção entre os dervishes que são “viajantes” (para Deus: salikun) e os que são “atraídos” (por Deus: majadhib) os da primeira categoria formam a grande maioria e devem obedecer a Lei, enquanto que os últimos são dispensados e não são incomodados porque são normalmente considerados meio loucos e às vezes dignos de piedade, às vezes de medo, às vezes de veneração. Dentre os Sufis da Indonésia os casos de abandono dos ritos em favor da prece do coração parecem não ser raros; a consciência da Unidade Divina é então considerada uma prece universal que dispensa das preces canônicas; o conhecimento supremo é visto como excluindo a multiplicidade “politeísta” (mushrik) dos ritos, porque o Absoluto não possui dualidades. No Islam em geral parece sempre ter havido – embora à parte da distinção especial entre salikun e majadhib – uma divisão exterior entre os Sufis que são “nômicos” e aqueles que são “antinômicos”, sendo os primeiros ligados à Lei em virtude do seu simbolismo e oportunidade e os segundos dispensados da Lei em virtude da supremacia do coração (Qalb) e do conhecimento direto (ma’rifah). Jalal ed-Din Rumi diz em seu Mathnawi: “Os amantes do rito formam uma classe e aqueles cujos corações foram inflamados pelo amor formam outra”, uma observação que se aplica apenas aos Sufis, como demonstra a referência à “essência da certeza” (‘ayn al-yaqin), e que não inclui nenhuma sugestão de uma alternativa sistemática, como o prova a própria vida de Jalal ed-Din; nenhuma “livre interpretação” pode justificar-se por isto. Finalmente, deve-se notar que, de acordo com Al-Junaid, “aquele que realiza a união” (muwahhid) deve observar “sobriedade” (sahw) e afastar-se da “intoxicação” (sukr) assim como da “libertinagem” (ibahiyah).
A transparência metafísica das coisas e seu questionamento contemplativo significa que a sexualidade (dentro da estrutura de sua legitimidade tradicional, que é ao mesmo tempo equilíbrio psicológico e social) pode assumir um caráter meritório, como o mostra a própria existência daquela estrutura. Em outras palavras não é apenas a felicidade que conta – deixando de lado a continuação da espécie – porque a sexualidade possui também um conteúdo qualitativo, sendo seu simbolismo a um tempo objetivo e vivido. A base da moralidade muçulmana está sempre na realidade biológica e não num idealismo contrário às possibilidades coletivas e aos direitos inegáveis das leis naturais; mas esta realidade, ao mesmo tempo em que forma a base de nossa vida animal e coletiva, não possui uma qualidade absoluta, porque somos seres semi-celestiais; ela sempre pode ser neutralizada no nível de nossa liberdade pessoal, embora nunca abolida no de nossa existência social. Por exemplo, muitos santos hindus romperam com as castas, mas nenhum sonhou em aboli-las. À questão de se existem duas moralidades, uma para indivíduos e outra para o Estado, a resposta é afirmativa, guardada a ressalva de que uma sempre pode estender-se ao domínio da outra conforme circunstancias tanto internas quanto externas. Nunca, em nenhuma circunstancia é permitida a intenção de “não resistir ao mal” para tornar-se cúmplice, traidor ou suicida.
O que foi dito da sexualidade aplica-se por analogia, embora apenas quanto ao mérito, à alimentação: como no caso de qualquer religião, empanturrar-se é pecado, mas comer em boa medida e agradecendo a Deus não é pecado no Islam, mas ao contrário um ato positivo e meritório. Claro que a analogia não é total, pois num hadith bem conhecido o Profeta diz que ele “amou as mulheres”, não que ele amou a comida. Aqui o amor às mulheres está conectado com a nobreza e a generosidade, sem contar o simbolismo puramente contemplativo que vai muito além disso.
O Islam é frequentemente criticado por  ter propagado sua fé pela espada; o que é esquecido é, em primeiro lugar, que a persuasão desempenhou um papel muito maior do que a guerra na expansão do Islam como um todo; em segundo, que apenas os politeístas e os idólatras poderiam ser compelidos a abraçar a nova religião;  esta atitude, por exemplo, cessou em relação aos Hindus, em larga medida, desde que os muçulmanos se deram conta de que o hinduísmo não é equivalente ao paganismo árabe e assimilaram os Hindus aos “povos do Livro” (ahl al-Kitab), ou seja ao monoteísmo das tradições ocidentais semíticas; em terceiro, que o Deus do Antigo Testamento não é menos guerreiro que o Deus do Corão, bem ao contrário; e, em quarto, que o Cristianismo também usou a espada nos tempos de Constantino. A questão que se coloca é simplesmente esta: é possível que a força seja usada para afirmar e difundir uma verdade vital? Sem dúvida a resposta deve ser afirmativa, pois e experiência demonstra que às vezes a violência precisa ser  usada contra pessoas irresponsáveis em seu próprio interesse. Ora, uma vez que a possibilidade existe, ela não deve deixar de se manifestar quando as condições sejam apropriadas – Cristo, ao usar de violência contra os vendilhões do templo, mostrou que esta atitude não pode ser excluída – , exatamente como no caso oposto, em que a vitória acontece pela força inerente à própria verdade; é a natureza interna ou externa das coisas que determina a escolha entre as duas possibilidades. Por um lado o fim santifica os meios, o que significa que os meios devem achar-se prefigurados na natureza divina; assim o direito do mais forte está prefigurado na “selva” à qual pertencemos sem dúvida, num certo grau e enquanto coletividade; mas nesta “selva” não encontramos nenhum direito à perfídia ou vilania e, ainda que encontrássemos, nossa dignidade humana nos interditaria de participar disso. A dureza de certas leis biológicas nunca deve ser confundida com a infâmia de que só o homem é capaz, em função de seu teomorfismo pervertido. O escritor Ernst Kühnel ressalta a questão em uma passagem exemplar: “Vemos príncipes católicos e muçulmanos não apenas em alianças quando se trata de quebrar o poder de um perigoso fellow-religionist, mas também auxiliando generosamente uns aos outros para combater desordens e revoltas. O leitor deverá menear a cabeça ao saber que numa das batalhas do Califato de Córdoba, em 1010 dC, foram forças catalãs que salvaram a situação, e três bispos deram suas vidas pelo “Príncipe dos Fiéis” (...) Al Mansur tinha em sua companhia muitos Condes, que se juntaram a ele com suas tropas, e não havia nada de excepcional na presença de guardas cristãos na corte de Andaluzia (...) Quando um território inimigo era conquistado as convicções religiosas da população eram respeitadas tanto quanto possível; lembremo-nos que Al Mansur – em geral um homem de poucos escrúpulos – tomou cuidados, no assalto a Santiago, para proteger contra qualquer profanação a igreja que continha a tumba do Apóstolo, e que em muitos outros casos os Califas tiveram a chance de mostrar seu respeito para com os objetos sagrados do inimigo: e em circunstancias similares os cristãos observaram a mesma atitude. Por séculos o Islam foi respeitado nos territórios reconquistados, e apenas no século XVI que ele passou a ser sistematicamente perseguido e exterminado pela instigação de um clero fanático que tornara-se superpoderoso. Em contraste com isso, através de toda a Idade Média a tolerância para com as convicções estrangeiras e o respeito pelos sentimentos do inimigo acompanharam as incessantes lutas entre mouros e cristãos e contribuíram para suavizar grandemente as misérias da guerra, dando às batalhas um caráter tão cavalheiresco quanto possível (...) Apesar do abismo que os separavam em matéria de língua, este respeito pelo adversário e a alta estima pelas suas virtudes tornou-se um laço comum assim como o foi a compreensão mostrada na poesia de ambos os lados em relação ao outro; inclusive esta poesia testemunha de forma eloqüente o amor e a amizade que frequentemente unia cristãos e muçulmanos apesar de todos os obstáculos.” (Ernst Kühnel, Maurische Kunst, Berlim, 1924)
De um certo ponto de vista pode-se dizer que o Islam tem duas dimensões, a dimensão “horizontal” da vontade e a dimensão “vertical”  da inteligência: podemos chamar a primeira de “equilíbrio” e a segunda de “união”. O desequilíbrio também inclui um sentido positivo, mas apenas indiretamente: toda guerra santa é um desequilíbrio. Como exemplo, alguns ditos do Cristo podem ser interpretados como instituindo o desequilíbrio dentro de uma perspectiva de união, como por exemplo: “Não pensem que vim trazer paz à terra”; somente Deus irá assim restaurar o equilíbrio. O Islam é essencialmente equilíbrio e união; ele não sublima a priori a vontade pelo sacrifício, mas neutraliza-a com a Lei, enquanto ao mesmo tempo a mantém segura pela contemplação. As dimensões de equilíbrio e união, a horizontal e a vertical, concernem tanto o homem enquanto tal como a comunidade; certamente não existe uma identificação aqui, mas uma solidariedade que faz com que a sociedade participe, a seu modo e conforme suas possibilidades, no caminho individual de União, e a recíproca é verdadeira. Uma das maneiras mais importantes de realizar o equilíbrio é precisamente a concordância entre a Lei sagrada que se refere ao homem como tal e a lei relativa à sociedade. Empiricamente o Cristianismo foi forçado pelas circunstâncias a buscar essa posição, mas deixou certas “fissuras” permanecerem, e não as conteve, seja em primeira instância pela divergência entre os dois planos humanos, ou , como consequência disto, pela necessidade de harmonizá-los. Repitamos uma vez mais que o Islam é um equilíbrio determinado pelo Absoluto e disposto com vistas ao Absoluto; este equilíbrio, como o ritmo que no Islam é realizado ritualmente através das preces canônicas que seguem a marcha do Sol e “mitologicamente” através da série retrospectiva das Mensagens divinas e dos Livros revelados, equivale à participação da multiplicidade no Um, ou do condicionado no Incondicionado; sem equilíbrio, desta perspectiva, é impossível encontrar o centro, e fora deste centro nenhum progresso e nenhuma união é possível. Se o equilíbrio diz respeito ao “centro”, o ritmo refere-se mais particularmente à “origem”, vista como a raiz qualitativa das coisas.
Como todas as civilizações tradicionais, o Islam é um “espaço” e não um “tempo”, pois, para ele, o “tempo” não passa da corrupção deste “espaço”. “Nenhum período virá”, predisse o Profeta, “que não seja pior do que seu precedente”. O “espaço”, esta tradição invariável – invariável apesar da difusão e da diversidade de formas em relação ao momento da elaboração inicial da tradição – envolve a humanidade muçulmana como um símbolo, assim como o mundo físico que nos alimenta invariável e imperceptivelmente com seu simbolismo; é normal para a humanidade viver em um símbolo, que é como uma seta que aponta para o Céu, como uma abertura para o Infinito. Quanto à ciência moderna, ela perfurou as fronteiras que protegiam este símbolo e, ao fazê-lo, destruiu o próprio símbolo; ela assim aboliu a seta, a abertura, na mesma medida aliás em que o mundo moderno destrói os símbolos espaciais constituídos pelas civilizações tradicionais; aquilo que ela denomina “estagnação” e “esterilidade” é na verdade a homogeneidade e a continuidade do símbolo. Quando um muçulmano autêntico diz aos protagonistas do progresso: “Tudo o que vos resta é abolir a morte”, ou quando ele pergunta: “Vocês podem impedir o Sol de se por, ou forçá-lo a nascer?”, ele expressa exatamente aquilo que está na raiz da “esterilidade” islâmica: um maravilhoso sentido da relatividade e, o que vem a dar no mesmo, um sentimento de que o Absoluto domina toda as sua vida.  Fernand Brunner aponta a falta de compreensão moderna em relação ao verdadeiro caráter das ciências antigas: “Nem a Índia nem os Pitagóricos praticavam ciência moderna, e isolar aí os elementos de técnica racional que lembram nossa ciência dos elementos metafísicos que em nada a lembram consiste numa operação arbitrária e violenta que é contrária à objetividade verdadeira. Assim colocado Platão não possui mais do que um interesse anedótico, enquanto que toda sua doutrina consiste em instalar o homem na vida supra-temporal e supra-discursiva do pensamento, de que as matemáticas, assim como o mundo sensível, podem ser os símbolos. Assim, se os povos puderam existir sem nossa ciência durante milênios e em todos os climas, é porque ela não é necessária; e se ela surgiu como fenômeno de civilização bruscamente e num só lugar, foi para revelar sua essência contingente”  (Fernand Brunner, Science et Realité, Paris, 1954).
Para entender as civilizações tradicionais em geral e o Islam em particular é preciso levar também em conta o fato de que para elas a forma humana não corresponde ao homem comum imerso em ilusão, mas ao santo, destacado do mundo e ligado a Deus; somente este é inteiramente “normal” e somente ele desfruta do “pleno direito” de existir; é esta perspectiva que proporciona a algumas delas uma certa falta de sensibilidade em relação à natureza humana enquanto tal. Na medida em que esta natureza é em grande parte insensível em relação ao Soberano Bem, ela deve ao menos temê-lo, se não puder ter amor a Ele.
A vida das pessoas divide-se em duas metades: uma constitui o teatro de sua existência terrestre, outra seu relacionamento com o Absoluto. O que determina o valor de um povo ou de uma civilização não é a forma literal de seu sonho terrestre – pois aqui tudo não passa de símbolo – mas sua capacidade de “sentir” o Absoluto e, no caso de algumas almas especialmente privilegiadas, alcançarem o Absoluto. Assim é completamente ilusório colocar-se à parte desta dimensão “absoluta” e avaliar o mundo humano de acordo com um critério terrestre, como quando se compara uma civilização material com outra. A distância de alguns milhares de anos que separa a idade da pedra dos Índios Peles Vermelhas do refinamento material e literário do homem branco não representa nada quando comparada com a inteligência contemplativa e com as virtudes, que sozinhas emprestam valor ao homem e sozinhas mantém sua permanente realidade, ou este algo que nos permite avaliá-lo realmente, como ele aparece aos olhos do Criador. Acreditar que alguns homens  “ficaram para trás” porque seu sonho terrestre é mais “rudimentar” que o nosso – e às vezes por isso mesmo é mais sincero – é ainda mais ingênuo do que acreditar que a Terra é plana ou que um vulcão é um deus; a mais ingênua de todas as atitudes é certamente ver o sonho como algo absoluto e sacrificar em nome dele todos os valores essenciais, esquecendo que o que é “sério” começa em outro nível além, ou melhor, que o que é “sério” neste mundo, o é em função daquilo que lhe está além.
A civilização moderna, enquanto modelo de pensamento ou cultura é frequentemente comparada com as civilizações tradicionais, mas esquece-se que este pensamento moderno, ou a cultura que o engendrou, não passa de um fluxo indefinível, que num certo sentido não pode ser definido positivamente por não possuir nenhum princípio que seja real e que remeta ao Imutável. O pensamento moderno não é de modo algum uma doutrina entre outras; ele é hoje o resultado de uma fase específica de sua expansão e se tornará aquilo que a ciência materialista e experimental e as máquinas fizerem dele; já não é o intelecto humano que decide o que é o homem, o que é a inteligência, o que é a verdade, mas as máquinas – ou a física, a química, a biologia. Nestas condições a mente humana depende cada vez mais do “clima” produzido por suas próprias criações: o homem já não sabe julgar como homem, em função, é preciso dizê-lo, de um absoluto que é a própria substância da inteligência; perdendo-se num relativismo que leva a lugar nenhum ele se deixa julgar, determinar e classificar pelas contingências da ciência e da tecnologia; incapaz de escapar ao tolo fatalismo que elas lhe impuseram e negando-se a admitir seu erro, a única saída que lhe resta é abdicar à sua dignidade e liberdade: existe aqui uma espécie de perversão do instinto de auto-preservação, uma necessidade de consolidar o erro para manter a consciência tranqüila. Agora é a ciência e as máquinas que criam o homem e, se podemos nos expressar assim, também “criam Deus”, pois o vácuo deixado pelo destronamento de Deus não pode ficar vazio, e a realidade de Deus e sua marca na natureza humana requerem uma divindade usurpadora, um falso absoluto que possa preencher o nada de uma inteligência que teve sua substância roubada. As especulações de Teilhard de Chardin fornecem um exemplo cabal de uma teologia que sucumbiu aos microscópios e telescópios, às máquinas e às suas conseqüências filosóficas e sociais, uma “queda” que seria impensável se houvesse o menor conhecimento direto das realidades imateriais. O lado “inumano” da doutrina em questão é muito significante. Fala-se muito hoje em “humanismo” ignorando-se o fato de que o homem, abandonando à matéria, às máquinas e ao conhecimento quantitativo suas próprias prerrogativas, cessa de ser realmente “humano”. O que é mais completamente humano é o que dá ao homem as melhores chances no além e, pelo mesmo motivo, o que mais profundamente corresponde à sua natureza.
Quando as pessoas falam em “civilização” elas geralmente atribuem um significado qualitativo ao termo, mas realmente a civilização só representa um valor se for supra-humana em sua origem e implicar para o homem “civilizado” um sentido do sagrado: somente um povo que tenha este sentimento e que governe sua vida a partir dele é de fato civilizado. À objeção de que esta reserva não considera todo o significado possível do termo e que é possível um mundo ”civilizado” ainda que sem religião, a resposta é que, neste caso, a “civilização” é vazia de valores, ou antes – uma vez que não existe escolha legítima entre o sagrado e as outras coisas – que ela é a mais mortal das aberrações. Um senso do sagrado é fundamental para qualquer civilização porque é fundamental para o homem; o sagrado – aquilo que é imutável, inviolável e infinitamente majestoso – está na própria essência de nosso espírito e da nossa existência. O mundo está doente porque os homens vivem apenas entre si; o erro do homem moderno é pretender reformar o mundo sem ter a vontade nem o poder de reformar o homem, e esta flagrante contradição, esta tentativa de fazer um mundo melhor a partir de uma humanidade decaída, só pode desembocar na abolição do que é humano, aí incluída a própria felicidade. Reformar o homem significa redirecioná-lo para o Céu, restabelecendo a ligação rompida, o que implica tirá-lo do reino das paixões, do culto da matéria, da quantidade e das opiniões, e reintegrando-o ao mundo do espírito e da serenidade – até mesmo, diga-se de passagem, no mundo de sua própria razão suficiente.
Nesta ordem de idéias, e porque existem supostos muçulmanos que não hesitam em descrever o Islam como “pré-civilização”, é preciso fazer uma distinção entre “queda”, “descendência”, “degeneração” e “desvio”. Toda a humanidade é “decaída” pela perda do Éden e também, mais especificamente, por estar envolvida na “idade do ferro”; algumas civilizações, como alguns estados do Leste à época da expansão do Ocidente, podem ser chamados de “decadentes”; não foi esta decadência, de qualquer modo, que os tornou abertos à colonização, mas ao contrário foi seu caráter normal, que excluía o “progresso tecnológico”; o Japão, que estava bastante decadente, não teve mais sucesso do que outros países em deter o primeiro assalto dos exércitos ocidentais (devemos acrescentar que hoje em dia a velha oposição entre Ocidente e Oriente não é mais válida no campo político ou é válida apenas entre nações; externamente existem apenas variações do mesmo espírito moderno que se opõem mutuamente); muitas tribos selvagens podem ser consideradas “degeneradas” dependendo do seu grau de barbarismo; quanto à civilização moderna, ela “desviou-se” e este desvio cada vez mais combinou-se com uma decadência real que é particularmente palpável na literatura e nas artes. Se o Islam é chamado de “pré-civilização” ele também pode ser chamado de “pós-civilização”.
Aqui surge uma questão, algo lateral em relação ao nosso tema, mas que merece atenção na medida em que, ao falarmos do Islam, falamos necessariamente de tradição e ao usarmos este termo é preciso explicar o que é tradição e o que não é. A questão é: qual é o significado prático da necessidade, tão valorizada hoje em dia, das religiões serem orientadas para os problemas sociais? Simplesmente que a religião deve ser orientada para as máquinas, ou, para colocarmos de modo mais direto, que a teologia se torne empregada da indústria. Não há dúvida que sempre existiram problemas sociais resultantes do abuso que surgem, de um lado, pela queda da humanidade e, de outro, pela existência de grandes coletividades formadas por agrupamentos desiguais; mas na Idade Média (um período considerado longe do ideal pelos homens daquele tempo) e mesmo depois, um artesão extraía uma grande parte de sua felicidade de seu trabalho, que ainda era humano, e do ambiente que ainda estava conforme com um gênio étnico e espiritual. Qualquer que tenha sido a situação naquele tempo, o trabalhador moderno existe e a verdade concerne a ele: antes de mais nada ele deve entender que não se trata de reconhecer, na qualidade acidental de “trabalhador”, um caráter pertencente a alguma categoria intrinsecamente humana, uma vez que os homens que são trabalhadores podem pertencer a quaisquer outras categorias naturais; em segundo lugar, ele deve entender que qualquer situação exterior é sempre relativa, e que o homem sempre permanece homem, e que a verdade e a vida espiritual podem adaptar-se graças à sua universalidade e seu caráter imperativo, a qualquer situação, de modo que a suposta “questão do trabalhador na indústria” é no fundo simplesmente o problema do homem colocado nestas circunstâncias particulares, ou seja, o problema do homem enquanto tal; finalmente, ele deve entender que a verdade não exige de nenhum homem que ele deva colocar-se sob a opressão, quando esta situação acontece, de forças que apenas servem às máquinas, assim como o homem não deve basear suas demandas na inveja, que em nenhum caso pode ser a medida das necessidades humanas. Deve-se acrescentar que, se todo homem obedecesse a profunda lei inscrita na condição humana, não existiriam mais problemas sociais, nem mesmo problemas humanos; deixando de lado a questão de como a humanidade poderia ser reformada – o que de fato é impossível – cada qual deve reformar a si mesmo e nunca acreditar que as realidades interiores não tem importância para o equilíbrio do mundo. É tão importante guardar-se de otimismo quimérico quanto do desespero; o primeiro é contrário à efêmera realidade do mundo em que vivemos e o segundo à eterna realidade que ainda trazemos em nós, e que é a única coisa que torna inteligível nossa condição humana e terrestre.
De acordo com um provérbio árabe que reflete a atitude do muçulmano diante da vida, a lentidão vem de Deus e a rapidez de Satã (Festina lente, diz o provérbio latino) , e isto leva à seguinte reflexão: como as máquinas devoram o tempo o homem moderno está sempre apressado e, como esta perpétua falta de tempo cria nele reflexos de pressa e superficialidade, ele confunde estes reflexos – com as correspondentes formas compensatórias de desequilíbrio – com marcas de superioridade e em seu coração desdenha o homem antigo com seus hábitos “idílicos”, em especial o velho muçulmano com seu traje longo e seu turbante, que demora tanto em apressar-se. Por não ter nenhuma experiência disto as pessoas não podem imaginar o que preenche o conteúdo qualitativo da “preguiça” tradicional nem o modo como “sonhava” o homem dos tempos antigos; ao contrário, as pessoas contentam-se com a caricatura, que é mais simples e melhor adaptada ao ilusório instinto de auto-preservação. Se o ponto de vista atual está  tão largamente determinado pelas preocupações sociais com uma evidente base material, isto não se dá apenas devido às conseqüências sociais da mecanização e das condições humanas que ela engendra, mas também pela ausência de uma atmosfera contemplativa, que é essencial para o bem estar do homem, qualquer que seja seu “modo de viver”, para usar uma expressão que é tão bárbara quanto comum. Qualquer atitude contemplativa é hoje tachada de “escapismo” – em alemão Weltflucht – e isto inclui qualquer recusa em situar a verdade total e o significado da vida na agitação externa. Uma ligação hipocritamente utilitária com o mundo é dignificada como “responsabilidade” e as pessoas são levadas a ignorar o fato de que flanar – mesmo supondo tratar-se de um escape – é nem sempre uma atitude errada.

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Fizemos uma referência ao turbante quando falamos da lentidão dos ritmos tradicionais, e aqui devemos fazer uma pausa para reflexão.  Antes, porém, convém salientar que esta vagareza não exclui a velocidade, quando esta acompanha as propriedades naturais das coisas ou quando resulta naturalmente das circunstâncias, mostrando estar de acordo com os correspondentes simbolismos e atitudes espirituais. Está na natureza do cavalo ser capaz de galopar e uma “fantasia” árabe é executada em alta velocidade; um golpe de espada deve ser rapidíssimo e também assim devem ser as decisões num momento de perigo. A ablução antes da prece deve ser feita rapidamente.
A associação de idéias entre o turbante e o Islam está longe de ser casual: “O turbante”, diz o Profeta, “é a fronteira entre a fé e a descrença”, e ele diz também: “Minha comunidade não cairá enquanto usar o turbante”. Os seguintes ahadith também se colocam neste mesmo contexto: “No Dia do Juízo o homem receberá a luz para cada volta do turbante (kawrah) ao redor de sua cabeça”; “Use o turbante e você ganhará em generosidade”. O que queremos salientar é que o turbante é visto como outorgando àquele que o usa uma espécie de gravidade, consagração e humildade majestática – no Islam tanto os anjos quanto os profetas são representados com turbantes, às vezes com cores diferentes conforme o simbolismo; o turbante coloca a pessoa à parte das criaturas caóticas e dissipadas – dallun, os desviados da Fatihah – fixando-o num eixo divino – es-sirat el-mustaqin, o “caminho reto” da mesma prece – e a orienta para a contemplação; o turbante é o contraponto a tudo o que é profano e vazio. Uma vez que é a cabeça, o cérebro, que é para nós o plano onde se dá nossa escolha entre o verdadeiro e o falso, o durável e o efêmero, o real e o ilusório, o responsável e o fútil, é a cabeça que deve levar a marca desta escolha; o símbolo material deve reforçar a consciência espiritual, e ademais, isto é verdadeiro para qualquer forma religiosa de cobertura da cabeça e mesmo para qualquer vestimenta litúrgica ou meramente tradicional. O turbante assim envolve o pensamento do homem, sempre pronto para a dissipação, o esquecimento e a infidelidade; ele lembra o sagrado aprisionamento da natureza passional sempre pronta a abandonar Deus – se quisermos um exemplo cristão, quando São Vicente de Paula desenhou o véu das Irmãs de Caridade ele quis dar a elas um aspecto reminiscente do isolamento monástico. É a função da Lei Corânica restabelecer o equilíbrio primordial que foi perdido; daí o hadith: “Vistam turbantes e tornem-se distintos dos povos (desequilibrados) que vieram antes de vocês”.
O repúdio ao turbante, assim como o repúdio ao romântico, ao pitoresco ou a tudo o que pertença ao folclore, é explicado pelo fato de que as palavras “românticas” são precisamente aquelas nas quais é mais provável encontrarmos Deus; quando as pessoas querem se afastar de Deus é lógico que comecem por criar uma atmosfera na qual as coisas espirituais fiquem deslocadas; para ser possível declarar com sucesso que Deus é irreal, é preciso construir ao redor do homem uma falsa realidade, uma realidade que é inevitavelmente inumana porque apenas aquilo que é inumano pode excluir Deus. O que está envolvido nisto é uma falsificação da imaginação e em seguida sua destruição; a mentalidade moderna implica a mais prodigiosa falta de imaginação imaginável.
Neste ponto devemos fazer algumas considerações a respeito do véu feminino muçulmano. O Islam marca uma clara divisão entre os mundos do homem e da mulher, entre a comunidade como um todo e a família que é seu germe, entre a rua e a casa, assim como separa a sociedade do indivíduo ou o exoterismo do esoterismo. A casa, e a mulher que é sua encarnação, são considerados como possuidores de um caráter inviolável e sagrado. A mulher, de certo modo, ainda encarna o esoterismo, devido a certos aspectos de sua natureza e sua função; a “verdade esotérica”, haqiqah, é “sentida” como uma realidade “feminina”, e a mesma coisa vale para a barakah. Ademais o véu e a reclusão feminina estão conectados com a fase final do ciclo que vivemos – e eles apresentam uma certa analogia com a proibição do vinho e a revelação dos mistérios.

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As diferenças entre os mundos tradicionais não se limitam a diferenças de perspectiva e de dogma, mas também a diferenças de temperamento e gosto: assim o temperamento europeu não está preparado para tolerar o exagero como forma de expressão enquanto que para o oriental a hipérbole é um modo de expressar uma idéia ou intenção, ou marcar o sublime, ou expressar o que não pode ser descrito, como o aparecimento de um anjo ou o resplendor de um santo. Um ocidental dá importância à exatidão factual, mas sua falta de intuição quanto às “essências imutáveis” (ayan thabitah) contrabalança isto, diminuindo o alcance do seu espírito de observação; o oriental, ao contrário, possui um sentido da transparência metafísica das coisas mas costuma negligenciar o aspecto literal dos fatos terrenos; para ele, o símbolo é mais importante do que a experiência.
Esta hipérbole simbólica é em parte explicada pelo seguinte princípio: entre a forma e o conteúdo não existe apenas analogia, mas também oposição; se a forma, ou a expressão, deve normalmente estar em conformidade com aquilo que é transmitido, ela também pode ver-se “desprezada” em favor do puro conteúdo em razão da distância que separa o “externo” do “interno”, ou ela pode ser “esmagada” pela superabundância do conteúdo. O homem que está ligado apenas ao “interior” pode não ter necessidade de formas externas, e a recíproca pode ser verdadeira para ele; um homem pode parecer sublime por ser santo e outro pode ser desprezado pela mesma razão; e o que é verdadeiro para os homens também o é para o que ele diz e escreve. Às vezes o preço da profundidade e da sublimidade é uma falta de senso crítico em relação às aparências; isso não quer dizer que seja este o caso, porque esta não passa de uma possibilidade paradoxal; em outras palavras, quando um piedoso exagero surge de um transbordamento da percepção e da sinceridade, ele tem o “direito” de desdenhar o fato de que sua construção é pobre e que seria incabível reprová-lo por isso. Tanto a piedade quanto a veracidade exigem que vejamos a excelência da intenção e não a fraqueza da expressão quando esta alternativa se apresenta.

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Os pilares (arkan) do Islam são estes: o duplo testemunho da fé (shahadatan), a prece canônica repetida sete vezes ao dia (salat), o jejum do Ramadan (siyam, sawm), a esmola (zakat), a peregrinação (hajj); a estas se soma eventualmente a guerra santa (jihad), que possui um caráter mais ou menos acidental porque depende de circunstâncias; o mesmo se aplica no plano do microcosmo humano tanto à inteligência quanto à vontade: nem o desejo nem o discernimento podem ser exercitados na ausência de um objeto; quanto à ablução (wudhu ou ghusl conforme as circunstâncias), ela não é mencionada em separado por ser uma condição da prece. Como já vimos a shahadah indica em última análise – e é seu significado mais universal que nos interessa aqui – o discernimento entre o Real e o irreal e então, em segundo lugar, a ligação do mundo a Deus em respeito tanto à sua origem quanto ao seu fim, porque ver as coisas separadas de deus é também descrença (nifaq, shirk ou kufr conforme o caso). A prece integra o homem ao ritmo da adoração universal e – através da orientação ritual do adorador em direção à Kaaba – à sua ordem centrípeta; a ablução que precede a prece leva o homem virtualmente de volta ao estado primordial e de certa maneira ao Ser puro. O jejum separa o homem do fluxo contínuo e devorador da vida carnal, introduzindo em nossa carne uma espécie de morte e purificação; lembremo-nos de que o Ramadan está para o mundo muçulmano assim como o domingo está para a semana cristã e o Sabbath para a judaica; a caridade vence o egoísmo e a avareza e atualiza a solidariedade a todas as criaturas, porque a esmola é como o jejum para a alma, ainda que o jejum propriamente dito seja uma esmola ofertada pelo corpo. A peregrinação é a prefiguração da jornada interna para dentro da Kaaba do coração e purifica a comunidade, assim como a circulação do sangue passando através do coração purifica o corpo; finalmente a guerra santa é – sempre do ponto de vista que adotamos aqui – uma manifestação externa e coletiva do discernimento entre verdade e erro; é como um complemento negativo e centrífugo da peregrinação – complemento, não contrário, porque permanece ligada ao centro, e positiva segundo seu conteúdo religioso.
Vamos recapitular mais uma vez as características essenciais do Islam vistas do ângulo que nos colocamos aqui. Em condições normais o Islam choca pelo caráter inamovível de sua convicção e pela natureza combativa de sua fé; estes dois aspectos complementares, um interno e estático, outro externo e dinâmico, derivam essencialmente de uma consciência do Absoluto, que de um lado estabelece a inacessibilidade da dúvida e de outro repele  o erro com violência; desta perspectiva o erro consiste em negar o Absoluto ou atribuir um caráter absoluto ao que é relativo ou contingente, ou admitir a existência de mais de um Absoluto; esta intenção metafísica não pode, de qualquer modo, ser confundida com a associação de idéias que ela pode gerar na consciência do muçulmano, associações que podem ter um significado puramente simbólico; o Absoluto – ou a consciência do Absoluto – engendra assim na alma as qualidades da rocha e da luminosidade, a primeira representada pela Kaaba, que é o centro, e a última pela espada da guerra santa, que marca a periferia. No plano espiritual o Islam acentua o papel do conhecimento, porque é o conhecimento que realiza o máximo de unidade no sentido de que fisga a ilusão da pluralidade e conduz através da dualidade de sujeito e objeto; o amor é uma forma e um critério de conhecimento unitivo ou, de outro ponto de vista, um estágio no caminho para este. No plano terrestre o Islam busca o equilíbrio e coloca cada coisa no seu lugar; e ele estabelece uma clara distinção entre o indivíduo e a comunidade ao mesmo tempo em que leva em conta sua solidariedade recíproca. El-Islam é a condição humana trazida ao equilíbrio em função do Absoluto, tanto para a alma humana quanto para a sociedade.
A base para a ascensão espiritual é que Deus é puro Espírito e o homem assemelha-se a Ele fundamentalmente através da inteligência; o homem dirige-se a Deus do meio daquilo que nele, mais é conforme a Deus – o intelecto -, que é, ao mesmo tempo, penetração e contemplação e possui como seu conteúdo “sobrenaturalmente natural” o Absoluto que ilumina e liberta. O caráter de uma via depende de uma definição preliminar de homem: se o homem é definido como paixão, como o faz a perspectiva geral do Cristianismo – embora não haja aqui nenhuma restrição fundamental – então o caminho é sofrimento; se como desejo, o caminho é a renúncia; se como vontade, o caminho é esforço; se como inteligência, então o caminho é discernimento, concentração, contemplação. Isso também pode ser expresso da seguinte maneira: a via é tal ou qual “para” – não porque – tal ou qual homem conforme sua natureza; isso nos permite entender porque a espiritualidade muçulmana, embora fundamentada no mistério do conhecimento, não deixa de incluir a renúncia e o amor.
O Profeta disse: “Deus não criou nada mais nobre do que a inteligência, e Sua indignação está sobre aquele que não a honra”, e afirmou também: “Deus é beleza e Ele ama a beleza”. Estes dois ditos são característicos do Islam: pois para ele o mundo é um grande livro cheio de “sinais” (ayat), ou símbolos – elementos de beleza – que fala ao nosso entendimento e é endereçado “àqueles que entendem”. O mundo é feito de formas, e estas são como cacos de uma música celestial congelada; o conhecimento ou a santidade dissolvem nosso estado de congelamento e liberam nossa melodia interior; as canções e danças dervishes são simbólicas, e são portanto espiritualmente eficazes, antecipações dos ritmos da imortalidade, e também – o que vem a dar no mesmo – do néctar divino que secretamente flui nas artérias de todas as coisas criadas. Aqui também reside um exemplo de uma certa oposição entre as ordens esotérica e exotérica que não aconteceu incidentalmente: tanto a música quanto a dança são proscritas pela Lei comum, mas o esoterismo as usa, assim como o faz com o simbolismo do vinho, que é uma bebida proibida. Não há nenhum absurdo nisso pois numa certa medida o próprio mundo opõe-se a Deus, apesar de “feito à Sua imagem”. O exoterismo segue a “letra” e o esoterismo a “intenção divina”. Aqui devemos recordar o versículo do Corão que fala das “pedras de onde a fonte jorrou primeiro”, embora existam corações “mais duros do que pedra”, uma passagem que lembra a “água viva” do Cristo e o “poço que jorra a vida eterna” no coração dos santos: Jalal ed-Din Rumi disse: “O oceano que eu sou submerge em suas próprias ondas. Estranho oceano sem limites sou eu!”
Estas “fontes” ou “águas vivas” estão além de todas as cristalizações formais e separadoras; elas pertencem ao domínio da “verdade essencial” (haqiqah) em cuja direção leva o caminho – que começa na “via geral” (shari’ah) representada pela Lei geral – e neste nível a verdade não é mais um sistema de conceitos (um sistema, aliás, intrinsecamente adequado e indispensável) mas antes um “elemento” como o fogo ou a água. E isto nos leva a outra consideração: se existem diferentes religiões – cada qual falando uma linguagem absoluta e exclusiva – isto é devido ao fato de que as diferenças entre as religiões correspondem analogicamente às diferenças entre os indivíduos humanos. Em outras palavras, se as religiões são verdadeiras é porque em cada caso foi Deus quem falou, e se elas são diferentes é porque Deus falou em diferentes “línguas” em conformidade com a diversidade de receptáculos. Finalmente, se elas são absolutas e exclusivas, é porque em cada caso Deus disse “Eu”. Sabemos bem, e ademais isto está na ordem natural das coisas, que esta tese não pode ser aceita no nível das ortodoxias exotéricas (o que indica uma limitação, mas a priori não contém reprovação, porque as bases humanas são o que são), mas sim no nível da ortodoxia universal, aquela de que Mohyiddin Ibn Arabi, o grande enunciador da gnose islâmica, deu testemunho nestes termos: “Meu coração está aberto a todas as formas: ele é pasto para as gazelas (os estados espirituais), um claustro para monges cristãos, um templo para ídolos, a Kaaba do peregrino, as tábuas da Torah, e o livro do Corão. Eu pratico a religião do Amor (36) (aqui não se trata de mahabbah no sentido psicológico ou metodológico, mas da verdade que é vivida e da “atração” divina. O “amor” aqui opõe-se às “formas” que são consideradas “frias” e “mortas”. Também São Paulo afirma que “a letra mata mas o espírito vivifica”. “Espírito” e “amor” aqui são sinônimos) qualquer que seja a direção para onde avance a Sua caravana (literalmente: “seus camelos”. “Camelos”, como as “gazelas” acima, indicam aqui as realidades do espírito; representam as conseqüências internas e externas – ou os modos dinâmicos – do “amor” ou, em outras palavras, da ”consciência essencial”) a religião do Amor será minha religião e minha fé ”.
Do mesmo modo Jalal ed-Din Rumi afirma em suas quadras: “Se a imagem de nosso Bem-Amado está no templo dos ídolos, é um erro absoluto circumambular a Kaaba. Se a Kaaba for esvaziada de Seu perfume, ela se tornará uma sinagoga. E, se na sinagoga sentirmos o perfume da união com Ele, a sinagoga será nossa Kaaba”. No Corão este universalismo é formulado nestes dois versos: “A Deus pertencem o Leste e o Oeste; por qualquer lado que olhemos, lá está a Face de Deus” (II, 115); “Diga: Fale ‘Allah’ ou fale ‘Er-Rahman’; seja qual for o Nome pelo qual O chamemos, a Ele pertencem os mais belos Nomes (XVII, 110). Neste segundo verso os Nomes Divinos podem significar perspectivas espirituais, e portanto religiões. As várias religiões são como as contas do rosário; o cordão é a gnose, cuja essência única perpassa todas elas.

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 II

O CORÃO E A SUNA


A grande teofania do Islam é o Corão; ele se apresenta como sendo um “discernimento” (furqan) entre a verdade e o erro. A este respeito, é significativo que no Islam o próprio Deus seja às vezes denominado El-Haqq (“a Verdade”; ana El-Haqq, “eu sou a Verdade”, dirá El-Hallaj, e não “eu sou o Amor”.
Num certo sentido o Corão como um todo – dentre cujos nomes um é precisamente El-Furqan, O Discernimento – é uma espécie de paráfrase múltipla do discernimento fundamental expresso na Shahadah; a totalidade do seu conteúdo está contido nas palavras: “A Verdade chegou e o erro (el-batil, o vazio ou o inconsistente) evanesceu-se; realmente, o erro é efêmero” (Corão, XXVII, 73). Ou ainda: “... Nós (Allah) lançamos a Verdade contra o erro que ela destrói, e eis que ele desaparece” (Corão, XXI, 18).
Antes de considerarmos a mensagem do Corão, daremos atenção à sua forma e aos princípios que determinam esta forma.Um poeta árabe afirmou certa vez que ele poderia escrever um livro superior ao Corão, disputando sua excelência até mesmo do ponto de vista do estilo. Este juízo, que é claramente contrário à tese tradicional do Islam, é explicável no caso de alguém que desconheça que a excelência de um livro sagrado não está a priori na esfera literária; são muitos os textos que apresentam um significado espiritual e nos quais a clareza lógica é acrescida de uma linguagem poderosa ou de formas de expressão sem que estas tenham aí um caráter sacro. Isto quer dizer que as Escrituras sagradas não o são devido ao objeto de que tratam ou à maneira como o tratam, mas pelo seu grau de inspiração, ou, o que vem a dar no mesmo, em virtude de sua proveniência divina; é isto que determina o conteúdo do livro, não o contrário; assim como a Bíblia, o Corão pode falar de muitas outras coisas além de Deus; ele fala do demônio, da guerra santa, das leis de sucessão e outras coisas sem que por isso se torne menos sagrado, enquanto que outras obras podem tratar de Deus e de matérias sublimes sem que sejam por isso escritos pela Palavra Divina.
Para a ortodoxia islâmica o Corão não é apenas a Palavra de Deus incriada – incriada, embora expressando-se através de elementos criados, como palavras, sons e letras – mas também o modelo por excelência da perfeição da linguagem. Visto de fora, de qualquer modo, este livro aparece (com exceção do último quarto, cuja forma é altamente poética, embora não seja poesia) como sendo uma coleção de ditos e histórias que são mais ou menos incoerentes e à primeira vista com trechos incompreensíveis; o leitor desprevenido, ao ler o texto traduzido ou em árabe, passa por partes obscuras, por repetições, tautologias e, na maior parte das longas surats, por uma certa secura sem que tenha a “consolação sensorial” da beleza do som que emerge da leitura ritual e corretamente entoada. Mas essas dificuldades encontram-se num grau ou noutro na maior parte das Escrituras sagradas. A este respeito, lembremo-nos de que existem dois modos ou graus de inspiração – um direto e outro indireto – representados, no Novo Testamento, pelas palavras do Cristo e pelo Apocalipse, quanto ao primeiro modo, e pelos relatos evangélicos e as Epístolas quanto ao segundo. O Judaísmo exprime esta diferença comparando a inspiração de Moisés a um espelho luminoso e as dos demais Profetas a um espelho obscuro. Dentre os livros hindus, os textos de inspiração secundária (smriti) são em geral mais acessíveis e de aparência mais homogênea do que os Veda, que derivam da inspiração direta (shruti), o que mostra que a inteligência imediata e a beleza facilmente assimilável de um texto não são absolutamente critérios do grau de inspiração.
A aparente incoerência desses textos – como por exemplo o Cântico dos Cânticos ou certas passagens das Epístolas Paulinas – tem sempre a mesma causa, a incomensurável desproporção entre o Espírito e os recursos limitados da linguagem humana: é como se a mísera coagulação que é a linguagem dos homens mortais tivesse sido fragmentada em mil pedaços sob a pressão formidável da Palavra Divina, ou como se Deus, tendo que expressar um milhar de verdades, dispusesse apenas de uma dúzia de palavras e fosse obrigado a fazer uso de metáforas, elipses, abreviações e sínteses simbólicas. É essa superfície de “incoerência” da linguagem corânica – e não a gramática ou a sintaxe – que o poeta mencionado anteriormente acreditou poder menosprezar. O estilo dos Livros revelados é sempre normativo, como bem caracterizou Goethe: “Todo canto gira como a abóbada celeste, a origem e o fim são sempre idênticos” (Westöstlicher Divan). Uma Escritura Sagrada – e não nos esqueçamos que a Escritura cristã compreende não só os Evangelhos mas a Bíblia como um todo, com seus enigmas e escândalos notáveis – é uma totalidade, uma imagem diversificada do Ser, diversificada e transfigurada para segurança do receptáculo humano; é uma luz que pretende tornar-se visível ao barro de que somos feitos, ou que quer tomar a forma deste barro; em outras palavras é uma verdade que, tendo que endereçar-se a seres feitos de barro, ou de ignorância, não possui outros meios de expressão senão a própria substância do erro natural de que é feita nossa alma. Jalal ed-Din Rumi diz em seu Kitab fihi ma fih: “O Corão é como uma jovem esposa: mesmo se você tentar retirar seu véu, ela não se mostrará a você. Se você discutir o Corão, não descobrirá nada, nenhuma alegria provirá. É por você ter tentado retirar o véu, que o Corão se recusou a você; despistando-o e se mostrando-se bruto e desagradável ao olhar, ele lhe diz: ‘Eu não sou quem você ama’. E assim ele pode mostrar-se sob não importa que luz”. Segundo Santo Agostinho e outros Doutores da Igreja, lembrados por Pio XII na encíclica Divino affante, “Deus semeou à vontade nos Livros Santos dificuldades que Ele mesmo inspirou, a fim de nos exercitar a lê-los e a perscrutá-los com mais atenção, e para exercitarmos a humildade pela salutar constatação da limitada capacidade de nossa inteligência”.
“Deus fala concisamente” dizem os rabinos, e isto explica tanto as fortes elipses (à primeira vista incompreensíveis) como os níveis de significados superpostos encontrados nas Revelações (o Bhagavad Gita, por exemplo, pode ser lido em sete sentidos diferentes); além disso – e aqui reside um princípio crucial – para Deus a verdade está na eficácia espiritual ou social das palavras ou do símbolo, não na exatidão factual quando esta é psicologicamente inócua ou mesmo perigosa; o primeiro desejo de Deus é salvar, não instruir, e seu compromisso é com a sabedoria e a imortalidade, não com o conhecimento exterior, principalmente se for para satisfazer a curiosidade humana. Cristo chamou de “Templo” o seu corpo, o que pode parecer espantoso quando se pensa que este termo designa primeiramente, e com razão, um edifício de pedra; mas o templo de pedra era menos do que o Cristo, o receptáculo do Deus vivo – pelo qual Cristo veio – e na realidade o termo “templo” refere-se melhor ao Cristo do que a uma edificação feita por mãos humanas; pode-se mesma afirmar que o Templo, seja o de Salomão ou o de Herodes, era a imagem do corpo do Cristo, pois a sucessão temporal não se aplica às coisas de Deus; é por esta razão que as Sagradas Escrituras às vezes deslocam palavras e até fatos em função de uma verdade mais alta que ilude o homem. Mas não são apenas dificuldades intrínsecas que encontramos nos Livros revelados, existe ainda a questão de sua distância no tempo e as diferenças de mentalidade em diferentes períodos, ou antes as desigualdades qualitativas das diferentes fases do ciclo humano; na origem da tradição –  quer estejamos falando do tempo dos Rishis ou do tempo de Maomé – a linguagem era diferente da que existe hoje, as palavras não eram bem definidas e continham muito mais do que podemos adivinhar; muitas coisas que eram claras para o leitor dos tempos antigos poderiam ser passadas por alto, mas tiveram que ser explicitadas – não adicionadas – para um estágio posterior. Não vamos nos desviar aqui para o assunto da desinteligência da “crítica dos textos”, seja ela “psicologista” ou outra; limitemo-nos a lembrar que, em nossa época, o diabo não somente apoderou-se da caridade, reduzindo-a a um altruísmo ateu e materialista, ele também dominou a exegese das Escrituras.
Um texto sagrado com sua contradições aparentes e suas obscuridades é algumas vezes como um mosaico, ou mesmo um anagrama; mas basta consultar os comentários ortodoxos e inspirados (divinamente guiados) para encontrar com que intenção foi feita uma dada afirmação e a respeito do que ela é válida, ou quais são as implicações jacentes que permitem conectar elementos que à primeira vista parecem incongruentes. Estes comentários provêm da tradição oral que nas origens acompanhou a Revelação, ou surgiram por inspiração da mesma fonte sobrenatural; assim seu papel é não apenas o de intercalar partes perdidas, ainda que implícitas, do texto e especificar em que contexto ou em que sentido uma dada passagem deve ser entendida, mas também explicar os diversos simbolismos, muitas vezes simultâneos ou superpostos uns aos outros: em poucas palavras, os comentários fazem parte providencial da tradição; é como se eles fossem a seiva da sua continuidade, ainda que sua colocação em palavras ou sua remanifestação tenha se dado após alguma interrupção ocorrida numa data relativamente tardia de modo a atender aos requisitos de um período histórico em particular. “A tinta do que foi aprendido (na Lei ou no Espírito) é como o sangue dos mártires” disse o Profeta, e isto indica o papel capital desempenhado em todo o cosmo tradicional pelos comentários ortodoxos. Na mesma obra citada, Jalal ed-Din Rumi fala dos Profetas e dos intérpretes autorizados da tradição: “Deus Altíssimo não fala a qualquer um; como os reis deste mundo,  ele não se dirige a qualquer ignorante; ele elegeu seus ministros e suplentes. Acessamos a Deus através dos intermediários que Ele elegeu. Deus Altíssimo fez uma eleição entra as criaturas a fim de que cheguemos a ele passando por aqueles que Ele elegeu”.
De acordo com a tradição Judaica não é a forma literal da Sagrada Escritura que tem a força de lei, mas apenas seus comentários ortodoxos. A Torah é um livro “fechado” e não se abre à primeira aproximação; são os sábios que a “abrem”, pois está na própria natureza da Torah requerer desde o início o comentário da Mischna. É dito que a Mischna foi dada fora do tabernáculo, quando Josué a transmitiu ao Sanhedrin; com isto o Sanhedrin foi consagrado e então instituído por Deus assim como a Torah, e ao mesmo tempo. E isto é muito importante: o comentário oral, que Moisés recebeu no Sinai e transmitiu a Josué, foi em parte perdido e teve que ser reconstituído pelos sábios com base na Torah; isto mostra claramente que a gnose inclui tanto uma continuidade “horizontal” quanto uma “vertical”, ou antes que ela acompanha a Lei escrita num modo que tanto é “horizontal” e contínuo quanto “vertical” e descontínuo; os segredos são passados de mão em mão, mas a centelha pode saltar a qualquer momento pelo mero contato de um dado receptáculo humano com o Texto revelado ou pelos imponderáveis do Espírito Santo. Também se diz que Deus deu a Torah no período diurno e a Mischna à noite (lembremo-nos de que Nicodemos encontrou o Cristo à noite, o que implica uma referência ao esoterismo ou à gnose); que a Torah é em si infinita e que a Mischna é inexaurível por seu movimento no tempo. Podemos acrescentar que a Torah é como um oceano, enquanto a Mischna é como um rio. Com as devidas diferenças, tudo isso se aplica a qualquer Revelação e, em particular, ao Islam. É preciso que existam autoridades para a Fé (iman) e para a Lei (islam), mas igualmente devem haver autoridades para a Via (ihsan), e estas não são outra coisa que os Sufis e seus representantes qualificados. A necessidade lógica de existirem autoridades neste terceiro domínio, que os teólogos “do exterior” (‘ulama exh-zhahir) são forçados a admitir embora não o possam explicar, é ainda uma prova da legitimidade do Sufismo, tanto de suas doutrinas e métodos, como de sua organização e seus mestres.
Essas considerações a respeito aos Livros sagrados pedem uma definição, ainda que sucinta, do próprio epíteto “sagrado”: é sagrado aquilo que, em primeiro lugar, está ligado à ordem transcendente, em segundo, possui um caráter de absoluta certeza e, em terceiro, elude a compreensão e o poder de investigação da mente humana comum. Imagine uma árvore cujas folhas, por não terem nenhum conhecimento direto das raízes, põem-se a discutir se as raízes existem e sobre qual será sua forma caso existam;  suponha que uma voz surja das raízes dizendo que elas existem e qual é a sua forma; a mensagem seria sagrada. O sagrado é a presença do centro na periferia, do imóvel naquilo que se move; a dignidade é essencialmente uma expressão disto, porque na dignidade o centro se manifesta ao exterior; o coração é revelado nos gestos. O sagrado introduz uma qualidade do absoluto na relatividade e confere às coisas perecíveis uma textura de eternidade.

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Para entender o escopo completo do Corão devemos tomar três coisas em consideração: seu conteúdo doutrinal,, tornado explícito nos grandes tratados canônicos do Islam, como os de Abu Hanifah e Et-Tahawi; o conteúdo de sua narrativa, que ilustra todas as vicissitudes da alma; e sua magia divina ou seu poder misterioso e num certo sentido miraculoso, que explica a importância da recitação do Corão, como frisa Ibn Arabi em seu Risalat el-Quds, a respeito dos sufis que passam a vida a ler e recitar o Corão ininterruptamente, o que seria inconcebível e mesmo irrealizável se não houvesse por traz do texto literal uma presença espiritual concreta agindo além dos limites das palavras e do mental (é graças a este poder que os versículos do Corão podem afastar os demônios e curar os males, dentro de certas circunstâncias ao menos); estas fontes de sabedoria metafísica e escatológica, de psicologia mística e poder teúrgico permanecem escondidas debaixo de um véu vertiginoso de imagens cristalinas e ardentes, que frequentemente se chocam, mas também de passagens de ritmos majestosos, tecidas com cada fibra da condição humana.
Mas o caráter sobrenatural deste Livro não está só em seu conteúdo doutrinal, sua verdade psicológica e mística e sua magia mutante, ele aparece igualmente na sua eficácia mais exterior, no milagre da expansão do Islam; os efeitos do Corão no espaço e no tempo não têm relação com a mera impressão literária que o texto escrito pode proporcionar a um leitor profano. Como qualquer Escritura Sagrada o Corão também é a priori um livro “fechado”, embora “aberto” sob outros aspectos, como as verdades elementares da salvação.
É preciso distinguir dentro do Corão entre a excelência geral da Palavra Divina e a excelência específica de algum conteúdo que pode ter sido superposto, como, por exemplo, quando se trata de Deus e de suas qualidades; é como a distinção entre a excelência do ouro e a de algumas obras-primas feitas de ouro. A obra-prima manifesta diretamente a nobreza do ouro; da mesma forma a nobreza de conteúdo de um ou outro verso do livro sagrado expressa a nobreza da essência Corânica, da Palavra Divina, que é em si indiferenciada; a passagem, é claro, não pode acrescentar nada ao infinito valor da Palavra. Isto está também conectado à “magia divina”, a virtude transformadora e às vezes teúrgica da fala divina a que aludimos todo o tempo.
Esta magia está intimamente ligada com o idioma da Revelação, que é o Árabe, e assim as traduções são canonicamente ilegítimas e ritualmente inócuas. Quando Deus fala em uma língua ela se torna sagrada; e para que Deus possa se expressar nesta língua ela deve possuir certas características que não são encontradas nas línguas modernas. A este respeito, faremos um breve parêntese: a partir do que foi dito, deveríamos concluir que o aramaico é uma língua sagrada, pois era a língua falada pelo Cristo; entretanto, lembramos que, em primeiro lugar, tanto no Cristianismo quanto no Budismo, o próprio Avatara é a Revelação, de modo que as Escrituras não possuem a função central e plena que tem em outros casos, salvo a doutrina que contém; em segundo lugar, as palavras aramaicas do Cristo não se conservaram, o que corrobora a observação anterior; e, em terceiro lugar, para o Cristo a língua sagrada era o próprio hebraico; embora o Talmud afirme que “os Anjos não compreendem o aramaico”, esta língua não deixa de ter um valor litúrgico importante, até por ter sido “sacralizada” por Daniel e Esdras, bem antes de Cristo. Finalmente, é preciso compreender que após um dado período do ciclo acompanhado de um certo enrijecimento das condições terrestres Deus não mais manifestou-se como Revelação; em outras palavras, depois de um certo momento qualquer coisa colocada como uma nova religião é inevitavelmente falsa; a Idade Média marca grosso modo este limite final. Assim como para as religiões, esta ressalva vale para as ordens iniciáticas. Podemos – ou antes Deus pode – criar um novo ramo para uma filiação ancestral, ou fundar uma congregação ao redor de uma iniciação pré-existente, se houver uma razão imperiosa e se o tipo desta congregação adequar-se aos usos da tradição correspondente, mas não é possível fundar uma “sociedade” com objetivo de uma auto-realização, pelo simples fato de que esta realização é exclusiva das organizações tradicionais; mesmo se for tentada a introdução de uma iniciação real dentro do quadro de uma “sociedade” ou de qualquer fellow-ship “espiritualista”, ou seja de uma associação profana, podemos estar certos de que este mesmo quadro paralisaria toda eficácia e provocaria forçosamente os maiores desvios. O Islam é, com efeito, a última religião mundial; quanto aos Sikhs, trata-se de um esoterismo análogo àquele de Kabir e cuja posição explica-se por condições excepcionais devidas à proximidade do Hinduísmo e do Sufismo, mas, mesmo neste caso, trata-se de uma última possibilidade.
O Corão, como o mundo, é ao mesmo tempo uno e múltiplo. O mundo é uma multiplicidade que dispersa e divide; o Corão é uma multiplicidade que une e conduza à Unidade. A multiplicidade do Livro sagrado – a diversidade de suas palavras, sentenças, ilustrações e histórias – enche a alma absorvendo-a e transpondo-a imperceptivelmente num clima de serenidade e imutabilidade através de uma espécie de “artimanha divina” (no sentido do sânscrito upaya). A alma, acostumada ao fluxo dos fenômenos, entrega-se a este fluxo sem resistência; ela vive dentro dos fenômenos e é por eles dividida e dispersa – mais do que isto, ela se torna aquilo que ela pensa e faz. O Discurso revelado tem a virtude de aceitar esta tendência e ao mesmo tempo revertê-la graças à natureza celestial do conteúdo e da linguagem, de modo a que os peixes da alma nadam sem medo e no seu ritmo habitual na divina rede, e isto é verdadeiro para qualquer Escritura sagrada, notadamente para a história bíblica, em que as vicissitudes de Israel são as mesmas da alma na busca de seu Senhor (no Cristianismo, esta função de “magia transformadora” incumbe sobretudo aos Salmos). É preciso, na medida de sua capacidade, que a mente esteja mergulhada numa consciência do contraste metafísico entre “substância” e “acidentes”; uma mente assim regenerada é uma mente que mantém seus pensamentos em Deus antes de todas as coisas e que pensa todas as coisas n’Ele. Em outras palavras, através do mosaico de textos, frases e palavras, Deus extingue a agitação mental tomando Ele mesmo a forma desta agitação. O Corão é como uma pintura de tudo o que o cérebro humano pode pensar e sentir, e é através deste meio que Deus exaure o homem irrequieto, infundindo no crente o silencia, a serenidade e a paz.

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No Islam, assim como no Judaísmo, a Revelação está ligada essencialmente ao simbolismo do livro: a totalidade do universo é um livro cujas letras são os elementos cósmicos – os dharmas, diriam os budistas – os quais, por suas inumeráveis combinações e sob a influência das Idéias divinas, produzem os mundos, os seres e as coisas. As palavras e as frases do livro são as manifestações das possibilidades criativas, as palavras quanto ao conteúdo, as frases quanto ao continente; a frase é, como efeito, como que um espaço ou uma duração que carrega uma série predestinada de compossíveis e que constitui o que podemos chamar de “um plano divino”. Esse simbolismo do livro distingue-se do simbolismo da fala por seu caráter estático; a fala está situada na duração e implica repetição enquanto que o livro contém afirmações em modo simultâneo; em um livro existe uma espécie de nivelamento por serem as letras todas semelhantes, e isto é ainda mais característico da perspectiva islâmica. Apenas esta perspectiva, como aquela da Torah, inclui também o simbolismo da fala; a fala é então identificada com a origem; Deus fala, e Sua fala é cristalizada na forma de um livro. Claramente esta cristalização tem seu protótipo em Deus e, de fato, podemos afirmar que “Fala” e “Livro” são dois lados do Ser puro, que é o Princípio que tanto cria quanto revela; de qualquer modo, é dito do Corão que ele é a Palavra de Deus, não que a Palavra provenha do Corão ou do Livro.
Em primeiro lugar, a “Palavra” é o Ser como o eterno Ato do Além-do-Ser, da Divina Essência (o Gottheit ou o Urgrund da doutrina eckhartiana); mas, considerado com a soma das possibilidades de manifestação, o Ser é o “Livro”. Assim, no nível do Ser em si, a Palavra, ou, de acordo com outra imagem, a Pena é o Ato criador enquanto que o Livro é a Substância criativa, a divina Prakriti da doutrina hindu; existe aqui uma conexão com as Natura naturans e Natura naturata no mais alto sentido destes conceitos. Finalmente, no nível da Existência (ou poderíamos dizer, da Manifestação) a Palavra é o “Espírito Divino”, o Intelecto central e universal que, como “por delegação”, efetiva e perpetua o milagre da criação; neste caso, o Livro é a soma das possibilidades “cristalizadas”, o mundo das criaturas inumeráveis. A “Palavra” é então o aspecto da simplicidade “dinâmica” ou da simples “ação”, enquanto o “Livro” é o aspecto da complexidade “estática” ou do “ser” diferenciado.
Podemos dizer que Deus criou o mundo como um Livro e que sua Revelação veio ao mundo na forma de um Livro; mas o homem deve ouvir a Palavra Divina da Criação e através desta Palavra ascender em direção a Deus; Deus torna-se o Livro para o homem e o homem deve tornar-se Palavra para Deus; o homem é um “livro” na sua multiplicidade microcósmica e no seu estado de coagulação existencial, enquanto que Deus, quando visto neste contexto, é pura Palavra através de Sua Unidade metacósmica e de Sua pura atividade “principial”.
No Cristianismo o lugar do “Livro” é ocupado pelo “Corpo”, com seus dois complementos de “carne” e “sangue” ou “pão” e “vinho”; in divinis o Corpo é, em primeiro lugar, a auto-determinação primária da Divindade e portanto a primeira “cristalização” do Infinito; em seguida ele é a Substância Universal, o verdadeiro “Corpo Místico de Cristo”; e por fim ele é o mundo das criaturas, a manifestação “cristalizada” deste Corpo.
Vimos que Deus enquanto Ser é O Livro por excelência, e que, no nível do Ser, o pólo da Substância é a primeira reflexão deste Livro; a Palavra, que é seu complemento dinâmico, torna-se então a Pena, o eixo vertical da criação. Por seu lado o homem também possui um aspecto da Palavra, representado pelo seu nome; Deus criou o homem dando-lhe um nome; a alma é uma Palavra do Criador quando vista sob o aspecto de sua simplicidade ou de sua unidade.

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O conteúdo mais óbvio do Corão é feito não de exposições doutrinais, mas de narrativas históricas e simbólicas e de imagens escatológicas; a doutrina emerge destas duas espécies de pinturas nas quais ela está escondida. Deixando de lado a majestade do texto árabe e suas ressonâncias quase mágicas o leitor pode bem cansar-se do conteúdo caso não saiba que ele nos diz respeito de modo direto e concreto, uma vez que os “descrentes” (kafirun), os que associam falsas divindades a Deus (mushrikun) e os hipócritas (munafiqun) estão entre nós; da mesma forma o Profeta representa nosso intelecto e nossa consciência, as histórias do Corão estão inscritas quase que diariamente em nossas almas, Meca é nosso coração, e a esmola, o jejum, a peregrinação e a guerra santa são virtudes, abertas ou secretas, ou ainda atitudes contemplativas.
Paralelamente a esta interpretação microcósmica e alquímica existe uma interpretação exterior que diz respeito aos fenômenos do mundo ao nosso redor. O Corão é o mundo, tanto dentro como fora de nós, sempre conectado com Deus tanto quanto à origem como ao fim; mas este mundo, ou estes dois mundos, apresentam fissuras que anunciam a morte e a destruição, ou, para sermos mais precisos, a transformação, e é isto que as suratas apocalípticas e escatológicas nos ensinam; tudo o que se refere ao mundo refere-se a nós, e vice-versa. Estas suratas nos transmitem uma imagem chocante e múltipla da fragilidade da nossa condição terrestre e da matéria, uma imagem também da reabsorção do espaço e dos elementos na substância invisível do “proto-cosmo” causal; trata-se do colapso do mundo visível no imaterial – um colapso, parafraseando Santo Agostinho, “para dentro” ou “para cima”; trata-se também do confronto das criaturas, arrancadas da terra, com a ofuscante realidade do Infinito.
Em suas “planícies” o Corão apresenta uma cosmologia que trata dos fenômenos e de seu fim último, e, em seus “pináculos”,  ele mostra uma metafísica do real e do irreal.

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Não é surpreendente que a imagética do Corão seja inspirada acima de tudo no conflito; o Islam nasceu numa atmosfera de conflito e a alma em busca de Deus deve lutar. O Islam não inventou a guerra; o mundo está em permanente desequilíbrio, porque viver é lutar. Mas esta luta é apenas um aspecto do mundo e desaparece com o nível ao qual pertence; todo o Corão é coberto por um tom de “poderosa” serenidade. Em termos psicológicos podemos dizer que o aspecto combativo do muçulmano é contrabalançado por seu fatalismo; na vida espiritual a “guerra santa” do espírito contra a alma sedutora (en-nafs el-‘ammarah) é ultrapassada e transfigurada pela paz em Deus, pela consciência do Absoluto; é como se em última análise não fossemos mais nós a lutar, e isto nos conduz de volta à simbiose entre “combate” e “conhecimento” no Bhagavad Gita e em certos aspectos das artes marciais do Zen-Budismo. A prática do Islam, em qualquer nível, implica repousar na luta; o Islam é um caminho de equilíbrio e da luz que descansa neste equilíbrio.
O equilíbrio é a ligação entre o desequilíbrio e a união, assim com a união é o laço entre o equilíbrio e a unidade, que é a dimensão “vertical”. Desequilíbrio e equilíbrio, disritmia e ritmo, separação e união, divisão e unidade; estes são os grandes temas do Corão e do Islam. Tudo o que é e tudo o virá a ser é visto em termos da Unidade e suas gradações ou do mistério de sua negação.
No caso do Cristianismo o que é necessário para se chegar a Deus é a “completa renúncia de si-mesmo”, como diz São João da Cruz; e o cristão fica espantado ao ouvir do muçulmano que a chave da salvação é acreditar que Deus é Único; o que ele não sabe é que tudo depende da qualidade – ou da “sinceridade” (ikhlas) 0- do crente; o que salva é a pureza ou a totalidade do crente, e esta totalidade claramente implica a perda do self, qualquer que seja a forma como este se expresse.
Assim como ocorre com a negação da Trindade cristã no Corão – negação aliás tanto extrínseca quanto condicional – devemos levar em conta alguns significados ocultos. A Trindade pode ser vista de acordo com uma perspectiva “vertical” ou de acordo com duas perspectivas “horizontais”, sendo a primeira destas suprema e a outra não. A perspectiva “vertical” – Além-do-Ser, Ser e Existência – considera as hipóstases como “descendo” da Unidade ou do Absoluto – ou da Essência, poderíamos dizer – o que significa que ela considera os graus da Realidade; a perspectiva “horizontal” suprema corresponde à tríade Védica Sat (a Realidade supra-ontológica), Chit (Consciência Absoluta) e Ananda (Graça Infinita), o que significa encarar a Trindade como oculta na Unidade (o Absoluto não se configura enquanto contiver aspectos, mas apenas na medida em que os transcender, o que significa que ele não é absoluto enquanto Trindade); a perspectiva “horizontal” não-suprema, ao contrário, coloca a Unidade como oculta na Trindade, o que equivale então a uma Trindade ontológica que representa os três aspectos fundamentais ou os modos do Ser Puro, donde a tríade: Ser, Sabedoria, Vontade (Pai, Filho, Espírito). Agora, o conceito de Trindade considerada como um “desdobramento” (tajalli) da Unidade ou do Absoluto não se opõe de modo algum à doutrina unitária do Islam; o que se opõe é apenas a atribuição de absolutividade à simples Trindade, ou à simples Trindade ontológica, como quando considerada exotericamente. Este último ponto de vista, estritamente falando, não leva ao Absoluto e isto é como dizer que ele atribui um caráter absoluto ao que é relativo e ignora Maya e os graus de realidade ou de ilusão; ele não concebe a identidade metafísica (mas não panteísta, por não ser nem “material” e nem mesmo “substancial” no sentido cosmológico do termo) entre a manifestação e o Princípio, assim como as conseqüências que esta identidade implica do ponto de vista do intelecto e do conhecimento libertador que daí advém.
Aqui cabe um comentário a respeito dos “descrentes” (kafirun) que, segundo o Corão, não pertencem, como os judeus e os cristãos, à categoria de “povos do Livro” (ahl el-Kitab). Se a religião desses “descrentes” fosse falsa, ou se eles fossem descrentes por ser sua religião falsa, porque os Sufis declararam que Deus pode estar presente, não apenas em igrejas e sinagogas, mas também nos templos dos idólatras? É porque nos casos “clássicos” e “tradicionais” de paganismo a perda da verdade total e da eficácia da salvação resulta essencialmente de uma profunda alteração na mentalidade dos adoradores e não de uma falsidade intrínseca dos símbolos; em todas as  religiões que cercavam cada uma das três formas do monoteísmo semítico, assim como em todas as formas de “fetichismo” (no sentido das tradições decaídas, e – frise-se – sem nenhum juízo de valor quanto às tradições africanas ou melanésias) existentes ainda hoje, uma mentalidade antes contemplativa e portanto possuidora de um senso de transparência metafísica das formas acabou por tornar-se passional, mundana e, em estrito senso, supersticiosa. O kafir, segundo o Corão, caracteriza-se de fato pela sua mundanidade, ou seja pela preferência que atribui aos bens terrestres e sua inadvertência (ghaflah) com relação aos bens do além; segundo o Evangelho, os pagãos acham que serão atendidos porque falam bem – a “superstição” é, no fundo, a ilusão de tomar os meios por fins, ou adorar as formas em si mesmas e não por seu conteúdo transcendente.
O símbolo através do qual a realidade simbolizada era claramente percebida – uma realidade da qual este símbolo era, melhor dizendo, um aspecto – tornou-se de fato uma imagem opaca e incompreendida ou um ídolo, e essa queda geral no nível da mentalidade não pode por seu turno reagir sobre a tradição em si, enfraquecendo-a e falsificando-a de várias formas; muitos dos antigos paganismos caracterizaram-se precisamente pala intoxicação de poder e sensualidade. Existe, é certo, um paganismo pessoal que podemos encontrar mesmo dentro das religiões vivas, como, verdade e piedade podem ser atualizadas numa religião que está objetivamente decadente, caso em que qualquer que seja a integridade de seu simbolismo terá que ser presumido; mas seria um erro total acreditar que qualquer das grandes religiões vivas da atualidade possa tornar-se um paganismo por sua vez; não há tempo para que isto aconteça, e sua razão suficiente é num certo sentido que elas durem até o final do mundo. É por isso que elas são formalmente garantidas por seus fundadores, o que não é o caso dos grandes paganismos que desapareceram; estes não tiveram fundadores humanos e no seu caso sua subsistência perene era condicional, sendo as primeiras perspectivas “espaciais” e não “temporais”; apenas o Hinduísmo, de todas as grandes tradições de tipo primordial pode manter seu vigor renovado através das eras, graças aos seus avataras. Não é nossa intenção entrar aqui em detalhes mas apenas esclarecer porque, do ponto de vista de alguns Sufis, não era Apolo que era falso, mas apenas a maneira como ele era visto e representado. A propósito das tradições arcaicas, nada impede que outros ramos da tradição primordial, sejam “hiperbóreos” ou “atlantes”, tenham sobrevivido igualmente e à margem da história, mas neste caso não se trata das grandes tradições urbanas. À parte isto, quando se fala de paganismo existe sempre uma reserva a fazer no que diz respeito ao esoterismo sapiencial, inacessível à maioria e incapaz, de fato, de agir sobre ela.
Mas, voltemos aos “povos do Livro”. Se o Corão contém elementos de polêmica a respeito do Cristianismo e, com mais razão, do Judaísmo, é porque o Islam veio depois destas religiões, o que significa que ele está obrigado – e este é um ponto de vista que concorda com suas ações também – a se colocar à frente como um melhor desenvolvimento sobre o que veio antes. Em outras palavras o Corão enuncia uma perspectiva que o permite “ir além” de certos aspectos formais dos dois monoteísmos mais antigos. Algo análogo pode ser visto, não apenas na posição do Cristianismo em relação ao Judaísmo – onde o ponto é auto-evidente em razão da idéia messiânica e pelo fato de que o Judaísmo funciona como um esoterismo “bhaktico” do Cristianismo – mas também na posição do Budismo em relação ao Brahmanismo; também aqui o último a surgir no tempo coincide com uma perspectiva que é simbolicamente, apesar de não intrinsecamente, superior. A este respeito a tradição que aparentemente está sendo ultrapassada não precisa levar o fato em conta, uma vez que cada perspectiva é um universo para si mesma – e portanto um centro e uma norma – e que à sua maneira ela contém todos os pontos de vista válidos. Pela lógica das coisas a tradição seguinte está “condenada” a uma atitude simbólica de superioridade (26), sob pena de não existir, podemos dizer; mas existe também um simbolismo positivo de anterioridade, e a este respeito a nova religião, que de seu próprio ponto de vista é a última, deve encarnar “aquilo que veio antes” ou “o que sempre existiu”; sua novidade – ou glória – é consequentemente sua absoluta “anterioridade”. A atitude de superioridade é legítima sob certos aspectos e em certo nível; no monoteísmo isto se explica pelo fato de que as três religiões israelita, cristã e islâmica correspondem respectivamente às vias da “ação”, do “amor” e do “conhecimento”, na medida em que seu exoterismo alcança e sem prejuízo dos seus conteúdos mais profundos.

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O intelecto puro é o “Corão imanente”; o Corão incriado – o Logos – é o Intelecto Divino; e este é cristalizado na forma do Corão terrestre e responde “objetivamente” a esta outra revelação imanente e “subjetiva” que é o intelecto humano (“subjetiva” porque está situada empiricamente em nós mesmos; a palavra “subjetivo”, assim como o epíteto “humano”, não se aplica ao intelecto; nos dois casos, trata-se simplesmente de definir as “vias de acesso”). Em termos cristãos pode-se dizer que o Cristo é como a “objetivação” do intelecto e que o intelecto é a revelação permanente e “subjetiva” do Cristo. Assim existem dois pólos para a manifestação da Divina Sabedoria, e eles são: primeiramente, a Revelação “sobre nós” e, em seguida, o intelecto “dentro de nós”; a Revelação provê os símbolos enquanto o intelecto os decifra e “coleta” seu conteúdo, tornando-se assim consciente de sua própria substância. A Revelação é um desdobramento e o intelecto uma concentração; a descida está de acordo com a ascensão.
Mas existe outra haqiqah (verdade) da qual queremos falar aqui: na ordem sensorial a Presença Divina possui dois símbolos ou veículos – ou duas “manifestações naturais” – de importância primária: o coração dentro de nós, que é nosso centro, e o ar ao redor de nós, que respiramos. O ar é uma manifestação do éter, o tecedor das formas, que é ao mesmo tempo o veículo da luz, que também manifesta o elemento éter; lembremo-nos de passagem que os Gregos concebiam o éter como presente no ar, que também é invisível, e que, em hebraico, o termo avir designa tanto o ar como o éter, e a palavra aor, “luz”, possui a mesma raiz. Quando respiramos, o ar penetra em nós e, simbolicamente, é como se introduzisse em nós o éter criativo e a luz; o que inalamos é a Presença Universal de Deus. Do mesmo modo existe uma correlação entre luz e frescor, pois a sensação de ambos é libertadora; o que é luminoso externamente é fresco por dentro. Inalamos o ar luminoso e fresco e nossa respiração é uma prece, assim como o batimento de nosso coração; a luminosidade liga-se ao Intelecto e o frescor ao Ser Puro. No Islam diz-se que no final dos tempos a luz será separada do calor, e este será o inferno enquanto que a luz será o Paraíso; a luz do céu é fresca e o calor do inferno é escuro.
O mundo é uma peça feita de fios de éter, e nela nós e todas as criaturas estão tecidas. Todas as coisas sensíveis provêm inicialmente do éter, que contém tudo; tudo é éter cristalizado. O mundo é um imenso tapete; nós possuímos a totalidade do mundo cada vez que respiramos porque inalamos o éter do qual todas as coisas são feitas (esta é apenas uma maneira de falar simbólica, pois o éter, sendo perfeita plenitude, é imóvel), e nós “somos” éter. Assim como o mundo é um incomensurável tapete no qual tudo está repetido num ritmo de contínuas mudanças, ou aonde tudo é similar dentro da estrutura da lei de diferenciação, também o Corão – e com ele todo o Islam – é um tapete ou uma peça, na qual o centro é repetido por toda parte de modo infinitamente variável e no qual a diversidade não é mais do que um desdobramento da unidade. O “éter” universal, do qual o elemento físico não passa de um reflexo distante e grosseiro, não é outra coisa que a Palavra divina que é em toda parte “ser” e “consciência”, bem como “criativa” e “libertadora”, ou “reveladora” e “iluminadora”.
A natureza que nos rodeia – o sol, a lua, as estrelas, o dia e a noite, as estações, as águas, as montanhas, as florestas e flores – é uma espécie de Revelação primordial; ora, estas três coisas – a natureza, a luz e o sopro – estão profundamente ligadas entre si. Respirar deve ligar-se à lembrança de Deus; devemos respirar com reverência, e com o coração para falar. É dito que o Espírito de Deus – o Sopro Divino – estava “sobre as águas” e que foi soprando nelas que Deus criou a alma, e do mesmo modo diz-se que o homem, que “nasceu do Espírito”, é como o vento; “que podemos sentir, mas que não sabemos de onde vem ou para onde vai”.
 É significativo que o Islam seja definido no Corão como um “alargamento (inshirah) do peito”, como quando é dito, por exemplo, que Deus “alargou nosso peito para o Islam”; a conexão entre a perspectiva islâmica e o significado esotérico da respiração e do coração é uma chave de grande importância para o entendimento dos arcanos do Sufismo. É verdade que pela própria natureza das coisas a mesma porta abre-se também para a gnose universal.
A “lembrança de Deus” é como respirar profundamente na solidão das altas montanhas: aqui o ar da manhã, cheio da pureza das neves eternas, dilata o peito; ele se torna espaço e os céus penetram em nosso coração.
Esta imagem inclui ainda um outro simbolismo, o da “respiração universal”: aqui a expiração liga-se à manifestação cósmica ou à fase criadora e a inspiração liga-se à reintegração, à fase de salvação ou de retorno a Deus.

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Uma das razões pelas quais as pessoas no Ocidente têm dificuldade em apreciar o Corão e em muitas ocasiões questionaram até que ponto este livro contém premissas da vida espiritual reside no fato de que elas buscam no texto por um significado que está totalmente expresso e imediatamente inteligível, enquanto que os semitas, e os povos ocidentais em geral, apreciam o simbolismo verbal e a leitura “em profundidade”. A frase revelada é para eles um arranjo de símbolos dos quais se pode extrair mais e mais lampejos de luz na medida em que o leitor penetra na geometria espiritual das palavras; estas são pontos de referência para uma doutrina que é inexaurível; o significado implícito é tudo, e as obscuridades do sentido literal são outros tantos véus que salientam a majestade do conteúdo. Assim era lida a Bíblia na Idade Média; a negação da hermenêutica, pilar da intelectualidade tradicional e integral, desembocou fatalmente na “crítica” – e na destruição – dos Textos sagrados. Mas, mesmo sem levar em consideração a estrutura sibilina de muitas sentenças sagradas, podemos dizer que o oriental extrai muito de poucas palavras: quando, por exemplo, o Corão lembra que “o mundo do além é melhor para você do que este mundo inferior”, ou que “a vida terrestre não passa de um jogo”, ou afirma que “em sua esposa e seus filhos você tem um inimigo” ou “diga: Allah!, deixe-os com seu jogo vazio”, ou ainda, quando promete o Paraíso àquele que “temeu a estação de seu Deus e recusou os desejos de sua alma” – quando o Corão fala assim, emerge daí para o muçulmano (dizemos “para o muçulmano”, e não “para cada muçulmano”) toda uma doutrina mística e ascética, tão penetrante e completa quanto não importa qual outra forma de espiritualidade digna deste nome possa trazer.
Somente o homem tem o dom da palavra, porque apenas ele dentre todas as criaturas desta terra é “feito à imagem de Deus” de modo direto e total; e, desde que é em virtude desta semelhança (devidamente atualizada através de meios apropriados) que o homem se salva – em  virtude, diga-se, da inteligência objetiva associada ao livre arbítrio e à fala sincera, seja ela articulada ou não -  é fácil entender o papel capital desempenhado na vida do muçulmano por estas palavras sublimes – os versos do Corão; eles não são meras sentenças que transmitem pensamentos, mas são, de certa forma, seres, forças ou talismãs; a alma do muçulmano é como se fosse tecida por fórmulas sagradas; nelas ele trabalha, nelas ele descansa, nelas ele vive e morre.
Foi a objetividade da inteligência que tornou Adão apto a “nomear” todas as coisas e todas as criaturas; em outras palavras é isso que permite ao homem conhecer os objetos, as plantas e os animais embora estes não o conheçam; mas o maior conteúdo dessa inteligência é o Absoluto; ser capaz de compreender o maior é ser capaz de compreender o menor, e é porque o homem consegue conhecer Deus que ele consegue conhecer o mundo. Em função de sua própria forma a inteligência é uma prova de Deus.
No início deste livro dissemos que a intenção da fórmula La ilaha illa ‘La se torna clara se o termo illah – cujo significado literal é “divindade” – for entendido como realidade, cujo nível ou natureza permanece indeterminado. A primeira proposição da sentença, que está em forma negativa (“Não há divindade...”) diz respeito ao mundo e o reduz a nada, retirando dele qualquer caráter de positividade; a segunda proposição, que é afirmativa (“...exceto a Divindade, Allah”), diz respeito à Realidade Absoluta ou ao Ser. A palavra “divindade” (illah) pode ser substituída por qualquer palavra que expresse uma idéia positiva; na primeira parte da fórmula esta palavra permanecerá indefinida, mas na segunda proposição ela será definida absoluta e exclusivamente como Princípio, como no caso do Nome Allah (A Divindade) em relação à palavra illah (divindade); uma obra do Sheikh El-Allaoui contém toda uma litania retirada da Shahadah: La quddusa (santo) illa’Llah; la ‘alima (sábio) illa ‘Llah; e assim por diante, com todos os atributos divinos. Na shahadah existe um discernimento metafísico entre o irreal e o Real, e também uma virtude combativa: esta fórmula é tanto a espada do conhecimento e a espada da alma, como também anuncia a paz que a Verdade traz, a serenidade em Deus. Já vimos que o primeiro “testemunho” é seguido diretamente pelo segundo – o do Profeta – que ele inclui implicitamente e que é deduzido dele como que por polarização.
Outra proposição fundamental do Islam – e sem dúvida a mais fundamental depois do duplo Testemunho de fé – é a fórmula da consagração, o Basmalah: “Em Nome de Deus, o Clemente e Misericordioso” (Bismi’Llahi’Rrahmani’Rrahim). Esta é a fórmula da Revelação, que se acha no cabeçalho de cada surata do Corão com exceção de uma que é considerada como continuação da precedente; esta consagração é a primeira frase do Livro revelado, com a qual se inicia, “A que abre” (Surat el-Fatihah), a surata introdutória. Diz-se que a Fatihah contém a essência de todo o Corão, que a Fatihah está contida inteira no Basmalah, que este está contido em sua primeira letra ba e que esta está contida no seu ponto diacrítico. De fato, a letra ba, que é a segunda do alfabeto árabe – sendo a primeira o alif, simples traço vertical com um simbolismo axial – possui a forma de um traço horizontal ligeiramente encurvado para cima e comporta um ponto subscrito; Ali, o genro do Profeta, e mais tarde o sufi Esh-Shibli, são comparados a este ponto sob o ba, a fim de exprimir seu estado de “Identidade suprema”. Este ponto diacrítico corresponde à primeira gota da Tinta divina (Midad), caída do Cálamo; trata-se do Espírito divino, Er-Ruh, ou o protótipo do mundo.
O Basmalah forma uma espécie de complemento da Shahadah: a Shahadah é uma “descida” intelectual e o Basmalah uma “subida” ontológica; em termos hindus, a primeira pode ser chamada de Shaiva e a última de Vaishnava. Se pudermos voltar outra vez a duas fórmulas vedânticas de grande importância, acrescentaremos que a Shahadah destrói o mundo porque “o mundo é falso, Brahma é verdadeiro”, enquanto que o Basmalah ao contrário consagra e santifica o mundo porque “tudo é Atma”; mas o Basmalah já está contido na Shahadah na palavra ilah (uma forma contraída de in la, “se não”) que é o “istmo” (barzakh) entre as proposições negativa e afirmativa da fórmula, sendo a primeira parte da palavra em si positiva (in, “se”) e a segunda negativa (la, “não”). Em outras palavras a Shahadah é a justaposição da negação la ilaha (não há divindade) com o Nome Allah (Divindade), sendo este confronto ligado por uma palavra cuja primeira parte, sendo positiva, indiretamente refere-se a Allah, e cuja segunda parte, sendo negativa, indiretamente refere-se à “irrealidade”; assim, no centro da Shahadah existe uma espécie de imagem invertida da relação que ela expressa, e esta inversão representa a verdade de acordo com a qual o mundo possui o grau de realidade próprio ao seu nível, uma vez que nada pode ser cortado da Causa Divina.
E é deste coração misterioso da Shahadah que surge a segunda Shahadah, tal como Eva foi tirada da costela de Adão: a Verdade divina, depois de dizer “não” ao mundo que pretende ser Deus, diz “sim” dentro da mesma estrutura desse “não”, porque o próprio mundo não pode ser separado de Deus; Allah não pode não estar aí de certa maneira ou conforme certos princípios que resultam de Sua natureza e da natureza deste mundo.
Podemos dizer também, de um ponto de vista algo diferente, que o Basmalah é o raio divino e revelador que traz ao mundo a verdade da dupla Shahadah, assim como o Cristo é o Verbo trazido ao mundo pelo Espírito Santo (neste caso, a Shahadah é a Mensagem manifestada): o Basmalah é o raio “descendente” e a Shahadah seu conteúdo, a imagem horizontal que, no mundo, reflete a Verdade de Deus; na segunda Shahadah (Muhammadum Rasulu’Llah) este raio vertical reflete a si mesmo, e assim a projeção da Mensagem torna-se uma parte da Mensagem. O Basmalah consagra todas as coisas, em particular as funções vitais com seus prazeres inevitáveis e legítimos; através desta consagração, algo da beatitude divina penetra nesta fruição; é como se Deus entrasse na fruição e dela participasse, ou como se o homem penetrasse um pouco, mas como todo o direito, da Beatitude de Deus. Como o Basmalah, a segunda Shahadah “neutraliza” a negação enunciada pela primeira, a qual porta em si sua “dimensão compensatória” ou seu “corretivo”, a saber, simbolicamente falando, na palavra illa, de onde se extrai o Muhammadum Rasulu’Llah.
Poderíamos ainda abordar a questão a partir de uma outra perspectiva: a consagração “em Nome de Deus, o Clemente e Misericordioso” pressupõe uma coisa em relação à qual a idéia da Unidade – enunciada pela Shahadah – deve realizar-se, sendo que esta relação é indicada pelo próprio Basmalah, no sentido de que ele cria, enquanto palavra divina, aquilo que a seguir deve ser reconduzido ao Incriado. Os Nomes Rahman e Rahim, ambos derivados de Rahman, “Misericórdia”, o primeiro a Misericórdia intrínseca e o segundo a Misericórdia extrínseca de Deus; o primeiro indica portanto uma qualidade infinita e o segundo uma manifestação ilimitada desta qualidade (N.T.: o Pe. Antonio Vieira denominaria estas duas qualidades de “Misericordioso” -  e “Misericordiador”). Poderíamos também traduzir respectivamente como “Criador por Amor” e “Salvador por Misericórdia”, ou, inspirados em um hadith, comentar do seguinte modo: Er-Rahman é o Criador do mundo na medida em que fornece a priori e de uma vez por todas todos os elementos do bem-estar aqui de baixo, e Er-Rahim é o Salvador dos homens na medida em que lhes confere a beatitude do além, ou na medida em que fornece aqui em baixo as suas sementes, ou na medida em que dispensa aqui suas benfeitorias.
Nos Nomes Rahman e Rahim está presente a Misericórdia divina em face da incapacidade humana, na medida em que a consciência de nossa incapacidade, combinada coma confiança, é o receptáculo moral da Misericórdia. O Nome Rahman é como o céu luminoso e o Nome Rahim como um raio de calor que desce do céu e vivifica o homem.
No Nome Allah, existem aspectos de Transcendência terrível e de Totalidade abarcante; se somente existisse o aspecto da Transcendência, seria difícil ou mesmo impossível de contemplar este Nome. De outro ponto de vista, podemos dizer que o nome de Allah exala a um só tempo a serenidade, a majestade, o mistério; a primeira qualidade refere-se à indiferenciação da Substância, a segunda à elevação do Princípio e a terceira à Ipseidade, que é ao mesmo tempo secreta e fulgurante. No grafismo árabe do Nome Allah distinguimos uma linha horizontal, do movimento da escrita, em seguida duas linhas verticais (alif e lam) e, ao final, uma linha mais ou menos circular que podemos reduzir simbolicamente a um círculo; estes três elementos são como que indicações das três “dimensões”: a serenidade, que é “horizontal” e indiferenciada como o deserto ou como uma cobertura de neve; é o que exprime o versículo que citamos: “Diga: Allah!, e deixe-os com seus vãos discursos” (VI, 91), ou este outro: “Não é na lembrança de Allah que os corações repousam em segurança?” (XIII, 28). A majestade, que é “vertical” e imutável como uma montanha: “Allah! Não há divindade fora d’Ele, o Vivo (El-Hayy), o Que Subsiste por Si Mesmo (El-Qayyum)” (II,255; e III, 1)e o mistério, que se estende “em profundidade” e que se refere à ipseidade e à gnose. O mistério da ipseidade implica o da identidade, pois a natureza divina, que é a um tempo tanto totalidade como transcendência, engloba todos os aspectos divinos possíveis, inclusive o mundo com suas inumeráveis refrações individualizadas do Si.

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A Fatihah, “Aquela que abre” (o Corão) é de uma importância capital, como já dissemos, pois ela constitui a prece unânime do Islam. Ela é composta por sete proposições ou versículos: “1) Glória a Deus, Mestre dos mundos; 2) O infinitamente Bom, sempre Misericordioso; 3) O Rei do Juízo final; 4) É a Ti que adoramos, e é em Ti que buscamos refúgio; 5) Conduze-nos no caminho direito; 6) O caminho daqueles sobre quem está a Tua Graça; 7) Não daqueles sobre quem está a Tua Cólera, nem daqueles que erram”.
“Glória a Deus, Mestre dos mundos”: o ponto de partida desta fórmula é o nosso estado de fruição existencial; existir é fruir, pois respirar, comer, viver, contemplar a beleza, cumprir uma tarefa, tudo isto é fruição; ora, o que importa saber é que toda perfeição ou satisfação, toda qualidade externa ou  interna, não passam de efeitos de uma causa transcendente e única, e que esta causa, que é única, produz e determina numeráveis mundos de perfeição.
“O infinitamente Bom, o sempre Misericordioso”: o Bom significa que Deus deu antecipadamente ao homem a existência e todas as condições que ela implica; e, como o homem existe e é dotado de inteligência, ele não deve nem esquecer esses dons, nem atribuí-los a si mesmo; o homem não criou a si próprio, nem inventou o olho e a luz. O Misericordioso: Deus nos dá o pão de cada dia, e não apenas isto: ele nos dá nossa vida eterna, nossa participação na Unidade, portanto naquilo que constitui nossa verdadeira natureza.
“O Rei do Juízo final”: Deus não é apenas o Mestre dos mundos, é também o Mestre de seu fim; Ele os cria e os destrói. Nós, que estamos na existência, não podemos ignorar que toda existência corre para seu fim, que os microcosmos, assim como os macrocosmos, desembocam numa espécie de “nada” divino. Saber que o relativo provém do Absoluto e depende d’Ele, é saber que ele não é o Absoluto e desaparece diante d’Ele. Lembremos a propósito que o “Juízo Final” comporta um simbolismo temporal, que se opõe ao simbolismo espacial do “Mestre dos Mundos”.
“É a Ti que adoramos, e é em Ti que buscamos refúgio”: a adoração é o reconhecimento de Deus fora e acima de nós – é, assim, a submissão ao Deus infinitamente distante – enquanto que o refúgio é o retorno ao Deus em nós mesmos, no mais profundo de nosso coração; é a confiança em um Deus infinitamente próximo. O Deus “exterior” é como a infinitude do céu; o Deus “interior” é como a intimidade do coração.
“Conduze-nos no caminho direito”: é a via ascendente, aquela que leva à Unidade libertadora; é a união da vontade, do amor, do conhecimento.
“O caminho daqueles sobre quem está a Tua Graça”: a via reta é aquela onde a Graça nos conduz para o alto; é apenas pela Graça que se pode seguir esta via; nós devemos nos abrir para esta Graça e nos conformar com suas exigências.
“Não daqueles sobre quem está a Tua Cólera”: não daqueles que se opõem à Graça e que por isso se colocam no raio da Justiça e do Rigor, ou que esgarçaram o laço que os une à Graça pré-existente; pretendendo ser independentes de sua Causa, ou pretendendo ser causa de si mesmos, eles caem como pedras, surdos e cegos; a Causa os abandona. “Nem daqueles que erram”: são aqueles que, sem se opor diretamente ao Uno, mesmo assim, por fraqueza, perdem-se no múltiplo; eles não negam o Uno nem querem usurpar sua posição, mas permanecem sendo o que são, seguindo sua natureza múltipla como se não fossem dotados de inteligência; em suma, eles vivem abaixo daquilo que são e se entregam às potências cósmicas, mas sem se perder se submeterem a Deus. Segundo a interpretação islâmica, essas três categorias – Graça, Cólera, errância – concernem respectivamente aos muçulmanos, que seguem a via do meio, aos judeus, que rejeitaram Jesus, e aos cristãos, que o divinizaram; a escolha dos símbolos é exotericamente plausível, mas o sentido é universal e refere-se às três tendências fundamentais do homem.

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A vida do muçulmano é trespassada por fórmulas, assim como a trama atravessa o urdume. O Basmalah, como já dissemos, inaugura e santifica toda tarefa, ela ritualiza os atos comuns da vida, tais como a ablução e o repasto; a fórmula “louvado seja Deus” (el-hamdu lil Lhah) os encerra dirigindo sua qualidade positiva à Causa única de todas as qualidades, e “sublimando” do acaso toda fruição, a fim de que todas as coisas sejam feitas segundo a sua graça, efeito terrestre da Beatitude divina; neste sentido, tudo se cumpre como uma espécie de símbolo desta Beatitude. Confrontemos com o Bhagavad Gita: “Assim, portanto, daquilo que fazes, daquilo que comes, daquilo que sacrificas, do que dás, do que infligis; ó filho de Kunti, faze-me uma oferenda. Tu serás separado dos laços das obras, sejam seus frutos bons ou maus; e com uma alma voltada à santa união, livre, tu virás a Mim” (IX, 27-28). Segundo uma idéia corrente entre os muçulmanos, uma refeição tomada sem o Basmalah é consumida na companhia de Satã, assim como qualquer outro ato importante.
 Estas duas fórmulas marcam as duas fases de sacralização e acabamento, o coagula e o solve; o Basmalah evoca a Causa divina – e portanto a presença de Deus – nas coisas transitórias, e o Hamd – a louvação – dissolve de certo modo estas coisas, reduzindo-as à sua Causa.
As fórmulas “Glória a Deus” (Subhana ‘Llah) e “Deus é maior” (Allahu akbar) são frequentemente associadas ao Hamd, conforme um hadith, e recitadas em conjunto. Diz-se “Glória a Deus” para anular uma heresia contrária à Majestade divina; esta formula diz respeito assim ao próprio Deus, ela O separa das coisas criadas, enquanto que o Hamd, ao contrário, liga de certa forma as coisas a Deus. A fórmula “Deus é maior” – o Takbir –  “abre”  a prece canônica e marca as mudanças rituais de posição; ela exprime pelo comparativo – de resto tomado quase sempre como um superlativo – com a palavra “grande” (kabir) que Deus será sempre “mais” ou “maior” (akbar), e ele aparece assim como uma paráfrase da Shahadah.
Segundo a tradição, todas essas fórmulas – recitadas um certo número de vezes – livram miraculosamente dos pecados, mesmo que eles sejam inumeráveis como as gotas do mar; existe aí uma analogia com as “indulgências” que, no catolicismo, estão ligadas a certas fórmulas ou preces.
Uma outra fórmula de importância quase orgânica na vida muçulmana é: “Deus o quer” (in sha’a’Llah); através deste enunciado, o muçulmano reconhece a sua dependência, sua fraqueza e sua ignorância diante de Deus e ao mesmo tempo abdica de suas pretensões passionais; é essencialmente a fórmula da serenidade. Equivale a afirmar igualmente que o fim de todas as coisas está em Deus, que é Ele o único desenlace absolutamente certo de nossa existência; não existe futuro fora d’Ele.
Se a fórmula “Deus o quer” concerne o futuro na medida em que nele projetamos nosso presente – representado por nosso desejo que afirmamos ativamente – a fórmula “Estava escrito” (kana maktub) concerne o presente na medida em que nele reencontramos o futuro, representado pelo destino que sofremos passivamente. O mesmo ocorre com a fórmula “Aquilo que Deus quis (aconteceu)” (ma sha’a’Llah): também ela situa a idéia de “Se Deus o quer” no passado e no presente; o evento, ou seu início, é passado, mas seu desdobramento ou nossa constatação do evento passado ou contínuo, está no presente. O “fatalismo” muçulmano, cujo perfeito fundamento acha-se corroborado pelo fato de que ele concorda perfeitamente com a atividade – e a história está aí para prová-lo – é a conseqüência lógica da concepção fundamental do Islam, segundo a qual tudo depende de Deus e retorna a Ele.
O muçulmano – sobretudo aquele que observa a Suna até em suas menores ramificações – vive dentro de um tecido de símbolos, participando da tecedura na medida em que os vive, e beneficia-se assim de um sem-número de lembranças de Deus e do além, mesmo que indiretamente. Quando dizemos “observar a Suna em suas menores ramificações”, estamos nos colocando na posição preconizada por El-Ghazzali, mas a opinião inversa existe igualmente, a saber que o mínimo legal basta para levar ao Paraíso, com a condição de uma grande pureza de alma ou de uma grande virtude, ou de um profundo conhecimento interior. Lembremo-nos a propósito que os muçulmanos dividem os atos em cinco categorias: aqueles que são indispensáveis (fard ou wajib), aqueles que são recomendados (sunnah, mustahabb), aqueles que são indiferentes (mubah), aqueles que são desaconselhados (makruh) e aqueles que são interditos (haram).
Para o cristão, que vive moralmente no espaço vazio das possibilidades vocacionais – portanto do imprevisível – esta situação do muçulmano poderá parecer como um formalismo superficial, até mesmo um farisaísmo, mas esta é uma impressão que não considera o fato de que para o Islam a vontade não “improvisa”; ela é determinada ou canalizada em função da paz contemplativa do espírito e é por isso que a atitude requerida é chamada islam, um “abandono” a um esquema volitivo pré-existente; o exterior não passa de um esquema, todo o ritmo espiritual se desenvolve no interior. A raiz de islam é a mesma de salam, “paz”, o que indica a idéia de “detenção sobrenatural”, idéia que contém igualmente a inshirah, o alargamento do peito pela fé islâmica.
Pronunciar fórmulas a propósito de tudo pode não ser nada, e aparece como nada àquele que só concebe o heroísmo moral, mas, de um outro ponto de vista – o da união virtual com Deus pela “lembrança” constante das coisas divinas – este modo verbal de introduzir na vida “pontos de memória” espirituais é ao contrário um meio de purificação e de graça de que não se pode duvidar. O que é espiritualmente possível é por isso mesmo legítimo, e mesmo necessário num contexto apropriado.
Uma das doutrinas mais destacadas do Corão é a do Todo-Poderoso; esta doutrina da dependência total de todas as coisas diante de Deus foi enunciada no Corão com um rigor excepcional num clima monoteísta. No início deste livro, levantamos o problema da predestinação ao mostrarmos que, se o homem está submetido à fatalidade, é porque – ou na medida em que – o homem não é Deus, mas não na medida em que ele participa ontologicamente da Liberdade divina; negar a predestinação, dissemos, equivale a pretender que Deus não conhece “antecipadamente” os eventos “futuros”, portanto que Ele não é onisciente; esta conclusão é absurda, uma vez que o tempo não passa de um modo da extensão existencial e que a sucessão empírica dos seus conteúdos não passa de  ilusão.
Essa questão da predestinação evoca a da Plenipotencialidade divina: se Deus é Todo-Poderoso, porque não pode ele abolir o mal de que sofrem as criaturas? Pois se nós não podemos admitir que ele o quer, mas não pode, tampouco podemos conceber que ele o pode, mas não quer, ao menos na medida em que nos fiamos em nossa sensibilidade humana. A isto devemos responder: a Plenipotencialidade, sendo uma coisa definida, não pertence ao Absoluto no sentido metafisicamente rigoroso do termo; ela é assim uma qualidade dentre outras, o que equivale a dizer que ela é, como o Ser ao qual pertence, já do domínio da relatividade, ainda que sem sair do domínio principial; em uma palavra, ela provém do Deus pessoal, do Princípio ontológico que cria e se personifica em função das criaturas, e não da Divindade supra-pessoal, que é Essência absoluta e inefável. A Plenipotencialidade, como todo atributo de atitude ou de atividade, tem sua razão suficiente no mundo e se exerce sobre ele; ela depende do Ser e não poderia exercer-se além. Deus, “ao criar” e “tendo criado”, é todo-poderoso sobre aquilo que sua obra encerra, mas não sobre aquilo que, dentro da própria natureza divina, provoca tanto a criação como as suas leis internas; Ele não governa aquilo que faz a necessidade metafísica do mundo e a do mal; Ele não governa nem a relatividade – da qual é, como Princípio ontológico, a primeira afirmação – nem as conseqüências principiais da relatividade; Ele pode abolir um mal, mas não o mal em si; e Ele extinguiria o mal, se extinguisse os males. Dizer “mundo” equivale a dizer “relatividade”, “desdobramento das relatividades”, “diferenciação”, “presença do mal”; como o mundo não é Deus, ele deve conter a imperfeição, sob pena de reduzir-se a Deus e deixar assim de “existir” (ex-sistere).
A grande contradição do homem é que ele quer ser múltiplo, mas sem pagar o preço disto em angústia; ele quer a relatividade com seu sabor de absolutividade ou de infinitude, mas sem suas arestas doloridas; ele deseja a extensão, mas não o limite, como se uma pudesse existir sem a outra, e como se a extensão pura pudesse ser encontrada no plano das coisas mensuráveis; toda a civilização moderna está edificada sobre este erro, que se tornou um artigo de fé e um programa.
Talvez pudéssemos nos expressar com mais precisão formulando o problema da seguinte maneira: a Essência divina – o Sobre-Ser – comporta em sua indistinção, e como que uma potencialidade compreendida em sua própria infinitude, um princípio de relatividade; o Ser, gerador do mundo, é a primeira de todas as relatividades, aquela da qual emanam todas as outras; a função do Ser é de desdobrar, na direção do “nada” ou em modo “ilusório”, a infinitude do Sobre-Ser, a qual se vê assim transmutada em possibilidades ontológicas e existenciais, sendo que as primeiras dizem respeito ao próprio Ser – atributos divinos como a Misericórdia e a Plenipotência – e as segundas à Existência, ao mundo, às coisas. O Ser, por ser a primeira relatividade, não pode abolir a relatividade; se ele pudesse – já vimos isto – ele extinguiria a si mesmo e reduziria a fortiori a criação a nada; aquilo que chamamos “o mal” não passa do desdobramento último e extremo da limitação, portanto da relatividade; o Todo-Poderoso não pode abolir a relatividade, assim como não pode impedir que a soma de 2 e 2 faça 4. Pois a relatividade, assim como a verdade, procede de sua natureza, o que equivale a dizer que Deus não pode não ser Deus. A relatividade é a “sombra” ou o “contorno” que permite ao Absoluto afirmar-se como tal, primeiro diante de Si mesmo e a seguir num jorro “inumerável” (49) de diferenciação.
Toda essa doutrina se acha expressa nesta fórmula corânica: “E Ele é poderoso sobre todas as coisas” (wa-Hua’ala kulli shay’in qadir); em linguagem sufi, diremos que Deus, enquanto Poderoso e portanto Criador, é visto sobre plano dos “atributos” (çifat), e estes evidentemente não poderiam governar a “Essência” ou a “Quididade” (Dhat); é a “todas as coisas”, à totalidade existencial, que se refere a “Potência” (qadr). Se dissermos que o Todo-Poderoso não tem o poder de não ser todo-poderoso, criador, misericordioso, justo, que ele tampouco não pode impedir-se de criar e de desdobrar seus atributos na criação, podemos também objetar que Deus criou o mundo “com toda liberdade” e que Ele aí se manifesta livremente; mas isto seria confundir a determinação principial da perfeição divina com a liberdade diante dos fatos ou dos conteúdos; confundir a perfeição da necessidade, reflexo do Absoluto, com a imperfeição da restrição, consequência da relatividade. Que Deus cria em perfeita liberdade significa que Ele não pode sofrer nenhuma restrição, porque nada se situa fora  d’Ele, e que as coisas que parecem estar fora d’Ele não podem atingi-Lo, porque os níveis de realidade são incomensuravelmente desiguais; a causa metafísica da criação ou da manifestação está em Deus, ela não o impede de ser Si-mesmo, portanto de ser livre; não podemos negar que esta causa se acha compreendida na natureza divina, a menos que confundamos liberdade com capricho, como os teólogos fazem frequentemente, de fato e implicitamente, e sem se darem conta das conseqüências lógicas de seu antropomorfismo sentimental e antimetafísico. Assim como a “Plenipotência”, a “Liberdade” de Deus só tem sentido em função do relativo; nenhum destes termos, é preciso insistir, aplica-se à Ipseidade última, o que não significa que as perfeições intrínsecas que cristalizam seus atributos faltem para além da relatividade – quod absit – mas, ao contrário, que elas só atingem sua plenitude infinita no Absoluto e no Inefável.
A propósito, o mazdeísmo formulou o problema da Plenipotência e do mal  de um modo que evita a aparência de contradição no Princípio divino, ao opor a Ormuzd (ou Ahuramazda), Deus supremo e infinitamente bom, um princípio do mal, Ahriman (ou Auromainyu), mas detendo-se assim dentro de um dualismo metafiosicamente insatisfatório, embora plausível num certo nível de realidade. O budismo evita as duas dificuldades – a contradição em Deus e o dualismo – mas ele é obrigado a sacrificar o aspecto pessoal de Deus, ao menos na sua doutrina geral, o que o torna inassimilável para a maioria dos semito-ocidentais.

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A questão do castigo divino é muitas vezes relacionada com a do Todo-Poderoso e também com a Sabedoria e com a Bondade, e nesta hora surgem perguntas como esta: que interesse pode ter um Deus infinitamente sábio e bom em manter um registro de nossos pecados, das manifestações da nossa miséria? Perguntar-se isto equivale a negligenciar os dados básicos do problema e transformar, de um lado, a Justiça imanente e a Lei do equilíbrio numa contingência psicológica e, de outro – por minimizar o pecado – fazer da mediocridade humana a medida do Universo. Antes de mais nada, dizer que Deus “pune” não passa de um modo de expressar uma dada relação de causalidade; ninguém sonharia em acusar a natureza de mesquinharia porque a relação de causa e efeito se desenrola segundo a lógica das coisas: porque, por exemplo, as sementes de urtiga não produzem azaléias, ou porque um golpe dado num balanço produz um movimento pendular e não uma subida. O fundamento das sanções de além-túmulo aparece quando tomamos consciência da imperfeição humana; esta, por ser  um desequilíbrio, provoca fatalmente um choque de retorno; este é um dos significados da palavra do Cristo: “Quem sacar a espada, morrerá pela espada”, e também, de uma perspectiva um pouco diferente: “Toda casa dividida contra si mesma perecerá”, que aplica-se notadamente ao homem que é infiel à sua natureza “feita à imagem de Deus”. Se a existência das criaturas é realmente uma prova de Deus – para aqueles que vêem além das aparências – porque a manifestação não é concebível senão em função do Princípio, assim como os acidentes não tem sentido a não ser em relação à substância, uma observação análoga aplica-se aos desequilíbrios: eles pressupõem um equilíbrio que romperam e carregam consigo uma reação correspondente, seja ela positiva ou negativa.
Crer que o homem está “bem”, que ele tem o direito a pleitear ser “deixado tranqüilo”, que ele não tem nada a ver com as agitações morais e temores escatológicos, equivale a não ver que as limitações que definem o homem de certo modo possuem algo de fundamentalmente “anormal”; o simples fato de que não podemos ver o que se passa às nossas costas nem podemos saber o que nos reserva o porvir mostra que sob certo aspecto somos muito pouco além de “acidentes” de uma “substância” que nos ultrapassa em muito, mas também que não somos nossos corpos nem somos deste mundo; nem o mundo nem nossos corpos são aquilo que somos. E isto nos permite abrir um parêntese: se os homens puderam, durante milênios, contentar-se com o simbolismo moral da recompensa e do castigo, isto aconteceu não porque fossem estúpidos – e neste caso de uma estupidez infinita e incurável – mas porque eles ainda possuíam o sentido do equilíbrio e do desequilíbrio; porque eles ainda tinham um senso inato dos valores reais, fossem do mundo ou da alma. Eles possuíam – de certa forma experimentalmente, porque eram contemplativos – a certeza das normas divinas de um lado e a das imperfeições humanas de outro; bastava que um simbolismo os lembrasse aquilo de que possuíam um pressentimento natural. O homem espiritualmente pervertido, ao contrário, esqueceu-se de sua majestade inicial e dos riscos que ela comporta; por não desejar ocupar-se dos fundamentos de sua existência, imagina que a realidade é incapaz de lembrá-lo; e o pior dos absurdos é crer que a natureza das coisas é absurda, pois, se assim o fosse, de onde tiraríamos a luz que nos permitiu esta constatação? Além disso, o homem, por definição, é inteligente e livre; disto ele está persuadido na prática, pois a todo momento ele reivindica a inteligência e a liberdade; a liberdade, porque ele não quer se deixar dominar, e a inteligência porque ele acha que pode julgar tudo conforme sua medida. Ora, é nossa natureza real, não nossa comodidade erigida em norma, que decide nosso destino diante do Absoluto; podemos desertar de nosso teomorfismo e aproveitar as vantagens que isto traz, mas não podemos nos furtar às conseqüências que isto implica. Os modernos gostam de repreender aquilo que, nos homens tradicionais, lhes parece ser  uma inquietude, uma fraqueza, um “complexo”; sua própria maneira de serem perfeitos consiste em ignorar que a montanha desmorona, enquanto que a aparente imperfeição daqueles que eles criticam comporta – ou manifesta – no mínimo sérias chances de escapar do cataclisma. Aquilo que dissemos aplica-se também às civilizações: as civilizações tradicionais comportam males que não podemos compreender – ou não conseguimos avaliar o tamanho – senão levando em conta que elas estão fundadas na certeza do além e possuem uma certa indiferença quanto às coisas transitórias; inversamente, para avaliar as vantagens do mundo moderno – e antes de ver aí valores indiscutíveis – é preciso lembrar que seu condicionamento mental é a negação do além e o culto às coisas deste mundo.
Muitos homens hoje em dia expressam-se do seguinte modo: “Deus existe ou não existe; se Ele existe, e se é o que dizem, Ele reconhecerá que somos bons e que não merecemos nenhum castigo”. Isto quer dizer que eles estão dispostos a crer na Sua existência desde que Ele seja conforme àquilo que eles imaginam e que Ele reconheça o valor que atribuem a si mesmos. Isto é o mesmo que esquecer, de um lado, que não podemos conhecer as medidas com as quais o Absoluto nos julga e, de outro, que o “fogo” de além-túmulo não é outra coisa, em definitivo, que nosso próprio intelecto que se atualiza no encontro com nossa falsidade, ou, em outros termos, que ele é a verdade imanente que explode à luz. No momento da morte, o homem é confrontado com o inimaginável espaço de uma realidade que não é mais fragmentária mas total, e então com a norma daquilo que pretendia ser, porque esta norma faz parte do Real; o homem condena a si mesmo, seus próprios membros – segundo o Corão – o acusam; uma vez passada a ilusão, suas violações transformam-se em chamas; a natureza desequilibrada e falseada, com toda sua vã segurança, torna-se uma túnica de Nessos. O homem só queima em função dos seus pecados; ele queima por sua majestade enquanto imagem de Deus. É a idéia pré-concebida de erigir a decadência em norma e a ignorância como garantia de impunidade que o Corão estigmatiza com veemência – podemos mesmo afirmar: por antecipação – ao confrontar a segurança de seus contraditores com os terrores do fim do mundo, um dos temas mais insistentemente repetidos no Corão, que frisa seu caráter de última mensagem  com uma eloqüência quase desesperada.
Em resumo, toda o problema da culpabilidade se reduz a uma relação de causa e efeito. Que o homem está longe de ser bom, a história antiga e a moderna o provam abundantemente; o homem não possui a inocência do animal, ele tem consciência de sua imperfeição, porque ele tem esta noção; assim sendo, ele é responsável. Aquilo que em terminologia moral chamamos a falta do homem e o castigo de Deus, não é outra coisa em si do que a colisão do desequilíbrio humano com o Equilíbrio imanente; esta noção é capital.
A idéia de um inferno “eterno”, depois de ter por séculos estimulado o temor a Deus e o esforço em direção à virtude, provoca hoje em dia o efeito contrário e contribui para tornar inverossímil a doutrina do além; e, coisa paradoxal para uma época que embora cheia de contrastes e de compensações é no seu conjunto tão refratária quanto possível à metafísica pura, somente o esoterismo gnóstico está em posição de tornar inteligíveis as posições mais frágeis do exoterismo e de satisfazer certas necessidades de causalidade. Ora, o problema do castigo divino, que nossos contemporâneos tem tanta dificuldade em admitir, reduz-se em suma a duas questões: existe a possibilidade para o homem responsável e livre de opor-se ao Absoluto, direta ou indiretamente, ainda que de modo ilusório? Certamente, porque a essência individual pode impregnar-se de qualquer qualidade cósmica e porque existem estados que são “possibilidades de impossibilidades”; encontramos no Corão esta passagem: “E eles dirão: O fogo só nos alcançará durante um número determinado de dias. Responda-lhes: Vocês fizeram um pacto com Deus – e então Deus não o romperá – ou vocês dizem de Deus aquilo que não sabem? De modo algum! Aqueles que fizeram o mal serão envolvidos por seus pecados, e serão hóspedes do fogo, e aí permanecerão” (II, 80-81); toda a ênfase acha-se na expressão “envolvidos por seus pecados” (Wa-ahatat bihi khati’atuhu), que indica o caráter essencial, portanto “mortal”, da transgressão; esta passagem responde aos que crêem, não que o inferno como tal seja metafisicamente limitado, mas que a duração do castigo seja igual àquela do pecado.
A segunda questão é a seguinte: a verdade exotérica, por exemplo no que concerne o inferno, pode ser total? Certamente não, porque ela é determinada – de certo modo “por definição” – por questões de interesse moral ou por razões de oportunidade psicológica. A ausência de nuances compensatórias em certos ensinamentos religiosos explica-se assim; as escatologias que são tiradas desta perspectiva são, não “antimetafísicas” bem entendido, mas “a - metafísicas” e “antropocêntricas”, de tal maneira que em seu contexto certas verdades aparecem como “imorais” ou no mínimo “malvistas”; não lhes é possível assim discernir nos estados infernais aspectos que podem ser mais ou menos positivos, nem o inverso nos estados paradisíacos. Os teólogos não ignoram em princípio que a “eternidade” do inferno – o caso do Paraíso é um pouco diferente – não está no mesmo nível da eternidade de Deus nem pode identificar-se com ela. Se o exoterismo se afirma, nas Escrituras semíticas, por idéias como a da creatio ex nihilo e a da sobrevida ao mesmo tempo individual e eterna, a tendência exotérica aparece igualmente nas Escrituras hindus e budistas – se bem que de outra forma – no sentido de que estes textos situam aparentemente sobre a terra as fases da transmigração que não são nem celestes nem infernais; o exoterismo, que repugna as explicações sutis, reduz-se no ambiente hindu à simplicidade do símbolo. É claro que as escatologias podem ser mais ou menos completas, mas nenhuma pode ser absolutamente adequada em razão das próprias limitações da imaginação humana e terrestre.
Com tudo isso não queremos dizer que haja uma simetria entre a Misericórdia e o Rigor – pois a primeira tem precedência sobre o segundo, assim como existe assimetria entre os estados celestes e os infernais, porque os primeiros estão eminentemente mais próximos do Ser puro – mas que a relação “Céu-inferno” corresponde por necessidade metafísica àquilo que é expresso no simbolismo extremo-oriental do yin-yang, em que a parte negra comporta um ponto branco e a parte branca contém um ponto negro; se existem compensações na geena, porque nada na existência pode ser absoluto e porque a Misericórdia atravessa tudo, também no Paraíso deve haver, não sofrimento certamente, mas sombras que testemunham em sentido inverso o mesmo princípio de compensação e que significam que o Paraíso não é Deus e também que todas as existências são solidárias.  A respeito da Misericórdia, El-Ghazzali conta em seu Durrat el-fakhirah que um homem atirado ao fogo gritava mais do que todos os outros: “Retiraram-no todo queimado, e Deus lhe disse: Porque gritas mais alto do que os outros que estão no fogo? E ele respondeu: Senhor, vós me julgastes, mas eu jamais perdi a fé em Vossa misericórdia... E Deus disse: Quem desiste da misericórdia de seu Senhor, senão os perdidos? (Corão, XV, 56); vai em paz, Eu te perdoei”. Do ponto de vista católico, trata-se do “purgatório”; também o budismo menciona os Kshitigarbha, Bodhisattvas que aliviam os condenados com o orvalho celeste, o que indica que existem funções angélicas misericordiosas que se estendem até os infernos.
Ora, o princípio da compensação mencionado acima é esotérico – e erigi-lo em dogma seria completamente contrário ao espírito de alternativa tão característico do exoterismo ocidental – e, com efeito, encontramos entre os sufis opiniões admiravelmente cheias de nuances: um Jili, um Ibn Arabi e outros, admitem para o estado infernal um aspecto de fruição, pois, se de uma parte o condenado sofre por estar separado do Soberano Bem e, como o sublinha Avicena, pela privação do corpo terrestre enquanto as paixões subsistem, por outro lado ele se lembra de Deus, segundo Jalal el-Din Rumi, e “nada é mais doce do que a lembrança de Allah”. No inferno, os maus e os orgulhosos sabem que Deus é real, enquanto que na terra eles podem não levar isto em consideração ou esforçar-se por duvidar; existe algo que muda neles pelo simples fato de sua morte, e este algo é indescritível do ponto de vista terrestre: “Somente os mortos conhecem o valor da vida”, dizem os muçulmanos.
Convém talvez “lembrar” ainda que as pessoas no inferno seriam ipso facto libertas se tivessem o conhecimento supremo – do qual forçosamente possuem o potencial – e que, mesmo no inferno, elas possuem a chave para sua libertação; mas o que é preciso dizer sobretudo, é que a segunda morte de que fala o Apocalipse, assim como a reserva que o Corão exprime em certas passagens sobre o inferno, acrescentando a frase “a menos que teu Senhor queira diferente” (illa ma sha’a’Llah), marcam o ponto de intersecção entre a concepção semítica do inferno perpétuo com a concepção hindu e budista da transmigração; dito de outro modo, os infernos são ao final de contas passagens para ciclos individuais não-humanos ou seja para outros mundos (58).
Façamos uma digressão: a frase “a menos que teu Senhor queira diferente” (Suratas VI, 129 e XI, 107) também se aplica ao Paraíso: “...eles aí permanecerão tanto quanto durem os Céus e a terra, a menos que seu Senhor queira diferente; (é) um dom que jamais será interrompido” )XI, 108). Esta última proposição refere-se diretamente à participação dos “que estão próximos” (muqarrabun) da Eternidade divina em virtude da união suprema, ou seja que neste caso (o krama-mukti do Veda) o Paraíso desemboca na Divindade ao final do ciclo (“tanto quanto durem os Céus e a terra”), o que acontece também nos Paraísos de Vishnu e de Amida; quanto à reserva mencionada mais acima, ela indica para aqueles que “preferem o jardim ao Jardineiro”, como dizem os sufis – ou seja aqueles cujo estado é fruto da ação e não do conhecimento ou do puro amor – a possibilidade de mudanças ulteriores mas sempre benéficas. Mencionemos igualmente a possibilidade dos Bodhisattvas que, mesmo permanecendo interiormente no Paraíso, penetram neste mundo analogicamente “terrestre”, e também, num nível bem inferior, essas beatitudes não humanas que o ser, graças a um dado karma, esgota passivamente como faria uma planta; mas tudo isto não cabe na perspectiva dita monoteísta, a qual de resto não engloba nem o ritmo dos ciclos cósmicos, nem, com mais razão, o dos ciclos universais (as “vidas de Brahma”), embora alguns hadith e algumas passagens da Bíblia (o “reino de mil anos”, sem dúvida) refiram-se a isto mais ou menos claramente. Quanto à questão da “passagem para ciclos individuais não-humanos ou seja para outros mundos”, lembramos que no Manava-Dharma-Shastra, no Markandeya-Purana e em outros textos, a transmigração dos “condenados” – ao sair do inferno – começa por encarnações em animais inferiores. Antes de mais nada, a infinitude divina exige que a transmigração se efetue em modo “espiral”: o ser jamais retorna à mesma terra, qualquer que seja o conteúdo de sua nova existência, chamada de “terrestre” por ser uma mistura de prazer e dor.
Voltando ao nosso tema, o Estado humano – ou qualquer outro estado “central” análogo – é como que cercado por um círculo de fogo: só existe aí uma opção, que é ou bem escapar da “corrente das formas” pelo alto, em direção a Deus, ou bem sair da humanidade por baixo, através do fogo, o qual é como uma pena pela traição daqueles que não realizaram o sentido divino da condição humana; se “a condição humana é difícil de atingir”, como dizem os asiáticos “transmigracionistas”, ela é igualmente difícil de abandonar, pela mesma razão de centralidade e de majestade teomórfica. Os homens vão ao fogo porque são deuses, e saem dele porque não passam de criaturas; somente Deus poderia permanecer eternamente no inferno, se ele pudesse pecar.  Enfim, o estado humano está muito próximo do Sol divino, se é que podemos falar aqui de “proximidade”; o fogo é o preço eventual e inverso desta situação privilegiada; podemos medi-la pela intensidade e pela inextinguibilidade do fogo. É preciso concluir pela gravidade do inferno e a grandeza do homem, e não, inversamente, pela aparente inocência do homem  e a suposta injustiça do inferno.
O que pode desculpar numa certa medida o emprego habitual da palavra “eternidade” para designar uma condição que, segundo as terminologias das escrituras, não passa de uma “perpetuidade” – sendo esta não mais que um “reflexo” da eternidade – é o fato de que, analogicamente falando, a eternidade é um ciclo fechado, por não ter começo nem fim, enquanto que a perpetuidade é um ciclo espiral, portanto aberto em função de sua própria contingência. Mais uma rápida digressão, para precisarmos o sentido da “perpetuidade” citada acima: a palavra grega aiwnios  significa realmente “perpétuo” e não “eterno”, pois ela deriva de aiwn (idêntica ao latim aevum), que designa um ciclo indefinido, que de resto era também o sentido primitivo do latim saeculum, “século”, como se traduz às vezes. Do mesmo modo, o além corânico tem a qualidade de “duração ilimitada” ou de “imortalidade” (khuld) ou de “tempo muito longo” (abad, abadan) e não de “eternidade” (azal). Em contraposição, o que mostra toda a insuficiência da crença corrente quanto a uma sobrevida a uma vez individual e eterna – e esta sobrevida é forçosamente individual no inferno, mas não no cume transpessoal da Felicidade – é o postulado contraditório de uma eternidade que tem um começo no tempo, ou de um ato – portanto de uma contingência – que tem uma consequência absoluta. Como lembra El-Ghazzali em seu Ihya ‘Ulum ed-Din, a visão de Deus faz com que “os que estão próximos” esqueçam as huris (as virgens do Paraíso) e alcancem a união suprema. É o caso dos seres que, uma vez entrados no “Paraíso de Amitabha”, adquirem aí a realização do Nirvana, sendo reintegrados ao Princípio após a grande dissolução que marca o fim de todo ciclo humano. Conforme diz René Guénon (L’Homme et son Devenir Selon le Vedanta): “..o ser não é de modo algum “absorvido” ao obter a Libertação, embora possa parecer assim do ponto de vista da manifestação, para o qual a “transformação” aparece como uma “destruição”; se nos colocamos do ponto de vista da realidade absoluta, a única que permanece para ele, ele é ao contrário dilatado além de todo limite, se podemos nos exprimir assim (é o que traduz com exatidão o simbolismo do vapor d’água que se espalha indefinidamente na atmosfera), porque ele efetivamente realizou a plenitude de suas possibilidades (cap. XX)”. O Bhagavad Gita diz: “Aquele que se mantém neste estado (de Brahma) ao fim da sua vida, extingue-se em (ou atinge o Nirvana de) Brahma” (II, 72). Se o Nirvana só é “extinção” em relação à “ilusão” existencial, esta, por sua vez, é “extinção” e “vazio” em relação ao Nirvana; quanto àquele que desfrutou deste “estado” – na medida em que este termo ainda se aplica – devemos nos lembrar da doutrina dos três “corpos” simultâneos e hierarquizados dos Budas: terrestre, celeste e divino.
O problema da sobrevida é dominado por duas verdades-princípio: em primeiro lugar, somente Deus é absoluto e consequentemente a relatividade dos estados cósmicos deve manifestar-se não apenas “no espaço”, mas também “no tempo”, se é que podemos nos exprimir assim por analogia; em segundo lugar, Deus não nunca promete mais do que pode, nem provê menos do que promete – embora Ele sempre possa ultrapassar suas promessas – de tal modo que os mistérios escatológicos não podem jamais desmentir o que dizem as Escrituras, embora possam revelar coisas sobre as quais elas silenciam em certos casos: “Deus é mais sábio” (wa’Llahu a’lam). Do ponto de vista da transmigração, insistiremos na relatividade de tudo o que não é o “Si” ou o “Vazio” e diremos que aquilo que é limitado em sua natureza fundamental sê-lo-á necessariamente também em seu destino, de alguma maneira, de modo que é absurdo falar de um estado contingente em si, porém livre de toda contingência na “duração”; encontramos, ainda no Bhagavad Gita esta passagem: “Ó filho de Pritha, nem neste mundo nem no outro, não há destruição para ele; em verdade, meu filho, um homem de bem jamais entra na via do mal (VI, 40); e Sri Shankara comenta a respeito: “Aquele que não completou seu yoga não estará sujeito a um nascimento inferior”;  em outros termos, se a perspectiva hindu e budista diferem da do monoteísmo, é porque, estando centrados no puro Absoluto e na Libertação, elas sublinham a relatividade dos estados condicionados e não se detém aí; elas insistirão portanto na transmigração como  tal, sendo aqui o relativo um sinônimo de movimento e instabilidade. Numa época espiritualmente normal e num meio tradicionalmente homogêneo, todas essas considerações sobre os diferentes modos de se encarar a sobrevida seriam supérfluas e mesmo nocivas – e, de resto, tudo estará contido implicitamente em um ou em outro enunciado das Escrituras, assim como, para o Islam, tudo está contido na Shahadah, a qual fornece uma chave para impedir que uma relatividade qualquer seja colocada no mesmo plano de realidade do Absoluto – , mas, no mundo em dissolução no qual vivemos, tornou-se indispensável mostrar o ponto de concordância onde de atenuam ou se resolvem as divergências entre o monoteísmo semito-ocidental e as grandes tradições originárias da Índia. Tais confrontações, é verdade, raras vezes são plenamente satisfatórias – na medida em que se trata de cosmologia – e cada colocação arrisca levantar problemas novos; mas estas dificuldades não fazem mais do que mostrar que se trata aí de um domínio infinitamente complexo que jamais se revelará adequadamente ao nosso entendimento terrestre. Num certo sentido, é menos difícil “captar” o Absoluto do que os abismos incomensuráveis de sua manifestação.
Nunca é demais insistir nisto: as Escrituras chamadas “monoteístas” não falam explicitamente de certas possibilidades aparentemente paradoxais da sobrevida, dada a perspectiva que seu meio de expansão providencial restringe; o caráter de upaya – “verdade provisória” ou “oportuna” – dos Livros sagrados obriga-os a passar por cima, não apenas as dimensões compensatórias do além, mas também os prolongamentos que se situam fora da “esfera de interesse” do ser humano. É neste sentido que dissemos acima que a verdade exotérica só pode ser parcial, abstração feita à polivalência do seu simbolismo, e as atrocidades que tradicionalmente foram cometidas em nome das religiões o provam suficientemente (uma vez que somente o esoterismo é irreprochável); as definições limitativas próprias do exoterismo são comparáveis à descrição de um objeto do qual vemos a forma mas não as cores. Existem ahadith que são como que intermediários entre as duas perspectivas – a literal e a universal -, como, por exemplo: “Allah salvará os homens do inferno quando eles tiverem queimados como o carvão”; ou: Pelo Deus em cujas mãos está minha alma, chegará um tempo em que as portas do inferno serão fechadas e o hortelã (símbolo do frescor) crescerá em seu solo”; ou ainda: “E Deus dirá: os Anjos, os Profetas e os crentes intercederam pelos pecadores, e já não resta ninguém para interceder por eles, exceto o mais Misericordioso de todos os misericordiosos (Arham er-Rahimin, Deus). E ele tomará uma pitada de fogo e retirará um povo que jamais fez nenhum bem”. A esta misericórdia no tempo os sufis acrescentam, como vimos, uma misericórdia que atinge mesmo a atualidade do estado infernal.
O “ostracismo” das Escrituras é muitas vezes resultado da malícia dos homens; elas foram eficazes enquanto os homens possuíam ainda, apesar de tudo, uma intuição ainda suficiente de sua imperfeição e de sua situação ambígua em face do Infinito, mas hoje em dia tudo é questionado, em parte devido à perda desta intuição e em parte por causa dos confrontos inevitáveis entre as religiões mais diferentes, sem falar das descobertas científicas que são supostas como capazes de invalidar as verdades religiosas.
Deve ficar bem entendido que as Escrituras sagrada, “por força maior” (o que significa que se trata de revelações universais que fundamentam civilizações inteiras e não inspirações secundárias destinadas a uma dada escola), quaisquer que sejam suas expressões ou seus silêncios, jamais são “exoteristas” em si mesmas; elas sempre permitem reconstituir, às vezes a partir de um elemento ínfimo, a verdade total, ou seja elas sempre a deixam transparecer; elas nunca são cristalizações compactas de perspectivas parciais (Cristo diz: “Passarão o Céu e a Terra, mas não passarão minhas palavras”, e o Corão afirma: “Tudo é efêmero, exceto a face de Allah”). Em seu sentido imediato, elas expõem  incontestavelmente uma perspectiva “dualista” e antropomórfica de escatologia limitada; mas, como dizia Maitre Eckhart, todo sentido verdadeiro é um “sentido literal”. Segundo um hadith nabawwi (do Profeta), os versículos do Corão encerram não apenas um sentido exotérico e um sentido esotérico, mas ainda, no interior deste último, muitos outros sentidos possíveis, no mínimo sete e no máximo setenta; sua profusão já foi comparada às “ondas do mar”.
Esta transcendência das Escrituras sagradas em relação às suas concessões em função de uma dada mentalidade aparece no Corão notadamente sob a forma do relato esotérico do encontro entre Moisés e El-Khidr: nós encontramos aí, não apenas a idéia de que o ângulo de visão sobre a Lei é sempre fragmentário, embora plenamente eficaz e suficiente para o indivíduo como tal – o qual por sua vez também é parte e não totalidade -, como também a doutrina do Bhagavad Gita segundo a qual nem as boas nem as más ações interessam diretamente o Si, ou seja que somente o conhecimento do Si e, em função deste conhecimento, o desligamento em relação à ação, tem valor absoluto. Moisés representa a Lei, a forma particular e exclusiva, e El-Khidr a Verdade universal, que é inatingível do ponto de vista da “letra”  , “como o vento que não sabemos de onde vem nem para onde vai”.
O que importa para Deus, em relação aos homens, não é fornecer relatos científicos sobre coisas que a maioria dos homens não pode compreender, mas desencadear um “choque” através de conceitos-símbolo: este é exatamente o papel da upaya. E, neste sentido, o papel da violenta alternativa “Céu-inferno” na consciência do monoteísta é muito instrutiva: o “choque”, com tudo o que ele comporta para o homem, revela antes mais a verdade que uma dada exposição “mais real” mas menos assimilável e menos eficaz, portanto na prática “mais falsa” diante do entendimento. Trata-se de “compreender”, não apenas com o cérebro, mas com todo o nosso “ser”, portanto também com a vontade ; o dogma endereça-se à substância pessoal mais do que ao pensamento apenas, ao menos onde este não passa de uma superestrutura; ele só fala ao pensamento na medida em que este é susceptível de comunicar-se concretamente com nosso ser inteiro e, sob este aspecto, os homens diferem. Quando Deus fala com o homem, Ele não conversa, Ele ordena; Ele só ensina o homem quando         este pode ser mudado; ora, as idéias não agem sobre todos os homens da mesma maneira, e daí vem a diversidade das doutrinas sagradas. As perspectivas a priori dinâmicas – o monoteísmo semito-ocidental – consideram, como uma espécie de compensação, os estados póstumos sob um aspecto estático, portanto definitivo; ao contrário, as perspectivas a priori estáticas, ou seja mais contemplativas e assim menos antropomórficas – como as da Índia e do Extremo-Oriente – vêem estes estados sob um aspecto de movimento cíclico e de fluidez cósmica. Dito de outro modo, se o Ocidente semítico representa os estados post mortem como algo de definitivo, fica implícita a razão no sentido de que existem diante de nós como que duas infinitudes, a de Deus e a do macrocosmo ou do labirinto incomensurável e indefinido do samsara; é este segundo que em última análise é o inferno “invencível”, e é Deus que na realidade é a Eternidade positiva e beatífica; e se a perspectiva hindu, ou budista, insiste sobre a transmigração das almas é porque, como dissemos, seu caráter profundamente contemplativo lhe permite não deter-se apenas na condição humana, e porque, por isso mesmo, ela sublinha o caráter relativo e inconstante de tudo o que não é o Absoluto; para ela, o samsara só pode ser a expressão da relatividade. Quaisquer que sejam suas divergências, o ponto de união entre as perspectivas torna-se visível em conceitos tais como a “ressurreição da carne”, que é perfeitamente uma “re-encarnação”.
Uma questão à qual ainda precisamos responder aqui, e que o Corão só responde implicitamente, é a seguinte: porque o Universo é feito, de um lado, de mundos, e, de outro, de seres que os percorrem? Isto equivale a perguntar por que a navete atravessa o urdume, ou porque existem o urdume e a trama; ou ainda, porque a mesma relação de cruzamento se produz quando inscrevemos uma cruz ou uma estrela num sistema de círculos, ou seja, quando aplicamos o princípio do tecido em sentido concêntrico. Eis aonde queremos chegar: assim como a relação do centro com o espaço só pode ser concebido sob a forma da teia de aranha, com seus dois modos de projeção – um contínuo e outro descontínuo – do mesmo modo a relação do Princípio com a manifestação – a qual constitui o Universo – só se concebe como uma relação entre mundos que se escalonam ao redor do Centro divino e seres que os percorrem; o simbolismo da teia de aranha – o simbolismo dos compartimentos cósmicos e seus conteúdos – se encontra nas imagens budistas da “roda da Existência”; o próprio Corão é uma imagem do cosmo, suas suratas sendo os mundos e os versículos (ayat), os seres. Dizer “Existência” é anunciar a relação entre o receptáculo e o conteúdo, ou entre o estático e o dinâmico; a viagem das almas através da vida, da morte, da ressurreição, não é outra coisa que a própria vida do macrocosmo; mesmo em nossa experiência aqui em baixo, atravessamos os dias e as noites, os verões e os invernos; somos, essencialmente, seres que atravessam estados, e a Existência não se concebe de outra forma. Toda a nossa realidade converge para este “momento” único, o único que importa: nossa confrontação com o Centro.

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O que dissemos das sanções divinas e de suas raízes na natureza humana ou no estado de desequilíbrio desta aplica-se igualmente, do ponto de vista das causas profundas, às calamidades daqui de baixo e à morte: esta como aquelas explicam-se pela necessidade de um choque de retorno depois de uma ruptura de equilíbrio; segundo o Corão, todos os males terrestres “provém de vós mesmos” (min anfisikum), o que não impede que “tudo venha de Deus” (kullun min’indi’Llahi). A causa da morte é o desequilíbrio provocado por nossa queda e a perda do Paraíso, e as provações da vida advêm, por via de consequência, do desequilíbrio de nossa natureza pessoal;  nos casos mais graves de sanções de além-túmulo, o desequilíbrio está em nossa própria essência e chega até a uma inversão de nosso teomorfismo; o homem “queima” por não querer ser o que é – porque ele é livre para não querer sê-lo. Em outras palavras, “toda casa dividida contra si mesma perecerá”. Resulta daí que toda sanção divina é a inversão de uma inversão; e, como o pecado é uma inversão em relação ao equilíbrio primordial, podemos falar de “ofensas” feitas a Deus, embora não haja aí evidentemente nenhum sentido psicológico possível, apesar do inevitável antropomorfismo das concepções exotéricas. O Corão descreve, com a ardente eloqüência que caracteriza as últimas suratas, a dissolução final do mundo; ora, tudo isso pode ser  transportado para o microcosmo, onde a morte aparece como o fim de um mundo e um julgamento, vale dizer como uma absorção do exterior pelo interior em direção ao Centro. Quando a cosmologia hindu ensina que as almas dos defuntos vão primeiro para a Lua, ela sugere indiretamente, e à margem de outras analogias muito mais importantes, a experiência da incomensurável solidão – os “temores da morte” – pela qual a alma passa ao sair  “contra sua vontade” da matriz protetora que era para ela o mundo terrestre; a lua material é como o símbolo do absoluto despojamento, da solidão noturna e sepulcral, do frio da eternidade; e é este terrível isolamento post mortem que marca o choque de retorno em relação, não a um dado pecado, mas à existência formal. Na morte, toda segurança e toda habilidade caem como uma vestimenta, e o ser que resta é impotente; não resta mais do que uma substância tecida por nós mesmos e que pode, seja cair pesadamente, seja ao contrário subir para o Céu; os índios norte-americanos vestem seus mortos com mocassinos cujas solas são bordadas, o que é um simbolismo bastante eloqüente.
 Nossa existência pura e simples é como uma pré-figuração ainda inocente – mas não obstante geradora de misérias – de toda transgressão; ao menos ela é isto enquanto “saída” demiúrgica para fora do Princípio, e não enquanto “manifestação” positiva deste. Se a Philosophia Perennis pode combinar a verdade do dualismo mazdeo-gnóstico com a do monismo semítico, os exoterismos, por seu turno, são obrigados a escolher entre uma concepção metafisicamente adequada mas moralmente contraditória, e uma concepção moralmente satisfatória mas metafisicamente fragmentária: no primeiro caso, Deus é a causa de tudo; mas então, de onde vem o mal? No segundo caso, o mal vem do homem; mas então onde está Deus?.
Jamais devemos nos perguntar por que desgraças se abatem sobre inocentes: do ponto de vista do Absoluto, tudo é desequilíbrio, “Só Deus é bom”; ora, esta verdade não pode não se manifestar de tempos em tempos de modo direto e violento. Se os bons sofrem, isto significa que todos os homens merecem o mesmo; a velhice e a morte o provam, porque elas não excluem ninguém. A repartição terrestre das benesses e dos males é uma questão de economia cósmica, embora também a justiça imanente deva revelar-se à luz para mostrar a ligação entre as causas e os efeitos das ações humanas. Os sofrimentos testemunham os mistérios do distanciamento e da separação, eles não podem deixar de existir, porque o mundo não é Deus.
Mas a justiça niveladora da morte nos importa infinitamente mais do que a diversidade dos destinos terrestres. A experiência da morte é quase como a de um homem que tivesse vivido toda a sua vida numa câmara escura e que se visse subitamente transportado ao cume de uma montanha; de lá ele avistaria todo o mundo e as obras dos homens lhe pareceriam insignificantes. É assim que a alma arrancada da terra e do corpo percebe a inesgotável diversidade das coisas e os abismos incomensuráveis dos mundos que as contém; ela se vê pela primeira vez em seu contexto universal, em um encadeamento inexorável e numa rede de relações múltiplas e insuspeitadas, e ela se dá conta de que a vida não passa de um “instante” e de um “jogo”; segundo um hadith, o homem dorme e, quando morre, acorda; mas o gnóstico (‘arif) está sempre desperto, conforme as palavras do Profeta: “Meus olhos dormem, mas meu coração não dorme jamais”. Projetada na absoluta “natureza das coisas”, o homem estará forçosamente consciente daquilo que ele é na realidade; ele se conhecerá, ontologicamente e sem perspectiva deformante, à luz das “proporções” normativas do Universo.
Uma das provas de nossa imortalidade, é que a alma – que é essencialmente inteligência ou consciência – não pode ter um fim que esteja abaixo de si mesma, a saber a matéria, ou os reflexos mentais da matéria; o superior não pode ser simplesmente função do inferior, ele não pode ser apenas um meio em relação àquilo que ele ultrapassa. É portanto a inteligência em si – e com ela nossa liberdade – que prova a envergadura divina de nossa natureza e de nosso destino; se dizemos que ela a “prova” é de um modo incondicional e sem pretender acrescentar nenhuma precaução oratória para agradar aos míopes que imaginam deter o monopólio do “concreto”. Quer compreendamos quer não, somente o Absoluto é “proporcional” à essência de nossa inteligência; somente o Absoluto (El-Ahad, “o Um”) é perfeitamente inteligível, rigorosamente falando, de tal maneira que a inteligência não vê sua própria razão suficiente e sua finalidade senão n’Ele. O intelecto, em sua essência, concebe Deus porque ele próprio “é” increatus et increabilis; e ele concebe ou conhece, por isso mesmo e a fortiori, o significado das contingências; ele conhece o sentido do mundo e o sentido do homem. De fato, a inteligência conhece com a ajuda direta ou indireta da Revelação; esta é a objetivação do Intelecto transcendente e “revela”, em um determinado grau, o conhecimento latente – ou os conhecimentos – que trazemos em nós mesmos. A “fé” (em sentido geral, iman) tem assim dois pólos, um “objetivo” e “externo” e outro “subjetivo” e “interno”; a graça e a intelecção. E nada é mais vão do que elevar em nome do primeiro uma barreira de princípio contra o segundo; a “prova” mais profunda da Revelação – qualquer que seja seu nome – é seu protótipo universal que portamos em nós mesmos, em nossa própria essência.Isto não beneficia em nada o racionalismo nem o “livre pensar”, pois o domínio em que estes se exercem não passa de uma superfície que nada tem a ver com a essência transpessoal da inteligência.
O Corão, como toda Revelação, é uma expressão fulgurante e cristalina daquilo que é “sobrenaturalmente natural” ao homem, a saber a consciência de nossa situação no Universo, de nosso encadeamento ontológico e escatológico. É por isso que o livro de Allah é um “discernimento” (furqan) e uma “advertência” (dhikra), uma “luz” (nur) nas trevas de nosso exílio terrestre.

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Ao “Livro” de Deus une-se a “Prática” (Sunnah) do Profeta; é verdade que o próprio Corão fala da Sunnah de Allah, entendendo por isto os princípios de ação de Deus em relação aos homens, mas a tradição reservou esta palavra aos modos de agir, hábitos e exemplos de Maomé. Esses precedentes constituem a norma, em todos os níveis, da vida muçulmana.
A Suna comporta muitas dimensões: uma física, uma moral, uma social, uma espiritual e outras ainda. Fazem parte da dimensão física as regras de bem-viver que resultam da natureza das coisas: por exemplo, não engajar-se em conversações intensas durante as refeições nem a fortiori falar comendo; limpar a boca após comer ou beber, não comer alho, observar as regras de etiqueta. Fazem igualmente parte desta Suna as regras de vestimenta: cobrir a cabeça, usar um turbante sempre que possível mas não usar seda nem ouro – isto para os homens- deixar os sapatos à porta, e assim por diante. Outras regras exigem que homens e mulheres não se misturem nas assembléias, ou que uma mulher não presida a prece diante de homens; alguns entendem que elas não podem fazê-lo nem diante de outras mulheres e que não podem sequer salmodiar, mas estas são opiniões desmentidas por precedentes tradicionais. Existem enfim gestos islâmicos elementares que todo muçulmano conhece: maneiras de saudar, de agradecer, e assim por diante. Inútil acrescentar que essas regras não sofrem exceção em nenhuma circunstância.
Existe também, e mesmo antes de tudo na hierarquia dos valores, a Suna espiritual, concernente à “lembrança de Deus” (dhikr) e aos princípios da “viagem” (suluk); esta Suna é bastante parcimoniosa naquilo que ela tem de verdadeiramente essencial. Em suma, ela contém todas as tradições que falam da relação entre Deus e o homem; estas relações são separativas ou unitivas, exclusivas ou inclusivas, distintivas ou participativas. Desta Suna espiritual devemos distinguir com rigor um outro domínio, que às vezes parece confundir-se com ela: trata-se da Suna moral, que diz respeito antes de tudo ao domínio extremamente complexo das relações sociais com todas as suas concomitâncias psicológicas e simbolistas. Malgrado algumas coincidências evidentes, esta dimensão não participa do esoterismo no sentido próprio do termo; ela não poderia provir – salvo abuso de linguagem – da perspectiva sapiencial, pois ela é claramente estranha à contemplação das essências e à concentração sobre o Real único. Esta Suna é ao contrário largamente solidária com a perspectiva especificamente devocional ou obediencial, sendo por consequência exotérica, donde seu tom voluntarista e individualista; o fato de que alguns de seus elementos se contradizem indica de resto que o homem pode e deve fazer sua escolha.
Aquilo que o “pobre”, o faqir, reterá dessa Suna, será não tanto os modos de agir como as intenções que lhes são inerentes, ou seja as atitudes espirituais e as virtudes, as quais são extraídas da Fitrhah: da perfeição primordial do homem (a natureza humana corresponde à “idade do ouro”) e daí à natureza normativa (uswah) do Profeta. Todo homem deve possuir a virtude da generosidade, pois esta faz parte da sua natureza teomórfica; mas a generosidade da alma é uma coisa, e o gesto de generosidade característico do mundo beduíno é outra. Pode-se argumentar sem dúvida que todo gesto é um símbolo, e estamos de acordo com isto, mas com duas condições expressas: primeiramente, que o gesto não seja feito de um automatismo convencional, insensível ao eventual absurdo dos resultados; em segundo lugar, que o gesto não veicule nem alimente um sentimentalismo religioso incompatível com a perspectiva do Intelecto e da Essência.
Fundamentalmente, a Suna moral e social é uma adequação direta ou indireta da vontade à norma humana; seu objetivo é o de atualizar, não de limitar, nossa natureza horizontal positiva; mas como ela está endereçada a todos, ela veicula forçosamente elementos limitativos do ponto de vista da perfeição vertical. Esse caráter horizontal e coletivo de uma dada Suna implica por força das coisas que ela seja uma espécie de maya ou de upaya (uma “miragem salvadora”, segundo o Mahayana), o que significa que ela é a um tempo um suporte e um obstáculo e que ela pode mesmo vir a tornar-se uma verdadeira shirk (uma “associação” de uma coisa a Deus), sem dúvida não para o vulgo, mas para o salik, o “viajante” espiritual. A Suna média impede o homem comum de se tornar uma fera e perder sua alma; mas ela também pode impedir o homem elevado de ultrapassar as formas e realizar a Essência. A Suna média pode favorecer a realização vertical, assim como pode reter o homem na dimensão horizontal; ela é ao mesmo tempo um fator de equilíbrio e de peso. Ela favorece a ascensão, mas não a condiciona; ela não contribui para o condicionamento da ascensão senão pelos seus conteúdos intrínsecos e informais que, precisamente, são independentes em princípio das atitudes formais.
Do ponto de vista da Religio Perennis, a questão da Suna implica um problema delicado pelo fato de que a ênfase da Suna média e social é solidária com psiquismo religioso particular, que por sua vez exclui outros psiquismos religiosos igualmente possíveis e forja, como eles, uma mentalidade específica, e –  evidentemente – não essencial à gnose islâmica. Abstração feita a este aspecto das coisas, não devemos perder de vista que o Profeta, como todos os homens, foi obrigado a cumprir uma infinidade de atos durante a sua vida, e que ele forçosamente os cumpriu de um modo e não de outro, e mesmo de diversas maneiras segundo circunstâncias exteriores e interiores; ele sabia bem que servia de modelo global, mas nem sempre ele especificou que um determinado ato teria o alcance de uma prescrição propriamente dita. Por outro lado, o Profeta deu ensinamentos diferentes para homens diferentes, sem ser responsável do fato de os Companheiros – diversamente dotados – transmitirem mais tarde tudo o que haviam visto e ouvido, tendo-o feito às vezes de modo divergente, segundo as observações ou inclinações pessoais. A conclusão que se tira daí é que nem todos os elementos da Suna se impõem da mesma maneira nem com a mesma certeza, e que em muitos casos o ensinamento vem mais da intenção do que da forma.
Seja como for, existe uma verdade fundamental que não devemos perder de vista; é que o plano das ações é em si totalmente humano e que a insistência sobre uma multitude de formas de ação de um estilo forçosamente particular constitui um karma-yoga, uma via de ação absorvente que não tem relação com a via do discernimento metafísico e da concentração sobre o Essencial. Existem na pessoa do Profeta coisas simples e complexas, e entre os homens existem diferentes vocações; o Profeta personifica necessariamente um clima religioso – portanto humano – de caráter particular, mas ele personifica igualmente e sob outro aspecto a Verdade em si e a Via como tal. Existe uma imitação do Profeta fundada sobre a ilusão religiosa de que ele foi intrinsecamente melhor do que todos os outros profetas, inclusive Jesus, e uma outra  imitação do Profeta fundada sobre a qualidade profética em si, ou seja da perfeição do Logos tornado homem; e esta imitação é mais verdadeira, mais profunda e portanto menos formalista que a primeira, ela aponta menos para os atos exteriores do que para os reflexos dos Nomes divinos na alma do Logos humano.
Niffari, que encarna o esoterismo propriamente dito e não um pré-esoterismo voluntarista e ainda largamente exotérico, fornece o seguinte testemunho: “Allah me disse: Formula tua pergunta dizendo-Me: Senhor, como devo unir-me firmemente a Ti, de tal modo que no dia do meu Juízo Tu não me punas nem voltes de mim Tua face? Então Eu (Allah) te responderei dizendo: Agarra-te à Suna na doutrina e na prática exteriores, e em  tua alma interior à Gnose que te dei; e saiba que, quando Eu me dou a conhecer a ti, não quero aceitar de ti nada da Suna, exceto aquilo que Minha Gnose te trouxer, pois tu és um daqueles a quem Eu falo; tu Me ouves e sabes que Me ouves, e vês que Eu sou a fonte de todas as coisas”. O comentarista desta passagem observa que a Suna tem um alcance geral e que ela não faz distinção entre os que buscam a recompensa criada e aqueles que buscam a Essência, e que ela contém aquilo de que cada pessoa necessita. Eis outro dito de Niffari: “E Ele me disse: Minha Revelação exotérica (dharihi) não é Minha Revelação esotérica (batini)”. Ainda outro, de um simbolismo abrupto que é preciso compreender: “As boas ações dos homens piedosos são as más ações dos privilegiados por Allah”. Tudo isso indica claramente a relatividade de certos elementos da Suna e a relatividade do culto da Suna Média.

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A adab – a polidez tradicional – é de fato um setor particularmente problemático da Suna, e isto devido a dois fatores, a saber a interpretação estreita e a convenção cega. A adab pode ser rebaixada tornando-se um formalismo cortado de suas intenções profundas, até o ponto em que as atitudes formais suplantam as virtudes intrínsecas que são sua razão de ser; a adab mal compreendida pode dar lugar à dissimulação, à susceptibilidade, à mentira, ao infantilismo; sob pretexto de que não se deve contradizer um interlocutor nem dizer-lhe algo desagradável, podemos deixá-lo em um erro prejudicial ou omitirmos a comunicação de uma informação necessária, ou infligir por pura amabilidade situações no mínimo indesejáveis, e assim por diante. Seja como for, é importante saber – e compreender – que a adab, mesmo bem entendida, tem limites: assim é que a tradição recomenda cobrir a falta de um irmão muçulmano, se daí não resultarem danos à comunidade, mas ela prescreve que este irmão deve ser repreendido reservadamente, sem consideração com a adab, se existir qualquer chance da reprimenda ser aceita; da mesma forma, a adab não deve impedir de denunciar publicamente as faltas e os erros que podem vir a contaminar outros. No que diz respeito à relatividade da adab, lembremos aqui que o Sheikh Darqawi e outros eventualmente obrigaram seus discípulos a quebrar certas regras, sem entretanto ir contra a Lei, a shari’ah; não se trata, no caso, da via dos Malamatiyah, que procuram a própria humilhação, mas simplesmente do princípio da “ruptura dos hábitos” em vista da “sinceridade” (çidq) e da “pobreza” (faqr) diante de Deus.
No que concerne uma dada Suna em geral, podemos referir a palavra do Sheikh Darqawi, reportada por Ibn Ajibah: “A busca sistemática dos atos meritórios e a multiplicação das práticas sub-rogatórias são hábitos como todos os outros; eles desarrumam o coração. Que o discípulo se atenha a um só dhikr, uma só ação, segundo aquilo que lhe corresponde”.
De um ponto de vista algo diferente, podemos objetar que uma interpretação quintessencial e por conseguinte muito livre da Suna só pode aplicar-se a uns poucos sufis e não aos salikun, os “viajantes”, aqueles que ainda não atingiram o objetivo final. Diremos porém que esta liberdade diz respeito os sufis na medida em que eles ultrapassaram o mundo das formas; mas ela aplica-se igualmente aos salikun na medida em que eles seguem em princípio a via da Gnose e que seu ponto de partida inspira-se necessariamente, por isto, na perspectiva que é conforme a esta via; por força das coisas, eles tem consciência a priori da relatividade das formas, sobretudo de algumas delas, de tal maneira que um formalismo social com subentendidos sentimentais não pode impor-se a eles.
A relatividade de uma dada Suna, a partir de uma perspectiva que não é um karma-yoga nem com mais razão um exoterismo, não invalida a importância que a integridade estética das formas tem para uma civilização, mesmo nos objetos do cotidiano; pois abster-se de um ato simbólico não é um erro em si, enquanto que a presença de uma forma falsa é um erro permanente, como vemos nas igrejas modernas e nos padres em trajes civis; mesma aquele que é subjetivamente independente não pode negar que se trata de um erro, e portanto um elemento contrário, em princípio, à saúde espiritual e aos imponderáveis da barakah. A decadência da arte tradicional caminha em paralelo à perda da espiritualidade.
No amidismo, assim como na japa-yoga – o método encantatório cuja raiz védica é o monossílabo Om – o iniciado deve abandonar todas as demais práticas religiosas e colocar toda a sua fé numa única oração quintessencial; ora, isto exprime, não uma opinião arbitrária, mas um aspecto da natureza das coisas; e este aspecto acha-se reforçado entre os homens que, além desta redução metódica, reportam-se à metafísica pura e total. De resto o conhecimento dos diversos mundos tradicionais, portanto da relatividade das formulações doutrinais ou das perspectivas formais, reforça a necessidade de essencialidade de uma parte e da universalidade de outra; e o essencial e o universal impõem-se tanto mais na medida em que vivemos num mundo de super-saturação filosófica e naufrágio espiritual.
A perspectiva que permite atualizar a consciência da relatividade das formas conceituais e morais sempre existiu no Islam; a passagem corânica sobre Moisés e El-Khidr é testemunho disto, assim como certos ahadith que reduzem a condição da salvação às atitudes mais simples. Essa perspectiva é igualmente a da primordialidade e da universalidade, portanto da Fitrah; é o que exprime Jalal ed-Din Rumi nestes termos: “Eu não sou cristão, nem judeu, nem parsi, nem muçulmano. Eu não sou do Oriente, nem do Ocidente, nem da terra, nem do mar... Meu lugar é aquele que é sem lugar, minhas pegadas não deixam rastro... Eu deixei de lado a dualidade, eu vi que os dois mundos não são senão um; eu procuro o Um, eu conheço o Um, eu vejo o Um, eu invoco o Um. Ele é o Primeiro, o Último, o Exterior, o Interior...”

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III

O PROFETA


Para os ocidentais e sem dúvida para a maior parte dos muçulmanos, Cristo e Buda representam perfeições imediatamente inteligíveis e convincentes, o que reflete aliás o ternário de Vivekanada – “Jesus, Buda, Ramakrishna” – ternário este que, de resto, é inaceitável por múltiplas razões: primeiro, porque da perspectiva hindu é impossível preferir o Buda ou o Cristo a Ramma e Krishna; segundo, porque o Cristo é totalmente estranho à Índia; terceiro, porque, se tomarmos os mundos não-hindus, não há razão para só levar o Cristo em consideração; quarto, porque não há medida comum entre o ribeiro Ramakrishna e os oceanos Shakyamuni e Jesus; quinto, porque Ramakrishna surgiu numa época cíclica que já podia conter uma encarnação plena da envergadura das grandes  revelações; sexto, porque dentro do sistema hindu não há lugar entre o nono e o décimo Avatara de Vishnu – a saber Buda e o futuro Kalki-Avatara – para outra encarnação plena e solar da Divindade. “Um só Profeta – ensina El-Tahawi – é mais excelente do que o conjunto de todos os amigos de Deus (os santos)”.
Mas se Cristo e Buda representam essas perfeições inteligíveis e convincentes, o Profeta do Islam , ao contrário, parece complexo e desigual e praticamente não se impõe como símbolo fora de seu universo tradicional. A razão disto é que, contrariamente ao que aconteceu com Buda e o Cristo, sua realidade espiritual está envolvida em certos véus humanos e terrestres, e isto devido à sua função de legislador “para este mundo”; ele aparenta-se mais aos outros grandes Reveladores semíticos, Abrahão e Moisés, e também a Davi e Salomão; do ponto de vista hindu, podemos acrescentar que ele está próximo de Rama e de Krishna, cuja suprema santidade e poder salvador não impediram todas as sortes de vicissitudes familiares e políticas. Isso nos permite levantar uma distinção fundamental: não existem apenas Reveladores que representam exclusivamente “o outro mundo”, existem também aqueles cuja atitude é ao mesmo tempo divinamente contemplativa e humanamente combativa e construtiva.
Quando tomamos conhecimento da vida de Maomé, segundo as fontes tradicionais, extraímos daí três elementos, que podemos designar provisoriamente pelos seguintes termos: piedade, combatividade, magnanimidade; por “piedade” entendemos uma ligação profunda com Deus, o sentido do além, a absoluta sinceridade, portanto um traço geral entre os santos e a fortiori entre os mensageiros do Céu; nós o mencionamos porque ele aparece na vida do Profeta com uma função especialmente relevante e porque ele prefigura de certo modo o clima espiritual do Islam. Houveram guerras nessa vida e, destacando-se deste fundo violento, uma grandeza de alma sobre-humana; houveram também casamentos, e através deles uma entrada deliberada no mundo terrestre e social – não dizemos: mundano e profano – e ipso facto uma integração do coletivo humano no espiritual, dada a natureza “avatárica” do Profeta. Sobre o plano da “piedade” assinalamos o amor à pobreza, os jejuns e as vigílias; alguns objetarão que o casamento e a poligamia opõem-se à ascese, mas isto é esquecer em primeiro lugar que a vida conjugal não retira da pobreza, do jejum e da vigília seu rigor, nem os torna mais fáceis ou agradáveis e depois que o casamento tinha para o Profeta um caráter espiritualizado ou “tântrico”; vistos de fora, a maior parte dos casamentos do Profeta teve de resto uma dimensão “política” – tendo esta um significado sagrado em conexão com o estabelecimento da terra de um reflexo da “Cidade de Deus” – e enfim, Maomé deu suficientes exemplos de longas abstinências, sobretudo na juventude quando a paixão é mais forte, para estar ao abrigo de julgamentos superficiais. Lembremo-nos de que a proibição de bebidas fermentadas significou um incontestável sacrifício para os antigos árabes e outros povos que foram islamizados, todos conhecedores do vinho, bem como o Ramadan e a prática regular – muitas vezes noturna – das preces; o Islam não se impôs pela sua facilidade.
Uma outra crítica muitas vezes formulada é sobre a crueldade; ora, é antes da implacabilidade que se deve falar, e esta visava não os inimigos como tais, mas apenas os traidores, qualquer que fosse sua origem; se houve aí dureza, foi a própria dureza de Deus, por participação na justiça divina que rejeita e queima. Acusar Maomé de um caráter vingativo equivale não apenas a se enganar gravemente a respeito de seu estado espiritual e a distorcer os fatos, mas também a condenar junto a maior parte dos profetas judeus e a própria Bíblia; na fase decisiva de sua missão terrestre, logo da tomada de Meca, o Enviado de Allah deu provas mesmo de uma mansidão sobre-humana, ao encontro do sentimento unânime de sua armada vitoriosa; dentre as numerosas manifestações de mansidão, citaremos apenas este hadith: “Deus não criou nada que Ele ame mais, do que a emancipação dos escravos, e nada que ele odeie mais do que divórcio”.
No início da carreira do Profeta houve obscuridades dolorosas e incertezas; é que importa mostrar que a missão Maomédiana era um fato, não do gênio humano de Maomé – gênio do qual este jamais duvidou – mas essencialmente da escolha divina; de modo análogo, as aparentes imperfeições, entre os grandes Mensageiros, tem sempre um sentido positivo: por exemplo, a dificuldade de elocução de Moisés significava a interdição divina de divulgar os mistérios, o que implicava uma superabundância de sabedoria. A total ausência de qualquer ambição em Maomé nos leva aqui a um parêntese: nós nos espantamos sempre quando alguém, seguro da pureza de suas intenções, de seus talentos e de seu poder combativo, imagina que Deus deva servir-se dele e aguarda com impaciência e mesmo com decepção e desânimo, o sinal celeste de união ou o milagre; o que se esquece aqui – e isto é estranho da parte dos defensores do espiritual – é que Deus não tem necessidade de ninguém e que Ele não precisa de seus dons naturais e de suas paixões. O Céu não utiliza talentos senão com a condição de que previamente tenham sido destruídos para Deus, ou que o homem não tivesse jamais tido consciência deles; um “instrumento direto” de Deus, ou seja um homem consciente de seu papel a partir do momento em que é escolhido (ao contrário, qualquer um ou qualquer coisa pode ser um “instrumento indireto”), é sempre tirado das cinzas.
Como fizemos mais acima alusão à natureza “avatárica” de Maomé, pode-se objetar que este, de acordo com o Islam e, o que vem a dar no mesmo, de acordo com suas próprias convicções, não era nem poderia ser uma Avatara; mas não é disto que se trata, pois sabemos bem que o Islam não é o Hinduísmo, e que ele exclui, notadamente, qualquer idéia encarnacionista (hulul);  diremos apenas, em linguagem hindu por ser mais direta e adequada, que determinado Aspecto divino tomou em certas circunstâncias cíclicas uma dada forma terrestre, o que está perfeitamente conforme ao testemunho que o Enviado de Allah manifestou sobre sua própria natureza: “Quem me viu, viu a Deus” (El-haqq, “a Verdade”); “Eu sou Ele e Ele é eu, salvo que eu sou quem sou, e Ele é Aquele que Ele é”; “Eu já era Profeta quando Adão ainda se encontrava entre a água e a argila” (antes da criação); “Eu fui encarregado de cumprir minha missão desde o melhor dos séculos de Adão (a origem do mundo), de século em século, até o século em que estou”.
Um dito árabe afirma que “Maomé é um mortal, mas não como os outros mortais; ele é (em relação a eles) como uma jóia entre as pedras. A maior parte dos críticos profanos interpreta erroneamente, como uma negação do dom dos milagres que o Islam atribui a todos os profetas, a resposta que o Profeta deu aos incrédulos que lhe pediram prodígios: “Que sou eu senão um mortal e um Enviado?” (Corão, XVII, 93). Também o Cristo recusou fazer os milagres que o tentador que pediu, abstração feita ao sentido intrínseco de suas respostas. A mencionada frase de Maomé significa em suma, conforme a perspectiva característica do Islam que salienta que toda derrogação das leis naturais se produz “com a permissão de Deus” (bi-idhni-Llah): “Que sou eu fora da Graça de Deus, senão um homem como vós?.” Acrescentemos que a Suna atesta para Maomé um certo número de milagres que, na medida em que consistem em argumentos que “enfraquecem” (mu’jizat) a descrença, distinguem-se dos prodígios dos santos, que são chamados “benfeitorias” (karamat) divinas.
Seja como for, se a atribuição de divindade a um ser histórico repugna ao Islam, isto é devido à sua perspectiva centrada no Absoluto como tal, que está anunciada por exemplo no nivelamento final antes do Julgamento: somente Deus permanece “vivo”, tudo é nivelado na morte universal, incluindo-se aí os maiores Anjos, e portanto também o “Espírito” (Er-Ruh), a manifestação divina no centro do cosmo.
É natural que os que se atém ao exoterismo (fuqaha ou ulama ezh-zhahir, “sábios do exterior”) tenham interesse em negar a autenticidade dos ahadith que se referem à natureza “avatárica” do Profeta, mas o próprio conceito do “Espírito maometano” (Ruh Muhammadi) – trata-se do Logos – prova que esses ahadith tem razão, qualquer que seja seu valor histórico (admitindo-se que este possa ser posto em dúvida). Cada forma tradicional identifica seu fundador com o divino Logos e encara os outros porta-vozes do Céu, na medida em que os tomam em consideração, como projeções deste fundador e como manifestações secundárias do Logos único; para os budistas, Cristo e o Profeta só podem ser Budas. Quando o Cristo diz: “Ninguém chega ao Pai senão por mim”, é o Logos como tal quem fala, embora Jesus realmente se identifique, para um determinado mundo, a este Verbo único e universal.

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O Profeta é a norma humana sob o duplo aspecto das funções individuais e coletivas, ou ainda, das funções espirituais e terrestres.
Ele é, essencialmente, equilíbrio e extinção: equilíbrio do ponto de vista humano, extinção diante de Deus.
O Profeta é o Islam;  se este se apresenta como uma manifestação de verdade, beleza e poder – pois são estes três elementos que inspiram o Islam e que este, por sua natureza, tende a realizar sobre diversos planos – o Profeta encarna a serenidade, a generosidade e a força; poderíamos também enumerar estas virtudes inversamente, segundo a hierarquia ascendente dos valores e nos referindo aos graus da realização espiritual. A força é a afirmação – por necessidade, combativa – da Verdade divina na alma e no mundo; está presente aí a distinção entre as duas guerras santas, a “maior” (akbar) e a “menor” (açghar), ou a interior e a exterior. A generosidade, por sua vez, compensa o aspecto de agressividade da força; ela é caridade me perdão: segundo El-Ghazzali, “o princípio (açl) de todas as boas ações (mahasin) é a generosidade (karam); Deus é “o Generoso” (el-Karim)”.
Estas duas virtudes complementares, a força e a generosidade, culminam – ou se estendem de certa forma – numa terceira virtude, a serenidade, que é a liberação em relação ao mundo e ao ego, a extinção diante de Deus, o conhecimento do Divino e a união a Ele.
Existe uma certa relação – sem dúvida paradoxal – entre a força viril e pureza virginal, no sentido que tanto uma como outra concernem à inviolabilidade do sagrado, a força em modo dinâmico e combativo e a pureza em modo estático e defensivo. Essa inviolabilidade do sagrado é expressa, por exemplo, no “analfabetismo” do Profeta (el-ummi, “o iletrado”): a Ciência divina só pode implantar-se numa terra virgem; da mesma forma, a pureza da Virgem não deixa de ter relação com a espada do Arcanjo que defende a entrada do Paraíso. Podemos dizer também que a força, qualidade “guerreira”, comporta um modo ou complemento estático ou passivo, qualidades “pacíficas” ou “não-agressivas” como a sobriedade, o amor à pobreza e ao jejum, a incorruptibilidade. Da mesma forma, a generosidade, que “dá”, possui um complemento estático, a nobreza, que “é”; melhor dizendo, a nobreza é a realidade intrínseca da generosidade. A nobreza é uma espécie de generosidade contemplativa, é o amor à beleza no sentido mais amplo; situa-se aqui também, no Profeta e no Islam, o esteticismo e o amor à higidez pessoal, pois esta retira das coisas, e do corpo sobretudo, a marca de sua terrenidade e sua decadência e as remete assim, simbolicamente e de certa forma virtualmente, aos seus protótipos imutáveis e incorruptíveis ou às sua essências. Quanto à serenidade, ela também possui um complemento necessário: a sinceridade, que é como que o lado ativo ou distintivo da serenidade; é o amor à verdade e à inteligência, tão característica no Islam; é também a imparcialidade e a justiça. A nobreza compensa o aspecto de estreiteza da sobriedade, e estas duas virtudes complementares culminam na sinceridade, no sentido que elas lhe são subordinadas e que elas desaparecem, ou parecem desaparecer, diante dela. As três virtudes da força, da generosidade e da serenidade – e com elas as três outras virtudes – estão expressas na simples sonoridade das palavras do segundo testemunho de fé (Shahadah): Muhammadum Rasulu’Llah (“Maomé é o enviado de Deus”).
As virtudes do Profeta formam por assim dizer um triângulo: a serenidade-sinceridade forma o cume, e os dois outros pares de virtudes – a generosidade-nobreza e a força-sobriedade – formam a base; os dois ângulos desta estão em equilíbrio e de certa forma reduzem-se à unidade no cume. A alma do Profeta, como dissemos, é essencialmente equilíbrio e extinção. Este ponto revela outra diferença entre o Islam e o Cristianismo: seria falso pretender enumerar as virtudes do Cristo, porque este manifesta a divindade e não a perfeição humana (ao menos de modo expresso e explícito, compreendendo também as funções coletivas do homem terrestre); o Cristo é a divindade, o amor, o sacrifício; a Virgem é a pureza e a misericórdia. De modo análogo, poderíamos caracterizar o Buda por termos como renúncia, extinção, piedade, qualidades ou atitudes que ele encarna de modo particular.

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A imitação do Profeta implica: a força contra si mesmo; a generosidade para com os outros; a serenidade em Deus e para Deus. Poderíamos também dizer: a serenidade pela piedade, no sentido mais profundo do termo.
Essa imitação implica ainda: a sobriedade em relação ao mundo; a nobreza em nós mesmos, em nosso ser; a sinceridade por Deus e n’Ele. Mas não devemos perder de vista que o mundo está também em nós mesmos e que, inversamente, não somos outra coisa que a mesma criação que nos cerca, e enfim, que Deus criou “pela Verdade” (bill-Haqq); o mundo, em suas perfeições e seu equilíbrio, é uma expressão da Verdade divina, ou seja do puro Espírito ou, em linguagem hindu, da pura “Consciência” (Chit) objetivada em Maya através do Ser (Sat).
O aspecto “força” é igualmente, e mesmo antes de tudo, o caráter ativo e afirmativo do meio espiritual ou do método; o aspecto “generosidade” é também o amor à nossa alma imortal; e o aspecto “serenidade”, que a priori consiste em ver tudo em Deus, é também ver Deus em tudo. Podemos ser serenos porque sabemos que “só Deus é”, que o mundo com seus problemas é “não real”, mas podemos sê-lo também por nos darmos conta – admitindo-se a realidade do mundo – de que “tudo foi Deus quem quis”, que a Vontade divina age em tudo, que tudo simboliza Deus sob algum aspecto e que o simbolismo é para Deus um “modo de ser”, se podemos nos exprimir assim. Nada está fora de deus; Deus não está ausente de nada.
A imitação do Profeta é a realização do equilíbrio entre nossas tendências normais, ou mais precisamente entre nossas virtudes complementares, e é acima de tudo e como consequência, sobre a base desta harmonia, a extinção na Unidade. É assim que a base do triângulo é absorvida de certo modo no cume, que aparece como sua síntese ou sua origem, ou como seu fim, sua razão de ser.

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Voltando mais uma vez à nossa descrição, mas formulando-a de modo um pouco diverso, diremos que Maomé é a forma humana orientada para a Essência divina; esta “forma” tem dois aspectos principais, que correspondem respectivamente à base e ao cume do triângulo, a saber a nobreza e a piedade. Ora, a nobreza é feita de força e generosidade, e a piedade – no nível que tratamos – é feita de sabedoria e santidade; acrescentemos que é preciso entender por “piedade” o estado de “servidão espiritual” (‘ubudiyah) no sentido mais elevado do termo, que compreende a perfeita “pobreza” (faqr, donde o nome faqir) e a “extinção” (fana) diante de Deus, o que não deixa de ter relação com o epíteto de “iletrado” (ummi) atribuído ao Profeta. A piedade é aquilo que nos liga a Deus; no Islam, este algo é, antes de mais nada e na medida do possível, a compreensão da Unidade evidente – pois o “responsável” deve empoderar-se desta evidência, e não existe aí linha demarcatória entre “crer” e “saber” – e, em seguida, a realização da Unidade para além de nossa compreensão provisória e  “unilateral”, sendo esta compreensão considerada como uma ignorância em relação à ciência plena; não existe santo (wali, “representante”, e daí: “participante”) que não seja “conhecedor de Deus” (‘arif bil’Llah). E isso explica porque a piedade – e com mais razão a santidade que é sua flor – possui no Islam uma aura de serenidade (que lhe valeu a pecha, por parte de alguns, de “fatalismo” e de “quietismo”; na verdade, estas tendências já estão implicadas no termo islam, “abandono” a Deus); é uma piedade que desemboca essencialmente na contemplação e na gnose.
Ou ainda: para caracterizar o fenômeno maometano, poderíamos dizer que a alma do Profeta é feita de nobreza e serenidade, esta compreendendo a sobriedade e a sinceridade, e aquela a força e a generosidade. A atitude do Profeta em relação à alimentação e o descanso é determinada pela sobriedade; e em relação à mulher, pela generosidade; o objeto real da generosidade é aqui o pólo “substancial” do gênero humano, sendo que este pólo – a mulher – é visto sob seu aspecto de espelho da infinitude beatífica de Deus.
O amor ao Profeta constitui um elemento fundamental na espiritualidade do Islam, embora não se deva entender este amor no sentido de uma bhakti personalista, que pressuporia a divinização exclusiva do herói. Exclusive, porque não vê o Divino senão na forma humana e nunca fora dela, como acontece nos cultos de Rama ou de Krishna. Lembremo-nos a propósito da analogia entre os Avataras hindus e os Profetas judeus: cada qual permanece dentro dos quadros respectivos de suas tradições, com uma única exceção de cada lado – Buda e Cristo. Davi trouxe os Salmos e Salomão o Cântico dos Cânticos, enquanto Rama inspirou o Ramayana e o Mahamarayana (ou Yoga-Vasishtha) e Krishna o Marabharata com o Bhagavad Gita e o Shrimad Bhagavatam.
É por verem no Profeta o protótipo e o modelo das virtudes que formam o teomorfismo do homem e a beleza e o equilíbrio do Universo e que são outras tantas chaves ou vias em direção da Unidade libertadora, que os muçulmanos o amam e o imitam até nos mínimos detalhes da vida cotidiana; o Profeta, assim como o próprio islam, é um esquema celeste pronto para receber o influxo da inteligência e da vontade do crente, e no qual mesmo o esforço se torna uma espécie de repouso sobrenatural.

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“Em verdade, Deus e seus Anjos abençoaram o Profeta; ó vós que credes, abençoai-o e saudai-o!” (Corão, XXXII, 56). Este versículo constitui o fundamento escriturário da “Prece sobre o Profeta”, ou mais exatamente a “Benção do Profeta”, prece que possui um emprego geral no Islam, pois tanto o Corão quanto a Suna a recomendam, mas que se reveste de um caráter especial no contexto do esoterismo, onde ela é como um símbolo basal. O significado esotérico do versículo é o seguinte: Deus, o Céu e a terra – ou o princípio (que é não-manifestado), a manifestação supra-formal (os estados angélicos) e a manifestação formal (que compreende os homens e os djinn, ou seja as duas categorias de seres corruptíveis, donde a necessidade de uma injunção) – conferem (ou transmitem, conforme o caso) graças vitais à Manifestação universal, ou, sob outro ângulo, ao centro desta, que é o Intelecto cósmico, também chamado “Intelecto primeiro” (El-‘Aql el awwal), que é tanto “criado” quanto “incriado” conforme o modo como se o vê. Quem abençoa o Profeta, abençoa implicitamente o mundo e o Espírito universal (Er-Ruh) – o que equivale à prece budista: “Que todos os seres sejam felizes” – , o Universo e o Intelecto, a Totalidade e o Centro, de sorte que estas bênçãos recaem, decuplicadas, de parte de cada uma dessas manifestações do Princípio, ao homem que colocou seu coração na prece. “Aquele que me bendiz – fala o Profeta – Deus o bendirá dez vezes”; Citemos ainda este outro hadith: “Em verdade, o Arcanjo Gabriel veio a mim e disse: Ó Maomé, ninguém da tua comunidade te bendiz sem que eu o bendiga dez vezes, e ninguém te saúda sem que eu o saúde dez vezes”. Segundo um outro hadith, de cada prece do Profeta Deus criou um anjo, o que é cheio de sentido do ponto de vista da economia das energias espirituais e cósmicas. É preciso lembrar aqui as categorias védicas formuladas por René Guénon: manifestação grosseira ou “material” e manifestação sutil ou “anímica”, constituindo este conjunto a manifestação formal; depois a manifestação informal (supraformal) ou “angélica” que, junto com a manifestação formal constitui a manifestação propriamente dita; enfim, a não-manifestação que é o Princípio e que compreende o Ser e o Não-Ser (Sobre-Ser); a base destas categorias é a distinção inicial ente Princípio e manifestação. E, já que mencionamos acima os homens e os djinn, acrescentemos que estes são os dois “pesos” ou “espécies pesadas” (eth-thaqalan) de que fala o Corão (Surata do Misericordioso, 31); os homens foram criados da argila (tin), ou seja, da matéria, e os djinn do fogo, de substância imaterial ou anímica, “sutil” (sukshma) como diriam os hindus; já os Anjos foram criados de luz (nur), de substância informal; suas diferenças são comparáveis às que existem entre as cores, os sons ou os perfumes, não entre as formas, que são petrificações.
Os termos da “Prece sobre o Profeta” são em geral os seguintes, embora existam múltiplas variações e desenvolvimentos: “Oh (meu) Deus (Allahumma), abençoe nosso Senhor Maomé, teu Servidor (‘Abd) e teu Enviado (rasul), o Profeta iletrado (En-Nabi el-ummi), sua família e seus companheiros, e saúda-os”. As palavras “saudar” (sallam)  e “saudação”  (taslim) ou “paz” (salam), significam, da parte do crente, uma homenagem reverencial (o Corão diz: “Apresentai a ele a saudação!”), e portanto uma atitude pessoal, enquanto que a bênção faz intervir a Divindade, que é que abençoa; da parte de Deus, a “saudação” é um “olhar” ou uma “palavra”, ou seja um elemento de graça, não “central” como no caso da bênção (çalat: çalla’ala, “rezar sobre”), mas “periférica”, vale dizer referida ao indivíduo e à vida, não ao intelecto e à gnose. É por isso que o Nome de Maomé é seguido da “bênção” e da “saudação”, e os nomes dos outros “Enviados” e os Anjos apenas da “saudação”; do ponto de vista do Islam, é Maomé que encarna de forma “atualizada” e “definitiva” a Revelação, e esta corresponde à “bênção”, não á “saudação”; no mesmo sentido mais ou menos exotérico, podemos frisar que a “bênção” refere-se à inspiração profética e ao caráter “relativamente único” e “central” do Avatara considerado, enquanto que a “saudação” refere-se à perfeição humana, cósmica, existencial, de todos os Avataras, ou ainda à perfeição dos Anjos; a exceção é Er-Ruh, o Espírito, devido à sua posição central dentre os Anjos, que lhe confere a função profética por excelência; o Corão menciona-o em separado dos Anjos, e diz-se que ele não teve que prosternar-se, como estes, diante de Adão; dentro da lógica muçulmana, ele mereceria, como o Profeta, a benção e a saudação; o Arcanjo Gabriel personifica uma função do Espírito, a saber o raio celeste que atinge os Profetas terrestres.
A “bênção” é uma qualidade transcendente, ativa e “vertical”, enquanto que a “saudação” é uma qualidade imanente, passiva e “horizontal”; ou ainda, a “saudação” concerne ao “exterior”, o “suporte”, enquanto que a “bênção” concerne ao “interior”, o “conteúdo”, quer se trate de atos divinos ou de atitudes humanas. Está aí toda a diferença entre o “sobrenatural” e o “natural”: a “bênção” significa a presença divina na medida em que esta é um influxo incessante, aquilo que no microcosmo – o Intelecto – torna-se a intuição ou a inspiração e, no Profeta, a Revelação; ao contrário, a “paz” ou a “saudação” significa a presença divina na medida em que ela é inerente ao cosmo, aquilo que no microcosmo torna-se a inteligência, a virtude, a sabedoria; ela provém do equilíbrio existencial, da economia cósmica. É verdade que a inspiração intelectiva – ou a ciência infundida – é igualmente “sobrenatural”, mas ela o é, por assim dizer, de um modo “natural”, no contexto e segundo as possibilidades da “Natureza”.
Segundo o Sheikh Ahmed El-Allaoui, o ato divino (tajalli) expresso pela palavra çalli (“abençoar”) e como o raio, pela instantaneidade, e comporta a extinção, num grau ou noutro, do receptáculo humano sobre o qual ele incide, enquanto que o ato divino expresso pela palavra sallim (“saudar”) reparte a presença divina dentro das modalidades do próprio indivíduo; é por isso, diz o Sheikh, que o faqir deve sempre pedir salam (a “paz”, que corresponde à “saudação” divina) – e ele o faz, precisamente, através da “Prece sobre o Profeta” – para que as revelações e intuições não de apaguem como o brilho do relâmpago, mas se fixem em sua alma.
No versículo corânico que institui a bênção maometana, é dito que “Deus e seus Anjos bendizem o Profeta”, mas a “saudação” só é mencionada no final do versículo, quando se trata dos crentes; a razão disto é que a taslim (ou salam) está subentendida aqui, o que significa que ela é no fundo um elemento da çalat e que ela só se dissocia dela  a posteriori em função das contingências do mundo.

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A intenção iniciática da “Prece sobre o Profeta” é a aspiração do homem em direção à sua totalidade. A totalidade é aquilo de que somos uma parte; ora, nós somos um parte, não de Deus, que é sem partes, mas da Criação, cujo conjunto é o protótipo e a norma do nosso ser, e cujo centro, Er-Ruh, é a raiz de nossa inteligência; esta raiz veicula o “Intelecto incriado” (increatus et increabilis, segundo Maitre Eckhart) e ela identifica-se com ele, também, conforme a perspectiva da unidade da essência. A totalidade é perfeição; a parte como tal é imperfeita, porque ela manifesta uma ruptura do equilíbrio existencial, portanto da totalidade. Diante de Deus nós somos “nada” ou “tudo”, segundo o modo de ver – “nada” do ponto de vista comum e “separativo” e “tudo” do ponto de vista “unitivo”, o ponto de vista da “unicidade do Real” (wadhat El-Wujud) -, mas jamais somos parte; em compensação nós somos parte em relação ao Universo, que é o arquétipo, a norma., o equilíbrio, a perfeição; ele é o “Homem Universal” (El-Insan el-kamil, conforme Abd El-Karim El-Jili), cuja manifestação humana é o Profeta, o Logos, o Avatara. O Profeta – sempre no sentido esotérico e universal do termo – é assim a totalidade da qual somos um fragmento; mas esta totalidade manifesta-se também em nós mesmos, e de um modo direto: é o centro intelectual, o “Olho do Coração”, sede do “Incriado”, ponto celeste ou divino do qual o ego constitui a periferia microcósmica, assim como o lótus sobre o qual repousa Buda é ao mesmo tempo o Universo manifestado e o coração do homem, cada qual visto como um suporte para o Nirvana; da mesma forma, a Santa Virgem é simultaneamente a pura Substância universal (Prakriti), matriz do Espírito divino manifestado e também de todas as criaturas sob o aspecto do seu teomorfismo, e a substância primordial do homem, sua pureza original, seu coração na medida em que este é o suporte do Verbo libertador;  somos, portanto, “periferia” em relação ao Intelecto (Er-Ruh) e “parte” em relação à Criação (El-Khalq). O Avatara representa estes dois pólos simultaneamente: ele é nossa totalidade e nosso centro, nossa existência e nosso conhecimento; a “Prece sobre o Profeta” – como toda fórmula análoga – terá, por conseguinte, não apenas o sentido de uma aspiração em direção à nossa totalidade existencial, mas também, e por isso mesmo, o sentido de uma “atualização” do nosso centro intelectual, sendo aliás estes dois pontos de vista inseparavelmente ligados; nosso movimento em direção à totalidade – e cuja expressão mais elementar é a caridade, ou seja a abolição da cisão ilusória e passional entre o “eu” e o “outro” – nosso movimento, dizemos, purifica ao mesmo tempo o coração, ou, dito de outra maneira, libera o intelecto dos entraves que se opõem à contemplação unitiva.
Na bênção maometana – a “Prece sobre o Profeta” – os epítetos do Profeta aplicam-se igualmente – ou antes, a fortiori – à Totalidade e ao Centro, de quê Maomé é a expressão humana, ou “uma expressão”, se levarmos em conta a humanidade de todos os tempos e lugares. O próprio nome Maomé significa “o Glorificado” e indica a perfeição da Criação, que é atestada também pela Gênese: “E Deus viu que isto era bom”; por outro lado, as palavras “nosso Senhor” (Seyyduna) que precedem o nome de Maomé, indica a qualidade primordial e normativa do Cosmos em relação a nós.
O epíteto que segue o nome de Maomé na “Prece sobre o Profeta” é “teu servidor” (‘abduka): o Macrocosmo é “servidor” de Deus, porque a manifestação está subordinada ao Princípio, ou o efeito à Causa; a Criação é “Senhor” em relação ao homem, e “Servidor” em relação ao Criador. O Profeta – como a Criação – é então essencialmente um “istmo” (barzakh), uma “linha demarcatória” e ao mesmo tempo um “ponto de contato” entre dois graus de realidade.
Vem a seguir o epíteto “teu Enviado” (rasulika): este atributo diz respeito ao Universo na medida em que este transmite as possibilidades do Ser às suas próprias partes – aos microcosmos – por meio dos fenômenos ou símbolos da natureza; estes símbolos são os “sinais” (ayat) de que fala o Corão, as provas de Deus que o Livro sagrado recomenda à meditação “daqueles que são dotados de entendimento”; lembremo-nos que o termo “sinal”, quando não se trata de fenômenos deste mundo, aplica-se aos versículos do Corão, o que mostra bem a analogia entre a Natureza e a Revelação; é assim, aliás, plausível que uma tradição possa fundamentar-se inteiramente sobre este simbolismo, como é o caso do Shintô e da tradição do “cachimbo sagrado” ou “cachimbo da paz” dos povos indígenas da América do Norte. As possibilidades manifestadas pelos sinais transcrevem, no mundo “exterior”, as “verdades principiais” (haqa’iq), como as intuições intelectuais e os conceitos metafísicos as transcrevem para o sujeito humano; o Intelecto, como o Universo, é “Enviado”, “Servidor”, “Glorificado” e “nosso Senhor”.
A “Prece sobre o Profeta” comporta às vezes os dois atributos seguintes: “teu Profeta” (Nabiyuka) e “teu Amigo” (Habibuka): este último qualificativo exprime a intimidade, a proximidade generosa – não a oposição – entre a manifestação e o Princípio; quanto à palavra “Profeta” (Nabi), ela indica uma “mensagem particular”, não a “mensagem universal” do Enviado (Rasul): trata-se, no mundo, do conjunto das determinações cósmicas – incluindo as leis naturais – que concernem ao homem; e, em nós mesmos, é a consciência dos nossos fins últimos, com tudo aquilo que ela implica para nós. Note-se que o Nabi não é tal porque recebe e transmite uma mensagem em particular, ou seja limitada pelas circunstâncias, mas porque possui o nubuwwah, o mandato profético; todo Rasul é Nabi, mas nem todo Nabi é Rasul, assim como toda águia é um pássaro, mas nem todo pássaro é uma águia. O sentido de “mensagem particular” se impõe, não porque o homem seja Nabi, mas pelo fato de sê-lo sem ser Rasul; é, portanto, enquanto Nabi, e não enquanto Rasul, que Maomé é “iletrado”, assim como, no nosso exemplo, é por ser pássaro que uma águia pode voar, e não por ser águia.
Quanto ao epíteto seguinte, “o Profeta iletrado” (En-Nabi el-ummi), ele exprime a “virgindade” do receptáculo, seja ele universal ou humano; nada o determina quanto à inspiração, salvo Deus; ele é uma folha em branco diante do Cálamo divino; ninguém senão Deus preenche a Criação, o Intelecto, o Avatara.
A “bênção” e a “saudação” aplicam-se não somente ao Profeta, mas também à “sua família e seus companheiros” (‘ala alihi wa-çahbihi), vale dizer, dentro da ordem macrocósmica, ao Céu e à Terra, ou às manifestações informal e formal, e, dentro da ordem microcósmica, à alma e ao corpo, sendo o Profeta no primeiro caso o Espírito divino (Er-Ruh), e no segundo o Intelecto (El-Aql) ou o “Olho do Coração” (‘Ain el-Qalb); o Intelecto e o Espírito coincidem em sua essência, no sentido de que o primeiro é como um raio do segundo. O Intelecto é o “Espírito” no homem; e o “Espírito divino” não é outro que o Intelecto Universal.
Os epítetos do Profeta marcam as virtudes espirituais, das quais as mais importantes são: a “pobreza” (faqr, qualidade do ‘Abd, no sentido de que o servidor não tem nada que lhe pertença), em seguida a “generosidade” (karam, qualidade do Rasul, que é de fato uma “misericórdia” – rahmah -, a encarnação da caridade) e finalmente a “veracidade” ou “sinceridade” (çidq, ikhlaç, qualidade do Nabi el-ummi, porque a veracidade é inseparável da virgindade do espírito, no sentido de que este deve ser livre de quaisquer artifícios, preconceitos e interferências passionais). A “pobreza” é a concentração espiritual, ou antes seu aspecto negativo e estático, a não-gastança e por conseguinte a “humildade”, no sentido de “cessação do fogo das paixões” (Tirmidhi); a “generosidade” é vizinha da “nobreza” (sharaf); é a abolição do egoísmo, que implica o “amor ao próximo” no sentido de que a distinção passional entre “eu” e o “outro” é ultrapassada; enfim, a “veracidade” é a qualidade contemplativa da inteligência e, sobre o plano racional, a lógica ou a imparcialidade, em uma palavra, o “amor à verdade”.
Do ponto de vista iniciático, a “Prece sobre o Profeta” refere-se ao “estado intermediário”, ou seja à “expansão” que se segue à “purificação” e precede a “união”; e está aí o sentido profundo deste hadith: “Ninguém encontrará Deus se não encontrar antes o Profeta”; é o mesmo sentido da passagem evangélica: “Ninguém chegará ao Pai, se não for por mim”, apenas com a diferença de “ênfase” que distingue a perspectiva cristã do sufismo.
A “Prece sobre o Profeta” é comparável a uma roda: a o pedido de bênção é o eixo; o Profeta é o cubo; sua Família são os raios; seus Companheiros constituem o rolamento.
Segundo a interpretação mais larga desta oração, o pedido de bênção corresponde a Deus; o nome do Profeta, ao Espírito universal (Er-Ruh, contendo os quatro Anjos; no plano terrestre e no cosmos muçulmano, trata-se do Profeta e dos quatro califas); a Família corresponde aos seres que participam de Deus – pelo Espírito – de um modo direto; os Companheiros, aos seres que participam indiretamente de Deus, mas ainda graças ao Espírito. Este limite extremo pode ser definido de diferentes maneiras, conforme se pense no mundo muçulmano ou na humanidade inteira, ou em todas as criaturas terrestres, ou mesmo ao Universo total. O simbolismo da “Prece sobre o Profeta” corresponde de modo bastante exato ao do moinho de oração em relação à prece lamaísta: uma prece, inscrita num pedaço de papel, abençoa o universo pela rotação.
A vontade individual, que é ao mesmo tempo egoísta e dispersiva, deve converter-se à Vontade universal, que é “concêntrica” e que transcende o humano terrestre.

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O Profeta é, enquanto princípio espiritual, não somente a Totalidade da qual somos fragmentos ou partes separadas, mas também a Origem em relação à qual somos os desvios (no mesmo sentido, aliás, São Bernardo diz que o ego é “algo de condenável” e Maitre Eckhart manda “odiar sua alma”); isso equivale a dizer que o Profeta, enquanto Norma, é não apenas o “Homem Universal” (el-Insan el-Kamil), mas também o “Homem Primordial” (el-Insan el-Qadim). Existe aí uma espécie de combinação de um simbolismo espacial com um simbolismo temporal: realizar o “Homem Universal” é em suma sair de si mesmo, projetar sua vontade num “outro” absoluto, difundir-se na vida universal que é a de todos os seres; e realizar o “Homem Primordial” equivale a retornar à origem que trazemos em nós mesmos; é retornar à infância eterna, repousar em nosso arquétipo, nossa forma primordial e normativa, ou em nossa substância teomórfica. Segundo o simbolismo espacial, a via para a realização do “Homem Universal” é a altura, a vertical ascendente que mergulha na infinitude do Céu; e segundo o simbolismo temporal, a via em direção ao “Homem Primordial” é o passado no sentido quase absoluto, a origem divina e eterna – o que explica o sentido da tradição como tal, e também, em particular, o culto dos ancestrais. A “Prece sobre o Profeta” refere-se ao simbolismo espacial através do epíteto Rasul, “Enviado” – mas aqui a dimensão é descrita em sentido descendente – e ao simbolismo temporal através do epíteto Nabi el-ummi, o “Profeta iletrado”, que claramente se refere à origem.
O “Homem Primordial” refere-se assim mais particularmente ao Intelecto, à perfeição da “consciência”, e o “Homem Universal” À Existência, à perfeição do “ser”; mas ao mesmo tempo, sobre o plano do simbolismo espacial, o centro refere-se ainda ao Intelecto, enquanto que no plano do simbolismo temporal a duração representa a Existência, pois ela se estende indefinidamente. Podemos estabelecer uma relação entre a origem e o centro de um lado e entre a duração e a totalidade – ou a ilimitação - de outro; poderíamos mesmo dizer que a origem, intangível em si, situa-se para nós no centro, e que a duração, que nos escapa, coincide para nós com a totalidade. Da mesma forma, partindo da idéia de que o “Homem Universal” concerne mais especificamente ao macrocosmo e o “Homem Primordial” ao microcosmo, podemos dizer que, em sua totalidade, o mundo provém da Existência, enquanto que na sua origem, o microcosmo humano provém da Inteligência, de certo modo ao menos, pois nós não ultrapassamos o domínio do criado e das contingências.
Sobre o plano do “Homem Universal” podemos distinguir duas dimensões, o “Céu” e a “Terra”, ou a “altura” (tul) e a “largura” (‘ardh): a “altura” une o Céu à terra, e este lugar corresponde ao aspecto Rasul (“Enviado”, portanto Revelador) do Profeta, enquanto que a terra é o aspecto ‘Abd (“Servidor”). Estas são as duas dimensões da caridade: amor a Deus e amor ao próximo em Deus.
Sobre o plano do “Homem Primordial” não se distinguem estas duas dimensões, pois, na origem, o Céu e a Terra são o mesmo; este plano, como vimos, corresponde ao do “Profeta iletrado”. Sua virtude é a humildade ou a pobreza: sermos apenas aquilo que Deus nos fez, sem pretender acrescentar nada; a virtude pura é apofática (o positivismo das coisas considera como negativo tudo o que é não-coisa; para a filosofia negativa ou apofática, ao contrário, é esta misteriosa não-coisa que é a positividade por excelência, a inefável positividade).
Resumiremos esta doutrina nos seguintes termos: a natureza do Profeta comporta duas perfeições de totalidade (cf. Corão, II, 33-34: “Deus disse: Ó Adão! Faze-os conhecer seus nomes!” e “Então dissemos aos anjos: Prosternai-vos diante de Adão!”) e de origem (cf. Corão, XCV, 4: Nós criamos o homem sob a forma mais bela.”): Maomé encarna a totalidade teomórfica e harmoniosa – duas qualidades essenciais: a criação é “boa” porque feita à imagem de Deus e porque ela compensa os desequilíbrios, ontologicamente necessários, pelo equilíbrio total que os transmuta indiretamente em fatores de perfeição – da qual somos fragmentos, e a origem em relação a que nós somos estados de decadência, sempre enquanto indivíduos. Para o sufi, seguir o Profeta é estender a alma à vida de todos os seres, “servir a Deus” (‘ibadah) e “orar” (dhakara) com todos e por todos (cf. Corão, XVII, 44: “Os sete Céus, a terra e todos os que aí se encontram O louvam; nada há que não erga sua louvação, mas você não compreende seu canto...”); mas é também reduzir a alma à “lembrança divina” (dhikru’Llah) da alma única e primordial (cf. Corão, II, 25: “E cada vez que eles receberem um fruto no Paraíso eles dirão: eis aquilo que havíamos recebido anteriormente...”); é, em última análise e através dos pólos considerados – totalidade e origem, plenitude e simplicidade – realizar simultaneamente o “infinitamente Outro” e o “absolutamente Si”.
O sufi, a exemplo do Profeta, não pretende nem “ser Deus” nem ser “outro que Deus”; e isto não deixa de ter relação com tudo o que enunciamos, assim como com a distinção entre “extinção” (fana) e “permanência” (baqa). Não existe a extinção em Deus sem a caridade universal, e não existe permanência n’Ele sem esta suprema pobreza que é a submissão à origem. O Profeta representa, como vimos, a universalidade e a primordialidade, assim como o Islam, segundo sua intenção profunda, é “aquilo que está em toda parte” e “aquilo que sempre foi”.

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Todas essas considerações permitem compreender até que ponto o modo islâmico de encarar o Profeta difere do culto cristão ou budista ao Homem-Deus. A sublimação do Profeta se faz, não a partir de uma divindade terrestre, mas através de uma espécie de mitologia metafísica: Maomé é, seja homem entre os homens – não dizemos “homem comum” -, seja idéia platônica, símbolo cósmico e espiritual, Logos insondável, mas jamais Deus encarnado. Sem Maomé, diz-se, o mundo não teria sido criado; ele é assim o Logos, não enquanto homem, mas em sua “realidade interior” (haqiqah) e enquanto “Luz maometana” (Nur-muhammadi). Diz-se também que as virtudes do Profeta são criadas porque ele é humano, mas que elas são “no entanto eternas enquanto qualidades d’Aquele que tem a eternidade como atributo” (Sheikh El-Buçiri, El-Burdah); da mesma forma, o Profeta recebe o nome de Haqq (“Verdade”), enquanto que El-Haqq (“a Verdade”) é um Nome divino. A haqiqah de Maomé é descrita como um mistério; ela é tanto escondida como é ofuscante, e só pode ser interpretada de longe.
O Profeta é antes de tudo uma síntese que combina a “pequenez” humana com o mistério divino. Este aspecto de síntese, ou de conciliação dos opostos, é característico do Islam e resulta expressamente de seu papel de “última Revelação”: se o Profeta é o “selo das profecias” (khatam en-nubuwwah) ou “dos Enviados” (el-mursalin), isto implica que ele apareça como uma síntese de tudo o que veio antes dele; daí seu aspecto de “nivelamento”, este algo de “anônimo” e de “não-nominável” que aparece igualmente no Corão – no dizer de Aishah a “esposa preferida”, o Corão reflete ou prefigura a alma do Enviado de Allah. Aqueles que, referindo-se ao exemplo de Jesus, acham Maomé demasiadamente humano para poder ser o porta-voz de Deus, não diferem daqueles que, referindo-se à espiritualidade direta do Bhagavad-Gita ou do Prajna-Paramita-Hridaya-Sutra, consideram a Bíblia “muito humana” para se arvorar em Palavra divina.
A virtude – reivindicada pelo Corão – de ser a última Revelação e a síntese do ciclo profético, manifesta-se não apenas na simplicidade exterior de um dogma interiormente aberto a todas as profundidades, mas também nesta capacidade do Islam de integrar todos os homens em seu centro, de conferir a todos uma mesma fé inquebrantável e se preciso combativa, de faze-los participar, ao menos virtualmente – mas com toda a eficácia – da natureza meio celeste meio terrestre do Profeta.

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 IV
 A VIA


Não é nossa intenção aqui tratar do sufismo em particular e de modo exaustivo – outros já o fizeram, com maior ou menor felicidade – mas de encarar a “via” (tariqah) sob seus aspectos gerais ou em sua realidade universal; assim sendo, nem sempre empregaremos a linguagem típica do Islam. Vista por este ângulo bastante geral, a “via” se apresenta antes de tudo como a polaridade “doutrina” e “método”, ou como a verdade metafísica acompanhada da concentração contemplativa; tudo pode ser resumido em suma a dois elementos: intelecção e concentração ou discernimento e união. A verdade metafísica é para nós, que vivemos na relatividade por existirmos e pensarmos, a priori o discernimento entre o Real e o irreal, ou o “menos real”; e a concentração, ou o ato operativo do espírito – a oração no sentido mais vasto – é de certa forma nossa resposta à verdade que se oferece a nós; é a Revelação que penetra em nossa consciência para ser assimilada, em um grau ou noutro, pelo nosso ser.
Para o Islam, ou mais precisamente para o sufismo que é sua medula, a doutrina metafísica consiste em que “não há realidade fora da Realidade única” e em que, na medida em que somos obrigados a levar em conta a existência do mundo e de nós mesmos, “o cosmo é a manifestação da Realidade”; numa perspectiva védica, dir-se-ia que “o mundo é falso, Brahma é verdadeiro”, mas que “todas as coisas são Atma”; todas as verdades escatológicas estão contidas nesta segunda asserção. É em virtude dessa segunda verdade que somos salvos; segundo a primeira, nós sequer “somos”, embora “existamos” na ordem das reverberações da contingência. É como se fôssemos salvos a priori por não sermos e porque “somente a face de Deus subsistirá”.
A distinção entre o Real e o irreal coincide num sentido com aquela entre a Substância e os acidentes; esta relação Substância-acidentes torna facilmente inteligível o caráter “menos real” – ou “irreal” – do mundo, e mostra, a quem for capaz de captar, a inanidade do erro que atribui a absolutividade aos fenômenos. O sentido corrente de “substância” indica de resto que existem substâncias intermediárias, “acidentais” em relação à Substância pura, mas que nem por isso deixam de assumir o papel de substâncias em relação aos seus próprios acidentes: são, no sentido ascendente, a matéria, o éter, a substância anímica, a substância supraformal e macrocósmica – “angélica”, se quisermos – depois a Substância universal e metacósmica que é um dos pólos do Ser, ou sua “dimensão horizontal”, seu aspecto feminino. O Ser é o “Absoluto relativo”, ou Deus na medida em que é “relativamente absoluto”, ou seja na medida em que cria. O puro Absoluto não cria; se quiséssemos fazer intervir aqui as noções de “substância” e de “acidentes”, seria preciso pensar nas qualidades divinas essenciais que surgem do Não-Ser ou do Si e se cristalizam no Ser, mas esta aplicação não seria muito adequada. O erro metafísico dos asuras foi o de tomar os acidentes pela “realidade” e de negar a Substância, qualificando-a de “irreal” ou “abstrata”.
Ver a irrealidade – ou a realidade menor, ou a realidade relativa – do mundo, é ver por isso mesmo o simbolismo dos fenômenos; saber que apenas a “Substância das substâncias” é absolutamente real – que só ela é real, rigorosamente falando – equivale a ver a Substância em todos os acidentes e através deles; graças a este conhecimento inicial da Realidade, o mundo se torna metafisicamente “transparente”. Quando se diz que o Bodhisattva observa o espaço e não os conteúdos, ou que ele vê a estes como o próprio espaço, isto significa que ele só vê a Substância, que em relação ao mundo aparece como um “vazio”, ou ao contrário, que o mundo lhe aparece como um “vazio” em função da Plenitude existencial; existem aí dois “vazios” – ou duas “plenitudes” – que se excluem mutuamente, assim como numa ampulheta os dois compartimentos não podem estar a um só tempo ambos vazios ou cheios.
Quando se compreende que a relação entre a água e suas gotas retrata a relação entre a Substância e os acidentes (que são os conteúdos do mundo), o caráter “ilusório” dos acidentes já não causa dúvida nem apresenta nenhuma dificuldade; quando se diz, no Islam, que as criaturas provam (a existência de) Deus, isto significa que a natureza dos fenômenos é a dos “acidentes”, que por conseguinte eles manifestam a Substancia última. A comparação com a água tem o defeito de não poder levar em conta a transcendência da Substância; mas a matéria não poderia fornecer imagem mais adequada do momento em que a transcendência é estampada, nos reflexos, na medida em que o plano considerado provém da acidentalidade.
Existe descontinuidade entre os acidentes e a Substância, embora haja uma continuidade muito sutil entre esta e aqueles,  na medida em que, sendo a Substância a única realidade, os acidentes são forçosamente aspectos seus; mas neste caso nós os consideramos em função de sua causa e sob nenhum outro aspecto, e assim a irreversibilidade permanece; dito de outra forma, o acidente reduz-se assim à Substância; enquanto acidente, ele é a Substância “exteriorizada”, aquela a que corresponde aliás o Nome divino “o Exterior” (Ezh-Zhahir). Todos os erros sobre o mundo e sobre Deus residem, seja na negação “naturalista” da descontinuidade, portanto da transcendência – enquanto que seria sobre esta que se deveria edificar toda a ciência –, seja na incompreensão da continuidade metafísica e “descendente”, a qual não elimina em nada a descontinuidade a partir do relativo. “Brahma não está no mundo”, mas “todas as coisas são Atma”; “Brahma é verdadeiro, o mundo é falso”; e: “Ele (o liberto, mukta) é Brahma”. Toda a gnose está contida nestes enunciados, assim como está contida na Shahadah ou nos dois Testemunhos, ou ainda nos mistérios crísticos da Trindade, da Encarnação e da Redenção (trata-se da Trindade supra-ontológica e gnóstica, concebida, seja em sentido vertical, na hierarquia das hipóstases – Não-Ser, Ser, Existência; Paramatma, Ishvara, Buddhi –seja, em sentido horizontal, nos aspectos ou modos intrínsecos da Essência – Realidade, Sabedoria, beatitude; Sat, Chit, Ananda). E esta noção é crucial: a verdade metafísica, com tudo o que ela comporta, está na própria substância da inteligência; negar ou limitar a verdade equivale sempre a negar ou limitar o intelecto; conhecê-lo é conhecer seu conteúdo consubstancial e por conseguinte a natureza das coisas, e é por isso que se diz: “Conhece-te a ti mesmo” (gnose grega), ou: “O Reino de Deus está dentro de vós” (Evangelho), ou ainda: “Quem conhece a si mesmo, conhece o seu Senhor” (Islam).
A Revelação é uma objetivação do Intelecto, e é por isso que ela tem o poder de atualizar a inteligência, que está obscurecida – mas não abolida – pela queda; este obscurecimento pode não ser mais do que acidental, não forçoso, e neste caso a inteligência é chamada, em princípio, para a gnose. A propósito de gnose, lembramos que a existência de uma gnose cristã significa que existe um Cristianismo que, centrado no Cristo-Intelecto, define o homem a priori como inteligência e não como vontade decaída ou como simples paixão; se a verdade total está na própria substância da inteligência, esta será, para a gnose cristã, o Cristo imanente, “Luz do mundo”; ver a substância divina em tudo, ou seja, ver em cada coisa uma objetivação – e em certos graus uma refração – da Inteligência, é realizar que “Deus se fez homem”, sem que isto diminua em nada o sentido literal do dogma.
Se a crença elementar não pode atingir consciente e explicitamente a verdade total, é porque também ela limita a seu modo a inteligência; ela se alia, forçosa e paradoxalmente, a um certo racionalismo – o vishnuismo apresenta o mesmo fenômeno que o Ocidente – sem no entanto perder-se nele, a menos de uma torção da própria fé. O cartesianismo, que é talvez a maneira mais inteligente de ser ininteligente é o exemplo clássico de uma fé tornada a imitação dos tateamentos da razão; trata-se da sabedoria “de baixo para cima”, e a história mostra que ela é mortal; toda a filosofia moderna, incluindo a ciência, parte de uma falsa concepção da inteligência: o culto à vida, por exemplo, peca no sentido de que ela procura a explicação e o fim do homem abaixo deste, em algo que não tem como definir a criatura humana; mas, de modo mais genérico, todo racionalismo – direto ou indireto – é falso pelo fato de que ele limita a inteligência à razão, ou a intelecção à lógica, portanto a causa ao efeito. Uma perspectiva que empresta um caráter absoluto a situações relativas, como o faz o exoterismo semítico,  não pode ser intelectualmente completa; mas quem diz exoterismo diz necessariamente esoterismo, o que significa que os enunciados do primeiro são os símbolos do segundo.
O exoterismo transmite da verdade metafísica – que é a mesma que a verdade total – alguns aspectos ou fragmentos, quer se trate de Deus, do universo ou do homem: ele vê no homem antes de mais nada um indivíduo passional e social e, no universo, ele só distingue o que concerne a este indivíduo; em Deus, ele quase que só vê o que interessa ao mundo, a criação, o homem,  a salvação. Por causa desta perspectiva, insistimos, o exoterismo não leva em consideração nem o Intelecto puro, que ultrapassa o humano e desemboca no divino, nem os ciclos cósmicos pré e pós-humanos, nem o Não-Ser, que está além de toda relatividade, portanto de toda distintividade; uma tal perspectiva faz pensar num óculo numa parede, que pode dar ao céu uma forma redonda, quadrada ou qualquer outra: a visão é fragmentária, o que não impede o céu de encher o quarto de luz e vida. O perigo do “voluntarismo” religioso, é que ele está muito próximo de exigir que a fé comporte um máximo de vontade e um mínimo de inteligência,  reprovando nesta, seja diminuir por sua própria natureza o mérito, seja arrogar-se ilusoriamente tanto o valor do mérito quanto um conhecimento que é na realidade inacessível. Seja como for, podemos dizer das religiões: “tal homem, tal Deus”, ou seja, que o modo de ver o homem influencia o modo de ver Deus, e inversamente, conforme o caso. O individualismo e também o sentimentalismo de uma certa mística passional são fatos inegáveis, quaisquer que sejam as virtualidades espirituais do quadro geral; neste gênero de mística, a inteligência não tem nenhuma função operativa, apesar das possibilidades de sua natureza profunda; a ausência de discernimento metafísico traz consigo a falta da concentração metódica que é seu complemento normal. Para a gnose, a inteligência não é uma parte, ela é o centro e o ponto de partida de uma consciência que engloba todo o ser; característica do clima mental do Ocidente tradicional, a associação de idéias entre inteligência e orgulho e entre beleza e pecado em nada compromete a verdadeira intelectualidade, apesar das reações enraivecidas, a começar da Renascença.
Uma coisa importante a salientar aqui, é que o critério da verdade metafísica, ou de sua profundidade, não está na sua complexidade ou na dificuldade de expressão, mas na qualidade e eficácia de seu simbolismo, com vistas a uma dada capacidade de compreensão e a um dado estilo de pensamento. A sabedoria não está na complicação das palavras, mas na profundidade da intenção; a expressão pode ser sutil e árdua, conforme as circunstâncias, mas também pode não ser.

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Chegados a este ponto, vamos fazer uma nova digressão. Costuma-se dizer que a maior parte da juventude atual não quer ouvir falar nem de religião, nem de filosofia, nem de qualquer tipo de doutrina; que ela tem a sensação de que tudo isto está esgotado e que ela não se sensibiliza senão com o que é “concreto”, com o que está “vivo”, enfim, com o “novo”; mas o conceito de “concreto” em voga, convém salientar, confunde os acidentes com a substância, um pouco como se chamássemos concreta a espuma e abstrata a água. A resposta a esta deformação é simples: se o “concreto” tem valor, ele não poderia servir a uma atitude falsa – a atitude que consiste em rejeitar qualquer doutrina – nem ser totalmente novo; sempre existiram religiões e doutrinas, o que demonstra que sua existência faz parte da natureza humana; ao longo dos milênios, os melhores homens promulgaram e divulgaram doutrinas, viveram segundo elas e morreram por elas. O mal não está certamente na hipotética vacuidade das doutrinas, mas unicamente no fato de que muitos homens, ou bem não seguiram – ou não seguem – doutrinas verdadeiras, ou bem ao contrário seguiram – ou seguem – falsas doutrinas; no fato de que os cérebros exasperaram-se e os corações decepcionaram-se com um excesso de teorias inconsistentes e enganadoras; no fato de que erros além de toda conta – o diabo diz no Evangelho: “Meu nome é legião” – insistentes e perniciosos lançaram o descrédito sobre a verdade, que também é enunciada em palavras e que está sempre ali, mesmo que ninguém a veja. Muita gente não sabe mais sequer o que é uma idéia, qual seu valor e seu papel; estas pessoas estão longe de imaginar que sempre houveram teorias perfeitas e definitivas, portanto plenamente adequadas e eficazes em seu plano, e que não há nada a acrescentar aos antigos sábios senão nosso próprio esforço em compreendê-los. Se somos seres humanos, não podemos nos abster de pensar e, se pensamos, escolhemos uma doutrina; a preguiça, a falta de imaginação e o orgulho infantil de uma juventude abusada e materialista em nada mudam isso. Se foi a ciência moderna que criou as condições anormais e decepcionantes que fazem sofrer a juventude, é porque esta ciência é anormal e ilusória; dirão que o homem não é responsável por seu niilismo, que foi a ciência que destruiu os deuses, mas isto é um reconhecimento da sua impotência intelectual, não um motivo de glória, pois aquele que sabe o que significam os deuses não irá se desequilibrar com descobertas físicas – que não fazem mais do que deslocar os símbolos sensíveis mas sem os abolir, pois o fato de sabermos que o espaço sideral é uma noite eterna que abriga galáxias e nebulosas não impede que o céu azul se estenda sobre nós simbolizando o mundo dos anjos e o reino da Beatitude – e ainda menos pelas hipóteses gratuitas e pelos erros da psicologia. A existência é uma realidade comparável, sob certos aspectos, a um organismo vivo; ela não se deixa reduzir impunemente, na consciência dos homens e nos seus modos de agir, a medições que violentam a sua natureza; as pulsações do “extra-racional” – não diremos do “irracional”, para não criarmos uma confusão entre o superior e o inferior – a atravessam continuamente de todos os lados. Ora, é a esta ordem “extra-racional”, cuja presença ao nosso redor percebemos todo o tempo (se não estivermos cegados por algum preconceito matemático), que pertencem as religiões e todas as formas de sabedoria (neste caso, trata-se já do “supra-racional”; pretender tratar a existência como uma realidade puramente aritmética e física equivale a falseá-la em relação a nós e também em nós próprios, até finalmente fazê-la explodir.
Numa ordem de idéias semelhante, é preciso assinalar o abuso que é feito da noção de inteligência. Para nós, a inteligência não pode ter outro objeto senão a verdade, assim como o amor tem por objeto a beleza e a bondade; é claro que pode haver inteligência no erro – pois a inteligência está misturada com a consciência e desnaturada por ela e porque o erro, não sendo nada em si mesmo, tem necessidade do espírito – mas não devemos perder de vista aquilo que a inteligência é em si, nem crer que uma obra feita do erro possa ser o produto de uma inteligência sã ou mesmo transcendente; e sobretudo, não devemos confundir a habilidade e a mistificação com a inteligência pura e a contemplação. A inteligência e o vício podem ser superficiais, portanto de certo modo “acidentais” e sanáveis, como podem ser relativamente “essenciais” e praticamente irremediáveis; uma falta essencial de virtude é talvez incompatível com uma inteligência transcendente, assim como uma grande virtude raramente se encontra num ser radicalmente ininteligente; acrescentaremos que há os que reprovam a inteligência, seja em nome da “humildade” seja em nome do “concreto”, e outros que confundem a inteligência com a malícia; a estes, São Paulo responderia: “Irmãos, não sejam crianças no julgamento; sejam-no quanto à malícia, mas ao julgar sejam homens maduros” (I Cor, 14-20). A intelectualidade comporta essencialmente um aspecto de “sinceridade”; ora, a sinceridade perfeita da inteligência é inconcebível sem o desinteresse; conhecer é ver, e a visão é uma adequação do sujeito ao objeto e não um ato passional. A “fé”, ou a aceitação da verdade, deve ser sincera, vale dizer contemplativa: pois uma coisa é admitir uma idéia – seja ela verdadeira ou falsa – porque temos interesse material ou sentimental nela, e outra coisa é admiti-la porque cremos que ela seja verdadeira.
A ciência, dirão alguns, demonstrou após séculos a inconsistência das Revelações, supostamente devidas às nossas nostalgias inveteradas de seres terrenos medrosos e insatisfeitos (e incuravelmente párvulos, acrescentemos, se a hipótese for verdadeira); não há necessidade de responder a isso mais uma vez, no contexto deste livro, mas vamos aproveitar a ocasião para ilustrar com uma imagem: podemos imaginar um céu de verão cheio de felicidade, e homens simples que o observam, projetando nele seus sonhos de além; agora imaginemos transportá-los para a goela negra, glacial e silente das galáxias e das nebulosas: muitos perderiam sua fé, e é exatamente o que se passa em consequência da ciência moderna, tanto entre os sábios quanto entre as vítimas da vulgarização. O que a maior parte dos homens não sabe – e se eles pudessem saber, porque pedir-lhes que creiam? – é que o céu azul, ilusório na medida em que é um engano óptico e desmentido pela visão do espaço interplanetário, é não obstante um reflexo adequado do Céu dos Anjos e dos Bem-aventurados, e que portanto, apesar de tudo, é ela, esta  miragem azul com nuvens de prata, que está certa e que tem a última palavra; espantar-se com isto equivale a admitir que é apenas por acaso que estamos sobre a terra e que vemos o céu como o vemos. A goela negra das galáxias reflete igualmente alguma coisa, bem entendido, mas o simbolismo neste caso está deslocado e não se trata mais do Céu dos Anjos; trata-se sem dúvida, antes de mais nada – para permanecermos fiéis ao nosso ponto de partida – dos temores dos mistérios divinos nos quais se perde aquele que os pretende violar por meio de sua razão falível e sem nenhum motivo suficiente – positivamente, é a scientia sacra que transcende a “fé dos carvoeiros” e que é acessível ao intelecto puro, Deo juvante (pois nada é possível sem o socorro divino) – mas trata-se também, segundo o simbolismo imediato das aparências, dos abismos da manifestação universal, deste samsara cujos limites escapam infinitamente à nossa experiência comum; enfim, o espaço extra-terrestre reflete igualmente a morte: é a projeção, para fora de nossa segurança terrestre, em um vazio vertiginoso e um exílio inimaginável; e isto pode ser entendido também num sentido espiritual, porque é preciso “morrer antes de morrer”. Mas o que mais queremos salientar aqui, é o erro que consiste em crer que a ciência possui, por seus conteúdos objetivos, o poder e o direito de destruir mitos e religiões, que ela é uma experiência superior que destrói os deuses e as crenças; na realidade, é a incapacidade humana de compreender os fenômenos desconhecidos e de resolver certas antinomias aparentes que asfixia a verdade e desumaniza o mundo.
Enfim, resta um outro equívoco a ser resolvido de uma vez por todas: a palavra “gnose”, que aparece neste livro, refere-se ao conhecimento supra-racional – portanto puramente intelectivo – das realidades metacósmicas; ora, este conhecimento não se reduz ao “gnosticismo” histórico, senão teríamos de admitir que Ibn Arabi ou Shankara foram “gnósticos” alexandrinos; em poucas palavras, não se pode tornar a gnose responsável por cada associação de idéias e cada abuso de linguagem. É humanamente admissível não crer na gnose, mas não, pretendendo conhecê-la, encaixar no termo coisas que não possuem nenhuma relação – nem em gênero, nem em grau – com a realidade de que se trata, qualquer que seja o valor que lhe seja atribuído. Em lugar de “gnose”, poderíamos dizer ma’rifah, em árabe, ou jnana, em sânscrito, mas nos parece normal utilizar um termo ocidental, uma vez que escrevemos numa língua do Ocidente; teríamos ainda o termo “teosofia”, mas este dá lugar a associações de idéias confusas; quanto ao termo “conhecimento”, ele é muito genérico, a menos que se faça acompanhar de um contexto ou de um epíteto que aponte o sentido correto. O que queremos sublinhar, é que entendemos o termo “gnose” exclusivamente em seu sentido etimológico e universal e que por isso não podemos,  nem reduzi-lo pura e simplesmente ao sincretismo greco-oriental da antiguidade tardia, nem, com mais razão, atribuí-lo a não importa qual fantasia pseudo-religiosa ou pseudo-yoguica, ou mesmo simplesmente literária. Se, do ponto de vista católico, chamamos por exemplo o Islam – sem aderir a ele – uma “religião” e não uma “pseudo-religião”, não vemos porque não distinguirmos – fora de qualquer questão católica ou não-católica – entre uma “gnose”, com seu caráter preciso ou aproximativo, e uma “pseudo-gnose” que não o possua.

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A fim de salientar claramente que a diferença entre o Islam e o Cristianismo é uma diferença de perspectiva metafísica e de simbolismo – vale dizer que as duas espiritualidades convergem – tentaremos caracterizar sucintamente a gnose cristã, partindo da idéia-chave do Cristianismo, que é que “Deus se fez aquilo que somos, para que nos tornemos aquilo que Ele é” (Santo Irineu); o Céu tornou-se terra, para que a terra se torne Céu; o Cristo retraça no mundo exterior e histórico aquilo que acontece, desde que existe o tempo, no mundo interior da alma. No homem, o Espírito se torna ego, para que este se torne Espírito; o Espírito, ou Intelecto (intellectus, não mens ou ratio) se torna ego ao encarnar-se na mente sob a forma de intelecção, de verdade, e o ego torna-se Espírito ou Intelecto unindo-se a este: como diz São Paulo, “o Espírito penetra tudo, até as profundezas do próprio Deus; dentre os homens, quem conhece as coisas do homem, senão o espírito do homem que está nele? Do mesmo modo, ninguém conhece as coisas de Deus, se não for pelo Espírito de Deus. Ora, não foi o espírito do mundo que recebemos, mas o espírito que vem de Deus para o conhecimento daquilo com que fomos agraciados por Deus (I Cor, II, 10-12). Lembremos que, para Dante, os condenados são aqueles “que perderam o bem do Intelecto” (Inferno, III, 18). O Cristianismo é assim uma doutrina de união, ou a doutrina da União, mais do que da Unidade: o Princípio une-se à manifestação, para que esta se una ao Princípio, e daí vem todo o simbolismo do amor e a predominância do caminho “bhaktico”. Deus torna-se homem “por causa de seu imenso amor” (Santo Irineu), e o homem deve unir-se a Deus também pelo amor, seja ele volitivo, emotivo ou intelectivo. “Deus é amor”: Ele é – enquanto Trindade – União, e Ele quer a União.
Agora, qual é o conteúdo do Espírito, ou dito de outra forma: qual é a mensagem sapiencial do Cristo? Pois esta mensagem será também, no nosso microcosmo, o conteúdo eterno do Intelecto. Esta mensagem, ou este conteúdo, é: ame a Deus com todas as suas faculdades e, em função deste amor, ame o próximo como a você mesmo; vale dizer: uma-se – pois “amar” é essencialmente “unir” – ao Coração-Intelecto e, em função disto ou como condição para esta união, abandone todo orgulho e toda paixão e descubra o Espírito em todas as criaturas. “ O que fizerdes a um destes pequeninos, fareis a Mim”: o Coração-Intelecto, o  “Cristo em nós” , é, não apenas luz ou discernimento, mas também calor ou beatitude, portanto “amor”: a “luz” torna-se “calor” na medida em que ela se torna nosso “ser”. É por isso, aliás, que o “amor” (mahabbah) dos sufis não pressupõe absolutamente uma via de bhakti – assim como o emprego deste termo no shivaismo tampouco implica uma perspectiva dualista.
Essa mensagem – ou essa verdade inata – do Espírito prefigura a cruz, porque esta tem duas dimensões, uma “vertical” e outra “horizontal”, a saber o amor a Deus e o amor ao próximo, ou a União com o Espírito e a união com a ambiência humana, sendo esta última vista como a manifestação do Espírito ou “corpo místico”. Segundo outro modo de ver, essas duas dimensões são representadas respectivamente pelo conhecimento e pelo amor: “conhecemos”  Deus e “amamos” o próximo, ou ainda: amamos a Deus quanto mais o conhecemos e conhecemos o próximo quanto mais o amamos. Quanto ao aspecto doloroso da cruz, é preciso dizer que do ponto de vista da gnose mais do que de qualquer outro, e em nós mesmos como entre os homens, é uma verdade profunda que a “Luz brilhou nas trevas, mas as trevas não a compreenderam”. E a dimensão gnóstica, no seu sentido etimológico e intemporal, aparece ainda de modo claro numa passagem do Evangelho segundo Tomé recentemente descoberto, na qual o Cristo, após falar aos Apóstolos, afasta-se com Tomé e lhe diz três palavras; quando os outros discípulos lhe indagam das palavras do Cristo, Tomé lhes responde que, se ele lhes confiasse uma só das palavras, eles os apedrejariam e das pedras jorraria fogo para os devorar.
Todo o Cristianismo está enunciado na doutrina trinitária, e esta representa fundamentalmente uma perspectiva de união; ela considera a união já in divinis: Deus prefigura em Sua própria natureza as relações entre Ele próprio e o mundo,  relações que, de resto, só se tornam “exteriores” de modo ilusório.
Conforme já frisamos, a religião cristã acentua antes o conteúdo “fenomênico” da fé, do que a qualidade intrínseca e transformadora desta; dizemos “antes” e “acentua”, para indicar que não se trata aqui de uma definição incondicional; a Trindade não é de ordem fenomênica, mas é não obstante uma função do fenômeno crístico. Na medida em que o objeto da fé é “principial”, ele coincide com a natureza “intelectual” ou contemplativa da fé; é o que está expresso quando se diz que a alma, desde o nascimento, é “cristã” – ou muçulmana, conforme as religiões – e que são os homens que a deturpam ou a confirmam (o que guarda semelhanças com a “reminiscência” platônica); na medida em que o conteúdo da fé é “fenomênico”, a fé será “volitiva”. O Cristianismo é, a grosso modo, uma via “existencial”, fundada sobre o elemento védico Sat (“Ser”) e não diretamente sobre o elemento Chit (“Consciência”) – embora o Logos provenha intrinsecamente deste segundo elemento – uma via existencial “intelectualizada” na gnose, enquanto que o Islam é uma via intelectual “fenomenizada”, o que significa que ele é intelectual a priori, de modo direto ou indireto conforme se trate da shari’ah ou da haqiqah; o muçulmano, seguro de sua convicção unitária – em que a certeza coincide no fundo com a substância mesma da inteligência e portanto com o Absoluto, definição que aliás vale para todas as gnoses – enxerga tentações “associativas” (shirk, mushrik) nos fenômenos, enquanto o cristão, centrado sobre o fato crístico e sobre os milagres que decorrem essencialmente dele, experimenta uma desconfiança inata com relação à inteligência – que ele reduz à “sabedoria segundo a carne” oposta à caridade paulina – e daquilo que ele chama de “pretensões do espírito humano”.
Agora, se do ponto de vista da “realização” ou da “via” o Cristianismo opera com o “amor a Deus” – em resposta ao amor divino pelo homem, porque o próprio Deus é “Amor” – o Islam irá proceder por meio da “sinceridade da fé unitária”, como vimos precedentemente; e sabemos que esta fé deve implicar todas as consequências que resultam logicamente de seu conteúdo, que é a Unidade ou o Absoluto. Existe antes de tudo el-iman, a aceitação da Unidade pela inteligência; em seguida – porque existimos individual e coletivamente – el-islam, a submissão da vontade à Unidade ou à idéia de Unidade; esse segundo elemento refere-se à Unidade na medida em que esta é uma síntese sobre o plano do múltiplo; finalmente, existe el-ihsan, que desdobra e aprofunda os dois elementos anteriores até suas últimas conseqüências. Sob sua influência, el-iman se torna “realização” ou “certeza viva” – “conhecer” torna-se “ser” – enquanto que el-islam, ao invés de limitar-se a um número definido de atitudes prescritas, englobará todos os planos de nossa natureza; a priori, a fé e a submissão não são mais do que atitudes simbólicas, mas nem por isso menos eficazes sobre seu plano. Em virtude de el-ihsan, el-iman torna-se gnose ou “participação” à Inteligência divina, e el-islam, “extinção” no Ser divino; como a participação no Divino é um mistério, ninguém tem o direito de se proclamar mu’min (“crente”, que possui el-iman), mas é perfeitamente possível dizer-se muslim (“submisso”, conformando-se a el-islam); el-iman é um segredo entre o servidor e o Senhor, como el-ihsan, que determina o grau (maqan) ou o “segredo” (sirr), a inefável realidade. Na fé unitária – com todas as suas conseqüências – como no amor total a Deus, trata-se de escapar à multiplicidade dispersante e mortal de tudo o que, por ser “outro que Ele”, não é; é preciso escapar ao pecado, porque este implica um amor praticamente “total” pela criatura ou pelo criado, portanto desviado do Deus-Amor e dilapidado por aquilo que está abaixo de nossa personalidade imortal. Existe um critério que mostra bem o sentido das religiões e das sabedorias: é a “concentração” em função da verdade e em vista da redescoberta, para além da morte e deste mundo de morte, de tudo o que amamos aqui em baixo; mas tudo isto está escondido para nós em um ponto geométrico que nos aparece antes de mais nada como um total empobrecimento, e que de fato o é num sentido relativo e em relação ao nosso mundo de riquezas enganadoras, de segmentação estéril em mil facetas e mil reflexos. O mundo é um movimento que porta em si mesmo o princípio do seu esgotamento, um desenvolvimento que manifesta por toda parte os estigmas de sua estreiteza, e no qual a Vida e o Espírito se perderam, não por um acaso absurdo, mas porque o encontro entre a Existência inerte e a Consciência viva é uma possibilidade, portanto algo que não pode não ser, e que está colocado pela própria infinitude do Absoluto.

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Algumas palavras devem ser ditas aqui a respeito da prioridade da contemplação. O Islam, dissemos, define esta função suprema do homem pelo hadith sobre el-ihsan que ordena “adorar Allah como se o vísseis”, dado que se “vós não o enxergais, Ele vos enxerga” (note-se que este hadith não silencia sobre a caridade humana, porque, antes de definir el-ihsan, ele define el-islam, que consiste, entre outras coisas, no dízimo, ou “zaqah”); o Cristianismo de seu lado enuncia antes de mais nada o amor a Deus e em seguida o amor ao próximo; este segundo amor – é preciso insistir em favor do primeiro – não poderia ser total, porque o amor a nós mesmos não o é: o homem, ego ou alter, não é Deus. Seja como for, resulta de todas as definições tradicionais da função suprema do homem, que aquele que é capaz de contemplação não deve nunca negligenciá-la, que ao contrário ele é “chamado” a consagrar-se a ela, ou seja que ele não peca nem contra Deus nem contra o próximo – para dizer o mínimo – se seguir o exemplo evangélico de Maria e não o de Marta, pois a contemplação contém a ação e não inversamente; se a ação pode opor-se de fato à contemplação, ela entretanto não o faz em princípio,  assim como não se impõe além do necessário ou dos deveres de estado. Não se deve, por humildade, rebaixar conosco coisas que nos ultrapassam, pois assim nossa virtude perde todo seu valor e seu sentido; reduzir a espiritualidade a um “humilde” utilitarismo – portanto a um materialismo latente – é uma ofensa a Deus, de um lado porque é como se disséssemos a Deus que ele não merece que nos preocupemos excessivamente d’Ele, e de outro porque relegamos este dom divino que é a inteligência ao nível das coisas superficiais.
À parte isto, e numa escala mais ampla, é importante compreender que o “ponto de vista metafísico” é sinônimo de “interioridade”: a metafísica não é “exterior” a nenhuma forma de espiritualidade, e é assim impossível considerar uma coisa ao mesmo tempo metafisicamente e exteriormente; de resto, aqueles que reivindicam para si mesmos o princípio pseudo-intelectual segundo o qual toda competência possível derivaria exclusivamente de uma participação prática, não se privam de pronunciar-se “intelectualmente” e “com pleno conhecimento de causa” sobre formas de espiritualidade às quais não pertencem nem de forma longínqua.
A inteligência pode ser a essência de uma via com a condição de que haja uma mentalidade contemplativa e um pensamento não passional; um exoterismo não poderia assim constituir esta via, mas ele pode, como no caso do Islam, predispor para esta via, por sua perspectiva fundamental, sua estrutura e seu ambiente. Do ponto de vista exclusivamente sharaita, a inteligência reduz-se, para o Islam, à responsabilidade; visto deste ângulo, todo homem responsável é inteligente, ou seja que o homem  definido como responsável sob o aspecto da inteligência e não apenas da liberdade volitiva: “Eles dirão: Se nós escutamos, se nós compreendemos (na’qilu, com inteligência – ‘aql), nós não estaremos entre os hóspedes do braseiro” (Corão, LXVII, 10). A apreciação do Islam sobre a inteligência transparece, entre outros, neste hadith: “Nosso Senhor Jesus disse: Não me foi impossível ressuscitar os mortos, mas foi impossível curar os estúpidos”.

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Vimos no início deste livro que o Islam está fundamentado sobre a natureza das coisas no sentido de que ele vê a condição de salvação em nosso teomorfismo, ou seja no caráter total da inteligência humana, depois na liberdade da vontade e enfim no dom da palavra, com a condição que estas faculdades veiculem respectivamente – graças a uma intervenção divina “objetiva” – a certeza, o equilíbrio moral e a oração unitiva; vimos também que estes três modos de teomorfismo e seus conteúdos estão representados na tradição islâmica – grosso modo – pelo ternário Iman-Islam-Ihsan (“Fé-Lei-Via”). Ora, falar de teomorfismo é reportar-se aos caracteres próprios à Natureza divina, e, de fato, Deus é “Luz” (Nur, a Consciência infinita, livre de qualquer objetivação), “Vida” (Hayat) ou “Vontade” (Iradah) e “Palavra” (Kalam, Kalimah); esta Palavra é a palavra criadora kun (“seja!”, donde o termo kawn, “mundo”, “aquilo que existe”; el-kawn el-kabir é o macrocosmo e el-kawn eç-çaghir o microcosmo); mas aquilo que em Deus é potência criadora, no homem será potência transformadora e deificante; se a Palavra cria, a palavra humana que responde – a “menção” a Allah – conduz a Deus. A Palavra divina primeiro cria, depois revela; a palavra humana primeiro transmite, depois transforma; ela transmite a verdade e, endereçando-se a Deus, transforma e deifica o homem; à Revelação divina corresponde a transmissão humana, e à Criação, a deificação. A palavra não tem outra função, no homem, que a transmissão da verdade e a deificação; ela é, seja um discurso verídico, seja uma prece. Como diz São Mateus: “Que vossa linguagem seja: isto é, isto é; isto não é, isto não é; o que for dito a mais, vem do Mal” (Mt 5,37); isto aproxima-se da “sinceridade” (ikhlaç) que é a própria essência de el-Ihsan, segundo sua definição tradicional:  “A virtude agente (a atualização espiritual, el-ihsan) é que adoreis a Deus como se o vísseis, e se não o vedes, Ele entretanto vos vê”. A palavra védica é o símbolo mesmo da intenção reta, que no Islam é tudo: “Conduz-nos sobre a via reta” (eç-çirat el-mustaqim), diz a Fatihah.
Gostaríamos de resumir toda esta doutrina em poucas palavras: para podermos compreender o sentido do Corão enquanto sacramento, é preciso saber que ele é o protótipo incriado do dom da palavra, que ele é a eterna Palavra de Deus (kalamu’Llah), e que o homem e Deus se encontram no discurso revelado, no Logos que assume a forma diferenciada da linguagem humana, a fim de que o homem, por meio desta linguagem, encontre a Palavra indiferenciada e salvadora do Eterno. Tudo isto explica o imenso poder salvador da palavra “teófora”, sua capacidade de veicular uma potência divina e reduzir a nada uma legião de pecados: “E Adão recebeu de seu Senhor as palavras” (Corão, I, 38). Numa certa teologia trinitária, o “Verbo” representa o “Conhecimento” que o “Ser” tem de si mesmo: “Pois o Pai é maior do que eu” (Jo, 14, 28); o Ser  em si é maior do que o pólo “Consciência”, embora este seja realmente o Ser, em sua natureza intrínseca. O Ser tem aliás um aspecto de “Consciência” diante do Não-Ser, no sentido que ele cristaliza suas potencialidades distintivamente em vista de sua manifestação; mas o Não-Ser não deixa de ser o supremo “Si”, e portanto o infinito Conhecimento é indiferenciado em razão de sua própria infinitude.
O segundo fundamento da via, como dissemos no início do capítulo, é a concentração contemplativa ou operativa, ou a oração sob todas as suas formas e em todos os seus graus O suporte desta concentração – ou da oração quintessencial – é no Islam a “menção” ou a “lembrança” (dhikr), que abarca desde a recitação total do Corão até o sopro místico simbolizado pelo ha final do Nome Allah, ou pelo ha inicial do Nome Hua, “Ele”: “Aquele que Me menciona em si mesmo (fi nafsihi), Eu o mencionarei em Mim, e aquele que Me mencionar numa assembléia, Eu o mencionarei numa assembléia melhor” (hadith qudsi); segundo um outro hadith, “Eu estarei na companhia (Inni jalis) daquele que Me menciona”.Tudo o que pode ser dito do Nome divino – por exemplo, que “tudo na terra é maldito, exceto a lembrança de Allah”, ou que “nada afasta mais a cólera de Allah do que esta lembrança” – tudo isto pode ser dito igualmente do coração e do intelecto e, por extensão, da intelecção metafísica e da concentração contemplativa: “O céu e a terra não podem Me conter, mas o coração do Meu servidor e crente Me contém” (hadith qudsi). No coração, estamos unidos ao Ser puro, e no intelecto à Verdade total, sendo que as duas coisas coincidem no Absoluto: diz o poeta Djami: “Ó homem feliz cujo coração foi iluminado pela invocação (dhikr), à sombra da qual a alma carnal foi vencida, o pensamento da multiplicidade foi cortado, aquele que invoca (dhakir) foi transformado em invocação, e a invocação no Invocado (madhkur)!”.
A concentração é vista, no Islam, como a “sinceridade” da oração; esta só é plenamente válida na condição de ser sincera, e é esta sinceridade – portanto, de fato, esta concentração – que “abre” o dhikr, ou seja que lhe permite ser simples ao mesmo tempo em que possui um efeito imenso: ao “esforço de atualização” (istihdar) do servidor responde a “presença” (hudur) do Senhor. À objeção de que a oração jaculatória é coisa fácil e exterior, que ela não poderia apagar os milhares de pecados nem ter o valor de milhares de boas ações, a tradição responde que do lado humano todo o mérito consiste, primeiro na intenção que nos faz pronunciar uma oração – sem o que não a pronunciaríamos – e depois no nosso recolhimento, na nossa “presença” em face da Presença de Deus; mas ela lembra que este mérito não é nada diante da graça.
A “lembrança de Deus” é ao mesmo tempo o esquecimento de si; inversamente, o ego é uma espécie de cristalização do esquecimento de Deus. O homem decaído é por definição “esquecido”; a via será portanto a “lembrança”; um provérbio árabe diz que “o primeiro ser que esqueceu (awwalu nasin) foi o primeiro homem (awwalu’nnas).  O cérebro é como que o órgão deste esquecimento, ele é como uma esponja cheia de imagens deste mundo de dispersão e peso e também das tendências dispersivas e edulcorantes do ego. O coração é a lembrança latente de Deus, escondida nos recônditos do nosso “eu”; a oração é como se o coração, chegado à superfície, tomasse o lugar do cérebro, daí para frente adormecido e leve, e cuja marca mais elementar na alma é a paz: “Eu durmo, mas meu coração vela”. Como diz o Profeta: “Proteja Deus em teu coração, e Deus te protegerá”.
Se Ibn Arabi e outros exigem – em conformidade com o Corão e a Suna -  “deixar-se penetrar pela majestade de Allah” antes e durante a prática do dhikr, trata-se aí, não apenas de uma atitude reverencial com raízes na imaginação e no sentimento,  mas de uma  real conformação de todo o nosso ser ao “Motor imóvel”, vale dizer em suma de um retorno ao nosso arquétipo normativo, à pura substância adâmica “feita à imagem de Deus”; e isto está diretamente relacionado, de resto, com a dignidade, cujo papel aparece claramente nas funções sacerdotais e reais: o sacerdote e o rei postam-se diante do Ser divino, acima do povo, e ao mesmo tempo se tornam “algo de Deus”, se podemos nos exprimir assim. Num certo sentido, a dignidade do dhakir – o orante – reúne a “imagem” que a Divindade assume diante de si, ou, dito de outro modo, esta dignidade – este “silêncio sagrado”, este “não-agir” – é a própria imagem do Princípio divino. O Budismo nos oferece um exemplo bastante concreto disso: a imagem sacramental do Buda é ao mesmo tempo “forma divina” e “perfeição humana”, ela marca a junção entre o celeste e o terrestre. Mas tudo isto diz respeito apenas à oração contemplativa, aquela que caracteriza o dhikr dos sufis.
O Nome Allah, que é a quintessência de todas as fórmulas corânicas, comporta duas sílabas ligadas pelo lam duplicado; este é como a morte corporal que precede o além e a ressurreição, ou como a morte espiritual que inaugura a iluminação e a santidade, e esta analogia estende-se ao universo, num sentido tanto ontológico como cíclico: entre dois graus de realidade, sejam eles vistos sob a relação de seu encadeamento ou – como é o caso – de sua sucessão, existe sempre uma espécie de extinção; é o que exprime também o termo illa (“...não existe divindade se não for a Divindade”) na Shahadah, que equivale à “porta estreita” do Evangelho. Na prece canônica do Islam, que comporta fases de inclinação e erguimento, depois de prosternação e de repouso, as primeiras referem-se à morte ou à “extinção”, e as segundas à ressurreição e à imortalidade, a “permanência”; a passagem de uma a outra é marcada pelo takbir: “Deus é maior” (Allahu albar). A primeira sílaba do Nome Allah refere-se, segundo uma interpretação corrente, ao mundo e à vida enquanto manifestações divinas, e a segunda a Deus e ao além ou à imortalidade; enquanto que o Nome começa por uma espécie de hiato entre o silêncio e a elocução (hamza), como uma creatio ex nihilo, ele termina por um sopro ilimitado que desemboca simbolicamente no Infinito – vale dizer que o ha final marca a “Não-Dualidade” supra-ontológica, como expressa na fórmula “Allah não é nem Ele mesmo, nem outro que Ele” (Allahu la hua wa-la ghairuhu, proposição que se aplica também às qualidades – cifat – de Deus) – e isto indica que não há simetria entre o vazio inicial das coisas e o Não-Ser transcendente. O Nome Allah abarca assim tudo o que “é”, desde o Absoluto até o menor grão de pó – a “Allaidade” (el-uluhiyah) é definida como a “soma dos mistérios da Realidade” (jumlatu haqa’iq al-Wujud) – enquanto que o Nome Hua, “Ele”, que “personifica” o ha final, indica o Absoluto como tal, em sua inefável transcendência e seu inviolável mistério.
Existe necessariamente nos Nomes divinos uma garantia de eficácia. No amidismo, a certeza de salvação da prática encantatória deriva da “promessa original” de Amida; mas isto equivale a dizer, no fundo, que em todas as práticas análogas em outras formas tradicionais, esta certeza deriva do próprio sentido que o mantra ou o Nome divino comportam. Assim, se a Shahadah comporta a mesma graça que a “promessa inicial” – e o mesmo podemos dizer dos Nomes de Jesus e de Maria, bem como das preces jaculatórias que os contém – isto se dá em virtude de seu próprio conteúdo; é porque ela a formulação por excelência da Verdade e porque a Verdade liberta por sua própria natureza; identificar-se com a Verdade, infundi-la em nosso ser e transferir nosso ser para ela, é escapar ao império do erro e da malícia. Ora, a Shahadah não é outra coisa que a exteriorização doutrinal do Nome Allah; ela corresponde estritamente ao Eheieh asher Eheieh da Sarsa ardente na Torah. É por essas fórmulas que Deus anuncia que “ele é”, portanto o significado do seu Nome, e é por isso que tais fórmulas – ou mantras – representam outros tantos Nomes de Deus.
Dissemos que o significado do Nome Allah é que la ilaha illa ‘Llah, ou seja: que a manifestação cósmica é ilusória e que somente o Princípio metacósmico é real. Para maior clareza, vamos repetir aqui uma haqiqah que expusemos no capítulo sobre o Corão: dado que do ponto de vista da manifestação – que é o nosso, uma vez que existimos – o mundo possui incontestavelmente uma certa realidade, é preciso que esta realidade esteja ela também incluída na primeira Shahadah; ora, ela está sob a forma da segunda ShahadahMuhammadun Rasulu ‘Llah – a qual surge do termo illa (“se não for”) da primeira e significa que a manifestação possui uma realidade relativa que reflete o Princípio. Este testemunho opõe à negação total das coisas transitórias – os “acidentes”, se quisermos – uma afirmação relativa, a da manifestação enquanto reflexo divino, ou, dito de outro modo, do mundo enquanto manifestação divina. Muhammad é o mundo visto sob o aspecto da perfeição; Rasul indica a relação de causalidade e assim religa o mundo a Deus. Quando o Intelecto se coloca no nível da Realidade absoluta, a verdade relativa é como que reabsorvida pela verdade total: do ponto de vista dos símbolos verbais, ela se acha então como que “retirada” deste “condicional” metafísico que é o termo illa. Como não existe nada fora de Allah, o mundo deve ser entendido n’Ele e não pode ser “outro que Ele” (ghairuhu): é por isso que a manifestação “é o Princípio” na medida em que este é “o Exterior” (Ezh-Zhahir), sendo o Princípio como tal “o Interior” (El-Batin). É assim que o Nome Allah compreende tudo o que é, e ultrapassa tudo o que é. Num texto do Sheikh Moulay El-Arabi Ed-Darqawi, encontramos o seguinte trecho: “Eu perseverei neste exercício, até que me foi revelado: ‘Deus disse de Si mesmo que Ele é o Primeiro (El-Awwal) e o Último (El-Akhir), o Interior (Ezh-Zhahir) e o Exterior (El-Batin)’. Eu me defendi contra este discurso concentrando-me em meu exercício, mas quanto mais me esforçava, mais ele me assaltava sem descanso; enfim, eu respondi: ‘Eu compreendo que Deus é o Primeiro, o Último e o Interior; mas que ele seja o Exterior, isto eu não entendo, pois exteriormente eu não vejo senão o universo’. E eu recebi esta resposta: ‘Se Deus quisesse designar com o termo “Exterior” outra coisa que não a existência visível, esta não seria exterior, mas interior; mas eu te disse: ‘Ele é o Exterior!’. Neste momento, eu realizei subitamente a verdade de que não há existência fora de Deus, e que o universo não é nada sem Ele”.
A fim de colocar com precisão a fórmula de consagração (Basmalah) neste conjunto de relações, acrescentaremos ainda o que segue: assim como a segunda Shahadah surge da primeira – da palavra illa que é a um tempo “istmo” ontológico e eixo do mundo – também a Basmalah surge do lam duplicado no meio do Nome Allah. As quatro palavras da Basmalah (Bismi’Llahi’Rrahmani’Rrahim) são como os quatro rios do Paraíso que surgem sob o trono de Deus, que é Er-Ruh. O lam no Nome supremo e o illa no Testemunho correspondem ao “trono”, no sentido de que “inauguram”, um a sílaba Lah e o outro o Nome Allah, portanto, as “dimensões de transcendência”. A segunda Shahadah – o testemunho sobre o Profeta – marca um movimento ascendente e liberador; a Basmalah indica uma descida criativa, reveladora e misericordiosa; de fato, ela começa com Allah (bismi’Llah) e termina com Rrahim, enquanto que a segunda Shahadah começa com Muhammad e termina com Allah (rasulu’Llah). A primeira Shahadah – com a segunda que ela traz em si – é como o conteúdo ou a mensagem da Basmalah; mas ela é também seu princípio, pois o Nome supremo “significa” a Shahadah a partir do momento em que a vemos de modo distintivo ou discursivo. Neste caso,  podemos dizer que a Basmalah surge do illa divino. A Basmalah distingue-se da Shahadah pelo fato de que ela marca uma “saída”, indicada pelas palavras “em Nome de” (bismi), enquanto que a Shahadah é, seja “conteúdo” dvino, seja “mensagem”: ela é seja o sol, seja a imagem do sol, mas não o raio, embora possamos considerá-la também, de outra perspectiva, como uma “centelha” que liga o “vazio” cósmico à Realidade pura.
Há um hadith: “Aquele que invoca a Deus ao ponto de que seus olhos transbordem de temor e que a terra seja inundada de suas lágrimas, a este Deus não punirá no Dia da Ressurreição”. Neste hadith trata-se, não apenas do dom das lágrimas ou da bhakti, mas acima de tudo da “liquefação” de nosso endurecimento pós-edênico, fusão ou dissolução de que as lágrimas – e às vezes a neve que se derrete – fornecem o simbolismo tradicional. Mas não é proibido perseguir o encadeamento de imagens-chave, de deter-se, por exemplo, no simbolismo dos olhos, lembrando que o olho direito corresponde ao sol, à atividade, ao futuro, e o olho esquerdo à lua,  à passividade e ao passado: trata-se das duas dimensões do ego, a primeira referindo-se ao futuro enquanto fermento de ilusão, e a segunda ao passado na medida em que este representa a acumulação de experiências “egoisantes”; dito de outro modo, o passado e o futuro do ego – aquilo que somos e aquilo que queremos ser ou possuir – devem “fundir” no presente fulgurante de uma contemplação transpessoal, donde o “temor” (khashyah) expresso no hadith acima. “Seus olhos transbordarão” (fadhat ‘aynahu) e “a terra será inundada” (yuçibu ‘l-ardh): há uma liquefação interior e outra exterior, esta respondendo àquela: quando o é “liquefeito”, o mundo externo – de que ele é tecido em sua maior parte – parece arrastado no mesmo processo alquímico, no sentido de que ele se torna “transparente” e que o contemplativo vê Deus em tudo, ou vê tudo em Deus.

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Consideremos agora a oração sob o ângulo mais geral: o apelo a Deus, para ser perfeito ou “sincero”, deve ser fervoroso, assim como a contemplação, para ser perfeita, deve ser pura; no nível da piedade emotiva, a chave da concentração é o fervor. À questão de saber como o homem escapa ao meio-termo e realiza o fervor ou a concentração, é preciso responder que o zelo depende da consciência que temos do nosso objetivo; o homem indiferente ou preguiçoso sabe como se apressar quando um perigo o ameaça ou quando um objeto agradável o seduz, o que equivale a dizer que o motivo do zelo pode ser tanto o temor como o amor. “Felizes aqueles que creram sem ver”, diz o Evangelho; “... e se não vedes a Deus, Ele entretanto vos vê”, diz o hadith que já mencionamos; a gnose, longe de tentar abolir estes ensinamentos, situa-os num outro plano, pois não se trata apenas da diferença entre a ignorância terrestre – que necessita de uma “fé” – e o conhecimento celeste, mas existe também a diferença entre o saber doutrinal e a realização unitiva; aquele não é “cego” em si, certamente, mas o é diante da realização “em profundidade”.  Mas o motivo do zelo pode ser igualmente, e com mais razão, o conhecimento; também ele – na medida em que seja real – nos fornece razões suficientes para o ardor, sem o que seria preciso admitir que o homem – qualquer homem – só é capaz de agir sob o império de ameaças ou de promessas, o que é certamente verdadeiro para as coletividades, mas não para todos os indivíduos.
O simples fato de nossa existência é uma prece e nos obriga à prece, a tal ponto que poderíamos dizer: sou, portanto rezo; sum ergo oro. A existência é uma coisa ambígua, e resulta daí que ela nos obriga à prece de duas maneiras: primeiramente por sua qualidade de expressão divina, de mistério coagulado e segmentado, e depois por seu aspecto inverso de encadeamento e de perdição, de tal modo que devemos “pensar em Deus” não apenas porque, sendo homens, não podemos deixar de perceber o fundo divino da existência – por mais que sejamos fiéis à nossa natureza – mas também porque somos da mesma forma obrigados a constatar que somos fundamentalmente mais do que a existência  e que vivemos exilados numa casa que está queimando. A propósito, como a existência, o fogo também é ambíguo, porque ele é a um tempo luz e calor, divindade e inferno; de acordo com certas teorias hindus, o fogo, por sua tendência a subir e porque ilumina, corresponde a sattwa, enquanto que a água, na medida em que se espelha horizontalmente e porque fertiliza, é assimilada a rajas, e a terra relaciona-se com tamas, por sua inércia e por sua força de achatamento; não é preciso dizer que, sob outro aspecto, o fogo tira de rajas seu calor devorador e passional, e apenas a luz corresponde ainda a sattwa; este é o ternário, não dos elementos visíveis – fogo, água e terra – mas das funções sensíveis do fogo-sol: luminosidade, calor e, negativamente, obscurecimento. A pura luminosidade é fria por transcendência; a obscuridade o é por privação; espiritualmente falando, as trevas gelam, enquanto a luz refresca.
Por um lado, a existência é uma onda de alegria criadora, todas as criaturas louvam a Deus; existir é louvar a Deus, quer sejamos cachoeiras, árvores, pássaros ou homens; mas, por outro lado, existir é não ser Deus, e portanto opor-se a Ele sob certo aspecto; esta existência nos sufoca como a túnica de Nessos. Aquele que ignora que a casa está queimando, não tem nenhuma razão para pedir socorro; da mesma forma, o homem que não sabe que está a ponto de se afogar não agarrará a corda salvadora; mas saber que estamos em perigo é ora desesperar, ora rezar. Saber realmente que somos nada, porque o mundo todo é nada, é lembrar-se “d’Aquele que é”, e libertar-se através desta lembrança.
Quando um homem é vítima de um pesadelo e começa, em pleno sono, a chamar pelo socorro de Deus, ele acaba por acordar, e isto demonstra duas coisas: primeiro, que a inteligência consciente do Absoluto subsiste no sonho como uma personalidade distinta – nosso espírito permanece portanto fora dos nossos estados de ilusão – e segundo que o homem, quando chama por Deus, acabará por despertar também deste grande sonho que é a vida, o mundo, o ego. Se existe um apelo que é capaz de derrubar o muro do sonho, porque não seria ele capaz de derrubar também os muros deste sonho mais vasto e mais tenaz que é a existência?
Não há, neste apelo, nenhum egoísmo, uma vez que a oração pura é a forma mais íntima e mais preciosa do dom de si: “A hora suprema não virá enquanto houver sobre a terra quem diga: Allah! Allah!”, diz o hadith, e é de fato a santidade e a sabedoria – e com elas a oração universal e quintessencial – que sustentam o mundo. O vulgo está no mundo para receber, e mesmo quando ele dá a esmola, ele rouba a Deus – e a si mesmo – na medida em que ele crê que sua esmola é tudo o que Deus e o próximo podem lhe pedir; deixando “a mão esquerda saber o que faz a direita”, ele alcança sempre alguma coisa do seu ambiente, consciente ou inconscientemente. É preciso adquirir o hábito da dádiva interior, sem a qual todas as esmolas não valerão sequer a metade; e aquilo que oferecemos a Deus, pela mesma razão distribuímos a todos os homens.

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Se partimos da idéia que a intelecção e a concentração, ou a doutrina e o método, são as bases da via, convém acrescentar que estes dois elementos só são válidos e eficazes em virtude de uma garantia tradicional, portanto de um “selo” que vem do Céu. A intelecção tem necessidade da tradição, da Revelação fixada na duração e adaptada a uma sociedade, para poder revelar-se em nós, ou para não se desviar, e a oração identifica-se com a própria Revelação ou provém dela, como já vimos; em outros termos, o sentido da ortodoxia da tradição, da Revelação, é que os meios de realizar o Absoluto devem provir “objetivamente” do Absoluto; o conhecimento não pode surgir “subjetivamente” senão dentro da estrutura de uma formulação divina “objetiva” do Conhecimento.
Mas este elemento “tradição”, precisamente devido ao seu caráter impessoal e formal, pede um complemento de caráter essencialmente pessoal e livre, a saber a virtude; sem a virtude, a ortodoxia torna-se farisaísmo – subjetivamente, bem entendido, pois aqui não está em causa sua incorruptibilidade objetiva.
Se definimos a metafísica como o discernimento entre o Real e o não-real, definiremos a virtude como a inversão da relação ego-alter: sendo esta relação uma inversão natural, mas ilusória, das “proporções” reais, e por isso mesmo uma “queda” e uma ruptura de equilíbrio – pois o fato de que duas pessoas acreditarem ser “eu” prova que nenhuma tem razão, a não ser por absurdo, porque o “eu” é logicamente único – a virtude será a inversão desta inversão, portanto o redirecionamento de nossa decadência; ela verá de certo modo, relativo mas eficaz, o “eu” no “outro”, ou inversamente. Isto mostra claramente a função sapiencial da virtude: a caridade, longe de se reduzir à sentimentalidade ou ao utilitarismo, opera um estado de consciência que visa o real e não o ilusório; ela confere uma visão do real ao nosso “ser” pessoal, à nossa natureza volitiva, e não se limita a um pensamento que não conduz a nada. Da mesma forma, a humildade: quando bem compreendida, ela realiza em nós a consciência de nosso vazio diante do Absoluto, e de nossa imperfeição em relação aos outros homens; como toda virtude, ela é causa e efeito ao mesmo tempo. As virtudes são, como os exercícios espirituais – mas de outra maneira – agentes de fixação para os conhecimentos do espírito.
A propósito, lembremos que a sentimentalidade com que rodeamos as virtudes facilita sua falsificação: para muitos, a humildade é uma desculpa para a falta de inteligência; o diabo apoderou-se da caridade e fez dela um utilitarismo demagógico e sem Deus e um argumento contra a contemplação, como se Cristo tivesse tomado o partido de Marta contra Maria. A humildade torna-se rebaixamento, e a caridade, materialismo; de fato, vista assim, esta virtude tenta provar que podemos passar sem Deus.
Um erro que se produz muito facilmente na consciência daqueles que buscam a metafísica em reação contra uma religiosidade convencional, é de crer que a verdade não precisa de Deus – do Deus pessoal que nos vê e nos escuta – nem de nossas virtudes; que ela não tem nenhuma relação com o humano e que nos basta por conseguinte saber que o Princípio não é a manifestação e assim por diante, como se estas noções nos dispensassem de ser homens e nos imunizassem contra os rigores das leis naturais, para dizer o mínimo. Se o destino não quisesse – e o destino não vem de nossas noções de doutrina – nós não teríamos nenhuma ciência e nem mesmo nenhuma vida; Deus está em tudo o que somos, somente Ele pode nos animar, nos esclarecer e nos proteger. O mesmo acontece com as virtudes: a verdade não tem necessidade de nossas qualidades pessoais, ela pode mesmo situar-se além dos nossos destinos, mas nós precisamos da verdade e devemos nos curvar às suas exigências, que não são exclusivamente mentais: “Quando falamos de Deus sem termos a verdadeira virtude – diz Plotino – nossas palavras são vazias”. Como nós existimos, nosso ser – qualquer que seja o conteúdo do nosso espírito – deve concordar sobre todos os planos com seu princípio divino. As virtudes catafáticas (baseadas na crença de que Deus pode ser conhecido pelo homem de forma positiva e afirmativa), portanto algo “individualistas”, são as chaves das virtudes apofáticas, e estas são inseparáveis da gnose; as virtudes testemunham a beleza de Deus. É ilógico e pernicioso – para si mesmo e para os outros – pensar na verdade e esquecer a generosidade.
Talvez seja bom esclarecer aqui que chamamos “apofáticas” as virtudes que não são “produções” do homem, mas que ao contrário irradiam da natureza do Ser: elas pré-existem em relação a nós, de tal modo que nosso papel em relação a elas será de retirar aquilo que em nós se opõe à sua irradiação, e não de produzi-las “positivamente”; existe aí toda a diferença entre o esforço individual e o conhecimento purificador. Em todo caso, é absurdo imaginar que o sufi que afirma ter ultrapassado uma dada virtude, ou mesmo toda e qualquer virtude, seja por isso destituído das qualidades que fazem a nobreza do homem e sem as quais não pode haver santidade; a única diferença é que ele não “vive” essas qualidades como “suas”, que ele não tem a consciência de um mérito “pessoal” como acontece com as virtudes comuns. A este respeito, Ibn ‘Ata-Illah diz: “Se você só puder alcançá-Lo depois de eliminar todas as suas taras e extinguir todo o seu egoísmo, você não O alcançará jamais. Mas se Ele quiser conduzi-lo até Si, ele cobrirá as suas qualidades e seu caráter com as Suas qualidades e Seu caráter, e unirá você a Ele em virtude daquilo que chegará a você de Sua parte, e não em virtude do que chegará a Ele de sua parte”. Trata-se de uma divergência de princípio ou de natureza, de modo que, de outro ponto de vista mais geral e menos operativo, toda virtude ou mesmo toda qualidade cósmica possa ser considerada num sentido apofático, vale dizer segundo a essência ontológica dos fenômenos; é o que exprimem a seu modo os homens piedosos quando atribuem suas virtudes unicamente à graça de Deus.
Conforme as injunções corânicas, a “lembrança de Deus” exige as virtudes fundamentais e, em função destas, os atos de virtude que se impõem conforme as circunstâncias. As virtudes fundamentais e universais, que são inseparáveis da natureza humana, são a humildade ou a modéstia; a caridade ou a generosidade; a veracidade ou a sinceridade, portanto a imparcialidade; depois a vigilância ou a perseverança; o contentamento ou a paciência; e enfim esta “qualidade de ser” que é a piedade unitiva, a plasticidade espiritual, a disposição para a santidade. Esta enumeração é uma síntese deduzida da natureza das coisas; o sufismo apresenta diversas classificações das virtudes e distingue ramificações bastante sutis; ele insiste no apofatismo das virtudes sobrenaturais e vê nestas concomitâncias do Espírito suas “estações” (maqamat); a natureza nos fornece muitas imagens das virtudes e também das manifestações do Espírito: a pomba, a águia, o cisne e o pavão refletem respectivamente a pureza, a força, a paz contemplativa, a generosidade espiritual ou o desdobramento das graças.
Aquilo que precede permite compreender o sentido das virtudes e das leis morais, sendo estes estilos de ação em conformidade com determinadas perspectivas espirituais e com certas condições materiais e mentais, e as virtudes que representam belezas intrínsecas inserem-se nesses estilos e se realizam através deles. Toda virtude e toda moral é um modo de equilíbrio, ou mais precisamente um modo de participar, em detrimento do equilíbrio exterior e falso, ao Equilíbrio universal; permanecendo no centro, o homem escapa às vicissitudes da periferia instável; é o sentido do “não-agir” taoísta. A moral é uma maneira de agir, mas a virtude é um modo de ser – uma maneira de ser total, além do ego, ou um modo de ser exatamente quem se é. Segundo São Tomás de Aquino, “a verdade é o objetivo último de todo o universo e a contemplação da verdade é a atividade essencial da sabedoria (...) As virtudes, por sua própria natureza, não fazem necessariamente parte da contemplação, mas são uma condição indispensável para ela”.
Poderíamos ainda nos expressar assim: as morais são as estruturas das virtudes ao mesmo tempo em que suas aplicações às coletividades; a virtude da coletividade é seu equilíbrio determinado pelo Céu. As morais são diversas, mas a virtude, tal como a definimos, é em toda parte a mesma, porque o homem é o mesmo em toda parte. Esta unidade moral do gênero humano caminha junto com sua unidade intelectual: as perspectivas e os dogmas diferem, mas a verdade é uma (e una).

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Um outro elemento fundamental da via é o simbolismo, que se afirma tanto na arte sacra quanto na natureza virgem. Sem dúvida, as formas sensíveis não têm a importância dos símbolos verbais ou escritos, mas elas não deixam de possuir, segundo as circunstâncias, uma sugestão de “enquadramento” ou de “sugestão espiritual” preciosa, sem falar da importância ritual de primeiro plano que elas podem assumir; por outro lado, o simbolismo tem esta peculiaridade de combinar o exterior com o interior, o sensível com o espiritual, e ultrapassa assim, em princípio ou de fato, a função de simples “plano de fundo”.
A arte sacra é em primeiro lugar a forma visível e audível da Revelação, depois seu revestimento litúrgico indispensável. Talvez surpreenda a presença da audição aí, mas lembramos, por exemplo, a leitura do Corão, que comporta diversos estilos e é considerada uma arte; pode-se escolher entre os estilos, mas não se pode acrescentar seja o que for, pois a recitação do Corão exprime acima de tudo os ritmos do espírito. A forma deve ser a expressão adequada do conteúdo, e não deve em caso algum contrariá-lo; ela não pode ser abandonada ao arbítrio dos indivíduos, à sua ignorância e às suas paixões. Mas é preciso distinguir diversos graus na arte sacra, portanto níveis diferentes de absolutividade ou de relatividade, e sempre devemos levar em conta o caráter relativo da arte como tal; temos assim a arte sacra no sentido mais rigoroso, tal como aparece no tabernáculo de Moisés, cujas formas e materiais foram prescritas pelo próprio Deus, num segundo grau a arte sacra desenvolvida em conformidade com tal ou qual gênio étnico e em terceiro lugar os aspectos decorativos desta arte, em que o gênio étnico se afirma mais livremente, mas sempre em conformidade com o espírito que a transcende. O “imperativo categórico” que é a integridade espiritual da forma não pode impedir que a ordem formal esteja submetida a certas vicissitudes; o fato de que as obras primas da arte sacra sejam expressões sublimes do Espírito não deve nos fazer esquecer que, vistas do ponto de vista deste mesmo Espírito, estas obras, mesmo em suas mais imponentes exteriorizações, aparecem como meras concessões ao “mundo” e lembram a palavra Evangélica: “Quem puxar a espada, morrerá pela espada”. Com efeito, quando o Espírito tem necessidade de expressar-se a este ponto, é porque ele já está próximo de ser perdido; a exteriorização como tal traz em si o veneno da exterioridade, portanto do esgotamento, da fragilidade e da decrepitude; a obra prima é como que cheia de remorsos, uma espécie de “canto do cisne”; temos às vezes a impressão de que a arte, pela superabundãncia de suas perfeições, serve para suprir a ausência de sabedoria ou de santidade. Os Padres do deserto não tinham necessidade de colunatas nem de vitrais; ao contrário, as pessoas que, hoje em dia, recriminam mais a arte sacra em nome do “puro espírito” são aquelas que menos a compreendem e que mais necessidade tem dela. Seja como for, nada de nobre pode perder-se: todos os tesouros da arte, como aqueles da natureza, encontram-se perfeitamente e infinitamente na Beatitude; o homem que tem plena consciência desta verdade não pode deixar de ser livre das cristalizações sensíveis enquanto tais.
Mas existe também o simbolismo primordial da natureza virgem; esta é um livro aberto, uma revelação do Criador, um santuário, e mesmo, sob certos aspectos, uma via. Os sábios e os eremitas toda a vida buscaram a natureza, é junto a ela que eles sentiram-se longe do mundo e próximos do Céu; inocente e pia, mas nem por isso menos profunda e terrível, ela sempre foi seu refúgio. Se tivéssemos que escolher entre o mais magnífico dos templos e a natureza inviolada, é esta que escolheríamos; a destruição de todas as obras humanas não seria nada diante da destruição da natureza. A natureza oferece a um só tempo os vestígios do Paraíso terrestre e os signos precursores do Paraíso celeste.
E, no entanto, de outro ponto de vista, podemos nos perguntar o que é mais precioso, as alturas da arte sacra enquanto inspirações diretas de Deus, ou as belezas da natureza enquanto criações divinas e símbolos; a linguagem da natureza é sem dúvida mais primordial e mais universal, mas ela é menos humana do que a arte e menos inteligível; ela exige mais conhecimento espiritual para poder decifrar sua mensagem, pois as coisas exteriores são aquilo que somos,  não em si mesmas, mas quanto à sua eficácia – o que também é válido para as artes, mas em menor medida, precisamente porque a linguagem artística passa pelo homem. Existe aí uma relação semelhante à que existe entre as mitologias tradicionais e a metafísica pura. A melhor resposta ao problema é que a arte sacra, da qual um dado santo não tem “necessidade” pessoalmente, exterioriza mesmo assim a sua santidade, ou seja, exatamente aquilo que torna a exteriorização supérflua para o santo; através da arte, esta santidade ou esta sabedoria se tornam milagrosamente tangíveis, com toda sua matéria humana que a natureza virgem não poderia oferecer; num certo sentido, a virtude “dilatante” e “refrescante” da natureza está em não ser ela humana, mas angélica. Dizer que se prefere as “obras de Deus” às “obras dos homens” seria simplificar demasiado o problema , uma vez que na arte que merece o epíteto “sacra”, Deus é sempre o autor; o homem não passa de um instrumento, e o humano é o estofo. A este respeito, a imagem de Buda combina de modo expressivo as “categorias” de que tratamos aqui: primeiro, o conhecimento e a concentração; depois a virtude, absorvida nos dois elementos anteriores; a seguir a tradição e a arte, representadas pela própria imagem; finalmente, a natureza, representada pelo lótus.
O simbolismo da natureza é solidário com a nossa experiência humana: se a abóbada celeste gira, é porque os mundos celestes evoluem ao redor de Deus; a aparência se deve, não apenas à nossa posição terrestre, mas também, e acima de tudo, a um protótipo transcendente que não é absolutamente ilusório, mas que parece mesmo ter criado nossa situação espacial para permitir que nossa perspectiva espiritual seja o que é; a ilusão terrestre reflete assim uma situação real, e esta relação é da mais alta importância, pois ela mostra que são os mitos – sempre solidários com a astronomia ptolomaica – que darão a última palavra. Como já frisamos em outras ocasiões, a ciência moderna, mesmo oferecendo evidentemente medições muito exatas, mas ignorando o sentido e o alcance dos símbolos, não pode contradizer de jure as concepções mitológicas naquilo que elas tem de espiritual, portanto de válido; tudo o que ela fez foi alterar os dados simbólicos, ou, dito de outro modo, ela destruiu as bases empíricas das mitologias sem ser capaz de explicar o significado dos dados novos. Do nosso ponto de vista, essa ciência superpõe um simbolismo com uma linguagem infinitamente complicada a um outro, metafisicamente válido mas mais humano – como quando traduzimos um texto em outra língua, mais difícil – mas ela ignora que está propondo implicitamente um novo ptolomeísmo metafísico.
A sabedoria da natureza acha-se muitas vezes afirmada no Corão, que insiste sobre os “sinais “ da criação “para aqueles que são dotados de entendimento”, o que indica a relação entre a natureza e a gnose; a abóbada celeste é o templo da eterna sophia. A mesma palavra “sinais” (ayat) designa os versículos do Livro; como os fenômenos da natureza a um tempo virginal e maternal, eles revelam Deus brotando da “Mãe do Livro” e transmitindo-se pelo espírito virgem do Profeta. O Islam, como o antigo Judaísmo, está muito próximo da natureza por estar ancorado na alma nômade; sua beleza é a do deserto e do oásis; a areia é para ela um símbolo da pureza – ela é usada para as abluções na falta de água – e o oásis prefigura o Paraíso. O símbolo da areia é análogo ao da neve: é uma grande paz que unifica, semelhante à Shahadah que é paz e luz e que dissolve no final das contas os nós e as antinomias da existência, ou que reduz, absorvendo-as, todas as coagulações efêmeras à Substância pura e imutável. O Islam surgiu da natureza; os sufis retornam para ela, conforme um significado do seguinte hadith: “O Islam começou no exílio e terminará no exílio”. As cidades, com sua tendência à petrificação e com seus germes de corrupção, opõem-se à natureza sempre virgem; sua única justificativa e sua única garantia de estabilidade, é de serem santuários; garantia bastante relativa, porque diz o Corão: “Não há cidade que Nós (Allah) não iremos destruir, ou que não iremos punir severamente, antes do Dia da ressurreição” (XVII, 60). Tudo isso permite compreender porque o Islam quis manter, dentro do quadro de um sedentarismo inevitável, o espírito nômade: as cidades muçulmanas guardam sempre a marca de uma peregrinação através do espaço e do tempo; o Islam reflete por toda parte a santa esterilidade e a austeridade do deserto, mas também, neste clima de morte, o transbordamento alegre e precioso das fontes e dos oásis; a graça frágil das mesquitas repete a das palmeiras, enquanto que a brancura e a monotonia das cidades têm uma beleza desértica e por isso mesmo sepulcral. No fundo do vazio da existência e por trás das suas miragens, está a eterna profusão da Vida divina.

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Mas voltemos ao nosso ponto de partida, a verdade metafísica enquanto fundamento da via. Como esta verdade provém do esoterismo – pelo menos nas tradições que possuem a polarização exo-esotérica – devemos responder aqui à questão de saber se existe ou não uma “ortodoxia esotérica”, ou se isto não é uma contradição de termos e um abuso de linguagem. Toda a dificuldade, onde esta se apresenta, reside numa concepção demasiado estreita, de um lado, do termo “ortodoxia” e, de outro, do conhecimento metafísico; é preciso de fato distinguir entre duas ortodoxias, uma extrínseca e formal e outra intrínseca e informal; a primeira refere-se ao dogma, portanto à “forma”, e a segunda à verdade universal, portanto à “essência”. Ora, as duas coisas estão ligadas no esoterismo, no sentido de que o dogma é a chave do conhecimento direto; uma vez este atingido, a forma evidentemente é ultrapassada, mas nem por isso o esoterismo deixa de ligar-se à forma que foi seu ponto de partida e cujo simbolismo permanece sempre válido, como diz o Corão: “Entrai na casa pelas suas portas” (II,189), ou seja, não há tariqah sem shari’ah, esta o círculo e aquela o raio, senda a haqiqah o centro. O esoterismo islâmico por exemplo jamais rejeitará os fundamentos do Islam, mesmo se lhe ocorrer incidentalmente contradizer tal ou qual posição ou interpretação exotérica; diremos mesmo que o sufismo é três vezes ortodoxo, primeiro porque ele faz seu vôo dentro da forma islâmica e não alhures, segundo porque suas realizações e suas doutrinas correspondem à verdade e não ao erro, e terceiro porque ele permanece sempre solidário ao Islam, porque ele se considera como o “cerne” (lubb) deste e não como outra religião. Ibn Arabi, malgrado suas audácias verbais, não se tornou budista nem rejeitou os dogmas e as leis da shari’ah, o que equivale a dizer que ele não saiu da ortodoxia, seja ela do Islam ou da Verdade simplesmente.
Se uma formulação pode parecer contradizer um dado ponto de vista exotérico, a questão que se coloca é de saber se ela é verdadeira ou falsa, e não se ela é “conformista” ou “livre”; na intelectualidade pura os conceitos de “liberdade”, “independência” ou de “originalidade” não tem nenhum sentido, assim como seus contrários. Se o mais puro esoterismo comporta a verdade total – esta é a sua razão de ser – a questão da “ortodoxia” no sentido religioso não pode se colocar, evidentemente; o conhecimento direto dos mistérios não pode ser “muçulmano” ou “cristão”, assim com a visão de uma montanha é a visão de uma montanha, e não outra coisa; falar de um exoterismo “não-ortodoxo” não é menos absurdo, pois isto equivaleria a sustentar, primeiramente, que este esoterismo não é solidário a nenhuma forma – e neste caso não existe aí nem autoridade, nem legitimidade, nem sequer utilidade – e depois que ele não é a culminação iniciática ou “alquímica” de uma via revelada, que ele não comporta assim nenhuma espécie de garantia formal e “objetiva”. Essas considerações devem fazer entender porque a idéia de pretender tudo explicar através de “empréstimos” ou de “sincretismo” é mal fundamentada, pois as doutrinas sapienciais, sendo verdadeiras, não podem discordar; se o fundo é idêntico, é preciso que as expressões o sejam. Que uma expressão especialmente feliz possa ser retomada por uma doutrina estrangeira, isto está igualmente na natureza das coisas – o contrário seria anormal e inexplicável – mas esta não é uma razão para generalizar um caso excepcional e de levar as coisas ao absurdo; é como se quiséssemos concluir, vendo que as coisas influenciam às vezes umas às outras, que todas as analogias na natureza provêm de influências unilaterais ou recíprocas.
A questão das origens do sufismo resolve-se pelo discernimento (furqan) fundamental da doutrina islâmica: Deus e o mundo; ora, este discernimento tem qualquer coisa de provisório, uma vez que a Unidade divina, buscada até suas últimas conseqüências, exclui precisamente a dualidade que é colocada pelo discernimento, e é de certo modo aí que se situa o ponto de partida da metafísica original e essencial do Islam. Uma coisa que devemos levar em conta, é que o conhecimento direto é em si mesmo um estado de pura “consciência” e não uma teoria; não há portanto nada de espantoso em que as formulações complexas e sutis da gnose não se tenham manifestado desde o princípio e de uma só vez, e que tenha havido necessidade, por questões dialéticas, de alguns conceitos platônicos. O sufismo é a “sinceridade da fé”, e esta “sinceridade” – que não tem nada a ver com o “sincerismo” de nossa época – não é outra coisa, no plano doutrinal, que uma visão intelectual que não se detém a meio caminho e que ao contrário tira da idéia unitária as conseqüências mais rigorosas; a culminação disto é, não somente a idéia do mundo-vazio, mas também a da Identidade suprema e a realização correspondente: a “unidade da Realidade” (wahdat el-Wujud). A realização da Unidade (Wahidiyah, Ahadiyah) pela “Virtude transformadora” (ihsan) é a “unificação” (tawhid).
Se a perfeição ou a santidade consistem, para o israelita e para o cristão, em “amar a Deus com todo teu coração, tua alma e teu poder” (Deut. 6,5) ou “com todas as tuas forças” (Mat. 22,37) – um através da Torá e da obediência à Lei, outro pelo sacrifício vocacional “do amor” – a perfeição será, para o muçulmano, “crer” com todo o seu ser que “não há deus se não for Deus”, fé total cuja expressão escrita é este hadith que já mencionamos: “A virtude espiritual (ihsan, cujo papel é o de tornar “sinceros” tanto o iman quanto o islam, a fé e a prática) consiste em adorar a Deus como se o vísseis; e se não o vedes, Ele entretanto vos vê”. Como ihsan e taçawwuf (“sufismo”) são a mesma coisa, este hadith é a própria definição do esoterismo e mostra bem que este, no Islam, consiste em “crer totalmente”, dado que a convicção de que só há um Deus é o pilar de todo o edifício religioso. Aonde o judeu ou o cristão colocam a intensidade, portanto a totalidade do amor, o muçulmano coloca a “sinceridade”, portanto a totalidade da fé, que ao se realizar tornar-se-á gnose, união, mistério e não-alteridade.
Visto do Islam sapiencial, o Cristianismo pode ser considerado como a doutrina do sublime, mas não como a do Absoluto; é a doutrina de um relativo sublime e que salva pela própria sublimidade – pensamos aqui no Sacrifício divino – mas que tem sua raiz, necessariamente, no Absoluto, e que assim pode conduzir a ele. Se partirmos da idéia de que o Cristianismo é “o Absoluto tornado relativo a fim de que o relativo se torne Absoluto” – para parafrasearmos uma fórmula antiga bem conhecida, e que equivale a dizer que, se o Cristo é uma “objetivação” do Intelecto divino, o coração-intelecto é uma “subjetivação” do Cristo – estamos em plena gnose, e a reserva “sentida” pelo Islam já não se aplica; mas o que é preciso dizer ainda, de um modo geral e fora da gnose, é que o Cristianismo se coloca numa perspectiva na qual a consideração do Absoluto como tal não intervém a priori; a ênfase é colocada sobre o “meio” ou o “intermediário”, e este de certa forma absorve o fim, ou melhor: este é garantido pela divindade do intermediário. Tudo isso equivale a dizer que o Cristianismo é fundamentalmente uma doutrina da União; e é nisto que ele encontra o “unitarismo”  muçulmano e mais especificamente sufi. Lembremos que toda a perspectiva cristã e toda a gnose crística estão contidas nestas palavras: “Como Vós, ó Pai, estais em Mim e eu em Vós, que também eles sejam Um como Nós somos Um; Eu neles e Vós em Mim...” (Jo, 17, 21-23). O Cristo é como o Nome salvador de Deus sob uma forma humana: tudo o que é dito de um pode ser dito do outro; o Cristo é, não apenas o Intelecto que, enquanto “luz do mundo”, discerne entre o Real e o não-real, mas também, sob o aspecto da manifestação divina “externa” ou “objetiva”, o nome divino (a “Palavra”, o “Verbo”) que, por sua virtude “redentora” opera a reintegração do não-real no Real.
Existe, na história do Cristianismo, uma espécie de nostalgia latente daquilo que poderíamos chamar de “dimensão islâmica”, ao nos referirmos à analogia entre as três perspectivas “temor”, “amor”, “gnose” – os “reinos”, do Pai, do Filho e do Espírito Santo – e os três monoteísmos judaico, cristão e muçulmano; o Islam é, de fato, do ponto de vista da “tipologia”, a cristalização religiosa da gnose, donde sua pureza metafísica e seu realismo terrestre. O protestantismo, com sua insistência sobre o “Livro” e o livre arbítrio e sua rejeição de um sacerdócio sacramental e do celibato, é a manifestação mais pesada desta nostalgia, embora de modo extra-tradicional e moderno e num sentido “tipológico” (assim como o messianismo judaico é um perigoso aliado da ideologia moderna do progresso, se apartado da ortodoxia); mas existiram outras manifestações, mais antigas e mais sutis, como os movimentos de um Amalric de Bène ou de um Joachim de Flore, ambos no século XII, sem esquecer os Montanistas do final da Antiguidade. Na mesma ordem de idéias, sabemos que os muçulmanos interpretam o anúncio do Paráclito no Evangelho de São João como se referindo ao Islam, o que, sem excluirmos evidentemente a interpretação cristã, torna-se compreensível à luz do ternário “temor-amor-gnose” a que aludimos. Se nos disserem que existiu certamente também no seio do Islam uma tendência inversa na direção da possibilidade cristã ou do “reino do Filho”, responderemos que é preciso buscar os seus traços do lado do shiismo e da Bektashiyah, portanto numa ambiência turca e persa.
Em terminologia védica, a enunciação fundamental do Cristianismo é: “Atma tornou-se Maya a fim de que Maya se torne Atma”; a do Islam será que “não há atma, se não for Atma” e, no caso da fórmula Muhammadun Rasulu ‘Llah, será: “maya é a manifestação de Atma”. Na formulação cristã subsiste um equívoco, no sentido de que Atma e Maya são justapostos; podemos compreender que esta existe de pleno direito ao lado da primeira, que ela tem uma realidade idêntica à daquela; é a este possível mal-entendido que o Islam responde. OU ainda: todas as teologias – ou teosofias – reduzem-se grosso modo a estes dois tipos: Deus-Ser e Deus-Consciência, ou Deus-Objeto e Deus-Sujeito, ou ainda Deus objetivo, “absolutamente outro”, e Deus subjetivo, a um tempo imanente e transcendente. O Judaísmo e o Cristianismo pertencem à primeira categoria, e também o Islam, enquanto religião; mas ao mesmo tempo este é como que uma expressão religiosa e “objetivadora” do Deus-Sujeito, e é por isto que ele se impõe, não pelo fenômeno ou pelo milagre, mas pela evidência, sendo que o conteúdo ou o “motor” desta é a “unidade”, portanto a absolutividade; e é por isso que existe também uma relação entre o Islam e a gnose ou o “reino do Espírito”. Quanto ao significado universal de “Atma tornado Maya a fim de que Maya se torne Atma”, trata-se aqui da descida do Divino, do Avatara, do Livro sagrado, do Símbolo, do Sacramento, da Graça sob qualquer forma tangível, portanto também da Doutrina ou do Nome de Deus, o que nos leva de volta ao Muhammadun Rasulu ‘Llah. A ênfase é colocada, seja sobre o continente divino como no Cristianismo – mas então este continente possui forçosamente também um aspecto de conteúdo, portanto de “verdade” (“...Eu sou a Via, a Verdade e a Vida...”) –,  seja sobre o conteúdo “verdade” como no Islam e nas gnoses – e então este conteúdo apresenta-se forçosamente sob o aspecto formal do continente, portanto de “fenômeno divino” ou de símbolo (o Corão é uma “descida” divina objetiva, um “signo” e uma “misericórdia”, o que coincide com o sentido da segunda Shahadah). O continente é o “Verbo feito carne”, e o conteúdo é a absolutividade da Realidade ou do Si, expresso, no Cristianismo, pela injunção de amar a Deus com todo nosso ser e de amar ao próximo como a nós mesmos, porque afinal “todas as coisas são Atma” (ou Allah, enquanto Ezh-Zhahir, “o Exterior”).
A diversidade das religiões e sua equivalência quanto ao essencial é dada – segundo a perspectiva sufi mais intelectual – pela diversidade natural dos receptáculos coletivos: uma vez que cada receptáculo individual tem seu Senhor particular, o mesmo acontece com as coletividades psicológicas. El-Hallaj diz em sua obra Diwan: “Eu meditei sobre as diversas religiões, esforçando-me por compreendê-las, e descobri que elas provêm de um principio único que possui numerosas ramificações. Não peça a um homem, portanto, que adote uma dada religião, porque isto o distanciaria do princípio fundamental; é este princípio mesmo que deverá vir buscá-lo; nele (no princípio) elucidar-se-ão todas as alturas e todos os significados; então ele (o homem) os compreenderá”. O “Senhor” é o Ser-Criador na medida em que ele concerne ou “olha” uma dada alma ou uma categoria de almas, e na medida em que ele é visto por elas em função de suas naturezas próprias, as quais por sua vez derivam de certas possibilidades divinas, pois Deus é “o Primeiro” (El-Awwal) e “o Último” (El-Akhir).
Uma religião é uma forma – portanto um limite – que “contém” o Ilimitado, se podemos mos permitir este paradoxo; toda forma é fragmentária por excluir necessariamente outras possibilidades formais; o fato de que as formas – quando elas são inteiras, ou seja perfeitamente “elas mesmas” – representam a totalidade, cada uma a seu modo,  não impede que elas sejam fragmentárias sob o aspecto de sua particularização e de sua exclusão recíproca. Para salvar o axioma – metafisicamente inadmissível – da absolutividade de um dado fenômeno religioso, chega-se a negar, seja a verdade principial – a saber o Absoluto verdadeiro – seja o intelecto que a conhece, e relaciona-se ao fenômeno enquanto tal os caracteres de certeza e de absolutividade que lhes são próprios, o que dá lugar a tentativas filosóficas sem dúvida hábeis, mas que só vivem de sua contradição interna. É contraditório fundamentar uma certeza que se quer total, de um lado sobre a ordem fenomênica e de outro sobre a graça mística, exigindo ao mesmo tempo uma adesão intelectual; uma certeza de ordem fenomênica pode derivar de um fenômeno, mas uma evidência principial só pode provir dos princípios, qualquer que possa ter sido a causa ocasional da intelecção; se a certeza pode surgir da inteligência – e ela deve fazê-lo quanto mais a verdade a conhecer for profunda – é porque ela já se encontra aí por sua própria natureza.
De outro lado, se Isto que em si é Evidência in divinis torna-se Fenômeno sagrado numa determinada ordem – na ordem humana e histórica, como é o caso – é antes de tudo porque o receptáculo previsto é uma coletividade, portanto um sujeito múltiplo que se diferencia em indivíduos e se estende através da duração para além das individualidades efêmeras; a divergência dos pontos de vista só se produz a partir do momento em que o fenômeno sagrado se separa, na consciência dos homens, da verdade eterna que ele manifesta – e que não mais é “percebida” – e que por isso a certeza se torna “crença” e não pede mais senão o fenômeno, o signo divino objetivo, o milagre externo, ou então – o que dá no mesmo – o princípio racionalmente entendido e na prática reduzido ao fenômeno. Quando o fenômeno sacro como tal se torna o fator exclusivo da certeza, o intelecto principial e supra-fenomênico é rebaixado ao nível dos fenômenos profanos, como se a inteligência pura não fosse capaz senão de relatividades e como se o “sobrenatural” estivesse num elemento celeste arbitrário e não na natureza das coisas. Ao distinguir entre a “substância” e os “acidentes”, constatamos que os fenômenos provêm destes e o intelecto daquela; mas o fenômeno religioso, bem entendido, é uma manifestação direta e central do elemento “substância”, enquanto que o intelecto, em sua atualização humana e do ponto de vista da expressão, liga-se forçosamente à acidentalidade deste mundo das formas e dos movimentos.
O fato de que o intelecto é uma graça estática e permanente o torna simplesmente “natural” aos olhos de alguns, o que equivale a negá-lo; dentro da mesma ordem de idéias, negar o intelecto porque nem todos tem acesso a ele é tão falso quanto negar a graça porque alguns não usufruem dela. Alguns dirão que a gnose é um luciferianismo que tende a esvaziar a religião de seu conteúdo e a recusar seu dom sobrenatural, mas podemos dizer do mesmo modo que a tentativa de emprestar ao fenomenismo religioso, ou ao exclusivismo que ele implica, uma absolutividade metafísica, é o ensaio mais hábil de reverter a ordem natural das coisas negando – em nome de uma certeza tirada da ordem fenomênica e não da ordem principial e intelectual – a evidência que o intelecto comporta em si mesmo. O intelecto é o critério do fenômeno; se o inverso é igualmente verdadeiro, é entretanto num sentido mais indireto e de um modo muito mais relativo e exterior. No início de uma religião, ou no interior de um mundo religioso ainda homogêneo, o problema não se coloca.
A prova da transcendência cognitiva do intelecto é que, mesmo dependendo existencialmente do Ser na medida em que se manifesta, ele o ultrapassa de certo modo, porque pode defini-lo como uma limitação – em vista da Criação – da Essência divina, a qual é “Sobre-Ser” ou “Si”. Da mesma forma: se nos perguntarem se o intelecto pode ou não se “colocar” acima das religiões enquanto fenômenos intelectuais e históricos – ou se existe fora das religiões um ponto “objetivo” que permita escapar à “subjetividade” religiosa – responderemos: perfeitamente, uma vez que o intelecto pode definir a religião e constatar os seus limites formais; mas fique claro que, se entendermos por “religião” a infinitude interna da Revelação, o intelecto não poderia ultrapassá-la, ou antes, a questão já não se coloca, pois o intelecto participa desta infinitude e identifica-se com ela sob o aspecto de sua natureza intrínseca mais rigorosamente “si-mesma” e mais dificilmente acessível.
No simbolismo da teia da aranha, os raios representam a “identidade” essencial e os círculos a “analogia” existencial, o que mostra, de modo simples mas adequado, toda a diferença entre os elementos “intelecção” e “fenômeno”, bem como a sua solidariedade; e como, devido a esta, nenhum dos dois elementos se apresenta em estado puro, poderíamos – a fim de não negligenciarmos nenhuma nuance importante – falar também de uma “analogia contínua” para o primeiro e de uma “identidade descontínua” para o segundo. Toda certeza – notadamente as das evidências lógicas e matemáticas – surge do Intelecto divino, o único que é; mas ela surge dele através da tela existencial e fenomênica da razão, ou mais exatamente através dos véus que separam a razão de sua Fonte última; é a “identidade descontínua” da luz solar que, mesmo filtrada através de muitos vitrais coloridos, permanece sempre essencialmente a mesma luz. Quanto à “analogia contínua” entre os fenômenos e o Princípio que os exala, se é evidente que o fenômeno-símbolo não é aquilo que ele simboliza – o sol não é Deus, e é por isso que ele se põe – sua existência não deixa de ser um aspecto ou um modo da Existência como tal (mas não uma “parte”, bem entendido); é o que permite chamar de “contínua” a analogia quando a consideramos sob o aspecto de sua ligação ontológica ao Ser puro, embora esta terminologia, empregada aqui a título provisório, seja logicamente contraditória e na prática inútil. A analogia é uma identidade descontínua, e a identidade uma analogia contínua; esta é, uma vez mais, toda a diferença entre o fenômeno sagrado ou simbólico e a intelecção principial.

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Já se censurou a gnose por ser uma exaltação da “inteligência humana”; nesta última expressão é fácil captar o erro, pois, metafisicamente, a inteligência é antes de tudo a inteligência e nada mais do que isto; ela só é humana apenas na medida em que ela não é mais ela mesma, ou seja na medida em que, de substância, ela se torna acidente. Para o homem e mesmo para todos os seres, existem duas relações a considerar: a relação “círculo concêntrico” e a relação “raio centrípeto”: segundo a primeira, a inteligência é limitada por um nível determinado de existência, sendo então vista na medida em que ela se separa de sua fonte ou que é apenas uma refração; de acordo com a segunda, a inteligência é tudo o que ela é por sua natureza intrínseca, qualquer que seja a sua situação contingente, como é o caso. A inteligência discernível entre as plantas – na medida em que ela é infalível – “é” a de Deus, a única que é; com mais razão isto vale para a inteligência do homem, na medida em que esta é capaz de adequações superiores graças ao seu caráter a um tempo integral e transcendente. Só existe um sujeito, o Si universal, e suas refrações ou ramificações existenciais são ou não são Ele mesmo, conforme a relação considerada. Esta verdade pode ou não ser compreendida; é impossível acomodá-la às necessidades da causalidade, assim como é impossível “colocar ao alcance de todos” noções tais como o “relativamente absoluto” ou a “transparência metafísica” dos fenômenos. O panteísmo diz que “tudo é Deus”, mas com a premissa de que Deus não é senão o conjunto das coisas; a metafísica verdadeira, ao contrário, dirá ao mesmo tempo que “tudo é Deus” e que “nada é Deus”, acrescentando que Deus não é nada fora d’Ele mesmo e que ele não é nada que esteja no mundo. Existem verdades que só podem ser expressas por antinomias, o que não significa que estas constituam no caso um “procedimento” filosófico que deva chegar a uma dada “conclusão”, pois o conhecimento direto situa-se acima das contingências da razão; não se deve confundir a visão com a expressão. De resto, as verdades são profundas, não porque elas sejam difíceis de expressar por aquele que as conhece, mas porque são difíceis de compreender por aqueles que não as conhecem; daí a desproporção entre a simplicidade do símbolo e a complexidade eventual dos trajetos mentais.

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Pretender, como fizeram alguns, que na gnose a inteligência coloca-se orgulhosamente no lugar de Deus, é ignorar que ela não poderia realizar dentro da estrutura de sua natureza particular aquilo que podemos chamar o “ser” do Infinito; a inteligência pura comunica um reflexo deste – ou um sistema de reflexos – adequado e eficaz, mas ela não transmite diretamente o “ser” divino, sem o qual o conhecimento intelectual nos identificaria de modo imediato com seu objeto. A diferença entre a crença e a gnose – a fé religiosa elementar e a certeza metafísica – é comparável à que existe entre uma descrição e uma visão: assim com a primeira, a segunda não nos coloca no cume de uma montanha, mas ela nos ensina sobre as suas propriedades e sobre o caminho a tomar; não nos esqueçamos que um cego que caminha sem parar anda mais depressa do que alguém que vê mas que se detém a cada passo. Seja como for, a visão identifica o olho com a luz, ela comunica um conhecimento justo e homogêneo e permite tomar atalhos aonde a cegueira obriga a tatear; e isto deve ser dito, ainda que desagrade aos contendores moralizantes do intelecto que se recusam a admitir que este é uma graça, mesmo que em modo estático e “naturalmente sobrenatural” (a condição humana, com tudo o que a distingue da animalidade, é também uma graça); entretanto, a intelecção não é toda a gnose, uma vez que esta comporta os mistérios da união e desemboca diretamente no Infinito, se podemos nos exprimir assim; o caráter “incriado” do sufi perfeito (eç-çufi lam yuqhlaq) não concerne a priori senão a essência transpessoal do intelecto e não o estado de absorção na Realidade que o intelecto nos faz “perceber”, ou do qual ele nos torna “conscientes”. A gnose total ultrapassa imensamente tudo o que aparece no homem como “inteligência”, precisamente porque ela é um incomensurável mistério de “ser”; está aí a diferença, indescritível em linguagem humana, entre a visão e a realização; nesta, o elemento “visão” se torna “ser”, e nossa existência transmuta-se em luz. Mas mesmo a visão intelectual comum – a intelecção que reflete, assimila e discerne sem operar ipso facto uma transmutação ontológica – ultrapassa já largamente o simples pensamento, o jogo discursivo e “filosófico” do mental.

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A dialética metafísica ou esotérica evolui entre a simplicidade simbolista e a complexidade reflexiva; esta última – e este é um ponto que os modernos tem dificuldade em compreender – pode tornar-se mais e mais sutil sem por isso aproximar-se um milímetro da verdade; dito de outra forma, um pensamento pode subdividir-se em mil ramificações e cercar-se de todas as precauções possíveis e ainda assim permanecer externo e “profano”, pois nenhuma virtuosidade do oleiro transformará a argila em ouro. Podemos conceber uma linguagem cem vezes mais reflexiva do que a que usamos atualmente, pois não existem aí limites de princípio; toda formulação é forçosamente “ingênua” à sua maneira, e podemos sempre tentar alçá-la por um refinamento de espelhamentos lógicos ou imaginativos; ora, isto prova, de um lado que a reflexividade como tal não acrescenta nenhuma qualidade essencial a um enunciado e, de outro, retrospectivamente, que os enunciados relativamente simples dos sábios de outrora eram carregados de uma plenitude que, precisamente, não sabemos mais discernir a priori e cuja existência é negada frequentemente. Não é uma reflexividade levada ao absurdo que poderá nos introduzir no coração da gnose; aqueles que querem proceder sobre este plano de investigações e tentativas, que escrutinam e pesam, não entenderam que não se pode submeter todas as ordens de conhecimentos ao mesmo “regime” de lógica e de experimento, e que existem realidades que se entendem de um golpe, ou que não se entendem de modo algum.
Não sem relação com o que precede está a questão das duas sabedorias, a metafísica e a mística: seria totalmente falso reclamar a autoridade de certas formulações místicas ou “unitivas” para negar a legitimidade das definições intelectuais, ao menos da parte de quem se situa fora do estado de que se trata, pois de fato, existem contemplativos que rejeitam em nome da experiência direta as formulações doutrinais, que para eles tornaram-se apenas “palavras”, o que não os impede de propor outras fórmulas da mesma ordem e eventualmente do mesmo valor. Trata-se aqui de não confundir o plano propriamente intelectual ou doutrinal, que possui toda a legitimidade e portanto toda a eficácia que lhe é conferida em seu nível pela natureza das coisas, com o plano da experiência interior, das “sensações” ontológicas ou dos “perfumes” e “sabores” místicos; da mesma forma seria falso contestar o caráter adequado de um mapa porque empreendemos uma viagem concreta, ou pretender por exemplo, por viajarmos do norte para o sul, que o Mediterrâneo se acha “no alto” e não “em baixo” como no mapa.
A metafísica possui como que duas grandes dimensões, uma “ascendente” e que trata dos princípios universais e da distinção entre o Real e o ilusório, e outra “descendente” que trata ao contrário da “vida divina” nas situações criaturais, portanto da “divindade” fundamental e secreta dos seres e das coisas, pois “tudo é Atma”; a primeira dimensão pode ser chamada de “estática” e se refere à primeira Shahadah e à “extinção” (fana), a “aniquilação” (istihlak), enquanto que a segunda dimensão aparece como “dinâmica” e se refere à segunda Shahadah e à “permanência” (baqa). Comparada com a primeira dimensão, a segunda é misteriosa e paradoxal, ela parece contradizer a primeira em certos pontos, ou ainda, ela é como um vinho que embriaga o Universo; mas jamais devemos perder de vista que esta segunda dimensão está contida implicitamente na primeira – assim como a segunda Shahadah dericva da primeira, a saber do “ponto de intersecção” illa – de sorte que a metafísica estática, “elementar” ou “separativa” basta a si mesma e não merece nenhuma censura da parte daqueles que saboreiam os paradoxos enervantes da experiência unitiva. Aquilo que, na primeira Shahadah, é o termo illa, será, na primeira metafísica, o conceito da causalidade universal: nós partimos da idéia que o mundo é falso, pois somente o Princípio é real, mas como estamos no mundo, acrescentamos esta ressalva de que o mundo reflete Deus; e é desta ressalva que brota a segunda metafísica, de cujo ponto de vista a primeira aparece como um dogmatismo insuficiente. Existe aí uma espécie de confronto entre as perfeições de incorruptibilidade e de vida: uma não existe sem a outra, e seria um “erro de óptica” pernicioso desprezar a doutrina em nome da realização, ou de negar esta em nome da primeira; entretanto, como o primeiro erro é mais perigoso do que o segundo – este último não se produz jamais na metafísica pura e, se ela se produz, ela consiste em superestimar a “letra” doutrinal em seu particularismo formal – lembraremos, para glória da doutrina, esta sentença do Cristo: “Passarão o céu e a terra, mas minhas palavras não passarão”. A teoria hindu dos upayas, partilhada pelo budismo, dá conta dessas duas dimensões do espiritual: os conceitos são verdadeiros conforme os níveis a que se referem, eles podem ser ultrapassados, mas não cessam jamais de serem verdadeiros em seus respectivos níveis, e este é um aspecto do Real absoluto.
Diante do Absoluto enquanto puro Si e Ipseidade impensável, a doutrina metafísica é marcada pela relatividade, mas ela não deixa de oferecer pontos de parada absolutamente seguros e “aproximações adequadas” que o espírito humano não pode dispensar; é isto que os simplificadores “concretistas” são incapazes de compreender. A doutrina está para a Verdade assim como o círculo está para o centro.

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A noção de “subconsciente” é susceptível de uma interpretação, não apenas psicológica e inferior, mas também espiritual e por conseguinte puramente qualitativa; é verdade que neste caso deveríamos falar em “supra-consciente”, mas de fato o supra-consciente possui também um aspecto subterrâneo em relação à nossa consciência comum, exatamente aliás como o coração que se assemelha a um santuário enterrado e que, simbolicamente, reaparece na superfície graças à realização unitiva; nós nos permitimos falar assim, a título provisório, de um “subconsciente espiritual”, que em nenhum momento deve ser associado ao psiquismo inferior e vital, ao sonho passivo e caótico dos indivíduos e das coletividades.
O subconsciente espiritual, tal como o entendemos, é formado por tudo o que o intelecto contém de modo latente e implícito; ora, o intelecto “sabe” por sua própria substância tudo o que é susceptível de ser sabido, ele atravessa – como o sangue que corre mesmo nos menores vasos do corpo – todos os egos com os quais é tecido o universo, e ele desemboca, no sentido vertical, no Infinito. Em outros termos: o centro intelectivo do homem, que é praticamente “subconsciente”, tem conhecimento não apenas de Deus, mas também da natureza do homem e de seu destino (as predições, não apenas dos profetas, mas também dos shamans em estado de transe, explicam-se por esta homogeneidade cósmica da inteligência); e isso nos permite apresentar a Revelação como uma manifestação “sobrenaturalmente natural” daquilo que a espécie humana “conhece” em sua onisciência virtual e oculta, a seu próprio respeito e a respeito de Deus. O fenômeno profético aparece assim como uma espécie de despertar, sobre o plano humano, da consciência universal, que está presente em toda parte no cosmo, em diferentes graus de desabrochar ou de dormência; mas como a humanidade é diversa, este transbordamento de ciência é igualmente diverso, não sob o aspecto do conteúdo essencial, mas sob o aspecto da forma, e este é mais um aspecto do “instinto de conservação” das coletividades ou de sua sabedoria “subconsciente”; pois a verdade salvadora deve corresponder aos receptáculos, ela deve ser inteligível e eficaz para cada qual. Na Revelação, é em última análise sempre o “Si” que fala, e como a sua Palavra é eterna, os receptáculos humanos a “traduzem” – na sua raiz e por sua natureza, não conscientemente ou voluntariamente – na linguagem de uma dada condição espacial e temporal; isto equivale a dizer que a “tradução” opera-se previamente em Deus em vista de um determinado receptáculo humano; não é o receptáculo que determina Deus, mas Deus que determina o receptáculo; nos casos de inspiração indireta (em sânscrito: smriti) – como nos comentários sagrados – que não devem ser confundidos com a Revelação (em sânscrito: shruti), o papel do receptáculo não é simplesmente existencial, ele é ativo no sentido que ele “interpreta” segundo o Espírito, em lugar de “receber” diretamente do Espírito; as consciências individualizadas são véus que filtram e adaptam a fulgurante luz da Consciência incondicionada do Si, em dois níveis, conforme se trate da inspiração direta e divina ou da inspiração indireta e sapiencial. Para a gnose sufi,, toda a criação é um jogo – com combinações infinitamente variadas e sutis – de receptáculos cósmicos e revelações divinas.
O interesse dessas considerações não é o de acrescentar uma especulação a outras especulações, mas de fazer pressentir – senão de demonstrar – que o fenômeno religioso, por “sobrenatural” que seja por definição, possui também um lado “natural” que, a seu modo, garante a veracidade do fenômeno; queremos dizer que a religião – ou a sabedoria – é co-natural ao homem, que este não seria homem se não comportasse em sua natureza um terreno para a eclosão do Absoluto; ou ainda, que ele não seria homem – “imagem de Deus” – se sua natureza não lhe permitisse tomar “consciência”, apesar de sua “petrificação” e através dela, de tudo o que “é” e, por isso mesmo, de tudo o que consiste seu interesse último. A Revelação manifesta por conseguinte toda a inteligência que tem as coisas virgens, ela é analogicamente assimilável – mas num plano superior – à infalibilidade que conduz as aves migratórias ou que volta as plantas para a luz; aludimos aqui, não apenas à intuição que faz com que os crentes sigam a Mensagem celeste, mas à “sobrenatureza natural” da espécie humana, que pede as Revelações como na natureza um determinado continente pede um determinado conteúdo que lhe corresponde. No que concerne o “naturalmente sobrenatural” – ou o inverso, que globalmente vem a dar no mesmo – acrescentaremos que os Anjos fornecem um exemplo complementar em relação ao Intelecto: os Anjos são os canais “objetivos” do Espírito Santo, como Intelecto é o canal “subjetivo”, e os dois tipos de canais confundem-se no sentido de que toda intelecção passa por Er-Ruh, o Espírito. A revelação é assim tudo o que sabemos na plenitude virtual de nosso ser, e também tudo o que amamos e tudo o que somos.

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O homem primordial, antes da perda da harmonia edêmica, via as coisas desde o interior, na sua substancialidade e na Unidade; após a queda, ele não as via mais senão do exterior e em sua acidentalidade, portanto fora de Deus. Adão é o espírito (ruh) ou intelecto (‘aql) e Eva a alma (nafs); é através da alma – complemento “horizontal” do espírito “vertical”, e pólo existencial da inteligência pura – ou através da vontade que surge o movimento de exteriorização e de dispersão; a serpente tentadora, que é o gênio cósmico deste movimento, não pode agir diretamente sobre a inteligência, e ela precisa assim seduzir a vontade, Eva. Quando o vento sopra sobre um lago perfeitamente calmo, o reflexo do sol é perturbado e fragmentado; é assim que se cumpre a perda do Édem, que o reflexo divino é quebrado. A Via é o retorno à visão da inocência, à dimensão interior onde todas as coisas morrem e renascem na Unidade – neste Absoluto que é, com suas concomitâncias de equilíbrio e de inviolabilidade, todo o conteúdo e toda a razão de ser da condição humana.
E esta inocência é também a “infância” que “não teme o amanhã”. O sufi é “filho do momento” (ibn el-waqt), o que significa antes de mais nada que ele tem consciência da eternidade e que, por sua “lembrança de Allah” ele situa-se num “instante intemporal” de “atualidade celeste”; mas isto significa igualmente, e por via de consequência, que ele se atém sempre à Vontade divina, vale dizer que ele realiza que o momento presente é aquilo que Deus quer dele; ele não desejará assim estar “antes” ou “depois”, ou desfrutar daquilo que, de fato, situa-se fora do “agora” divino – este instante insubstituível em que pertencemos concretamente a Deus, o único instante em que podemos, de fato, querer pertencer-lhe.

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Queremos apresentar agora um resumo sucinto mas tão rigoroso quanto possível daquilo que constitui fundamentalmente a Via no Islam. Esta conclusão de nosso livro sublinhará ao mesmo tempo o caráter estritamente corânico e maometano da via dos sufis.
Lembremos antes de mais nada este fato crucial, que é a coincidência de taçawwuf com ihsan, e que ihsan é “que adoreis a Deus como se  O vísseis, porque, se não o vedes, Ele entretanto vos vê”. O ihsan – o taçawwuf – não é outra coisa que a “adoração” (‘ibadah) perfeitamente “sincera” (mukhliçah) de Deus, a adequação integral da inteligência-vontade ao seu “conteúdo” e protótipo divinos. O Sheikh El-Allaoui indica, segundo a terminologia sufi, que a início de el-ihsan é a vigilância (muraqabah), enquanto que seu fim é a “contemplação direta” (mushahadah).
A quintessência da adoração é crer que la ilaha illa’Llah, e, por conseguinte, que Muhammadun Rasuli’Llah. A prova: segundo o dogma islâmico e dentro de seu “raio de jurisdição”, o homem só é condenado com certeza em razão da ausência desta fé. O muçulmano não é condenado ipso facto por não rezar ou jejuar, e as mulheres estão isentas em certas condições físicas; ele também não é condenado por não pagar o dízimo: os pobres e os mendicantes estão isentos, o que indica no mínimo uma certa relatividade, como nos casos anteriores. Com mais razão, não se é condenado por não cumprir a Peregrinação; o muslim não é obrigado a fazê-la se não puder; quanto à Guerra Santa, não é sempre que ela ocorre, e os doentes, os inválidos, as mulheres e as crianças não são obrigados a participar. Mas se é necessariamente condenado – sempre dentro dos quadros do Islam ou num sentido transposto – por não crer que la ilaha illa’Llah e que Muhammadun Rasuli’Llah (o que equivale, no Cristianismo, ao “pecado contra o Espírito Santo); esta lei não conhece nenhuma exceção, porque ela identifica-se de certo modo com aquilo que constitui o próprio sentido da condição humana. É então incontestavelmente esta fé que constitui a quintessência do Islam; e é a “sinceridade” (ikhlaç) desta fé ou desta aceitação que faz el-ihsan ou el-taçawwuf. Em outros termos: a rigor, é concebível que um muslim que, por exemplo, tenha deixado de rezar ou jejuar durante toda sua vida, seja salvo malgrado tudo e por razões que nos escapam, mas que contaram para a Misericórdia divina; ao contrário, é inconcebível que um homem que negue que la ilaha illa’Llah  seja salvo, porque esta negação eliminaria de si toda evidência da qualidade de muslim, portanto a condição sine qua non de sua salvação.
Ora, a sinceridade da fé implica também sua profundidade, segundo nossas capacidades; quem diz capacidade, diz vocação, embora Deus não exija sobre este plano que atinjamos o objetivo que concebemos – como diz o Bhagavad Gita, Deus não exije senão o esforço e não pune o insucesso. Devemos compreender na medida em que somos inteligentes, não na medida em que não o somos e na qual não existe adequação possível entre o sujeito conhecedor e o objeto a ser conhecido. Também a Bíblia ensina – em ambos os Testamentos – que devemos “amar” a Deus com todas as nossas faculdades; a inteligência não poderia assim ser excluída, tanto mais por ser ela que caracteriza o homem e o distingue dos animais. O livre arbítrio seria inconcebível sem a inteligência.
O homem é feito de inteligência integral ou transcendente – portanto capaz seja de abstração seja de intuição supra-sensível – e de vontade livre, e é por isso que existe uma verdade e uma via, uma doutrina e um método, uma fé e uma submissão, um iman e um islam; el-ihsan, por ser sua perfeição e sua culminação, está ao mesmo tempo neles e acima deles. Podemos dizer que existe el-ihsan porque existe no homem alguma coisa que exige a totalidade, ou alguma coisa de absoluto e de infinito.
A quintessência da verdade é o discernimento entre o contingente e o Absoluto; e a quintessência da Via é a consciência permanente da absoluta Realidade. E quem diz “quintessência”, neste contexto espiritual, diz por isso mesmo el-ihsan.
O homem, dissemos, é feito de inteligência e vontade; assim, ele é feito de compreensões e de virtudes, ou de coisas que ele sabe e coisas que ele cumpre, ou, em outros termos: daquilo que ele sabe e daquilo que ele é. As compreensões são prefiguradas pela primeira Shahadah e as virtudes pela segunda; é por isso que podemos descrever el-taçawwuf, seja expondo uma metafísica, seja comentando suas virtudes. A segunda Shahadah identifica-se essencialmente com a primeira, da qual ela é um prolongamento, como as virtudes identificam-se no fundo às verdades e delas derivam de certa maneira. A primeira Shahadah – a de Deus – enuncia toda a verdade de princípio; a segunda – a do Profeta – enuncia todas as virtudes fundamentais.
As verdades essenciais são as seguintes: a da Essência divina e “una” (Dhat, Ahadiyah no sentido da “não-dualidade” védica); depois a verdade do Ser criador (Khaliq), Princípio igualmente “uno” – mas no sentido de uma “afirmação” e em virtude de uma “autodeterminação” (Wahidiyah, “solidão”, “unicidade”) – e comportando, senão “partes” (o que seria incompatível com a indivisibilidade e à não-associabilidade so Princípio), ao menos aspectos ou qualidades (çifat): Deus não é “existente” – Ele está além da Existência – mas Ele pode ser chamado de “não-existente” se quisermos sublinhar esta evidência de que Ele é “real” sem “existir”; não se pode dizer que Deus é “inexistente” – Ele é “não-existente” na medida em que não pertence ao domínio existencial, mas “não inexistente” na medida em que sua transcendência não pode sofrer nenhuma privação. Fora do domínio principial ou divino existe, de um lado, o macrocosmo – com seu centro “arcangélico” e “quase divino” (Ruh, “Espírito”) – e, de outro, a extrema periferia de seu desenvolvimento, esta coagulação – da Substância universal – que chamamos “matéria” e que é, para nós, a casca a um tempo inocente e mortal da existência.
Quanto às virtudes essenciais, de que já tratamos mas que cabem neste resumo final, elas são as perfeições do “temor”, do “amor” e do “conhecimento”, ou, em outros termos, da “pobreza”, da “generosidade” e da “sinceridade”; num certo sentido, elas fazem  el-islam assim como as verdades fazem el-iman, dado que seu aprofundamento – ou sua culminação qualitativa – constitui a natureza de el-ihsan ou seu próprio fruto. Poderíamos dizer ainda que as virtudes consistem fundamentalmente em se fixar em Deus segundo uma espécie de simetria ou de ritmo ternário, a fixar-se n’Ele “agora”, “aqui” e “assim”; mas estas imagens podem substituir-se umas às outras, porque cada uma basta a si mesma. O sufi situa-se no “presente” intemporal onde não existem culpas nem temores; ele situa-se no “centro” ilimitado onde o exterior e o interior se confundem; ou ainda, seu “segredo” é a perfeita “simplicidade” da Sustância sempre virgem: não sendo senão “aquilo que ele é” ele é tudo “Aquilo que é”. A propósito da simplicidade, a simplicidade de uma substância é a sua indivisibilidade. Este simbolismo exige algumas explicações: se as condições da existência corpórea são o tempo, o espaço, a substância material (ou tornada material), a forma e o número, estes três últimos elementos –  matéria, forma e número – são os conteúdos dos dois primeiros, o tempo e o espaço. A forma e o número coincidem de certo modo – e sobre o plano de que se trata – com a matéria, da qual eles são,  respectivamente, as determinações externas de qualidade e de quantidade; as determinações internas correspondentes são, de uma parte, a natureza da matéria considerada e de outra a sua extensão. Assim como a idéia de “substância”, os quatro outros conceitos da condição existencial estendem-se para além do plano sensível: não se trata de acidentes terrestres, mas de reflexos de estruturas universais.
Se o homem é a vontade, Deus é Amor; se o homem é inteligência, Deus é Verdade. Se o homem é a vontade decaída e impotente, Deus será o Amor redentor; se o homem é a inteligência obscurecida e perdida, Deus será a Verdade iluminadora que libera; pois está na natureza do conhecimento – a adequação inteligência-verdade – tornar puro e livre. O Amor divino salva “tornando-se aquilo que somos”, ele “desce” a fim de “elevar”; a Verdade divina liberta atribuindo ao intelecto seu objeto “sobrenaturalmente natural” e com isto sua pureza original, ou seja, “lembrando” que apenas o Absoluto “é”, que a contingência “não é”, ou que ao contrário ela não é “outra que Ele” sob o aspecto da pura Existência, e também, conforme o caso, sob o aspecto da pura Inteligência ou “Consciência” e da estrita analogia. A analogia ou o simbolismo concernem a toda manifestação de qualidades; a Consciência concerne ao homem na medida em que ele pode ultrapassar-se intelectualmente, debruçando seu espírito sobre o Absoluto; a Existência concerne a todas as coisas – qualitativas ou não, conscientes ou não – pelo simples fato de que elas separam-se do nada, se podemos nos expressar assim. Os fenômenos são “nem Deus nem outro que não Ele”; eles não possuem nada por si mesmos, nem existência nem atributos positivos; trata-se de qualidades divinas ilusoriamente “ruminadas” pelo vazio – em si inexistente – em razão da inifinitude da Possibilidade universal.
A Shahadah, através da qual Allah se manifesta como Verdade, está endereçada à inteligência, mas também, em consequência, a este prolongamento da inteligência que é a vontade. Quando a inteligência capta o sentido fundamental da Shahadah, ela distingue o Real do não-real, ou a “Substância” dos “acidentes”; quando a vontade segue o mesmo caminho, ela se liga ao Real, à divina “Substância”; ela se “concentra” e empresta ao espírito sua concentração. A inteligência iluminada pela Shahadah não possui em última instância senão um objeto ou conteúdo, Allah, e os demais objetos ou conteúdos só são considerados em função d’Ele em em relação a Ele, de tal modo que o múltiplo se acha como que mergulhado no Um; o mesmo ocorre com a vontade, conforme o que Deus combina com a criatura. A “lembrança” de Deus é logicamente função da justeza de nossa noção de Deus e da profundidade de nossa compreensão: a Verdade, na medida em que ela essencial e que a compreendemos, apodera-se de todo o nosso ser e o transforma pouco a pouco segundo um ritmo descontínuo e imprevisível. Ao se cristalizar em nosso espírito, ela “se torna aquilo que somos para que nos tornemos o que ela é”. A manifestação da Verdade é um mistério de Amor, assim como, inversamente, o conteúdo do Amor é um mistério da Verdade.
Com essas considerações quisemos, não dar uma imagem do esoterismo muçulmano tal como ele se apresenta em seu desenvolvimento histórico,  mas conduzindo-o às suas posições mais elementares e ligando-o às próprias raízes do Islam, que são também as suas. Quisemos menos retraçar aquilo que o sufismo possa ter dito do que dizer aquilo que ele é, e o que ele jamais cessou de ser através de toda a complexidade de seus desenvolvimentos. Este modo de ver nos permitiu – talvez em prejuízo da coerência aparente deste livro – determo-nos longamente nos pontos de encontro com outras perspectivas tradicionais e também com as estruturas daquilo que – ao nosso redor e em nós mesmos – é ao mesmo tempo divinamente humano e humanamente divino.

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