quinta-feira, 1 de outubro de 2015

René Guénon - O Homem e seu devir segundo o Vedanta



INTRODUÇÃO


Em muitas ocasiões, em nossas obras precedentes, anunciamos nossa intenção de proceder a uma série de estudos nos quais poderíamos, segundo o caso, seja expor diretamente certos aspectos das doutrinas metafísicas do Oriente, seja adaptar essas mesmas doutrinas do modo que nos parecesse mais inteligível e mais aproveitável, embora permanecendo sempre estritamente fiéis ao seu espírito. O presente trabalho constitui o primeiro desses estudos; tomamos aqui como ponto de vista central aquele das doutrinas hindus, por razões que já tivemos ocasião de indicar, e mais particularmente o do Vêdânta, que é o ramo mais puramente metafísico destas doutrinas; mas deve ficar claro que isto não nos impedirá de fazer, todas as vezes que couber, aproximações e comparações com outras teorias, qualquer que seja sua proveniência, bem como, notadamente, apelaremos para os ensinamentos de outros ramos ortodoxos da doutrina hindu na medida em que venham, sob certos aspectos, precisar ou completar aqueles do Vêdânta. Não há o que reprovar neste modo de proceder, tanto mais que nossas intenções não são as de um historiador; devemos repetir ainda aqui, expressamente, que o que queremos fazer é uma obra de compreensão, não de erudição, e que somente a verdade das idéias nos interessa. Se, portanto, consideramos proveitoso dar aqui referências precisas, é por motivos que nada tem em comum com as preocupações típicas dos orientalistas; apenas queremos mostrar que não inventamos nada e que as idéias que expressamos possuem uma fonte tradicional, além de fornecer ao mesmo tempo o meio, àqueles que foram capazes, de se reportarem aos textos nos quais eles possam encontrar indicações complementares, pois é claro que não temos a pretensão de fazer uma exposição absolutamente completa, mesmo sob um aspecto determinado da doutrina.

Quanto a apresentar uma exposição de conjunto, isso é uma coisa impossível: ou seria um trabalho interminável, ou teria que ser colocado de uma forma tão sintética que seria perfeitamente incompreensível aos espíritos ocidentais. Além do mais, seria bem difícil evitar, num trabalho desse gênero, a aparência de uma sistematização que seria incompatível com os caracteres mais essenciais das doutrinas metafísicas; seria sem dúvida apenas uma aparência, mas nem por isso deixaria de ser uma causa de erros extremamente graves, tanto mais que os Ocidentais, em razão de seus hábitos mentais, estão propensos a ver “sistemas” mesmo onde não há nada parecido. É importante não dar o menor pretexto a essas assimilações injustificadas, costumeiras entre os orientalistas; e seria melhor abster-se de expor uma doutrina do que contribuir a desnaturá-la, nem que fosse por simples engano. Mas felizmente existe um meio de escapar a este inconveniente: consiste em não tratar, numa mesma exposição, senão de um ponto ou um aspecto mais ou menos definido da doutrina, deixando outros pontos para tratar em outros estudos distintos. De resto, estes estudos não correrão o risco de se tornar aquilo que os eruditos e os “especialistas” chamam de “monografias”, pois os princípios fundamentais não serão aí perdidos de vista, e os pontos secundários não aparecerão senão como aplicações diretas ou indiretas destes princípios dos quais tudo deriva: na ordem metafísica, que se refere ao domínio do Universal, não há nenhum lugar para a “especialização”.

Devemos compreender agora porque tomamos como objeto próprio do presente estudo apenas aquilo que concerne à natureza e à constituição do ser humano: para tornar inteligível o que temos a dizer, deveremos forçosamente abordar outros pontos que, à primeira vista, podem parecer estranhos a esta questão, mas será sempre em relação àquele que os tomaremos. Os princípios tem, em si, um alcance que ultrapassa imensamente toda aplicação que se possa fazer; mas não deixa de ser legítimo expor esses princípios, na medida do possível, a propósito de tal ou qual aplicação, e este procedimento é inclusive vantajoso sob certos aspectos. Por outro lado, é somente quando é ligada aos princípios que uma questão pode ser tratada metafisicamente; é o que se deve ter sempre em mente, quando se pretende fazer a verdadeira metafísica, e não a “pseudo-metafísica”, à maneira dos filósofos modernos.

Se adotamos como partido expor em primeiro lugar as questões relativas ao ser humano, não é porque elas tenham, do ponto de vista metafísico, uma importância excepcional, pois, sendo este ponto de vista livre de todas as contingências, o caso do homem não aparecerá nele como um caso privilegiado; mas iniciaremos por aí porque estas questões já surgiram no decorrer de nossos trabalhos precedentes, os quais necessitam a este respeito complementos que encontraremos aqui. A ordem que iremos adotar para os estudos que virão em seguida dependerá igualmente das circunstâncias e será, em larga medida, determinada por considerações de oportunidade; acreditamos útil dize-lo desde já, a fim de que ninguém veja nisso uma espécie de ordem hierárquica, seja quanto à importância das questões, seja quanto à sua dependência; isto eqüivaleria a nos imputar intenções que não são as nossas, mas sabemos como tais erros se produzem facilmente, e é por isso que nos aplicamos sempre a preveni-los toda vez que isso está ao nosso alcance.

Existe ainda um ponto que é para nós muito importante para que o deixemos de lado nestas considerações preliminares, embora já o tenhamos explicado bastante em ocasiões anteriores; mas, como nem todos parecem tê-lo compreendido, convém insistir ainda um pouco sobre ele. Este ponto é o seguinte: o conhecimento verdadeiro, o único que temos em vista, tem pouca relação, se é que tem alguma, com o saber “profano”; os estudos que constituem esse último não são em nenhum grau e sob nenhum título uma preparação, mesmo longínqua, para abordar a “Ciência sagrada”, e às vezes eles constituem ao contrário um obstáculo, em razão da deformação mental muitas vezes irremediável que é a conseqüência mais comum de um certo tipo de educação. Para doutrinas como a que iremos expor, um estudo tomado “do exterior” não teria nenhum proveito; não se trata de história, como já dissemos, nem tampouco de filologia ou literatura; e acrescentaremos, embora arriscando-nos a nos repetir fastidiosamente, que tampouco se trata de filosofia. Todas essas coisas, com efeito, fazem igualmente parte deste saber que qualificamos de “profano” ou de “exterior”, não por preconceito, mas porque é assim que é na realidade; cremos não ter de nos preocupar em agradar a uns ou desagradar a outros, mas sim de dizer o que é e de atribuir a cada coisa o nome e o lugar que lhe convém normalmente. Não é porque a “Ciência sagrada” tenha sido tão odiosamente caricaturada, no Ocidente moderno, por impostores mais ou menos conscientes, que se deva evitar de falar nela, ou negá-la, ou no mínimo ignorá-la; ao contrário, afirmamos alto e bom som não apenas que ela existe, mas ainda que ela é a única de que iremos nos ocupar. Aqueles que quiserem se reportar ao que já dissemos em outras ocasiões das extravagâncias dos ocultistas e dos teosofistas compreenderão imediatamente que aquilo de que se trata é bem outra coisa, e que estas pessoas não passam, a nossos olhos, de simples “profanos”,  e mesmo de “profanos” agravam singularmente se caso procurando fazer-se passar pelo que não são, o que é aliás uma das principais razões por quê julgamos necessário mostrar a inanidade de suas pretensas doutrinas, cada vez que se apresente a ocasião.

O que dissemos deve também fazer compreender que as doutrinas de que nos propomos falar recusam, pela sua própria natureza, qualquer tentativa de “vulgarização”; seria ridículo querer “colocar ao alcance de todos”, como se diz sempre em nossa época, concepções que só podem ser destinadas a uma elite, e tentar fazê-lo seria a melhor maneira de as deformar. Já explicamos em outra parte o que entendemos por elite intelectual, qual será seu papel se ela um dia chegar a se constituir no Ocidente, e como o estudo real e profundo das doutrinas orientais é indispensável para preparar sua formação. É em vista desse trabalho, cujos resultados só se farão sentir com o tempo, que acreditamos dever expor certas idéias para aqueles que são capazes de assimilá-las, sem jamais modificá-las ou simplificá-las ao modo dos “vulgarizadores”, o que iria contra o objetivo que nos propomos. De fato, não é a doutrina que deve abaixar-se e restringir-se à medida do entendimento limitado do vulgo; mas àqueles que o podem, cabe elevarem-se à compreensão da doutrina em sua pureza integral, e é somente assim que se pode formar uma elite intelectual verdadeira. Dentre aqueles que recebem um mesmo ensinamento, cada um o compreende ou assimila de forma mais ou menos completa, segundo a extensão de suas próprias possibilidades intelectuais; e é assim que se opera naturalmente a seleção sem a qual não pode haver verdadeira hierarquia. Nós já havíamos mencionado estas coisas, mas era preciso repeti-las antes de empreender uma exposição propriamente doutrinal; e é tanto mais útil repeti-las com insistência quanto mais estranhas elas são à mentalidade ocidental atual.


 












I

GENERALIDADES SOBRE O VÊDÂNTA



O Vêdânta, contrariamente às opiniões mais comuns entre os orientalistas, não é nem uma filosofia nem uma religião, nem tampouco qualquer coisa que participe mais ou menos de uma ou de outra. É um erro dos mais graves pretender considerar esta doutrina sob tais aspectos, e isto eqüivale a condenar-se desde o início a nada compreender dela, mostrando-se completamente estrangeiro à verdadeira natureza do pensamento oriental, cujos modos são totalmente diferentes do pensamento ocidental e não se deixam encerrar em seus quadros. Já explicamos em obras precedentes que a religião, se quisermos atribuir a esta palavra seu significado próprio, é algo totalmente ocidental: não se pode aplicar o mesmo termo a doutrinas orientais sem estender abusivamente este significado, a tal ponto que se torna impossível dar delas um definição tão pouco precisa. Quanto à filosofia, ela também representa um ponto de vista exclusivamente ocidental, e de resto bem mais exterior que o ponto de vista religioso, portanto mais distante ainda daquilo de que se trata: trata-se, como já dissemos, de um tipo de conhecimento essencialmente “profano” (1), mesmo quando não é puramente ilusório, e, sobretudo quando consideramos o que é a filosofia nos tempos modernos, não podemos deixar de pensar que sua ausência em uma civilização nada tem de lamentável. Em um livro recente, um orientalista afirmava que “a filosofia é filosofia em toda parte”, o que abre a porta a todas as assimilações, aí compreendidas aquelas contra as quais ele protestava, muito justamente aliás; o que contestamos precisamente, é que haja filosofia em toda parte; e nos recusamos a considerar como “pensamento universal”, segundo a expressão do mesmo autor, aquilo que na realidade não passa de uma modalidade de pensamento extremamente particular. Um outro historiador das doutrinas orientais, mesmo reconhecendo em princípio a insuficiência e a inexatidão dos rótulos ocidentais que se pretende impor a elas, declarava que apesar disso não via como dispensar esses rótulos, e utilizava-os assim ainda mais que seus próprios predecessores; isto nos pareceu ainda mais espantoso, pois nunca tivemos necessidade de apelar para esta terminologia filosófica que, mesmo que pudesse ser melhor aplicada do que o é comumente, teria o inconveniente de ser demasiado rebuscada e inutilmente complicada. Mas não queremos entrar aqui nesse tipo de discussão; apenas queríamos mostrar como é difícil para alguns sair dos quadros “clássicos” em que a educação ocidental encerrou seu pensamento desde a origem.

Para voltarmos ao Vêdânta, diremos que se deve, na realidade, ver nele uma doutrina puramente metafísica, aberta a possibilidades de concepção verdadeiramente ilimitadas, e que, como tal, não poderia de modo algum acomodar-se dentro dos limites mais ou menos estreitos de um sistema qualquer. Existe portanto sob esse aspecto, e mesmo sem irmos mais longe, uma diferença profunda e irredutível, uma diferença de princípio para com tudo o que os europeus designam sob o nome de filosofia. De fato, a vã ambição de todas as concepções filosóficas, sobretudo entre os modernos, que levam ao extremo a tendência individualista e a busca da originalidade a toda custa que é sua conseqüência, é precisamente de se constituírem em sistemas definidos, acabados, ou seja essencialmente relativos e limitados de todos os lados; no fundo, um sistema não passa de uma concepção fechada, cujos limites mais ou menos estreitos são naturalmente determinados pelo “horizonte mental” do seu autor. Ora, toda sistematização é absolutamente impossível para a metafísica pura, diante da qual tudo o que é de ordem individual é verdadeiramente inexistente, e que é inteiramente desembaraçada de todas as relatividades, de todas as contingências filosóficas ou outras; e é necessariamente assim, porque a metafísica é essencialmente o conhecimento do Universal, e um tal conhecimento não se pode encerrar em nenhuma fórmula, por mais abrangente que seja.

As diversas concepções metafísicas e cosmológicas da Índia não são, rigorosamente falando, doutrinas diferentes, mas apenas desenvolvimentos, segundo certos pontos de vista e direções várias, mas jamais incompatíveis, de uma única doutrina. De resto, a palavra sânscrita darshana, que designa cada uma dessas concepções, significa propriamente “vista”, ou “ponto de vista”, pois a raiz drish, da qual ela é derivada, tem como sentido principal o de “ver”; ela não pode absolutamente significar “sistema”, e, se os orientalistas lhe dão essa acepção, é apenas devido a esses hábitos ocidentais que os induzem a cada instante a falsas assimilações: vendo em toda parte apenas filosofia, é natural que vejam também sistemas em tudo.

A doutrina única a que aludimos constitui essencialmente o Veda, ou seja a Ciência sagrada e tradicional por excelência, pois esse é exatamente o sentido próprio deste termo (2): é o princípio e o fundamento comum a todos os ramos mais ou menos secundários e derivados, os quais constituem estas diferentes concepções que alguns consideram como sistemas rivais e opostos. Na realidade, estas concepções, na medida em que elas estão de acordo com seu princípio, não podem evidentemente contradizer-se, e ao contrário elas completam-se e esclarecem-se mutuamente; não se deve ver nessa afirmação a expressão de um “sincretismo” mais ou menos artificial e tardio, pois a doutrina inteira deve ser vista como contida sinteticamente no Veda, e isto desde a origem. A tradição, em sua integralidade, forma um conjunto perfeitamente coerente, o que não quer dizer sistemático; e, como todos os pontos de vista que ela comporta podem ser vistos tanto simultânea como sucessivamente, não há interesse verdadeiro em buscar a ordem histórica na qual eles puderam desenvolver-se e se tornar explícitos, mesmo se admitirmos que a existência de uma transmissão oral, que pode ter durado um tempo indeterminado, torne perfeitamente ilusória a solução dada a uma questão desse gênero. Se a exposição pode, segundo as épocas, modificar-se até certo ponto para adaptar-se às circunstâncias, não é menos certo que o fundo permanece sempre rigorosamente o mesmo, e que essas modificações exteriores não atingem e não afetam em nada a essência da doutrina.

O acordo entre uma concepção de qualquer ordem com o princípio fundamental da tradição é condição necessária e suficiente de sua ortodoxia, a qual não pode absolutamente ser concebida em modo religioso; é preciso insistir sobre esse ponto para evitar qualquer erro de interpretação, porque, no Ocidente, só existe ortodoxia do ponto de vista religioso. No que concerne à metafísica e tudo o que dela procede mais ou menos diretamente, a heterodoxia de uma concepção não passa, no fundo, de sua falsidade, resultado de seu desacordo com os princípios essenciais; como esses estão contidos nos Veda, resulta que o acordo com o Veda é o próprio critério da ortodoxia. A heterodoxia começa onde começa a contradição, voluntário ou não, com o Veda; ela é um desvio, uma alteração mais ou menos profunda da doutrina, desvio que, de resto, geralmente só se produz dentro de escolas muito restritas, e que só podem afetar pontos particulares, às vezes de importância muito secundária, tanto mais que a potência que é inerente à tradição tem como efeito limitar a extensão e o alcance dos erros individuais, de eliminar aqueles que ultrapassam certos limites e, em todo caso, de impedi-los de se expandir e de adquirir uma autoridade verdadeira. Mesmo onde uma escola parcialmente heterodoxa se trona, em uma certa medida, representativa de um darshana, como a escola atomista para o Vaishêshika, isto não afeta a legitimidade desse darshana em si, e basta remete-lo ao que ele tem de verdadeiramente essencial para permanecer dentro da ortodoxia. A esse respeito, podemos citar, como indicação geral, essa passagem do Sânkhya-Pravachana-Bhâshya de Vijnâna-Bhikshu: “Na doutrina de Kanâda (o Vaishêshika), a parte que é contrária ao Veda deve ser rejeitada por aqueles que aderem estritamente à tradição ortodoxa; na doutrina de Jaimini e na de Vyâsa (os dois Mîmânsas), nada há que não esteja de acordo com as Escrituras (consideradas como a base desta tradição)”.

O nome de Mîmânsa, derivado da raiz verbal man, “pensar”, na sua forma iterativa, indica o estudo reflexivo da Ciência sagrada: é o fruto intelectual da meditação do Veda. O primeiro Mîmânsa (Pûrva-Mîmânsa) é atribuído a Jaimini: mas devemos lembrar a propósito que os nomes que são assim ligados à formulação dos diversos darshanas não devem ser relacionados a individualidades precisas: eles são empregados simbolicamente para designar verdadeiros “agregados intelectuais”, constituídos na realidade por todos aqueles que se dedicaram ao mesmo estudo no decorrer de um período cuja duração não é menos indefinida que a própria origem. O primeiro Mîmânsa é chamado também Karma-Mîmânsa ou Mîmânsa prático, vale dizer aquele que concerne aos atos, e mais particularmente ao cumprimento dos ritos; o termo karma, com efeito, tem um duplo sentido: num sentido geral, trata-se da ação sob todas as suas formas; no sentido particular e técnico, trata-se da ação ritual, tal como prescrita no Veda. Este Mîmânsa prático tem por objetivo, como diz seu comentador Somanâtha, de “determinar de modo exato e preciso o sentido das Escrituras”, mas sobretudo na medida em que essas encerram preceitos, e não sob a perspectiva do conhecimento puro ou jnâna, o qual está freqüentemente colocado em oposição com karma, o que corresponde precisamente à distinção dos dois Mîmânsas.

O segundo Mîmânsa (Uttara-Mîmânsa) é atribuído a Vyâsa, vale dizer à “entidade coletiva” que ordenou e fixou definitivamente os textos tradicionais que constituem o próprio Veda; e esta atribuição é particularmente significativa, pois é fácil de ver que se trata aqui, não de um personagem histórico ou legendário, mas de uma verdadeira “função intelectual”, que pode inclusive ser chamada uma função permanente, pois Vyâsa é designado como uma dos sete Chirajîvis, literalmente “seres dotados de longevidade”, cuja existência não é limitada a uma época determinada (3). Para caracterizar o segundo Mîmânsa em relação ao primeiro, podemos vê-lo como o Mîmânsa da ordem intelectual e contemplativa; não podemos chamá-lo Mîmânsa teórico, por simetria com o Mîmânsa prático, porque esta denominação levaria a um equívoco. De fato, se a palavra “teoria” é etimologicamente sinônimo de contemplação, não é menos verdade que, em linguagem corrente, ela tomou uma acepção bastante mais restrita; ora, em uma doutrina que é completa do ponto de vista metafísico, a teoria, entendida nessa acepção comum, não se basta, mas é sempre acompanhada ou seguida de uma “realização” correspondente, da qual ela é em suma a base indispensável, e em vista da qual ela está inteiramente ordenada, como o meio em vista do fim.

O segundo Mîmânsa é também chamado Brahma-Mîmânsa, porque ele concerne direta e essencialmente ao “Conhecimento Divino” (Brahma-Vidyâ); é ele que constitui propriamente o Vêdânta, ou seja, segundo o significado etimológico deste termo, o “fim do Veda”, baseando-se principalmente sobre o ensinamento contido nos Upanishads. Essa expressão de “fim do Veda” deve ser entendida no duplo sentido de conclusão e de objetivo; com efeito, de uma parte, os Upanishads formam a última parte dos textos védicos, e, de outra, aquilo que neles é ensinado, na medida em que pode sê-lo, é o objetivo último e supremo da totalidade do conhecimento tradicional, destacado de todas as aplicações mais ou menos particulares e contingentes às quais ele pode dar lugar em diferentes ordens: vale dizer, em outros termos, que estamos, no Vêdânta, no domínio da metafísica pura.

Os Upanishads, que fazem parte integrante do Vêdânta, são uma das bases da tradição ortodoxa, o que não impediu alguns orientalistas, como Max Müller, de pretender descobrir neles “os germes do Budismo”, ou seja da heterodoxia, pois ele só conhecia do Budismo as formas e interpretações mais claramente heterodoxas; uma tal afirmação é manifestamente uma contradição de termos, e seria certamente difícil levar mais longe a incompreensão. Nunca é demais insistir sobre o fato de que são os Upanishads que representam aqui a tradição primordial e fundamental, e que, por conseguinte, são eles que constituem o Vêdânta em sua essência; resulta daí que, em caso de dúvida sobre a interpretação da doutrina, é sempre à autoridade dos Upanishads que se recorre como última instância. Os ensinamentos principais do Vêdânta, tais como são extraídos expressamente dos Upanishads, foram coordenados e formulados sinteticamente em uma coleção de aforismos chamados de Brahma-Sûtras e Shârîraka-Mîmânsa (4); o autor desses aforismos, que é chamado Bâdarâyana e Krishna-Dwaipâyana, é identificado a Vyâsa. É importante lembrar que os Brahma-Sûtras pertencem à classe de escritos tradicionais chamados Smriti, enquanto que os Upanishads, como todos os outros textos védicos, fazem parte da Shruti; ora, a autoridade da Smriti é derivada da Shruti sobre a qual está fundamentada. A Shruti não é uma “revelação” no sentido religioso e ocidental do termo, como o querem a maior parte dos orientalistas que, aí ainda, confundem os pontos de vista mais diversos; mas ela é o fruto de uma inspiração direta, de modo que é daí que ela tira sua autoridade própria. “A Shruti, diz Shankarâchârya, serve de percepção direta (na ordem do conhecimento transcendente), pois, para ser uma autoridade, ela é necessariamente independente de qualquer outra autoridade; e a Smriti desempenha um papel análogo ao da indução, pois ela tira sua autoridade de uma outra autoridade que não ela mesma” (5). Mas para que não haja má interpretação sobre o significado da analogia assim indicada entre o conhecimento transcendente e o conhecimento sensível, é preciso acrescentar que ela deve, como toda verdadeira analogia, ser tomada em sentido inverso (6): enquanto que a indução eleva-se  acima da percepção sensível e permite passar a um grau superior, é ao contrário a percepção direta ou a inspiração que, na ordem transcendente, atinge sozinha o próprio princípio, vale dizer aquilo que há de mais elevado, aquilo de onde se pode então tirar as conseqüências e as aplicações mais diversas. Podemos dizer ainda que a distinção entre Shruti e Smriti eqüivale, no fundo, à que existe entre a intuição intelectual imediata e a consciência refletida: se a primeira é designada por um termo cujo significado primeiro é o de “audição”, é precisamente para caracterizar seu caráter intuitivo, e porque o som ocupa, segundo a doutrina cosmológica hindu, o posto primordial dentre as qualidades sensíveis. Quanto à Smriti, o sentido primitivo do nome é “memória”; com efeito, a memória, não sendo mais que um reflexo da percepção, pode ser tomada para designar, por extensão, tudo aquilo que apresenta o caráter de um conhecimento reflexo ou discursivo, vale dizer indireto; e, se o conhecimento é simbolizado pela luz como ocorre habitualmente, a inteligência pura e a memória, ou ainda a faculdade intuitiva e a faculdade discursiva poderão ser representadas respectivamente pelo sol e pela lua; este simbolismo, sobre o qual não nos estenderemos aqui, é aliás susceptível de aplicações múltiplas (7).

Os Brahma-Sûtras, cujo texto é de uma extrema concisão, deram lugar a numerosos comentários, do quais os mais importantes são os de Shankarâchârya e de Râmânuja; ambos são estritamente ortodoxos, de modo que não se deve exagerar a dimensão de suas aparentes divergências que, no fundo, são antes simples diferenças de adaptação. É verdade que cada escola está naturalmente inclinada a pensar e a afirmar que seu próprio ponto de vista é o mais digno de atenção e, sem excluir os demais, deve prevalecer sobre eles; mas, para resolver a questão com toda a imparcialidade, basta examinar estes pontos de vista em si mesmos e reconhecer até onde estende-se o horizonte que cada qual permite abarcar; é claro, de resto, que nenhuma escola pode pretender representar a doutrina de modo total e exclusivo. Ora, é certo que o ponto de vista de Shankarâchârya é mais profundo e vai mais longe que o de Râmânuja; basta aliás ter em conta que o primeiro é de tendência Shivaita, enquanto que o segundo é nitidamente Vishnuita. Uma singular discussão foi levantada por M. Thibaut, que traduziu para o  inglês os dois comentários: ele pretende que o de Râmânuja seja mais fiel ao ensinamento dos Brahma-Sûtras, mas ao mesmo tempo ele reconhece que o de Shankarâchârya é mais conforme ao espírito dos Upanishads. Para sustentar uma tal opinião, é preciso evidentemente admitir que existam diferenças doutrinais entre os Upanishads e os Brahma-Sûtras; mas, mesmo que houvesse, é a autoridade dos Upanishads que deve prevalecer, como já explicamos, e a superioridade de Shankarâchârya acha-se estabelecida por isso mesmo, mesmo que não tenha sido essa a intenção de Thibaut, para quem a questão da verdade intrínseca das idéias parece não se colocar. Na verdade, os Brahma-Sûtras, fundamentando-se direta e exclusivamente sobre os Upanishads, não podem afastar-se daí; apenas sua brevidade, que os torna um pouco obscuros quando isolados de todo comentário, pode escusar aqueles que acreditam encontrar neles outra coisa que não seja uma interpretação autorizada e competente da doutrina tradicional. Assim, a discussão é realmente sem objetivo, e tudo o que podemos reter, é a constatação de que Shankarâchârya destacou e desenvolveu mais completamente aquilo que está essencialmente contido nos Upanishads; sua autoridade só pode ser contestada por aqueles que ignoram o verdadeiro espírito da tradição hindu ortodoxa, e cuja opinião, consequentemente, não tem nenhum valor aos nossos olhos; será portanto, de um modo geral, esse comentário que seguiremos de preferência a qualquer outro.

Para completar estas observações preliminares, devemos ainda salientar, embora já o tenhamos explicado em outra parte, que é inexato dar aos ensinamentos dos Upanishads, como o fazem alguns, a denominação de “Brahmanismo esotérico”. A impropriedade  dessa expressão provém sobretudo do fato de que o termo “esoterismo” é um comparativo, e que seu emprego supõe necessariamente a existência correlativa de um “exoterismo”; ora, uma tal divisão não pode ser aplicada ao caso de que tratamos aqui. O exoterismo e o esoterismo, encarados, não como duas doutrinas distintas e mais ou menos opostas, o que seria uma concepção totalmente errônea, mas como as duas faces de uma mesma doutrina, existiram em certas escolas da antigüidade grega; encontramo-los também claramente no Islamismo; mas o mesmo não ocorre com as doutrinas mais orientais. Para essas, podemos falar de uma espécie de “esoterismo natural”, que existe inevitavelmente em toda doutrina, e sobretudo na ordem metafísica, onde importa deixar sempre a parte do inexprimível, que é inclusive o que há de mais essencial, porque as palavras e os símbolos não tem em suma outra razão de ser do que ajudar a concebê-lo, fornecendo os “suportes” para um trabalho que só pode ser estritamente pessoal. Deste ponto de vista, a distinção de exoterismo e de esoterismo não é outra coisa que a diferença entre “letra” e “espírito”; e podemos assim aplicá-la à pluralidade de sentidos mais ou menos profundos que apresentam os textos tradicionais, ou, se se prefere, as Escrituras sagradas de todos os povos. Por outro lado, está claro que um mesmo ensinamento doutrinal não é compreendido igualmente por todos que o recebem; dentre esses, existem aqueles, num certo sentido, penetram no esoterismo, enquanto que outros se mantém no exoterismo porque seu horizonte intelectual é mais limitado; mas não é deste modo que o entendem aqueles que falam de “Brahmanismo esotérico”. Na realidade, dentro do Brahmanismo, o ensinamento é acessível, em sua integridade, a todos aqueles que são intelectualmente “qualificados” (adhikârîs), vale dizer capazes de retirar dele um benefício efetivo; e, se existem doutrinas reservadas a uma elite, é porque não poderia ser de outro modo quando se trata de um ensinamento distribuído com discernimento e segundo as capacidades reais de cada um. Se o ensinamento tradicional não é esotérico no sentido próprio deste termo, ele é verdadeiramente “iniciático”, e ele difere profundamente, por todas as suas modalidades, da instrução “profana” a respeito de cujo valor os Ocidentais modernos iludem-se singularmente; é o que já indicamos quando falamos de “Ciência sagrada” e da impossibilidade de “vulgarizá-la”.

Esta última observação nos leva a uma outra: no Oriente, as doutrinas tradicionais sempre tiveram o ensinamento oral como modo de transmissão regular, e isso mesmo nos casos em que elas tenham sido fixadas em textos escritos; isto é assim por razões profundas, pois não são apenas palavras que devem ser transmitidas, mas é sobretudo a participação efetiva à tradição que deve ser assegurada. Nesses termos, não significa nada dizer, como Max Müller e outros orientalistas, que a palavra Upanishad designa o conhecimento obtido “assentando-se aos pés de um preceptor”; esta denominação, se este fosse o sentido, conviria indistintamente a todas as partes do Veda; e de resto esta é uma interpretação que jamais foi proposta nem admitida por nenhum Hindu competente. Na realidade, o nome dos Upanishads indica que eles são destinados a destruir a ignorância fornecendo os meios para aproximar-se do Conhecimento supremo; e, se é questão de aproximar-se deste, é porque de fato ele é rigorosamente incomunicável em sua essência, de sorte que ninguém pode atingi-lo se não for por si mesmo.

Uma outra expressão que nos parece ainda mais imprópria que a de “Brahmanismo esotérico”, é a de “teosofia brahmânica”, que foi empregada por Oltramare; e este, aliás, informa mesmo não tê-la adotado sem hesitação, porque ela lhe parecia “legitimar as pretensões dos teósofos ocidentais” ao aval da Índia, pretensões que ele julga totalmente mal fundamentadas. É verdade que é preciso evitar tudo o que pode dar lugar a confusões; mas existem outras razões mais graves e decisivas para não admitir a denominação proposta. Se os pretensos teósofos de que fala Oltramare ignoram praticamente tudo das doutrinas hindus e apenas emprestaram delas alguns termos que eles empregam a torto e a direito, tampouco eles estão ligados à verdadeira teosofia, mesmo ocidental; é por isso que sempre distinguimos cuidadosamente “teosofia” de “teosofismo”. Mas, deixando de lado o teosofismo, diremos que nenhuma doutrina hindu tem com a teosofia pontos em comum suficientes para que se lhes possa atribuir o mesmo nome; isto resulta imediatamente do fato que este vocábulo designa exclusivamente concepções de inspiração mística, portanto religiosa, e mesmo ainda especificamente cristã. A teosofia é algo propriamente ocidental; porque pretender aplicar este mesmo termo a doutrinas para as quais ele não foi feito, e para as quais ele não se aplica melhor do que qualquer outro rótulo dos sistemas filosóficos do Ocidente? Repetimos: não é de religião que se trata aqui; assim, não há porque se falar em teosofia, tanto quanto de teologia; esses dois termos aliás, começaram tendo o mesmo sentido, embora tenham, por razões históricas, tomado acepções completamente diferentes (8). Pode-se objetar que nós mesmos usamos há pouco a expressão “Conhecimento Divino”, que é em suma eqüivalente ao significado primitivo das palavras “teosofia” e “teologia”; isso é verdade, mas, antes de mais nada, não se pode empregar estes dois termos só tendo em conta sua etimologia, pois é impossível abstrair as mudanças de sentido que sofreram ao longo do uso. Ademais, reconhecemos que a própria expressão “Conhecimento Divino” não está perfeitamente adequada, mas não há outra melhor à disposição para explicar aquilo de que se trata, dada a inaptidão das línguas européias para exprimir idéias puramente metafísicas; de resto, acreditamos não haver inconveniente sério em empregá-la, considerando que temos o cuidado de não tingir a expressão das nuances religiosas que ela possui quando relacionada às concepções ocidentais. Apesar disso, poderia ainda restar um equívoco, pois o termo sânscrito que melhor se traduz por “Deus” não é Brahma, mas Ishwara; apenas, o emprego do adjetivo “divino”, mesmo na linguagem comum, é menos estrito, mais vago talvez, e assim se presta melhor do que o substantivo do qual deriva, para uma transposição como a que efetuamos aqui. O que é preciso lembrar, é que termos como os de “teologia” e “teosofia”, mesmo tomados etimologicamente e fora de qualquer intervenção do ponto de vista religioso, só poderiam traduzir-se em sânscrito como Ishwara-Vidyâ; ao contrário, o que tomamos aproximadamente como “Conhecimento Divino”, quando se trata do Vêdânta, é Brahma-Vidyâ, pois o ponto de vista da metafísica pura implica essencialmente na consideração de Brahma ou do Princípio Supremo, do qual Ishwara ou a “Personalidade Divina” não passa de uma determinação enquanto princípio da manifestação universal e em relação a esta. A consideração de Ishwara é portanto um ponto de vista já relativo: é a mais alta das relatividades, a primeira de todas as determinações, mas nem por isso deixa de ser “qualificado” (saguna), e “concebido distintivamente” (savishêsha), enquanto que Brahma é “não-qualificado” (nirguna) e “além de qualquer distinção” (nirvishêsha), absolutamente incondicionado, e que a manifestação inteira é rigorosamente nula diante de Sua infinitude. Metafisicamente, a manifestação só pode ser vista em sua dependência em relação ao Princípio Supremo, e a título de simples “suporte” para se elevar ao Conhecimento transcendente, ou ainda, se tomamos as coisas em sentido inverso, a título de aplicação da Verdade principial; em todo caso, não se deve ver, naquilo que se refere a ela, nada além de uma espécie de “ilustração” destinada a facilitar a compreensão do “não-manifestado”, objeto essencial da metafísica, e a permitir assim, como o dissemos ao interpretarmos a denominação dos Upanishads, a aproximação ao Conhecimento por excelência (9).















NOTAS



1.      Só se pode abrir uma exceção para um sentido muito particular da “filosofia hermética”; não é preciso dizer que é apenas este sentido, por sinal quase ignorado pelos modernos, que temos em vista presentemente.
2.      A raiz vid, de onde derivam Veda e vidyâ, significa ao mesmo tempo “ver” (em latim videre) e “saber” (como no grego oida ); a vista é tomada como símbolo do conhecimento, do qual ela é o principal instrumento na ordem sensível; e esse simbolismo é transportado até a ordem intelectual pura, onde o conhecimento é comparado a uma “visão interior”, como o indica o emprego de termos como o de “intuição”, por exemplo.
3.      Encontramos algo de semelhante em outras tradições: assim, no Taoísmo, fala-se dos oito “imortais”; em outra parte, é Melki-Tsedeq que “não tem pai, nem mãe, nem genealogia, nem começo ou fim de sua vida” (São Paulo, Epístola aos Hebreus, VII, 3); e seria fácil encontrar diversas outras aproximações do gênero.
4.      termo Shârîraka foi interpretado por Râmânuja, em seu comentário (Shrî-Bhâshya) sobre os Brahma-Sûtras, 1º Adhyâya, 1º Pâda, Sûtra 13, como referindo-se ao “Supremo Si” (Paramâtmâ) que é de certa forma “incorporado” (shârîra) em todas as coisas.
5.      A percepção (pratyaksha) e a indução ou inferência (anumâna) são, segundo a lógica hindu, os dois “meios de prova” (pramânas) que podem ser legitimamente empregados no domínio do conhecimento sensível.
6.      Na tradição hermética, o princípio da analogia é expresso por essa frase da Tábua de Esmeralda: “O que está embaixo é como o que está em cima, e o que está em cima é como o que está embaixo”; mas, para melhor compreender esta fórmula e aplicá-la corretamente, é preciso se reportar ao “Selo de Salomão”, formado por dois triângulos dispostos em sentido inverso um do outro.
7.      Existem traços deste simbolismo até na linguagem: não é sem motivo que, notadamente, uma mesma raiz man ou men serviu, em diversas línguas, para formar numerosas palavras que designam a um só tempo a lua, a memória, o “mental” ou o pensamento discursivo, e o próprio homem enquanto ser especificamente “racional”.
8.      Uma observação semelhante poderia ser feita para as palavras “astrologia” e “astronomia”, que eram primitivamente sinônimos, e das quais cada uma, entre os Gregos, designavam juntas aquilo que uma e outra vieram mais tarde a designar separadamente.
9.      Para mais detalhes sobre todas as considerações preliminares que tivemos que indicar sumariamente neste capítulo, recomendamos nosso estudo Introduction Générale à l’Étude des Doctrines Hindoues, no qual tratamos estas questões de modo mais particular.















II

DISTINÇÃO FUNDAMENTAL DO “SI” E DO “EU”



Para compreendermos bem a doutrina do Vêdânta no que concerne ao ser humano, é importante colocar, tão claramente quanto possível, a distinção fundamental entre o “Si”, que é o princípio mesmo do ser, e o “eu” individual. É quase supérfluo declarar expressamente que o emprego do termo “Si” não implica para nós nada em comum com as interpretações que certas escolas fizeram desta palavra, apresentando, sob uma terminologia oriental o mais das vezes incompreensível, não mais que concepções meramente ocidentais e de resto eminentemente fantasistas; e fazemos alusão aqui, não apenas ao teosofismo, mas também a algumas escolas pseudo-orientais que deformaram completamente o Vêdânta sob pretexto de acomodá-lo à mentalidade ocidental, e sobre as quais já tivemos ocasião de nos explicar. O abuso que foi feito sobre um termo não é, a nosso ver, razão suficiente para que se deva renunciar a dele servir-se, a menos que se encontre um meio de substituí-lo por um outro que seja tão bem adaptado para aquilo que se pretende exprimir, o que não é o caso presente; de resto, se formos muito rigorosos a respeito, acabaremos sem dúvida por ter poucos termos à disposição, pois não existem realmente muitos que não tenham sido mais ou menos desnaturados por algum filósofo. Os únicos termos que descartamos são aqueles que foram expressamente inventados para exprimir conceitos com os quais nossa exposição nada tem em comum; tais são, por exemplo, as denominações dos diversos gêneros de sistemas filosóficos; tais são também os termos que pertencem ao vocabulário dos ocultistas e de outros “neo-espiritualistas”; mas, com relação àqueles destes últimos que apenas foram emprestados de doutrinas anteriores que eles plagiaram sem nada compreender, só podemos evidentemente repreendê-los sem nenhum escrúpulo, restituindo aos termos o significado que lhes cabe normalmente.

Em lugar dos termos “Si” e “eu”, podemos também empregar “Personalidade” e “individualidade”, com uma reserva apenas, pois o “Si”, como explicaremos adiante, pode ser algo de bem mais do que a personalidade. Os teosofistas, que parecem ter prazer em embrulhar sua terminologia, tomam a personalidade e a individualidade num sentido que é exatamente inverso daquele em que eles devem ser compreendidos corretamente: a primeira eles identificam ao “eu” e a segunda ao “Si”. Antes deles, ao contrário, e mesmo no Ocidente, todas as vezes que se fez uma distinção entre estes dois termos, a personalidade sempre foi vista como superior à individualidade, e é por isso que dizemos que esta é sua relação normal, que é vantajoso manter. A filosofia escolástica, em particular, não ignorou esta distinção, mas parece não ter dado a ela todo seu valor metafísico, nem tirado todas as conseqüências profundas que estão implicadas; é de resto o que acontece freqüentemente, mesmo nos casos em que ela apresenta similaridades mais marcantes com certos aspectos das doutrinas orientais. Em todo caso, a personalidade, entendida metafisicamente, não tem nada em comum com o que os filósofos chamam de “pessoa humana”, que não é outra coisa que a individualidade pura e simples; de resto, é somente ela, e não a personalidade, que pode ser chamada propriamente de humana. De um modo geral, parece que os Ocidentais, mesmo quando pretendem ir mais longe em suas concepções, tomam como sendo a personalidade algo que não é mais do que a parte superior da individualidade, ou uma simples extensão desta (1); nestas condições, tudo o que é de ordem metafísica permanece forçosamente fora de sua compreensão.

O “Si” é o princípio transcendente e permanente do qual o ser manifestado, o ser humano por exemplo, não passa de uma modificação transitória e contingente, modificação que não poderia de resto afetar de modo algum o princípio, assim como o explicaremos a seguir. O “Si”, enquanto tal, não é jamais individualizado, e não pode sê-lo, pois, devendo ser sempre encarado sob o aspecto da eternidade e da imutabilidade que são os atributos necessários do Ser puro, ele não é evidentemente susceptível de nenhuma particularização, que o faria ser “outro do que si mesmo”. Imutável em sua natureza própria, ele desenvolve somente as possibilidades indefinidas que comporta em si mesmo, pela passagem relativa da potência ao ato através de uma indefinidade de graus, e isso sem que sua permanência essencial seja afetada, precisamente porque essa passagem não é senão relativa, e porque esse desenvolvimento só existe, a bem dizer, na medida em que o vemos do lado da manifestação, fora da qual não cabe falar em sucessão de espécie alguma, mas apenas em perfeita simultaneidade, de modo que mesmo aquilo que é virtual sob um certo aspecto não deixa de se realizar no “eterno presente”. Em relação à manifestação, podemos dizer que o “Si” desenvolve suas possibilidades em todas as modalidades de realização, em multitude indefinida, que são para o ser total outros tantos estados diferentes, estados dos quais apenas um, submetido a condições de existência muito particulares que o definem, constitui a porção, ou antes a determinação particular deste ser que é a individualidade humana. O “Si” é assim o princípio pelo qual existem, cada um em seu domínio próprio, todos os estados do ser; e isso deve ser entendido, não apenas para os estados individuais como o estado humano, como para os supra-individuais, e também – embora o termo “existir” se torne então impróprio – para o estado não-manifestado, que compreende todas as possibilidades que não são susceptíveis de nenhuma manifestação, ao mesmo tempo que as próprias possibilidades de manifestação em modo principial; mas este “Si” só existe por si, não havendo nem podendo haver, na unidade total e indivisível de sua natureza íntima, nenhum princípio que lhe seja exterior (2).

O “Si”, considerado em relação ao ser como o fizemos, é propriamente a personalidade; poderíamos, é verdade, restringir o uso dessa palavra ao “Si” como princípio dos estados manifestados, assim como a “Personalidade Divina”, Ishwara, é o princípio da manifestação universal; mas podemos também estende-lo analogamente ao “Si” como princípio de todos os estados do ser, manifestados e não-manifestados. Esta personalidade é uma determinação imediata, primordial e não particularizada, do princípio que é chamado em sânscrito Atmâ ou Paramâtmâ, e que podemos, na falta de melhor termo, designar como o “Espírito Universal”, mas, bem entendido, com a condição de não ver no emprego da palavra “espírito” nada que possa lembrar as concepções filosóficas ocidentais e, notadamente, e de não toma-lo como correlativo de “matéria” como acontece muitas vezes entre os modernos, que sofrem a respeito, mesmo inconscientemente, a influência do dualismo cartesiano (3). A metafísica verdadeira, repetimos, esta muito além de todas as oposições das quais esta entre o “espiritualismo” e o “materialismo” nos fornece o tipo, e ela não se preocupa absolutamente com estas questões mais ou menos particulares, e freqüentemente artificiais, que fazem surgir semelhantes oposições.

Atmâ penetra todas as coisas, que são como que modificações acidentais suas, e que, segundo a expressão de Râmânuja, “constituem de certa forma seu corpo (esse termo deve ser entendido aqui em sentido puramente analógico),  sejam elas de natureza inteligente ou não-inteligente”, ou seja, segundo as concepções ocidentais, “espirituais” assim como “materiais”, pois isto, que não exprime senão a diversidade de condições dentro da manifestação, não faz nenhuma diferença diante do princípio incondicionado e não-manifestado. Este, com efeito, é o “Supremo Si” (é a tradução literal de Paramâtmâ) de tudo o que existe, sob qualquer modo que seja, e ele permanece sempre “o mesmo” através da multiplicidade indefinida dos graus da Existência, entendida no sentido universal, assim como para além da Existência, ou seja dentro da não-manifestação principial.

O “Si”, mesmo para um ser qualquer, é na realidade idêntico a Atmâ, por estar além de toda distinção e de toda particularização; é por isso que, em sânscrito, a mesma palavra âtman, nos casos que não o nominativo, substitui o pronome reflexivo “si mesmo”. O “Si”, portanto, só é distinto de Atmâ se o encaramos de modo particular e “distintivamente” em relação a um ser e, mais precisamente, em relação a um certo estado definido deste ser, tal como o estado humano, e apenas quando o consideramos sob esse ponto de vista especializado e restrito. Nesse caso, de resto, não é que o “Si” se torne efetivamente distinto de Atmâ seja lá de que modo for, pois ele não pode ser “outro do que si mesmo”, como dissemos mais acima, e ele não poderia ser afetado pelo ponto de vista a partir do qual se o encare, assim como por qualquer outra contingência. O que é preciso frisar, é que, na medida mesma em que fazemos esta distinção, distanciamo-nos da consideração direta do “Si” para considerarmos apenas seu reflexo na individualidade humana, ou em qualquer outro estado do ser, pois é evidente que, diante do “Si”, todos os estados de manifestação são rigorosamente eqüivalentes e podem ser encarados do mesmo modo; mas, presentemente, é a individualidade humana que nos concerne de modo mais particular. Este reflexo de que falamos determina o que podemos chamar de centro dessa individualidade; mas, se o isolamos de seu princípio, ou seja do “Si”, ele só terá uma existência ilusória, pois é do princípio que ele tira toda sua realidade, e ele não possui efetivamente essa realidade senão por sua participação na natureza do “Si”, ou seja na medida em que se identifica a ele por universalização.

A personalidade, repetimos, é essencialmente da ordem dos princípios no sentido mais estrito desse termo, ou seja da ordem universal; ela não pode portanto ser encarada senão do ponto de vista da metafísica pura, que tem precisamente por domínio o Universal. Os “pseudo-metafísicos” do Ocidente tem o hábito de confundir com o Universal coisas que, na verdade, pertencem à ordem individual; ou antes, como eles não concebem de modo algum o Universal, aquilo ao que eles aplicam abusivamente este nome é normalmente o “geral”, que não passa de uma simples extensão do individual. Alguns levam a confusão ainda mais longe: os filósofos “empiristas”,  que não podem conceber sequer o geral, assimilam-no ao coletivo, que na verdade não passa do particular; e, por essas degradações sucessivas, chegamos finalmente a rebaixar todas as coisas ao nível do conhecimento sensível, que muitos consideram de fato como o único possível, porque seu horizonte mental não se estende além desse domínio e porque eles pretendem impor a todos as limitações que só resultam de sua própria incapacidade, seja natural, seja adquirida por uma educação específica.

Para prevenir erros como os que assinalamos, daremos aqui, de uma vez por todas, o quadro seguinte, que estabelece as distinções essenciais a esse respeito, e ao qual pedimos aos leitores de se reportarem quando for necessário, a fim de evitarmos repetições fastidiosas:

Universal


Individual

Geral



Particular

Coletivo



Singular

É importante acrescentar que a distinção do Universal e do individual não deve ser vista como uma correlação, pois o segundo destes dois termos, anulando-se totalmente diante do primeiro, não poderia ser-lhe oposto de modo nenhum. O mesmo ocorre no que diz respeito ao não-manifestado e ao manifestado; de resto, poderia parecer à primeira vista que o Universal e o não-manifestado deveriam coincidir e, de um certo ponto de vista, sua identificação seria de fato justificada, pois, metafisicamente, é o não-manifestado que é essencial. Entretanto, é preciso levar em conta certos estados de manifestação, que, por serem informais, são por isso mesmo supra-individuais; se então só distinguirmos o Universal e o individual, deveremos forçosamente reportar esses estados ao Universal, inclusive por se tratar de uma manifestação que é ainda principial de certa forma, ao menos em comparação como os estados individuais; mas isso, bem entendido, não deve fazer esquecer que tudo o que é manifestado, mesmo nestes graus superiores, é necessariamente condicionado, vale dizer relativo. Se considerarmos as coisas desse modo, o Universal será, não mais apenas o não-manifestado, mas o informal, compreendendo ao mesmo tempo o não-manifestado e os estados de manifestação supra-individuais; quanto ao individual, ele contém todos os graus da manifestação formal, ou seja todos os estados onde os seres são revestidos de formas, pois o que caracteriza propriamente a individualidade e a constitui essencialmente como tal, é precisamente a presença da forma entre as condições limitativas que definem e determinam um estado de existência. Podemos agora reunir essas últimas considerações no quadro seguinte:


Universal
Não-manifestação


Manifestação Informal

Individual
Manifestação Formal
Estado Sutil


Estado Grosseiro

As expressões “estado sutil” e “estado grosseiro”, que se referem a graus diferentes da manifestação formal, serão explicados mais adiante; mas podemos indicar desde já que essa última distinção só é válida com a condição de tomar como ponto de partida a individualidade humana, ou mais exatamente o mundo corporal ou sensível. O “estado grosseiro” de fato, não é outra coisa que a própria existência corporal, à qual a individualidade humana, como veremos, só pertence através de uma das suas modalidades, e não no seu desenvolvimento integral; quanto ao “estado sutil”, ele compreende, de um lado, as modalidades extra-corporais do ser humano, ou de qualquer outro ser situado no mesmo grau de existência, e também, por outro lado, todos os estados individuais diversos daquele. Veremos que estes dois termos não são verdadeiramente simétricos e não podem mesmo ter nenhuma medida comum, porque um deles não representa mais que uma parte de um dos estados indefinidamente múltiplos que constituem a manifestação formal, enquanto que o outro compreende todo o resto dessa manifestação (4). A simetria só se encontra, até um certo ponto, se nos restringirmos à consideração única da individualidade humana, e é de resto deste ponto de vista que a distinção de que se trata é estabelecida em primeiro lugar pela doutrina hindu; mesmo se pretendermos ultrapassar esse ponto de vista, e se o encaramos mesmo apenas para ultrapassá-lo, não deixa de ser verdade que é preciso toma-lo inevitavelmente como base e como termo de comparação, pois é o que concerne ao estado em que nos encontramos atualmente. Diremos então que o ser humano, encarado em sua integridade, comporta um certo conjunto de possibilidades que constituem sua modalidade corporal ou grosseira, mais uma multitude de outras possibilidades que, estendendo-se em diversos sentidos para além dela, constituem suas modalidades sutis; mas todas estas possibilidades juntas não representam entretanto mais do que um só e mesmo grau da Existência universal. Resulta daí que a individualidade humana é ao mesmo tempo muito mais e muito menos do que o crê normalmente a maioria dos Ocidentais: muito mais, porque eles só conhecem dela a modalidade corporal, que não passa de uma porção ínfima das suas possibilidades; mas também muito menos, porque essa individualidade, longe de ser realmente o ser total, não é mais que um estado desse ser, dentre uma indefinidade de outros estados, cuja soma é ainda nada diante da personalidade, que é apenas ela o ser verdadeiro, por ser apenas ela seu estado permanente e incondicionado,  e somente isso pode ser considerado como absolutamente real. Todo o resto, sem dúvida, é real também, mas apenas de modo relativo, em razão de sua dependência em relação ao princípio e na medida em que reflete qualquer coisa, como a imagem refletida no espelho tira toda a sua realidade do objeto, sem o qual ela não teria nenhuma existência; mas essa realidade menor, que só o é por participação, é ilusória em relação à realidade suprema, como a imagem é ilusória em relação ao objeto; e, se a quisermos isolar do princípio, esta ilusão se tornará irrealidade pura e simples. Compreendemos por aí que a existência, vale dizer o ser condicionado e manifestado, é ao mesmo tempo real em um certo sentido e ilusória em outro; e é um dos pontos essenciais que jamais entenderam os ocidentais que tanto deformaram o Vêdânta com suas interpretações erradas e cheias de preconceitos.

Devemos ainda advertir mais especificamente os filósofos que o Universal e o individual não são, para nós, aquilo que eles denominam “categorias”; e devemos lembrá-los, pois os modernos parecem ter-se esquecido que as “categorias”, no sentido aristotélico do termo, não são outra coisa que o mais geral dos gêneros, de sorte que elas pertencem ainda ao domínio do individual, do qual aliás elas marcam o limite de um certo ponto de vista. Seria mais justo assimilar ao Universal aquilo que os escolásticos chamavam “transcendentais”, que precisamente ultrapassam todos os gêneros, inclusive as “categorias”; mas, se os “transcendentais” são de fato de ordem universal, seria ainda um erro considerar que eles são todo o Universal, ou mesmo que eles sejam o que há de mais importante a considerar para a metafísica pura: eles são co-extensivos ao Ser, mas não vão além do Ser, onde de resto se detém a doutrina dentro da qual são considerados. Ora, se a “ontologia” ou o conhecimento do Ser provém realmente da metafísica, ela está longe de ser a metafísica completa e total, pois o Ser não é o não-manifestado em si, mas apenas o princípio da manifestação; por conseguinte, o que está além do Ser importa muito mais ainda, metafisicamente, do que o próprio Ser. Em outros termos, é Brahma, e não Ishwara, que deve ser reconhecido como o Princípio Supremo; é o que declaram expressamente e antes de tudo os Brahma-Sûtras, que começam por estas palavras: “Aqui começa o estudo de Brahma”, ao que Shankarâchârya acrescenta esse comentário: “Ao iniciar a procura de Brahma, este primeiro sûtra recomenda um estudo refletido dos textos dos Upanishads, feito com a ajuda de uma dialética que (tomando-os por base e por princípio) não esteja jamais em desacordo com eles, e que, como eles (mas como simples meio auxiliar), propõe por fim a Libertação”. 













NOTAS



1.      Léon Daudet, em algumas de suas obras (L’Hérédo e Le monde des Images), distinguiu no ser humano aquilo que ele chamou de “si” e “eu”; mas ambos, para nós, fazem igualmente parte da individualidade, e tudo isto é do campo da psicologia, que não atinge nunca a personalidade; esta distinção indica entretanto uma espécie de pressentimento que é digno de nota num autor que não tem a pretensão de ser metafísico.
2.      Faremos uma exposição mais completa, em outros estudos, da teoria dos estados múltiplos do ser; aqui apenas indicamos o que é indispensável para compreender o que concerne à constituição do ser humano.
3.      Teologicamente, quando se diz que “Deus é puro espírito”, é provável que isso não se deva entender no sentido em que “espírito” se opõe a “matéria” e onde esses dois termos podem entender-se um em relação ao outro, pois assim se chegaria a uma concepção “demiúrgica” mais ou menos vizinha àquela que se atribui ao Maniqueísmo; também é verdade que uma tal expressão pode causar facilmente falsas interpretações, chegando a substituir o Ser puro por “um ser”.
4.      Podemos fazer compreender essa assimetria por uma observação de aplicação corrente, que provém simplesmente da lógica comum: se considerarmos um atributo ou uma qualidade qualquer, podemos dividir todas as coisas possíveis em dois grupos, que são, de um lado, o das coisas que possuem esta qualidade, e de outro as que não a possuem; mas, enquanto que o primeiro grupo se acha assim definido e determinado positivamente, o segundo, que só está caracterizado de modo puramente negativo, não está por isso limitado e é verdadeiramente indefinido; não existe assim simetria, nem medida comum entre estes dois grupos, que assim não constituem realmente uma divisão binária, e cuja distinção só vale do ponto de vista especial da qualidade tomada como ponto de partida, pois o segundo grupo não possui nenhuma homogeneidade e pode compreender coisas que não tem nada em comum entre si, o que não impede que esta divisão seja válida sob o aspecto considerado. Ora, é bem desse modo que distinguimos o manifestado e o não-manifestado, depois, dentro do manifestado o formal e o informal, e enfim, dentro do próprio formal, o corpóreo e o incorpóreo.

 

 

 

 



















III

O CENTRO VITAL DO SER HUMANO,

MORADA DE BRAHMA



O si, como vimos, não deve ser distinto de Atmâ; e, por outro lado, Atmâ identifica-se ao próprio Brahma; é o que podemos chamar de “Identidade Suprema”, a partir de uma expressão emprestada ao esoterismo islâmico, cuja doutrina, sobre esse ponto como em muitos outros, e malgrado grandes diferenças na forma, é no fundo a mesma que a tradição hindu. A realização desta identidade opera-se pelo Yoga, ou seja pela união íntima e essencial do ser com o Princípio Divino ou, se se preferir, com o Universal; o sentido próprio da palavra Yoga, de fato, é “união” e nenhum outro (1), apesar das interpretações múltiplas e todas mais ou menos fantasistas que foram propostas pelos orientalistas e teosofistas. Convém lembrar que esta realização não deve ser considerada propriamente como uma “efetivação”, ou com “a produção de um resultado não preexistente”, segundo a expressão de Shankarâchârya, pois a união de que se trata, mesmo não realizada atualmente no sentido em que entendemos aqui, não deixa de existir ao menos potencialmente, ou antes virtualmente; trata-se portanto apenas, para o ser individual (pois é somente em relação a este que se pode falar em “realização”) de tomar efetivamente consciência daquilo que é realmente e por toda a eternidade.

É por isso que é dito que é Brahma que reside no centro vital do ser humano,  e para todos os seres humanos, não apenas para aquele que está “unido” ou “liberto”, sendo que estas duas palavras designam em suma a mesma coisa encarada sob dois aspectos diferentes, o primeiro em relação ao Princípio, o segundo em relação à manifestação ou à existência condicionada. Este centro vital é considerado como correspondendo analogamente ao menor ventrículo (guha) do coração (hridaya), mas não deve ser confundido com o coração no sentido comum do termo, ou seja com o órgão fisiológico que tem esse nome, pois ele é na verdade o centro, não apenas da individualidade corporal, mas da individualidade integral, susceptível de uma extensão indefinida em seu domínio (que de resto não passa de um estado de Existência), e do qual a modalidade corporal não é mais do que uma porção, e mesmo muito restrita, como já dissemos anteriormente. O coração é considerado como o centro da vida, e o é com efeito, do ponto de vista fisiológico, em relação à circulação do sangue, ao qual a vitalidade é essencialmente ligada de modo especial, como concordam todas as tradições; mas além disso ele é considerado como tal, numa ordem superior, e simbolicamente de certo modo, em relação à Inteligência universal (no sentido do termo árabe El-Aqlu) em suas relações com o indivíduo. Convém notar a propósito que os próprios Gregos, e Aristóteles entre eles, atribuíam o mesmo papel ao coração, que eles consideravam também a sede da inteligência, se podemos nos expressar assim, e não do sentimento como o fazem normalmente os modernos; o cérebro, com efeito, não é verdadeiramente senão um instrumento do “mental”, vale dizer do pensamento em modo reflexivo e discursivo; e assim, segundo um simbolismo que já indicamos, o coração corresponde ao sol e o cérebro à lua. Não é preciso dizer que, quando designamos o coração como centro da individualidade integral, deve-se ter o cuidado de não tomar a analogia como uma assimilação, não havendo aí mais do que uma correspondência, que aliás não tem nada de arbitrária, mas que é perfeitamente fundamentada, embora os contemporâneos sejam por hábito levados a desdenhar as razões profundas.

“Na morada de Brahma (Brahma-pura)”, vale dizer no centro vital de que falamos, “existe um pequeno lótus, um lugar no qual há uma pequena cavidade (dahara) ocupada pelo Éter (Akâsha); devemos procurar Aquilo que existe nesse lugar, e O conheceremos” (2). O que reside neste centro da individualidade, com efeito, não é apenas o elemento etéreo, princípio dos outros quatro elementos sensíveis, como poderiam crer os que se detém no sentido mais exterior, que se refere unicamente ao mundo corporal, no qual este elemento desempenha realmente o papel de princípio, mas numa acepção totalmente relativa, como esse mundo mesmo é eminentemente relativo, e é precisamente esta acepção que se deve transpor analogamente. É apenas a título de “suporte” para essa transposição que o Éter é aqui designado, e o fim do texto o indica expressamente, pois, se não se tratasse de outra coisa em realidade, não haveria nada a se procurar; e acrescentaremos que o lótus e a cavidade devem ser também vistos simbolicamente, pois não é literalmente que se deve entender uma tal “localização”, uma vez que, ultrapassado o ponto de vista da individualidade corporal, as demais modalidades não estão mais submetidas à condição espacial.

Aquilo de que se trata verdadeiramente, não é sequer a “alma viva” (jîvâtmâ), ou seja a manifestação particular do “Si” dentro da vida (jîva), portanto no indivíduo humano, visto mais particularmente sob o aspecto vital expresso em uma das condições de existência que definem propriamente seu estado, e que de resto se aplica a todo o conjunto de suas modalidades. Com efeito, metafisicamente, esta manifestação não deve ser considerada separadamente de seu princípio, que é o “Si”; e, se este aparece como jîva no domínio da existência individual, portanto em modo ilusório, ele é Atmâ na realidade suprema. “Este Atmâ, que reside no coração, é menor do que um grão de arroz, menor do que um grão de cevada, menor do que um grão de mostarda, menor do que um grão de milho, menor do que o germe que está dentro do grão de milho; este Atmâ, que reside no coração, é também maior do que a terra (o domínio da manifestação grosseira), maior do que a atmosfera (o domínio da manifestação sutil), maior do que o céu (o domínio da manifestação informal), maior do que todos estes mundos juntos (ou seja além de toda manifestação, sendo assim incondicionado)” (3). É que, de fato, como a analogia deve ser aplicada em sentido inverso com já assinalamos, assim como a imagem de um objeto num espelho é inversa em relação ao objeto, aquilo que é o primeiro ou o maior na ordem principial é, ao menos em aparência, o último ou o menor na ordem da manifestação (4). Para tomarmos termos de comparação no domínio da matemática, a fim de tornar a coisa mais compreensível, é assim que o ponto geométrico é nulo quantitativamente e não ocupa nenhum espaço, embora seja ele o princípio pelo qual se produz todo o espaço, que não passa de um desenvolvimento de suas próprias virtualidades (5); é assim igualmente que a unidade aritmética é o menor dos números se o encaramos situando-se na sua multiplicidade, mas é o maior em princípio, porque contém a todos virtualmente e produz toda a sua série apenas pela repetição indefinida de si mesmo. O “Si” está apenas potencialmente no indivíduo, na medida em que a “União” não se realiza (6), e é por isso que ele é comparado a um grão ou um germe; mas o indivíduo e a manifestação inteira só existem em função dele e não possuem realidade senão por participação à sua essência, e ele ultrapassa imensamente toda a existência, sendo o Princípio único de todas as coisas.

Se dizemos que o “Si” está potencialmente no indivíduo, e que a “União” só existe virtualmente antes da realização, é claro que isto deve ser entendido apenas do ponto de vista do próprio indivíduo. Com efeito, o “Si” não é afetado por nenhuma contingência, por ser essencialmente incondicionado; ele é imutável em sua “permanente atualidade”, e assim ele não poderia ter em si nada de potencial. É preciso também distinguir “potencialidade” de “possibilidade”: a primeira implica a aptidão para um certo desenvolvimento, ela supõe uma “atualização” possível, e só pode aplicar-se assim em relação ao “devir” ou à manifestação; ao contrário, as possibilidades, vistas no estado principial e não-manifestado, que exclui todo “devir”, não poderiam nunca ser consideradas como potenciais. Apenas, para o indivíduo, todas as possibilidades que o ultrapassam aparecem como potenciais, porque, na medida em que ele se considera em modo “separativo”, como se ele fosse um ser independente, tudo o que ele pode atingir não passa de um reflexo (âbhâsa) e não as possibilidades em si; e, mesmo que não haja aí mais do que uma ilusão, podemos dizer que elas permanecem sempre potenciais para o indivíduo, pois não é enquanto indivíduo que ele as pode alcançar, e que, desde que elas se realizam, não há mais verdadeiramente individualidade, como explicaremos mais detalhadamente quando formos tratar da “Libertação”. Mas, aqui, devemos nos colocar além do ponto de vista individual, o qual, mesmo dito ilusório, não deixa de ter a realidade de que é susceptível em sua ordem; então mesmo quando considerarmos o indivíduo, só pode ser na medida em que ele depende essencialmente do Princípio, único fundamento desta realidade, e na medida em que, virtual ou efetivamente, ele se integra ao ser total; metafisicamente, tudo deve ser reportado ao Princípio, que é o “Si”.

Assim, aquilo que reside no centro vital, do ponto de vista físico, é o Éter; do ponto de vista psíquico, é a “alma viva”, e, até aí, não ultrapassamos o domínio das possibilidades individuais; mas também, e sobretudo, do ponto de vista metafísico, é o “Si” principial e incondicionado. É então na verdade o “Espírito Universal” (Atmâ) que é, realmente, o próprio Brahma, o “Supremo Ordenador”; e assim se justifica plenamente a designação  desse centro como Brahma-pura. Ora, Brahma, considerado desta maneira no homem (e poderíamos considerá-lo semelhantemente em relação a qualquer estado do ser), é chamado Purusha, porque ele repousa ou habita na individualidade (trata-se, repetimos, da individualidade integral, e não da individualidade restrita à sua modalidade corporal) como em uma cidade (puri-shaya), pois pura, no seu sentido próprio e literal, significa “cidade” (7).

No centro vital, residência de Purusha, “o sol não brilha, nem a lua, nem as estrelas, nem os relâmpagos; menos ainda este fogo visível (o elemento ígneo sensível, ou Têjas, cuja qualidade própria é a visibilidade). Tudo brilha conforme a irradiação de Purusha (refletindo sua claridade); é por seu esplendor que este todo (a individualidade integral considerada como “microcosmo”) é iluminada”(8). A mesma coisa pode ser encontrada no Bhagavad-Gîtâ (9): “É preciso procurar o lugar (simbolizando um estado) a partir de onde não há mais retorno (à manifestação), e refugiar-se no Purusha primordial do qual saiu a impulsão original (da manifestação universal)... Este lugar não é iluminado nem pelo sol, nem pela lua, nem pelo fogo; lá é minha morada suprema”(10). Purusha é representado como uma luz (jyotis), porque a luz simboliza o Conhecimento; e ele é a fonte de todas as outras luzes, que não passam de reflexos seus, porque o conhecimento relativo só pode existir por participação, por distante e indireta que seja, à essência do Conhecimento supremo. Na luz deste Conhecimento, todas as coisas estão em perfeita simultaneidade, pois, principialmente, só pode haver aí um “eterno presente”, uma vez que a imutabilidade exclui qualquer sucessão; e é só na ordem do manifestado que se traduzem em modo sucessivo (o que não significa necessariamente temporal) as relações das possibilidades que, em si, estão eternamente contidas no Princípio. “Este Purusha, do tamanho de um polegar (angushtha-mâtra, expressão que não deve ser entendida literalmente como atribuindo-lhe uma dimensão espacial, mas que se refere à mesma idéia da comparação com um grão) (11), é de uma luminosidade clara como um fogo sem fumaça (sem nenhuma mistura de obscuridade ou ignorância); ele é o mestre do passado e do futuro (por ser eterno, portanto onipresente, de modo que ele contém atualmente tudo o que aparece como passado e como futuro em relação a um momento qualquer da manifestação, o que pode aliás ser transposto fora do modo especial de sucessão que é propriamente o tempo); ele é hoje (no estado atual que constitui a individualidade humana) e ele será amanhã (e em todos os ciclos ou estados da existência) tal como ele é (em si, principialmente, por toda a eternidade)” (12).




NOTAS



1.      A raiz desta palavra encontra-se, bastante alterada, no latim jungere e seus derivados.
2.      Chhândogya Upanishad, 8º Prapâthaka, 1ª Khanda, shruti 1.
3.      Chhândogya Upanishad, 3º Prapâthaka, 14ª Khanda, shruti 3. – É impossível não recordar aqui a palavra do Evangelho: “O Reino dos Céus é semelhante a um grão de cevada que um homem tomou e semeou em seu campo; este grão é a menor de todas as sementes, mas, depois de crescido, é maior do que todos os vegetais, e torna-se uma árvore, de modo que os pássaros do céu vem repousar em seus galhos” (Mateus, XIII, 31-32). Embora o ponto de vista seja certamente outro, podemos compreender facilmente como o conceito de “Reino dos Céus” pode ser transposto metafisicamente: o crescimento da árvore é o desenvolvimento das possibilidades; e os “pássaros do céu”, representando agora os estados superiores do ser, lembram um simbolismo similar empregado em outro texto dos Upanishads: “Dois pássaros, companheiros inseparavelmente unidos, residem na mesma árvore: um come o fruto da árvore, o outro observa sem comer” (Mundaka Upanishad, 3º Mundaka, 1º Khanda, shruti 1; Shwêtâshwarara Upanishad, 4º Adhyâya, shruti 6). O primeiro destes dois pássaros é jîvâtmâ, que está engajado no domínio da ação e de suas conseqüências; o segundo é Atmâ incondicionado, que é puro Conhecimento; e, se eles são inseparavelmente unidos, é porque um só se distingue do outro de modo ilusório.
4.      Aqui também, encontramos a mesma coisa expressa claramente no Evangelho: “Os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos” (Mateus, XX, 16).
5.      Mesmo de um ponto de vista mais exterior, o da geometria comum e elementar, podemos observar o seguinte: pelo deslocamento contínuo, o ponto engendra a linha, a linha engendra a superfície, a superfície engendra o volume; mas, em sentido inverso, a superfície é a interseção de dois volumes, a linha a interseção de duas superfícies, o ponto a interseção de duas linhas.
6.      Na realidade, de resto, é o indivíduo que está no “Si”, e o ser toma efetivamente consciência disso quando a “União” é realizada; mas essa tomada de consciência implica em ultrapassar as limitações que constituem a individualidade como tal, e que, mais geralmente, condicionam toda manifestação. Quando falamos do “Si”, como estando de certo modo no indivíduo, é do ponto de vista da manifestação que nos colocamos, e está aí ainda uma aplicação do sentido inverso.
7.      Esta explicação do termo Purusha não deve ser vista como uma derivação etimológica: ela provém do Nirukta, ou seja de uma interpretação que se baseia principalmente sobre o valor simbólico dos elementos de que as palavras são compostas, e este modo de explicação, geralmente incompreendido pelos orientalistas, é comparável ao que se encontra na Qabbalah hebraica; ele não era inteiramente desconhecido dos Gregos, e podemos encontrar alguns exemplos no Crátilo de Platão. – Quanto ao significado de Purusha, podemos lembrar também que puru exprime uma idéia de “plenitude”.
8.      Katha Upanishad, 2o, Adhyâya, 5º Vallî, shruti 15; Mundaka Upanishad, 2º Mundaka, 2º Khanda, shruti 10; Shwêtâshwatara Upanishad, 6º Adhyâya, shruti 14.
9.      Sabemos que o Bhagavad-Gîtâ é um episódio do Mahâbhârata, e lembraremos a propósito que os Itihâsas, ou seja o Râmâyana e o Mahâbhârata, por fazerem parte da Smriti, são outra coisa do que simples “poemas épicos” no sentido “profano” em que o entendem os Ocidentais.
10.  Bhagavad-Gîtâ, XV, 4 e 6 – Existe nesses textos uma similitude interessante a assinalar com a passagem da descrição da “Jerusalém Celeste” no Apocalipse, XXI, 23; “E esta cidade não precisa ser iluminada pelo sol ou pela lua, porque é a Glória de Deus que a ilumina, e o Cordeiro é sua lâmpada”. Vemos por aí que a “Jerusalém Celeste” tem relação com a cidade de Brahma; e, para aqueles que conhecem a relação que une o “Cordeiro” (agnus) do simbolismo cristão com o Agni védico, a aproximação é ainda mais significativa. – Sem insistir sobre este último ponto, diremos, para evitar falsas interpretações, que não pretendemos estabelecer uma relação etimológica entre Agnus e Ignis (equivalente latino de Agni); mas aproximações fonéticas como a que existe entre essas duas palavras desempenham muitas vezes um papel importante no simbolismo; e de resto, para nós, não há aí nada de fortuito, pois tudo o que existe tem sua razão de ser, inclusive as formas da linguagem. Convém notar ainda, a respeito, que o veículo de Agni é um cordeiro.
11.  Podemos também, a propósito, estabelecer uma comparação com a “endogenia do Imortal”, como ensina a tradição taoísta, bem como com o luz ou “semente de imortalidade” da tradição hebraica.
12.  Katha Upanishad, 2º Adhyâya, 4º Vallî, shrutis 12 e 13. – No esoterismo islâmico, a mesma idéia é expressa, em termos quase idênticos, por Mohyiddin ibn Arabi em seu Tratado da Unidade (Risâlatul-Ahadiyah): “Ele (Allah) é agora tal como era (de toda eternidade) todos os dias no estado de Criador Sublime”.  A única diferença esta na idéia de “criação”, que só aparece nas doutrinas tradicionais que, parcialmente ao menos, se ligam ao Judaísmo; isto, no fundo, é apenas um modo particular de exprimir aquilo que se refere à manifestação universal e sua relação com o Princípio.








IV

PURUSHA E PRAKRITI



Devemos agora considerar Purusha, não mais em si mesmo, mas em relação à manifestação; e isto nos permitirá melhor compreender em seguida como ele pode ser visto sob muitos aspectos, mesmo permanecendo um em realidade. Diremos então que Purusha, para que a manifestação se produza, deve entrar em correlação com um outro princípio, embora uma tal correlação seja inexistente quanto ao seu aspecto mais elevado (uttama), e que não haja verdadeiramente outro princípio, senão num sentido relativo, fora o Princípio Supremo; mas, desde que se trata da manifestação, mesmo principialmente, estaremos já no domínio da relatividade. O correlativo de Purusha é então Prakriti, a substância primordial indiferenciada; é o princípio passivo, que ;é representado com feminino, enquanto que Purusha, também chamado Pumas, é o princípio ativo, representado como masculino; e, permanecendo aliás eles próprios não-manifestados, são eles os dois pólos de toda manifestação. É a união desses dois princípios complementares que produz o desenvolvimento integral do estado individual humano, e isso em relação a cada indivíduo; e isto acontece com todos os estados manifestados do ser que não o estado humano, pois, se temos que considerar mais especificamente este, convém lembrar que ele não passa de um estado entre outros, e que não é no limite apenas da individualidade humana, mas no limite da totalidade dos estados manifestados, em multiplicidade indefinida, que Purusha e Prakriti nos aparecem como resultando de algum modo de uma polarização do ser principial.

Se, ao invés de considerar cada indivíduo isoladamente, considerarmos o conjunto do domínio formado por um grau determinado da existência, tal como o domínio individual onde se desenvolve o estado humano, ou qualquer outro domínio análogo de existência manifestada, definido igualmente por um certo conjunto de condições particulares e limitativas, Purusha será, para um tal domínio (compreendendo todos os seres que aí desenvolvem, tanto sucessiva como simultaneamente, sua possibilidades de manifestação correspondentes), assimilado a Prajâpati, o “Senhor dos seres produzidos”, expressão de Brahma na medida em que é concebido como Vontade Divina e Ordenador Supremo (1). Esta Vontade se manifesta mais particularmente, em cada ciclo especial de existência, como o Manu deste ciclo, que lhe dá sua Lei (Dharma); com efeito, Manu, como já explicamos, , não deve ser visto como um personagem nem como um “mito” (ao menos no sentido vulgar do termo), mas sim como um princípio, que é propriamente a Inteligência cósmica, imagem refletida de Brahma (e na realidade uno com Ele), exprimindo-se como Legislador primordial e universal (2). Assim como Manu é o protótipo do homem (mânava), a dupla Purusha-Prakriti, em relação a um estado do ser determinado, pode ser considerada como equivalente, no domínio de existência que corresponde a este estado, àquilo que o esoterismo islâmico chama de “Homem Universal” (El-Insânul-kâmil) (3), concepção que pode aliás estender-se a todo o conjunto dos estados manifestados, e que estabelece então a analogia constitutiva entre a manifestação universal e sua modalidade humana (4), ou, para empregar a linguagem de certas escolas ocidentais, entre o “macrocosmo” e o “microcosmo” (5).

Agora, é indispensável lembrar que a concepção da dupla Purusha-Prakriti não tem nenhuma relação com uma concepção “dualista” qualquer, e que, em particular, ela é totalmente diferente do dualismo “espírito-matéria” da filosofia ocidental moderna, cuja origem na realidade pode ser imputada ao cartesianismo. Purusha não pode ser visto como correspondendo à noção filosófica de “espírito”, como já indicamos a propósito da designação de Atmâ  como “Espírito Universal”, que só é aceitável com a condição de ser entendido num sentido bem diferente daquele; e, apesar das asserções de muitos orientalistas, Prakriti corresponde ainda menos à noção de “matéria”, que, de resto, é tão completamente estranha ao pensamento hindu que não há, em sânscrito, nenhuma palavra que a traduza, mesmo aproximadamente, o que prova que esta noção nada tem de verdadeiramente fundamental. De resto, é muito provável que os próprios Gregos não tivessem a noção de matéria tal como a entendem os modernos, tanto filósofos como físicos; em todo caso, o sentido da palavra hylé, em Aristóteles, é bem o de “substância” em toda sua universalidade, e eidos (que a palavra forma traduz bem mal, devido aos equívocos a que dá lugar) corresponde não menos exatamente à “essência” encarada como correlativa desta “substância”. Com efeito, estes termos de “essência” e de “substância”, tomados em sua acepção mais extensa, são talvez, nas línguas ocidentais, aqueles que dão a idéia mais exata do conceito de que se trata, conceito este de ordem bem mais universal que os de “espírito” e “matéria”, e de que este último não representa mais do que um aspecto muito particular, uma especificação em relação a um estado de existência determinado, fora do qual ele cessa totalmente de ser válido, em lugar de ser aplicável à integralidade da manifestação universal, com o são os de “essência” e “substância”. Ainda temos a acrescentar que a distinção destes últimos, por primordial que seja em relação a todos os outros, não deixa por isso de ser relativa: é a primeira de todas as dualidades, aquela da qual todas as demais derivam direta ou indiretamente, e é aí que começa propriamente a multiplicidade; mas não se deve ver nesta dualidade a expressão de um irredutibilidade absoluta que não caberia aí: é o Ser Universal que, em relação à manifestação da qual é o Princípio, polariza-se em “essência” e “substância”, sem que sua unidade íntima seja afetada. Lembraremos a esse propósito que o Vêdânta, pelo fato de ser puramente metafísico, é essencialmente a “doutrina da não-dualidade” (adwaita-vâda) (6); e, se o Sânkhya pode parecer “dualista” àqueles que não o compreenderam, é porque seu ponto de vista detém-se na consideração da primeira dualidade, o que não o impede de deixar possível tudo o que o ultrapassa, contrariamente ao que acontece com as concepções sistemáticas que são próprias dos filósofos.

É preciso ainda precisar que é Prakriti o primeiro dos vinte e cinco princípios (tattwas) enumerados no Sânkhya; mas devemos considerar Purusha antes de Prakriti, porque é inadmissível que o princípio plástico ou substancial (no sentido estritamente etimológico deste último termo, que exprime o “substrato universal”, ou seja o suporte de toda manifestação) (7) seja dotado de “espontaneidade”, porque ele é puramente potencial e passivo, apto a qualquer determinação, mas não possuindo atualmente nenhuma. Prakriti não pode ser verdadeiramente causa por si mesmo (queremos falar da “causalidade eficiente”), fora da ação ou antes da influência do princípio essencial, que é Purusha, e que é, pode-se dizer, o “determinante” da manifestação; todas as coisas manifestadas são de fato produzidas por Prakriti, de que elas são como que modificações ou determinações, mas, sem a presença de Purusha, essas produções seriam desprovidas de toda realidade. A opinião segundo a qual Prakriti bastaria a si mesma como princípio da manifestação só poderia sair de uma concepção errônea do Sânkhya, proveniente do fato de que, nesta doutrina, o que é chamado de “produção” é sempre visto exclusivamente do lado “substancial”, e talvez também porque Purusha seja aí enumerado como o vigésimo quinto tattwa, de resto inteiramente independente dos outros, que compreendem Prakriti e todas as suas modificações; esta opinião, de resto, seria formalmente contrária ao ensinamento do Veda.

Mûla-Prakriti é a “Natureza primordial” (chamada em árabe El-Fitrah), raiz de todas as manifestações (pois mûla significa “raiz”); ela é também chamada Pradhâna, ou seja, “aquilo que está colocado antes de todas as coisas”, porque contém em potência todas as determinações; segundo os Purânas, ela é identificada com Mâyâ, concebida como a “mãe das formas”. Ela é indiferenciada (avyakta) e “indiscernível”, não sendo composta de partes nem dotada de qualidades, podendo apenas ser induzida pelos seus efeitos, pois seria impossível percebe-la por si mesma, e produtiva sem ser ela mesma produção. “Raiz, ela é sem raiz, pois ela não seria raiz se tivesse ela mesma uma raiz”(8). “Prakriti, raiz de tudo, não é produção. Sete princípios, o grande (Mahat, que é o princípio intelectual ou Buddhi) e os outros (ahankâra ou a consciência individual, que engendra a noção de “eu”, e os cinco tanmâtras ou determinações essenciais das coisas), são ao mesmo tempo produções (de Prakriti) e produtivos (em relação aos seguintes). Dezesseis (os onze indriyas ou faculdades de sensação e de ação, incluindo manas ou o “mental”, e os cinco bhutas ou elementos substanciais e sensíveis) são produções (improdutivas). Purusha não é nem produção nem produtivo (em si mesmo)”(9), embora seja a sua ação, ou melhor sua atividade “não-agente”, segundo uma expressão que emprestamos à tradição extremo-oriental, que determina essencialmente tudo o que é produção substancial em Prakriti (10).

Acrescentaremos, para completar essas noções, que Prakriti, mesmo sendo necessariamente una em sua “indistinção”, contém em si mesma uma triplicidade que, atualizando-se sob a influência “ordenadora” de Purusha, dá nascimento às suas múltiplas determinações. Com efeito, ela possui três gunas ou qualidades constitutivas, que estão em perfeito equilíbrio em sua indiferenciação primordial; toda manifestação ou modificação da substância representa uma ruptura deste equilíbrio, e os seres, em seus diferentes estados de manifestação, participam dos três gunas em graus diversos e, por assim dizer, em proporções indefinidamente variáveis. Esses gunas não são portanto estados, mas condições da Existência universal, às quais são submetidos todos os seres manifestados, e que se deve ter o cuidado de distinguir das condições particulares que determinam e definem tal o tal estado ou modo da manifestação. Os três gunas são: sattwa, a conformidade à essência pura do Ser (Sat), que é identificado à Luz inteligível ou ao Conhecimento, e representado como uma tendência ascendente; rajas, o impulso expansivo, segundo o qual o ser se desenvolve em um certo estado e, de certo modo, em um nível determinado de existência; enfim, tamas, a obscuridade, assimilado à ignorância, e representado como uma tendência descendente. Vamos nos limitar aqui a estas definições, que já havíamos indicado em outra parte; não é aqui o lugar de expor mais completamente estas considerações, que estão um pouco fora de nosso objeto, nem de falar das aplicações diversas a que elas dão lugar, notadamente no que diz respeito à teoria cosmológica dos elementos; esses desenvolvimentos encontrarão lugar melhor em outros estudos.




















NOTAS



1.      Prajâpati é também Vishwakarma, o “princípio construtivo universal”; seu nome e sua função são de resto susceptíveis de aplicações múltiplas e mais ou menos especializadas, segundo os relacionemos ou não com a consideração de tal ou tal ciclo ou estado determinado.
2.      É interessante notar que, em outras tradições, o Legislador primordial é também designado por nomes cuja raiz é a mesma que a do Manu hindu: tais são, notadamente, o Menes ou Mina dos Egípcios, o Minos dos Gregos e o Menw dos Celtas; é portanto um erro ver estes nomes como a designação de personagens históricos.
3.      É o Adam Qadmon da Qabbalah hebraica; é também o “Imperador” (Wang) da tradição extremo-oriental (Tao Te King, XXV).
4.      Lembraremos que é sobre esta analogia que repousa essencialmente toda a instituição das castas. – Sobre o papel de Purusha encarado do ponto de vista que indicamos aqui, ver notadamente o Purusha-Sûkta do Rig-Vêda, X, 90. – Vishwakarma, aspecto ou função do “Homem Universal”, corresponde ao “Grande Arquiteto do Universo” das iniciações ocidentais.
5.      Estes termos pertencem propriamente ao Hermetismo, e são daqueles para os quais acreditamos não termos de nos ocupar do emprego mais ou menos abusivo que fizeram deles os pseudo-esoteristas contemporâneos.
6.      Indicamos, em nosso Introduction Générale à l’Étude des Doctrines Hindoues, que este “’não-dualismo” não deve ser confundido com o “monismo”, que, sob qualquer forma que tome, é, como o “dualismo”, de ordem simplesmente filosófica e não metafísica; não tem nada em comum também com o “panteísmo”,  e tanto menos ainda na medida em que esta denominação, empregada em um sentido razoável, implica sempre um certo “naturalismo” que é propriamente anti-metafísico.
7.      Acrescentemos, para afastar erros de interpretação, que o sentido em que entendemos assim a “substância” não é absolutamente aquele como Espinoza empregou o termo, pois, por um efeito da confusão “panteísta”, ele serviu-se dele para designar o próprio Ser Universal, ao menos na medida em ele era capaz de o conceber; e, na realidade, o Ser universal está além da distinção de Purusha e Prakriti, que se unificam nele como seu princípio comum.
8.      Sânkhya-Sûtras, 1º Adhyâya, sûtra 67.
9.      Sânkhya-Kârikâ, shloka 3.
10.  Colebrooke (Essais sur la Philosophie des Hindous) assinalou com razão a concordância flagrante que existe entre esta última passagem citada e as seguintes, tiradas do tratado De Divisione Naturae de Scott Erigena: “A divisão da Natureza parece dever ser estabelecida segundo quatro diferentes espécies, das quais a primeira é a que cria e não é criada; a segunda é a que é criada e cria; a terceira, a que é criada e não cria; e a quarta é a que não é criada nem cria” (Livro I). “Mas a primeira espécie e a quarta (respectivamente assimiladas a Prakriti e a Purusha) coincidem (confundem-se, ou antes unem-se) na Natureza Divina, pois esta pode ser dita criadora e incriada, como ela é em si, mas igualmente nem criadora nem criada, pois, sendo infinita, ela não pode produzir nada que esteja fora de si mesma, não havendo nenhuma possibilidade que ela não seja em si e por si” (Livro II). Lembraremos entretanto a substituição da idéia de “criação” pela de “produção”; por outro lado, a expressão “Natureza Divina” não é perfeitamente adequada, pois o que ela designa é propriamente o Ser Universal: na realidade, é Prakriti que é a natureza primordial, e Purusha, essencialmente imutável, está fora da Natureza, cujo próprio nome exprime a idéia de “devir”.


V

PURUSHA NÃO AFETADO

PELAS MODIFICAÇÕES INDIVIDUAIS



Segundo o Bhagavad-Gîtâ, “existem no mundo dois Purushas, um destrutível e outro indestrutível: o primeiro é repartido entre todos os seres; o segundo é imutável. Mas existe um outro Purusha, o mais alto (uttama), que chamamos Paramâtmâ, e que, Senhor imperecível, penetra e sustenta os três mundos (a terra, a atmosfera e o céu,  representando os três graus fundamentais entre os quais se repartem todos os modos da manifestação). Como eu ultrapasso o destrutível  e mesmo o indestrutível (sendo o Princípio Supremo de um e de outro), eu sou celebrado no mundo e no Veda sob o nome de Purushottama”(1). Entre os dois primeiros Purushas, o “destrutível” é jîvâtmâ, cuja existência distinta é de fato transitória e contingente como a da própria individualidade, e o “indestrutível” é Atmâ enquanto personalidade, princípio permanente do ser através de todos os seus estados de manifestação (2); quanto ao terceiro, como o próprio texto declara expressamente, ele é Paramâtmâ, de que a personalidade é uma determinação primordial, como já explicamos mais acima. Embora a personalidade esteja realmente além do domínio da multiplicidade, pode-se não obstante falar de uma personalidade para cada ser (trata-se naturalmente do ser total, e não de um estado encarado isoladamente); é por isso que o Sânkhya, cujo ponto de vista não atinge Purushottama, apresenta freqüentemente Purusha como múltiplo; mas cabe lembrar que, mesmo neste caso, seu nome é sempre empregado no singular, para afirmar claramente sua unidade essencial. O Sânkhya não tem nada em comum com o “monadismo” do gênero daquele de Leibnitz, no qual, de resto, é a “substância individual” que é vista como um todo completo, formando uma espécie de sistema fechado, concepção que é incompatível com qualquer noção de ordem verdadeiramente metafísica.

Purusha, considerado como idêntico à personalidade, “é por assim dizer (3) uma porção (ansha) do Supremo Ordenador (que, entretanto, não tem partes, sendo absolutamente indivisível e “sem dualidade”), como uma fagulha é do fogo (cuja natureza está inteira contida na fagulha)” (4). Ele não está submetido às condições que determinam a individualidade e, mesmo  em suas relações com esta, ele permanece inafetado pelas condições individuais (tais como, por exemplo, o prazer e a dor), que são puramente contingentes e acidentais, não essenciais ao ser, e que provém todas do princípio plástico, Prakriti ou Pradhâna, como de sua raiz única. É desta substância, que contém em potência todas as possibilidades de manifestação, que são produzidas as modificações na ordem manifestada, pelo desenvolvimento mesmo destas possibilidades, ou, para empregar a linguagem aristotélica, pela sua passagem da potência ao ato. “Toda modificação (parirâna), diz Vijnâna-Bhikshu, da produção original do mundo (ou seja de cada ciclo de existência) até sua dissolução final, provém exclusivamente de Prakriti e de seus derivados”, vale dizer  dos vinte e quatro primeiros tattwas do Sânkhya.

Purusha é no entanto o princípio essencial de todas as coisas, pois é ele que determina o desenvolvimento das possibilidades de Prakriti; mas ele próprio não entra jamais na manifestação, de modo que todas as coisas, na medida em que são encaradas em modo distintivo, são diferentes dele, e nada do que lhes concerne como tais (constituindo o que se pode chamar o “devir”) poderia afetar sua imutabilidade. “Assim a luz solar ou lunar (susceptível de modificações múltiplas) parece ser idêntica àquilo que lhe dá nascimento (a fonte luminosa considerada como imutável em si mesma), mas no entanto é distinta dela (na sua manifestação exterior, assim como as modificações ou as qualidades manifestadas são, como tais, distintas de seu princípio essencial na medida em que elas não o podem afetar). Como a imagem do sol refletida na água treme ou vacila, seguindo as ondulações da água, sem entretanto afetar as outras imagens refletidas nela, e muito menos a órbita solar, assim também as modificações de um indivíduo não afetam outro indivíduo, nem sobretudo o próprio Supremo Ordenador (5), que é Purushottama, e a que a personalidade é realmente idêntica em sua essência, como toda fagulha é idêntica ao fogo considerado como indivisível quanto à sua natureza íntima.

É a alma viva (jîvâtmâ) que é aqui comparada à imagem do sol na água, como sendo o reflexo (âbhâsa), no mundo individual e em relação a cada indivíduo, da Luz, principialmente uma, do “Espírito Universal” (Atmâ); e o raio luminoso que faz existir essa imagem e a liga à sua fonte é, como veremos adiante, o intelecto superior (Buddhi), que pertence ao domínio da manifestação informal (6). Quanto à água, que reflete a luz solar, ela é habitualmente o símbolo do princípio plástico (Prakriti), a imagem da “passividade universal”; e de resto este símbolo, com o mesmo significado, é comum a todas as doutrinas tradicionais (7). Aqui, no entanto, é preciso fazer uma restrição quanto ao sentido geral, pois Buddhi, mesmo sendo informal e supra-individual, é ainda manifestado, e, por conseguinte, provém de Prakriti, de que é a primeira produção; a água não pode então representar aqui senão o conjunto potencial das possibilidades formais, ou seja o domínio da manifestação em modo individual, e assim ela deixa de fora estas possibilidades informais que, mesmo correspondendo a estados de manifestação, devem entretanto ser reportadas ao universal (8).





















NOTAS



1.      Bhagavad-Gîtâ, XV, 16-18.
2.      São “os dois pássaros que residem sobre uma mesma árvore”, segundo os textos dos Upanishads que citamos em nota precedente. Aliás, trata-se também de uma árvore no Katha Upanishad, 2ºAdhyâya, 6º Vallî, shruti 1, mas a aplicação deste símbolo é agora “macrocósmico” e não mais “microcósmico”: “O mundo é como uma figueira perpétua (ashwattha sanâtana)  cujas raízes elevam-se no ar e cujos galhos mergulham na terra; do mesmo modo, no Bhagavad-Gîtâ, XV, 1: “Existe uma figueira imperecível, cuja raiz fica no alto e os galhos embaixo, da qual os hinos do Veda são as folhas: aquele que a conhece, conhece o Veda”.  A raiz está no alto porque ela representa o princípio, e os galhos embaixo porque representam o desdobramento da manifestação; se a figura da árvore é assim invertida, é porque a analogia, aqui como em toda parte, deve ser aplicada em sentido inverso. Nos dois casos, a árvore é designada como a figueira sagrada (ashwattha ou pippala); sob esta forma ou outra, o simbolismo da “Árvore do Mundo” está longe de ser particular à Índia: o carvalho entre os Celtas, a tuia entre os Germânicos, o freixo entre os Escandinavos, desempenham exatamente o mesmo papel.
3.      termo iva indica que se trata de uma comparação (upamâ) ou de um modo de dizer destinado a facilitar a compreensão, mas que não deve ser tomada ao pé da letra. – Eis um texto taoísta que exprime uma idéia similar: “As normas de toda espécie, como aquela que faz um corpo de múltiplos órgãos (ou um ser de muitos estados) (...) são participações do Regente Universal. Estas participações não O aumentam nem O diminuem, pois elas são comunicadas por Ele, não destacadas d’Ele” (Tchouang Tsé, cap. II; tradução de P. Wieger, pg. 217).
4.      Brahma-Sûtras, 2º Adhyâya, 3º Pâda, sûtra 43. – Lembramos que seguimos principalmente, em nossa interpretação, o comentário de Shankarâchârya.
5.      Brahma-Sûtras, 2º Adhyâya, 3º Pâda, sûtra 46 a 53.
6.      É preciso lembrar que o raio supõe um meio de propagação (manifestação em modo não individualizado), e que a imagem supõe um plano de reflexão (individualização pelas condições de um certo estado de existência).
7.      Podemos, a respeito, reportarmo-nos em particular ao início da Gênese (Gen 1,2): “E o Espírito de Deus pairava sobre a superfície das águas”. Existe nesta passagem uma indicação muito clara relativamente aos dois princípios complementares de que falamos aqui, correspondendo o Espírito a Purusha e as Águas a Prakriti. De um ponto de vista diferente, mas não menos ligado analogamente ao precedente, o Ruahh Elohim do texto hebraico é também assimilável a Hamsa, o Cisne simbólico, veículo de Brahma, que choca o Brahmânda, o “Ovo do Mundo” contido nas Águas primordiais; é preciso lembrar que Hamsa é igualmente o  “Sopro” (spiritus), que é o primeiro sentido de Ruahh em hebraico. Enfim, se nos colocamos particularmente do ponto de vista da constituição do mundo corporal, Ruahh é o Ar (Vâyu); e, se isso não nos afastasse muito de nosso tema, poderíamos mostrar que existe uma perfeita concordância entre a Bíblia e o Veda no que concerne à ordem do desenvolvimento dos elementos sensíveis. Em todo caso, podemos encontrar, naquilo que dissemos, a indicação dos três sentidos superpostos, referindo-se respectivamente aos três graus fundamentais da manifestação (informal, sutil e grosseira), que são designadas como os “três mundos” (Tribhuvanna) pela tradição hindu. – Estes três mundos figuram também na Qabbalah hebraica sob os nomes de Beriah, Ietsirah e Asiah; acima deles está Atsiluth, que é o estado principial de não-manifestação.
8.      Se tomarmos o significado geral do símbolo da água, o conjunto das possibilidades formais é designado como as “Águas inferiores”, e o das possibilidades informais como as “Águas superiores”. A separação das “Águas inferiores” e das “Águas superiores”, do ponto de vista cosmogônico, acha-se ainda descrita no Gênese (Gen, I, 6-7); e devemos frisar que o termo Maïn, que designa a água em hebraico, tem a forma dual, o que pode, dentre outros significados, ser reportado ao “duplo caos” das possibilidades formais e informais no estado potencial. As Águas primordiais antes da separação, representam a totalidade das possibilidades de manifestação, na medida em que constituem o aspecto potencial do Ser Universal, que é propriamente Prakriti. Existe ainda um sentido superior do mesmo simbolismo, que se obtém transpondo-o para além do próprio Ser: as Águas representarão agora a Possibilidade Universal, encarada de modo absolutamente total, vale dizer na medida em que abarca ao mesmo tempo, em sua infinitude, o domínio da manifestação e o da não-manifestação. Este último sentido é o mais elevado de todos; no grau imediatamente inferior, na polarização primordial do Ser, teremos Prakriti, com o que estaremos no princípio da manifestação. Em seguida, continuando a descer, podemos encarar os três graus desta, como fizemos precedentemente: teremos então, para os dois primeiros, o “duplo caos” de que falamos e, enfim, para o mundo corporal, a Água enquanto elemento sensível (Ap), sendo que esta encontra-se compreendida já implicitamente, como tudo o que pertence à manifestação grosseira, no domínio das “Águas inferiores”,  pois a manifestação sutil desempenha o papel de princípio imediato e relativo em relação a esta manifestação grosseira. – Embora essas explicações sejam um pouco longas, achamos que seriam úteis para ajudar a compreender, através de exemplos, como se pode encarar uma pluralidade de sentidos e de aplicações nos textos tradicionais.






VI

OS GRAUS DA MANIFESTAÇÃO INDIVIDUAL



Devemos agora passar à enumeração dos diferentes graus da manifestação de Atmâ, visto como a personalidade, na medida em que esta manifestação constitui a individualidade humana; e podemos mesmo afirmar que a constitui efetivamente, pois esta individualidade não teria nenhuma existência se fosse separada de seu princípio, vale dizer da personalidade. Entretanto, o modo de falar que empregamos merece uma reserva: por manifestação de Atmâ, deve-se entender a manifestação reportada a Atmâ como a seu princípio essencial: mas não se deve entender por isso que Atmâ se manifeste de algum modo, pois ele não entra jamais na manifestação, como dissemos antes, e é por isso que ele não é jamais afetado. Em outras palavras, Atmâ é “Aquilo pelo que tudo é manifestado, e que não é manifestado por nada” (1); é o que não se deve perder de vista no que virá a seguir. Lembraremos ainda que Atmâ e Purusha são um só e mesmo princípio, e que é de Prakriti, e não de Purusha, que se produz toda a manifestação; mas, se o Sânkhya encara sobretudo esta manifestação como o desenvolvimento ou a “atuação” das potencialidades de Prakriti, porque seu ponto de vista é antes de tudo cosmológico e não propriamente metafísico, o Vêdânta verá aí outra coisa, porque ele considera Atmâ, que está fora da modificação e do “devir”, como o verdadeiro princípio ao qual tudo deve ser reportado ao final. Poderíamos dizer que existe, a este respeito, o ponto de vista da “substância” e o da “essência”, e que é o primeiro que é o ponto de vista cosmológico, porque ele é o da Natureza e do “devir”; mas, por outro lado, a metafísica não se limita à “essência” concebida como correlativa da “substância”, nem mesmo limita-se ao Ser no qual estes dois termos estão unificados; ela vai bem mais longe, pois ela se estende também a Paramâtmâ ou Purushottama, que é o Supremo Brahma, e assim seu ponto de vista (se é que esta expressão ainda é aplicável aqui) é verdadeiramente ilimitado.

Por outro lado, quando falamos de diferentes graus da manifestação individual, devemos entender que esses graus correspondem aos da manifestação universal, em razão desta analogia constitutiva entre o “macrocosmo” e o “microcosmo” a que fizemos alusão mais acima. Compreenderemos melhor ainda se refletirmos que todos os seres manifestados são igualmente submetidos às condições particulares que definem os estados de existência nos quais estão colocados; se não podemos, considerando um ser qualquer, isolar realmente um estado desse ser do conjunto de todos os outros estados dentre os quais ele se situa hierarquicamente a um nível dado, tampouco podemos, de um outro ponto de vista, isolar este estado de tudo o que pertence, não mais ao mesmo ser, mas ao mesmo grau da Existência universal; e assim tudo aparece como ligado em muitos sentidos, seja na própria manifestação, seja na medida em que esta, formando um conjunto único em sua multiplicidade indefinida, liga-se ao seu princípio, vale dizer ao Ser, e daí ao Princípio Supremo. A multiplicidade existe segundo seu modo próprio, desde que ela é possível, mas esse modo é ilusório, no sentido que já precisamos (o de uma “realidade menor”), porque a própria existência desta multiplicidade funda-se sobre a unidade, de onde ela saiu e na qual está contida principialmente. Ao encararmos desta forma o conjunto da manifestação universal, podemos dizer que, na própria multiplicidade de seus graus e de seus modos, “a Existência é única”, segundo uma fórmula que emprestamos do esoterismo islâmico; e existe aí uma nuance importante a observar entre “unicidade” e “unidade”: a primeira abarca a multiplicidade como tal, a segunda é seu princípio (não a “raiz”, no sentido em que esse termo é aplicado a Prakriti apenas, mas como encerrando em si todas as possibilidades de manifestação, tanto “essencialmente” quanto “substancialmente”). Podemos então dizer que propriamente que o Ser é um, e que ele é a própria Unidade (2), no sentido metafísico aliás, e não no sentido matemático, pois aqui estamos bem além do domínio da quantidade; entre a Unidade metafísica e a unidade matemática, existe analogia, mas não identidade; e, da mesma forma, quando se fala da multiplicidade da manifestação universal, não se trata de uma multiplicidade quantitativa, pois a quantidade não passa de uma condição particular de certos estados manifestados. Enfim, se o Ser é um, o Princípio Supremo é “sem dualidade”, como veremos a seguir: a unidade, com efeito, é a primeira de todas as determinações, mas ela é já uma determinação, e, como tal, ela não poderia ser aplica com propriedade ao Princípio Supremo.

Após havermos dado estas noções indispensáveis, voltemos à consideração dos graus da manifestação: cabe, antes de mais nada, uma distinção entre a manifestação informal e a manifestação formal: mas, quando nos limitamos à individualidade, é sempre da segunda que se trata exclusivamente. O estado propriamente humano, assim como qualquer estado individual, pertence inteiro à ordem da manifestação formal, pois é precisamente a presença da forma entre as condições de um certo modo de existência que caracteriza esse modo como individual. Se portanto encararmos um elemento informal, haverá aí um elemento supra-individual, e, quanto às suas relações com a individualidade humana, ele jamais deverá ser visto como constitutivo desta, ou como fazendo parte dela sob qualquer título, mas como ligando a individualidade à personalidade. Esta última, com efeito, é não-manifestada, mesmo se a considerarmos mais especialmente como o princípio dos estados manifestados, assim como o Ser, mesmo sendo propriamente o princípio da manifestação universal, está fora e para além desta manifestação (e podemos nos lembrar aqui do “motor imóvel” de Aristóteles); mas, por outro lado, a manifestação informal é ainda principial, num sentido relativo, em relação à manifestação formal, e assim ela estabelece uma ligação entre esta e seu princípio superior não-manifestado, que é aliás o princípio comum destas duas ordens de manifestação. Da mesma forma, se distinguirmos em seguida, dentro da manifestação formal ou individual, o estado sutil e o estado grosseiro, o primeiro é, mais relativamente ainda, principial em relação ao segundo, e, por conseguinte, ele situa-se entre este último e a manifestação informal. Teremos assim, por uma série de princípios progressivamente relativos e determinados, um encadeamento ao mesmo tempo lógico e ontológico (sendo que os dois pontos de vista se correspondem de tal modo que só podemos separá-los artificialmente) estendendo-se desde o não-manifestado até a manifestação grosseira, passando pelo intermediário da manifestação informal, e depois da manifestação sutil; e, quer se trate do “macrocosmo”, quer se trate do “microcosmo”, tal é a ordem geral que deve ser seguida no desenvolvimento das possibilidades de manifestação.

Os elementos de que vamos falar são os tattwas enumerados pelo Sânkhya, com exceção, bem entendido, do primeiro e do último, ou seja de Prakriti e Purusha; e vimos que, dentre esses tattwas, alguns são vistos como “produções produtivas” e outros como “produções improdutivas”.  Uma questão deve ser colocada a este respeito: esta divisão é equivalente àquela que relativa aos graus da manifestação, ou corresponde a ela de algum modo? Por exemplo, se nos limitamos ao ponto de vista da individualidade, poderíamos ser tentados a relacionar os tattwas do primeiro grupo ao estado sutil e os do segundo ao estado grosseiro, tanto mais que, num certo sentido, a manifestação sutil é produtora da manifestação grosseira, enquanto que esta não é produtora de nenhum outro estado; mas as coisas não são tão simples em realidade. Com efeito, no primeiro grupo, temos antes de mais nada Buddhi, que é o elemento informal a que fazemos alusão a toda hora; quanto aos outros tattwas que aí se encontram, ahankâra e os tanmâtras, eles pertencem ao domínio da manifestação sutil.

Por outro lado, dentro do segundo grupo, os bhûtas pertencem de maneira incontestável ao domínio da manifestação grosseira, pois se trata de elementos corporais; porém manas, não sendo corporal, deve ser reportado à manifestação sutil, no mínimo em si mesmo, embora sua atividade se exerça também em relação à manifestação grosseira; e os outros indriyas tem de certo modo um duplo aspecto, podendo ser encarados enquanto faculdades e enquanto órgãos, portanto psíquica e fisicamente, ou seja ainda no estado sutil ou no estado grosseiro. Deve ficar entendido, de resto, que aquilo que é encarado da manifestação sutil, em tudo isso, é apenas o que concerne ao estado individual humano, em suas modalidades extra-corporais; e, embora estas sejam superiores à modalidade corporal por conterem em si seu princípio imediato (ao mesmo tempo que seu domínio estende-se muito além), se as recolocarmos dentro do conjunto da Existência universal, elas pertencem ainda ao mesmo grau desta Existência, no qual está situado o estado humano por inteiro. A mesma observação aplica-se também quando dizemos que a manifestação sutil é produtora da manifestação grosseira: para que isto seja rigorosamente exato, é preciso colocar, para a primeira, a restrição que indicamos, pois a mesma relação pode ser estabelecida para outros estados igualmente individuais, mas não humanos, e inteiramente diferentes por suas condições (salvo a presença da forma), estados que somos entretanto obrigados a compreender também na manifestação sutil, como explicamos, desde que tomemos a individualidade humana como termo de comparação como devemos inevitavelmente, lembrando sempre que este estado não tem em realidade nada de mais nem de menos do que qualquer outro estado.

Uma última observação é ainda necessária: quando falamos da ordem de desenvolvimento das possibilidades de manifestação, ou da ordem em que devem ser enumerados os elementos que correspondem às diferentes fases deste desenvolvimento, é preciso ter o cuidado de frisar que esta ordem implica numa sucessão puramente lógica, que traduz um encadeamento ontológico real, não cabendo aqui nenhuma sucessão temporal. De fato, o desenvolvimento no tempo não corresponde senão a uma condição particular de existência, que é uma das que definem o domínio dentro do qual está contido o estado humano; e existe uma indefinidade de outros modos de desenvolvimento igualmente possíveis, e igualmente compreendidos dentro da manifestação universal. A individualidade humana não pode portanto ser situada temporalmente em relação aos outros estados do ser, pois estes, de modo geral, são extra-temporais, e isto mesma para estados que encontram-se igualmente dentro da manifestação formal. Podemos ainda acrescentar que certas extensões da individualidade humana, fora de sua modalidade corporal, escapam também ao tempo, sem que por isso sejam subtraídas às demais condições gerais do estado ao qual pertence esta individualidade, de modo que elas situam-se verdadeiramente em simples prolongamentos deste mesmo estado; e teremos ocasião de explicar, em outros estudos, como tais prolongamentos podem ser atingidos pela supressão de uma ou outra das condições cujo conjunto completo define o mundo corporal. Se é assim, percebemos que não se poderia, com mais razão ainda, intervir a condição temporal naquilo que não pertence mais ao mesmo estado, nem consequentemente nas relações do estado humano integral com outros estados; e, com mais razão ainda, não se pode faze-lo quando se trata de um princípio comum a todos os estados de manifestação, ou de um elemento que, mesmo sendo já manifestado, é superior a toda manifestação formal, como aquele que encaramos em primeiro lugar.











NOTAS



1.      Kêna Upanishad, 1º Khanda, shrutis 5-9; a passagem completa será reproduzida mais adiante.
2.      É o que exprime o adágio escolástico: Esse et unum convertuntur.





















VII

BUDDHI OU O INTELECTO SUPERIOR



O primeiro grau da manifestação de Atmâ, entendendo esta expressão no sentido que adotamos no capítulo anterior, é o intelecto superior (Buddhi), que, como vimos, é também chamado Mahat ou “grande princípio”: é o segundo dos vinte e cinco princípios do Sânkhya, portanto a primeira das produções de Prakriti. Este princípio é ainda de ordem universal, pois é informal; entretanto, não devemos nos esquecer que ele já pertence à manifestação, e é por isso que ele procede de Prakriti, pois toda manifestação, em qualquer grau que a consideremos, pressupõe necessariamente estes dois termos correlativos e complementares que são Purusha e Prakriti, a “essência” e a “substância”. Não é menos verdade que Buddhi ultrapassa o domínio, não apenas da individualidade humana, mas de qualquer estado individual qualquer que seja, e é o que justifica seu nome de Mahat; ele não é assim jamais individualizado em realidade, e é apenas no estado seguinte que encontraremos a individualidade efetuada, com a consciência particular (ou melhor “particularista”) do “eu”.

Buddhi, considerado em relação à individualidade humana ou qualquer outro estado individual, é portanto seu princípio imediato, mas transcendente, como, do ponto de vista da Existência universal, é a manifestação informal em relação à manifestação formal; e é ao mesmo tempo o que podemos chamar a expressão da personalidade na manifestação, portanto aquilo que unifica o ser através da multiplicidade indefinida de seus estados individuais (sendo o estado humano, em toda sua extensão, mais um dentre outros). Em outros termos, se encararmos o “Si” (Atmâ) ou a personalidade como o Sol espiritual (1) que brilha no centro do ser total, Buddhi será o raio diretamente emanado deste Sol e que ilumina em sua integralidade o estado individual que estudamos mais especialmente, ligando-o aos outros estados individuais do mesmo ser, ou mesmo, mais geralmente ainda, a todos os seus estados manifestados (individuais e não-individuais), e, para além destes, ao próprio centro. Convém aliás lembrar, sem muita insistência, que, em razão da unidade fundamental do ser em todos os seus estados, devemos considerar o centro de cada estado, no qual projeta-se este raio espiritual, como identificado virtualmente, senão efetivamente, com o centro do ser total; e é por isso que um estado qualquer, tanto o humano como qualquer outro, pode ser tomado como base para a realização da “Identidade Suprema”. É precisamente nesse sentido, e em virtude desta identificação, que podemos dizer, como o fizemos, que o próprio Purusha reside no centro da individualidade humana, ou seja no ponto onde a interseção do raio espiritual com o domínio das possibilidades vitais determina a “alma viva” (jîvâtmâ) (2).

Por outro lado, Buddhi, como tudo o que provém do desenvolvimento das potencialidades de Prakriti, participa dos três gunas; é por isso que, visto sob o aspecto do conhecimento distintivo (vijnâna), ela é concebida como ternária, e, dentro da ordem da Existência universal, ela é identificada à Trimûrti divina: “Mahat torna-se distintivamente concebido como três Deuses (no sentido de três aspectos da Luz inteligível, pois este é propriamente o significado do termo sânscrito Deva, do qual a palavra “Deus” é aliás, o exato equivalente etimológico) (3), pela influência dos três gunas, sendo uma só manifestação (mûrti) em três Deuses. No universal, ele é a Divindade (Ishwara, não em si, mas sob seus três aspectos principais de Brahmâ, Vishnu e Shiva, que constituem a Trimûrti ou “tripla manifestação”); mas, visto distributivamente (sob o aspecto, de resto puramente contingente, da “separatividade”), ele pertence (sem entretanto individualizar-se) aos seres individuais (aos quais comunica a possibilidade de participação aos atributos divinos, vale dizer à própria natureza do Ser Universal, princípio de toda existência)” (4). É fácil ver que Buddhi é considerada aqui em suas relações respectivas com os dois primeiros dos três Purushas mencionados no Bhagavad-Gîta; na ordem “macrocósmica”, com efeito, aquele que é designado como “imutável” é o próprio Ishwara, de que a Trimûrti é a expressão em modo manifestado (trata-se, bem entendido, da manifestação informal, pois não há aí nada de individual); e é dito que o outro é “repartido entre todos os seres”. Da mesma forma, na ordem “microcósmica” Buddhi pode ser vista ao mesmo tempo em relação à personalidade (Atmâ) e em relação à “alma viva” (jîvâtmâ), sendo que esta última não passa do reflexo da personalidade no estado individual humano, reflexo que não poderia existir sem o intermédio de Buddhi: lembremo-nos aqui do símbolo do sol e de sua imagem refletida na água; Buddhi é, como dissemos, o raio que determina a formação dessa imagem e que, ao mesmo tempo, a liga à fonte luminosa.

É em virtude da dupla relação que indicamos, e desse papel de intermediário entre a personalidade e a individualidade, que podemos, malgrado tudo o que há de inadequado na expressão, ver o intelecto como algo que passa de certo modo do estado de potência universal ao estado individualizado, mas sem cessar realmente de ser tal como era, e somente por sua interseção com o domínio particular de certas condições  de existência, pelas quais se define a individualidade considerada; e ele produz então, como resultante desta interseção, a consciência individual (ahankâra), implicada na “alma viva” (jîvâtmâ) à qual ela é inerente. Como já indicamos, esta consciência que é o terceiro princípio do Sânkhya, dá origem à noção do “eu” (aham, donde ahankâra, literalmente “o que faz o eu”), pois ela tem por função própria prescrever a convicção individual (abhimâna), ou seja precisamente a noção de “eu sou” que concerne aos objetos externos (bâhya) e internos (abhyantara), que são respectivamente os objetos da percepção (pratyaksha) e da contemplação (dhyâna); e o conjunto desses objetos é designado pelo termo idam, “isto”, quando concebido por oposição a aham ou o “eu”, oposição aliás relativa, e bem diferente da que os filósofos modernos pretendem estabelecer entre o “sujeito” e o “objeto”, ou entre o “espírito” e as “coisas”. Assim, a consciência individual procede imediatamente, mas como simples modalidade “condicional” do princípio intelectual, e, por sua vez, ela produz todos os outros princípios ou elementos peculiares à individualidade humana, de que iremos nos ocupar a seguir.









NOTAS



1.      Quanto ao sentido em que se deve entender esta expressão, remetemos à observação que fizemos a propósito do “Espírito Universal”.
2.      É evidente que queremos falar aqui, não de um ponto matemático, mas do que podemos chamar analogamente um ponto metafísico, sem entretanto que esta expressão deva evocar a idéia da mônada de Leibnitz, pois Jîvâtmâ não é mais que uma manifestação particular e contingente de Atmâ, e que sua existência separada é propriamente ilusória. O simbolismo geométrico ao qual nos referimos será de resto exposto em outro estudo com todos os desenvolvimentos cabíveis.
3.      Se dermos ao termo “Deus” o sentido que este tomou ulteriormente nas línguas ocidentais, o plural seria um contra-senso tanto do ponto de vista hindu como do judaico-cristão e islâmico, pois este termo, como já observamos, só poderia aplicar-se a Ishwara exclusivamente, em sua indivisível unidade que é a do Ser Universal, qualquer que seja a multiplicidade de aspectos que se possa considerar secundariamente.
4.      Matsya-Purâna – Lembraremos que Buddhi tem relações com o Logos alexandrino.









VIII

MANAS OU O SENTIDO INTERNO;

AS DEZ FACULDADES EXTERNAS

DE SENSAÇÃO E DE AÇÃO



Após a consciência individual (ahankâra) a enumeração dos tattwas do Sânkhya comporta, dentro do mesmo grupo das “produções produtivas”, os cinco tanmâtras, determinações elementares sutis, portanto incorpóreas e não perceptíveis exteriormente, que são, de modo direto, os princípios respectivos dos cinco bhutas ou elementos corporais e sensíveis, e que tem sua expressão definida dentro das próprias condições da existência individual no grau em que se situa o estado humano. O termo tanmâtra significa literalmente uma “assinalação” (mâtra, medida, determinação) que delimita o domínio próprio de uma certa qualidade (tad ou tat, pronome neutro, “aquilo”, tomado no sentido de “quididade”, como no árabe dhât) (1) dentro da Existência universal; mas não cabe aqui entrar em maiores detalhes sobre este ponto. Diremos apenas que os cinco tanmâtras são designados habitualmente pelos nomes das qualidades sensíveis: auditiva ou sonora (shabda), tangível (sparsha), visível (rûpa, com o duplo sentido de forma e cor), gustativa (rasa), olfativa (gandha); mas estas qualidades não podem ser vistas aqui senão em seu estado principial, de certo modo, e “não-desenvolvido”, pois é apenas através dos bhutas que elas serão manifestadas efetivamente na ordem sensível; e a relação dos tanmâtras com os bhutas é, em seu grau relativo, análoga à relação da essência” para com a “substância”, de tal forma que se poderia dar aos tanmâtras a designação de “essências elementares”(2). Os cinco bhutas são, na ordem de sua produção ou de sua manifestação (ordem correspondente à que foi indicada para os tanmâtras, pois a cada elemento pertence propriamente uma qualidade sensível), o Éter (Akâsha), o Ar (Vâyu), o Fogo (Têjas), a Água (Ap) e a Terra (Prithvî ou Prithivî); e é deles que é formada toda a manifestação grosseira ou corporal.

Entre os tanmâtras e os bhutas, e constituindo com estes últimos o grupo das “produções improdutivas”, existem onze faculdades distintas, propriamente individuais, que procedem de ahankâra, e que, ao mesmo tempo, participam todas dos cinco tanmâtras. Das onze faculdades de que se trata, dez são externas: cinco de sensação e cinco de ação; a décima primeira, cuja natureza participa simultaneamente de umas e de outras, é o sentido interno ou a faculdade mental (manas), e esta última está unida diretamente à consciência (ahânkara) (3). É a este manas que deve ser reportado o pensamento individual, que é de ordem formal (compreendendo aí a razão juntamente com a memória e a imaginação) (4), e que não é absolutamente inerente ao intelecto transcendente (Buddhi), cujas atribuições dão essencialmente informais. Lembraremos a propósito que, para Aristóteles igualmente, o intelecto puro é de ordem transcendente e tem por objeto próprio o conhecimento dos princípios universais; este conhecimento, que não tem nada de discursivo, é obtido direta e imediatamente pela intuição intelectual, que, digamo-lo para evitar confusão, não tem nada em comum com a pretensa “intuição”, de ordem unicamente sensível e vital, que desempenha um papel tão importante nas teorias, claramente antimetafísicas, de certos filósofos contemporâneos.

Quanto ao desenvolvimento das diferentes faculdades do homem individual, reproduziremos o que é ensinado a respeito pelos Brahma-Sûtras: “o intelecto, o sentido interno, assim como as faculdades de sensação e de ação, são desenvolvidos (na manifestação) e reabsorvidos (no não-manifestado) numa ordem semelhante (mas, para a reabsorção, num sentido inverso ao desenvolvimento) (5), ordem que é sempre a dos elementos de que essas faculdades procedem quanto à sua constituição (6) (porém com a exceção do intelecto, que se desenvolve, na ordem informal, previamente a qualquer princípio formal ou propriamente individual). Quanto a Purusha (ou Atmâ), sua emanação (na medida em que a vemos como a personalidade de um ser) não possui nascimento (mesmo na acepção mais extensa da palavra) (7), nem uma produção (que determine um ponto de partida para sua existência efetiva, assim como ocorre com tudo o que provém de Prakriti). Não podemos, com efeito, assinalar-lhe nenhuma limitação (por qualquer condição particular de existência), pois, estando identificado com o Supremo Brahma, ele participa de Sua Essência infinita (8) (que implica a possessão dos atributos divinos, ao menos virtualmente, e mesmo atualmente na medida em que essa participação é efetivamente realizada pela “Identidade Suprema”, sem falar naquilo que está para além de qualquer atribuição, pois trata-se aqui do Supremo Brahma, que é nirguna, e não apenas de Brahma como saguna, ou seja Ishwara) (9). Ele é ativo, mas em princípio somente (portanto “não-agente”) (10), pois esta atividade (kartritwa) não lhe é essencial ou inerente, mas apenas eventual ou contingente (relativa somente aos seus estados de manifestação). Como o carpinteiro que, tendo em suas mãos o machado e outros utensílios, coloca-os de lado e usufrui da tranqüilidade e do repouso, assim também Atmâ, em sua união com seus instrumentos (por meio dos quais suas faculdades principiais são expressas e desenvolvidas em cada um dos seus estados de manifestação, e que assim não são outra coisa que estas faculdades manifestadas com seus órgãos respectivos), é ativo (embora essa atividade não afete em nada sua natureza íntima), e, deixando-os, usufrui do repouso e da tranqüilidade (no “não-agir”, do qual, em suma, jamais saiu).” (11).

“As diversas faculdades de sensação e de ação (designadas pelo termo prâna numa acepção secundária) são em número de onze: cinco de sensação (buddhîndriyas ou jnânêndriyas, meios ou instrumentos de conhecimento em seu domínio particular), cinco de ação (karmêndriyas), e o sentido interno (manas). Quando um número maior (treze) é especificado, o termo indriya é empregado em seu sentido mais extenso e mais compreensivo, distinguindo em manas, devido à pluralidade de suas funções, o intelecto (não em si mesmo e na ordem transcendente, mas enquanto determinação particular em relação ao indivíduo), a consciência individual (ahânkara, de que manas não pode ser separado) e o sentido interno propriamente dito (aquilo que os filósofos escolásticos denominam “sensorium comune”). Quando um número menor (ordinariamente sete) é mencionado, o mesmo termo é empregado na sua acepção mais restrita: assim, fala-se de sete órgãos sensitivos, relativamente aos dois olhos, duas orelhas, duas narinas e a boca ou a língua (de sorte que, neste caso, trata-se apenas das sete aberturas ou orifícios da cabeça). As onze faculdades acima mencionadas (embora designadas em seu conjunto pelo termo prâna) não são (como os cinco vâyus, de que falaremos mais adiante) simples modificações do mukhya-prâna ou do ato vital principal (a respiração, com a assimilação que dela resulta), mas princípios distintos (do ponto de vista particular da individualidade humana)” (12).  

O termo prâna, em sua acepção habitual, significa propriamente “sopro vital”; mas, em certos textos védicos, aquilo que é assim designado é, no sentido universal, identificado em princípio com o próprio Brahma, como quando é dito que, no sono profundo (sushupti), todas as faculdades são reabsorvidas em prâna, pois, “enquanto um homem dorme sem sonhar, seu princípio espiritual (Atmâ encarado em relação a ele) é um com Brahma” (13), sendo este estado além da distinção, portanto verdadeiramente supra-individual; é por isso que a palavra swapiti, “ele dorme”, é interpretada como swan apîto bhavati “ele entrou dentro de seu próprio (“Si”)” (14).

Quanto ao termo indriya, ele significa propriamente “poder”, que é também o primeiro sentido da palavra “faculdade”; mas, por extensão, seu significado, como já indicamos, compreende ao mesmo tempo a faculdade e seu órgão corporal, cujo conjunto é considerado como constituindo um instrumento, seja de conhecimento (buddhi ou jnâna, tomados estes termos em sua acepção mais extensa), seja de ação (karma), que são assim designados por uma só palavra. Os cinco instrumentos de sensação são: as orelhas ou o ouvido (shrotra), a pele ou o toque (twach), ou olhos ou a vista (chakshus), a língua ou o gosto (rasana), o nariz ou o odor (ghrâna), assim enumerados na ordem do desenvolvimento dos sentidos, que é a dos elementos (bhûtas) correspondentes; mas, para expor em detalhes esta correspondência, seria preciso tratar completamente das condições da existência corporal, o que é impossível fazer aqui. Os cinco instrumentos de ação são: os órgãos excretores (pâyu), os órgãos geradores (upastha), as mãos (pâni), os pés (pâda), e enfim a voz ou o órgão da fala (vâch) (15), que é enumerado como décimo. Manas deve ser visto como décimo primeiro, compreendendo por sua natureza a dupla função, servindo ao mesmo tempo à sensação e à ação, e, por conseguinte, participando das propriedades de uns e outros, que ele centraliza de certa forma em si mesmo (16).

Segundo o Sânkhya, estas faculdades, com seus órgãos respectivos, são, distinguindo-se três princípios em manas, os treze instrumentos do conhecimento no domínio da individualidade humana (pois a ação não tem seu fim em si mesma, mas apenas em relação ao conhecimento): três internos e dez externos, comparados a três sentinelas e dez portas (sendo o caráter consciente inerente aos primeiros, mas não aos segundos se os encaramos distintamente). Um sentido corporal percebe, um órgão de ação executa (sendo um de certo modo uma “entrada” e o outro uma “saída”: existem duas fases sucessivas e complementares, tendo a primeira um movimento centrípeto e a segunda um movimento centrífugo); entre os dois, o sentido interno (manas) examina; a consciência (Ahankâra) faz a aplicação individual, ou seja a assimilação da percepção ao “eu”, de que ela faz parte a título de modificação secundária; e enfim o intelecto (Buddhi) transpõe para o Universal os dados das faculdades precedentes.





NOTAS



1.      Cabe lembrar que as palavras tat e dhât são foneticamente idênticas entre si, e também com o inglês that, que tem o mesmo sentido.
2.      É num sentido muito próximo desta consideração dos tanmâtras que Fabre d’Olivet, em sua interpretação da Gênese (La Langue Hébraïque Restituée), emprega a expressão “elementização inteligível”.
3.      Sobre a produção desses diversos princípios, vista do ponto de vista “macrocósmico”, cf. Mânava-Dharma-Shâstra (Lei de Manu), 1º Adhyâya, shlokas 14-20.
4.      É sem dúvida deste modo que se deve compreender Aristóteles, quando diz que “o homem (enquanto indivíduo) jamais pensa sem imagens”, ou seja sem formas.
5.      Lembramos que não se trata de uma ordem de sucessão temporal.
6.      Pode tratar-se aqui seja dos tanmâtras seja dos bhutas, segundo que os indriyas sejam vistos no estado sutil ou no estado grosseiro, ou seja enquanto qualidades ou enquanto órgãos.
7.      Pode-se, de fato, denominar “nascimento” e “morte” o começo e o fim de um ciclo qualquer, vale dizer da existência em não importa qual estado de manifestação, e não apenas no estado humano; como explicaremos adiante, a passagem de um estado a outro é assim uma morte e um nascimento, conforme a vejamos em relação ao estado antecedente ou ao estado subsequente.
8.      termo “essência”, quando aplicado assim analogicamente, não é mais o correlativo de “substância”; de resto, aquilo que possui um correlativo não pode ser infinito. Da mesma forma, a palavra “natureza”, aplicada ao Ser Universal ou mesmo para além do Ser, perde inteiramente seu sentido próprio e etimológico, com a idéia de “devir” que nele está implicada.
9.      A posse dos atributos divinos é chamada em sânscrito aishwarya, como sendo uma verdadeira “conatureza” com Ishwara.
10.  Aristóteles tem razão quando insiste sobre este ponto, que o primeiro motor de todas as coisas (ou o princípio do movimento) deve ser imóvel, o que eqüivale a dizer, em outros termos, que o princípio de toda ação deve ser “não-agente”.
11.  Brahma-Sûtras, 2º Adhyâya, 3º Pâda, sûtras 15-17 e 33-40.
12.  Brahma-Sûtras, 2º Adhyâya, 4º Pâda, sûtras 1-7.
13.  Comentário de Shankarâchârya sobre os Brahma-Sûtras,  3º Adhyâya, 2º Pâda, sûtra 7.
14.  Chhândogya Upanishad, 6º Prapâthaka, 8º Khanda, shruti 1. – não é preciso dizer que se trata de uma interpretação pelos procedimentos do Nirukta, e não de uma derivação etimológica.
15.  A palavra vâch é idêntica ao latim vox.
16.  Mânava-Dharma-Shâstra, 2º Adhyâya, shlokas 89-92.
















IX

OS CINCO VAYUS OU FUNÇÕES VITAIS;

OS ENVELOPES DO “SI”




Purusha ou Atmâ, manifestando-se como jîvâtmâ na forma viva do ser individual, é visto, segundo o Vêdânta, como revestindo-se de uma série de “envelopes”(koshas) ou de “veículos” sucessivos, representando outras tantas fases da manifestação, os quais seria completamente errôneo assimilar a “corpos”, pois apenas a última fase é de ordem corporal. É preciso lembrar, de resto, que não se pode dizer, com todo o rigor, que Atmâ esteja realmente contido nestes envelopes, pois, por sua própria natureza, ele não é susceptível de nenhuma limitação e não é absolutamente condicionado por qualquer estado de manifestação (1).

O primeiro envelope (ânandamaya-kosha, sendo que a partícula maya significa “que é feito de” ou “que consiste em” aquilo que designa a palavra à qual é anexada)  não é outra coisa que o conjunto de todas as possibilidades de manifestação que Atmâ comporta em si, em sua “permanente atualidade”, no estado principial e indiferenciado. Ele é chamado “feito de Beatitude” (Ananda), porque o “Si”, neste estado primordial, goza da plenitude de seu próprio ser, e ele não é verdadeiramente distinto do “Si”; ele é superior à existência condicionada, que o pressupõe, e situa-se no grau do Ser puro: é por isso que ele é visto como característico de Ishwara (2). Estamos aqui na ordem informal; é apenas quando o vemos em relação à manifestação formal, na medida em que o princípio desta está contido nele, que podemos dizer que está aí a forma principial ou causal (kârana-sharîra), aquilo pelo quê a forma será manifestada e atualizada nos estágios seguintes.

O segundo envelope (vijnânamaya-kosha) é formado pela Luz (no sentido inteligível) diretamente refletida do Conhecimento integral e universal (Jnâna, sendo que a partícula vi indica o modo distintivo) (2); ele é composto das cinco “essências elementares” (tanmâtras), “concebíveis”, mas não “perceptíveis” em seu estado sutil; e ele consiste na junção do intelecto superior (Buddhi) com as faculdades principiais de percepção que procedem respectivamente dos cinco tanmâtras, e cujo desenvolvimento exterior constituirá os cinco sentidos na individualidade corporal (3). O terceiro envelope (manomaya-kosha), no qual o sentido interno (manas) está unido ao precedente, implica particularmente na consciência mental (4) ou faculdade pensante, que, como dissemos antes, é de ordem exclusivamente individual, e cujo desenvolvimento procede da irradiação em modo refletido do intelecto superior no estado individual, que aqui é o estado humano. O quarto envelope (prânamaya-kosha) compreende as faculdades que procedem do “sopro vital” (prâna), ou seja dos cinco vâyus (modalidades do mesmo prâna), assim como as faculdades de ação e de sensação (sendo que estas últimas existem já principialmente nos dois envelopes precedentes, como faculdades puramente  “conceptivas”, enquanto que, por outro lado, não se poderia tratar de nenhuma espécie de ação, tanto quanto de qualquer percepção exterior). O conjunto destes três envelopes (vijnânamaya, manomaya e prânamaya) constitui a forma sutil (sûkshma-sharîra ou linga-sharîra), por oposição à forma grosseira ou corporal (sthûla-sharîra); reencontramos assim aqui a distinção dos dois modos de manifestação formal de que já falamos em diversas ocasiões.

As cinco funções ou ações vitais são denominadas vâyus, embora não sejam propriamente falando nem o ar nem o vento (este é o sentido geral da palavra vâyu ou vâta, derivada da raiz verbal , “ir”, “mover-se”, e que designa habitualmente o elemento ar, cuja propriedade característica é a mobilidade) (5), tanto mais que elas se reportam ao estado sutil e não ao estado corporal; mas elas são, como dissemos, modalidades do “sopro vital” (prâna, ou mais geralmente ana) (6), considerado principalmente em suas relações com a respiração. São as seguintes: 1º) a aspiração, ou seja a respiração considerada como ascendente na sua fase inicial (prâna, no sentido mais estrito do termo), e captando os elementos ainda não individualizados do ambiente cósmico para faze-los participar da consciência individual por assimilação; 2º) a inspiração, considerada como descendente na fase seguinte (apâna) e através da qual esses elementos penetram na individualidade; 3º) uma fase intermediária entre as duas precedentes (vyâna), consistindo, de um lado, no conjunto de ações e reações recíprocas que se produzem no contato entre o indivíduo e os elementos ambientes e, de outro lado, nos diversos movimentos vitais que daí resultam, e cuja correspondência no organismo corporal é a circulação sangüínea; 4º) a expiração (udâna), que projeta o sopro, transformando-o, para além dos limites da individualidade restrita (ou seja reduzida apenas às modalidades que são desenvolvidas em todos os homens), dentro do domínio das possibilidades da individualidade estendida, encarada em sua integralidade (7); 5º) a digestão, ou a assimilação substancial íntima (samâna), pela qual os elementos absorvidos tornam-se parte integrante da individualidade (8). É claramente especificado que não se trata aí de uma simples operação de um ou mais órgãos corporais; é fácil dar-se conta, com efeito, que tudo isso não deve ser compreendido somente para as funções fisiológicas analogamente correspondentes, mas para a assimilação vital em seu sentido mais extenso.

A forma corporal ou grosseira (sthûla-sharîra) é o quinto e último envelope, aquele que corresponde, para o estado humano, ao modo de manifestação mais exterior; é o envelope alimentar (annamaya-kosha), composto dos cinco elementos sensíveis (bhûtas), a partir dos quais são constituídos todos os corpos. Ele assimila os elementos combinados recebidos na nutrição (anna, palavra derivada da raiz verbal ad, comer) (8), retirando as partes mais finas, que permanecem na circulação orgânica, e excretando ou rejeitando as mais grosseiras, com a exceção das que são depositadas nos ossos. Como resultado desta assimilação, as substâncias terrosas tornam-se carne; as substâncias aquosas, o sangue; as substâncias ígneas, a gordura, a medula e os sistema nervoso (matéria fosfórica); pois existem substâncias corporais nas quais a natureza de tal ou tal elemento predomina, embora sejam todas formadas pela união dos cinco elementos (9).

Todo ser organizado, que reside em uma forma corporal, possui, em um grau mais ou menos completo de desenvolvimento, as onze faculdades individuais de que falamos precedentemente, e, assim como vimos igualmente, essas faculdades são manifestadas na forma do ser por meio dos onze órgãos correspondentes (avayavas, designação que é aliás aplicada também ao estado sutil, mas apenas por analogia com o estado grosseiro). Distingue-se, segundo Shankarâchârya (10), três classes de seres organizados, segundo seu modo de reprodução: 1º) os vivíparos (jîvaja, ou yonija, ou ainda jarâyuja), como o homem e os mamíferos; 2º) os ovíparos (ândaja), como os pássaros, os répteis, os peixes e os insetos; 3º) os germiníparos (udbhijja), que compreendem tanto os animais inferiores como os vegetais, sendo os primeiros móveis e nascendo principalmente na água, enquanto que os últimos são fixos e nascem habitualmente da terra; entretanto, segundo diversas passagens do Veda, o alimento (anna), vale dizer o vegetal, (oshaddi), procede também da água, pois é a chuva (varsha) que fertiliza a terra (11).


















NOTAS


1.      No Taittirîya Upanishad, 2º Vallî, 8º Anuvâka, shruti 1, e 3º Vallî, 10º Anuvâka, shruti 5, as denominações dos diferentes envelopes são referidas diretamente ao “Si”, conforme se os considere em relação a tal ou tal estado de manifestação.
2.      Enquanto que as outras denominações (as dos quatro envelopes seguintes) podem ser vistas como caracterizando jîvâtmâ, a de ânandamaya aplica-se, não somente a Ishwara, mas também, por transposição, ao próprio Paramâtmâ ou ao Supremo Brahma, e é por isso que se diz no Taittirîya Upanishad, 2º Vallî, 5º Anuvâka, shruti 1: “Diferente daquele que consiste em conhecimento distintivo (vijnânamaya) é o outro Si interior (anyo’ntara Atmâ) que consiste em Beatitude (ânandamaya)”. – Cf. Brahma-Sûtras, 1º Adhyâya, 1º Pâda, sûtras 12-19.
3.      termo sânscrito Jnâna é idêntico ao grego Inwais por sua raiz, que é aliás também a da palavra “conhecimento” (de cognoscere), e que exprime uma idéia de “produção” ou de “geração”,  porque o ser “torna-se” aquilo que ele conhece e realiza-se por este conhecimento.
4.      É a partir deste segundo envelope que se aplica propriamente o termo sharîra, sobretudo se dermos a esta palavra, interpretada pelos métodos do Nirukta, o significado de “dependente dos seis (princípios)”, ou seja de Buddhi (ou de ahankâra que dele deriva diretamente e que é o primeiro princípio de ordem individual) e dos cinco tanmâtras (Mânava-Dharma-Shâstra, 1º Adhyâya, shloka 17).
5.      Entendemos por esta expressão algo mais, enquanto determinação, do que a consciência individual pura e simples: podemos dizer que é a resultante da união de manas com ahankâra.
6.      Podemos nos reportar aqui ao que já dissemos em nota precedente, a propósito das diferentes aplicações do termo hebraico Ruahh, que corresponde bastante exatamente ao sânscrito vâyu.
7.      A raiz an se encontra, com o mesmo significado, no grego anemos, “sopro” ou “vento”, e no latim anima, “alma”, cujo sentido próprio e primitivo é o de “sopro vital”.
8.      Cabe lembrar que o termo “expirar” significa tanto “expelir o sopro” (na respiração) quanto “morrer”(quanto à parte corporal da individualidade humana); estes dois sentidos estão em relação com udâna.
9.      Brahma-Sûtras, 2º Adhyâya, 4º Pâda, sûtras 8 a 13. – Cf. Chhândogya Upanishad, 5º Prapâthaka, Khandas 19-23; Maitri Upanishad, 2º Prapâthaka, shruti 6.
10.  Esta raiz é a mesma do latim edere, e também, embora numa forma alterada, do inglês eat e do alemão essen.
11.  Brahma-Sûtras, 2º Adhyâya, 4º Pâda, sûtra 21. – Cf. Chhândogya Upanishad, 6º Prapâthaka, 5º Khanda, shrutis 1 a 3.
12.  Comentário sobre os Brahma-Sûtras, 3º Adhyâya, 1º Pâda, sûtras 20-21. – Cf. Chhândogya Upanishad, 6º Prapâthaka, 3º Khanda, shruti 1; Aitarêya Upanishad, 5º Khanda, shruti 3.  Este último texto, além das três classes de seres vivos enumerados nos outros, menciona uma quarta, dos seres nascidos do calor úmido (swêdaja); mas esta classe pode ser relacionada com a dos germiníparos.
13.  Ver notadamente Chhândogya Upanishad, 1º Prapâthaka, 1º Khanda, shruti 2: “os vegetais são a essência (rasa) da água”; 5º Prapâthaka, 6º Khanda, shruti 2 e 7º Prapâthaka, 4º Khanda, shruti 2; anna provém ou procede de varsha. – O termo rasa significa literalmente “seiva”, e vimos acima quer significa também “gosto” ou “sabor”; de resto, em português, as palavras “seiva” e “sabor” tem a mesma raiz (sap) que é ao mesmo tempo a de “saber” (em latim sapere), em razão da analogia que existe entre a assimilação nutritiva na ordem corporal e a assimilação cognitiva nas ordens mental e intelectual. – É preciso ainda lembrar que o termo anna designa às vezes o próprio elemento terra, que é o último na ordem do desenvolvimento, e que deriva também do elemento água que o precede imediatamente. (Chhândogya Upanishad, 6º Prapâthaka, 2º Khanda, shruti 4).

X

UNIDADE E IDENTIDADE ESSENCIAIS DO “SI”

EM TODOS OS ESTADOS DO SER


Aqui é preciso insistir sobre um ponto essencial: é que todos os princípios ou elementos de que falamos, que são descritos como distintos, e que de fato são do ponto de vista individual, só o são deste ponto de vista, e não constituem senão modalidades manifestadas do “Espírito Universal” (Atmâ). Em outras palavras, embora acidentais e contingentes enquanto manifestados, eles são a expressão de algumas das possibilidades essenciais de Atmâ (aquelas que por sua natureza própria são possibilidades de manifestação); e essas possibilidades, em princípio e em sua realidade profunda, não são distintas de Atmâ. É por isso que devemos considerá-las, no Universal (e não em relação aos seres individuais), como sendo verdadeiramente Brahma, que é “sem dualidade”, e fora do qual nada existe, seja manifestado ou não-manifestado (1). De resto, aquilo além de quê há algo não pode ser infinito, por ser limitado pelo que deixa de fora; e assim o Mundo, entendendo este termo como o conjunto da manifestação universal, só se distingue de Brahma em modo ilusório, enquanto que, ao contrário, Brahma é absolutamente “distinto daquilo que Ele penetra” (2), ou seja do Mundo, pois não pode ser aplicado a Ele nenhum dos atributos determinativos que convém a este, e além disso a manifestação universal inteira é rigorosamente nula diante de Sua Infinitude. Como já observamos em outra parte, esta irreciprocidade traz em si a condenação formal do “panteísmo”, assim como de todo “imanentismo”; e ela é também claramente afirmada no Bhagavad-Gîtâ nesses termos: “Todos os seres estão em mim e eu não estou neles... Meu Ser suporta todos os seres, e, sem que ele esteja neles, é por ele que eles existem” (3). Podemos dizer ainda que Brahma é o Todo absoluto, pelo fato mesmo de ser infinito, mas que, por outro lado, se todas as coisas estão em Brahma, elas não são Brahma enquanto vistas sob o aspecto da distinção, ou seja precisamente enquanto coisas relativas e condicionadas, sendo sua existência como tais não mais que uma ilusão diante da realidade suprema; o que é dito das coisas e não poderia convir a Brahma não passa da expressão da relatividade, e ao mesmo tempo, sendo esta ilusória, também o é a própria distinção, porque um destes termos desaparece na presença do outro, pois nada pode entrar em correlação com o Infinito; é em princípio apenas que todas as coisas estão em Brahma, mas também somente ele representa sua realidade profunda; é isto que não se deve perder de vista se quisermos compreender o que virá a seguir (4).

“Nenhuma distinção (tendo por objeto modificações contingentes como a distinção do agente, da ação, e do objetivo ou do resultado desta ação) invalida a unidade e a identidade essenciais de Brahma como causa (kârana) e efeito (kârya) (5). O mar é a mesma coisa que suas águas e não difere delas (em natureza), embora as ondas, a espuma, os jorros, as gotas e outras modificações acidentais que acontecem nessas águas existam separada ou conjuntamente como diferentes umas das outras (quando consideradas em particular, seja sob o aspecto da sucessão, seja sob o da simultaneidade, mas sem que sua natureza deixe por isso de ser a mesma) (6). Um efeito não é diferente (em essência) de sua causa (embora a causa, ao contrário, seja mais que o efeito); Brahma é um (enquanto Ser) e sem dualidade (enquanto Princípio Supremo); em Si mesmo, ele não é separado (por quaisquer limitações) de Suas modificações (tanto formais como informais); ele é Atmâ (em todos os estados possíveis), e Atmâ (em si, no estado incondicionado) é Ele (e não outro que não Ele) (7). A mesma terra oferece diamantes e outros minerais preciosos, pedras de cristal, e pedras vulgares e sem valor; o mesmo solo produz uma diversidade de plantas que apresentam a maior variedade em suas folhas, suas flores e seus frutos; o mesmo alimento é convertido no organismo em sangue, em carne e em excressências variadas, tais como os cabelos e as unhas. Como o leite se transforma espontaneamente em coalho e a água em gelo (sem que essa passagem de um estado a outro implique em uma mudança de natureza), assim Brahma modifica-Se diversamente (na multiplicidade indefinida da manifestação universal), sem ajuda de instrumentos ou meios exteriores de qualquer espécie (e sem que Sua Unidade e Sua identidade sejam por isso afetadas, portanto sem que se possa dizer que Ele seja modificado em realidade, embora todas as coisas só existam efetivamente como modificações Suas) (8). Assim a aranha forma sua teia de sua própria substância, os seres sutis tomam formas diversas (não corporais), e o lótus cresce de pântano em pântano sem órgãos de locomoção. Que Brahma seja indivisível e sem partes (como Ele é), não é uma objeção (a esta concepção da multiplicidade universal em Sua unidade, ou antes em Sua “não-dualidade”); não é Sua totalidade (eternamente imutável) que é modificada nas aparências do Mundo (nem nenhuma de Suas partes, porque elas não existem, mas é Ele mesmo encarado sob o aspecto particular da distinção ou da diferenciação, ou seja como saguna ou savishêsha; e, se Ele pode ser visto assim, é porque Ele comporta em Si todas as possibilidades, sem que estas sejam partes de Si mesmo) (9). Diversas mudanças (de condições e de modos de existência) são oferecidas à mesma alma (individual) que sonha (e percebe neste estado os objetos internos, que são aqueles da manifestação sutil) (10); diversas formas ilusórias (correspondendo a diferentes modalidades da manifestação formal, além da modalidade corporal) são revestidas pelo mesmo ser sutil sem alterar em nada sua unidade (sendo uma tal forma ilusória, mâyâvirûpa, considerada como puramente acidental e não pertencente propriamente ao ser que a veste, de modo que este deve ser visto como não afetado por esta modificação aparente) (11). Brahma é todo-poderoso (pois Ele contém tudo em princípio), próprio a todo ato (ainda que “não-agente”, ou antes por isso mesmo), sem qualquer órgão ou instrumento de ação; assim nenhum motivo ou objetivo particular (tal como o de um ato individual), diverso da Sua vontade (que não se distingue de Seu todo-poder) (12), pode ser assinalado à determinação do Universo. Nenhuma diferenciação acidental lhe deve ser imputada (como a uma causa particular), pois cada ser individual modifica-se (desenvolvendo suas possibilidades) conforme sua própria natureza (13); assim a nuvem chuvosa distribui a chuva com imparcialidade (sem vistas aos resultados particulares que advirão de circunstâncias secundárias), e esta mesma chuva fecundante faz crescer  diversamente diferentes sementes, produzindo uma variedade de plantas segundo suas espécies (em razão das diferentes potencialidades respectivamente próprias a estas sementes) (14). Todo atributo de uma causa primeira está (em princípio) em Brahma, o qual (em Si mesmo) é entretanto destituído de qualquer qualidade (distinta)” (15).

“Aquilo que foi, o que é e o que será, tudo é verdadeiramente Omkâra (o Universo principialmente identificado com Brahma e, como tal, simbolizado pelo monossílabo sagrado Om); e qualquer outra coisa, que não esteja submetida ao triplo tempo (trikâla, ou seja a condição temporal vista sob suas três modalidades de passado, presente e futuro), é também verdadeiramente Omkâra. Seguramente, este Atmâ (de que todas as coisas não passam de manifestação) é Brahma, e este Atmâ (em relação aos diversos estados de ser) tem quatro condições (pâdas, termo que significa literalmente “pés”); em verdade, tudo isso é Brahma” (16).

“Tudo isso” deve entender-se, como o mostra claramente a seqüência do último texto, que daremos mais adiante, a respeito das diferentes modalidades do ser individual encarado em sua integralidade, assim como dos estados não-individuais do ser total; uns e outros são igualmente designados aqui como condições de Atmâ, embora, em si, Atmâ seja verdadeiramente incondicionado e nunca cesse de sê-lo.












NOTAS


1.      Mohiyddin ibn Arabi, em seu Tratado da Unidade (Risâlatul- Ahadiyah), diz no mesmo sentido: “Allah – seja Ele exaltado – é isento de qualquer semelhante e de qualquer rival, contraste ou oponente”. Existe aliás, também a este respeito, uma perfeita concordância entre o Vêdânta e o esoterismo islâmico.
2.      Ver o texto do tratado Conhecimento do Si (Atmâ-Bodha) de Shankarâchârya, que será citado mais adiante.
3.      Bhagavad-Gîtâ, IX, 4-5.
4.      Citaremos aqui um texto taoísta no qual as mesmas idéias são expressas: “Não pergunte se o Princípio esta nisso ou naquilo; Ele está em todos os seres. É por isso que se dá a Ele os epítetos de grande, de supremo, de inteiro, de universal, de total... Aquele que fez com que os seres fossem seres, não está Ele próprio submetido às mesmas leis que os seres. Aquele que fez com que os seres fossem limitados, é Ele mesmo ilimitado, infinito... Quanto à manifestação, o Princípio produz a sucessão de suas fases, mas não é essa sucessão (nem está implicado nesta sucessão). Ele é o autor das causas e dos efeitos (a causa primeira), mas não é as causas e os efeitos (particulares e manifestados). Ele é o autor das condensações e das dissipações (nascimentos e mortes, mudanças de estado), mas não é Ele próprio condensação ou dissipação. Tudo procede Dele, e modifica-se por e sob Sua influência. Ele está em todos os seres, por uma desinência de norma; mas ele não é idêntico aos seres, não sendo nem diferenciado, nem limitado” (Tchoang Tsé, cap. XXII; trad. P. Wieger, pgs. 395-397).
5.      É enquanto nirguna que Brahma é kârana, e enquanto saguna que ele é kârya; o primeiro é o “Supremo” ou Para-Brahma, e o segundo é o “Não-Supremo” ou Apara-Brahma (que é Ishwara); mas não resulta daí que Brahma cesse de algum modo de ser “sem dualidade” (adwaita), pois o próprio “Não-Supremo” é ilusório na medidas em que se distingue do “Supremo”, assim como o efeito não é verdadeira e essencialmente diferente da causa. Notemos que não se deve traduzir Para-Brahma e Apara-Brahma por “Brahma superior” e “Brahma inferior”, pois estas expressões supõem uma comparação ou uma correlação que não pode existir de modo algum.
6.      Esta comparação com o mar e as águas mostra que Brahma aqui é visto como a Possibilidade Universal, que é a totalidade absoluta das possibilidades particulares.
7.      É a própria fórmula da “Identidade Suprema”, sob a forma mais clara que se pode dar.
8.      Não se deve esquecer, para resolver esta aparente dificuldade, que estamos aqui além da distinção de Purusha e Prakriti, e que esses, estando já unificados no ser, estão com mais razão compreendidos ambos no Supremo Brahma, ou, se podemos nos exprimir assim, dois aspectos complementares do Princípio, que aliás só o são em relação à nossa concepção: na medida em que ele se modifica, é o aspecto análogo de Prakriti; na medida porém em que ele não se modifica, é o aspecto análogo de Purusha; e lembraremos que este último responde mais profunda e adequadamente que o outro à realidade suprema em sua imutabilidade. É por isso que Brahma é Purushottama, enquanto que Prakriti representa apenas, em relação à manifestação, sua Shakti, ou seja sua “Vontade produtiva”, que é propriamente o “todo-poder” (atividade “não-agente” quanto ao Princípio, tornando-se passividade quanto à manifestação). Convém acrescentar que, quando a concepção é assim transposta para além do ser não se trata mais de “essência” e de “substância”, mas sim de Infinito e Possibilidade, como explicaremos em outra ocasião; é também, aquilo que a tradição extremo-oriental designa como a “perfeição ativa” (Khien) e a “perfeição passiva” (Khouen), que coincidem aliás na Perfeição no sentido absoluto.
9.      Também para o esoterismo islâmico, a Unidade, considerada enquanto contendo todos os aspectos da Divindade (Asrâr rabbâniyah ou “mistérios dominicais”), é “a superfície reverberante do Princípio com inúmeras facetas que magnifica toda criatura que aí se mira diretamente”. Esta superfície, é igualmente Mâyâ vista em seu sentido mais elevado, como a Shakti de Brahma, ou seja o “todo-poder” do Princípio Supremo. – De modo semelhante ainda, na Qabbalah hebraica, Kether (a primeira das dez Sephiroth) é a “vestimenta” de Aïn-Soph (o Infinito ou o Absoluto).
10.  As modificações que se produzem no sonho fornecem uma das analogias mais claras que se pode indicar para ajudar a compreender a multiplicidade de estados do ser.
11.  Haveria uma comparação interessante a se fazer sobre este ponto, com aquilo que os teólogos cristãos, e notadamente São Tomás de Aquino, ensinam sobre as formas com que podem revestir-se os anjos; a semelhança é tanto mais marcante na medida mesma em que os pontos de vista são forçosamente muito diferentes. Lembraremos de passagem, a propósito, o que já dissemos antes, ou seja que tudo o que pode ser dito teologicamente dos anjos pode ser dito metafisicamente dos estados superiores do ser.
12.  É a sua Shakti, de que falamos nas notas precedentes, e é Ele próprio na medida em que é visto como a Possibilidade Universal; de resto, em si, a Shakti só pode ser um aspecto do Princípio, e, se a distinguimos para considerá-la “separativamente”, ela não é mais que a “Grande Ilusão” (Mahâ-Mohâ), ou seja Maya em seu sentido inferior e exclusivamente cósmico.
13.  É a própria idéia do Dharma, como “conformidade à natureza essencial dos seres”, aplicada à ordem total da Existência universal.
14.  “Ó, Princípio! Tu, que dás aos seres o que lhes convém, Tu jamais quiseste ser chamado eqüitativo. Tu, cujos benefícios se estendem a todos os tempos Tu jamais quiseste ser chamado caridoso. Tu, que estavas antes da origem, e que não quiseste ser chamado venerável; Tu, que envolves e suportas o Universo, produzindo todas as formas, ser querer ser chamado hábil; é em Ti que eu me refugio” (Tchoang Tsé, cap. VI; trad. de P. Wieger, pg. 261). – “Podemos dizer do Princípio apenas que Ele é a origem de tudo, e que Ele influencia tudo, mesmo permanecendo indiferente” (id., cap. XXII; ibid., pg. 391). – “O Princípio, indiferente, imparcial, deixa todas as coisas seguirem seu curso, sem as influenciar. Ele não pretende de modo algum (por qualquer qualificação ou atribuição). Ele não age. Não fazendo nada, nada há que Ele não faça.” (id., cap. XXV; ibid., pg.437).
15.  Brahma-Sûtras, 2ºAdhyâya, 1º Pâda, sûtras 13-37. – Cf. Bhagavad-Gîtâ, IX, 4-8: “Sou eu, desnudado de toda forma sensível, que desenvolveu todo o Universo... Imutável em minha potência produtora (a Shakti, que é aqui chamada Prakriti por estar sendo vista em relação à manifestação), eu produzo e reproduzo (em todos os ciclos) a multitude dos seres, sem fim determinado, e pela simples virtude desta potência produtiva”.
16.  Mândûkya Upanishad, shrutis 1-2.














XI

AS DIFERENTES CONDIÇÕES DE ATMÂ

NO SER HUMANO




Trataremos agora do estudo das diferentes condições do ser individual, residindo na forma viva, a qual, como já explicamos, compreende, de um lado, a forma sutil (sûkshma-sharîra ou linga-sharîra) e, de outro, a forma grosseira ou corporal (sthûla-sharîra). Quando falamos destas condições, não entendemos com isso a condição particular que, segundo já dissemos, é própria de cada indivíduo e o distingue dos demais, nem o conjunto de condições limitativas que definem cada estado de existência considerado em especial; aquilo de que se trata aqui, são exclusivamente os diversos estados, ou, se se preferir,  as diversas modalidades de que é susceptível, de um modo geral, um mesmo ser individual, qualquer que seja. Essas modalidades podem sempre, em seu conjunto, ser reportadas ao estado grosseiro e ao estado sutil, sendo o primeiro limitado apenas à modalidade corporal, e o segundo compreendendo todo o resto da individualidade (não se trata aqui de outros estados individuais, posto que é o estado humano que está sendo considerado exclusivamente). O que está além destes dois estados não pertence mais ao indivíduo como tal: estamos nos referindo ao que podemos chamar de estado “causal”, ou seja aquele que corresponde ao kârana-sharîra, e que, portanto, é de ordem universal e informal. Com este estado “causal”, de resto, se não estamos mais no domínio da existência individual, estamos ainda dentro do domínio do Ser; é preciso considerar então, para além do Ser, um quarto estado principial, absolutamente incondicionado. Metafisicamente, todos esses estados, mesmo aqueles que pertencem propriamente ao indivíduo, são reportados a Atmâ, ou seja à personalidade, porque é apenas esta que constitui a realidade profunda do ser, e porque qualquer estado deste ser seria pura ilusão se pretendêssemos separá-lo dela. Os estados do ser, quaisquer que sejam, não representam outra coisa do que possibilidades de Atmâ; é por isso que podemos falar das diversas condições em que se acha o ser como sendo verdadeiramente as condições de Atmâ, embora deva ficar entendido que Atmâ, em si, não é por isso afetado e não deixa de ser incondicionado, assim como jamais se torna manifestado, mesmo permanecendo o princípio essencial e transcendente da manifestação sob todos os seus modos.

Deixando momentaneamente de lado o quarto estado, sobre o qual voltaremos adiante, diremos que os três primeiros são: o estado de vigília, que corresponde à manifestação grosseira; o estado de sonho, que corresponde à manifestação sutil; o estado de sono profundo, que é o estado “causal” e informal. A estes três estados, acrescenta-se às vezes um outro, o da morte, e mesmo um outro ainda, o do desvanecimento extático, considerado como intermediário (sandhyâ) (1) entre o sono profundo e a morte, assim como o sonho é intermediário entre a vigília e o sono profundo (2). Entretanto, estes dois últimos estados, em geral, não são enumerados à parte, pois não são essencialmente distintos do sono profundo, estado extra-individual em realidade, como já explicamos, e no qual o ser penetra igualmente na não-manifestação, ou ao menos no estado informal, sendo que a “alma viva (jîvâtmâ) retira-se para o seio do Espírito Universal (Atmâ) pela via que conduz ao centro mesmo do ser, aonde está a morada de Brahma” (3).

Para a descrição detalhada destes estados, não temos mais que nos reportarmos ao texto do Mândûkya Upanishad, de que já citamos o início, com exceção entretanto de uma frase, a primeira de todas, que é a seguinte: “Om, esta sílaba (akshara) (4)  é tudo o que é; eis sua explicação”. O monossílabo sagrado Om, no qual se exprime a essência do Veda (5), é considerado aqui como o símbolo ideográfico de Atmâ; e, assim como esta sílaba, composta de três caracteres (mâtrâs, sendo estes caracteres a, u e m, dois quais os dois primeiros contraem-se em o) (6), possui quatro elementos, dos quais o quarto, que não é outra coisa que o próprio monossílabo encarado sinteticamente sob seu aspecto principial, é “não-expresso” por um caractere (amâtra), sendo anterior a qualquer distinção no “indissolúvel” (akshara), assim também Atmâ tem quatro condições (pâdas), das quais a quarta não é realmente uma condição em particular, mas é o próprio Atmâ visto em si mesmo, de modo absolutamente transcendente e independentemente de qualquer condição e, como tal, não é susceptível de nenhuma representação. Iremos agora expor sucessivamente o que é dito, no texto a que nos referimos, de cada uma dessas quatro condições de Atmâ, partindo do último grau da manifestação e remontando até o estado supremo, total e incondicionado.




NOTAS



1.      Este termo sandhyâ (derivado de sandhi, ponto de contato ou de junção entre duas coisas) serve também, numa acepção mais comum, para designar o crepúsculo (matinal ou vespertino), considerado como intermediário entre o dia e a noite; na teoria dos ciclos cósmicos, ele designa o intervalo entre dois Yugas.
2.      Sobre este estado, cf. Brahma-Sûtras, 3º Adhyâya, 2º Pâda, sûtra 10.
3.      Brahma-Sûtras, 3º Adhyâya, 2º Pâda, sûtras 7-8.
4.      termo akshara, em sua acepção etimológica, significa “indissolúvel” ou “indestrutível”; se a sílaba é designada por este termo, é porque é ela (e não o caractere alfabético) que é vista como constituindo a unidade primitiva e o elemento fundamental da linguagem; toda raiz verbal é, de resto, silábica. A raiz verbal é chamada em sânscrito dhâtu, palavra que significa propriamente “semente”, porque, pelas possibilidades de modificações múltiplas que ela comporta e encerra em si mesma, ela é verdadeiramente a semente cujo desenvolvimento dá origem à linguagem inteira. Podemos dizer que a raiz é o elemento fixo ou invariável da palavra, que representa sua natureza fundamental imutável, à qual vem juntar-se elementos secundários e variáveis, representando os acidentes (no sentido etimológico) ou modificações da idéia principal.
5.      Cf. Chhâdogya Upanishad, 1º Prapâthaka, 1º Khanda, e 2º Prapâthaka, 23º Khanda; Brihad-Aranyaka Upanishad, 5º Adhyâya, 1º Brâhmana, shruti 1.
6.      Em sânscrito, a vogal o é formada pela união de a e u, assim como a vogal ê é formada pela união de a e i. – Em árabe também, as três vogais a, i e u são vistas como as únicas fundamentais e verdadeiramente distintas.

XII

O ESTADO DE VIGÍLIA OU

A CONDIÇÃO DE VAISHWANARA




“A primeira condição é Vaishwânara, cujo assento (1) está no estado de vigília (jâgarita-sthâna), que tem o conhecimento dos objetos externos (sensíveis), que tem sete membros e dezenove bocas, e cujo domínio é o mundo da manifestação grosseira”(2).

Vaishwânara é, segundo sua derivação etimológica (3), aquilo que chamamos “Homem Universal”, mas visto mais particularmente no desenvolvimento completo de seus estados de manifestação, e sob o aspecto específico deste desenvolvimento. Aqui, a extensão desse termo parece mesmo restringir-se a um destes estados, o mais exterior de todos, o da manifestação grosseira que constitui o mundo corporal; mas este estado particular pode ser tomado como símbolo de todo o conjunto da manifestação universal, de que ele é um dos elementos, e isto porque ele é, para o estado humano, a base e o ponto de partida obrigatório para qualquer realização; será suficiente então, como em todo simbolismo, efetuar as transposições convenientes segundo os graus aos quais a concepção deverá aplicar-se. É neste sentido que o estado de que se trata pode ser relacionado ao “Homem Universal” e descrito como constituindo seu corpo, concebido por analogia com o do homem individual, analogia que é, como já dissemos, a do “macrocosmo” (adhidêvaka) e do “microcosmo”(adhyâtmika). Sob este aspecto, Vaishawânara identifica-se também a Virâj, ou seja a Inteligência cósmica na medida em que esta rege e unifica na sua integralidade o conjunto do mundo corporal. Enfim, de um outro ponto de vista, que aliás corrobora o precedente, Vaishwânara significa ainda “o que é comum a todos os homens”; trata-se então da espécie humana, entendida como natureza específica, ou mais precisamente aquilo que se pode chamar de “gênio da espécie” (4); e, por outro lado, convém lembrar que o estado corporal é efetivamente comum a todas as individualidades humanas, quaisquer que sejam as outras modalidades nas quais elas possam desenvolver-se para realizar, enquanto individualidades e sem sair do grau humano, a extensão integral de suas possibilidades respectivas (5).

Pelo que foi dito, podemos compreender como se deve entender os sete membros de que se fala no texto do Mândûkya Upanishad, e que são as sete partes principais do corpo “macrocósmico” de Vaishwânara: 1o) o conjunto das esferas luminosas superiores, vale dizer os estados superiores do ser, mas vistos aqui unicamente em suas relações com o estado de que se trata particularmente, é comparado à parte da cabeça que contém o cérebro, o qual, de fato, corresponde organicamente à função “mental” que não é mais do que o reflexo da Luz inteligível ou dos princípios supra-individuais; 2o) o Sol e a Lua, ou mais exatamente os princípios representados no mundo sensível pelos dois astros (6), são os dois olhos; 3o) o princípio ígneo é a boca (7); 4o) as direções do espaço (dish) são as orelhas (8); 5o) a atmosfera, ou seja o meio cósmico de onde procede o “sopro vital” (prâna), corresponde aos pulmões; 6o) a região intermediária (Antariksha) que se estende entre a Terra (Bhû ou Bhûmi) e as esferas luminosas ou os Céus (Swar ou Swarga), região considerada como o meio onde se elaboram as formas (ainda potenciais em relação ao estado grosseiro), corresponde ao estômago (9); 7o) enfim, a Terra, vale dizer, no sentido simbólico, o resultado em ato de toda a manifestação corporal, corresponde aos pés, que são aqui vistos como o emblema de toda a parte inferior do corpo. A relação destes diversos membros entre si e suas funções dentro do conjunto cósmico a que pertencem são análogas (mas não idênticas) àquelas das partes correspondentes do organismo humano. Lembramos que não se fala aqui do coração, porque sua relação direta com a Inteligência universal coloca-o fora do domínio das funções propriamente individuais, e porque esta “morada de Brahma” é verdadeiramente o ponto central, tanto na ordem cósmica como na ordem humana, enquanto que tudo o que pertence à manifestação, e sobretudo à manifestação formal, é exterior e “periférico”, se podemos nos exprimir assim, pertencendo exclusivamente à circunferência da “roda das coisas”.

Na condição que tratamos aqui, Atmâ, enquanto Vaishwânara, toma consciência do mundo da manifestação sensível (considerada também como o domínio deste aspecto do “Não-Supremo Brahma” que é chamado Virâj) através de dezenove órgãos, que são designados como bocas, porque são as “entradas” do conhecimento de tudo o que se relaciona a este domínio em particular; e a  assimilação intelectual que se opera pelo conhecimento é muitas vezes comparada simbolicamente à assimilação vital que se efetua pela nutrição. Estes dezenove órgãos (incluindo neste termo as faculdades correspondentes, conforme o que dissemos do significado geral do termo indriya) são: os cinco órgãos de sensação, os cinco órgãos de ação, os cinco sopros vitais (vâyus), o “mental” ou sentido interno (manas), o intelecto (Buddhi, considerado aqui exclusivamente em suas relações com o estado individual), o pensamento (chitta), concebido como a faculdade que dá forma às idéias e as associa entre si, e enfim a consciência individual (ahankâra); estas faculdades são as que estudamos em detalhe precedentemente. Cada órgão e cada faculdade de todo ser individual compreendido dentro do domínio considerado, ou seja dentro do mundo corporal, procedem respectivamente do órgão e da faculdade correspondentes em Vaishwânara, de que eles formam de certa forma um dos elementos constituintes, do mesmo modo como o indivíduo a quem pertencem é um elemento do conjunto cósmico, dentro do qual, por seu turno e no lugar que lhe convém (pelo fato de ser este indivíduo e não outro), ele concorre necessariamente à constituição da harmonia total (10).

O estado de vigília, no qual se exerce a atividade dos órgãos e das faculdades que tratamos, é considerado como a primeira das condições de Atmâ, embora a modalidade grosseira ou corporal à qual ele corresponde seja o último grau na ordem de desenvolvimento (prapancha) do manifestado a partir de seu princípio primordial e não-manifestado, marcando o fim deste desenvolvimento, ao menos em relação ao estado de existência dentro do qual se situa a individualidade humana. A razão desta anomalia aparente já foi indicada: é nesta modalidade corporal que se acha para nós a base e o ponto de partida da realização individual primeiramente (ou seja da extensão integral tornada efetiva para a individualidade), e em seguida de qualquer outra realização que ultrapasse as possibilidades do indivíduo e que implique numa tomada de posse dos estados superiores do ser. Portanto, se nos colocamos, como fazemos aqui, não do ponto de vista do desenvolvimento da manifestação, mas do ponto de vista e na ordem desta realização com seus diversos graus, ordem que ao contrário vai necessariamente do manifestado para o não-manifestado, este estado de vigília deve ser visto como precedendo de fato os estados de sonho e sono profundo, que correspondem, um às modalidades extra-corporais da individualidade, e o outro aos estados supra-individuais do ser.






















NOTAS


1.      É evidente que esta expressão e todas as que lhe são similares, como morada, residência, etc., devem sempre ser entendidas aqui simbolicamente e não literalmente, ou seja como designando, não um lugar qualquer, mas uma modalidade de existência. O uso do simbolismo espacial é aliás muito comum, o que se explica pela própria natureza das condições às quais está submetida a individualidade corporal, em relação à qual deve efetuar-se, na medida do possível, a tradução das verdades que concernem aos outros estados do ser. – O termo sthâna tem seu equivalente exato na palavra
“estado”, status, pois a raiz sthâ se encontra, com os mesmos significados que em sânscrito, no latim stare e seus derivados.
2.      Mândûkya Upanishad, shruti 3.
3.      Sobre esta derivação, ver o comentário de Shankarâchârya sobre os Brahma-Sûtras, 1º Adhyâya, 2º Pâda, sûtra 28: é Atmâ que é ao mesmo tempo “tudo” (vishwa), enquanto personalidade, e “homem” (nara), enquanto individualidade (ou seja como jîvâtmâ). Vaishwânara é assim uma denominação que convém propriamente a Atmâ; por outro lado, é também um nome de Agni, como o veremos mais adiante (cf. Shatapata Brâhmana).
4.      Sob este aspecto, nara ou nri é o homem enquanto indivíduo pertencente à espécie humana, enquanto que mânava é mais exatamente o homem como ser pensante, ou seja o homem dotado do “mental”, o que aliás é o atributo essencial inerente à sua espécie e pelo qual caracteriza-se a sua natureza. Por outro lado, o nome de Nara é também susceptível de uma transposição analógica, pela qual ele se identifica a Purusha; e é assim que Vishnu é às vezes chamado Narottama ou “Homem Supremo”, designação na qual não se deve ver o menor antropomorfismo, assim como no conceito do “Homem Universal” sob todos os seus aspectos, e isto precisamente em razão desta transposição. Não podemos desenvolver aqui os sentidos múltiplos e complexos implicados na palavra nara; e, no que toca à natureza da espécie, seria preciso um estudo específico para expor as considerações a que ela dá lugar.
5.      Conviria ainda estabelecer algumas aproximações com a concepção da natureza “adâmica” nas tradições hebraica e islâmica, a qual também aplica-se em graus diferentes e em sentidos hierarquicamente superpostos; mas isto nos afastaria demasiado do nosso objeto.
6.      Podemos lembrar aqui dos significados simbólicos que tem, no Ocidente, o Sol e a Lua na tradição hermética e nas teorias cosmológicas que os alquimistas basearam nela; num caso como em outro, a designação desses astros não deve ser tomada literalmente. Devemos lembrar que este simbolismo é diferente daquele a que aludimos antes, e no qual o Sol e a Lua correspondiam respectivamente ao coração e ao cérebro; seriam precisos ainda longos desenvolvimentos para mostrar como estes diversos pontos de vista se reconciliam e harmonizam no conjunto das concordâncias cósmicas.
7.      Já notamos que Vaishwânara é às vezes um nome de Agni, considerado então como calor animador, portanto na medida em que reside nos seres vivos; voltaremos a isto mais adiante. Por outro lado, mukhya-prâna é ao mesmo tempo o sopro da boca (mukha) e o ato vital principal (é no segundo sentido que os cinco vâyus são modalidades suas); e o calor é intimamente ligado à própria vida.
8.      Pode-se notar a relação clara que isto apresenta com o papel fisiológico dos canais semi-circulares.
9.      Num certo sentido, o termo Antariksha compreende também a atmosfera, considerada então como meio de propagação da luz; cabe lembrar, de resto, que o agente dessa propagação não é o ar (Vâyu), mas o Éter (Akâsha). Quando transpomos os termos para torná-los aplicáveis a todo o conjunto dos estados da manifestação universal, na consideração do Tribhuvana, Antariksha identifica-se a Bhuvas, que se designa normalmente como a atmosfera, mas tomando este termo numa acepção bem mais extensa e menos determinada do que precedentemente. – Os nomes dos três mundos, Bhû, Bhuvas e Svar, são as três vyâhritis, palavras que são pronunciadas habitualmente antes do monossílabo Om nos ritos hindus da sandhyâ-upâsanâ (meditação que se repete pela manhã, ao meio-dia e à tardinha). Lembraremos que as duas primeiras palavras tem a mesma raiz, porque elas se referem a modalidades de um mesmo estado de existência, o da individualidade humana, enquanto que a terceira representa, nesta divisão, o conjunto dos estados superiores.
10.  Esta harmonia é ainda um aspecto do Dharma; ela é o equilíbrio no qual são compensados todos os desequilíbrios, a ordem que é feita da soma de todas as desordens parciais e aparentes.



















XIII

O ESTADO DE SONHO OU

 A CONDIÇÃO DE TAIJASA




“A segunda condição é Taijasa,(o “Luminoso”, nome derivado de Têjas, que é a designação do elemento ígneo) cujo assento está no estado de sonho (swapna-sthâna), que tem o conhecimento dos objetos internos (mentais), que tem sete membros e dezenove bocas, e cujo domínio é o mundo da manifestação sutil”(1).

Neste estado, as faculdades externas, mesmo subsistindo potencialmente, são reabsorvidas pelo sentido interno (manas), que é sua fonte comum, seu suporte e seu fim imediato, e que reside nas artérias luminosas (nâdîs) da forma sutil, onde se distribui de modo indiviso, à maneira de um calor difuso. De resto, o próprio elemento ígneo, considerado em suas propriedades essenciais, é a um tempo luz e calor; e, como o indica o nome Taijasa aplicado ao estado sutil, estes dois aspectos, convenientemente transpostos (pois não se trata mais de qualidades sensíveis) devem encontrar-se igualmente neste estado. Tudo o que se refere a este, como já observamos em outras ocasiões, diz respeito à própria natureza da vida, que é inseparável do calor; e lembraremos que, sobre este ponto como sobre outros, as concepções de Aristóteles concordam plenamente com as dos Orientais. Quanto à luminosidade que mencionamos, devemos entender com isto a reflexão e a difração da Luz inteligível nas modalidades extra-sensíveis da manifestação formal (da qual só consideramos aqui aquilo que concerne o estado humano). Por outro lado, a própria forma sutil (sûkshma-sharîra ou linga-sharîra), na qual reside Taijasa, é também assimilada a um veículo ígneo (2), embora distinto do fogo corporal  (o elemento Têjas ou o que procede dele) que é percebido pelos sentidos da forma grosseira (sthûla-sharîra), veículo de Vaishwânara, e mais particularmente pela visão, pois a visibilidade, que supõe necessariamente a presença da luz, é, dentre as qualidades sensíveis, a que pertence propriamente a Têjas; mas, no estado sutil, não se trata mais dos bhûtas, mas somente dos tanmâtras correspondentes, que são seus princípios determinantes imediatos. Quanto às nâdîs ou artérias da forma sutil,  elas não devem ser confundidas com as artérias corporais pelas quais se efetua a circulação sangüínea, correspondendo fisiologicamente mais às ramificações do sistema nervoso, pois elas são expressamente descritas como luminosas; ora, como o fogo é de certo modo polarizado em calor e luz, o estado sutil é ligado ao estado corporal de dois modos diferentes e complementares, pelo sangue quanto à qualidade calórica, e pelo sistema nervoso quanto à qualidade luminosa (3). Entretanto, deve ficar entendido que, entre as nâdîs e os nervos, existe apenas simples correspondência, pois as primeiras não são corpóreas, tratando-se em realidade de dois domínio diferentes dentro da individualidade integral. Da mesma forma, quando estabelecemos uma relação entre as funções destas nâdîs e a respiração (4), porque esta é essencial à manutenção da vida e corresponde verdadeiramente ao ato vital principal, não se deve concluir daí por representá-las como espécies de canais por onde circularia o ar; isto eqüivaleria a confundir com um elemento corporal o “sopro vital” (prâna), que pertence propriamente à ordem da manifestação sutil (5). Diz-se que o número total de nâdîs é de setenta e duas mil; segundo outros textos, porém, este número seria de setecentos e vinte milhões; mas a diferença aqui é mais aparente do que real, pois, assim como ocorre muitas vezes em casos semelhantes, esses números devem ser tomados simbolicamente e não de modo literal; e é fácil perceber que eles estão em relação evidente com os números cíclicos (6). Teremos ainda ocasião de fornecer outros desenvolvimentos sobre esta questão das artérias sutis, assim como sobre o processo dos diversos graus de reabsorção das faculdades individuais, reabsorção que, como dissemos, se efetua no sentido inverso do desenvolvimento dessas mesmas faculdades.

No estado de sonho,  a “alma viva” individual (jîvâtmâ) “é para si mesma sua própria luz”, e ela produz, pelo efeito de seu puro desejo (kâma), um mundo que procede inteiramente de si mesma, e cujos objetos consistem exclusivamente em concepções mentais, vale dizer em combinações de idéias revestidas de formas sutis, que dependem substancialmente da forma sutil do próprio indivíduo, de quem esses objetos ideais não passam de modificações acidentais e secundárias (7). Esta produção, de resto, possui sempre algo de incompleto  e descoordenado; é por isso que ela é vista como ilusória (mâyâmaya) ou como só possuindo uma existência aparente (prâtibhâsika), enquanto que, no mundo sensível aonde ela se situa no estado de vigília, a mesma “alma viva” tem a faculdade de agir no sentido de uma produção “prática” (vyâvahârika), ilusória também em relação à realidade absoluta (paramârtha), e transitória como toda manifestação, mas que possui não obstante uma realidade relativa e uma estabilidade suficientes para servir às necessidades da via ordinária e “profana” (laukika, termo derivado de loka, “mundo”, que deve ser entendido aqui num sentido comparável ao que é usado habitualmente no Evangelho). Entretanto, convém frisar que essa diferença, no que tange à orientação respectiva da atividade do ser nos dois estados, não implica numa superioridade efetiva do estado de vigília sobre o estado de sonho quando cada estado é considerado em si mesmo; no mínimo, uma superioridade que só vale do ponto de vista “profano” não pode, metafisicamente, ser considerada como uma verdadeira superioridade; e mesmo, sob outro aspecto, as possibilidades do estado de sonho são mais amplas do que as do estado de vigília, e elas permitem ao indivíduo escapar, numa certa medida, a algumas das condições limitativas às quais ele está submetido em sua modalidade corporal (8). Seja como for, aquilo que é absolutamente real (pâramârthika), é o “Si” (Atmâ) exclusivamente; é o que não pode alcançar qualquer concepção que, sob qualquer forma, se limite à consideração dos objetos externos e internos, cujo conhecimento constitui respectivamente os estados de vigília e de sonho, e que assim, por não ir além desses dois estados, permanece inteiramente dentro dos limites da manifestação formal e da individualidade humana.

O domínio da manifestação sutil pode, em razão de sua natureza “mental”, ser designado como uma mundo ideal, a fim de distingui-lo do mundo sensível, que é o domínio da manifestação grosseira; mas não se deve entender esta designação no sentido do “mundo inteligível” de Platão, pois as “idéias” deste são as possibilidades em estado principial, que devem ser relacionadas ao domínio informal; no estado sutil, só se pode falar de idéias revestidas de formas, pois as possibilidades que ele comporta não ultrapassam a existência individual (9). Sobretudo, não se deve procurar aqui uma oposição como a que certos filósofos modernos gostam de estabelecer entre o “ideal” e o “real”, oposição que, para nós, não tem nenhum significado: tudo o que é, sob qualquer forma que seja, é por isso mesmo real, e possui precisamente o grau de realidade que convém à sua própria natureza; aquilo que consiste em idéias (este é o sentido que damos ao termo “ideal”) não é por isso nem mais nem menos real do que o que consiste em outra coisa, pois toda possibilidade encontra necessariamente lugar na posição que lhe é assinalada hierarquicamente no Universo por sua própria determinação.

Na ordem da manifestação universal, assim como o mundo sensível, em seu conjunto, é idêntico a Virâj, este mundo ideal de que falamos é identificado a Hiranyagarbha (ou seja literalmente o “Embrião de Ouro”) (10), que é Brahma (determinação de Brahma como efeito, kârya) (11), envolvendo-se dentro do “Ovo do Mundo)  (Brahmânda) (12), a partir do qual irá se desenvolver, segundo seu modo de realização, toda a manifestação formal que aí está virtualmente contida como concepção deste Hiranyagarbha, germe primordial da Luz cósmica (13). Por outro lado, Hiranyagarbha é designado como “conjunto sintético da vida”(jîva-ghana) (14); de fato, ele é verdadeiramente a “Vida Universal” (15), em razão desta conexão já assinalada do estado sutil com a vida, a qual, mesmo vista em toda a extensão de que é susceptível (e não limitada à vida orgânica ou corporal a que se limita o ponto de vista fisiológico) (16), não é mais do que uma das condições particulares de existência a que pertence a individualidade humana; o domínio da vida não ultrapassa portanto as possibilidades que comporta este estado, o qual, bem entendido, deve ser tomado aqui integralmente, e do qual fazem parte as modalidades sutis tanto quanto a modalidade grosseira.

Quer nos coloquemos do ponto de vista “macrocósmico”, como fizemos por último, quer do ponto de vista “microcósmico”, como vimos no início, o mundo ideal de que se trata é concebido por faculdades que correspondem analogamente àquelas pelas quais é percebido o mundo sensível, ou, se se preferir, que são as mesmas faculdades em princípio (porque são sempre faculdades individuais), mas consideradas num outro grau de desenvolvimento, dado que sua atividade se exerce em um domínio diferente. É por isso que Atmâ, nesse estado de sonho, ou seja enquanto Taijasa, tem o mesmo número de membros e de bocas (ou instrumentos de conhecimento) que no estado de vigília, enquanto Vaishwânara (15); não é preciso repetir sua enumeração, pois as definições que demos antes podem aplicar-se igualmente, por uma transposição adequada, aos dois domínios da manifestação grosseira ou sensível e da manifestação sutil ou ideal.













NOTAS


1.      Mândûkya Upanishad, shruti 4. – O estado sutil é chamado neste texto de pravivikta, literalmente “pré-distinguido”, porque é um estado de distinção que precede a manifestação grosseira; este termo significa também “separado”, porque a “alma viva”, no estado de sonho, está de certo modo fechada em si mesma, contrariamente ao que acontece no estado de vigília, “comum a todos os homens”.
2.      Já mencionamos em outra parte, a propósito, o “carro de fogo” no qual o Profeta Elias sobe aos céus (Segundo Livro dos Reis, II, 11).
3.      Já indicamos, a propósito da constituição de annamaya-kosha, que é o organismo corporal, que os elementos do sistema nervoso provém da assimilação das substâncias ígneas. Quanto ao sangue, por ser líquido, é formado das substâncias aquosas, mas é preciso que estas tenham sofrido uma elaboração devida à ação do calor vital, que é a manifestação de Agni Vaishwânara, e elas desempenham apenas o papel de suporte plástico que serve à fixação de um elemento de natureza ígnea: o fogo e a água são aqui, um em relação ao outro, “essência” e “substância” num sentido relativo. Isto poderia facilmente ser relacionado com algumas teorias alquímicas, como aquelas onde intervém a consideração dos princípios chamados “enxofre” e “mercúrio”, um ativo e outro passivo, e respectivamente análogos, na ordem dos “mistos”, ao fogo e a água na ordem dos elementos, sem falar de outras designações múltiplas que são ainda dadas simbolicamente, na linguagem hermética, aos dois termos correlativos de tal dualidade.
4.      Fazemos particularmente alusão aqui aos ensinamentos que se ligam ao Hatha-Yoga, ou seja aos métodos preparatórios para a “União” (Yoga no sentido próprio da palavra) e baseados sobre a assimilação de certos ritmos, principalmente ligados à respiração. O que é chamado dhikr nas escolas esotéricas árabes tem exatamente a mesma razão de ser, e muitas vezes os procedimentos utilizados são similares nas duas tradições, o que, aliás, não é para nós indício algum de empréstimo; a ciência do ritmo, de fato, pode ser concebida de parte e de outra de modo completamente independente, pois trata-se de uma ciência que tem seu objeto próprio e que corresponde a uma ordem de realidade claramente definida, embora inteiramente ignorada pelos Ocidentais.
5.      Essa confusão foi cometida por alguns orientalistas, cuja incompreensão é incapaz de ultrapassar os limites do mundo corporal.
6.      Os números cíclicos fundamentais são: 72 = 23 x 32; 108 = 23 x 33; 432 = 24 x 33 = 72 x 6 = 108 x 4; eles se aplicam notadamente à divisão geométrica do círculo (360 = 72 x 5 = 12 x 30) e à duração do período astronômico da precessão dos equinócios (72 x 360 = 432 x 60 = 25.920 anos); mas trata-se aí de suas aplicações mais imediatas e elementares, e não podemos entrar aqui em considerações propriamente simbólicas a que podemos chegar pela transposição destes dados a ordens diferentes.
7.      Cf. Brihad-Aranyaka Upanishad, 4º Adhyâya, 3º Brâhmana, shrutis 9-10.
8.      Sobre o estado de sonho, cf. Brahma-Sutras, 3º Adhyâya, 2º Pâda, sûtras 1-6.
9.      estado sutil é propriamente o domínio da yuch, e não da nous; esta corresponde em realidade à Buddhi, ou seja ao intelecto supra-individual.
10.  Esse nome tem um sentido próximo do de Taijasa, pois o ouro, segundo a doutrina hindu, é a “luz mineral”; os alquimistas viam-no também como correspondendo analogamente, entre os metais, ao sol entre os planetas; e é ao menos curioso notar que o próprio nome do ouro (aurum) é idêntico ao hebreu aôr, que significa “luz”.
11.  É preciso frisar que Brahmâ é uma forma masculina, enquanto que Brahma é neutro; esta distinção, indispensável e da maior importância (pois é a distinção entre o “Supremo” e o “Não-Supremo”), não aparece com o emprego, comum entre os orientalistas, da forma única Brahman, que pertence igualmente aos dois gêneros, acarretando inúmeras confusões, principalmente em línguas (como o francês) em que o gênero neutro não existe.
12.  Este símbolo cosmogônico do “Ovo do Mundo” não é exclusivo da Índia; ele se encontra notadamente no Mazdeísmo, na tradição egípcia (o Ovo de Kneph), na dos Druidas e na dos Órficos. – A condição embrionária, que corresponde para cada ser individual àquilo que representa o Brahmânda na ordem cósmica, é chamada em sânscrito pinda; e a analogia constitutiva do ‘microcosmo” e do “macrocosmo”, considerados sob este aspecto, é expressa por esta fórmula: Yathâ pinda tathâ Brahmânda, “tal como o embrião individual, assim também o Ovo do Mundo”.
13.  É por isso que Virâj procede de Hiranyagarbha, e Manu, por sua vez, procede de Virâj.
14.  termo ghana significa primitivamente nuvem, e daí uma massa compacta e indiferenciada.
15.  “E a Vida era a Luz dos homens” (João, I, 4).
16.  Fazemos particularmente alusão à extensão da idéia de vida que surge do ponto de vista das religiões ocidentais, e que se refere efetivamente a possibilidades situadas num prolongamento da individualidade humana; é, como já explicamos, aquilo que a tradição extremo-oriental designa pelo nome de “longevidade”.
17.  Estas faculdades devem ser vistas aqui  como repartindo-se nos três “envelopes” cuja reunião constitui a forma sutil (vijnânamaya-kosha, manomaya-kosha e prânamaya-kosha).








XIV

O ESTADO DE SONO PROFUNDO OU

 A CONDIÇÃO DE PRAJNA




“Quando o ser que dorme não experimenta nenhum desejo e não está sujeito a nenhum sonho, seu estado é o do sono profundo (sushupta-sthâna); aquele (ou seja o próprio Atmâ nesta condição) que neste estado tornou-se um (sem nenhuma distinção ou diferenciação) (1), que identificou-se com um conjunto sintético (único e sem determinação particular) de Conhecimento integral (Prajnâna-ghana) (2), que está cheio (por penetração e assimilação íntimas) de Beatitude (ânandamaya), gozando verdadeiramente desta Beatitude (Ananda, como de seu domínio próprio), e cuja boca (o instrumento de conhecimento) é (unicamente) a própria Consciência total (Chit), ele é chamado Prâjna (aquele que conhece fora e para além de toda condição particular): esta é a terceira condição” (3).

Como podemos observar imediatamente, o veículo de Atmâ neste estado é kârana-sharîra, porque ele é ânandamaya-kosha; e, embora se fale analogamente como sendo um veículo ou um envelope, não há nada aí que seja verdadeiramente distinto do próprio Atmâ, porque estamos aqui além de todas as distinções. A Beatitude é formada de todas as possibilidades de Atmâ, podemos dizer, a própria soma dessas possibilidades; e, se Atmâ, enquanto Prajnâ, goza desta Beatitude como de seu domínio próprio, é porque ela não é outra coisa do que a plenitude do seu ser, como já indicamos precedentemente. Trata-se de um estado essencialmente informal e supra-individual; jamais poderia tratar-se de um estado “psíquico” ou “psicológico”, como o creram alguns orientalistas. O que é propriamente “psíquico”, de fato, é o estado sutil; e, ao fazermos esta assimilação, tomamos aqui o termo “psíquico” no seu sentido primitivo, aquele que ele tinha para os antigos, sem nos preocuparmos com as diversas acepções mais especializadas que lhes foram aplicadas depois, e com as quais ele não poderia aplicar-se à totalidade do estado sutil. Quanto à psicologia dos Ocidentais modernos, ela só concerne a uma parte bastante restrita da individualidade humana, aquela em que o “mental” se acha em relação imediata com a modalidade corporal, e, devido aos métodos de que se utiliza, ela é incapaz de ir mais longe; em todo caso, o próprio objeto que ela se propõe, e que é exclusivamente o estudo dos fenômenos mentais,, limita-a estritamente ao domínio da individualidade, de sorte que o estado que tratamos daqui em diante escapa necessariamente às suas investigações, e podemos dizer que lhe é duplamente inacessível, primeiro porque está além do “mental” ou do pensamento discursivo e diferenciado, e segundo porque está além de qualquer “fenômeno”, ou seja de qualquer manifestação formal.

Este estado de indiferenciação, no qual todo conhecimento, incluindo aquele dos outros estados, está centralizado sinteticamente na unidade essencial e fundamental do ser, é o estado não-manifestado ou “não-desenvolvido” (avyakta), princípio e causa (kârana) de toda manifestação, e a partir do qual esta se desenvolve na multiplicidade de seus diversos estados e, mais particularmente no que concerne ao ser humano, nos seus estados sutil e grosseiro. Este não-manifestado, concebido como raiz do manifestado (vyakta) que é seu efeito (kârya), é identificado sob este aspecto a Mûla-Prakriti, a “Natureza primordial”; mas, na realidade, ele é ao mesmo tempo Purusha e Prakriti, contendo-os em sua própria indiferenciação, pois ele é causa no sentido total do termo, ou seja a um só tempo como “causa eficiente” e como “causa material”, para nos servirmos da terminologia corrente, embora preferíssemos as expressões de “causa essencial” e “causa substancial’, pois é à “essência” e à “substância”,  definidas como fizemos precedentemente, que se referem respectivamente estes dois aspectos complementares da causalidade. Se Atmâ, neste terceiro estado, está assim além da distinção de Purusha e de Prakriti, ou dos dois pólos da manifestação, é porque ele está, não mais na existência condicionada, mas no grau do Ser puro; entretanto, devemos por outro lado compreender aí Purusha e Prakriti, que são ainda não-manifestados, e num certo sentido, os estados informais da manifestação, que já tivemos antes que ligar ao Universal, porque são verdadeiramente estados supra-individuais do ser; e, de resto, todos os estados manifestados estão contidos, em princípio e sinteticamente, no Ser não-manifestado.

Neste estado, os diferentes objetos da manifestação, mesmo os da manifestação individual, tanto externos quanto internos, não são exatamente destruídos, mas subsistem em modo principial, unificados pelo fato mesmo de não serem concebidos sob o aspecto secundário e contingente da distinção; eles se encontram necessariamente dentre as possibilidades do “Si”, e este permanece consciente por si mesmo de todas as suas possibilidades, encaradas “não-distintivamente” no Conhecimento integral, uma vez que ele é consciente de sua própria permanência no “eterno presente” (4). Se não fosse assim, e se os objetos da manifestação não subsistissem assim principialmente (suposição impossível em si mesma, pois estes objetos não seriam senão um puro nada, que não poderia existir de modo algum, nem mesmo em modo ilusório), não poderia haver nenhum retorno do estado de sono profundo para os estados de sonho e vigília, pois toda manifestação formal seria irremediavelmente destruída para o ser assim que ele entrasse em sono profundo; ora, um tal retorno é sempre possível, ao contrário, e produz-se efetivamente, ao menos para o ser que não está atualmente “liberto”, ou seja livre definitivamente das condições da existência individual.

O termo Chit deve ser entendido, não como o era precedentemente seu derivado chitta, no sentido restrito do pensamento individual e formal (sendo esta determinação restritiva, que implica numa modificação por reflexo, marcada neste pelo sufixo kta, que é a terminação do particípio passivo), mas sim no sentido universal, como a Consciência total do “Si” vista em sua relação com seu único objeto, que é Ananda ou a Beatitude (5). Este objeto, que constitui agora de certo modo o envelope do “Si” (ânandamaya-kosha), como já explicamos, é idêntico ao próprio sujeito, que é Sat ou o Ser puro, e não é verdadeiramente distinto dele, porque de fato não existe aí mais nenhuma distinção real (6). Assim esses três, Sat, Chit e Ananda (geralmente reunidos em Sachchidânanda) (7), não são senão um só e mesmo ser, e este “um” é Atmâ, considerado fora e para além de todas as condições particulares que determinam cada um de seus diversos estados de manifestação.

Neste estado, que é às vezes designado pelo nome de samprasâda ou “serenidade” (8), a luz inteligível é captada diretamente, o que constitui a intuição intelectual, e não mais por reflexo através do “mental” (manas) como nos estados individuais. Nós aplicamos antes essa expressão de “intuição intelectual” à Buddhi, faculdade de conhecimento supra-racional e supra-individual, embora já manifestada; sob este aspecto, é preciso então incluir de algum modo Buddhi no estado de Prâjna, que compreenderá assim tudo o que está além da existência individual. Teremos agora a considerar no ser um novo ternário, constituído por Purusha, Prakriti e Buddhi, ou seja pelos dois pólos da manifestação, “essência” e “substância”, e pela primeira produção de Prakriti sob a influência de Purusha, produção que é a manifestação informal. É preciso acrescentar, de resto, que este ternário só representa o que podemos chamar de “exterioridade” do Ser, e que assim ele não coincide absolutamente com o outro ternário principial que vimos, que se refere verdadeiramente à sua  “interioridade”, sendo antes como que uma primeira particularização sua em modo distintivo (9); é claro que, falando assim de “exterior” e “interior”, estamos empregando uma linguagem puramente analógica, baseada no simbolismo espacial, e que não poderia ser aplicada literalmente ao Ser puro. Por outro lado, o ternário Sachchidânanda, que é coextensivo ao Ser, traduz-se ainda, na ordem da manifestação informal, por aquele que distinguimos em Buddhi, do qual já falamos: o Matsya-Purâna, que citamos então, declara que “no Universal, Mahat (ou Buddhi) é Ishwara”; e Prâjna é também Ishwara, ao qual pertence propriamente o kâranasharîra. Podemos dizer ainda que a Trimûrti ou “tripla manifestação” é somente a “exterioridade” de Ishwara; em si, este é independente de qualquer manifestação, de que ele é o princípio, por ser o próprio Ser; e tudo o que é dito de Ishwara, tanto em si quanto em relação à manifestação, pode igualmente ser dito de Prâjna que se identifica com ele. Assim, fora do ponto de vista particular da manifestação e dos diversos estados condicionados que dependem dele nesta manifestação, o intelecto não é diferente de Atmâ, pois este deve ser considerado como “conhecendo a si mesmo por si mesmo”, pois não há aí mais nenhuma realidade que seja verdadeiramente distinta dele, pois tudo está compreendido nas suas próprias possibilidades; e é neste “Conhecimento de Si” que reside propriamente a Beatitude.

“Este (Prâjna) é o Senhor (Ishwara) de tudo (sarva, palavra que aqui implica, em sua extensão universal, o conjunto dos “três mundos”, ou seja de todos os estados de manifestação contidos sinteticamente em seu princípio); Ele é onisciente (pois tudo está presente a Ele no Conhecimento integral, e Ele conhece todos os efeitos na causa principial integral, a qual não é distinta Dele) (10); Ele é o ordenador interno (antar-yâmî, que, residindo no próprio centro do ser, rege e controla todas as faculdades que correspondem aos seus diversos estados, permanecendo Ele mesmo porém como “não-agente” na plenitude de sua atividade principial) (11); Ele é a fonte (yoni, matriz ou raiz primordial, ao mesmo tempo que princípio ou causa primeira) de tudo (tudo o que existe sob qualquer modo que seja); Ele é a origem (prabhava, por Sua expansão na multitude indefinida de Suas possibilidades) e o fim (apyaya, por Seu recolhimento na unidade de Si mesmo) (12) da universalidade dos seres (sendo Ele mesmo o Ser Universal) (13).



NOTAS


1.      “Tudo é um, diz igualmente o Taoísmo; durante o sono, a alma não distraída se reabsorve nessa unidade; durante a vigília, distraída, ela distingue os diversos seres” (Tchouang Tsé, cap. II; trad. P. Wieger, pg. 215).
2.      “Concentrar toda sua energia intelectual como  em uma massa”, diz também, no mesmo sentido, a doutrina taoísta (Tchouang Tsé, cap. II; trad. P. Wieger, pg. 233). – Prajnâna ou o Conhecimento integral opõe-se aqui a vijnâna ou o conhecimento distintivo, o qual, aplicando-se particularmente ao domínio individual ou formal, caracteriza os dois estados precedentes; vijnânamaya-kosha é o primeiro dos “envelopes” de que se reveste Atmâ ao penetrar no “mundo dos nomes e das formas”, ou seja, ao se manifestar como jîvâtmâ.
3.      Mândûkya Upanishad, shruti 5.
4.      É isto que permite transpor metafisicamente a doutrina teológica da “ressurreição dos mortos”, assim como a concepção do “corpo glorioso”; este, aliás, não é um corpo no sentido próprio do termo, mas a “transformação” do corpo (ou a “transfiguração”), vale dizer a transposição fora da forma ou das outras condições da existência individual, ou ainda, em outros termos, a “realização” da possibilidade permanente e imutável de que o corpo é a expressão transitória em modo manifestado.
5.      estado de sono profundo foi qualificado de “inconsciente” por alguns orientalistas, que parecem tentados a identificá-lo com o “Inconsciente” de alguns filósofos alemães, como Hartmann; este erro provém sem dúvida do fato de que eles não podem conceber outra consciência que não a individual e “psicológica”, mas esta explicação não permite entender como se poderá a partir dela compreender termos como Chit, PrajnânaPrâjna.
6.      Os termos “sujeito” e “objeto”, no sentido em que os empregamos aqui, não podem prestar-se a nenhum equívoco: o sujeito é “aquele que conhece”, o objeto é “o que é conhecido”, e sua relação é o próprio conhecimento. Entretanto, na filosofia moderna, o significado destes dois termos, e sobretudo de seus derivados “subjetivo” e “objetivo”, variaram a tal ponto que eles acabaram por receber acepções diametralmente opostas, e alguns filósofos tomaram-nos indistintamente em sentidos muito diferentes; desta forma seu emprego apresenta graves inconvenientes do ponto de vista da clareza, e, em muitos casos, é melhor evitá-lo tanto quanto possível.
7.      Em árabe, existe, como equivalente destes três termos, a Inteligência (El-Aqlu), o Inteligente (El-Qil) e o Inteligível (El-Maqûl); a primeira é a Consciência universal (Chit), o segundo é seu sujeito (Sat) e o terceiro seu objeto (Ananda); estes três são um no Ser (que Se conhece a Si mesmo por Si mesmo”.
8.      Brihad-Aranyaka Upanishad, 4º Adhyâya, 3º Brâhmana, shruti 15; cf. Brahma-Sûtras, 1º Adhyâya, 3º Pâda, sûtra 8. – Ver também o que diremos mais adiante sobre o significado do Nirvâna.
9.      Poderíamos dizer, com as devidas reservas, que Purusha é o polo “subjetivo” da manifestação, e que Prakriti é seu polo “objetivo”; Buddhi corresponde então naturalmente ao Conhecimento, que é como que uma resultante do sujeito e do objeto, ou seu “ato comum”, para empregarmos a linguagem de Aristóteles. Entretanto, convém frisar que, na ordem da Existência universal, é Prakriti que “concebe” suas produções sob a influência “não-agente” de Purusha, enquanto que, na ordem das existência individuais, o sujeito conhece ao contrário sob a ação do objeto; a analogia é portanto inversa neste caso, assim como nos que encontramos anteriormente. Enfim, se virmos a inteligência como inerente ao sujeito (embora sua “atualidade” suponha a presença dos dois termos complementares), deveremos dizer que o Intelecto universal é essencialmente ativo, enquanto que a inteligência individual é passiva, ao menos relativamente (mesmo sendo ao mesmo tempo ativa sob outro aspecto), o que implica de resto seu caráter de “reflexo”; e isto concorda inteiramente com as teorias de Aristóteles.
10.  Os efeitos estão “eminentemente” na causa, como dizem os filósofos escolásticos, e eles são também constitutivos de sua própria natureza, pois nada pode estar nos efeitos sem que tenha antes estado na causa; assim a causa primeira, conhecendo-se a si mesma, conhece por isso todos os efeitos, ou seja todas as coisas, de um modo absolutamente imediato e “não-distintivo”.
11.  Este “ordenador interno” é idêntico ao “reitor Universal” de que tratou o texto taoísta mencionado em nota precedente. – A tradição extremo-oriental diz também que “a Atividade do Céu é não-agente”; na sua terminologia, o Céu (Tien) corresponde a Purusha (visto nos diversos graus indicados), e a Terra (Ti) a Prakriti; não se trata portanto da tradução utilizada para os mesmos termos na enumeração do Tribhuvana hindu.
12.  Isto é aplicável, na ordem cósmica, às duas fases da “expiração” e da “aspiração” que podemos ver em cada ciclo particular; mas aqui trata-se da totalidade dos ciclos ou dos estados que constituem a manifestação universal.
13.  Mândûkya Upanishad, shruti 6.











XV

O ESTADO INCONDICIONADO DE ATMA




“Vigília, sonho, sono profundo, e aquilo que está além, tais são os quatro estados de Atmâ; o maior (mahattara) é o Quarto (Turîya). Nos três primeiros, Brahma reside com um de seus pés; Ele tem três pés no último” (1). Assim, as proporções estabelecidas precedentemente de um certo ponto de vista acham-se invertidas de outro ponto de vista: dos quatro “pés” (pâdas) de Atmâ, os três primeiros quanto à distinção dos estados não passam de um quanto à sua importância metafísica, e o último sozinho vale por três sob este mesmo aspecto. Se Brahma não fosse “sem partes” (akhanda), poderíamos dizer d’Ele que apenas um quarto acha-se no Ser (compreendendo aí tudo o que depende do Ser, ou seja a manifestação universal de que este é o princípio), enquanto que os demais três quartos estão para além do Ser (2). Estes três quartos podem ser vistos da seguinte maneira: I) a totalidade das possibilidades de manifestação na medida em que não se manifestam, portanto no estado absolutamente permanente e incondicionado, como tudo o que pertence ao “Quarto” (na medida em que elas se manifestam, elas pertencem aos dois primeiros estados; enquanto “manifestáveis”, ao terceiro, principial em relação àqueles); II) a totalidade das possibilidades de não-manifestação (cujo plural empregamos apenas por analogia, porque elas estão evidentemente além da multiplicidade, e mesmo além da unidade); III) enfim, o Princípio Supremo de tudo, que é a Possibilidade Universal, total, infinita e absoluta (3).

“Os sábios pensam que o Quarto (Chaturtha) (4), que não é conhecedor nem dos objetos internos nem dos externos (de modo distintivo e analítico), nem simultaneamente de ambos (vistos sinteticamente e em princípio) e que não é (sequer) um conjunto sintético de Conhecimento integral, por não ser nem conhecedor nem não-conhecedor, é invisível (adristha, e igualmente imperceptível por qualquer faculdade que seja), não-agente (avyavahârya, em Sua imutável identidade), incompreensível (agrâhya, por compreender tudo), indefinível (alakhana, por ser sem limites), impensável (achintya, por não poder revestir-se de nenhuma forma), indescritível (avyapadêshya, por não poder ser qualificado por nenhuma atribuição ou determinação particular), a única essência fundamental (pratyaya-sâra) do “Si” (Atmâ, presente em todos os seus estados), sem nenhum traço de desenvolvimento da manifestação (prapancha-upashama, e por conseguinte total e absolutamente livre das condições particulares de qualquer modo de existência que seja), plenitude da Paz e da Beatitude, sem dualidade: Ele é Atmâ (em Si, independente e além de qualquer condição), (assim)  Ele deve ser conhecido” (5).

Lembraremos que tudo o que concerne a este estado incondicionado de Atmâ é expresso sob uma forma negativa; isto é fácil de compreender, pois, na linguagem, toda afirmação direta é forçosamente uma afirmação particular e determinada, a afirmação de algo que exclui outra coisa, e que assim limita aquilo que podemos afirmar (6). Toda determinação é uma limitação, portanto uma negação (7); por conseguinte, é a negação de uma determinação que é uma verdadeira afirmação, e os termos de aparência negativa que encontramos aqui são, em seu sentido real, eminentemente afirmativos. De resto, o termo “Infinito”, cuja forma é semelhante, exprime a negação de todo limite, de sorte que ele eqüivale à afirmação total e absoluta, que compreende ou abarca todas as afirmações particulares, mas que não é nenhuma delas com a exclusão das demais, precisamente porque ela implica a todas igualmente e “não-distintivamente”; e é assim que a Possibilidade Universal compreende absolutamente todas as possibilidades. Tudo o que pode exprimir-se em forma afirmativa está necessariamente encerrado no domínio do Ser, pois este é em si a primeira afirmação ou a primeira determinação, aquela da qual procedem todas as outras, assim como a unidade é o primeiro dos números e deka todos derivam; mas, aqui, estamos na “não-dualidade”, e não mais na unidade, ou, em outros termos, estamos além do Ser, pelo fato mesmo de estarmos além de toda determinação, ainda que principial (8).

Em Si mesmo, Atmâ não é então nem manifestado (vyakta), nem não-manifestado (avyakta), ao menos quando vemos somente o não-manifestado como princípio imediato do manifestado (o que se refere ao estado de Prâjna); mas Ele é ao mesmo tempo o princípio do manifestado e do não-manifestado (embora esse Princípio Supremo possa aliás ser também dito não-manifestado num sentido superior, nem que seja para afirmar assim Sua imutabilidade absoluta e a impossibilidade de O caracterizar por qualquer atribuição positiva). “Ele (o Supremo Brahma, ao qual Atmâ é idêntico) não é alcançado pelo olho (9), nem pela palavra, nem pelo “mental” (10); nós não O conhecemos (como compreensível por outro que não Si mesmo), e é porisso que não podemos ensinar Sua natureza (por uma descrição qualquer). Ele é superior àquilo que é conhecido (distintivamente, ou para o universo manifestado), e Ele está além daquilo que não é conhecido (distintivamente, ou do Universo não-manifestado, uno com o Ser puro) (11); este é o ensinamento que recebemos dos Sábios de outrora. Devemos considerar que Este que não é manifestado pela palavra (nem por qualquer outra coisa), mas pelo qual a palavra é manifestada (assim como todas as coisas), é Brahma (em Sua Infinitude), e não o que é visto (enquanto objeto de meditação) como “isto” (um ser individual ou um mundo manifestado, segundo seja o ponto de vista “microcósmico” ou “macrocósmico”) ou “aquilo” (Ishwara ou o próprio Ser Universal, além de qualquer individualização e qualquer manifestação)” (12).

Shankarâchârya acrescenta a esta passagem o seguinte comentário: “Um discípulo que seguiu atentamente a exposição da natureza de Brahma deve ser levado a pensar que ele conhece perfeitamente Brahma (ao menos teoricamente); mas, malgrado as razões aparentes que ele pode ter para pensar assim, esta não deixa de ser uma opinião errônea. De fato, o significado bem estabelecido de todos os textos concernentes ao Vêdânta é que o “Si” de todo ser que possui o Conhecimento é idêntico a Brahma (porque, através deste Conhecimento, a “Identidade Suprema” é realizada). Ora, de todas as coisas susceptíveis de se tornarem objeto de conhecimento, um conhecimento distinto e definido é possível; mas isto não acontece com Aquilo que não pode tornar-se um tal objeto. Isto é Brahma, pois Ele é o Conhecedor (total), e o Conhecedor pode conhecer as outras coisas (encerrando-as todas em Sua infinita compreensão, que é idêntica à Possibilidade Universal), mas não tornar-se Ele mesmo objeto Seu próprio Conhecimento (pois, em Sua identidade que não resulta de nenhuma identificação, não se pode fazer, como na condição de Prâjna, a distinção principial de um sujeito e um objeto que são entretanto “o mesmo”, e Ele não pode cessar de ser Si mesmo, “todo-conhecedor” para tornar-se “todo-conhecido”, que seria um outro Si mesmo), assim como o fogo pode queimar outras coisas mas não pode queimar a si mesmo (sendo sua natureza essencial indivisível, como analogamente, Brahma é “sem-dualidade”) (13). Por outro lado, também não se pode dizer que Brahma pode ser objeto de conhecimento por outro que não Ele mesmo, pois, fora de Si, não há nada que seja conhecedor (sendo todo conhecimento, mesmo relativo, uma participação no Conhecimento absoluto e supremo)” (14).

É por isso que é dito na seqüência do texto: “Se pensas que conheces bem (Brahma), aquilo que conheces de Sua natureza é na realidade bem pouca coisa; por esta razão, Brahma deve ser mais atentamente considerado por ti. (A resposta é esta:) Eu não penso que O conheço; quero dizer que não O conheço bem (de um modo distinto, como conheceria um objeto susceptível de ser descrito ou definido); e no entanto eu O conheço (segundo o ensinamento que recebi sobre Sua natureza). Qualquer um dentre nós que compreenda estas palavras (em seu verdadeiro significado) “Eu não O conheço, e no entanto eu O conheço”, este O conhece em verdade. Para aquele que pensa que Brahma é não-compreendido (por uma faculdade qualquer), Brahma é compreendido (pois, pelo Conhecimento de Brahma, ele se torna real e efetivamente idêntico ao próprio Brahma); mas aquele que pensa que Brahma é compreendido (por qualquer faculdade sensível ou mental), este não O conhece. Brahma (em Si mesmo, em Sua incomunicável essência) é desconhecido para aqueles que O conhecem (ao modo de um objeto qualquer de conhecimento, seja um ser particular ou o Ser Universal), e Ele é conhecido daqueles que não O conhecem (como “isto” ou como “aquilo”) (15).


























NOTAS



1.      Maitri Upanishad, 7º Prapâthaka, shruti 11.
2.      Pâda, que significa “pé”, significa também “quarto”.
3.      De modo análogo, considerando os três primeiros estados, cujo conjunto constitui o domínio do Ser, poderíamos dizer também que os dois primeiros não passam de um terço do Ser, por conterem apenas a manifestação formal, enquanto o terceiro sozinho constitui dois terços, por compreender simultaneamente a manifestação informal e o Ser não-manifestado. – É essencial lembrar que apenas as possibilidades de manifestação pertencem ao domínio do Ser, mesmo encarado em toda sua universalidade.
4.      Os dois termos Chaturtha e Turîya tem o mesmo sentido e aplicam-se igualmente ao mesmo estado: Yad vai Chaturtham tat turîyamm, “certamente aquilo que é Chaturtha, aquilo é Turîya (Brihad-Aranyaka Upanishad, 5º Adhyâya, 14º Brâhmana, shruti 3).
5.      Mândûkya Upanishad, shruti 7.
6.      É pela mesma razão que este estado é designado simplesmente como o “Quarto”, porque ele não pode ser caracterizado de nenhum modo; mas esta explicação, embora evidente, escapou aos orientalistas, e podemos citar a propósito um curioso exemplo da sua incompreensão: Oltramare imaginou que este nome de “Quarto” indicava que não passava de uma “construção lógica”, e isto porque lembrou-lhe a “quarta dimensão dos matemáticos”; eis aí uma aproximação no mínimo surpreendente, e que seria difícil justificar com seriedade.
7.      próprio Spinoza reconheceu expressamente: “Omnis determinatio negatio est”; mas não é preciso dizer que a aplicação que ele fez disto lembra mais a indeterminação de Prakriti do que a de Atmâ em seu estado incondicionado.
8.      Nós nos colocamos aqui de um ponto de vista puramente metafísico, mas devemos acrescentar que estas considerações podem também ter uma aplicação do ponto de vista teológico; embora este último se mantenha normalmente dentro dos limites do Ser, alguns reconhecem que a “teologia negativa” é a única rigorosa, ou seja que apenas os atributos em forma negativa convém verdadeiramente a Deus. – Cf. São Denis Areopagita, Traité de la Théologie Mystique, cujos dois últimos capítulos aproximam-se muito, mesmo na expressão, do texto que citamos.
9.      Da mesma forma, o Corão diz, falando de Allah: “Os olhos não podem alcançá-lo.” – “O Princípio não é alcançado nem pela vista nem pelo ouvido” (Tchouang-tsé, cap. XXII).
10.  Aqui, o olho representa as faculdades de sensação, e a palavra as faculdades de ação; vimos acima que manas, por sua natureza e funções, participa de ambas. Brahma não pode ser alcançado por nenhuma faculdade individual: Ele não pode ser percebido pelos sentidos como os objetos grosseiros, nem concebido pelo pensamento como os objetos sutis; Ele não pode ser expresso em modo sensível por palavras, nem em modo ideal por imagens mentais.
11.  Cf. a passagem já citada do Bhagavad-Gîtâ, XV, 18, segundo a qual Paramatmâ “ultrapassa o destrutível e mesmo o indestrutível”; o destrutível é o manifestado, e o indestrutível é o não-manifestado, entendido no sentido que explicamos.
12.  Kêna Upanishad, 1º Khanda, shrutis 3-5. – O que foi dito da palavra (vâch) é a seguir repetido sucessivamente, nas shrutis 6 a 9, e em termos idênticos, para o “mental” (manas), o olho (chakshus), o ouvido (shrotra) e o “sopro vital” (prâna).
13.  Cf. Brihad-Aranyaka Upanishad, 4º Adhyâya, 5º Brâhmana, shruti 14: “Como o Conhecedor (total) poderia ser conhecido?”
14.  Aqui ainda, podemos estabelecer uma aproximação com esta frase do Tratado da Unidade (Risâlatul-Ahadiyah) de Mohyiddin ibn Arabî: “Não há nada, absolutamente nada que exista fora Ele (Allah), mas Ele compreende Sua própria existência sem (no entanto) que esta compreensão exista de qualquer modo que seja”.
15.  Kêna Upanishad, 2º Khanda, shrutis 1-3. – Eis um texto taoísta que é idêntico: “O Infinito diz: eu não conheço o Princípio; esta resposta é profunda. A Não-Ação diz: eu conheço o Princípio; esta resposta é superficial. O Infinito tem razão de dizer que ele não sabe nada do Princípio. A Não-Ação poderia dizer que ela O conhecia, quanto às Suas manifestações exteriores... Não conhece-Lo, é conhece-Lo (em Sua essência); conhece-Lo (em Suas manifestações), é não conhece-Lo (tal como Ele é em realidade). Mas como compreender isto, que é por não conhece-Lo que se O conhece? – Eis o que diz o Estado primordial. O Princípio não pode ser ouvido; aquilo que se ouve não é Ele. O Princípio não pode ser visto: aquilo que se vê não é Ele. O Princípio não pode ser enunciado; aquilo que se enuncia não é Ele. Não podendo ser imaginado, o Princípio não pode ser descrito. Aquele que coloca estas questões sobre o Princípio, e o que as responde, mostram ambos que ignoram o que é o Princípio. Do Princípio não se pode perguntar nem responder o que Ele é” (Tchouang-tsé, cap. XXII).








XVI

REPRESENTAÇÃO SIMBÓLICA DE ATMÂ

E DE SUAS CONDIÇÕES

PELO MONOSSÍLABO SAGRADO OM




A seqüência do Mândûkya Upanishad refere-se à correspondência do monossílabo sagrado Om e de seus elementos (mâtrâs) com Atmâ e suas condições (pâdas); ela indica, de um lado, as razões simbólicas desta correspondência, e, de outro, os efeitos da meditação, portanto ao mesmo tempo sobre o símbolo e sobre aquilo que ele representa, ou seja sobre Om e sobre Atmâ, sendo que o primeiro desempenha o papel de “suporte” para obter o conhecimento do segundo. Iremos a seguir fornecer a tradução da última parte do texto; mas não será possível acompanhá-lo de um comentário completo, que nos afastaria demasiado do objeto de presente estudo.

“Este Atmâ é representado pela sílaba (por excelência) Om, que por sua vez é representada por caracteres (mâtrâs), (de tal modo que) as condições (de Atmâ) são os mâtrâs, e (inversamente) os mâtrâs (de Om) são as condições (de Atmâ): são A, U e M.

Vaishwânara, cujo assento está no estado de vigília, é (representado por) A, o primeiro mâtrâ, porque ele é a conexão (âpti, de todos os sons, sendo o som primordial A, aquele emitido pelos órgãos da fala em sua posição natural, como que imanente em todos os outros, que são modificações variadas suas e que se unificam nele, assim como Vaishwânara está presente em todas as coisas do mundo sensível e realiza a sua unidade), bem como o começo (âdi, ao mesmo tempo do alfabeto e do monossílabo Om, como Vaishwânara é a primeira das condições de Atmâ e a base a partir da qual, para o ser humano, deve cumprir-se a realização metafísica). Aquele que conhece isso obtém em verdade (a realização de) todos os seus desejos (porque, por sua identificação com Vaishwânara, todos os objetos sensíveis tornam-se dependentes dele e parte integrante de seu próprio ser), e ele se torna o primeiro (no domínio de Vaishwânara ou de Virâj, de que ele se torna o centro em virtude deste conhecimento e pela identificação que ele implica a partir do momento em que é plenamente efetivado).

Taijasa, cujo assento está no estado de sonho, é (representado por) U, o segundo mâtrâ, por que ele é a elevação (utkarsha, do som a partir de sua modalidade primeira, como o estado sutil é, dentro da manifestação formal, de ordem mais elevada que o estado grosseiro), e também porque ele participa dos dois (ubhaya, ou seja que, por sua natureza e sua posição, ele é o intermediário entre os dois elementos extremos do monossílabo Om, assim como o estado de sonho é intermediário, sandhyâ, entre a vigília e o sono profundo). Aquele que conhece isso avança em verdade na via do Conhecimento (por sua identificação com Hiranyagarbha), e (sendo assim iluiminado) está em harmonia (samâna, com todas as coisas, pois ele vê o Universo manifestado como a produção de seu próprio conhecimento, que não pode ser separado dele), e nenhum de seus descendentes (no sentido da “posteridade espiritual” (1) será ignorante de Brahma.

Prâjna, cujo assento está no estado de sono profundo, é (representado por) M, o terceiro mâtrâ, por que ele é a medida (miti, dos dois outros mâtrâs, como, numa relação matemática, o denominador é a medida do numerador), e também porque ele é a finalização (do monossílabo Om, considerado como encerrando a síntese de todos os sons, e assim também o não-manifestado contém, sinteticamente e em princípio, todo o manifestado com seus diversos modos possíveis, e este pode ser considerado como regressando ao não-manifestado, do qual ele jamais se distinguiu senão de modo contingente e transitório: a causa primeira é ao mesmo tempo a causa final, e o fim é necessariamente idêntico ao princípio) (2). Aquele que conhece isso mede verdadeiramente este todo (ou seja o conjunto dos “três mundos” ou dos diferentes estados da Existência universal, de que o Ser puro é o “determinante”) (3), e ele se torna a finalização (de todas as coisas, pela concentração de seu próprio Si ou sua personalidade, onde se encontram, “transformados”em possibilidades permanentes, todos os estados de manifestação de seu ser) (4).

“O Quarto é “não-caracterizado” (amâtra, portanto incondicionado); ele é não-agente (avyavahârya), sem nenhumtraço de desenvolvimento da manifestação (prapancha upashama), todo Beatitude e sem dualidade (Shiva Adwaita): este é Omkâra (o monossílabo sagrado considerado independentemente de seus mâtrâs), este certamente é Atmâ (em Si, além e independentemente de qualquer condição ou determinação, inclusive da determinação principial que é o próprio Ser). Aquele que conhece isso entra verdadeiramente em seu próprio Si, por meio deste mesmo Si (sem nenhum intermediário de qualquer ordem que seja, sem uso de nenhum instrumento tal como uma faculdade de conhecimento, que não pode atingir senão um estado do Si, e não Paramâtmâ, o Si supremo e absoluto)” (5).

No que concerne aos efeitos que são obtidos por meio da meditação (upâsanâ) do monossílabo Om, primeiramente em cada um de seus três mâtrâs, e depois em si mesmo, independente desses mâtrâs, acrescentaremos apenas que estes efeitos correspondem à realização de diferentes graus espirituais, que podem ser caracterizados da seguinte forma: o primeiro é o pleno desenvolvimento da individualidade corporal; o segundo é a extensão integral da individualidade humana em suas modalidades extra-corporais; o terceiro é a obtenção dos estados supra-individuais do ser; enfim, o quarto é a realização da “Identidade Suprema”.













NOTAS


1.      Este mesmo sentido tem aqui, em razão da identificação com Hiranyagarbha, uma relação mais particular com o “Ôvo do Mundo” e com as leis cíclicas.
2.      Para comprender este simbolismo, é preciso considerar que os sons de A e de U se unem no de O, e que este vai perder-se de certo modo no som nasal final de M, sem entretanto destruir-se, mas ao contrário prolongando-se indefinidamente, embora tornando-se indistinto e imperceptível. – Por outro lado, as formas geométricas que correspondem respectivamente aos três mâtrâs são uma linha reta, uma semi-circunferência (ou antes um elemento de espiral) e um ponto: a primeira simboliza o desdobramento completo da manifestação; o segundo, um estado de ocultação relativo em relação a este desdobramento, mas ainda desenvolvido ou manifestado; o terceiro, o estado informal e “sem-dimensões” ou condições limitativas particulares, ou seja o não-manifestado. Lembraremos também que o ponto é o princípio primordial de todas as figuras geométricas, como o não-manifestado o é de todos os estatdos de manifestação, e que ele é, em sua ordem, a unidade verdadeira e indivisível, o que faz dele um símbolo natural do Ser puro.
3.      Haveriam considerações linguísticas interessantes a desenvolver sobre a expressão do Ser concebido como “sujeito ontológico” e “determinante universal”; diremos apenas que, em hebraico, o nome divino El reporta-se particularmente a estas noções. – Este aspecto do Ser é designado pela tradição hindu como Swayambû, “Aquele que subsiste por Si mesmo”; na teologia cristã, é o Verbo Eterno visto como o “lugar dos possíveis”; o símbolo extremo-oriental do dragão também se refere a isso.
4.      É apenas no estado de universalização e não no estado individual, que se poderia dizer verdadeiramente que “o homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são e das que não são enquanto não são”, ou seja, metafisicamente, do manifestado e do não-manifestado, embora, com todo rigor, não se possa falar de uma “medida” do não-manifestado, se entendemos por isso a determinação por condições particulares de existência, como aqueles que definem cada estado de manifestação. Por outro lado, é claro que o sofista grego Protágoras, a quem se atribui a frase que reproduzimos, trasnpondo seu sentido para aplicar-se ao “Homem Universal”, estava certamente longe de elevar-se até esta concepção, de modo que, aplicando-a ao ser humano individual, ele não pretendia expressar com isto mais do que aquilo que os modernos chamariam de um “relativismo” radical, enquanto que, para nós, trata-se evidentemente de outra coisa, como compreenderão aqueles que sabem quais são as relações do “Homem Universal” com o Verbo Divino (cf. notadamente São Paulo, 1 Cor XV).
5.      Mândûkya Upanishad, shrutis 8-12. – Sobre a meditação de Om e seus efeitos em diversas ordens, em relação com os três mundos, podemos encontrar indicações no Prashna Upanishad, 5º Prashna, shrutis 1-7. Cf. também Chhândogya Upanishad, 1º Prapâthaka,, 1º, 4º e 5º Khandas.











XVII

EVOLUÇÃO PÓSTUMA

DO SER HUMANO



Até agora, vimos a constituição do ser humano e os diferentes estados de que ele é susceptível na medida em que subsiste como composto dos diversos elementos que distinguimos nesta constituição, ou seja durante a duração de sua vida individual. É preciso insistir sobre este ponto, que os estados que pertencem verdadeiramente ao indivíduo como tal, vale dizer não somente o estado grosseiro ou corporal, para o qual a coisa é evidente, mas também o estado sutil (com a condição, bem entendido, de só incluir aí as modalidades extra-corporais do estado humano integral, e não os outros estados individuais do ser), são própria e essencialmente estados do homem vivo. Não que se deva admitir que o estado sutil cesse no instante da morte corporal, e apenas por causa dela; veremos mais adiante que neste momento produz-se, ao contrário, uma passagem do ser para a forma sutil, mas esta passagem constitui apenas uma fase transitória na reabsorção das faculdades individuais do manifestado no não-manifestado, fase cuja existência explica-se naturalmente pelo caráter intermediário que estabelecemos para o estado sutil. Podemos no entanto, é verdade, considerar um certo sentido, e em certos casos ao menos, um prolongamento, e mesmo um prolongamento indefinido, da individualidade humana, que devemos forçosamente relacionar às modalidades sutis, ou seja extra-corporais, desta individualidade; mas este prolongamento não é a mesma coisa que o estado sutil tal como ele existia durante a vida terrestre. É preciso ter em conta, de fato, que, sob esta mesma denominação de “estado sutil”, somos obrigados a incluir modalidades bastantes diversas e extremamente complexas, mesmo quando nos limitamos à consideração de um só domínio das possibilidades propriamente humanas; é por isso que tomamos o cuidado, desde o início, de prevenir que ela deveria ser vista em relação ao estado corporal tomado como ponto de partida e como t ermo de comparação, de tal maneira que ela só adquire um sentido preciso por oposição a este estado corpóreo ou  grosseiro, o qual, por sua vez, aparece como suficientemente definido por si mesmo pelo fato de ser aquele em que nos encontramos presentemente. Podemos ver também que, dos cinco envelopes do “Si”, existem três que são vistos como constitutivos da forma sutil (enquanto que apenas um corresponde a cada um dos outros estados condicionados de Atmâ: um, porque na realidade não passa de uma modalidade particular e determinada do indivíduo; outro, porque é um estado essencialmente unificado e “não-distinto”); e aí está ainda uma prova manifesta da complexidade do estado no qual o “Si” tem esta forma por veículo, complexidade que devemos ter em mente se quisermos compreender o que será dito conforme encaremos este estado de diferentes pontos de vista.

Devemos agora abordar a questão daquilo que se chama comumente de “evolução póstuma” do ser humano, ou seja das conseqüências que traz consigo, para este ser, a morte, ou, para precisar melhor o que entendemos por esse termo, a dissolução deste composto de que falamos e que constitui a sua individualidade atual. É preciso frisar, de resto, que, a partir do momento em que ocorre esta dissolução, não existe mais um ser humano propriamente dito, porque é essencialmente este composto que é o homem individual; o único caso em que se pode continuar a chamá-lo humano num certo sentido é aquele onde, após a morte corporal, o ser permanece em algum destes prolongamentos da individualidade a que fizemos alusão, porque, neste caso, embora esta individualidade não seja mais completa sob o aspecto da manifestação (porque lhe falta agora o estado corporal, tendo as possibilidades que correspondem a este completado o ciclo inteiro de seu desenvolvimento), alguns de seus elementos psíquicos ou sutis subsistem de certo modo sem se dissociar. Em todos os demais casos, o ser não pode mais ser dito humano, porque, do estado ao qual aplica-se esse nome, ele passou a um outro estado, individual ou não; assim, o ser que era humano deixa de sê-lo para tornar-se outra coisa, assim como, pelo nascimento, ele se tornou humano ao passar de um outro estado àquele que é presentemente o nosso. De resto, se entendemos o nascimento e a morte no sentido mais geral, ou seja como mudança de estado, nos damos conta imediatamente de que trata-se de modificações que se correspondem analogamente, por serem o começo e o fim de um ciclo de existência individual; e mesmo, quando saímos do ponto de vista particular de um determinado estado para considerarmos o encadeamento dos diversos estados entre si, vemos que, na realidade, trata-se de fenômenos rigorosamente eqüivalentes, sendo a morte para um estado ao mesmo tempo o nascimento em outro. Em outros termos, a mesma modificação é a morte e o nascimento segundo o estado ou o ciclo de existência em relação ao qual se considere, por ser propriamente o ponto comum aos dois estados, ou a passagem de um para outro; e aquilo que é verdade aqui para estados diferentes é também, em outro grau, para as modificações diversas de um mesmo estado, se vemos estas modificações como constituindo, quanto ao desenvolvimento de suas possibilidades respectivas, outros tantos ciclos secundários que se integram no conjunto de um ciclo mais extenso (1). Enfim, é necessário acrescentar expressamente que a “especificação”, no sentido em que tomamos o termo, ou seja a ligação a uma espécie definida, tal como a espécie humana, que impõe a um ser certas condições gerais que constituem a natureza específica, só vale num estado determinado e não pode estender-se além; nem poderia ser diferente, desde que a espécie não é absolutamente um princípio transcendente em relação a este estado individual, mas procede exclusivamente do domínio deste, sendo ela mesma submetida às condições limitativas que o definem; e é por isso que o ser que passou para um outro estado não é mais humano, por não pertencer mais à espécie humana (2).

Devemos ainda fazer reservas sobre a expressão “evolução póstuma”, que pode dar lugar a equívocos diversos; e, antes de mais nada, sendo a morte concebida como a dissolução do composto humano, é evidente que o termo “evolução” não pode mais ser tomado aqui no sentido de um desenvolvimento individual, por se tratar, ao contrário, de uma reabsorção da individualidade no estado não-manifestado (3); seria portanto antes uma “involução” do ponto de vista particular do indivíduo. Etimologicamente, de fato, estes termos de “evolução” e de “involução” não significam outra coisa que “desenvolvimento” e “envolvimento” (4); mas sabemos que, na linguagem moderna, a palavra “evolução” recebeu correntemente uma outra acepção, que fez dela quase que um sinônimo de “progresso”. Já tivemos ocasião de nos explicarmos suficientemente sobre essas idéias muito recentes de “progresso” ou de “evolução”, que amplificando-se muito além de toda medida razoável, chegaram a falsear completamente a mentalidade ocidental atual; não voltaremos a isto aqui. Apenas lembraremos que não se pode falar de “progresso” senão de um modo totalmente relativo, tendo sempre o cuidado de precisar sob qual aspecto se entende e dentro de quais limites se encara; reduzido a estas proporções, nada mais há de comum com este “progresso” absoluto de que se começou a falar pelo fim do século XVIII, e que nossos contemporâneos se comprazem em acrescentar do nome de “evolução”, pretensamente mais “científico”. O pensamento oriental, como o pensamento primitivo no Ocidente, não teria como admitir esta noção de “progresso”, senão no caso relativo de que falamos, ou seja como uma idéia completamente secundária, de um alcance extremamente restrito e sem nenhum valor metafísico, por ser daquelas que só podem se aplicar a possibilidades de ordem particular e que não podem ser transpostas além de certos limites. O ponto de vista “evolutivo” não é susceptível de universalização, e não é possível conceber o ser verdadeiro como algo que “evolui” entre dois pontos definidos, ou que “progride”, mesmo indefinidamente, em um sentido determinado; estas concepções são inteiramente desprovidas de significado e demonstram uma completa ignorância dos dados mais elementares da metafísica. Poder-se-ia quando muito falar de “evolução” para o ser no sentido da passagem a um estado superior; mais ainda seria preciso fazer uma restrição que conserve a relatividade do termo, pois, no que concerne ao ser visto em si e na sua totalidade, jamais se pode falar de “evolução” ou de “involução”, em qualquer sentido que se entenda, porque sua identidade essencial não é alterada pelas modificações particulares e contingentes, quaisquer que sejam, que afetam apenas tal ou tal de seus estados condicionados.

Uma outra reserva deve ser feita a respeito do emprego da palavra “póstumo”: é apenas do ponto de vista especial da individualidade humana, e na medida em que esta é condicionada pelo tempo, que se pode falar daquilo que se produz “após a morte”, bem como do que teve lugar “antes do nascimento”, ao menos se entendermos as palavras “antes” e “depois” no sentido cronológico que elas tem normalmente. Em si mesmos, os estados de que se trata, se estão fora do domínio da individualidade humana, não são absolutamente temporais e não podem portanto ser situados cronologicamente; e isto é verdade mesmo para aqueles que podem ter dentre suas condições um certo modo de duração, vale dizer de sucessão, desde que não seja mais a sucessão temporal. Quanto ao estado não-manifestado, está claro que ele é livre de qualquer sucessão, de modo que as idéias de anterioridade ou de posteridade mesmo entendidas na mais vasta acepção de que são susceptíveis, não podem aplicar-se; e podemos frisar que, mesmo durante a vida, o ser não tem mais a noção do tempo desde que sua consciência saia do domínio individual, como acontece no sono profundo ou no transe extático; enquanto permanecer nestes estados, que são verdadeiramente não-manifestados, o tempo não existirá para ele. Restaria a considerar o caso em que o estado “póstumo” é um simples prolongamento da individualidade humana: na verdade, este prolongamento pode situar-se na “perpetuidade”, ou seja na indefinidade temporal, ou, em outros termos, em um modo de sucessão que é ainda do tempo (por não se tratar de um estado submetido a condições outras do que o nosso), mas de um tempo que não tem mais nenhuma medida comum com aquele no qual se passa a existência corporal. De resto, um tal estado não é o que nos interessa particularmente do ponto de vista metafísico, porque é preciso ao contrário encararmos essencialmente, deste ponto de vista, a possibilidade de escapar das condições individuais, e não de aí permanecer indefinidamente; se devemos entretanto falar dele, é sobretudo para cobrir todos os casos possíveis, e também porque, como veremos adiante, este prolongamento da existência humana reserva ao ser uma possibilidade de atingir a “Libertação” sem passar por outros estados individuais. Seja como for, e deixando de lado este último caso, podemos dizer o seguinte: se falamos de estados não-humanos como situados “antes do nascimento” e “após a morte”, é porque assim eles aparecem em relação à individualidade; mas é preciso ter o cuidado de lembrar que não é a individualidade que passa por estes estados ou que os percorre sucessivamente, porque trata-se de estados que estão fora de seu domínio e que não concernem a ela enquanto individualidade. Por outro lado, existe um sentido no qual se podem aplicar as idéias de anterioridade e de posteridade, fora de qualquer ponto de vista temporal ou outro: queremos falar desta ordem, ao mesmo tempo lógica e ontológica, na qual os diversos estados se encadeiam e se determinam uns aos outros; se um estado é assim a conseqüência de um outro, podemos dizer que ele lhe é posterior, empregando neste modo de dizer o mesmo simbolismo temporal que serve para exprimir toda a teoria dos ciclos, embora, metafisicamente, haja uma perfeita simultaneidade entre todos os estados, sendo que um ponto de vista de sucessão efetiva só se aplique no interior de um estado determinado.

Tudo isso foi dito para que não se aplique à expressão “evolução póstuma”, se temos que empregá-la na falta de outra mais adequada e para atender a certos hábitos, uma importância e um significado que ela não tem nem pode ter, e assim voltaremos ao estudo da questão a que ela se refere, questão cuja solução, de resto, resulta quase imediatamente de todas as considerações que precedem. A exposição que irá seguir-se foi tomada dos Brahma-Sûtras (5) e do seu comentário tradicional (sobretudo o de Shankarâchârya), mas devemos advertir que não se trata de uma tradução literal: poderemos eventualmente resumir o comentário (6), e às vezes comentá-lo, sem o que o resumo seria quase incompreensível, como acontece muito quando se trata da interpretação de textos orientais (7).
























NOTAS



1.      Estas considerações sobre o nascimento e a morte são também aplicáveis ao ponto de vista “macrocósmico” da mesma forma que ao “microcósmico”; sem nos estendermos sobre o assunto, podemos entrever as conseqüências que resultam no que concerne à teoria dos ciclos cósmicos.
2.      Está claro que, em tudo isso, tomamos o termo “humano” em seu sentido próprio e literal, aquele em que ele se aplica somente ao homem individual; não se trata da transposição analógica que torna possível a concepção do “Homem Universal”.
3.      Não se pode aliás dizer que seja uma destruição da individualidade, pois, dentro do não-manifestado, as possibilidades que a constituem subsistem em princípio, de modo permanente, como  todas as outras possibilidades do ser; entretanto, não sendo a individualidade tal como era na manifestação, podemos dizer que, ao penetrar no não-manifestado, ela desaparece verdadeiramente ou cessa de existir enquanto individualidade; ela não é aniquilada (pois nada do que é pode deixar de ser), mas ela é “transformada”.
4.      Neste sentido, mas apenas neste sentido, podemos aplicar estes termos às duas fases que distinguimos em todo ciclo de existência, assim como indicamos precedentemente.
5.      4º Adhyâya, 2º,3º e 4º Pâdas. – O 1º Pâda deste 4º Adhyâya é consagrado ao exame dos modos do Conhecimento Divino, cujos frutos serão expostos no que se segue.
6.      Colebrooke forneceu um resumo deste gênero nos seus Essais sur la Philosophie des Hindous (Essai IV), mas sua interpretação, apesar de não ser deformada por um preconceito sistemático como acontece freqüentemente em outros orientalistas, é extremamente defeituosa do ponto de vista metafísico, pela pura e simples incompreensão deste ponto de vista.
7.      Lembraremos a propósito que, em árabe, a palavra tarjumah significa ao mesmo tempo “tradução” e “comentário”, sendo uma vista como inseparável da outra; seu equivalente mais exato seria “explicação” ou “interpretação”. Podemos mesmo afirmar, quando se trata de textos tradicionais, que uma tradução em linguagem vulgar, para ser inteligível, deve corresponder exatamente a um comentário feito na mesma língua do texto; a tradução literal de uma língua oriental para uma língua ocidental é geralmente impossível, e quanto maior o esforço para seguir literalmente a letra, maior o risco de se afastar do espírito; é o que os filólogos são infelizmente incapazes de entender.



















XVIII

A REABSORÇÃO DAS FACULDADES INDIVIDUAIS



“No momento em que um homem está prestes a morrer, a palavra, seguida do resto das dez faculdades externas (as cinco faculdades de ação e as cinco de sensação, manifestadas exteriormente por meio dos órgãos corporais correspondentes, mas não confundidas com estes órgãos, porque elas separam-se deles aqui) (1), é reabsorvida pelo sentido interno (manas), pois a atividade dos órgãos exteriores cessa antes do que a desta faculdade interior (que é assim o resultado de todas as outras faculdades individuais de que tratamos aqui, assim como seu ponto de partida e sua fonte comum) (2). Esta, do mesmo modo, retira-se a seguir dentro do “sopro vital” (prâna), acompanhada igualmente de todas as funções vitais (os cinco vâyus, que são modalidades de prâna, e que retornam assim ao estado indiferenciado), pois estas funções são inseparáveis da própria vida; e, de resto, a mesma retirada do sentido interno se observa também no sono profundo e no desvanecimento extático (com a cessação completa de toda manifestação exterior da consciência)”. Acrescentemos que esta sensação não implica sempre, entretanto, de modo necessário, na suspensão total da sensibilidade corporal, espécie de consciência orgânica se podemos nos expressar assim, embora a consciência individual propriamente dita não tenha então nenhuma função nas manifestações desta, com a qual ela não mais se comunica como acontecia normalmente nos estados comuns do ser vivo; e a razão é fácil de compreender, pois, a bem da verdade, não há mais consciência individual no caso de que se trata, por ter sido a consciência verdadeira do ser transferida para um outro estado, que é na realidade um estado supra-individual. Esta consciência orgânica a que aludimos não é uma consciência no sentido próprio do termo, mas participa desta do mesmo modo, tendo sua origem na consciência individual, da qual ela é um reflexo; separada desta, ela não é mais que uma ilusão de consciência, mas pode ainda apresentar a aparência de uma para quem observa do exterior (3), assim como, após a morte, a persistência de certos elementos psíquicos mais ou menos dissociados pode oferecer a mesma aparência, e não menos ilusória, quando conseguem se manifestar, como explicamos em outras circunstâncias (4).

“O “sopro vital”, acompanhado igualmente de todas as outras funções e faculdades (já reabsorvidas nele e subsistindo aí apenas como possibilidades, por terem a partir de então retornado ao estado de indiferenciação de que saíram para manifestarem-se efetivamente durante a vida), retira-se por sua vez na “alma viva” (jîvâtmâ, manifestação particular do “Si” no centro da individualidade humana, como vimos precedentemente, e que se distingue do “Si” na medida em que esta individualidade subsiste como tal, embora esta distinção seja tão ilusória perante a realidade absoluta, onde não existe nada além do “Si”); e é esta “alma viva” que (como reflexo do “Si” e princípio central da individualidade) governa o conjunto das faculdades individuais (encaradas em sua integralidade, e não somente no que concerne a modalidade corporal) (5).  Como os servidores de um rei agrupam-se ao seu redor quando ele está prestes a empreender uma viagem, assim todas as funções vitais e as faculdades (externas e internas) do indivíduo agrupam-se ao redor da “alma viva” (ou melhor, nela mesma, de onde todas elas procedem, e na qual são reabsorvidas) no último momento (da vida no sentido comum desta palavra, ou seja da existência manifestada no estado grosseiro), quando esta “alma viva” vai retirar-se de sua forma corporal (6). Assim acompanhada de todas as suas faculdades (porque ela as contém e as conserva em si mesma como possibilidades) (7), ela se retira para uma essência individual luminosa (ou seja na forma sutil, que é assimilada a um veículo ígneo, como vimos a propósito de Taijasa, a segunda condição de Atmâ), composta dos cinco tanmâtras ou essências elementares supra-sensíveis (como a forma corporal é composta dos cinco bhûtas, ou elementos corporais e sensíveis), num estado sutil (por oposição ao estado grosseiro, que é o da manifestação exterior ou corporal, cujo ciclo está agora terminado para o indivíduo considerado).

“Em conseqüência (em razão desta passagem para a forma sutil, considerada como luminosa),  diz-se que o “sopro vital” retira-se para dentro da Luz, sem que se deva entender por isto o princípio ígneo de uma maneira exclusiva (pois na realidade trata-se de um reflexo individualizado da Luz inteligível, reflexo cuja natureza é no fundo o mesmo que aquele do “mental” durante a vida corporal, e que implica de resto como suporte ou veículo uma combinação dos princípios essenciais dos cinco elementos), e sem que esta retirada se efetue necessariamente por uma transição imediata, assim como considera-se um viajante como indo de uma cidade a outra, mesmo quando ele passa sucessivamente por uma ou mais cidades intermediárias.

“Esta retirada ou esta abandono da forma corporal (como foi descrita até aqui) é de resto comum às pessoas ignorantes (avidwân) a ao Sábio contemplativo (vidwân), até o ponto onde começam para um e outro suas vias respectivas (e daqui para diante diferentes): e a imortalidade (amrita, sem entretanto que se tenha obtido já a União imediata com o Supremo Brahma) é o fruto da simples meditação (upâsâna, cumprida durante a vida sem ter sido acompanhada de uma realização efetiva dos estados superiores do ser), enquanto que os entraves individuais, que resultam da ignorância (avidyâ) não podem ainda ser completamente destruídos” (8).

Cabe fazer uma importante ressalva sobre o sentido no qual se deve entender a “imortalidade” de que tratamos aqui: com efeito, dissemos em outra parte que o termo sânscrito amrita aplica-se exclusivamente a um estado que é superior a toda mudança, enquanto que seu correspondente em línguas ocidentais é entendido simplesmente como uma extensão das possibilidades de ordem humana, consistindo em um prolongamento indefinido da vida (o que a tradição extremo-oriental  chama de “longevidade”), em condições de certo modo transpostas, mas que permanecem sempre mais ou menos comparáveis àquelas da existência terrestre, por dizerem respeito igualmente à individualidade humana. Ora, no caso presente, trata-se de um estado que é ainda individual, e no entanto é dito que a imortalidade pode ser obtida neste estado; isto pode parecer contraditório com o que dissemos, pois poderíamos crer que se trata de uma imortalidade relativa, entendida no sentido ocidental; mas não é o caso na realidade. É verdade que a imortalidade, no sentido metafísico e oriental, para ser plenamente efetiva, só pode ser alcançada além de todos os estados condicionados, individuais ou não, de tal modo que, sendo absolutamente independente de todo modo de sucessão possível, ela identifica-se à própria Eternidade; seria portanto abusivo dar o mesmo nome à “perpetuidade” temporal ou à indefinidade de uma duração qualquer; mas não é assim que se a deve entender. Devemos considerar que a idéia de “morte” é essencialmente sinônimo de mudança de estado, o que é, como já explicamos, sua acepção mais geral; e, quando dizemos que o ser atingiu virtualmente a imortalidade, isto deve ser entendido no sentido em que ele não deverá mais passar por estados condicionados, diferentes do estado humano, ou percorrer outros ciclos de manifestação. Não se trata ainda da “Libertação” a partir do estado humano, onde o ser se encontra mantido num seu prolongamento por toda a duração do ciclo ao qual este estado pertence (o que constitui propriamente a “perpetuidade”) (9), de tal sorte que ele possa estar coincluído na “transformação” final que irá cumprir-se quando este ciclo terminar, fazendo voltar tudo o que nele estivesse implicado ao estado principial de não-manifestação (10). É por isso que se dá a esta possibilidade o nome de “Libertação diferenciada” ou de “Libertação por degraus” (krama-mukti), porque ela será obtida assim por meio de etapas intermediárias (estados póstumos condicionados) e não de modo direto e imediato como nos outros casos de que falaremos adiante (11).









NOTAS


1.      A palavra é enumerada por último quando as faculdades são vistas em sua ordem de desenvolvimento; ela deve ser portanto a primeira na ordem de reabsorção, que é inversa.
2.      Chhândogya Upanishad, 6º Prapâthaka, 8º Khanda, shruti 6.
3.      Ë assim que, numa operação cirúrgica, a anestesia mais completa às vezes não impede sintomas exteriores de dor.
4.      A consciência orgânica de que falamos cabe naturalmente naquilo que os psicólogos chamam de “subconsciente”; mas seu erro é de crer que está explicado aquilo a que simplesmente se deu um nome, e onde são arrumados os elementos mais díspares, sem sequer uma distinção entre o que é verdadeiramente consciente em algum grau e o que só tem a aparência. Do mesmo modo, confunde-se o “subconsciente” com o “supraconsciente”, ou seja aquilo que procede dos estados respectivamente inferiores e superiores em relação ao estado humano.
5.      Podemos lembrar que prâna, apesar de manifestar-se exteriormente pela respiração, é na realidade outra coisa do que esta, pois seria ininteligível dizer que a respiração, função fisiológica, separa-se do organismo e é reabsorvida na “alma viva”; lembraremos ainda que prâna e suas diversas modalidades pertencem essencialmente ao estado sutil.
6.      Brihad-Aranyaka Upanishad, 4º Adhyâya, 3º Brâhmana, shruti 38.
7.      De resto, uma faculdade é propriamente um poder, ou seja uma possibilidade, que é, em si mesma, independente de qualquer exercício atual.
8.      Brahma-Sûtras, 4º Adhyâya, 2º Pâda, sûtras 1-7.
9.      A palavra grega aiwnios significa realmente “perpétuo” e não “eterno”, pois ela deriva de aiwn (idêntico ao latim aevum), que designa um ciclo indefinido, o que, aliás, era também o sentido primitivo do latim saeculum, “século”, pelo qual às vezes se traduz.
10.  Haveria observações a fazer sobre a tradução desta “transformação” final em linguagem teológica nas religiões ocidentais, e em particular sobre a concepção do “Juízo Final”, que se liga estreitamente a ela; mas isto iria necessitar de explicações extensas e colocações tais que seriam impossíveis caber aqui, tanto mais que, de fato, o ponto de vista propriamente religioso limita-se à consideração do fim de um ciclo secundário, além do qual pode-se considerar ainda uma continuação da existência dentro do estado individual humano, o que não seria possível se se tratasse da integralidade do ciclo ao qual pertence este estado. Isto não quer dizer, de resto, que a transposição  não possa ser feita partindo do ponto de vista religioso, como indicamos antes a respeito da “ressurreição dos mortos” e do “corpo glorioso”; mas, praticamente, ela não é feita para aqueles que se atém às condições ordinárias e “exteriores”, e para quem não existe nada além da individualidade humana; voltaremos a isto a propósito da diferença essencial que existe entre a noção religiosa da “salvação” e a noção metafísica da “Libertação”.
11.  Está claro que a “Libertação diferenciada” é a única que pode ser almejada pela imensa maioria dos seres humanos, o que não quer dizer, aliás, que todos chegarão aí indistintamente, pois devemos ter em conta ainda o caso em que o ser, não tendo obtido sequer a imortalidade virtual, deve passar a um outro estado individual, no qual ele terá naturalmente a mesma possibilidade de atingir a “Libertação” que no estado humano, mas também, se podemos dize-lo, a mesma possibilidade de não atingi-la.

XIX

DIFERENÇA DAS CONDIÇÕES PÓSTUMAS

SEGUNDO OS GRAUS DO CONHECIMENTO



“Na medida em que ele está nessa condição (ainda individual), o espírito (que, por conseguinte, ainda é jîvâtmâ) daquele que praticou a meditação (durante a sua vida, sem atingir a posse efetiva dos estados superiores de seu ser) permanece unido à forma sutil (que podemos ver como o protótipo formal da individualidade, sendo que a manifestação sutil representa um estágio intermediário entre o não-manifestado e a manifestação grosseira, desempenhando o papel de princípio imediato em relação a esta última); e, nesta forma sutil, ele associa-se às faculdades vitais (no estado de reabsorção ou de contração principial que foi descrito precedentemente).” É preciso, com efeito, que haja ainda uma forma com que o ser se revista, pelo fato mesmo que sua condição provém da ordem individual; e esta só pode ser a forma sutil, pois ele saiu da forma corporal, e de resto a forma sutil subsiste após ela, tendo-a precedido na ordem do desenvolvimento em modo manifestado, que se acha reproduzido em sentido inverso no retorno ao não-manifestado; mas isto não quer dizer que esta forma sutil deva ser então exatamente como ela era durante a vida corporal, como veículo do ser humano no estado de sonho (1). Já dissemos que a própria existência individual, de modo geral, e não apenas no que concerne ao estado humano, pode ser definida como o estado do ser que é limitado por uma forma; mas é claro que esta forma não é necessariamente determinada como espacial e temporal, como ela é no caso particular do estado corporal; ela não pode sê-lo nos estados não-humanos, que não estão submetidos ao espaço e ao tempo, mas a condições bem diferentes. Quanto à forma sutil, se ela não escapa inteiramente ao tempo (embora esse tempo não seja aquele em que transcorre a existência corporal), ela escapa ao menos ao espaço, e é por isso que não se deve tentar representá-la como uma espécie de “duplo” do corpo (2), assim como não se deve entende-la como um “molde” quando dizemos que ela é um protótipo formal da individualidade na origem da manifestação (3); sabemos como os Ocidentais chegam rapidamente às representações as mais grosseiras, e como disto podem resultar erros graves, por não se tomarem todas as precauções necessárias a respeito.

“O ser pode permanecer assim (nesta mesma condição individual em que ele se acha unido à forma sutil) até a dissolução exterior (pralaya, regresso ao estado indiferenciado) dos mundos manifestados (do ciclo atual, que compreende ao mesmo tempo o estado grosseiro e o estado sutil, ou seja o domínio da individualidade humana encarada em sua integridade) (4), dissolução na qual ele será mergulhado (com o conjunto dos seres destes mundos) no seio do Supremo Brahma; mas, mesmo então, ele poderá estar unido a Brahma apenas do mesmo modo como no sono profundo (ou seja sem a realização plena e efetiva da “Identidade Suprema”). Em outros termos, e para empregar a linguagem de certas escolas esotéricas ocidentais, o caso a que se aludiu em último lugar corresponde apenas a uma “reintegração em modo passivo”, enquanto que a verdadeira realização metafísica é uma “reintegração em modo ativo”, a única que implica na possessão, pelo ser, de seu estado absoluto e definitivo. É o que indica precisamente a comparação com o sono profundo, tal como acontece durante a vida do homem comum: assim como existe retorno deste estado para a condição individual, é possível haver também, para o ser que só está unido a Brahma “em modo passivo”, o retorno a um outro ciclo de manifestação, de modo que o resultado obtido por ele, a partir do estado humano, não é ainda a “Libertação” ou a verdadeira imortalidade, e seu caso é comparável (embora com uma diferença notável quanto às condições de seu novo ciclo) àquele do ser que, ao invés de permanecer até o pralaya dentro dos prolongamentos do estado humano, passou, após a morte corporal, a um outro estado individual. Além desses casos, podemos encarar também aquele em que a realização dos estados superiores, e mesmo a “Identidade Suprema”, não alcançada durante a vida corporal, o é num dos prolongamentos póstumos da individualidade; de virtual que era, a imortalidade torna-se agora efetiva, e isto pode só acontecer no próprio final do ciclo; é a “Libertação diferenciada” de que tratamos antes. Em um ou outro caso, o ser, que deve ser visto como jîvâtmâ unido à forma sutil, acha-se, por toda a duração do ciclo, “incorporado” de certa forma (5) a Hiranyagarbha, que, como vimos, é considerado como jîvaghana; ele permanece assim submetido a esta condição particular de existência que é a vida (jîva), pela qual é delimitado o domínio próprio de Hiranyagarbha na ordem hierárquica da Existência universal.

“Esta forma sutil (aonde reside, após a morte, o ser que permanece no estado individual humano) é (por comparação com a forma corporal ou grosseira) imperceptível aos sentidos quanto às suas dimensões (porque ela está fora da condição espacial) assim como quanto à sua consistência (ou à sua substância própria, que não é constituída por uma combinação de elementos corporais); em conseqüência, ela não afeta a percepção (ou as faculdades externas) daqueles que estão presentes no momento em que ela se separa do corpo (após a “alma viva” ter-se retirado). Ela não é atingida pela combustão ou outros tratamentos que o corpo sofre após a morte (que é o resultado desta separação, pelo fato de que nenhuma ação de ordem sensível pode ter repercussão sobre esta forma sutil, nem sobre a consciência individual que, permanecendo ligada a esta, não tem mais relação como corpo). Ela é sensível apenas por seu calor animador (sua qualidade própria na medida em que ela é assimilada ao princípio ígneo) (6) por todo o tempo em que ela habita a forma grosseira, que se torna fria (e por conseguinte inerte enquanto conjunto orgânico) na morte, quando ela a abandona (mesmo que as outras qualidades sensíveis desta forma corporal subsistem ainda sem mudança aparente), e que era aquecida (e vivificada) por ela enquanto ela tinha aí sua morada (pois é na forma sutil que reside propriamente o princípio da vida individual, de sorte que é somente pela comunicação de suas propriedades que o corpo pode ser dito também vivo, em razão da ligação que existe entre estas duas formas na medida em que elas são a expressão do mesmo ser, ou seja precisamente até o instante da morte).

“Mas aquele que obteve (antes da morte, sempre entendida como a separação do corpo) o verdadeiro Conhecimento de Brahma (que implica, pela realização metafísica sem a qual não haveria mais do que o conhecimento imperfeito e apenas simbólico, a possessão efetiva de todos os estados do seu ser) não passa (em modo sucessivo) pelos mesmos graus da retirada (ou da reabsorção de sua individualidade, do estado da manifestação grosseira ao estado da manifestação sutil, com as diversas modalidades que ela comporta, depois ao estado não-manifestado, aonde as condições individuais são enfim inteiramente suprimidas). Ele procede diretamente (neste último estado, e mesmo além dele se o considerarmos como o princípio da manifestação) à União (já realizada ao menos virtualmente durante a vida corporal) (7) com o Supremo Brahma, ao qual ele identificou-se (de modo imediato), como um rio (representando aqui a corrente da existência através de todos os estados e todas as manifestações) na sua desembocadura (que é o termo final desta corrente) identifica-se (por penetração íntima) com as ondas do mar (samudra, a reunião das águas, simbolizando a totalização das possibilidades no Princípio Supremo). Suas faculdades vitais e os elementos de que era constituído seu corpo (todos considerados em princípio e em sua essência supra-sensível) (8), as dezesseis partes (shodasha-kalâh) componentes da forma humana (ou seja os cinco tanmâtras, manas e as dez faculdades de sensação e de ação) passam completamente ao estado não-manifestado (avyakta, onde, por transposição, eles se encontram todos em modo permanente, enquanto possibilidades imutáveis), sendo que esta passagem aliás não implica para o ser mesmo nenhuma mudança (tal como estão implicadas nos estados intermediários, que, pertencendo ainda ao “devir”, comportam necessariamente uma multiplicidade de modificações). O nome e a forma (nâma-rûpa, ou seja a determinação da manifestação individual quanto à sua essência e quanto à sua substância como já explicamos) cessam igualmente (enquanto condições limitativas do ser); e, por ser “não-dividida), portanto sem as partes ou membros que compunham sua forma terrestre (no estado manifestado, e na medida em que esta forma estava submetida à quantidade sob seus diversos modos) (9), ele está livre das condições de existência individual (assim como de todas as outras condições referentes a um estado particular e determinado de existência qualquer que seja, mesmo supra-individual, pois o ser está daqui para frente no estado principial, absolutamente incondicionado)” (10).

Muitos comentadores dos Brahma-Sûtras, para frisar ainda mais claramente o caráter desta “transformação” (no sentido estritamente etimológico, de “passagem além da forma”), comparam-na à desaparição da água quando se coloca nela uma pedra incandescente. De fato, esta água é “transformada” ao contato com a pedra, ao menos no sentido relativo de ter perdido sua forma visível (e não toda forma, porque ela continua evidentemente a pertencer à ordem corporal), ma sem que se possa dizer por isso que ela tenha sido absorvida pela pedra, porque, na realidade, ela evaporou-se na atmosfera, aonde ela permanece em um estado imperceptível à vista (11). Da mesma forma, o ser não é “absorvido” ao obter a “Libertação”, embora isto possa parecer assim do ponto de vista da manifestação, para a qual a “transformação” aparece como uma “destruição” (12); se nos colocamos na realidade absoluta, a única que permanece para ele, ele está ao contrário dilatado além de todo limite, se podemos empregar este modo de falar (que traduz exatamente o simbolismo do vapor d’água espalhando-se indefinidamente na atmosfera), porque ele efetivamente realizou a plenitude de suas possibilidades.




NOTAS


1.      Existe uma certa continuidade entre os diferentes estados do ser, e com mais razão entre as diversas modalidades que fazem parte de um mesmo  estado de manifestação; a individualidade humana, mesmo em suas modalidades extra-corporais, deve forçosamente ser afetado pela desaparição de sua modalidade corporal, e aliás existem elementos psíquicos, mentais e outros, que só tem razão de ser em relação à existência corporal, de sorte que a desintegração do corpo deve arrastar consigo estes elementos, que permanecem ligados a ele, e que, por conseguinte, são também abandonados pelo ser no momento da morte entendida no sentido comum do termo.
2.      Os próprios psicólogos reconhecem que o “mental” ou o pensamento individual, o único que eles alcançam, está além da condição espacial; é preciso toda a ignorância dos “neo-espiritualistas” para pretender “localizar” as modalidades extra-corporais do indivíduo, e para pensar que os estados póstumos situam-se em algum lugar do espaço.
3.      É este protótipo sutil, e não o embrião corporal, que é designado em sânscrito pela palavra pinda, como já indicamos; este protótipo pré-existe ao nascimento individual, pois ele está contido em Hiranyagarbha desde a origem da manifestação cíclica, como representando uma das possibilidades que deverão se desenvolver no decurso desta manifestação; mas sua pré-existência então não é mais que virtual, no sentido que não existe ainda um estado de ser do qual ele esteja destinado a tornar-se a forma sutil, porque este ser não está atualmente no estado correspondente, e portanto não existe enquanto indivíduo  humano; e a mesma consideração pode ser aplicada analogamente ao germe corporal, se o vemos também como pré-existindo de certo modo nos ancestrais do indivíduo encarado, e isto desde a origem da humanidade terrestre.
4.      O conjunto da manifestação universal é freqüentemente chamado em sânscrito pelo termo de samsâra; como já indicamos, ele comporta uma indefinidade de ciclos, ou seja de estados e de graus de existência, de tal modo que cada um desses ciclos, terminando no pralaya como o que aqui é considerado em particular, não constitui mais do que um momento do samsâra. De resto, lembraremos novamente para evitar qualquer equívoco, que o  encadeamento destes ciclos é em realidade de ordem causal e não sucessiva, e que as expressões empregadas a respeito por analogia com a ordem temporal devem ser vistas como puramente simbólicas.
5.      Este termo, que empregamos aqui para maior compreensão pela imagem que ele invoca, não deve ser entendido literalmente porque o estado de que se trata nada tem de corporal.
6.      Como já indicamos, este calor animador, representado como um fogo interno, é às vezes identificado a Vaishwânara, considerado  neste caso, não como a primeira condição de Atmâ de que falamos, mas como o “Regente do Fogo”, como veremos mais adiante; Vaishwânara é então um dos nomes de Agni, do qual ele designa uma função e um aspecto particulares.
7.      Se a “União” ou a “Identidade Suprema” só foi realizada virualmente, a “Libertação” tem lugar imediatamente no momento da morte; mas esta “Libertação” pode ter lugar também durante a vida, se a “União” for realizada plena e efetivamente; a distinção entre estes dois casos será melhor explicada a seguir.
8.      Pode mesmo ocorrer, em certos casos excepcionais, que a transposição destes elementos, se efetue de tal modo que a própria forma corporal desapareça sem deixar nenhum traço sensível, e que, em lugar de ser abandonada pelo ser como acontece normalmente, passe ela inteiramente, seja ao estado sutil, seja ao estado não-manifestado, de maneira que não acontece aí propriamente uma morte; lembremo-nos dos exemplos bíblicos de Enoch, Moisés e Elias.
9.      Os  modos principais da quantidade são designados expressamente nesta fórmula bíblica: “Dispuseste todas as coisas segundo seu peso, número e medida” (Sabedoria, XI, 21), à qual responde termo a termo (salvo a inversão dos dois primeiros) o Mane, Thekel, Phares (conta, peso, divisão) a visão de Baltazar (Daniel, V, 25-28).
10.  Prashna Upanishad, 6º Prashna, shruti 5; Mundaka Upanishad, 3º Mundaka, 2º Khanda, shruti 8. – Brahma-Sûtras, 4º Adhyâya, 2º Pâda, sûtras 8 a 16.
11.  Comentário de Ranganâtha sobre os Brahma-Sûtras.
12.  É por isso que Shiva, segundo a interpretação mais comum, é visto como “destruidor”, enquanto que ele é na verdade “transformador”.




















XX

A ARTÉRIA CORONÁRIA E O “RAIO SOLAR”



Devemos voltar agora àquilo que acontece ao ser que, não tendo sido “liberto” no  momento da morte, deve percorrer uma série de graus, representados simbolicamente como as etapas de uma viagem, e que são outros tantos estados intermediários, não definitivos, pelos quais é preciso passar antes de chegar ao termo final. É importante frisar, aliás, que todos estes estados, por serem ainda relativos e condicionados, não tem nenhuma medida comum com aquele que é o único absoluto e incondicionado; por elevados que possam ser alguns dentre eles quando comparados ao estado corporal, parece então que sua obtenção não aproxima absolutamente o ser de seu objetivo último, que é a “Libertação”; e, diante do Infinito, toda a manifestação é rigorosamente nula, de modo que as diferenças entre os estados que a constituem devem evidentemente sê-lo também, por consideráveis que sejam em si mesmas, e na medida em que só tenhamos em vistas os diversos estados condicionados que elas separam uns dos outros. Entretanto, não é menos verdade que a passagem para certos estados superiores constitui como que um encaminhamento na direção da “Libertação”, que se dá então “gradualmente” (krama-mukti), assim como o emprego de certos modos apropriados, tais como os do Hatha-Yoga, é uma preparação eficaz, embora não haja aí nenhuma comparação possível entre esses meios contingentes e a “União” que se busca realizar tomando-os como “suportes” (1). Mas deve ficar claro que a “Libertação”, uma vez realizada, implicará sempre uma descontinuidade em relação ao estado em que estiver o ser que a obtenha, e que, qualquer que seja este estado, esta descontinuidade não será nem mais nem menos profunda, porque, em todos os casos, não haverá, entre o estado do ser “não-liberto” e o do “liberto” nenhuma relação como a que existe entre diferentes estados condicionados. Isto é verdadeiro mesmo para os estados que estão de tal modo acima do estado humano que, vistos desde aí, poderiam ser tomados como o termo final para quê o ser deve tender finalmente; e esta ilusão é possível mesmo para estados que não passam em realidade de modalidades do estado humano, mas muito distantes, sob todos os aspectos, da modalidade corporal; achamos importante chamar a atenção para este ponto, para evitar quaisquer enganos e erros de interpretação, antes de retomarmos nossa exposição sobre as modificações póstumas a que pode estar submetido o ser humano.

“A “alma viva” (jîvâtmâ), com as faculdades vitais reabsorvidas em si (e nela permanecendo enquanto possibilidades, como já explicamos), tendo se retirado para sua própria morada (o centro da individualidade, designado simbolicamente como o coração, como vimos no princípio, e onde ela reside de fato na medida em que, em sua essência e independentemente de suas condições de manifestação, ela é realmente idêntica a Purusha, de que ela só se distingue ilusoriamente), o cume (ou seja a porção mais sublime) deste órgão sutil (figurado como um lótus de oito pétalas) flameja (2) e ilumina a passagem pela qual a alma deve partir (para atingir os diversos estados de que trataremos adiante): a coroa da cabeça, se o indivíduo for um Sábio (vidwân), ou uma outra região do organismo (correspondendo fisiologicamente ao plexo solar) (3), se for ignorante (avidwân) (4). Cento e uma artérias (nâdis, igualmente sutis e luminosas) (5) partem do centro vital (como os raios de uma roda partem do centro), e uma destas artérias (sutis) passa pela coroa da cabeça (região considerada como correspondente aos estados superiores do ser, quanto às suas possibilidades de comunicação com a individualidade humana, como vimos na descrição dos membros de Vaishwânara); ela é chamada sushumnâ” (6). Além desta, que ocupa uma posição central, existem duas outras nâdis que desempenham um papel particularmente importante (notadamente para a correspondência com a respiração na ordem sutil, e por conseguinte para as práticas do Hatha-Yoga): uma, situada à sua direita, é chamada pingalâ; a outra, à sua esquerda, é chamada idâ. Além disso, diz-se que a pingalâ corresponde ao Sol e idâ à Lua; ora, vimos antes que o Sol e a Lua são designados como os dois olhos de Vaishwânara; estes estão portanto em relação com as duas nâdis de que se trata, enquanto que sushumnâ, no meio delas, está em relação com o “terceiro olho”, ou seja com o olho frontal de Shiva (7); mas não podemos nos estender sobre estas considerações, que saem do objeto que estamos tratando presentemente.

“Por esta passagem (sushumnâ e a coroa da cabeça aonde ela termina), em virtude do Conhecimento adquirido e da consciência da Via meditada (consciência que é essencialmente de ordem extra-temporal, por ser, mesmo quando vista no estado humano, um reflexo dos estados superiores) (8), a alma do Sábio, dotada (em virtude da regeneração psíquica que fez dele um homem “duas vezes nascido”- dwija) (9) da Graça espiritual (Prasâda) de Brahma, que reside neste centro vital (em relação ao indivíduo humano considerado), esta alma escapa (liberta-se de toda ligação que pode subsistir ainda com a condição corporal) e encontra um raio solar (ou seja, simbolicamente, uma emanação do Sol espiritual, que é o próprio Brahma, desta vez visto no Universal: este raio solar não é outra coisa que uma particularização, em relação ao ser considerado, ou, se se preferir, uma “polarização” do princípio supra-individual Buddhi ou Mahat, pelo qual os múltiplos estados manifestados do ser estão ligados entre si e postos em comunicação coma personalidade transcendente, Atmâ, que é idêntica ao próprio Sol espiritual); é por este caminho (indicado como o trajeto do “raio solar”) que ela se dirige, seja de noite ou de dia, no inverno ou no verão (10). O contato de um raio do Sol (espiritual) com sushumnâ é constante, enquanto subsiste o corpo (enquanto organismo vivo e veículo do ser manifestado) (11); os raios da Luz (inteligível), emanados deste Sol, chegam a esta artéria (sutil), e, reciprocamente (em modo refletido), estendem-se da artéria ao Sol, como um prolongamento indefinido pelo qual se estabelece a comunicação, seja virtual, seja efetiva, da individualidade com o Universal) “ (12).

O que foi dito é completamente independente das circunstâncias temporais ou quaisquer outras contingências similares que acompanham a morte; não que as circunstâncias sejam sempre sem influência sobre a condição póstuma do ser, mas elas só podem ser consideradas em certos casos particulares, que só podemos indicar aqui, sem desenvolvimento. “A preferência pelo verão, como por exemplo no caso de Bhîsma, que esperou esta situação favorável para morrer, não concerne ao Sábio que, na contemplação de Brahma, cumpriu os ritos (relativos à “encantação”) (13), tais como prescritos no Vêda, e que, em conseqüência, adquiriu (ao menos virtualmente) a perfeição do Conhecimento Divino (14); mas ela concerne àqueles que seguiram as normas ensinadas pelo Sânkhya ou o Yoga-Shâstra, segundo o qual o tempo do dia e o da estação do ano não são indiferentes, mas tem (para a liberação do ser que sai do estado corporal após uma preparação cumprida conforme aos métodos de que se trata) uma ação efetiva enquanto elementos inerentes ao rito (no qual eles intervém como condições das quais dependem os efeitos que podem ser obtidos) (15)”. É claro que, neste último caso, a restrição aplica-se somente aos seres que só atingiram estados de realização correspondentes a extensões da individualidade humana; para aquele que efetivamente ultrapassou os limites da individualidade, a natureza dos meios empregados no ponto de partida da realização não podem mais influir em nada sobre sua condição ulterior.

















NOTAS


1.      Podemos lembrar uma analogia entre o que dizemos aqui  e o que, do ponto de vista da teologia católica, poderia ser dito dos sacramentos: nestes também, com efeito, as formas exteriores são propriamente “suportes”, e esses meios eminentemente contingentes tem um resultado que é de ordem totalmente diferente da deles próprios. É em razão de sua própria constituição e de suas condições particulares que o indivíduo humano tem necessidade de tais “suportes” como ponto de partida de uma realização que o ultrapassa; e a desproporção entre os meios e o fim corresponde à que existe entre o estado individual, tomado como base para esta realização, e o estado incondicionado que é ser termo. Não podemos desenvolver aqui uma teoria geral sobre a eficácia dos ritos; diremos simplesmente, para fazer compreender o princípio essencial, que tudo o que é contingente enquanto manifestação (a menos que se trate de determinações puramente negativas) não o é mais quando visto enquanto possibilidades permanentes e imutáveis, que tudo o que possui qualquer existência positiva deve também encontrar-se no não-manifestado, e que é isto o que permite uma transposição do individual no Universal, pela supressão das condições limitativas (portanto negativas) que são inerentes a toda manifestação.
2.      É evidente que este termo é daqueles que devem ser entendidos simbolicamente, porque não se trata do fogo sensível, mas de uma modificação da Luz inteligível.
3.      Os plexos nervosos, ou mais exatamente seus correspondentes na forma sutil (enquanto esta está ligada à forma corporal) são designados simbolicamente como “rodas” (chakras) ou ainda como “lótus” (padmas ou kamalas). – Quanto à coroa da cabeça, ela desempenha um papel importante nas tradições islâmicas concernentes às condições póstumas do ser humano; e podemos sem dúvida encontrar outros usos que se referem a considerações da mesma ordem (a tonsura dos padres católicos, por exemplo), embora a razão profunda possa ter sido esquecida.
4.      Brihad-Aranyaka Upanishad, 4º Adhyâya, 4º Brâhmana, shrutis 1-2.
5.      Lembramos que não se trata das artérias corporais da circulação sangüínea, nem dos canais que contém o ar respirado; é evidente, de resto, que, na ordem corporal, não pode haver nenhum canal passando pela coroa da cabeça, porque não há nenhuma abertura neste ponto do organismo. Por outro lado, convém lembrar que, embora a retirada de jîvâtmâ implique já o abandono da forma corporal, nem toda relação cessou entre esta e a forma sutil na fase de que se trata agora, porque pode-se continuar falando, ao descreve-la, dos diversos órgãos sutis segundo a correspondência que existe na vida fisiológica.
6.      Katha Upanishad, 2º Adhyâya, 6º Vallî, shruti 16.
7.      No aspecto deste simbolismo que se refere à condição temporal, o Sol e o olho direito correspondem ao futuro, a Lua e o olho esquerdo correspondem ao passado; o olho frontal corresponde ao presente que, do ponto de vista do manifestado, não passa de um instante imperceptível, comparável ao que é, na ordem espacial, o ponto geométrico sem dimensões: é por isso que um olhar deste terceiro olho destrui toda a manifestação (é o que se exprime simbolicamente ao dizer que ele reduz tudo a cinzas), e é também por isso que ele não é representado por nenhum órgão corporal; mas, quando se ultrapassa este ponto de vista contingente, o presente contém toda a realidade (assim como o ponto encerra em si todas as possibilidades espaciais), e a partir do momento em que a sucessão é transmutada em simultaneidade, todas as coisas permanecem no “eterno presente”, de modo que a destruição aparente é na verdade uma “transformação”. Este simbolismo é idêntico ao do Janus Bifrons dos Latinos, que tem duas faces, uma voltada para o passado e outra para o futuro, mas cujo verdadeiro rosto, aquele que vê o presente, não é nem um nem o outro que se pode ver.  – Assinalemos ainda que as nâdîs principais, em virtude da mesma correspondência, tem uma relação particular com o que se pode chamar, em linguagem ocidental, de “alquimia humana”, onde o organismo é representado como o athanor hermético, e que, à parte a terminologia diferente empregada por uns e outros, é bastante comparável ao Hatha-Yoga.
8.      É um grave erro falar aqui em “lembrança”, como o faz Colebrooke no texto já citado; a memória, condicionada pelo tempo no sentido mais estrito do termo, é uma faculdade relativa apenas à existência corporal, e que não se estende além dos limites desta modalidade particular e restrita da individualidade humana; ela faz parte daqueles elementos psíquicos a que aludimos mais acima, e cuja dissociação é uma conseqüência direta da morte corporal.
9.      A concepção do “segundo nascimento”, como já observamos, é daquelas que são comuns a todas as doutrinas tradicionais; no Cristianismo, em particular, a regeneração psíquica é representada claramente pelo batismo. – Cf. esta passagem do Evangelho: “Se um homem não nasce de novo, ele não pode ver o Reino de Deus... Em verdade, eu vos digo, se um homem não renasce da água e do espírito, ele não pode entrar no Reino de Deus... Não vos admireis do que eu vos digo, que é preciso nascer de novo” (São João, III, 3-7). A água é vista por muitas tradições como o meio original do seres, e a razão está no seu simbolismo, como já explicamos, através do qual ela representa Mûla-Prakriti; num sentido superior, e por transposição, é a própria Possibilidade Universal; aquele que “nasce da água” torna-se “filho da Virgem”, portanto irmão adotivo do Cristo e co-herdeiro do “Reino de Deus”. Por outro lado, se lembrarmos que o “espírito” mencionado no texto citado é o Ruahh hebraico (associado aqui à água como princípio complementar, como no princípio do Gênese), e que este designa ao mesmo tempo o ar, encontraremos a idéia da purificação pelos elementos, tal como ela se acha em todos os ritos iniciáticos, assim como nos ritos religiosos; e, de resto, a própria iniciação é sempre vista como um “segundo nascimento”, simbolicamente quando não passa de um formalismo mais ou menos exterior, mas efetivamente quando é conferida de modo real àquele que está qualificado para a receber.
10.  Chhândogya Upanishad, 8º Prapâthaka, 6º Khanda, shruti 5.
11.  Isto bastaria para mostrar claramente que não pode se tratar de um raio solar no sentido físico (para o qual o contato permanente não seria possível), e que aquilo que é designado assim só pode sê-lo simbolicamente. – O raio que está em conexão com a artéria coronária é também chamado sushumnâ.
12.  Chhândogya Upanishad, 8º Prapâthaka, 6º Khanda, shruti 2.
13.  Por este termo de “encantação”, no sentido em que o empregamos aqui, é preciso entender uma aspiração do ser inclinando-se para o Universal, com o fito de obter uma iluminação interior, quaisquer que sejam os meios exteriores, gestos (mudrâs), palavras ou sons musicais (mantras), figuras simbólicas (yantras) ou outros, que podem ser empregados acessoriamente como suportes do ato interior, e cujo efeito é o de determinar vibrações rítmicas que terão uma repercussão através da série indefinida dos estados do ser. Esta “encantação” não tem portanto nada em comum com as práticas mágucas às quais se dá às vezes o mesmo nome no Ocidente, assim como não tem nada a ver com a prece; aquilo de que se trata aqui refere-se exclusivamente ao domínio da realização metafísica.
14.  Dizemos virtualmente porque, se esta perfeição fosse efetiva, a “Libertação” já teria sido obtida por isso mesmo; o Conhecimento pode ser teoricamente perfeito, embora a realização correspondente só tenha sido ainda parcialmente cumprida.
15.  Brahma-Sûtras, 4º Adhyâya, 2º Pâda, sûtras 17-21.


XXI

A “VIAGEM DIVINA” DO SER

NA VIA DA LIBERTAÇÃO




A continuação da viagem simbólica cumprida pelo ser em seu processo de liberação gradual, a partir da terminação da artéria coronária (sushumnâ), comunicando constantemente com um raio do Sol espiritual, até seu destino final, efetua-se segundo a Via que é marcada pelo trajeto desse raio percorrido em sentido inverso (segundo sua direção refletida) até sua fonte, que é este próprio destino. Entretanto, se considerarmos que uma descrição deste gênero pode aplicar-se aos estados póstumos percorridos sucessivamente, de um lado, pelos seres que obtiveram a “Libertação” a partir do estado humano, e, de outro lado, por aqueles que, após a reabsorção da individualidade humana, terão ao contrário que passar para outros estados de manifestação individual, deveria haver dois itinerários diferentes correspondendo aos dois casos: é dito, com efeito, que os primeiros seguem a “Via dos Deuses” (dêva-yâna), enquanto que os segudos seguem a “Via dos Ancestrais” (pitri-yâna). Estes dois itinerários simbólicos são resumidos na seguinte passagem do Bhagavad-Gîtâ: “Em que momentos aqueles que tendem à União (sem tê-la efetivamente realizado) deixam a existência manifestada, seja sem retorno, seja para retornar a ela,  eu vou ensinar-te, ó Bharata. Fogo, liz, dia, lua crescente, semestre ascendente do sol dirigiindo-se para o norte, é sob estes signos luminosos que vão a Brahma os homens que conhecem Brahma. Fumaça, noite, lua minguante, semestre descendente do sol dirigindo-se para o sul, é sob estes signos sombrios que vão para a esfera da Lua (literalmente: “que atingem a luz lunar”) para voltar em seguida (para novos estados de manifestação). São as duas vias permanentes, uma clara, outra escura, do mundo manifestado (jagat); por uma delas não há retorno (do não-manifestado para o manifestado); pela outra volta-se atrás (para a manifestação)” (1).

O mesmo simbolismo está exposto, com mais detalhes, em diversas passagens do Vêda; e antes de tudo, no que se refere ao pitri-yâna, diremos apenas que ele não conduz além da Esfera da Lua, de modo que, por ele, o ser não se liberta da forma, ou seja da condição individual entendida no seu sentido mais geral, pois, como já dissemos, é precisamente a forma que define a individualidade como tal (2). Segundo as corepondências que indicamos mais acima, esta Esfera da Lua representa a “memória cósmica” (3): é por isso que ela é a morada dos Pitris, ou seja dos seres do ciclo antecedente, que são considerados como os geradores do ciclo atual, em razão do encadeamento causal de quê a sucessão dos ciclos é apenas o símbolo; e é daí que vem a denominação de pitri-yâna, enquanto que a de dêva-yâna designa naturalmente a Via que conduz aos estados superiores do ser, portanto para a assimilação à própria essência da Luz inteligível. É na Esfera da Lua que se disolvem as formas que cumpriram o curso completo de seu desenvolvimento; e é aí tambem que estão contidos os germes das formas ainda não desenvolvidas, pois, para a forma como para todo o resto, o ponto de partida e o ponto de chegada situam-se necessariamente dentro da mesma ordem de existência. Para precisar mais estas informações, seria preciso referirmo-nos expressamente à doutrina dos ciclos; mas aqui basta dizer que, sendo cada ciclo na realidade um estado de existência, a forma antiga que deixa o ser não liberto da individualidade e a forma nova da qual ele se reveste pertencem forçosamente a dois estados diferentes (a passagem de um para outro efetua-se na Esfera da Lua, onde se encontra o ponto comum aos dois ciclos), pois um ser, qualquer que seja, não pode passar duas vezes pelo mesmo estado, como já explicamos ao mostrar o absurdo das teorias “reincarnacionistas” inventadas por certos Ocidentais modernos (4).

Insistiremos um pouco mais sobre o dêva-yâna, que se refere à identificação efetiva do centro da individualidade (5), aonde todas as faculdades foram precedentemente reabsorvidas na “alma viva” (jîvâtmâ), com o próprio centro do ser total, residência do Universal Brahma. Este processo não se aplica, repetimos, senão no caso em que esta identificação não foi realizada durante a vida terrestre, nem no momento mesmo da morte; a partir  do momento em que ela se cumpre, de resto, já não existe uma “alma viva” distinta do “Si”, porque o ser daí para diante saiu da condição individual: esta distinção, que só teve uma existência ilusória (ilusão que é inerente à sua condição mesma), cessa a partir do momento em que ela atinge a realidade absoluta: a individualidade desaparece com todas as determinações limitativas e contingentes, e apenas a personalidade permanece na plenitude do ser, contendo em si, principialmente, todas as suas possibilidades em estado permanente e não-manifestado.

Segundo o simbolismo  védico, tal como encontramos em muitos textos dos Upanishads (6), o ser que cumpriu o dêva-yâna, tendo deixado a Terra (Bhû, ou seja o mundo corporal ou o domínio da manifestação grosseira), é primeiro conduzido para a luz (archis), pela qual se deve entender aqui o Reino do Fogo (Têjas), cujo regente é Agni, chamado também Vaishwânara, num significado particular deste nome. É preciso frisar, aliás, que, quando encontramos na enumeração desses estados sucessivos a designação dos elementos, esta só pode ser simbólica, pois os bhûtas pertencem todos propriamente ao mundo corporal, que é representado pela Terra (a qual, enquanto elemento, é Prithvî); trata-se na realidade de diferentes modalidades do estado sutil. Do Reino do Fogo, o ser é conduzido aos diversos domínios dos regentes (dêvatâs,  “deidades”) ou distribuidores do dia, da semi-lunação clara (período crescente ou primeira metade do mês lunar) (7), dos seis meses de ascensão do sol rumo ao norte, e enfim do ano, sendo que tudo isto deve ser entendido como correspondências das divisões do tempo (os “momentos” de que fala o Bhagavad-Gîtâ) transpostas por analogia aos prolongamentos extra-corporais do estado humano, e não destas divisões em si, que só são aplicáveis literalmente ao estado corporal (8). Daí, ele passa ao Reino do Ar (Vâyu), cujo Regente (designado pelo mesmo nome) o dirige para o lado da Esfera do Sol (Sûrya ou Aditya), a partir do limite superior de seu domínio, por uma passagem que é comparada ao centro da roda de um carro, ou seja a um eixo fixo ao redor do qual efetua-se a rotação ou a mutação de todas as coisas contingentes (não se deve esquecer que Vâyu é essencialmente o princípio “móvel”), mutação à qual o ser escapará daqui para frente (9). Ele passa a seguir para a Esfera da Lua (Chandra ou Soma), onde ele não permanece mais como aquele que seguiu o pitri-yâna, mas de onde ele ascende à região do relâmpago (vidyut) (10), acima da qual está o Reino da Água (Ap), cujo regente é Varuna (11) (como analogamente o raio está abaixo das nuvens de chuva). Trata-se aqui da Águas superiores ou celestes, que representam o conjunto das possibilidades informais (12), por oposição às Águas inferiores, que representam o conjunto das possibilidades formais; não se pode mais tratar destas últimas, desde que o ser ultrapassou a Esfera da Lua, porque esta é, como já dissemos, o meio cósmico aonde se elaboram os germes de toda a manifestação formal. Enfim, o resto da viagem efetua-se pela região luminosa intermediária (Antariksha, de que falamos precedentemente na descrição dos sete membros de Vaishwânara, mas com uma aplicação um pouco diferente) (13) que é o Reino de Indra (14), e que é ocupado pelo Éter (Akâsha, representando aqui o estado primordial de equilíbrio indiferenciado), até o centro espiritual onde reside Prajâpati, o “Senhor dos seres produzidos”, que é, como já indicamos, a manifestação principial e a expressão direta do próprio Brahma em relação ao ciclo total ou ao grau de existência a que pertence o estado humano, pois este deve ser ainda visto aqui, embora apenas em princípio, como sendo o estado em que o ser tomou seu ponto de partida, e com o qual, mesmo saído da forma ou da individualidade, ele guarda certos laços na medida em que ele não atingiu o estado absolutamente incondicionado, ou seja enquanto a “Libertação”, para ele, ainda não foi plenamente efetiva.

Existem, nos diversos textos em que é descrita a “viagem divina”, algumas variações, de resto pouco importantes e mais aparentes do que reais no fundo, quanto ao número e à ordem de enumeração das estações intermediárias; mas a exposição que precede é a que resulta de uma comparação geral destes textos, e assim ela pode ser vista como a estrita expressão da doutrina tradicional sobre esta questão (15). De resto, nossa intenção não é a de nos estendermos em demasia sobre a explicação mais detalhada de todo este simbolismo, que é, sobretudo, bastante claro em si mesmo, em seu conjunto, para qualquer um que tenha um mínimo de intimidade com as concepções orientais (poderíamos dizer,  com as concepções tradicionais sem restrição) e com seus modos gerais de expressão; sua interpretação se acha ainda facilitada pelas considerações que expusemos, e onde encontram-se diversas destas transposições analógicas que constituem o fundo de todo simbolismo (16). Lembraremos ainda, com o risco de nos repetirmos, e porque é essencial para a compreensão destas coisas: deve ficar bem entendido que, quando se trata, por exemplo, das Esferas do Sol e da Lua, não se trata jamais do sol e da lua enquanto astros visíveis, que pertencem simplesmente ao domínio corporal, mas sim de princípios universais que estes astros representam no mundo sensível, ou ao menos da manifestação desses princípios em graus diversos, em virtude das correspondências analógicas que ligam entre si todos os estados do ser (17). Com efeito, os diferentes Mundos (Lokas), Esferas planetárias e Reinos elementares, que são descritos simbolicamente (mas apenas simbolicamente, porque o ser que os percorre não está mais submetido ao espaço) como regiões, não passam na verdade de estados diferentes (18); e este simbolismo espacial (assim como o simbolismo temporal que serve notadamente para expressar a teoria dos ciclos) é bastante natural e de uso muito difundido, de modo que só se enganam aqueles que são incapazes de ver outra coisa que não o sentido mais grosseiramente literal; estes jamais compreenderão o que é um símbolo, pois suas concepções estão irremediavelmente limitadas à existência terrestre e ao mundo corporal, onde, pela mais ingênua das ilusões, eles pretendem encerrar toda a realidade.

A posse efetiva dos estados de que se trata pode ser obtida pela identificação com os princípios que são designados como seus respectivos Regentes, identificação que, em todos os casos, opera-se pelo conhecimento, com a condição de que este não seja simplesmente teórico; a teoria não pode ser vista senão como uma preparação, de resto indispensável, para a realização correspondente. Mas, para cada um destes princípios considerados em particular e isoladamente, os resultados de uma tal identificação não se estendem além de seu próprio domínio, de modo que a obtenção de tais estados, ainda condicionados, só constitui uma etapa preliminar, uma espécie de encaminhamento (no sentido que precisamos mais acima e com as restrições que são inerentes a este modo de falar) na direção da “Identidade Suprema”, objetivo último atingido pelo ser na sua completa e total universalização, e cuja realização, para aqueles que devem cumprir previamente o dêva-yâna, pode, como já foi dito, ser diferenciada até o pralaya, sendo que a passagem de cada estado ao seguinte se torna possível apenas ao ser que obteve o grau correspondente de conhecimento efetivo (19).

Portanto, no caso presente, que é o do krama-mukti, o ser, até o pralaya, pode permanecer na ordem cósmica e não atingir a posse efetiva dos estados transcendentes, na qual consiste propriamente a verdadeira realização metafísica; mas ele não deixou de obter, pelo fato mesmo de ter ultrapassado a Esfera da Lua (saindo assim da “corrente das formas”), esta “imortalidade virtual” de que falamos mais acima. É por isso que o Centro espiritual de que se tratou não é ainda senão o centro de um certo estado ou de um certo grau de existência, aquele ao qual pertence o ser enquanto humano, e ao qual ele continua a pertencer de certa forma, porque sua total universalização, em modo supra-individual, ainda não foi realizada atualmente; e é também por isso que foi dito que, em tal condição, os entraves individuais não podem ainda ser completamente destruídos. É exatamente neste ponto que se detém as concepções que podemos chamar de religiosas, que referem-se sempre a extensões da individualidade humana, de modo que os estados que elas permitem atingir devem forçosamente conservar alguma relação com o mundo manifestado, mesmo quando eles o ultrapassam, e não são estes os estados transcendentes cujo acesso só é obtido pelo Conhecimento metafísico puro. Isto pode aplicar-se notadamente aos “estados místicos”; e, no que diz respeito aos estados póstumos, existe a mesma diferença, entre a “imortalidade” ou a “salvação” entendidos no sentido religioso (o único que é considerado pelos Ocidentais) e a “Libertação”, que existe entre a realização mística e a realização metafísica cumprida durante a vida terrestre; não se pode falar aqui assim, com todo rigor, senão de “imortalidade virtual”, e, como fim último, de “reintegração em modo passivo”; este último termo aliás escapa do ponto de vista religioso tal como se entende normalmente, e no entanto é só assim que se pode entender o emprego que se faz do termo “imortalidade” num sentido relativo, e que se pode estabelecer uma espécie de ligação ou de passagem deste sentido relativo ao sentido absoluto e metafísico em que o mesmo termo é tomado pelos Orientais. Tudo isto, de resto, não nos impede de admitir que as concepções religiosas são susceptíveis de uma transposição pela qual elas recebem um sentido superior e mais profundo, e isto porque este sentido está também nas Escrituras sagradas sobre as quais elas repousam; mas, por uma transposição como esta, elas perdem seu caráter especificamente religioso, porque este é ligado a certas limitações, fora das quais estamos na ordem metafísica pura. Por outro lado, uma doutrina tradicional que, como a doutrina hindu, não se coloca do ponto de vista das religiões ocidentais, nem por isso deixa de reconhecer a existência de estados que são vistos mais particularmente por estas, e é natural que seja assim, uma vez que estes estados são efetivamente possibilidades do ser; mas ela não pode lhes atribuir a mesma importância que lhes dão as doutrinas que não vão além (pois a perspectiva muda conforme o ponto de vista), e, porque ela os ultrapassa, ela os situa no seu lugar exato dentro da hierarquia total.

Assim, quando se diz que o termo da “viagem divina” é o Mundo de Brahma (Brahma-Loka), aquilo de que se trata não é, imediatamente ao menos, o Supremo Brahma, mas apenas sua determinação como Brahmâ, que é Brahma “qualificado” (saguna) e, como tal, considerado como sendo o “efeito da Vontade produtiva (Shakti) do Princípio Supremo (Kârya-Brahma) (20). Quando se trata aqui de Brahmâ, é preciso considerá-lo, em primeiro lugar, como idêntico a Hiranyagarbha, princípio da manifestação sutil, portanto de todo o domínio da existência humana em sua integralidade; e, com efeito, dissemos antes que o ser que obteve a “imortalidade virtual” acha-se por assim dizer “incorporado”, por assimilação, a Hiaranyagarbha; e este estado, no qual ele pode permanecer até o final do ciclo (para o qual somente Brahmâ existe como Hiranyagarbha), é o que se considera mais comumente como o Brahma-Loka (21). Entretanto, assim como o centro de qualquer estado de um ser tem a possibilidade de identificar-se com o centro do ser total, o centro cósmico onde reside Hiranyagarbha identifica-se virtualmente com o centro de todos os mundo (22); queremos dizer que, para o ser que franqueou um certo grau de conhecimento, Hiranyagarbha aparece como idêntico a um aspecto mais elevado do “Não-Supremo” (23), que é Ishwara ou o Ser Universal, princípio primeiro de toda a manifestação. Neste grau, o ser não se encontra mais no estado sutil, mesmo que seja apenas em princípio, mas sim no não-manifestado; mas ele conserva certoas relações com a ordem da manifestação universal, porque Ishwara é propriamente o princípio desta, embora ele não estaje ligado por nenhum laço particular ao estado humano e ao ciclo especial de que este faz parte. Esse grau corresponde à condição de Prâjna, e é o ser que não vai mais além que é dito estar unido a Brahma, mesmo depois do pralaya, do mesmo modo como no sono profundo; daí, o retorno a um outro ciclo de manifestação é ainda possível; mas porque o ser está livre da individualidade (contrariamente ao que acontece com aquele que seguiu o pitri-yâna), este ciclo só pode ser um estado informal e supra-individual (24). Enfim, no caso em que a “Libertação” deve ser obtida a partir do estado humano, há mais do que dissemoa até agora, e então o termo verdadeiro não é mais o Ser Universal, mas o próprio Supremo Brahma, ou seja Brahma “não-qualificado” (nirguna) na sua Total Infinitude, compreendendo ao mesmo tempo o Ser (ou as possibilidads de manifestação) e o Não-Ser (ou as possibilidades de não-manifestação), e princípio de um e de outro, portanto além dos dois (25), ao mesmo tempo em que os contém igualmente conforme o ensinamento que reportamos a respeito do estado incondicionado de Atmâ, que é preciso aquilo de que se trata agora (26). É neste sentido que a morada de Brahma (ou de Atmâ neste estado incondicionado) está mesmo “além do Sol espiritual” (que é Atmâ em sua terceira condição, idêntico a Ishwara) (27), como ele está além de todas as esferas dos estados particulares de existência, individuais ou extra-individuais; mas esta morada não pode ser atingida diretamente por aqueles que só meditaram sobre Brahma atavés de um símbolo (pratîka), pois cada meditação (upâsanâ) só tem um resultado definido e limitado (28).

A “Identidade Suprema” é portanto a finalidade do ser “liberto”, ou seja livre das condições da existência individual humana, assim como de todas as outras condições particulares e limitativas (upâdhis), que são vistas como laços (29). Desde que o homem (ou melhor o ser que estava precedentemente no estado humano) é assim “liberto”, o “Si” (Atmâ) é plenamente realizado em sua própria natureza “não-dividida”, e ele torna-se então, segudo Audulomi, uma consciência onipresente (tendo por atributo chaitanya); é o que também ensina Jaimini, mas especificando por outro lado que esta consciência manifesta os atributos divinos (aishwarya) como faculdades transcendentes, pelo fato mesmo de que ela está unida à Essência Suprema (30). Este é o resultado da libertação completa, obtida na plenitude do Conhecimento Divino; quanto àqueles cuja contemplação (dhyâna) só foi parcial, ainda que ativa (tendo a realização metafísica permanecido incompleta), ou puramente passiva (como a dos místicos ocidentais), eles usufruem de certos estados superiores (31), mas sem poder chegar à União perfeita (Yoga), que é una com a “Libertação” (32).













NOTAS



1.      Bhagavad-Gîtâ, VIII, 23-26.
2.      Sobre o pitri-yâna, ver Chhândogya Upanishad, 5º Prapâthaka, 10º Khanda, shrutis 3-7; Brihad-Arânyaka Upanishad, 6º Adhyâya, 2º Brâhmana, shruti 16.
3.      É por isso que se diz simbolicamente, mesmo no Ocidente, que aí se encontra tudo o que foi perdido neste mundo terrestre (Cf. Ariosto, Orlando Furioso).
4.      Tudo o que foi dito tem ainda uma relação com o simbolismo de Janus: a Esfera da Lua determina a separação dos estados superiores (não-individuais) e dos estados inferiores (individuais); daí o duplo papel da Lua como Janua Coeli (cf. as litanias da Virgem na liturgia católica) e Janua Inferni, o que corresponde de certo modo à distinção do dêva-yâna e do pitri-yâna. – Jana ou Diana é a mesma coisa que o feminino de Janus; e, por outro lado, yâna deriva da raiz verbal i, “ir” (latim ire), na qual alguns, notadamente Cícero, viram também a raiz do próprio nome Janus.
5.      É claro que aqui se trata da individualidade integral, e não reduzida à simples modalidade corporal, que, de resto, não existe mais para o ser considerado, porque é de estados póstumos de que se está falando.
6.      Chhândogya Upanishad, 4º Prapâthaka, 15º Khanda, shrutis 5-6, e 5º Prapâthaka, 10º Khanda, shrutis 1-2; Kaushîtakî Upanishad, 1º Adhyâya, shruti 3; Brihad-Arânyaka Upanishad, 5º Adhyâya, 10º Brâhmana, shruti 1 e 6 e 6º Adhyâya, 2º Brâhmana, shruti 15.
7.      Este período crescente da lunação é chamada pûrva-paksha, “primeira parte”, e o período decrescente uttara-paksha, “última parte” do mês. – Estas expressões tem também, aliás, uma outra acepção bem diferente: numa discussão, elas designam respectivamente uma objeção e sua refutação.
8.      Poderia ser interessante estabelecer uma concordância desta descrição simbólica com aquelas que são dadas por outras doutrinas tradicionais (cf. notadamente o Livro dos Mortos dos antigos Egípcios e a Pistis Sophia dos Gnósticos alexandrinos, assim como o Bardo-Thödol tibetano); mas isto nos levaria muito longe. – Na tradição hindu, Ganêsha, que representa o Conhecimento, é designado também como o “Senhor das deidades”; seu simbolismo, relacionado com as divisões temporais de que se trata, daria lugar a desenvolvimentos muito interessantes, e também a instrutivas aproximações com as antigas tradições ocidentais; todas estas coisas serão talvez por nós retomadas em outra ocasião.
9.      Para empregar a linguagem dos filósofos gregos poderíamos dizer que ele vai escapar da “geração” (genesis) e da “corrupção” (ftora), termos que são sinônimos de “nascimento” e de “morte” quando estes últimos são aplicados a todos os estados de manifestação individual; e, a partir do que dissemos da Esfera da Lua e seu significado, podemos compreender também o que queriam dizer estes mesmos filósofos, em particular Aristóteles, quando ensinavam que apenas o mundo sublunar está submetido à “geração” e à “corrupção”: este mundo sublunar, com efeito, representa na realidade a “corrente das formas” da tradição extremo-oriental, e os Céus, sendo os estados informais, são necessariamente incorruptíveis, vale dizer que não há mais dissolução ou desintegração possível para o ser que atingiu estes estados.
10.  Este termo vidyut parece estar também relacionado com a raiz vid, em razão da conexão entre a luz e a vista; sua forma é próxima de vidyâ: o relâmpago ilumina as trevas; estas são símbolo da ignorância (avidyâ), e o conhecimento é uma “iluminação” interior.
11.  Lembremos de passagem, que este nome é manifestamente idêntico ao grego Ouranos, embora certos filósofos tenham pretendido contestar esta identidade; o Céu, chamado Ouranos, é de fato a mesma coisa que as “Águas superiores” de que fala o Gênesis, e que reencontramos no simbolismo hindu.
12.  As Apsarâs são as Ninfas celestes, que simbolizam também as possibilidades informais; elas correspondem às Hûris do Paraíso islâmico (El-Jannah), que, salvo nas transposições de que é susceptível do ponto de vista esotérico e que lhe conferem significados de ordem mais elevada, é propriamente o equivalente do Swarga hindu.
13.  Dissemos em outra parte que é o meio de elaboração das formas porque, na consideração dos “três mundos”, esta região corresponde ao domínio da manifestação sutil, e ela se estende da Terra até os Céus; aqui, ao contrário, a região intermediária de que se trata está situada além da Esfera da Lua, portanto no informal, e ela se identifica ao Swarga, se entendemos por este termo, não mais os Céus ou os estados superiores em seu conjunto, mas apenas sua porção menos elevada. Lembraremos ainda, a propósito, como a observação de certas relações hierárquicas permite a aplicação de um mesmo simbolismo a diferentes graus.
14.  Indra, cujo nome significa “poderoso”, é também designado como o Regente do Swarga, o que se explica pela identificação indicada na nota precedente; este Swarga é um estado superior, mas não definitivo, e ainda condicionado, embora informal.
15.  Para esta descrição das diversas fases do dêva-yâna, ver Brahma-Sûtras, 4º Adhyâya, 3º Pâda, sûtras 1-6.
16.  Devemos neste momento nos desculpar por termos multiplicado as notas e as haver estendido mais do que o de costume; nós o fizemos sobretudo em relação às interpretações deste gênero, e também às aproximações a estabelecer com outras doutrinas; isto foi necessário para não interromper a seqüência de nossa exposição com digressões freqüentes.
17.  Os fenômenos naturais em geral, e notadamente os fenômenos astronômicos, jamais são vistos pelas doutrinas tradicionais senão a título de simples modo de expressão, como simbolizando certas verdades de ordem superior; e, se eles as simbolizam de fato, é porque suas leis, no fundo, não são outra coisa que a expressão destas verdades em um domínio particular, uma espécie de tradução dos princípios correspondentes, adaptada naturalmente às condições próprias do estado corporal e humano. Podemos compreender assim o quão grande é o erro daqueles que querem ver um “naturalismo” nestas doutrinas, ou que acreditam que elas só se propõem a descrever e explicar os fenômenos do modo como o faz a ciência “profana”, embora sob formas diferentes; isto eqüivale a inverter as relações e tomar o simbolismo por aquilo que ele representa, o signo pela coisa ou a idéia significada.
18.  A palavra sânscrita loka é idêntica ao latim locus, “lugar”; podemos frisar que, na doutrina católica, o Céu, o Purgatório e o Inferno são igualmente designados como “lugares”, que são tomados também para representar simbolicamente estados, pois não se poderia evidentemente, mesmo na interpretação mais exterior desta doutrina, situar no espaço estes estados póstumos; este engano só se produziu nas teorias “neo-espiritualistas” que surgiram no Ocidente moderno.
19.  É importante notar aqui que é a realização imediata da “Identidade Suprema” que os Brâhmanes buscam exclusivamente, enquanto que os Kshatriyas desenvolveram de preferência o estudo dos estados que correspondem aos diversos estágios do dêva-yâna tanto quanto do pitri-yâna.
20.  A palavra kârya, “efeito”, é derivada da raiz verbal kri, “fazer”, e do sufixo “ya”, que marca um cumprimento futuro: “aquilo que deve ser feito” (ou mais exatamente “aquilo que vai ser feito”, pois ya é uma modificação da raiz i, “ir”); este termo implica assim uma certa idéia de “devir”, o que supõe necessariamente que ele se aplica a algo que deve ser visto em relação à manifestação. – A propósito da raiz kri, lembraremos que ela é idêntica à do latim creare, o que mostra que esta última palavra, em sua acepção primitiva, não tinha outro sentido que o de ‘fazer”; a idéia de “criação”, tal como se entende hoje, idéia que é de origem hebraica, só veio prevalecer quando a língua latina passou a ser empregada para exprimir as concepções judaico-cristãs.
21.  É isto o que corresponde o mais exatamente aos “Céus” ou aos “Paraísos” das religiões ocidentais (nas quais, a este respeito, incluímos o Islamismo); quando se trata de uma pluralidade de “Céus” (freqüentemente representada pelas correspondências planetárias), devemos entender com isto os estados superiores à Esfera da Lua (às vezes considerada como o “primeiro Céu”, quanto a seu aspecto de Janua Coeli), daí até o Brahma-Loka inclusive.
22.  Aplicamos aqui ainda a noção de analogia constitutiva entre o “microcosmo” e o “macrocosmo”.
23.  Esta identificação de um certo aspecto com outro aspecto superior, e assim por diante em diversos graus até o Princípio Supremo, não passa do desaparecimento das ilusões “separativas, que certas iniciações representam como uma série de véus que caem sucessivamente.
24.  Simbolicamente, diremos que um tal ser passou da condição dos homens à dos Dêvas (o que poderíamos chamar de um estado “angélico” em linguagem ocidental); ao contrário, no final do pitri-yâna,  existe retorno ao “mundo do homem” (mânava-loka), vale dizer à condição individual, designada assim por analogia com a condição humana, embora necessariamente diferente, pois o ser não pode voltar a um estado pelo qual ele já passou.
25.  Lembraremos que se pode entretanto entender o Não-Ser metafísico, assim como o não-manifestado (na medida em que este não é apenas o princípio imediato do manifestado, que é o Ser), num sentido total em que ele se identifica ao Princípio Supremo. De qualquer modo, aliás, entre o Não-Ser e o Ser, como entre o não-manifestado e o manifestado (e isto mesmo que, no último caso, não se vá além do Ser), a correlação não é mais do que pura aparência, pois a desproporção metafísica que existe entre os dois termos não permite nenhuma comparação.
26.  A este propósito, citaremos uma vez ainda, para frisar as concordâncias entre as diversas tradições, uma passagem do Tratado da Unidade (Risâlatul-Ahadiyah), de Mohyddin Ibn Arabî: “Este imenso pensamento (da “Identidade Suprema”) só pode convir àquele cuja alma é mais vasta que os dois mundos (manifestado e não-manifestado). Quanto àquele cuja alma é apenas do tamanho dos dois mundos (aquele que alcançou o ser universal sem ultrapassá-lo), ele não lhe convém. Pois, na verdade, este pensamento é maior que o mundo sensível (ou manifestado, pois o termo “sensível” deve ser transposto analogicamente e não tomado em seu sentido literal) e o mundo supra-sensível (ou não-manifestado, segundo a mesma transposição), tomados ambos em seu conjunto”.
27.  Os orientalistas, que não compreenderam o que significa verdadeiramente o Sol, e que o entendem no sentido físico, tem interpretações estranhas a respeito; é assim que Oltramare escreve ingenuamente: “Por suas auroras e crepúsculos, o sol consome a vida dos mortais; o homem liberto existe para além do mundo do sol”. Não parece uma tentativa de escapar à velhice a alcançar uma imortalidade corporal, como a que buscam certas seitas ocidentais contemporâneas?
28.  Brahma-Sûtras, 4º Adhyâya, 3º Pâda, sûtras 7-16.
29.  Aplicam-se a estas condições palavras como bandha e pâsha, cujo sentido próprio é o de “laço”; do segundo destes termos deriva a palavra pashu, que significa assim, etimologicamente, um ser vivo qualquer, ligado por tais condições. Shiva é chamado Pashupati, o “Senhor dos seres ligados”, porque é por sua ação “transformadora” que eles são “libertados”. – A palavra pashu é freqüentemente tomada num,a acepção especial, para designar uma vítima animal do sacrifício (yajna, yâga ou mêdha), a qual é aliás “libertada”, ao menos virtualmente, pelo próprio sacrifício; mas não podemos desenvolver aqui, mesmo sumariamente, uma teoria do sacrifício, que, assim entendido, é essencialmente destinado a estabelecer uma certa comunicação com os estados superiores, e deixa completamente de lado as idéias ocidentais de “remissão” ou de “expiação” e outras do gênero, idéias que só se podem compreender do ponto de vista religioso.
30.  Cf. Brahma-Sûtras, 4º Adhyâya, 4º Pâda, sûtras 5-7.
31.  A possessão de tais estados, que são idênticos aos diversos “Céus”, constitui, para o ser, uma aquisição pessoal e permanente malgrado sua relatividade (trata-se sempre de estados condicionados, embora supra-individuais), aquisição à qual não se poderia aplicar a idéia ocidental de “recompensa”, pelo fato mesmo que se trata de um fruto, não da ação, mas do conhecimento; esta idéia é aliás, assim como a de “mérito” que é seu corolário, uma noção de ordem exclusivamente moral, que não tem lugar no domínio metafísico.
32.  O Conhecimento a este respeito, é portanto de duas espécies, e ele é chamado de “supremo” ou “não-supremo”, segundo diga respeito a Para-Brahma ou a Apara-Brahma, conduzindo, por conseguinte, a um ou a outro.



















XXII

A LIBERTAÇÃO FINAL




A “Libertação” (Moksha ou Mukti), ou seja a liberação definitiva do ser de que falamos por último, e que é o termo último para o qual ele tende, difere absolutamente de todos os estados pelos quais este ser passou para chegar aí, pois ela é a obtenção do estado supremo e incondicionado, enquanto que todos os outros estados, por elevados que sejam, são ainda condicionados, vale dizer submetidos a certas limitações que os definem, que os fazem ser o que são, que os constituem propriamente enquanto estados determinados. Isto aplica-se tanto aos estados supra-individuais como aos estados individuais, embora suas condições sejam outras; e mesmo o grau do Ser puro, que está além de toda existência no sentido próprio do termo, ou seja de toda manifestação tanto informal como formal, implica no entanto ainda uma determinação, que, mesmo sendo primordial e  principial , nem por isso deixa de ser uma limitação. É pelo Ser que subsistem todas as coisas em todos os modos da Existência universal, e o Ser subsiste por si mesmo; ele determina todos os estados dos quais ele é o princípio, e ele só é determinado por si mesmo; mas determinar-se a si próprio, é ainda ser determinado, portanto limitado de algum modo, de sorte que o Infinito não pode ser atribuído ao Ser, que não deve absolutamente ser considerado como o Princípio Supremo. Podemos com isto ver a insuficiência metafísica das doutrinas ocidentais, mesmo daquelas em que existe ainda uma parte de metafísica verdadeira (1); por se deterem no Ser, elas são incompletas, mesmo teoricamente (sem falar na realização, que elas ignoram completamente), e, como costuma acontecer nesses casos, elas tem uma estranha tendência a negar o que as ultrapassa, e que é precisamente o que mais importa do ponto de vista da metafísica pura.

A aquisição ou, por melhor dizer, a tomada de posse de estados superiores, quaisquer que sejam, não passa portanto de um resultado parcial, secundário e contingente; e, embora este resultado possa parecer imenso quando visto em relação ao estado individual humano (e sobretudo em relação ao estado corporal, o único cuja posse efetiva os homens comuns tem durante sua existência terrestre), não é menos verdade que, em si mesmo, ele é rigorosamente nulo diante do estado supremo, pois o finito, mesmo tornado indefinido pelas extensões de que é susceptível, vale dizer pelo desenvolvimento de suas próprias possibilidades, permanece sempre nulo comparado com o Infinito. Um tal resultado não vale portanto, para a realidade absoluta, senão a título de preparação para a “União”, o que implica que ele é ainda um meio e não um fim; toma-lo por este fim eqüivale a permanecer na ilusão, pois todos os estados de que se trata, inclusive o Ser, são eles mesmos ilusórios, no sentido que estabelecemos no começo. Ademais, em qualquer estado em que ainda subsista qualquer distinção, vale dizer em todos os graus da Existência, incluindo aqueles que não pertencem à ordem individual, a universalização do ser não poderia ser efetiva; e mesmo a união com o Ser Universal, segundo o modo pelo qual ela se cumpre na condição de Prâjna (ou no estado póstumo que corresponde a esta condição), não é a “União” no sentido pleno do termo; se ela fosse, o retorno a um ciclo de manifestação, mesmo na ordem informal, não seria mais possível. É verdade que o ser está além de toda distinção, pois a primeira distinção é a da “essência” e da “substância”, ou de Purusha e Prakriti; e entretanto Brahma, enquanto Ishwara ou o Ser Universal, é chamado savishêsha, ou seja “implicando a distinção”, pois ele é seu princípio determinante imediato; apenas o estado incondicionado de Atmâ, que está além do Ser, é prapancha-upashama, “sem nenhum traço de desenvolvimento da manifestação”. O Ser é um, ou antes ele é a própria Unidade metafísica; mas a Unidade encerra em si a multiplicidade, porque ela a produz pelo simples desdobramento de suas possibilidades; e é por isso que, no próprio Ser, podemos ver uma multiplicidade de aspectos, que são outros tantos atributos ou qualificações, embora estes aspectos não sejam distintos efetivamente, mas apenas na medida em que os concebemos como tais; mas é preciso que eles o sejam de algum modo, para que os possamos conceber assim. Poderíamos dizer também que cada aspecto se distingue dos outros sob uma certa relação, embora nenhum deles se distinga verdadeiramente do Ser, e que todos sejam o próprio Ser (2); existe assim aí uma espécie de distinção principial, que não é uma distinção no sentido em que esta palavra aplica-se à ordem da manifestação, mas que é a sua transposição analógica. Na manifestação, a distinção implica uma separação; esta, de resto, nada tem de positivo na realidade, pois ela não passa de um modo de limitação (3); o Ser puro, ao contrário, está além da “separatividade”. Assim, o que está no grau do Ser puro é “não-distinto”, se tomarmos a distinção (vishêsha) no sentido em que a compreendem os estados manifestados; e no entanto, num outro sentido, existe aí ainda algo de “distinto”(vishishta): no Ser, todos os seres (entendidos como suas personalidades) são “um” sem serem confundidos, e distintos sem serem separados (4). Além do Ser, não se pode falar mais de distinção, mesmo principial, embora não se possa dizer que haja confusão; estamos aí além da multiplicidade, mas também além da Unidade; na absoluta transcendência deste estado supremo, nenhum destes termos pode ser aplicado, mesmo por transposição analógica, e é por isso que se deve usar um termo em forma negativa, o de “não-dualidade” (adwaita), conforme já explicamos; a própria palavra “União” é sem dúvida imperfeita, pois ela evoca a idéia de unidade, mas somos obrigados a conservá-la para traduzir o termo Yoga, pois não há outro termo à disposição nas línguas ocidentais.

A Libertação, com as faculdades e os poderes que ela implica de certa forma “por acréscimo” – porque todos os estados, com todas as suas possibilidades, se encontram necessariamente compreendidos na absoluta totalização do ser -, mas que, repetimos, não devem ser vistos senão como resultados acessórios e mesmo “acidentais”, e nunca como constituindo uma finalidade em si mesmos, a Libertação, dizíamos, pode ser obtida pelo Yogî (ou antes por aquele que se torna tal em razão desta obtenção) com a ajuda das observâncias indicadas no Yoga-Shâstra de Patanjali. Ela pode também ser facilitada pela prática de certos ritos (5), assim como de diversos modos particulares de meditação (hârda-vidyâ ou dahara-vidyâ) (6); mas, bem entendido, todos estes meios não são mais que preparatórios e não tem nada de essencial, pois “o homem pode adquirir o verdadeiro Conhecimento Divino, mesmo sem observar os ritos prescritos (para cada uma das diferentes categorias humanas, em conformidade com seus caracteres respectivos, e notadamente para os diversos âshramas ou períodos regulares da vida) (7); e encontramos de fato nos Vêda muitos exemplos de pessoas que negligenciaram o cumprimento de tais ritos (cujo papel o mesmo Vêda compara ao de um cavalo de montaria que ajuda um homem a chegar mais rápida e facilmente ao seu objetivo, mas sem o qual também poderia ele chegar), ou que foram impedidos de fazê-lo, mas que, devido à sua atenção perpetuamente concentrada e fixada sobre o Supremo Brahma (o que constitui a única preparação realmente indispensável), adquiriram o verdadeiro Conhecimento que Lhe concerne (e que, por esta razão, é chamado também de “supremo”) (8).

A Libertação não é assim efetiva senão na medida em que ela implica essencialmente o perfeito Conhecimento de Brahma; e, inversamente, este Conheimento, para ser perfeito, supõe necessariamente a realização daquilo que já chamamos de “Identidade Suprema”. Assim, a Libertação e o Conheimento total e absoluto não são verdadeiramente senão uma e a mesma coisa; se dizemos que o Conhecimento é o meio para a Libertaçõ, é preciso acrescentar que, aqui, o meio e o fim são inseparáveis, porque o Conhecimento traz seu fruto em si mesmo, contrariamene ao que ocorre com a ação (9); e de resto, neste domínio, uma distinção como esta de meio e fim não pode mais passar de um simples modo de dizer, sem dúvida inevitável quando se quer exprimir estas coisas em linguagem humana, na medida em que elas podem ser expressadas. Se então a Libertação é vista omo uma conseqüência do Conhecimento, é preciso deixar claro que ela é sua conseqüência rigorosamente imediata; é o que indica claramente Shankarâchârya: “Não existe nenhum outro meio de se obter s Libertação completa e final senão o Conhecimento; apenas este desmancha os nós das paixões ( e de todas as demais contingências às quais está submetido o ser individual); sem o Conhecimento, a Beatitude (Ananda) não pode ser obtida. A ação (karma, seja este termo entendido em seu sentido geral, ou aplicado especificamente ao cumprimento dos ritos), por não se opor à ignorância (avidyâ) (10), não pode afastá-la; mas o Conhecimento dissipa a ignorância como a luz dissipa as trevas. Desde que a ignorância que nasce das afeições terrestres (e de outros laços análogos) seja afastada (e com ela desaparecendo todas as ilusões) o “Si” (Atmâ), por seu próprio esplendor, brilha ao longe (através de todos os graus de existência) em um estado indiviso (penetrando tudo e iluminando a totalidade do ser), como o sol reparte sua claridade quando as nuvens se dispersam”(11).

Um dos pontos mais importantes é este: a ação, qualquer que seja ela, não pode libertar da ação; em outros termos, ela não pode produzir frutos senão dentro de seu próprio domínio, que é o da individualidade humana. Assim, nào é pela ação que é possível ultrapassar a aindividualidade, encarada aqui em sua extensão integral, pois não pretendemos que as conseqüências da ação se limitem apenas à modalidade corporal; podemos aplicar aqui o que dissemos sobre a vida, que é efetivamente inseparável da ação. Daí, resulta imediatamente que a “salvação”, no sentido religioso em que os Ocidentais entendem o termo, por ser o fruto de certas ações (12), não pode ser assimilada à Libertação; e é preciso que se o diga expressamente e se insista, tanto mais que a confusão entre uma e outra é contantemente cometida pelos orientalistas (13). A “salvação” é propriamente a obtenção do Brahma-Loka; e precisaremos ainda que, dentro do Brahma-Loka, é preciso enfocar aqui exclusivamente a morada de Hiranyagarbha, porque qualquer aspecto mais elevado do “Não-Supremo” ultrapassa as possibilidades individuais. Isto concorda perfeitamente com a concepção ocidental da “imortalidade”, que não passa de um prolongamento indefinido da vida individual, transposta para a ordem sutil, e que se estenderá até o pralaya; e isto tudo, como já explicamos, não representa mais do que uma etapa no processo de krama-mukti; mesmo o retorno a um estado de manifestação (de resto supra-individual) não está definitivamente descartado para o ser que não  ultapassou este grau. Para ir mais longe, e para livrar-se inteiramente das condições de vida e de duração que são inerentes à individualidade, não há outro caminho que o do Conhecimento, seja “não-supremo” e conduzindo a Ishwara (14), seja “supremo” e levando imediatamente à Libertação. Neste último caso, não mais porque encarar, após a morte, a passagem por diversos estados superiores, mas ainda transitórios e condicionados: “O “Si” (Atmâ, pois a partir daí não se trata mais de jîvâtmâ, porque toda ëparatividade” dsapareceu) daquele que chegou à perfeição do Conhecimento Divino (Brahma-Vidyâ), e que, por conseqüência, obteve a Libertação final, sobe, deixando sua forma corporal (e sem passar por estados intermediários), em direção à Suprema Luz (espiritual) que é Brahma, e identifica-se com Ele, de uma maneira conforme e indivisa, como a água pura mescla-se ao lago límpido (sem entretanto perder-se) tornando-se em tudo conforme a ele” (15).










NOTAS


1.       Só fazemos assim alusão às doutrinas filosóficas da antigüidade e da idade média, pois os pontos de vista da filosofia moderna são a a própria negação da metafísica; e isto vale tanto para as concepções com veleidades “pseudo-metafísicas” quanto para aquelas em que a negação é expressa declaradamente. Naturalmente, o que dizemos aqui só se aplica às doutrinas conhecidas no mundo “profano”, e não concerne às tradições esotéricas do Ocidente, que, ao menos enquanto tiveram um caráter verdadeira e plenamente “iniciático”, não era assim limitadas, mas ao contrário deviam ser metafisicamente completas sob o duplo aspecto da teoria e da realização; mas estas tradições eram conhecidas por uma elite incomparavelmente mais restrita do que nos países orientais.
2.       Isto pode aplicar-se, na teologia cristã, à concepção da Trindade: cada pessoa divina é Deus, mas ela não é as outras pessoas. – Na filosofia escolástica, pode-se dizer o mesmo dos “transcendentes”, dos quais cada um é coextensivo ao Ser.
3.       Nos estados individuais, a separação é determinada pela presença da forma; nos estados não-individuais, ela será determinada por outras condições, pois estes estados são informais.
4.       É aí que reside a principal diferença entre o ponto de vista de Râmânuja, que mantém a distinção principial, e o de Shankarâchârya, que a ultrapassa.
5.       Estes ritos são comparáveis aos que os mussulmanos contam sob a denominação geral de dhikr: eles se apoiam principalmente, como já indicamos, sobre a ciência dos ritmos e suas correspondentes em outras ordens. Tais são também, na doutrina (de resto parcialmente heterodoxa) dos Pâshupatas, aqueles que são chamados de vrata (véu) e dwâra (porta); sob formas diversas, tudo isto é, no fundo, idêntico ou eqüivalente ao Hatha-Yoga.
6.       Chhândogya Upanishad, 8º Prapâthaka.
7.       De resto, o homem que atingiu um certo grau de realização é chamado de ativarnâshrami, ou seja além das castas (varnas) e dos estados de existência terrestre (âshramas); nenhuma das distinções ordinárias aplica-se mais a um tal ser, a partir do momento em que ele ultrapassou efetivamente os limites da individualidade, mesmo sem ter chegado ainda ao resultado final.
8.       Brahma-Sûtras, 3º Adhyâya, 4º Pâda, sûtras 36-38.
9.       Ademais, a ação e seu fruto são igualmente transitórios e “momentâneos”; ao contrário, o Conhecimento é permanente e definitivo, e ele é seu próprio fruto, que não é distinti de si mesmo.
10.   Alguns quiseram traduzir avidyâ ou ajnâna por “nesciência” e não por “ignorância”; não entendemos bem qual a razão desta sutileza.
11.   Atmâ-Bodha (Conhecimento de Si).
12.   A expressão usual “fazer sua salvação” é assim perfeitamente exata.
13.   É assim que Oltramare, notadamente, traduz Moksha por salvação de uma ponta à outra de sua obra, sem parecer dar-se conta, já não dizemos mesmo da diferença real que indicamos aqui, mas da simples possibilidade de uma inexatidão nesta assimilação.
14.   Não é preciso dizer que a teologia, mesmo que comportasse uma realização que a fizesse eficaz, ao invés de permanecer simplesmente teórica como ela o faz (a menos que se considere como realização os “estados místicos”, o que só vale parcialmente e de certos pontos de vista), estaria sempre integralmente compreendida dentro deste Conhecimento “não-supremo”.
15.   Brahma-Sûtras, 4º Adhyâya, 4º Pâda, sûtras 1-4.





XXIII

VIDEHA-MUKTI E JIVAN-MUKTI




A “Libertação”, como foi colocada em útlimo lugar, é propriamente a liberação para fora da forma corporal (vidêha-mukti), obtida n o momento da morte de modo imediato, uma vez que o Conhecimento já era perfeito antes do fim da existência terrestre; ela deve assim ser distinguida da liberação diferenciada e gadual (krama-mukti), mas também da liberação obtida pelo Yogî em sua vida atual (jîvan-mukti), em virtude do Conhecimento, não apenas virtual e teórico, mas plenamente efetivo, vale dizer realizando verdadeiramente a “Identidade Suprema”. É preciso compreender, com efeito, que o corpo, assim como qualquer outra contingência, não pode ser um obstáculo diante da Libertação; nada pode estar em oposição com a totalidade absoluta, diante da qual todas as coisas particulares são como se não existissem; em relação ao objetivo supremo, existe uma perfeita equivalência entre todos os estados de existência, de modo que, entre o homem vivo e o homem morto (entendendo estas expressões no sentido terrestre) nenhuma distinção subsiste aqui. Está aí ainda uma outra diferença essencial entre a Libertação e a “salvação”: esta, tal como a vêem as religiões ocidentais, não pode ser obtida efetivamente, nem mesmo assegurada (ou seja obtida virtualmente), antes da morte; aquilo que a ação obtém, a ação também pode peder; e pode haver incompatibilidade entre certas modalidades de um mesmo estadon individual, ao menos acidentalmente e sob certas condições particulares (1), enquanto que não há mais nada parecido quando se trata de estados supra-individuais, nem com mais razão no estado incondicionado. Ver as coisas de outra maneira equivale a atribuir a um modo especial de manifestação uma importância que ele não poderia ter, e que mesmo a totalidade da manifestação não tem; apenas a prodigiosa insuficiência das concepções ocidentais relativas à constituição do ser humano pode tornar possível uma tal ilusão, e apenas ela pode espantar-se de que a Libertação possa ser atingida durante a vida terrestre como em qualquer outro estado.

A Libertação ou a União, o que é uma e a mesma coisa, implica “por acréscimo”, como já dissemos, a posse de todos os estados, porque ela é a realização perfeita (sadhana) e a totalização do ser; pouco importa aliás que esses estados sejam atualmente manifestados ou não, porque é apenas enquanto possibilidades permanentes e imutáveis que eles devem ser vistos metafisicamente. “Mestre de muitos estados pelo simples efeito de sua vontade, o Yogî não ocupa senão um, deixando os outros vazios do sopro animador (prâna) como instrumentos inutilizados; ele pode animar mais de uma forma, da mesma maneira como uma lâmpada pode alimentar mais de uma mecha” (2). “O Yogî, diz Aniruddha, está em conexão imediata com o princípio primordial do Universo, e em conseqüência (secundariamente) com todo o conjunto do espaço, do tempo e das coisas”, ou seja com a manifestação, e mais especialmente com o estado humano em todas as suas modalidades (3).

De resto, seria um erro acreditar que a liberação “fora da forma” (vidêha-mukti) seja mais completa que a liberação “em vida” (jîvan-mukti); se alguns Ocidentais o cometeram, foi sempre em razão da excessiva importância que eles atribuem ao estado corporal, e o que já dissemos nos dispensa de insistir ainda sobre isto (4). O Yogî não tem mais nada a obter ulteriormente, pois ele realizou verdadeiramente a “transformação” (vale dizer a passagem além da forma) em si mesmo, ainda que não exteriormente; pouco lhe importa assim que a aparência formal subsista no mundo manifestado, a partir do momento em que, para ele, este não mais existe, senão em modo ilusório. A bem dizer, é apenas para os outros que as aparências subsistem assim, sem mudança exterior em relação ao estado precedente, e não para ele, porque agora elas são incapazes de limitá-lo ou de condicioná-lo; estas aparências não o afetam nem lhe concernem, tanto quanto todo o resto da manifestação universal. “O Yogî, tendo atravessado o mar das paixões (5), está unido com a Tranqüilidade (6) e possui em sua plenitude o “Si” (Atmâ incondicionado, ao qual ele se identificou). Havendo renunciado a esses prazeres que nascem dos objetos externos perecíveis (e que não passam eles mesmos de modificações exteriores e acidentais do ser), e gozando da Beatitude (Ananda, que é o único objeto permanente e imperecível, e que não é diferente do “Si”, ele está calmo e sereno como a chama sob um apagador (7), na plenitude de sua própria essência (que já não mais se distingue do Supremo Brahma). Durante sua estadia (aparente) no corpo, ele não é mais afetado por suas propriedades, assim como o firmamento não é afetado pelo que flutua em seu seio (porque, na realidade, ele contém em si todos os estados e não é contido por nenhum deles); conhecendo todas as coisas (e por isso mesmo sendo todas as coisas, não “distintivamente”, mas como totalidade absoluta), ele permanece imutável, “não-afetado” pelas contingências” (8).

Não há nem pode haver assim nenhum grau espiritual que seja superior ao do Yogî: este, visto em sua concentração sobre si mesmo, é também designado como Muni, ou seja o “Solitário” (9), não no sentido vulgar e literal da palavra, mas como aquele que realizou na plenitude de seu ser a Solidão perfeita, que não deixa subsistir na Unidade Suprema (deveríamos dizer antes, com todo o rigor, na “Não-Dualidade”) nenhuma distinção entre interior e exterior, nem nenhuma diversidade extra-principial qualquer. Para ele a ilusão da “separatividade” cessou definitivamente, e com ela toda confusão engendrada pela ignorância (avidyâ) que produz e mantém esta ilusão (10), pois “imaginando-se a princípio como a “alma viva” (jîvâtmâ), o homem fica com medo (pela crença em qualquer ser outro que si mesmo), como uma pessoa que toma por engano (11) um pedaço de corda por uma serpente; mas seu temor é afastado pela certeza de que ele não é em realidade esta “alma viva”, mas o próprio Atmâ (em Sua universalidade incondicionada)” (12).

Shankarâchârya enumera três atributos que correspondem de certa forma às funções do Sannyâsî possuidor do Conhecimento, o qual, desde que este Conhecimento seja plenamente efetivo, não é outro que o Yogî (13): estes três atributos são em ordem ascendente, bâlya, pânditya e mauna (14). O primeiro destes termos designa literalmente um estado comparável ao de uma criança (bâla) (15); trata-se de um estado de “não-expansão”, se podemos falar assim, onde todas as potências do ser estão por assim dizer concentradas em um ponto, realizando por sua unificação uma simplicidade indiferenciada, aparentemente semelhante à potencialidade embrionária (16). É também, num sentido um pouco diferente, mas que completa o anterior (pois existe aí ao mesmo tempo reabsorção e plenitude), o retorno ao “estado primordial” de que falam todas as tradições, e sobre o qual insistem em particular o Taoísmo e o esoterismo islâmico; este retorno é efetivamente uma etapa necessária sobre a via que leva à União, pois é apenas a partir deste “estado primodial” que se pode romper os limites da individualidade para elevar-se aos estados superiores (17).

Um estado ulterior é representado por pânditya, ou seja o “saber”, atributo que se refere a uma função de ensinamento: aquele que possui o Conhecimento está qualificado para comunicá-lo aos outros, ou , mais exatamente, para despertar neles possibilidades correspondentes, pois o Conhecimento, em si mesmo, é estritamente pessoal e incomunicável. O Pandita tem assim mais particularmente o caráter de Guru ou “Mestre espiritual” (18); mas ele pode possuir apenas a pefeição do Conhecimento teórico, e é por isso que é preciso haver, como  um último degrau que está acima deste, mauna ou o estado de Muni, como sendo a única condição na qual a União pode realizar-se verdadeiramente. De resto, existe ainda um outro termo, Kaivalya, que significa também “isolamento” (19) e que exprime ao mesmo tempo as idéias de “perfeição” e de “totalidade”; e este termo é muitas vezes empregado como um eqüivalente de Moksha: kêvala designa o estado absoluto e incondicionado que é o do ser “libertado” (mukta).

Vimos os três atributos como caracterizando estados preparatórios para a União; mas, naturalmente, o Yogî, chegado ao objetivo supremo, os possui a fortiori, como ele possui todos os estados na plenitude de sua essência (20). Estes três atributos estão de resto implicados naquilo que se chama aishwarya, ou seja a participação à essência de Ishwara, pois eles correspondem respectivamente às três Shaktis da Trimûrti: se lembrarmos que o “estado primordial” caracteriza-se fundamentalmente pela “Harmonia”, veremos imediatamente que bâlya corresponde a Lakshmî, enquanto que pânditya corresponde a Saraswati e mauna a Pârvatî (21). Este ponto é de uma importância particular, se quisermos compreeder o que são so “poderes” que pertencem ao jîvan-mukta, a título de conseqüências secundárias da perfeita realização metafísica.

Por outro lado, encontramos também na tradição extremo-oriental uma teoria que eqüivale exatamente a esta que acabamos de expor: esta teoria é a das “quatro Felicidades”, das quais as duas primeiras são a “Longevidade”, que como já disemos não é outra coisa que a perpetuidade da existência indiviual, e a “Posteridade”, que consiste nos prolongamentos indefinidos do indivíduo através de todas as suas modalidades. Estas duas “Felicidades” só concernem portanto a extensão da individualidade, e elas se resumem na restauração do “estado primordial”, que implica sua plena obtenção; os dois seguintes, que ao contrário referem-se aos estados superiores e extra-individuais do ser (22), são o “Grande Saber” e a “Perfeita Solidão”, ou seja pânditya e mauna. Enfim estas “quatro Felicidades” obtém sua plenitude numa quinta, que as contém todas em princípio e as une sinteticamente na sua essência única e indivizível; esta “quinta Felicidade” não tem nome (assim como o “quarto estado” do Mândûkya Upanishad), por ser inexprimível e por não poder ser objeto de nenhum conhecimento distintivo; mas é fácil de compreender que aquilo de que se trata não é outra coisa que a União ou a “Identidade Suprema”, obtida na e pela realização completa e total daquilo que outras tradições chamam de “Homem Universal”, pois o Yogî, no verdadeiro sentido da palavra, ou o “homem transcendente” (tcheun-jen) do Taoísmo, é também idêntico ao “Homem Universal” (23).

NOTAS


1.       Esta restrição é indispensável, pois, se houvesse incompatibilidade absoluta ou essencial, a totalização do ser seria tornada impossível, pois nenhuma posibilidade pode ficar fora da realização final. De resto, a interpretação mais exotérica da “ressurreição dos mortos” basta para mostrar que, mesmo do ponto de vista teológico, não pode haver antinomia irredutível entre a “salvação” e a “incorporação”.
2.       Comentário de Bhavadêva-Mishra sobre os Brahma-Sûtras.
3.       Eis um texto Taoísta onde as mesmas idéias são expressas: “Aquele (o ser que alcançou o estado em que ele está unido à totalidade universal) não dependerá mais de nada; ele será perfeitamente livre... Assim se diz justamente: o ser sobrehumano não tem mais individualidade própria; o homem transcendente não tem mais ação própria; o Sábio não tem mais nome próprio; pois ele é um com o Todo” (Tchoang-Tseu, cap. I). O Yogî ou o jîvan-mukta, com efeito, está liberto do nome e da forma (nâma-rûpa) que são os elementos constitutivos e característicos da individualidade; já mencionamos os textos dos Upanishads onde esta cessação do nome e da forma é expressamente afirmada.
4.       Se entretanto se faz às vezes uma distinção considerando jîvan-mukti como inferior a vidêha-mukti, isto só se pode entender legitimamente de um modo: é que se toma a “Libertação durante a vida” como realizada por um ser que está ainda ligado à vida enquanto condição característica do estado humano, e então não pode tratar-se na realidade senão de uma realização virtual, correpondente ao caso do ser reintegrado ao centro deste estado; ao contrário, a “Libertação fora da forma” (o que não quer necessariamente dizer “após a morte”), implicando um estado além de toda condição individual, é vista neste caso como a única Libertação efetiva.
5.       É o domínio das “Águas inferiores” ou das possibilidades formais; as paixões são tomadas aqui para designar todas as modificações contingentes que constituem a “corrente das formas”.
6.       É a “Grande Paz” (Es-Sakînah) do esoterismo islâmico, ou a Pax Profunda da tradição Rosa-Cruz; e o termo Shekinah, em hebraico, designa a “presença real” da Divindade, ou a “Luz de Glória” na qual e pela qual, segundo a teologia cristã, opera-se a “visão beatífica”(cf. a “glória de Deus” no texto já citado do Apocalipse, XXI, 23). – Eis outro texto taoísta que se refere à mesma coisa: “A paz no vazio é um estado indefinível. Chega-se a se estabelecer lá. Não se a dá, nem se a toma. Antes se tendia a ela. Agora prefere-se o exercício da bondade e da eqüidade, que não dá o mesmo resultado” (Lie-Tseu, cap.I). O “vazio” de que se trata é o “quarto estado” do Mândûkya Upanishad, que é de fato indefinível, sendo absolutamente incondicionado, e do qual só se pode falar negativamente. Os termos “antes” e “agora” referem-se aos diferentes períodos do ciclo da humanidade terrestre: as condições da época atual (correspondente ao Kali-Yuga) fazem com que  a grande maioria dos homens prendam-se à ação e ao sentimento, que não podem conduzi-los além dos limites de suas individualidades, e menos ainda ao estado supremo e incondicionado.
7.       Podemos compreender por aí o verdadeiro sentido da palavra Nirvâna, de que os orientalistras deram tantas falsas interpretações; este termo, que está longe de pertencer só ao Budismo como se crê às vezes, significa literalmente “extinção do sopro ou da agitação”, portanto um estado do ser que não está mais submetido a nenhuma mudança ou modificação, que é definitivamente liberado da forma, assim como de todos os demais acidentes ou laços da existência manifestada. Nirvâna é a condição supra-individual (a de Prâjna), e Parinirvâna é o estado incondicionado; emprega-se também, no mesmo sentido, os termos Nirvritti, “extinção da mudança e da ação”, e Parinirvritti. – No esoterismo islâmico, os termos correspondentes são fanâ, “extinção” e fanâ el-fanâi, literalmente “extinção da extinção”.
8.       Atmâ-Bodha de Shankarâchârya.
9.       A raiz desta palavra Muni aproxima-se do grego monos, “só”, tanto mais que seu derivado mauna significa “silêncio” ou “estado de Muni”. Alguns comentadores a ligaram ao termo manana, o pensamento refletido e concentrado, derivado de manas, e neste caso a palavra Muni designa mais particularmente “aquele que se esforça para a Libertação por meio da meditação”.
10.   A esta ordem pertence notadamente a “falsa imputação” (adhyâsa), que consiste em atribuir a uma coisa os atributos que não lhe pertencem verdadeiramente.
11.   Um tal erro é chamado vivarta: é propriamente uma modificação que não atinge absolutamente a essência do ser ao qual é atribuída, e que portanto afeta apenas aquele que se a atribui pelo efeito de uma ilusão.
12.   Atmâ-Bodha de Shankarâchârya
13.   O estado de Sannyâsi é propriamente o último dos quatro âshramas (sendo os três primeiros Brahmachâri ou “estudante da Ciência sagrada”, discípulo de um Guru, Grihastha ou “mestre da casa” e Vanaprastha ou “anacoreta”); mas o nome de Sannyâsi estende-se às vezes, como vemos aqui, ao Sâdhu, ou seja àquele que cumpriu a realização perfeita (sadhana), e que é ativarnâshrami, como dissemos mais acima.
14.   Comentário sobre os Brahma-Sûtras, 3º Adhyâya, 4º Pâda, sûtras 47-50.
15.   Cf. estas palavras do Evangelho: “O Reino do Céu é para aqueles que se parecem com estas crianças... Quem não receber o Reino de Deus como uma criança, nele não entrará” (Mateus, XIX, 24; Lucas, XVIII, 16-17).
16.   Este estado corresponde ao “Dragão escondido” do simbolismo extremo-oriental. – Um outro símbolo freqüentemente empregado é o da tartaruga que se retira inteiramente para dentro do seu casco.
17.   É o “estado edênico” da tadição judaico-cristã; é por isso que Dante situa o Paraíso terrestre no alto da montanha do Purgatório, ou seja precisamente no ponto onde o ser deixa a terra, ou o estado  humano, para elevar-se aos Céus (designados como o “Reino de Deus” na precedente citação do Evangelho).
18.   É o Sheikh das escolas islâmicas, também chamado de murabbul-muridin; Murîd é o discípulo, ou seja o Brahmachâri hindu.
19.   É ainda o “vazio” de que se trata no texto Taoísta que citamos; e este “vazio”, de resto, é também em realidade a absoluta plenitude.
20.   Podemos lembrar também que estes três atributos são de certo modo “pré-figurados” respectivamente, e na mesma ordem, pelos três âshramas; e o quarto âshrama, o do Sannyâsi (entendido no seu sentido mais comum), reúne e resume por assim dizer os três primeiros, como o estado final do Yogî compreende “eminentemente” todos os estados particulares que foram percorridos como estágios preliminares.
21.   Lakshmî é a Shakti de Vishnu; Saraswatî ou Vâch é a de Brahma; Pârvatî é a de Shiva. Pârvatî é também chamada de Durgâ, ou seja “Aquela de quem nos aproximamos com dificuldade”. – É admirável que encontramos a correspondência destas três Shaktis até nas tradições ocidentais: assim, no simbolismo maçônico, os “três principais pilares do Templo” são “Sabedoria, Força, Beleza”; aqui, a Sabedoria é Saraswatî, a Força é Pârvatî e a Beleza é Lakshmî. Da mesma forma, Leibnitz, que recebeu alguns ensinamentos esotéricos (bastante elementares aliás) de fonte Rosa-Cruz, designa os três principais atributos divinos como “Sabedoria, Potência, Bondade”, o que é exatamente a mesma coisa, pois “Beleza” e “Bondade”, no fundo (como entre os Gregos e principalmemnte Platão) são dois aspectos de um idéia única, que é precisamente a da “Harmonia”.
22.   É por isso que, enquanto as duas primeiras “Felicidades” pertencem ao domínio do Confucionismo, as outras duas pertencem ao dos Taoísmo.
23.   Esta identidade é igualmente afirmada nas teorias do esoterismo islâmico sobre a “manifestação do Profeta”.


XXIV

O ESTADO ESPIRITUAL DO YOGI:

A “IDENTIDADE SUPREMA”



No que concerne o estado do Yogî, que, pelo Conhecimento, “libertou-se durante a vida” (jîvan-mukta) e realizou a “Identidade Suprema”, citaremos ainda Shankarâchârya (1), e aquilo que ele diz a respeito, mostrando as possibilidades mais altas que o ser pode atingir, servirá ao mesmo tempo de conclusão a este estudo.

“O Yogî, cujo intelecto é perfeito, contempla todas as coisas como permanecendo em si mesmo (em seu próprio “Si”, sem nenhuma distinção entre exterior e interior), e assim, pelo olho do Conhecimento (Jnâna-chakshus, expressão que poderia ser traduzida bastante exatamente como “intuição intelectual”), percebe (ou antes concebe, não racionalmente ou discursivamente, mas por uma tomada de consciência direta e por um “assentimento” imediato) que todas as coisas são Atmâ.”

“Ele conhece que todas as coisas contingentes (as formas e as outras modalidades da manifestação) não são outra coisa que Atmâ (em seu princípio), e que fora de Atmâ não há nada, “porque as coisas diferem simplesmente (segundo uma palavra do Vêda) em designação, acidente e nome, embora sejam apenas diferentes formas de terra” (2); e assim ele percebe (ou concebe, no mesmo sentido anterior) que ele próprio é todas as coisas (pois não há nada que seja um ser outro que ele mesmo ou que seu próprio “Si”) (3)”.

Quando os acidentes (formais ou outros, compreendendo a manifestação sutil assim como a grosseira) são suprimidos (só existindo em modo ilusório, de tal sorte que eles nada são aos olhos do Princípio), o Muni (tomado aqui como sinônimo de Yogî) entra, como todos os seres (na medida em que não são distintos dele), na Essência que penetra tudo (e que é Atmâ)” (4).

“Ele é sem qualidades (distintas) e sem ação (5); imperecível (akshara, não sujeito à dissolução, que só tem alcance sobre o múltiplo), sem volição (aplicada a um ato definido ou a circunstâncias determinadas); pleno de Beatitude, imutável, sem forma; eternamente livre e puro (não podendo ser constrangido nem atingido ou afetado de modo algum por nada que seja outro que ele próprio, porque este outro não existe, ou ao menos só possui uma existência ilusória, enquanto que ele está na realidade absoluta)”.

“Ele é como o Éter (Akâsha), que está espalhado por toda parte (sem diferenciação), e que penetra simultaneamente o exterior e o interior das coisas (6); ele é incorruptível, imperecível; ele é o mesmo em todas as coisas (pois nenhuma modificação afeta sua identidade), puro, impassível, inalterável (em sua imutabilidade essencial)”.

“Ele é (segundo os termos mesmo do Vêda) “o Supremo Brahma, que é eterno, puro, livre, só (em Sua perfeição absoluta), incessantemente cheio de Beatitude, sem dualidade, Princípio (incondicionado) de toda existência, conhecedor (sem que este Conhecimento implique distinção entre sujeito e objeto, o que seria contrário à “não-dualidade”), e sem fim.”

“Ele é Brahma, após cuja posse nada mais há a possuir; após o gozo de cuja Beatitude nenhuma outra felicidade pode ser desejada; após a obtenção de cujo Conhecimento não há conhecimento que possa ser obtido”.

“Ele é Brahma, o qual tendo sido visto (pelo olho do Conhecimento), nenhum objeto mais é contemplado; com o qual tendo-se identificado, nenhuma modificação (tal como o nascimento e a morte) é mais experimentada; o qual tendo sido percebido (mas não como a um objeto perceptível por uma faculdade qualquer que seja), nada mais há a aperceber (porque todo conhecimento distintivo foi a partir daí ultrapassado e como que aniquilado)”.

“Ele é Brahma, que está espalhado por toda parte, em tudo (porque não há nada  fora de Si e porque tudo está necessariamente contido em Sua Infinitude) (7): no espaço intermediário, naquilo que está acima e naquilo que está abaixo (ou seja no conjunto dos três mundos); o verdadeiro, cheio de Beatitude, sem dualidade, indivisível e eterno”.

“Ele é Brahma, afirmado no Vêdânta, como absolutamente distinto daquilo que ele penetra (e que, ao contrário, não é distinto de Si, ou que ao menos só se distingue em modo ilusório) (8), incessantemente cheio de Beatitude e sem dualidade”.

“Ele é Brahma, “pelo qual (segundo o Vêda) são produzidos a vida (jîva), o sentido interno (manas), as faculdades de sensação e de ação (jnânêndriyas e karmêndriyas) e os elementos (tanmâtras e bhûtas) que compõem o mundo manifestado (tanto na ordem sutil como na ordem  grosseira)”.

“Ele é Brahma, no qual todas as coisas estão unidas (além de toda distinção, mesmo principial), de quem todos os atos dependem (e que é Ele próprio sem ação); é por isso que ele está espalhado em tudo (sem divisão, dispersão ou diferenciação de espécie alguma)”.

“Ele é Brahma, que é sem grandeza ou dimensões (incondicionado), não extenso (sendo indivisível e sem partes), sem origem (sendo eterno), incorruptível, sem figura, sem qualidades (determinadas), sem assignação ou caracter qualquer.”

“Ele é Brahma, pelo qual todas as coisas são iluminadas (participando de Sua essência segundo seus graus de realidade), cuja Luz faz brilhar o sol e todos os corpos luminosos, mas que não é tornado manifesto pela sua luz” (9).

“Ele penetra sua própria essência eterna (que não é diferente do Supremo Brahma), e (simultaneamente) ele contempla o mundo inteiro (manifestado e não manifestado) como sendo (também) Brahma, assim como o fogo penetra intimamente um pedaço de ferro incandescente, e (ao mesmo tempo) se mostra também exteriormente (manifestando-se aos sentidos por seu calor e sua luminosidade)”.

Brahma não se parece com o Mundo (10), e fora de Brahma não há nada (pois, se houvesse alguma coisa fora de Si, Ele não poderia ser infinito); tudo o que parece existir fora de Si só pode existir  (desta forma) de modo ilusório, como a aparência da água (numa miragem) no deserto (marû)” (11).

“De tudo aquilo que é visto, de tudo o que é ouvido (e de tudo o que é percebido ou concebido por qualquer faculdade) nada existe (verdadeiramente) fora de Brahma; e pelo Conhecimento (principial e supremo) Brahma é contemplado como único verdadeiro, pleno de Beatitude, sem dualidade”.

“O olho do Conhecimento contempla o verdadeiro Brahma, cheio de Beatitude, penetrando tudo; mas o olho da ignorância não O descobre, não O percebe, como um homem cego não vê a luz sensível”.

“Tendo sido o “Si” iluminado pela meditação (quando um conhecimento teórico, portanto ainda incompleto o faz aparecer como se ele recebesse a Luz de uma fonte outra que ele próprio), depois incendiado pelo fogo do Conhecimento (realizando sua identidade essencial com a Luz Suprema), ele está livre de todos os acidentes (ou modificações contingentes), e brilha em seu próprio esplendor, como o ouro que é purificado no fogo.” (12).

“Quando o Sol do Conhecimento espiritual se ergue no céu do coração (ou seja no centro do ser, que é designado como Brahma-pura), ele destrói as trevas (da ignorância que vela a única realidade absoluta), ele penetra tudo, abarca tudo, ilumina tudo”.

“Aquele que faz a peregrinação de seu próprio “Si”, uma peregrinação na qual nada diz respeito a situação,lugar ou tempo (nem nenhuma  ciscunstância ou condição particular) (13), que está em toda parte (14) (e sempre, na imutabilidade do “eterno presente”), na qual nem o calor nem o frio são experimentados (assim como qualquer outra impressão sensível ou mesmo mental), que alcança uma felicidade permanente e um libertação definitiva de toda turbação (ou de toda modificação); este é sem-ação, ele conhece todas as coisas  (em Brahma), e ele obtém a Eterna Beatitude”.





















NOTAS



1.       Atmâ-Bodha. – Reunindo aqui diferentes passagens deste tratado, não nos restringiremos, nestes extratos, a seguir rigorosamente a ordem do texto; de resto, em geral, a seqüência lógica das idéias não pode ser exatamente a mesma num texto sânscrito e numa tradução em língua ocidental, em razão das diferenças que existem entre certos “modos de pensar” e sobre as quais já insistimos em outras ocasiões.
2.       Ver Chhândogya Upanishad, 6º Prapâthaka, 1º Khanda, shrutis 4-6.
3.       Notemos a este propósito que Aristóteles, no seu tratado Peri Yuchs,  declara expressamente que “a alma é tudo o que ela conhece”; podemos ver aí uma aproximação clara, a este respeito, entre a doutrina aristotélica e as doutrinas orientais, malgrado as reservas que sempre impõe a diferença de pontos de vista; mas esta afirmação, em Aristóteles e seus continuadores, parece ter permanecido puramente teórica. É preciso então admitir que as conseqüências desta idéia de identificação pelo conhecimento, no que diz respeito à realização metafísica, permaneceram desconhecidas para os Ocidentais, com a exceção, como já dissemos, de algumas escolas propriamente iniciáticas, que não tem nenhum contato com aquilo que se chama habitualmente de “filosofia”.
4.       “Acima de tudo está o Princípio, comum a tudo, contendo e penetrando tudo, de quem a Infinitude é o atributo próprio, o único pelo qual se pode designá-Lo, pois ele não tem nome” (Tchouang Tseu, cap. XXV).
5.       Cf. o “não-agir” (wu-wei) da tradição extremo-oriental.
6.       A ubiqüidade é tomada aqui como símbolo da onipresença, no sentido em que já empregamos anteriormente.
7.       Lembremos ainda o texto taoísta que já mencionamos: “Não pergunte se o Princípio está aqui ou ali; ele está em todos os seres...” (Tchouang Tseu, cap. XXII).
8.       Lembremos que esta reciprocidade na relação entre Brahma e o Mundo implica expressamente a condenação do “panteísmo”, assim como do “imanentismo” sob todas as suas formas.
9.       Ele é “Aquele por quem tudo é manifestado, mas que em si mesmo nunca se manifesta em nada”, segundo um texto que já citamos (Kêna Upanishad, 1º Khanda, shrutis 5-9).
10.   A exclusão de toda e qualquer concepção panteísta é aqui reiterada; em presença de afirmações tão claras, é difícil explicar certos erros de interpretação que ainda persistem no Ocidente.
11.   Este termo marû, derivado da raiz mri, “morrer”, designa toda região estéril, inteiramente desprovida de água, e mais especialmente um deserto de areia, cujo aspecto uniforme pode ser tomado como suporte da meditação, para evocar a idéia da indiferenciação principial.
12.   Vimos acima que o ouro é considerado como de natureza luminosa.
13.   “Toda distinção de lugar ou de tempo é ilusória; a concepção de todos s possíveis (compreendidos sinteticamente na Possibilidade Universal, absoluta e total) se faz sem movimento e fora do tempo” (Lie Tseu, cap. III).
14.   Do mesmo modo, nas tradições esotéricas ocidentais, se diz que os verdadeiros Rosa-Cruz se reúnem “no Templo do Espírito Santo, que está em toda parte”. – Os Rosa-Cruz de que falamos não tem, evidentemente, nada a ver com as múltiplas organizações modernas que tomaram este nome; diz-se que, pouco antes da Guerra dos Trinta Anos, eles deixaram a Europa e se retiraram na Ásia, o que aliás pode ser interpretado de modo simbólico, mais do que literalmente.































Um comentário:

  1. Este é um resumo do livro do Guenon ou suas apreciações sobre o mesmo?

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