XI
REPRESENTAÇÃO GEOMÉTRICA
DOS GRAUS DA
EXISTÊNCIA
Até
agora, apenas examinamos os diversos aspectos do simbolismo da cruz, mostrando
sua ligação com o significado metafísico que indicamos em primeiro lugar.
Terminadas estas considerações, que são de certa forma preliminares, passaremos
a desenvolver agora este significado metafísico, levando o mais longe possível
o estudo do simbolismo geométrico através do qual são representados, seja os
graus da Existência universal, seja os estados de cada ser, segundo os dois
pontos de vista que chamamos de “macrocósmico” e “microcósmico”.
Lembremos
inicialmente que, quando se encara um ser no seu estado individual humano, é
preciso o cuidado de lembrar que a individualidade corporal não passa na
verdade de uma porção restrita, uma simples modalidade desta individualidade
humana, e que esta, em sua integralidade, é susceptível de um desenvolvimento
indefinido, manifestando-se em modalidades cuja multiplicidade é igualmente
indefinida, mas cujo conjunto constitui não mais que um estado particular do
ser, inteiramente situado em um só e mesmo grau da Existência universal. No
caso do estado individual humano, a modalidade corporal corresponde ao domínio
da manifestação grosseira ou sensível, enquanto que as outras modalidades
pertencem ao domínio da manifestação sutil, como já explicamos antes (1). Cada
modalidade é determinada por um conjunto de condições que delimitam suas
possibilidades, e das quais cada uma considerada isoladamente pode estender-se
para além do domínio desta modalidade e se combinar com outras condições para
constituir os domínios de outras modalidades, todas fazendo parte da mesma
individualidade integral (2). Assim, o que determina uma certa modalidade, não
é exatamente uma condição especial de existência, mas antes uma combinação ou
uma associação de muitas condições; para nos explicarmos melhor sobre este
ponto, seria preciso tomar um exemplo tal como o das condições da existência
corporal, cuja explicação detalhada demandaria, como já indicamos, todo um
estudo a parte.
Cada
um dos domínios de que falamos, que contém uma modalidade de um certo
indivíduo, pode, se o encaramos genericamente e apenas em relação às condições
que ele implica, conter modalidades similares pertencentes a uma infinidade de
outros indivíduos, dos quais cada um, por seu turno, é um estado de
manifestação de um dos seres do universo; trata-se aí de estados e de
modalidades que se correspondem em todos os seres. O conjunto dos domínios que
contém todas as modalidades de uma mesma individualidade, domínios que, como
dissemos, são em multitude indefinida, possuindo ainda cada qual uma extensão
indefinida, este conjunto, dizíamos, constitui um grau da Existência universal,
o qual, na sua integralidade, contém uma indefinidade de indivíduos. É claro
que aqui estamos supondo um grau de Existência que comporta um estado
individual, uma vez que tomamos como tipo o estado humano; mas tudo o que se
refere às modalidades múltiplas é igualmente verdadeiro em qualquer outro
estado, individual ou não-individual, pois a condição individual só pode trazer
limitações restritivas, sem no entanto que as possibilidades que ela inclui
percam por isso sua indefinidade (4).
Podemos,
a partir do que foi dito, representar um grau de Existência por um plano
horizontal, estendendo-se indefinidamente segundo duas dimensões, que
correspondem às duas indefinidade que consideramos: de um lado, aquela dos
indivíduos, que podemos representar pelo conjunto de retas paralelas a uma das
dimensões, definida, se quisermos, pela interseção deste plano horizontal com
um plano frontal (5); e, de outro lado, aquela dos domínios particulares às
diferentes modalidades dos indivíduos, que será então representada pelo
conjunto de retas do plano horizontal perpendiculares à direção precedente, ou
seja paralelas ao eixo visual antero-posterior, cuja direção define a outra
dimensão (6). Cada uma destas duas categorias compreende uma indefinidade de
retas paralelas entre si, e todas indefinidas em comprimento; cada ponto do plano
será determinado pela interseção de duas retas que serão pertencentes
respectivamente a estas duas categorias, e representará, por conseguinte, uma
modalidade particular de um dos indivíduos compreendidos no grau considerado.
Cada
um dos graus da Existência universal, que comporta uma indefinidade deles,
poderá ser representado também, numa extensão tridimensional, por um plano
horizontal. Vimos que a seção de um tal plano por uma plano frontal representa
um indivíduo, ou antes, para falarmos de um modo mais geral e susceptível de
aplicar-se indistintamente a todos os graus, um certo estado de um ser, estado
que pode ser individual ou não-individual, segundo as condições do grau de
Existência ao qual ele pertence. Podemos então ver um plano frontal como representando
um ser na sua totalidade; este ser compreende uma multitude indefinida de
estados, que serão então figurados por todas as retas horizontais deste plano,
enquanto que as verticais, por sua vez, serão formadas pelos conjuntos de
modalidades que se correspondem respectivamente em todos estes estados. De
resto, existe na extensão tridimensional uma indefinidade destes planos,
representado a indefinidade de seres contidos no Universo total.
NOTAS
1.
L’Homme
et son Devenir selon le Vêdânta, caps. II,
XII e XIII, 3ª Ed. – É preciso observar também que, quando falamos
da manifestação sutil, estamos obrigados a compreender dentro deste termo os
estados individuais não-humanos, além das modalidades extra-corporais do estado
humano de que estamos tratando aqui.
2.
Cabe colocar aqui, e sobretudo
quando se trata do estado humano, modalidades que são de certo modo extensões
resultantes as supressão pura e simples de uma ou mais condições limitativas.
3.
Sobre estas condições, ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta,
cap. XXIV, 3ª ed.
4.
Lembramos que um estado
individual é, como já dissemos, um estado que compreende a forma dentre as suas
condições determinantes, de modo que manifestação individual e manifestação
formal são expressões equivalentes.
5.
Para melhor compreendermos os
termos emprestados à perspectiva, é preciso lembrar que um plano frontal é um
caso particular de um plano vertical, enquanto que um plano horizontal, ao
contrário, é um caso particular de um plano de topo. Inversamente, uma reta
vertical é um caso particular de uma reta frontal, e uma reta de topo é um caso
particular de uma reta de topo. É preciso lembrar também que, por todo ponto,
passa um só reta vertical e uma multitude indefinida de retas horizontais, mas,
ao contrário, apenas um plano horizontal (que contém as retas horizontais que
passam por este ponto) e uma multitude indefinida de planos verticais (passando
todos pela reta vertical, que é sua interseção comum, e dos quais cada um é
determinado por esta reta vertical e uma das retas horizontais que passam pelo
ponto determinado).
6.
No plano horizontal, a direção da
primeira dimensão é a das retas frontais (ou transversais) e a direção da
segunda dimensão a das retas de topo.
XII
REPRESENTAÇÃO GEOMÉTRICA
DOS ESTADOS DO
SER
Na
representação geométrica em três dimensões que expusemos, cada modalidade de um
estado de ser qualquer é indicada por apenas um ponto; uma tal modalidade,
entretanto, é susceptível de se desenvolver durante o percurso de um ciclo de
manifestação que comporta uma indefinidade de modificações secundárias. Assim,
para a modalidade corporal do indivíduo humano, por exemplo, estas modificações
serão todos os momentos da sua existência (encarada naturalmente sob o aspecto
da sucessão temporal, que é uma das condições às quais esta modalidade está
submetida), ou, o que dá no mesmo, todos os atos e todos os gestos, quaisquer
que sejam, que ele cumprirá ao longo desta existência (1). Para encaixar estas
modificações na nossa representação, será preciso figurar a modalidade
considerada, não mais apenas por um ponto, mas por uma reta inteira, da qual
cada ponto será então uma das modificações secundárias de que tratamos,
lembrando sempre que esta reta, ainda que indefinida, não deixa porisso de ser
limitada, como o é todo o indefinido, e mesmo, se podemos nos expressar assim,
toda potência do indefinido (2). Representando a indefinidade simples por uma
linha reta, a dupla indefinidade ou o indefinido à segunda potência o será pelo
plano, e a tripla indefinidade ou o indefinido à terceira potência, pela
extensão em três dimensões. Se então cada modalidade, encarada como uma
indefinidade simples, é representada por uma reta, um estado de ser, que
comporta uma indefinidade destas modalidades, ou seja uma dupla indefinidade,
será agora figurada, em sua integralidade, por um plano horizontal, e um ser,
em sua totalidade, com a indefinidade de seus estados, o será por uma extensão
tridimensional. Esta nova representação é assim mais completa do que a
primeira, mas é evidente que não poderemos, a não ser saindo da extensão
tridimensional, considerar aí senão um único ser, e não mais, como
precedentemente, o conjunto de todos os seres do Universo, pois a consideração
deste conjunto nos obrigaria a introduzir aqui ainda uma outra indefinidade,
que seria então de quarta ordem, e que não poderia ser figurada geometricamente
a não ser supondo uma quarta dimensão suplementar acrescentada à extensão (3).
Nesta
nova representação, vemos primeiramente que por cada ponto da extensão
considerada passam três retas respectivamente paralelas às três dimensões da
extensão; cada ponto poderá então ser tomado como vértice de um triedro
trirretângulo, que constitui um sistema de coordenadas ao qual toda a extensão
será reportada, e cujos três eixos formarão uma cruz de três dimensões.
Suponhamos que o eixo vertical deste sistema seja determinado; ele encontrará
cada plano horizontal em um ponto, que será a origem das coordenadas
retangulares às quais este plano será reportado, coordenadas cujos eixos
formarão uma cruz de duas dimensões. Podemos dizer que este ponto é o centro do
plano, e que o eixo vertical é o lugar dos centros de todos os planos
horizontais; toda vertical, ou seja toda paralela a este eixo, contém também
pontos que se correspondem nestes mesmos planos. Se, além do eixo vertical,
determinamos um plano horizontal particular para formar a base do sistema de
coordenadas, o triedro trirretângulo de que falamos será também inteiramente
determinado. Haverá aí uma cruz de duas dimensões, traçada por dois dos três
eixos, em cada um dos três planos de coordenadas, dos quais um é o plano
horizontal considerado, e os outros dois são dois planos ortogonais que passam
cada qual pelo eixo vertical e por um dos dois eixos horizontais; e estas três
cruzes terão por centro comum o vértice do triedro, que é o centro da cruz de
três dimensões, e que podemos considerar também como o centro de toda a
extensão. Cada ponto poderá ser centro, e podemos dizer que o é em potência;
mas, de fato, é preciso que um ponto particular
seja determinado, e a seguir diremos como, para que se possa
efetivamente traçar a cruz, ou seja medir a extensão toda, ou, analogamente,
realizar a compreensão total do ser.
NOTAS
1.
É propositadamente que empregamos
aqui o termo “gestos”, porque ele alude a uma teoria metafísica muito
importante, mas que não cabe no presente estudo. Podemos ter uma noção sumária
desta teoria reportando-nos ao que dissemos em outra parte a respeito da noção
de apûrva na doutrina hindu e das
“ações e reações concordantes” (Introduction
Générale à l’Étude des Doctrines Hindoues, pgs. 258-261).
2.
O indefinido, que procede do
finito, é sempre redutível a este, pois ele não passa de um desenvolvimento das
possibilidades incluídas ou implicadas no finito. É uma verdade elementar,
ainda que pouco conhecida, que o pretenso “infinito matemático” (indefinidade
quantitativa, seja numérica, seja geométrica) não é absolutamente o infinito,
sendo limitado por determinações inerentes à sua própria natureza; seria aliás
fora de propósito estendermo-nos aqui sobre este ponto, do qual diremos mais
algumas palavras adiante.
3.
Não é aqui o lugar para tratarmos
da questão da “quarta dimensão” do espaço, que deu lugar a muitas concepções
erradas ou fantasistas, e que encontraria melhor seu lugar num estudo sobre as
condições da existência corporal.
XIII
RELAÇÃO DAS DUAS
REPRESENTAÇÕES
PRECEDENTES
Na
nossa segunda representação em três dimensões, em que consideramos somente um
ser em sua totalidade, a direção horizontal segundo a qual se desenvolvem as
modalidades de todos os estados deste ser implica, assim como os planos
verticais que lhe são paralelos, uma idéia de sucessão lógica, enquanto que os
planos horizontais que lhe são perpendiculares correspondem, correlativamente,
à idéia de simultaneidade lógica (1). Se projetarmos toda a extensão sobre
aquele dos três planos de coordenadas que se acha no último caso, cada
modalidade de cada ser será projetada segundo um ponto de uma reta horizontal,
cujo conjunto será a projeção da integralidade de um certo estado de ser e, em
particular, o estado cujo centro coincide com o do ser total será figurado pelo
eixo horizontal situado no plano sobre o qual se faz a projeção. Somos assim
conduzidos à primeira representação, em que o ser está inteiramente situado no
plano vertical; um plano horizontal poderá então ser novamente um grau da
Existência universal, e o estabelecimento desta correspondência entre as duas
representações, permitindo-nos passar facilmente de uma à outra, nos dispensa
de sair da extensão em três dimensões.
Cada
plano horizontal, quando representa um grau de Existência universal, compreende
todo o desenvolvimento de uma possibilidade particular, cuja manifestação
constitui, em seu conjunto, aquilo que podemos denominar um “macrocosmo”, ou
seja um mundo, enquanto que, na outra representação, que se refere a apenas um
ser, ele é somente o desenvolvimento da mesma possibilidade dentro deste ser, o
que constitui um estado dele, seja uma individualidade integral ou um estado
não-individual, que podemos, em todo caso, chamar analogamente um “microcosmo”.
De resto, cabe lembrar que o próprio “macrocosmo”, assim como o “microcosmo”,
desde que visto isoladamente, não passa de um dos elementos do Universo, como
cada possibilidade particular não passa de um elemento da Possibilidade total.
Das
duas representações, aquela que se refere ao Universo, pode ser chamada, para
simplificar a linguagem, a representação “macrocósmica”, e a que se refere a um
ser, a representação “microcósmica”. Já vimos como, nesta última, é traçada a
cruz de três dimensões; o mesmo acontecerá com a representação “macrocósmica”,
se nela determinarmos os elementos correspondentes, ou seja, um eixo vertical
que será o eixo do Universo, e um plano horizontal, que designaremos, por
analogia, como seu equador; e lembraremos aqui que cada “macrocosmo” terá aqui
seu centro sobre o eixo vertical, como o “microcosmo” possuía na outra
representação.
Vemos
pelo exposto, a analogia que existe entre o “macrocosmo” e o “microcosmo”, pois
cada parte do Universo é análoga às outras partes, e todas são análogas a ele
próprio, porque todas são análogas ao Universo total. Resulta daí que, se
considerarmos o “macrocosmo”, cada um dos domínios definidos que ele compreende
lhe é análogo; da mesma forma, se considerarmos o “microcosmo”, cada modalidade
sua lhe é análoga também. É assim que, em particular, a modalidade corporal da
individualidade humana pode ser tomada para simbolizar, em suas diversas
partes, esta mesma individualidade vista integralmente (2); mas nós nos
contentaremos em assinalar este ponto de passagem, pois seria pouco útil entrar
aqui em considerações deste gênero, que só tem uma importância secundária, e que,
aliás, na forma como é apresentado habitualmente, só responde a uma visão
sumária e superficial da constituição do ser humano (3). Em todo caso, desde
que se queira entrar em tais considerações, e ainda que se estabeleçam divisões
muito gerais na individualidade, não devemos jamais esquecer que esta comporta
em realidade uma multitude indefinida de modalidades coexistentes, assim como o
próprio organismo corporal compõe-se de um multitude indefinida de células, das
quais cada qual tem sua existência própria.
NOTAS
1.
Deve ficar claro que as idéias de
sucessão e de simultaneidade não devem ser encaradas aqui senão do ponto de
vista puramente lógico, e não cronológico, pois o tempo não passa de uma
condição especial, diríamos mesmo sequer de estado humano inteiro, mas apenas
de certas modalidades deste estado.
2.
Ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XII, 3ª
ed.
3.
Podemos dizer quase o mesmo das
comparações da sociedade humana com um organismo, que, como observamos em outra
parte a respeito da instituição das castas, encerram certamente uma parte de
verdade, mas que muitos sociólogos abusaram do uso, às vezes pouco
judiciosamente (ver Introduction Générale
à l’Étude des Doctrines Hindoues, pg. 203).
XIV
O SIMBOLISMO DA TECELAGEM
Existe
um simbolismo que se refere diretamente ao que acabamos de expor, embora se
faça dele uma aplicação que, à primeira vista, parece afastar-se um pouco: nas
doutrinas orientais, os livros tradicionais são freqüentemente designados por
termos que, em seu sentido geral, referem-se à tecelagem. Assim, em sânscrito, sûtra significa propriamente “fio”(1):
um livro pode ser formado por um conjunto de sûtras, como um tecido é formado por um conjunto de fios; tantra possui também o significado de
“fio” e de “tecido”, e designa mais particularmente o urdume de um tecido (2).
Da mesma forma, em chinês, king é o
urdume de um pano, e wei sua trama; o
primeiro destes dois termos designa ao mesmo tempo um livro fundamental, e o
segundo seus comentários (3). Esta distinção entre urdume e trama no conjunto
das escrituras tradicionais corresponde, segundo a terminologia hindu, à que
existe entre a Shruti, que é o fruto
da inspiração direta, e a Smriti, que
é o produto da reflexão que se exerce sobre os dados da Shruti (4).
Para
melhor compreender o significado deste simbolismo, é preciso lembrar
primeiramente que o urdume, formado por fios esticados sobre o tear, representa
o elemento imutável e principial, enquanto que os fios da trama, passando em
meio ao urdume pelo vaivém da navete, representam o elemento variável e
contingente, ou seja as aplicações do princípio a tais ou quais condições
particulares. Por outro lado, se considerarmos um fio do urdume e outro da
trama, percebemos imediatamente que seu cruzamento forma uma cruz, da qual eles
são respectivamente a linha vertical e a horizontal; e todo ponto do tecido,
sendo assim o ponto de encontro de dois fios perpendiculares entre si, é
porisso mesmo o centro de uma tal cruz. Ora, segundo o que vimos quanto ao simbolismo
geral da cruz, a linha vertical representa aquilo que une entre si todos os
estados de um ser ou todos os graus da Existência, religando seus pontos
correspondentes, enquanto que a linha horizontal representa o desenvolvimento
de um destes estados ou de um destes graus. Se reportarmos isto ao que já
indicamos, podemos dizer que o sentido horizontal figurará por exemplo o estado
humano, e o sentido vertical o que é transcendente em relação a este estado;
este caráter transcendente é exatamente o da Shruti, que é essencialmente “não
humana”, enquanto que a Smriti comporta as aplicações à ordem humana e é o
produto do exercício de faculdades especificamente humanas.
Podemos
acrescentar aqui outra observação que fará ressaltar a concordância dos diversos
simbolismos, mais estreitamente ligados do que se pode supor à primeira vista:
trata-se do aspecto sob o qual a cruz
simboliza a união dos complementares. Vimos que, sob este aspecto, a linha
vertical representa o princípio ativo ou masculino (Purusha), e a linha horizontal o princípio passivo ou feminino (Prakriti), sendo que toda a manifestação
é produzida pela influência “não-agente” do primeiro sobre o segundo. Ora, por
outro lado, a Shruti é assimilada à
luz direta, figurada pelo sol, e a Smriti
à luz refletida (5), figurada pela lua; mas, ao mesmo tempo, o sol e a lua, em
quase todas as tradições, simbolizam também respectivamente o princípio
masculino e o princípio feminino da manifestação universal.
O
simbolismo da tecelagem não se aplica somente às escrituras tradicionais; ele é
empregado também para representar o mundo, ou mais exatamente o conjunto de
todos os mundos, vale dizer de estados ou graus, em multitude indefinida, que
constituem a Existência universal. Assim, nos Upanishads, o Supremo Brahma
é designado como “Aquele sobre quem os mundos são tecidos, como urdume e
trama”, ou por outras fórmulas similares (6); o urdume e a trama tem
naturalmente, aqui também, os mesmos significados respectivos que acabamos de
definir. Por outro lado, segundo a doutrina taoísta, todos os seres estão
submetidos à alternância contínua dos dois estados de vida e de morte
(condensação e dissipação, vicissitudes do Yang
e do Yin) (7); e os comentadores
chamam a esta alternância “o vaivém da navete sobre o tear cósmico” (8).
De
resto, na verdade, existe tanto mais relação entre estas duas aplicações de um
mesmo simbolismo que o próprio Universo, em certas tradições, é às vezes
simbolizado por um livro: lembraremos apenas, a este propósito, o Liber Mundi dos Rosa-Cruz, e também o
símbolo bem conhecido do Liber Vitae
apocalíptico (9). Sob este ponto de vista ainda, os fios do urdume, pelos quais
são ligados os pontos correspondentes em todos os estados, constituem o livro
sagrado por excelência, que é o protótipo (ou antes o arquétipo) de todas as
escrituras tradicionais, de que estes não passam da expressão em linguagem
humana (10); os fios da trama, dos quais cada um é o desenrolar dos
acontecimentos de um certo estado, constituem o seu comentário, no sentido que
fornecem as aplicações relativas aos diferentes estados; todos os eventos,
vistos na simultaneidade do “intemporal”, estão assim inscritos neste Livro, do
qual cada um é por assim dizer uma letra, identificando-se por outro lado a um
ponto do tecido. Sobre o simbolismo do livro, citaremos também um resumo do
ensinamento de Mohyiddin ibn Arabi: “O Universo é um imenso livro; os
caracteres desse livro são todos escritos, em princípio, com a mesma tinta e
transcritos na Tábua eterna pela pluma divina; todos são transcritos
simultaneamente e indivisíveis; é por isso que os fenômenos essenciais divinos
escondidos no “segredo dos segredos” tomam o nome de “letras transcendentes”. E
essas mesmas letras transcendentes, ou seja todas as criaturas, antes de serem condensadas
virtualmente na onisciência divina, foram, pelo sopro divino, descidas até as
linhas inferiores, e compuseram e formaram o Universo manifestado” (11).
Uma
outra forma do simbolismo da tecelagem, que se reencontra também na tradição
hindu, é a imagem da aranha tecendo sua teia, imagem que é tanto mais exata na
medida em que a aranha forma essa teia de sua própria substância (12). Em razão
da forma circular da teia, que é aliás o esquema plano do esferóide
cosmogônico, ou seja da esfera não fechada ã qual já fizemos alusão, o urdume é
representado aqui pelos fios irradiantes ao redor do centro, e a trama pelos
fios dispostos em circunferências concêntricas (13). Para voltarmos daí à
figura comum da tecelagem, só temos que considerar o centro como indefinidamente
afastado, de tal modo que os raios se tornam paralelos, segundo a direção
vertical, enquanto que as circunferências concêntricas se tornam retas
perpendiculares a esses raios, ou seja horizontais.
Em
resumo, podemos dizer que o urdume representa os princípios que religam entre
si todos os mundos e todos os estados, sendo que cada um de seus fios religa
pontos correspondentes nestes diferentes estados, e que a trama representa os
conjuntos de eventos que se produzem em cada um destes mundos, de modo que cada
fio da trama é, como já dissemos, o desenrolar dos eventos em um mundo
determinado. De um outro ponto de vista, podemos dizer ainda que a manifestação
de um ser em um certo estado de existência é, como todo evento qualquer que
seja ele, determinado pelo encontro de um fio do urdume com um fio da trama.
Cada fio do urdume é então um ser visto em sua natureza essencial, que,
enquanto projeção direta do “Si” principial, faz a ligação de todos os seus
estados, mantendo sua unidade própria através da sua indefinida multiplicidade.
Neste caso, o fio da trama que este fio do urdume encontra em um certo ponto
corresponde a um estado definido de existência, e sua interseção determina as
relações deste ser, quanto à sua manifestação neste estado, com o meio cósmico
no qual ele se situa sob este aspecto. A natureza individual de um ser humano,
por exemplo, é o resultado do encontro de dois fios; em outros termos, sempre
caberá distinguir aí duas espécies de elementos, que deverão ser reportados
respectivamente ao sentido vertical e ao sentido horizontal: os primeiros
exprimem aquilo que pertence propriamente ao ser considerado, enquanto que os
segundos provém das condições do meio.
Acrescentemos
que os fios de que é formado o “tecido do mundo” são ainda designados, em outro
simbolismo equivalente, como os “cabelos de Shiva”
(14); podemos dizer que são de certo modo as “linhas de força” do Universo
manifestado, e que as direções do espaço são a sua representação na ordem
corporal. Vemos sem dificuldade a quantas aplicações diferentes estas considerações dão lugar; mas quisemos
aqui apenas indicar o significado essencial do simbolismo da tecelagem, que é,
ao que parece, muito pouco conhecido no Ocidente (15).
NOTAS
1.
Esta palavra é idêntica ao latim sutura, sendo que a mesma raiz, com o
sentido de cozer se encontra igualmente nas duas línguas. – É ao menos curioso
contatar que o termo árabe sûrat, que
designa os capítulos do Corão, é composto dos elementos que o sânscrito sûtura; este termo tem, aliás, o sentido
paralelo de “fila” ou “fileira”, e sua derivação é desconhecida.
2.
A raiz tan desta palavra exprime em primeiro lugar a idéia de extensão.
3.
Ao simbolismo da tecelagem
liga-se ainda o uso de cordinhas com nós que fazia as vezes de escrita na
China, em épocas muito recuadas; estas cordinhas eram do mesmo gênero que as
que os antigos Peruanos também empregavam e às quais eles davam o nome de quipos. Embora se tenha dito que estes
últimos só serviam para contar, é provável que também servissem para exprimir
idéias bastante mais complexas, tanto mais que constituíam os “anais do
império”, e que os Peruanos nunca tiveram outro método de escrita, embora
possuíssem uma língua muito perfeita e refinada; este tipo de ideografia era
possível pelas múltiplas combinações nas quais o uso de fios com cores
diferentes desempenhava um papel importante.
4.
Ver L’Homme et son Devenir selon le
Vêdânta, cap. I, e Autorité
Spirituelle et Pouvoir Temporel, cap. VIII.
5.
O duplo sentido da palavra
“reflexão” é aqui digna de nota.
6.
Mundaka
Upanishad, 2º Mundaka, Khanda, shruti
5ª; Brihad-Aranyaka Upanishad,
3º Adhyâya, 8º Brâhmana, shrutis 7 e 8. – O monge budista
Kûmarajîva traduziu em chinês uma obra sânscrita intitulada A rede de Brahma (Fan-wang-king), segundo o qual os mundos estão dispostos como
malhas de uma rede.
7.
Tao-Te-King,
XVI.
8.
Tchang-Houng-Yang compara também
esta alternância à respiração, sendo que a inspiração ativa corresponde à vida
e a expiração passiva corresponde à morte, e o fim de uma é o começo da outra.
O mesmo comentarista se serve ainda, como termo de comparação, da revolução
lunar, sendo a lua cheia a vida e a lua nova a morte, com dois períodos
intermediários de crescimento e decréscimo. No que concerne à respiração, o que
é dito aqui deve ser referido às fases da existência de um ser comparado a ele
quando respira; por outro lado, na ordem universal, a expiração corresponde ao
desenvolvimento da manifestação, e a inspiração ao retorno ao não-manifestado,
como já foi dito; segundo se encare as coisas em relação à manifestação ou em
relação ao Princípio, não se deve esquecer de aplicar o “sentido inverso” na
analogia.
9.
Indicamos mais acima que, em
certas figurações, o livro selado com sete selos, e sobre o qual está deitado o
cordeiro, é colocado, como a Árvore da Vida”, na fonte comum dos quatro rios
paradisíacos, e aludimos então à relação entre o simbolismo da árvore e o do
livro: as folhas da árvore e os caracteres do livro representam igualmente
todos os seres do Universo (os “dez mil seres” da tradição extremo-oriental).
10. Isto
é afirmado expressamente a respeito do Veda e do Corão; a idéia do “Evangelho
eterno” mostra também que esta mesma concepção não era totalmente estranha ao
Cristianismo.
11. El-Futûhâtul-Mekkiyah.
– Podemos fazer uma aproximação com o papel que desempenham as letras na
doutrina cosmogônica do Sepher Ietsirah.
12. Comentário
de Shankarâchârya sobre os Brahma-Sûtras,
2º Adhyâya, 1º Pâda, sûtra 25.
13. A aranha, mantendo-se no centro da teia, dá a
imagem do sol rodeado de seus raios; ela também pode ser tomada como uma figura
do “Coração do Mundo”.
14. Aludimos
a isto mais acima, a respeito das direções do espaço.
15. Encontramos
entretanto traços de um simbolismo do mesmo tipo na antigüidade greco-latina,
notadamente no mito das Parcas; mas este parece reportar-se apenas aos fios da
trama, e seu caráter “fatal” pode com efeito ser explicado pela ausência da
noção do urdume, ou seja pelo fato de que o ser é visto somente em seu estado
individual, sem nenhuma intervenção consciente (para este indivíduo) de seu
princípio pessoal transcendente. Esta interpretação é, aliás, justificada pelo
modo como Platão considera o eixo vertical no mito de Er o Armênio (República, livro X); segundo ele, de
fato, o eixo luminoso do mundo é o “fuso da Necessidade”; é um eixo de
diamante, cercado de anéis concêntricos, de dimensões e cores diversas, que
correspondem às diferentes esferas planetárias; a Parca Clotho o faz girar com
sua mão esquerda, portanto da direita para a esquerda, o que é o sentido mais
habitual e mais normal da rotação da swastika. – A propósito deste “eixo de
diamante”, assinalemos ainda que o símbolo tibetano do vajra, cujo nome significa ao mesmo tempo “raio” e “diamante”, está
também relacionado ao “Eixo do Mundo”.
XV
REPRESENTAÇÃO DA
CONTINUIDADE
DAS DIFERENTES
MODALIDADES
DE UM MESMO
ESTADO DO SER
Se
considerarmos um estado do ser, figurado por um plano horizontal da
representação “microcósmica” que descrevemos, resta-nos agora dizer de modo
mais preciso a que corresponde o centro deste plano, assim como o eixo vertical
que passa por esse centro. Mas, para chegarmos aí, será preciso ainda recorrer
a uma outra representação geométrica, um pouco diferente da anterior, e na qual
faremos intervir, não apenas o paralelismo ou a correspondência como fizemos
até aqui, mas ainda a continuidade de todas as modalidades de cada estado do
ser entre si, e também de todos os estados entre si, na constituição do ser
total.
Para
tanto, seremos naturalmente levados a fazer em nossa figuração uma alteração
que corresponde, em geometria analítica, à passagem de um sistema de
coordenadas retilíneas para um sistema de coordenadas polares. De fato, ao
invés de representar as diferentes modalidades de um esmo estado por retas
paralelas, como fizemos precedentemente, poderemos representá-las por
circunferências concêntricas traçadas sobre o mesmo plano horizontal, e tendo
por centro comum o centro deste plano, ou seja, segundo o que explicamos mais
acima, seu ponto de encontro com o eixo vertical.
Deste
modo, vemos claramente que cada modalidade é finita, limitada, pois ela é
representada por uma circunferência, uma curva fechada, ou ao menos uma linha
cujas extremidades nos são conhecidas e como que dadas (1); mas, por outro
lado, esta circunferência compreende uma multitude indefinida de pontos (2),
representando a indefinidade das modificações secundárias que comporta a
modalidade considerada, qualquer que seja ela (3). Além disso, as
circunferências concêntricas não devem deixar entre si nenhum intervalo, que
não seja a distância infinitesimal entre dois pontos imediatamente vizinhos
(voltaremos adiante sobre esta questão), de modo que seu conjunto compreende
todos os pontos do plano, o que pressupõe que há continuidade entre todas as
circunferências. Ora, para que haja realmente continuidade, é preciso que o
final de uma circunferência coincida com o início da circunferência seguinte (e
não com o início da mesma circunferência); e para que isto seja possível sem
que as duas circunferências sucessivas sejam confundidas, é preciso que essas
circunferências, ou antes que as curvas que consideramos como tais, sejam na
verdade curvas não fechadas.
Aliás,
podemos ir mais longe nesse sentido: é materialmente impossível traçar de modo
efetivo um linha que seja verdadeiramente uma curva fechada; para prová-lo,
basta lembrar que, no espaço onde se situa nossa modalidade corporal, tudo está
constantemente em movimento (pelo efeito da combinação das condições temporal e
espacial, de que o movimento é de certo modo a resultante), de tal modo que, se
começarmos o traçado em um certo ponto do espaço, iremos nos encontrar
forçosamente em outro ponto quando terminarmos, e não passaremos jamais pelo
ponto de partida. Da mesma forma, a curva que simboliza o percurso de um ciclo
evolutivo qualquer (4) não deverá jamais passar duas vezes pelo mesmo ponto, o
que eqüivale a dizer que ela não deverá ser um curva fechada (nem uma curva
contendo “pontos múltiplos”). Esta representação mostra que não podem haver
duas possibilidades idênticas no Universo, o que aliás eqüivaleria a uma
limitação da Possibilidade total, limitação impossível, pois, devendo
compreender a Possibilidade, ela não poderia estar contida nela. Da mesma forma
toda limitação da Possibilidade universal é, no sentido próprio e rigoroso do
termo, uma impossibilidade; e é porisso que todos os sistemas filosóficos,
enquanto sistemas, por postularem explícita ou implicitamente tais limitações,
estão condenados a uma igual impotência do ponto de vista metafísico (5). Para
não voltarmos mais às possibilidades idênticas ou supostamente idênticas,
lembraremos ainda, para maior precisão, que duas possibilidades que sejam
verdadeiramente idênticas não se distinguirão por nenhuma de suas condições de
realização; mas, se todas as condições forem as mesmas, será também uma mesma
possibilidade, e não mais duas possibilidades distintas, pois haverá
coincidência sob todos os aspectos (6); e este raciocínio pode ser aplicado
rigorosamente a todos os pontos de nossa representação, em que cada ponto
figura uma modificação particular que realiza uma certa possibilidade
determinada (7).
O
começo e o fim de qualquer uma das circunferências que consideramos não devem
então ser o mesmo ponto, mas dois pontos sucessivos de um mesmo raio, e, na
verdade não se pode mesmo dizer que pertençam à mesma circunferência: um
pertence ainda à circunferência precedente, da qual é o fim, e o outro pertence
já à circunferência seguinte, da qual é o início. Os termos extremos de uma
série indefinida podem ser vistos como situados fora dessa série, pelo fato
mesmo de que eles estabelecem a sua continuidade com outras séries; e tudo isto
pode ser aplicado, em particular, ao nascimento e à morte da modalidade
corporal da individualidade humana. Assim, as duas modificações extremas de
cada modalidade não coincidem, existindo apenas correspondência entre elas no
conjunto do estado do ser de que esta modalidade faz parte, sendo esta
correspondência indicada pela situação de seus pontos representativos sobre um
mesmo raio saído do centro do plano. Por conseguinte, o mesmo raio conterá as
modificações extremas de todas as modalidades do estado considerado,
modalidades que aliás não devem ser vistas como sucessivas propriamente falando
(pois elas também podem ser simultâneas), mas apenas como encadeando-se
logicamente. As curvas que figuram estas modalidades, em lugar de serem
circunferências como supusemos de início, são as espiras sucessivas de uma
espiral indefinida traçada sobre o plano horizontal e que se desenvolve a
partir do seu centro; esta curva vai amplificando-se de modo contínuo de uma
espira à outra, sendo que o raio irá variar em quantidades infinitesimais, que
serão as distâncias de dois pontos sucessivos desse raio. Esta distância pode
ser considerada tão pequena quanto se queira, segundo a própria definição das
quantidades infinitesimais, que são quantidades susceptíveis de decrescer
indefinidamente; mas ela não pode jamais ser considerada nula, pois os dois
pontos sucessivos não se confundem; se ela pudesse tornar-se nula, não haveria
mais do que um só e único ponto.
NOTAS
1.
Esta restrição é necessária para
que não haja aqui contradição, mesmo que apenas aparente, com aquilo que irá se
seguir.
2.
Convém frisar que não dizemos um
número indefinido, mas uma multitude indefinida, pois é possível que a
indefinidade de que se trata ultrapasse todo número, embora a própria série dos
números seja indefinida, porém em modo descontínuo, enquanto que a dos pontos
de uma linha o é em modo contínuo. O termo de “multitude” é mais extenso e mais
abarcante do que o de “multiplicidade numérica”, e ele pode mesmo aplicar-se
fora do domínio da quantidade, de que o número não passa de um modo especial; é
o que compreenderam muito bem os filósofos escolásticos, que transpuseram essa
noção de “multitude” para a ordem dos “transcendentais”, ou seja dos modos
universais do Ser, onde ela está para a multiplicidade numérica assim como
conceito da Unidade metafísica está para a unidade aritmética ou quantitativa.
Deve ficar claro que é desta multiplicidade “transcendente” que se trata quando
falamos dos estados múltiplos do ser, sendo a quantidade não mais que uma
condição particular aplicável apenas a alguns destes estados.
3.
Sendo o comprimento de uma
circunferência tanto maior quanto mais esta circunferência está afastada do
centro, poderá parecer à primeira vista que ela deve conter proporcionalmente
mais pontos; mas, por outro lado, se lembrarmos que cada ponto de uma
circunferência é a extremidade de um dos seus raios, e que duas circunferências
concêntricas possuem os mesmos raios, devemos concluir que não existem mais
pontos na maior do que na menor. A solução dessa aparente dificuldade está
naquilo que indicamos na nota precedente: é que não existe realmente um número de
pontos em uma linha, eles não podem propriamente ser contados, estando sua
multitude além do número. Por outro lado, se existem sempre tantos pontos (se é
que se pode falar assim nestas condições) em uma circunferência que diminui
aproximando-se do seu centro, como essa circunferência, no limite, reduz-se ao
próprio centro, este, mesmo não sendo mais que um único ponto, deve conter
então todos os pontos da circunferência, o que eqüivale a dizer que todas as
coisas estão contidas na unidade.
4.
Por “ciclo evolutivo” entendemos
simplesmente, segundo o significado original da palavra, o processo de
desenvolvimento das possibilidades compreendidas em um modo qualquer de
existência, sem que este processo implique no que quer que seja relacionado com
uma teoria “evolucionista” (cf. L’Homme
et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XVII, 3ª ed.); já dissemos suficientemente aliás o que se
deve pensar destas teorias para que seja preciso insistir aqui sobre o tema.
5.
É fácil de ver, por outro lado,
que isto exclui todas as teorias mais ou menos “reincarnacionistas” que
surgiram no Ocidente moderno, tanto quanto o famoso “eterno retorno” de
Nietzche e outras concepções similares; já desenvolvemos estas considerações em
L’Erreur Spirite, 2ª
parte, cap. VI.
6.
Este é um ponto que Leibnitz
parece ter acertado quando colocou o “princípio dos indiscerníveis”, embora ele
não o tenha formulado tão claramente (cf. Autorité
Spirituelle et Pouvoir Temporel, cap. VII).
7.
Entendemos aqui o termo
“possibilidade” na sua acepção mais restrita e especializada: trata-se, não de
uma possibilidade particular susceptível de um desenvolvimento indefinido, mas
apenas de um qualquer dos elementos que um tal desenvolvimento comporta.
XVI
RELAÇÕES DO PONTO
E DA EXTENSÃO
A
questão que a última observação levanta merece que nos detenhamos aí um pouco,
sem no entanto tratarmos aqui das considerações relativas à extensão com todos
os desenvolvimentos que o assunto merece, que caberiam melhor num estudo sobre
as condições da existência corporal. O que queremos assinalar sobretudo, é que
a distância de dois pontos imediatamente vizinhos, de que tratamos em razão da
introdução da continuidade na representação geométrica do ser, pode ser vista
como o limite da extensão no sentido das quantidades indefinidamente decrescentes;
em outros termos, ela é a menor extensão possível, aquela após quem não há mais
extensão, vale dizer não há mais condição espacial, e que não se pode suprimir
sem sair do domínio de existência que está submetido a esta condição. Portanto,
a partir do momento em que se divide a extensão indefinidamente (1), e que se
leva essa divisão tão longe quanto possível, ou seja até os limites da
possibilidade espacial pela qual a divisibilidade está condicionada (e que
aliás é indefinida tanto no sentido crescente como no decrescente), não é ao
ponto que se chega como resultado último, mas sim à distância elementar entre
dois pontos. Resulta daí que, para que haja extensão ou condição espacial, é
preciso que haja dois pontos, e a extensão (em uma dimensão), que é realizada
por sua presença simultânea e que é precisamente a distância entre eles,
constitui um terceiro elemento que exprime a relação existente entre estes dois
pontos. De resto, esta distância, na medida em que a consideramos como uma
relação, não é evidentemente composta de partes, pois as partes nas quais ela
poderia ser dividida, se ela o pudesse, constituiriam outras relações de
distância, das quais ela é logicamente independente, assim como, do ponto de
vista numérico, a unidade é independente das frações (2). Isto é válido para
uma distância qualquer, desde que a encaremos em relação aos dois pontos que
são suas extremidades, e o é a fortiori
para uma distância infinitesimal, que não é absolutamente uma quantidade
definida, mas que exprime apenas uma relação espacial entre dois pontos
imediatamente vizinhos, tais como os dois pontos consecutivos de uma linha
qualquer. Por outro lado, os próprios pontos, considerados como extremidades de
uma distância, não são partes do continuum
espacial, embora a relação de distância suponha que eles são vistos como
situados no espaço; portanto, em realidade, é a distância que é o verdadeiro
elemento espacial.
Consequentemente,
não podemos dizer, com todo o rigor, que a linha seja formada de pontos, e isto
se compreende facilmente, pois, sendo cada um dos pontos sem extensão, sua
simples adição, mesmo sendo eles em multitude indefinida, não poderá jamais
formar uma extensão; na verdade, a linha é constituída pelas distâncias
elementares entre seus pontos consecutivos. Do mesmo modo, e por uma razão
semelhante, se considerarmos em um plano uma indefinidade de linhas paralelas,
não podemos dizer que o plano seja formado pela reunião de todas essas retas,
ou que elas sejam verdadeiros elementos constitutivos do plano; os verdadeiros
elementos são as distâncias entre as retas, distâncias pelas quais elas são
retas distintas e não confundidas, e, se as retas formam um plano em um certo
sentido, não é por si mesmas, assim como ocorre com os pontos em relação a cada
reta. Do mesmo modo ainda, a extensão de três dimensões não é composta por uma
indefinidade de planos paralelos, mas das distâncias entre todos esses planos.
Entretanto,
o elemento primordial, aquele que existe por si mesmo, é o ponto, pois ele é
pressuposto pela distância, sendo esta uma relação; a própria extensão,
portanto, pressupõe o ponto. Podemos dizer que este contém em si uma
virtualidade de extensão, que ele só pode desenvolver primeiramente
desdobrando-se, para colocar-se de certo modo em face de si mesmo, e depois
multiplicando-se (ou melhor submultiplicando-se) indefinidamente, de tal sorte
que a extensão procede inteiramente desta diferenciação, ou, para falar mais
exatamente, dele mesmo na medida em que ele se diferencia. Esta diferenciação aliás
só tem realidade do ponto de vista da manifestação espacial; ela é ilusória em
relação ao ponto principial, que não cessa porisso de continuar sendo o que
era, e cuja unidade essencial não poderia nunca ser afetada (3). O ponto,
considerado em si, não está absolutamente submetido à condição espacial,
porque, bem ao contrário, ele é o seu princípio: é ele que realiza o espaço,
que produz a extensão pelo seu ato, o qual, na condição temporal (mas somente
nela), traduz-se pelo movimento; mas, para realizar assim o espaço, é preciso
que, através de alguma de suas modalidades, ele próprio se situe dentro desse
espaço, que de resto não é nada sem ele, e que ele preencherá inteiramente
através do desdobramento de suas próprias virtualidades (4). Ele pode – sucessivamente,
na condição temporal, ou simultaneamente, fora dessa condição (o que, diga-se
de passagem, nos faria sair do espaço comum tridimensional) – identificar-se,
para realizá-los, a todos os pontos dessa extensão, sendo esta então vista
apenas como uma pura potência de ser, que não é outra coisa senão a
virtualidade total do ponto concebida sob seu aspecto passivo, ou como
potencialidade, o lugar ou o continente de todas as manifestações de sua
atividade, continente que atualmente não é nada, a não ser pela efetivação de
seu conteúdo possível (6).
O
ponto primordial, sendo sem dimensões, é também sem forma; ele não está,
portanto, na ordem das existências individuais; ele só se individualiza a
partir do momento em que ele se situa no espaço, e isto não em si mesmo, mas
apenas através de alguma de suas modalidades, de modo que, a bem dizer, são
estas que são propriamente individualizadas, e não o ponto principial. De
resto, para que haja forma, é preciso que haja previamente diferenciação,
portanto multiplicidade realizada numa certa medida, o que só é possível quando
o ponto se opõe a si mesmo, se podemos dizer assim, por duas ou mais de suas
modalidades de manifestação espacial; e esta oposição é aquilo que, no fundo,
constitui a distância, cuja realização é a primeira efetivação do espaço, que,
sem ela, é apenas pura potência de receptividade. Lembremos ainda que a
distância existe, em primeiro lugar, virtualmente ou implicitamente na forma
esférica de que falamos acima, e que é esta que corresponde ao mínimo de
diferenciação, sendo “isotrópica” em relação ao ponto central, sem nada que
distinga uma direção particular em relação a todas as outras; o raio, que é
aqui a expressão da distância (tomada do centro à periferia), não é traçado
efetivamente e não faz parte integrante da figura esférica. A realização
efetiva da distância só é explicitada na linha reta, e enquanto elemento
inicial e fundamental desta, como resultado da especificação de uma certa
direção determinada; daí por diante, o espaço não pode mais ser visto como
“isotrópico”, e, deste ponto de vista, ele deve ser reportado a dois pólos
simétricos (os dois pontos entre os quais existe a distância), em lugar de
sê-lo a um centro único.
O
ponto que realiza toda a extensão, como indicamos, torna-se seu centro,
medindo-a segundo todas as suas dimensões, pela extensão indefinida dos braços
da cruz nas seis direções, ou em direção aos seis pontos cardeais desta
extensão. É o “Homem Universal”, simbolizado por esta cruz, mas não o homem
individual (pois este, enquanto tal, não pode atingir nada que esteja fora de
seu próprio estado de ser), que é verdadeiramente a “medida de todas as
coisas”, para empregarmos a expressão de Protágoras que já citamos (7), mas,
bem entendido, sem atribuir ao sofista grego a menor compreensão desta
interpretação metafísica (8).
NOTAS
1.
Dizemos “indefinidamente”, mas
não “ao infinito”, o que seria absurdo, pois a divisibilidade é necessariamente
um atributo próprio a um domínio limitado, uma vez que a condição espacial, de
que ela depende, é em si essencialmente limitada; é forçoso portanto que haja
um limite para a divisibilidade, como para qualquer relatividade ou qualquer
determinação, e podemos ter certeza de que este limite existe, mesmo que ele
não nos seja atualmente acessível.
2.
As frações não podem ser,
propriamente falando, “partes da unidade”, pois uma unidade verdadeira é
evidentemente sem partes; esta falsa definição que se dá das frações implica
numa confusão entre a unidade numérica, que é essencialmente indivisível, e as
“unidades de medida”, que são unidades relativas e convencionais, e que, sendo
da natureza das grandezas contínuas, são necessariamente divisíveis e compostas
de partes.
3.
Se a manifestação espacial
desaparecer, todos os pontos situados no espaço serão reabsorvidos no ponto
principial único, porque não haverá entre eles mais nenhuma distância.
4.
Leibnitz distinguiu com razão
aquilo que ele chamou de “pontos metafísicos”, que são para ele verdadeiras
“unidades de substância”, e que são independentes do espaço, e os “pontos
matemáticos”, que não passam de simples modalidades daqueles, na medida em que
são determinações espaciais, constituindo seus “pontos de vista” respectivos
para representar ou exprimir o Universo. Para Leibnitz também, é tudo o que
está situado no espaço que dá ao espaço sua realidade atual; mas é evidente que
não se pode reportar ao espaço, como ele o faz, tudo o que constitui, em cada
ser, a expressão do Universo total.
5.
A transmutação da sucessão em
simultaneidade, na integração do estado humano, implica de certa forma uma
“espacialização” do tempo, que pode traduzir-se pela adjunção de uma quarta
dimensão.
6.
É fácil perceber que a relação do
ponto principial com a extensão virtual, ou antes potencial, é análoga à da “essência”
com a “substância”, entendendo-se estes termos na sua acepção universal, ou
seja como designando os dois pólos ativo e passivo da manifestação, que a
doutrina hindu chama Purusha e Prakriti (ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. IV).
7.
L’Homme
et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XVI, 3ª
ed.
8.
Se fosse nossa intenção a de
iniciarmos aqui um estudo sobre a condição espacial e suas limitações,
poderíamos demonstrar como se pode deduzir, a partir das considerações aqui
expostas, o absurdo das teorias atomistas. Diremos apenas, que tudo o que é
corporal é necessariamente divisível, pelo fato mesmo de ser extenso, ou seja
submetido à condição espacial (cf. Introduction
Générale à l’Étude des Doctrines Hindoues, pgs. 239-240).
XVII
ONTOLOGIA DA
SARSA ARDENTE
Podemos
ainda precisar o significado do desdobramento do ponto central por polarização,
tal como expusemos, colocando-nos do ponto de vista propriamente “ontológico”;
e, para tornar o assunto mais compreensível, podemos encarar primeiramente a
aplicação do ponto de vista lógico e mesmo simplesmente gramatical. De fato,
temos aqui três elementos, os dois pontos e a distância entre eles, e é fácil
de ver que esses três elementos correspondem exatamente aos de uma proposição:
os dois pontos representam os dois termos desta, e sua distância, que exprime a
relação que existe entre eles, representa a “cópula”, ou seja o elemento que
liga os dois termos um ao outro. Se considerarmos a proposição sob sua forma
mais habitual e ao mesmo tempo mais geral, a da proposição atributiva, na qual
a “cópula” é o verbo “ser” (1), veremos que ela exprime uma identidade, ao
menos sob um certo aspecto, entre o sujeito e o atributo; e isto corresponde ao
fato de que os dois pontos não passam na verdade de um desdobramento de um só e
mesmo ponto, colocado por assim dizer em face de si mesmo, como já explicamos.
Por
outro lado, podemos também encarar a relação entre os dois termos como sendo
uma relação de conhecimento: neste caso, o ser, colocando-se por assim dizer em
face de si mesmo para conhecer-se, desdobra-se em sujeito e objeto; mas, aqui
ainda, estes dois não são senão um na realidade. Isto pode ser estendido a todo
conhecimento verdadeiro, que implica essencialmente numa identificação do
sujeito com o objeto, o que podemos exprimir dizendo que, sob o aspecto e na
medida em que haja aí conhecimento, o ser conhecedor é o ser conhecido; vemos
então que este ponto de vista liga-se diretamente ao precedente, pois podemos
dizer que o objeto conhecido é um atributo (ou seja, uma modalidade) do sujeito
conhecedor.
Se
agora considerarmos o Ser universal, que é representado pelo ponto principial
em sua indivisível unidade, e do qual todos os seres, na medida em que são
manifestados da Existência, não passam em suma de “participações”, podemos
dizer que ele se polariza em sujeito e atributo sem que sua unidade seja
afetada; e a proposição na qual ele é ao mesmo tempo sujeito e atributo toma
esta forma: “o Ser é o Ser”. É o próprio enunciado daquilo que os lógicos
chamam de “princípio da identidade”; mas, sob esta forma, vemos que seu alcance
ultrapassa o domínio da lógica, e que é propriamente, antes de tudo, um
princípio ontológico, quaisquer que sejam as aplicações que se possa dar em
diferentes ordens. Podemos dizer ainda que é a expressão da relação do Ser
enquanto sujeito (O que é) para com o Ser enquanto atributo (O que ele é), e
que, por outro lado, sendo o Ser-sujeito o Conhecedor e o Ser-atributo (ou
objeto) o Conhecido, esta relação é o próprio Conhecimento; mas, ao mesmo
tempo, é a relação de identidade; o Conhecimento absoluto é portanto a própria
identidade, e todo conhecimento verdadeiro, sendo uma participação deste,
implica também numa identidade na medida em que é efetivo. Acrescentemos ainda
que, como a relação só tem realidade para os dois termos que ela liga, e sendo
estes dois não mais que um, os três elementos (o Conhecedor, o Conhecido e o
Conhecimento) não são verdadeiramente senão um (2); é o que podemos exprimir
dizendo que “o Ser conhece a Si mesmo através de Si mesmo” (3).
O
que é importante, e que mostra o valor tradicional da fórmula que explicamos, é
que ela se encontra textualmente na Bíblia hebraica, no relato da manifestação
de Deus a Moisés na sarça ardente (4): tendo Moisés Lhe perguntado qual é Seu
Nome, Ele responde: Eheieh asher Eheieh
(5), que se traduz habitualmente por: “Eu sou Aquele que sou” (ou “Aquilo que
Eu sou”), mas cujo significado mais exato seria: “O Ser é o Ser” (6). Existem
duas maneiras diferentes de encarar a constituição desta fórmula, sendo que a
primeira consiste em decompo-la em três estágios sucessivos e graduais, segundo
a ordem das três palavras com as quais ela é formada: Eheieh, “O Ser”; Eheieh asher,
“O Ser é”; Eheieh asher Eheieh, “O
Ser é o Ser”. De fato, sendo dado o Ser, aquilo que se pode dizer (e podemos
acrescentar: o que não pode deixar de ser dito), em primeiro lugar, é que Ele
é, e em seguida que Ele é o Ser; estas afirmações necessárias constituem
essencialmente toda a ontologia no sentido próprio deste termo (7). A segunda
maneira de encarar a mesma fórmula, é de colocar antes de tudo o primeiro Eheieh, depois o segundo como reflexo do
primeiro num espelho (imagem da contemplação do Ser por Si mesmo); em terceiro
lugar, a “cópula” asher vem se
colocar entre os dois termos como uma ligação que exprime sua relação
recíproca. Isto corresponde exatamente ao que expusemos antes: o ponto,
inicialmente único, depois desdobrando-se por uma polarização que é também uma
reflexão, e a relação de distância (relação essencialmente recíproca)
estabelecendo-se entre os dois pontos pelo fato mesmo de sua situação um em
face do outro (8).
NOTAS
1.
Todas
as outras formas de proposição com que trabalham certos lógicos
podem sempre ser reconduzidas à forma atributiva, porque a relação expressa por
essa tem um caráter mais fundamental que as outras.
2.
Ver o que dissemos sobre o
ternário Sachchidânanda em L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta,
cap. XIV, 3ª ed.
3.
No esoterismo islâmico,
encontramos fórmulas tais como: “Allah criou
o mundo de Si mesmo por Si mesmo em Si mesmo”, ou “Ele enviou Sua mensagem de
Si mesmo a Si mesmo por Si mesmo”. Estas duas fórmulas são aliás eqüivalentes,
pois a “Mensagem divina” é o “Livro do Mundo”, arquétipo de todos os Livros
sagrados, e as “letras transcendentes” que compõem este livro são todas as
criaturas, como já foi explicado. Resulta daí também que a “ciências das
letras” (ilmul-hurûf), entendida em
seu sentido superior, é o conhecimento de todas as coisas em seu princípio,
enquanto essências eternas; em um sentido que podemos dizer médio, é a
cosmogonia; enfim, num sentido inferior, é o conhecimento das virtudes dos
nomes e dos números, na medida em que exprimem a natureza de cada ser,
conhecimento que permite exercer por seu intermédio, uma ação de ordem “mágica”
sobre os próprios seres.
4.
Em certas escolas do esoterismo
islâmico, a “sarça ardente”, suporte da manifestação divina, é tomada como
símbolo da aparência individual que subsiste a partir do momento em que o ser
chega à “Identidade Suprema”, no caso que corresponde ao jîvan-mukta na
doutrina hindu (ver L’Homme et son
Devenir selon le Vêdânta, cap. XXIII, 3ª ed.): é o coração
resplandecente de luz da Shekinah, pela presença efetivamente realizada do
“Supremo Si” no centro da individualidade humana.
5.
Êxodo, III, 14.
6.
Eheieh
deve, com efeito, ser considerado aqui, não como um verbo, mas como um nome,
assim como o demonstra o seguimento do texto, no qual é prescrito a Moisés
dizer ao povo: “Eheieh enviou-me a
vós”. Quanto ao pronome relativo asher,
“aquele que”, “o qual”, quando ele desempenha o papel da “cópula”, como é o
caso aqui, ele tem o sentido do verbo “ser” como o que aparece na proposição.
7.
famoso “argumento ontológico” de
Santo Anselmo e Descartes, que deu lugar a tantas discussões, e que é, de fato,
bastante contestável sob a forma “dialética” como foi apresentado, torna-se
perfeitamente inútil, assim como todo o resto do raciocínio, se, em lugar de
falarmos em “existência de Deus” (o que aliás implica numa certa confusão sobre
o significado da palavra “existência”), colocarmos simplesmente esta fórmula:
“O Ser é”, que é evidente por si só, provindo da intuição intelectual e não da
razão discursiva (ver Introduction
Générale à l’Étude des Doctrines Hindoues, pgs. 114-115).
8.
Não é preciso lembrar que, sendo
o Eheieh hebraico o ser puro, o
sentido deste nome divino identifica-se exatamente ao de Ishwara na doutrina hindu, que contém também em Si mesmo o ternário
Sachchidânanda.
XVIII
PASSAGEM DAS
COORDENADAS RETILÍNEAS ÀS COORDENADAS POLARES; CONTINUIDADE POR ROTAÇÃO
Resta-nos
agora voltar à representação geométrica que expusemos por último, e cuja
introdução, como observamos, eqüivale a substituir por coordenadas polares as
coordenadas retilíneas e retangulares de nossa anterior representação
“microcósmica”. Toda variação do raio da espiral que encaramos corresponde a
uma variação eqüivalente sobre o eixo que atravessa todas as modalidades, ou
seja perpendicular à direção segundo a qual efetua-se o desenvolvimento de cada
modalidade. Quanto às variações sobre o eixo paralelo a esta última direção,
elas são substituídas pelas diferentes posições que ocupa o raio ao girar em
torno do pólo (centro do plano ou origem das coordenadas), ou seja pelas
variações deste ângulo de rotação, medido a partir de uma certa posição tomada
como origem. Esta posição inicial, que será a normal à partida da espiral (pois
esta curva parte do centro tangencialmente à posição do raio que é
perpendicular a ela), será aquela do raio que contém, como dissemos, as
modificações extremas (começo e fim) de todas as modalidades.
Mas,
nestas modalidades, apenas o começo e o fim se correspondem, e cada modificação
intermediária ou qualquer elemento de uma modalidade tem igualmente sua
correspondência em todas as outras, sendo as modificações correspondentes
representadas por pontos situados sobre o mesmo raio saído do pólo. Se tomarmos
este raio, qualquer que seja ele, como normal à origem da espiral, teremos
sempre a mesma espiral, mas a figura toda terá girado de um certo ângulo. Para
representarmos a perfeita continuidade que existe entre todas as modalidades, e
na correspondência de todos os seus elementos, será preciso supor que a figura
ocupa simultaneamente todas as posições possíveis ao redor do pólo, e todas
essas figuras similares se interpenetram, pois cada uma delas, dentro do
conjunto de seu desenvolvimento indefinido, compreende igualmente todos os
pontos do plano. Trata-se, propriamente falando, de uma mesma figura em uma
indefinidade de posições diferentes, posições que correspondem à indefinidade
dos valores que pode tomar o ângulo de rotação, supondo que este ângulo varie
de um modo contínuo até que este raio, partido da posição inicial que
definimos, chegue, após uma revolução completa, a se superpor a esta posição
primeira.
Nesta
suposição, teremos a imagem exata de um movimento vibratório propagando-se
indefinidamente, em ondas concêntricas, em torno de seu ponto de partida, em um
plano horizontal como a superfície limpa de um líquido (1); e este seria o
símbolo geométrico mais exato que se pode dar da integralidade de um estado do
ser. Se quiséssemos avançar mais nas considerações de ordem puramente
matemática, que só nos interessam aqui na medida em que nos fornecem
representações simbólicas, poderíamos mesmo mostrar que a realização desta
integralidade corresponde à integração da equação diferencial que exprime a
relação existente entre as variações concomitantes do raio e de seu ângulo de
rotação, em que um e outro variam, um em função do outro, de modo contínuo, ou
seja segundo quantidades infinitesimais. A constante arbitrária que figura na
integral será determinada pela posição do raio tomada como origem, e esta mesma
quantidade, que só é fixa para uma posição determinada da figura, deverá variar
de modo contínuo de 0 a 2pi para
todas as suas posições, de modo que, se considerarmos estas como podendo ser
simultâneas (o que eqüivale a suprimir a condição temporal, que dá à atividade
de manifestação a qualificação particular que constitui o movimento), será
preciso manter a constante indeterminada entre estes dois valores extremos.
Entretanto,
deve-se tomar o cuidado de lembrar que estas representações geométricas,
quaisquer que sejam, são sempre mais ou menos imperfeitas, como toda representação
e toda expressão formal. De fato, somos naturalmente obrigados a situá-los em
um espaço particular, em uma extensão determinada, e o espaço, mesmo encarado
em toda a extensão de que é susceptível, não passa de uma condição especial
contida em um dos graus da Existência universal, e à qual (de resto unida ou
combinada com outras condições da mesma ordem) estão submetidos alguns dos
domínios múltiplos compreendidos neste grau de Existência, domínios dos quais
cada qual é, no “macrocosmo”, análogo àquilo que é no “microcosmo” a modalidade
correspondente deste estado de ser situado neste mesmo grau. A representação é
forçosamente imperfeita, pelo fato mesmo de estar encerrada dentro de limites
mais restritos do que aquilo que é
representado, e, aliás, se não fosse assim, ela seria inútil (2); mas, por
outro lado, ela é tanto menos imperfeita na medida em que, mesmo permanecendo
compreendida dentro dos limites do conceptível, e mesmo dentro dos limites
ainda mais estreitos do imaginável (que procede inteiramente do sensível), ela
se torna menos limitada, o que, em suma, eqüivale a dizer que ela faz intervir
uma potência mais elevada do indefinido (3). Isto se traduz em particular, nas
representações espaciais, pela adjunção de uma dimensão, como indicamos
precedentemente; de resto, esta questão será esclarecida no seguimento de nossa
exposição.
NOTAS
1.
Trata-se daquilo que se chama em
física de superfície limpa “teórica”, pois, de fato, a superfície limpa de um
líquido nunca é indefinidamente extensa e jamais realiza perfeitamente o plano
horizontal.
2.
É porisso que o superior nunca
pode simbolizar o inferior, mas pode sempre ser simbolizado por este; o símbolo
deve evidentemente, para preencher sua
condição de “suporte”, ser mais acessível, portanto menos complexo e extenso do
que o que ele exprime ou representa.
3.
Nas quantidades infinitesimais,
existe algo que corresponde exatamente, mas em sentido inverso, a estas
potências crescentes do infinito: são as diferentes ordens decrescentes destas
quantidades infinitesimais. Nos dois casos, uma quantidade de uma certa ordem é
indefinida, no sentido crescente ou no sentido decrescente, não apenas em
relação às quantidades finitas ordinárias, mas também em relação às quantidades
que pertencem a todas as ordens de indefinidade precedentes; não existe
portanto heterogeneidade radical entre as quantidades ordinárias (consideradas
como variáveis) e as quantidades indefinidamente crescentes o indefinidamente
decrescentes.
XIX
REPRESENTAÇÃO DA
CONTINUIDADE
DOS DIFERENTES
ESTADOS DO SER
Em
nossa nova representação, só consideramos até aqui um plano horizontal, ou seja
um só estado do ser, e é preciso agora figurar também a continuidade de todos
os planos horizontais, que representam a indefinida multiplicidade de todos os
estados. Esta continuidade obtém-se geometricamente de uma maneira análoga: ao
invés de supor o plano horizontal fixo na extensão em três dimensões, suposição
que a presença do movimento torna tão irrealizável materialmente quanto o
traçado de uma curva fechada, só teremos que supor que ele se desloca
insensivelmente, paralelamente a si mesmo, portanto permanecendo sempre
perpendicular ao eixo vertical, e de modo a encontrar sucessivamente este eixo
em todos os seus pontos consecutivos, e correspondendo a passagem de um ponto a
outro ao percurso de uma das espiras que consideramos. O movimento espiroidal
será aqui suposto isócrono, inicialmente para simplificar a representação tanto
quanto possível, e também para traduzir a eqüivalência das múltiplas
modalidades do ser em cada um dos seus estados, quando os encaramos do ponto de
vista do Universal.
Podemos
mesmo, para maior simplicidade, considerar de novo e provisoriamente cada uma
das espiras como já o fizemos no plano horizontal fixo, ou seja como uma
circunferência. Desta vez ainda, a circunferência não irá se fechar, pois,
quando o raio que a descreve for superpor-se à sua posição inicial, ela já não
estará no mesmo plano horizontal (suposto fixo como paralelo à direção de um
dos planos de coordenadas e que marca uma certa situação definida sobre o eixo
perpendicular a essa direção); a distância elementar que separará as duas
extremidades desta circunferência, ou antes a curva suposta como tal, será
então medida, não mais sobre um raio saindo do polo, mas sobre uma paralela ao
eixo vertical (1). Estes pontos extremos não pertencem ao mesmo plano
horizontal, mas a dois planos horizontais superpostos; eles estão situados de
parte e de outra do plano horizontal considerado no curso de seu deslocamento
intermediário entre estas duas posições (deslocamento que corresponde ao
desenvolvimento do estado representado por este plano), porque eles marcam a
continuidade de cada estado de ser com aquele que o precede e com aquele que o
segue imediatamente, na hierarquização do ser total. Se considerarmos os raios
que contém as extremidades das modalidades de todos os estados, sua
superposição forma um plano vertical do
qual eles são as linhas horizontais, e este plano vertical é o lugar de todos
os pontos extremos de que falamos, e que podemos chamar de pontos-limite para
os diferentes estados, como acontecia precedentemente, sob outro ponto de
vista, para as diversas modalidades de cada estado. A curva que havíamos
provisoriamente considerado como uma circunferência é em realidade uma espira,
de altura infinitesimal (distância entre dois planos horizontais que encontram
o eixo vertical em dois pontos sucessivos), de uma hélice traçada sobre um
cilindro de revolução cujo eixo não é outro que o eixo vertical de nossa
representação. A correspondência entre os pontos das espiras sucessivas é aqui
marcado pela sua situação sobre uma mesma geratriz do cilindro, ou seja sobre a
mesma vertical; os pontos que se correspondem, através da multiplicidade de
estados do ser, aparecem confundidos quando os encaramos na totalidade da
extensão em três dimensões, em projeção ortogonal sobre o plano de base do
cilindro, ou seja sobre o plano horizontal determinado.
Para
completar nossa representação, basta agora encarar simultaneamente, de um lado,
o movimento helicoidal, efetuando-se sobre um sistema cilíndrico vertical
constituído por uma indefinidade de cilindros circulares concêntricos (sendo
que o raio de base varia de um para outro segundo uma quantidade
infinitesimal), e de outro lado, o movimento espiroidal que consideramos
precedentemente em cada plano horizontal suposto fixo. Pela combinação destes
dois elementos, a base plana do sistema vertical não será outra coisa que a
espiral horizontal, que eqüivale ao conjunto de uma indefinidade de
circunferências concêntricas não fechadas; mas, por outro lado, para levarmos
mais longe a analogia das considerações relativas respectivamente às duas
extensões de duas e três dimensões, e também para melhor simbolizarmos a
perfeita continuidade de todos os estados do ser entre si, será preciso
encararmos a espiral, não em uma só posição, mas em todas as posições que ela
pode ocupar ao redor do seu centro. Teremos assim uma indefinidade de sistemas
verticais tais como o precedente, possuindo o mesmo eixo, e interpenetrando-se
todos quando os vemos como coexistentes, pois cada um deles compreende
igualmente a totalidade dos pontos de uma mesma extensão em três dimensões, na
qual estão todos situados; não passa, ainda aqui, do mesmo sistema considerado
simultaneamente em todas as posições, em multitude indefinida, que ele pode
ocupar ao cumprir uma rotação completa ao redor do eixo vertical.
Veremos
entretanto que, na realidade, a analogia assim estabelecida não é ainda
totalmente suficiente; mas, antes de irmos mais longe, lembraremos que tudo o
que dissemos pode aplicar-se tão bem à representação “macrocósmica” como à
“microcósmica”. Neste caso, as espiras sucessivas da espiral indefinida traçada
sobre o plano horizontal, ao invés de representar as diversas modalidades de um
estado do ser, representarão os domínios múltiplos de um grau da Existência
universal, enquanto que a correspondência vertical será a de cada grau da
Existência, em cada uma das possibilidades determinadas que ele compreende, com
todos os outros graus. Acrescentemos aliás, para não termos de repeti-lo, que
esta concordância entre as duas representações “macrocósmica” e “microcósmica”
será igualmente verdadeira para tudo o que virá a seguir.
NOTAS
1.
Em outros termos, é no sentido
vertical, e não mais no sentido horizontal como precedentemente, que a curva
permanecerá aberta.
XX
O VÓRTEX ESFÉRICO
UNIVERSAL
Se
voltarmos ao sistema vertical complexo que consideramos por último, veremos
que, ao redor do ponto tomado como centro da extensão em três dimensões que
preenche o sistema, esta extensão não é “isotrópica”, ou, em outros termos,
que, em função da determinação de uma direção particular e de certo modo
“privilegiada”, que é a do eixo do sistema, ou seja a direção vertical, a
figura não é homogênea em todas as direções a partir deste ponto. Ao contrário,
no plano horizontal, quando consideramos simultaneamente todas as posições da
espiral em torno do centro, este plano era encarado assim de modo homogêneo e
sob um aspecto “isotrópico” em relação a este centro. Para que o mesmo aconteça
na extensão em três dimensões, é preciso lembrar que toda reta passando pelo
centro pode ser tomada como eixo de um sistema como o que descrevemos, de modo
que qualquer direção pode desempenhar o papel da vertical; da mesma forma,
sendo qualquer plano que passe pelo centro, perpendicular a uma destas retas,
resulta daí que, correlativamente, qualquer direção de planos poderá
desempenhar o papel da direção horizontal, e mesmo o da direção paralela a um
qualquer dos três planos de coordenadas. De fato, todo plano que passa pelo
centro pode tornar-se um desses três planos dentro de uma infinidade de
sistemas de coordenadas trirretangulares, pois ele contém uma indefinidade de
pares de retas ortogonais cruzando-se no centro (sendo estas retas todos os
raios que partem do polo na figuração da espiral), pares que podem cada qual
formar dois quaisquer dos três eixos de um destes sistemas. Assim como cada
ponto da extensão é o centro em potência, como já dissemos, cada reta desta
extensão é eixo em potência, e, mesmo quando o centro tenha sido determinado,
cada reta passando por este ponto será ainda, em potência, um qualquer dos três
eixos. Quando se tenha escolhido o eixo central ou principal do sistema,
restará ainda fixar os dois outros eixos no plano perpendicular ao primeiro e
que passem igualmente pelo centro; mas é preciso que, como o próprio centro, os
três eixos sejam também determinados para que a cruz seja efetivamente traçada,
ou seja para que a extensão inteira possa ser realmente medida segundo estas
três dimensões.
Podemos
ver como coexistentes todos os sistemas tais como o de nossa representação
vertical, tendo respectivamente por eixos centrais todas as retas que passam
pelo centro, pois eles são de fato coexistentes em estado potencial, e, de
resto, isto não impede de escolher a seguir três eixos de coordenadas
determinados, aos quais reportaremos toda a extensão. Aqui ainda, todos os
sistemas de que falamos não passam de diferentes posições do mesmo sistema, a
partir do momento em que seu eixo toma todas as posições possíveis ao redor do
centro, e eles se interpenetram pela mesma razão que precedentemente, ou seja
porque cada um deles compreende todos os pontos da extensão. Podemos dizer que
é o ponto principial de que falamos, independentemente de qualquer determinação
e representando o ser em si, que efetua ou realiza esta extensão, até então
apenas potencial e concebida como uma pura possibilidade de desenvolvimento,
preenchendo o volume total, indefinido à terceira potência, pela completa
expansão de suas virtualidades em todas as direções. De resto, é precisamente
na plenitude da expansão que se obtém a perfeita homogeneidade, assim como, inversamente,
a extrema distinção só é realizável na extrema universalidade (1); no ponto
central do ser estabelece-se, como já dissemos, um perfeito equilíbrio entre os
termos opostos de todos os contrastes e de todas as antinomias a que dão lugar
os pontos de vista exteriores e particulares.
Como,
com a nova consideração de todos os sistemas coexistentes, as direções da
extensão desempenham todas o mesmo papel, o deslocamento que se efetua a partir
do centro pode ser visto como esférico, ou melhor esferoidal: o volume total é,
como já indicamos, um esferóide que se estende indefinidamente em todos os
sentidos, e cuja superfície não se fecha, assim como as curvas que descrevemos
antes; de resto, a espiral plana, encarada simultaneamente em todas as suas
posições, não é outra coisa que uma seção desta superfície por um plano que
passa pelo centro. Dissemos que a realização da integralidade de um plano pode
traduzir-se pelo cálculo de uma integral simples; aqui, como se trata de um
volume, e não de uma superfície, a realização da totalidade da extensão
traduz-se pelo cálculo de um integral dupla (2); as duas constantes arbitrárias
que se introduzirão neste cálculo poderão ser determinadas pela escolha de dois
eixos de coordenadas, sendo o terceiro termo fixado porisso mesmo, pois ele
deve ser perpendicular ao plano dos outros dois e passar pelo seu centro.
Devemos ainda frisar que o deslocamento deste esferóide não passa, em suma, da
propagação indefinida de um movimento vibratório (ou ondulatório, pois estes
termos são sinônimos no fundo), não mais apenas num plano horizontal, mas em
toda a extensão em três dimensões, sendo o ponto de partida desse movimento
visto como o centro. Se considerarmos esta extensão como um símbolo geométrico,
ou seja espacial, da Possibilidade total (símbolo necessariamente imperfeito,
pois limitado pela sua própria natureza), a representação à que chegamos será a
figuração, na medida do possível, do vórtex esférico universal segundo o qual
escoa a realização de todas as coisas, e que a tradição metafísica do
Extremo-Oriente chama Tao, ou seja, a
“Via”.
NOTAS
1)
Aludimos ainda aqui à união dos
dois pontos de vista da “unidade na pluralidade e da pluralidade na unidade”,
de que já tratamos antes, em conformidade com os ensinamentos do esoterismo
islâmico.
2)
Um ponto importante a lembrar,
embora não possamos insistir nele aqui, é que uma integral não pode ser
calculada tonando um a um e sucessivamente seus elementos, pois deste modo o
cálculo não se completaria jamais; a integração só pode efetuar-se por uma
única operação sintética, e o procedimento analítico de formação das somas
numéricas não pode ser aplicável ao infinito.
XXI
DETERMINAÇÃO DOS
ELEMENTOS
DA REPRESENTAÇÃO
DO SER
Pelo
que acabamos de expor, levamos até seus limites concebíveis, ou antes
imagináveis (porque trata-se de uma representação de ordem sensível), a
universalização de nosso símbolo geométrico, introduzindo nele gradualmente, em
fases sucessivas, ou mais exatamente vistas sucessivamente ao longo de nosso
estudo, uma indeterminação cada vez maior, correspondendo àquilo a que chamamos
de potências mais e mais elevadas do indefinido, mas sem sairmos da extensão de
três dimensões. Após havermos chegado a este ponto, deveremos agora refazer o
caminho em sentido inverso, para dar à figura a determinação de todos os seus
elementos, determinação sem a qual, embora existindo inteiramente em estado
virtual, ela não pode ser traçada efetivamente; mas esta determinação, que em
nosso ponto de partida era vista apenas, por assim dizer, hipoteticamente como
uma pura possibilidade, tornar-se-á agora real, pois poderemos marcar o
significado de cada um dos elementos constitutivos do símbolo crucial pelo qual
ela se caracteriza.
Inicialmente,
encararemos, não a universalidade dos seres, mas um só ser na sua totalidade;
suporemos que o eixo vertical seja determinado, e em seguida que seja também
determinado o plano que passa por este eixo e que contém os pontos extremos das
modalidades de cada estado; voltaremos assim ao sistema vertical que tem por
base plana a espiral horizontal considerada em uma só posição, sistema que já
descrevemos anteriormente. Aqui, as direções dos três eixos de coordenadas são
determinadas, mas apenas o eixo vertical tem sua posição efetivamente
determinada; um dois eixos horizontais será situado no plano vertical de que
falamos, e o outro lhe será perpendicular; mas o plano horizontal que conterá
estas duas retas retangulares permanece ainda indeterminado. Se determinarmos
este plano, determinaremos também o centro da extensão, ou seja a origem do
sistema de coordenadas a que esta extensão está referida, pois este ponto não é
outro que a interseção do plano horizontal de coordenadas com o eixo vertical;
todos os elementos da figura serão então efetivamente determinados, o que
permitirá traçar a cruz de três dimensões, medindo a extensão em sua
totalidade.
Devemos
ainda lembrar que havíamos considerado, para constituir o sistema
representativo do ser total, primeiro uma espiral horizontal, e em seguida uma
hélice cilíndrica vertical. Se considerarmos isoladamente uma espira qualquer
desta hélice, poderemos, desprezando a diferença elementar de nível entre suas
extremidades, vê-la como uma circunferência traçada num plano horizontal;
poderemos mesmo tomar como uma circunferência cada espira da outra curva, a
espiral horizontal, se desprezarmos a variação elementar do raio nas suas
extremidades. Por conseguinte, toda circunferência traçada em um plano
horizontal e que tenha por centro o centro desse mesmo plano, ou seja sua
interseção com o eixo vertical, poderá inversamente, e com as mesmas
aproximações, ser vista como uma espira que pertence ao mesmo tempo a uma
hélice vertical e a uma espiral horizontal (1); resulta daí que a curva que
representamos como uma circunferência não é, na realidade, nem fechada nem
plana.
Esta
circunferência representará uma modalidade qualquer de um estado de ser
igualmente qualquer, vista segundo a direção do eixo vertical, que projetará a
si mesmo horizontalmente em um ponto, centro da circunferência. Por outro lado,
se virmos a esta segundo a direção de um ou outro dos dois eixos horizontais,
ela irá projetar-se em um segmento, simétrico em relação ao eixo vertical, de
uma reta horizontal que forma com este último uma cruz de duas dimensões, sendo
esta reta horizontal o traço, sobre o plano
vertical de projeção, do plano sobre o qual esta situada a
circunferência considerada.
No
que concerne ao significado da circunferência com o ponto central, sendo este o
traço do eixo vertical sobre um plano horizontal, lembraremos que, segundo um
simbolismo bastante geral, o centro e a circunferência representam o ponto de
partida e a finalização de um modo qualquer de manifestação (2); eles
correspondem assim respectivamente àquilo que são, no Universal, a “essência” e
a “substância” (Purusha e Prakriti na doutrina hindu), ou ainda o
Ser em si e sua possibilidade, e eles representam, para qualquer modo de
manifestação, a expressão mais ou menos particularizada destes dois princípios
vistos como complementares, ativo e passivo um em relação ao outro. Isto acaba
de justificar o que dissemos precedentemente sobre a relação existente entre os
diversos aspectos do simbolismo da cruz, pois podemos deduzir daí que, em nossa
representação geométrica, o plano horizontal (que supusemos fixo enquanto plano
de coordenadas, e que pode de resto ocupar uma posição qualquer, sendo
determinada apenas sua direção) desempenhará um papel passivo em relação ao
eixo vertical, o que eqüivale a dizer que o estado do ser correspondente
realizar-se-á em seu desenvolvimento integral soba influência ativa do
princípio representado pelo eixo (3); isto será melhor compreendido pelo que se
segue, mas era importante indicá-lo desde já.
NOTAS
1)
Esta circunferência é a mesma que
limita exteriormente a figura conhecida como Yin-Yang no simbolismo extremo-oriental, figura a que já aludimos e
de que iremos tratar mais adiante.
2)
Vimos que, no simbolismo dos
números, esta figura corresponde ao denário, visto como o desenvolvimento da
unidade.
3)
Se considerarmos a cruz de duas
dimensões obtida pela projeção sobre um plano vertical, cruz que é naturalmente formada por uma linha
vertical e outra horizontal, veremos que, nestas condições, a cruz simboliza a
união dos dois princípios ativo e passivo.
XXII
O SIMBOLISMO
ORIENTAL DO YIN-YANG:
EQÜIVALÊNCIA
METAFÍSICA
DO NASCIMENTO E
DA MORTE
Para
voltarmos à determinação de nossa figura, só teremos que considerar
particularmente duas coisas: de um lado, o eixo vertical, e, de outro, o plano
horizontal de coordenadas. Sabemos que um plano horizontal representa um estado
do ser, de que cada modalidade corresponde a uma espira plana que consideramos
não distinta de uma circunferência; por outro lado, as extremidades desta
espira, na verdade, não estão contidas no plano da curva, mas nos dois planos
imediatamente vizinhos, pois esta mesma curva, vista dentro do sistema
cilíndrico vertical, é “uma espira, uma função de hélice, mas cujo passo é infinitesimal.
É por isso que, dado que vivemos, agimos e raciocinamos no presente sobre
contingências, podemos e devemos considerar o gráfico da evolução individual
(1) como uma superfície (plana). E, em realidade, ela possui desta todos os
atributos e as qualidades, e só difere da superfície considerando-se o Absoluto
(2). Assim, em nosso plano (ou grau de existência), o “circulus vital” é uma
verdade imediata, e o círculo é bem a representação do ciclo individual humano”
(3).
O yin-yang que, no simbolismo tradicional
do Extremo-Oriente, figura o “círculo do destino individual”, é de fato um
círculo, pelas razões precedentes. “É um círculo representativo de uma evolução
individual ou específica (4), e ele só participa através de duas dimensões, do
cilindro cíclico universal. Não tendo espessura, ele não possui opacidade, e é
representado como diáfano e transparente, o que eqüivale a dizer que os
gráficos das evoluções, anteriores e posteriores ao seu momento (5), podem ser
vistos através de si” (6). Mas, bem entendido, não se deve perder de vista que,
se tomado à parte, o yin-yang pode
ser considerado como um círculo, ele é, na sucessão das modificações
individuais (7), um elemento de hélice: toda modificação individual é
essencialmente um vórtex em três dimensões
(8); ele só possui uma única estase humana, e
jamais retorna ao caminho já percorrido” (9).
As
duas extremidades da espira da hélice de passo infinitesimal são, como
dissemos, dois pontos imediatamente vizinhos sobre uma geratriz do cilindro,
uma paralela ao eixo vertical (de resto, situada em um dos planos de
coordenadas). Estes dois pontos não pertencem realmente à individualidade, ou,
de modo mais geral, ao estado do ser representado pelo plano horizontal
considerado. “A entrada no yin-yang e a
saída do yin-yang não estão à disposição do indivíduo, pois trata-se de dois
pontos que pertencem, embora ao yin-yang, à espira inscrita sobre a superfície
lateral (vertical) do cilindro, e que estão submetidos à atração da “Vontade do
Céu”. E na realidade, de fato, o homem não é livre no seu nascimento nem na sua
morte. Quanto ao nascimento, ele não é livre nem para aceitá-lo, nem para
recusá-lo, nem para determinar-lhe o momento; quanto à morte, ele não é livre
para subtrair-se a ela; tampouco ele deve ter escolha quanto ao momento de
morrer... Em todo caso, ele não possui liberdade sobre nenhuma das condições
destes dois atos: o nascimento atira-o invencivelmente no círculo de uma
existência que ele não pediu nem escolheu; a morte retira-o desse círculo e lança-o
em outro, prescrito e previsto pela “vontade do Céu”, sem que ele possa
modificar nada nisso (10). Assim, o homem terrestre é escravo quanto aos seus
nascimento e morte, ou seja em relação aos dois atos principais de sua vida
individual, os únicos que resumem em suma sua evolução particular em relação ao
Infinito”(11).
Deve
ser entendido que “os fenômenos morte e nascimento, considerados em si mesmos e
fora dos ciclos, são perfeitamente iguais” (12); podemos mesmo dizer que se
trata de um único e mesmo fenômeno visto sob dois aspectos diferentes, do ponto
de vista de um ou outro dos dois ciclos consecutivos entre os quais ele
intervém. Isto pode ser visto imediatamente em nossa representação geométrica,
pois o fim de um ciclo qualquer coincide sempre necessariamente com o começo de
um outro, e empregamos os termos “nascimento” e “morte” tomando-os na sua
acepção mais geral, para designar as passagens entre os ciclos, qualquer que
seja aliás a extensão destes, e quer se trate de mundos ou de indivíduos. Estes
dois fenômenos “acompanham-se e completam-se um ao outro: o nascimento humano é
a conseqüência imediata de uma morte (em outro estado). Uma destas
circunstâncias jamais acontece sem a outra. E, como o tempo não existe aqui,
podemos afirmar que, entre o valor intrínseco do fenômeno nascimento e o valor
intrínseco do fenômeno morte, existe identidade metafísica. Quanto ao seu valor
relativo, e devido ao imediato das conseqüências, a morte na extremidade de um
ciclo é superior ao nascimento neste mesmo ciclo, no montante do valor da
atração da “Vontade do Céu” sobre este ciclo, ou seja, matematicamente, do
passo da hélice evolutiva” (13).
NOTAS
1.
Seja para uma modalidade
particular, seja mesmo para a individualidade integral se a encararmos
isoladamente no ser; desde que se considere apenas um só estado, a
representação deve ser plana. Lembraremos ainda, para evitar mal-entendidos,
que a palavra “evolução” não pode significar para nós nada além do
desenvolvimento de um certo conjunto de possibilidades.
2.
Ou seja encarando o ser na sua
totalidade.
3.
Matgioi, La Voie Métaphysique,
pg. 128.
4.
A espécie, de fato, não é um
princípio transcendente em relação aos indivíduos que fazem parte dela; ela
mesmo é da ordem das existências individuais e não ultrapassa essa ordem; ela
se situa portanto no mesmo nível na Existência universal, e podemos dizer que a
participação à espécie efetua-se no sentido horizontal; talvez algum dia
dediquemos um estudo especial sobre a questão das condições da espécie.
5.
Estas evoluções são o desenvolvimento
de outros estados, assim repartidos em relação à espécie humana; lembremo-nos
que, metafisicamente, não existe “anterioridade” nem “posteridade” senão no
sentido de um encadeamento causal e puramente lógico, que não poderia excluir a
simultaneidade das coisas no “eterno presente”.
6.
Matgioi, La Voie Métaphysique, pg. 129. – A figura é dividida em duas
partes, uma escura e outra clara, que correspondem respectivamente a estas
evoluções anteriores e posteriores, podendo os estados de que se trata serem
considerados simbolicamente, por comparação com o estado humano, uns como
sombrios, outros como luminosos; ao mesmo tempo, a parte obscura é o lado do yin, e a parte clara o lado do yang, conforme o significado original
desses dois termos. Por outro lado, sendo o yang
e o yin também os dois princípios
masculino e feminino, temos também, de outro ponto de vista, e conforme já
indicamos, a representação do “Andrógino” primordial cujas duas metades são já
diferenciadas, sem estarem ainda separadas. Enfim, enquanto representativo das
revoluções cíclicas, cujas fases são ligadas à predominância alternativa do yang e do yin, a mesma figura está ainda em relação com a swastika, como também com a dupla
espiral de que falamos precedentemente; mas isto nos afastaria muito de nosso
tema.
7.
Consideradas na medida em que se
correspondem (em sucessão lógica) nos diferentes estados do ser, que devem
aliás ser vistos em simultaneidade para que as diferentes espiras da hélice
possam ser comparadas entre si.
8.
É um elemento do vórtex esférico
de que se tratou precedentemente; existe sempre analogia e em certa medida
“proporcionalidade” (sem que entretanto possa haver medida comum) entre o todo
e cada um de seus elementos, mesmo infinitesimais.
9.
Matgioi, La Voie Métaphysique, pg. 131-132 (nota). – Isto exclui ainda
formalmente a possibilidade da “reencarnação”. A este respeito, podemos ainda
lembrar, do ponto de vista da representação geométrica, que uma reta só pode
encontrar um plano em um único ponto; isto ocorre particularmente no caso do
eixo vertical em relação a cada plano horizontal.
10. Isto
acontece porque o indivíduo como tal não passa de um ser contingente, não tendo
em si mesmo sua razão suficiente; é porisso que o percurso de sua existência,
se a vemos sem levar em conta a variação segundo o sentido vertical, aparece
como o “ciclo da necessidade”.
11. Matgioi,
La Voie Métaphysique, pg. 132-133. –
“Mas, entre seu nascimento e sua morte, o indivíduo é livre, na emissão e no
sentido de todos os seus atos terrestres; no “círculo vital” da espécie e do
indivíduo, a atração da “Vontade do Céu” não se faz sentir”.
12. Ibid.,
pgs. 138-139 (nota).
13. Ibid.,
pg. 137. – Sobre esta questão da eqüivalência metafísica entre o nascimento e a
morte, ver também L’Homme et son Devenir
selon le Vêdânta, caps, VIII e XVII, 3ª ed.
XXIII
SIGNIFICADO DO
EIXO VERTICAL;
INFLUÊNCIA DA
VONTADE DO CÉU
Do
que antecede, resulta que o passo da hélice, elemento pelo qual as extremidades
de um ciclo individual, qualquer que seja, escapa do domínio próprio da
individualidade,, é a medida da “força atrativa da Divindade”(1). A influência
da “Vontade do Céu” no desenvolvimento do ser é medida portanto paralelamente
ao eixo vertical; isto implica evidentemente na consideração simultânea de uma
pluralidade de estados, que constituem outros tantos ciclos integrais de
existência (espirais horizontais), sendo que esta influência transcendente não
se faz sentir no interior de um estado considerado isoladamente.
O
eixo vertical representa então o lugar metafísico da manifestação da “Vontade
do Céu”, e ele atravessa cada plano horizontal
pelo seu centro, ou seja no ponto onde se realiza o equilíbrio no qual
reside precisamente esta manifestação, ou, em outros termos, a harmonização completa de todos os elementos
constitutivos do estado do ser correspondente. É isto, como vimos mais acima, o
que se deve entender como “Invariável Meio” (Tchoung-young), onde se reflete,
em cada estado de ser (pelo equilíbrio que é como que uma imagem da Unidade
principial no manifestado), a “Atividade do Céu”, que, em si mesmo, é
não-agente e não-manifestada, embora ela deva ser concebida como capaz de ação
e de manifestação, sem que isto possa afetá-la ou modificá-la de qualquer modo
que seja, e mesmo, na verdade, como capaz de qualquer ação e qualquer
manifestação, precisamente porque ela está além de todas as ações e
manifestações particulares. Por conseguinte, podemos dizer que, na
representação de um ser, o eixo vertical é o símbolo da “Via pessoal”(2) que
conduz à Perfeição, e que é uma especificação da “Via Universal”, representada
precedentemente por uma figura esferoidal indefinida e não fechada; com o mesmo
simbolismo geométrico, esta especificação obtém-se, segundo o que dissemos,
pela determinação de uma direção particular na extensão, direção que é aquela
do eixo vertical (3).
Nós
falamos aqui da Perfeição, e, a este respeito, é necessária uma breve
explicação: quando este termo é empregado assim, ele deve ser entendido no seu
sentido absoluto e total. Mas para pensarmos nele, em nossa condição atual
(enquanto seres pertencentes ao estado individual humano), é preciso tornar
esta concepção inteligível em modo distintivo; e esta conceptibilidade é a
“perfeição ativa” (Khien),
possibilidade da vontade dentro da Perfeição, e naturalmente de toda-potência,
que é idêntica ao que se designa como a “Atividade do Céu”. Mas, para se falar
disto, é preciso por outro lado sensibilizar esta concepção (pois a linguagem,
como qualquer expressão exterior, é necessariamente de ordem sensível); trata-se
primeiramente da “perfeição passiva” (Khouen),
possibilidade de ação como motivo e como resultado. Khien é a vontade capaz de se manifestar, Khouen é o objeto desta manifestação; mas, de resto, quando falamos
em “perfeição ativa” ou “perfeição passiva”, não dizemos Perfeição no sentido
absoluto, pois existe aí já uma distinção e uma determinação, portanto uma
limitação. Podemos ainda, se o quisermos, dizer que Khien é a faculdade agente (seria mais exato dizer “influente”),
correspondente ao “Céu” (Tien), e que
Khouen é a faculdade plástica,
correspondente à “Terra” (Ti);
encontramos aqui, na Perfeição, o análogo, mas ainda mais universal, daquilo
que designamos, no Ser, como “essência” e “substância” (4). Em todo caso,
qualquer que seja o princípio pelo que se os determine, é preciso frisar que Khien e Khouen só existem metafisicamente, do nosso ponto de vista de seres
manifestados, assim como não é em si que o Ser se polariza em “essência” e
“substância”, mas apenas em relação a nós, na medida em que o vemos a partir da
manifestação universal da qual ele é o princípio e à qual pertencemos.
Se
voltarmos à nossa representação geométrica, veremos que o eixo vertical é
determinado como expressão da “Vontade do Céu” no desenvolvimento do ser, o que
determina ao mesmo tempo a direção dos planos horizontais, representando os
diferentes estados, e a correspondência horizontal e vertical destes,
estabelecendo sua hierarquização. Devido a esta correspondência, os
pontos-limite destes estados são determinados como extremidades de das
modalidades particulares; o plano vertical que os contém é um dos planos de
coordenadas, assim como aquele que lhe é perpendicular segundo o eixo; estes
dois planos verticais traçam em cada plano horizontal uma cruz de duas dimensões,
cujo centro está no “Invariável Meio”. Resta assim apenas um elemento
indeterminado: é a posição do plano horizontal particular que será o terceiro
plano de coordenadas; a este plano corresponde, no ser total, um certo estado,
cuja determinação permitirá traçar a cruz simbólica de três dimensões, ou seja
permitirá realizar a totalização mesma do ser.
Um
ponto que importa levantar ainda, antes de avançarmos mais, é o seguinte: a
distância vertical que separa as extremidades de um ciclo evolutivo qualquer é
constante, o que, parece, eqüivaleria a dizer que, qualquer que seja o ciclo
encarado, a “força atrativa da Divindade” age sempre com a mesma intensidade; e
é de fato assim do ponto de vista do Infinito: é o que exprime a lei da
harmonia universal, que exige a proporcionalidade de certo modo matemática de
todas as variações. É verdade, entretanto, que poderia não ser assim, em
aparência, se nos colocarmos de um ponto de vista especializado, e se tomarmos
em consideração apenas o percurso de um certo ciclo determinado que se queira
comparar com os outros sob este aspecto; seria preciso então poder avaliar, no
caso específico em que nos colocarmos (admitindo-se que seja possível
colocarmo-nos aí efetivamente, o que, em todo caso, está fora do ponto de vista
da metafísica pura), o valor do passo da hélice; mas “nós não conhecemos o
valor essencial deste elemento geométrico, porque não temos atualmente
consciência dos estados cíclicos por que passamos, e não podemos sequer medir a
altura metafísica que hoje nos separa de onde saímos” (5). Não temos nenhum
meio direto de apreciar a medida da ação da “Vontade do Céu”; “só a
conheceremos por analogia (em virtude da lei de harmonia), se, em nosso estado
atual, tendo consciência de nosso estado precedente, pudéssemos julgar a
quantidade metafísica adquirida (6), e, por conseguinte, medir a força
ascensional. Não se diz que isto seja impossível, pois a coisa é facilmente
compreensível; mas ela não está dentro das faculdades da presente humanidade”
(7).
Lembremos
ainda de passagem, e apenas como indicação, como o fazemos sempre que há
oportunidade, da correspondência que existe entre todas as tradições, que
poderíamos, a partir do que foi exposto sobre o eixo vertical, dar uma
interpretação metafísica da conhecida passagem do Evangelho segundo a qual o
Verbo (ou a “Vontade do Céu” em ação) é (em relação a nós) “o Caminho, a Verdade e a Vida” (8). Se
retomarmos por um instante nossa representação “microcósmica” inicial, e, se
considerarmos seus três eixos de coordenadas, o “Caminho” (específico para o
ser encarado) será representado aqui pelo eixo vertical; dos dois eixos
horizontais, um representará a “Verdade” e o outro a “Vida”. Enquanto que o
“caminho” se refere ao “Homem Universal”, ao qual identifica-se o “Si”, a “Verdade”
se refere aqui ao homem intelectual, e a “Vida” ao homem corpóreo (embora este
último termo seja passível de uma certa transposição) (9); destes dois últimos,
que pertencem ambos ao domínio de um mesmo estado particular, ou seja a um
mesmo grau da existência universal, o primeiro deverá ser assimilado à
individualidade integral, de que o segundo será apenas uma modalidade. A “Vida”
será portanto representada pelo eixo paralelo à direção segundo a qual se
desenvolve cada modalidade, e a “Verdade” será pelo eixo que reúne todas as
modalidades atravessando-as perpendicularmente a esta mesma direção (eixo que,
embora igualmente horizontal, poderá ser visto como relativamente vertical em
relação ao outro, segundo o que já dissemos). Isto supõe de resto que o traçado
da cruz de três dimensões está ligado à
individualidade humana terrestre, pois é apenas em relação a esta que
consideramos aqui a “Vida” e mesmo a “Verdade”; este traçado figura a ação do
Verbo na realização do ser total e sua identificação com o “Homem Universal”.
NOTAS
1.
Matgioi, La Voie Métaphysique,
pg. 95.
2.
Lembremos ainda que a
“personalidade” é para nós o princípio transcendente e permanente do ser,
enquanto que a ‘individualidade” não passa de uma manifestação sua, transitória
e contingente.
3.
Isto completa o que já indicamos
a respeito das relações entre a “Via” (Tao) e a “Retidão” (Te).
4.
Ver também L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. IV. – Nos koua de Fo-Hi, Khien é representado por três traços cheios, e Khouen por três traços cortados; vimos que o traço cheio é o
símbolo do yang ou princípio ativo, e
o traço cortado é o do yin ou
princípio passivo.
5.
Matgioi, La Voie Métaphysique,
pgs 137-138 (nota).
6.
Deve ficar entendido que o termo
“quantidade”, que justifica aqui o emprego do simbolismo matemático, deve ser
tomado num sentido puramente analógico; o mesmo ocorre com o termo “força” e
com todos aqueles que evocam imagens emprestadas ao mundo sensível.
7.
Ibid., pg. 96. – Nesta última
citação, introduzimos algumas modificações, mas sem alterar seu sentido, para
aplicar a cada ser aquilo que foi dito do Universo em seu conjunto. ‘O homem
nada pode sobre sua própria vida, porque a lei que rege a vida e a morte, suas
mutações sobre ele, lhe escapa; que pode então ele saber da lei que rege as
grandes mutações cósmicas, a evolução universal?” (Tchouang-tsé, cap. XXV). – Na tradição hindu, os Puranas declaram que não existe medida
dos Kalpas anteriores e posteriores,
ou seja dos ciclos que se referem aos outros graus da Existência universal.
8.
A fim de evitar confusão devemos
especificar aqui que se trata exclusivamente de uma interpretação metafísica, e
não de uma interpretação religiosa; entre estes dois termos existe uma
diferença, como no Islamismo se distingue entre a haqîqah (metafísica e esotérica) e a shariyah (social e exotérica).
9.
Estes três aspectos do homem (dos
quais apenas os dois últimos são realmente “humanos”) são designados
respectivamente na tradição hebraica pelos termos Adam, Aish e Enôsh.
XXIV
O RAIO CELESTE
E SEU PLANO DE
REFLEXÃO
Se
considerarmos a superposição dos planos horizontais representativos de todos os
estados do ser, podemos dizer ainda que, em relação a estes, encarados
separadamente ou em conjunto, o eixo vertical, que une a todos entre si e ao
centro do ser total, simboliza aquilo que diversas tradições chamam de “O Raio
Celeste” ou “O Raio Divino”: é o princípio que a doutrina hindu designa sob os
nomes de Buddhi e de Mahat (1), “que constitui o elemento
superior não-encarnado do homem, e que lhe serve de guia através das fases da
evolução universal”(2). O ciclo universal, representado pelo conjunto de nossa
figura, “e do qual a humanidade (em seu sentido individual e “específico”)
constitui não mais que uma fase, tem um movimento próprio (3), independente de
nossa humanidade, de todas as humanidades, de todos os planos (representando
todos os estados da Existência), de que ele forma a soma indefinida (que é o
“Homem Universal”) (4). Este movimento próprio, que ele extrai da afinidade
essencial do “Raio Celeste” para com sua origem, aponta-o irreversivelmente
para seu Fim (a Perfeição), que é idêntico ao seu Começo, com uma força
diretriz ascensional e divinamente benfazeja (ou harmônica)” (5), que não é
outra coisa que esta “força atrativa da Divindade” de que se tratou no capítulo
precedente.
Falta
insistir sobre um ponto, que é o fato de que o “movimento” do ciclo universal é
necessariamente independente de uma vontade individual qualquer, particular ou
coletiva, que só poderia agir no interior de seu domínio especial, e sem jamais
sair das condições determinadas de existência a que este domínio está
submetido. “O homem, enquanto homem (individual), não poderia dispor de nada
mais ou melhor do que seu destino hominal, cuja marcha individual ele é livre
para deter. Mas este ser contingente, dotado de virtudes e de possibilidades
contingentes, não poderia mover-se, nem deter-se, ou exercer qualquer
influência sobre si mesmo fora do plano contingente particular onde, por hora,
ele está colocado e exerce suas faculdades. É irrazoável supor que ele possa
modificar, a fortiori a marcha eterna
do ciclo universal”(6). De resto, a extensão indefinida das possibilidades do
indivíduo, visto em sua integralidade, não muda nada nisto, pois ela não poderia naturalmente subtrair-se a
todo o conjunto de condições limitativas que caracterizam o estado de ser a que
ele pertence enquanto indivíduo (7).
O
“Raio Celeste” atravessa todos os estados do ser, marcando, como já dissemos, o
ponto central de cada um deles com seu traço sobre o plano horizontal
correspondente, e o lugar de todos esses pontos centrais é o “Invariável Meio”;
mas esta ação do “Raio Celeste” só é efetiva se produzir, por sua reflexão
sobre um destes planos, uma vibração que, propagando-se e amplificando-se na
totalidade do ser, ilumine seu caos, cósmico ou humano. Dizemos cósmico ou
humano, pois isso pode ser aplicado tanto ao “macrocosmo” quanto ao
“microcosmo”; em todos os casos, o conjunto das possibilidades do ser não
constituem propriamente senão um caos “informe e vazio” (8), dentro do qual
tudo é obscuro até o momento em que se produz esta iluminação que determina sua
organização harmônica na passagem da potência ao ato (9). Esta mesma iluminação
corresponde estritamente à conversão das três gunas uma na outra, que nós descrevemos antes conforme um texto do
Veda: se considerarmos as duas fases desta conversão, o resultado da primeira,
efetuada a partir os estados inferiores do ser, opera-se no mesmo plano de
reflexão, enquanto que a segunda imprime à vibração refletida uma direção
ascensional, que a transmite através de toda a hierarquia dos estados
superiores do ser. O plano de reflexão, cujo centro, ponto de incidência do
“Raio Celeste”, é o ponto de partida desta vibração indefinida, será agora o plano
central dentro do conjunto dos estados de ser, ou seja o plano horizontal de
coordenadas em nossa representação geométrica, e seu centro será efetivamente o
centro do ser total. Este plano central, em que estão traçados os braços
horizontais da cruz de três dimensões, desempenha, em relação ao “Raio Celeste”
que é o braço vertical, um papel análogo ao da “perfeição passiva” em relação à
“perfeição ativa”, ou ao da “substância” em relação à “essência”, de Prakriti em relação a Purusha: é sempre, simbolicamente, a
“Terra” em relação ao “Céu”, e também o que todas as tradições cosmogônicas
concordam em representar como a “superfície das Águas”(10). Podemos dizer ainda
que é o plano de separação das “Águas inferiores” e das “Águas superiores”
(11), vale dizer os dois caos, formal e informal, individual e
extra-individual, de todos os estados, tanto não-manifestados como
manifestados, cujo conjunto constitui a Possibilidade total do “Homem
Universal”.
Pela
operação do “Espírito Universal” (Atmâ),
projetando o “Raio Celeste” que se reflete sobre o espelho das “Águas”,
encerra-se no seio destas uma centelha divina, germe espiritual incriado que,
dentro do Universo potencial (Brahmânda ou “Ovo do Mundo”),
corresponde a esta determinação do “Não-Supremo Brahma (Apara-Brahma) que
a tradição hindu designa como Hiranyagarbha
(ou seja o “Embrião de Ouro”) (12). Em cada ser visto em particular, esta
centelha da Luz inteligível constitui, se podemos nos expressar assim, uma
unidade fragmentária (expressão aliás inexata se a tomarmos ao pé da letra,
sendo a unidade de fato indivisível e sem partes) que, desenvolvendo-se para
identificar-se em ato com a Unidade total, com a qual ela é realmente idêntica
em potência (por conter em si mesma a essência indivisível da luz, assim como a
natureza do fogo está toda contida em cada chama) (13), irá irradiar-se em
todos os sentidos a partir do centro, e realizará em sua expansão o perfeito
desabrochar de todas as possibilidades do ser. Este princípio de essência
divina involuída nos seres (apenas na aparência, pois ela não poderia ser
realmente afetada pelas contingências, e este estado de “envelopamento” só
existe do ponto de vista da manifestação) é ainda, no simbolismo védico, Agni (14), manifestando-se no centro da swastika, que é, como vimos, a cruz
traçada no plano horizontal, e que, por sua rotação em torno deste centro, gera
o ciclo evolutivo que constitui cada um dos elementos do ciclo universal. O
centro, único ponto que permanece imóvel nesse movimento de rotação, é, em razão
mesma de sua imobilidade (imagem da imutabilidade principial), o motor da “roda
da existência”; ele encerra em si mesmo a “Lei” (no sentido do termo sânscrito Dharma) (15), ou seja a expressão ou a
manifestação da “Vontade do Céu”, para o ciclo correspondente ao plano
horizontal no qual efetua-se esta rotação, e, segundo o que dissemos, sua
influência se mede, ou poderia ser medida se tivéssemos esta faculdade, pelo
passo da hélice, evolutiva em relação ao eixo vertical (16).
A
realização das possibilidades do ser efetua-se assim por uma atividade que é
sempre interior, porque ela se exerce a partir do centro de cada plano; e de
resto, metafisicamente, não poderia haver aí nenhuma ação exterior exercendo-se
sobre o ser total, pois uma tal ação só é possível de um ponto de vista
relativo e especializado, como o do indivíduo (17). Esta própria realização é
figurada nos diferentes simbolismos pelo desabrochar, sobre a superfície das
“Águas”, de uma flor que é, o mais habitualmente, o lótus nas tradições orientais
e a rosa ou a flor de lis nas tradições ocidentais (18); mas não temos a
intenção de entrarmos aqui nos detalhes destas representações, que podem variar
e modificar-se numa certa medida, em razão das múltiplas adaptações a que se
prestam, mas que, no fundo, procedem todas sempre do mesmo princípio, com
algumas considerações secundárias que baseiam-se sobretudo nos números (19). Em
todo caso, o desabrochamento de que falamos poderá ser visto em primeiro lugar
no plano central, ou seja no plano horizontal de reflexão do “Raio Celeste”,
como integração do estado de ser correspondente; mas ele se estenderá também
para além desse plano, à totalidade dos estados, segundo o desenvolvimento
indefinido, em todas as direções a partir do ponto central, do vórtex esférico
universal de que falamos precedentemente (20).
NOTAS
1.
Ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. VII, e também cap.
XXI, 3ª ed., para o simbolismo do “raio solar” (Sushuma).
2.
Simon e Théophane, Les Enseignements Secrets de la Gnose,
pg. 10.
3.
A palavra “movimento” não passa
aqui de uma expressão puramente analógica, pois o ciclo universal, em sua
totalidade, é evidentemente independente das condições temporal e espacial,
assim como de quaisquer outras condições particulares.
4.
Esta “soma indefinida” é
propriamente falando uma integral.
5.
Ibid.,
pg 50.
6.
Ibid.,
pg 50.
7.
Isto é verdade notadamente para a
“imortalidade” entendida no sentido ocidental, ou seja como um prolongamento do
estado individual humano dentro da “perpetuidade” ou indefinidade temporal (ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta,
cap. XVIII, 3ª ed)
8.
É a tradução literal do hebraico
thohu va-bohu, que Fabre d’Olivet (La Langue Hébraïque Restituée) explica como
“potência contingente de ser dentro de uma potência de ser”.
9.
Cf. Gênese, 1, 2-3.
10. Ver
L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta,
cap. V.
11. Cf.
Gênese, 1, 6-7.
12. Ver
L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta,
cap. XIII, 3ª ed.
13. Ver
ibid., cap. V.
14. Agni
é representado como um princípio ígneo (assim como o Raio luminoso que o faz
nascer), sendo o fogo visto como o elemento ativo em relação à água, elemento
passivo. Agni no centro da swastika, é também o cordeiro junto à
fonte dos quatro rios no simbolismo cristão (ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. III; L’Esotérisme
de Dante, cap. IV; Le Roi du Monde,
cap. IX).
15. Ver
Introduction Générale à l’Étude des Doctrines Hindoues, 3ª Parte,
cap. V, e L’Homme et son Devenir selon le
Vêdânta, cap. IV. – Já indicamos em outra parte a relação que existe entre
a palavra Dharma e o nome sânscrito
do pólo, Dhruva, derivados
respectivamente das raízes dhri e dhru, que tem o mesmo sentido e exprimem
essencialmente a idéia de estabilidade (Le
Roi du Monde, cap. I).
16. “Quando
agora (no decurso da manifestação) dizemos “o Princípio”, este termo não designa mais o Ser que existe em todos os
seres, norma universal que preside a evolução cósmica. A natureza do Princípio,
a natureza do Ser, são incompreensíveis e inefáveis. Apenas o limitado pode ser
compreendido (em modo individual e humano) e expresso. Como o Princípio age
como pólo, como eixo da universalidade dos seres, dizemos dele apenas que ele é
o polo, que ele é o eixo da evolução universal, sem tentar explicá-lo” (Tchouang-Tsé, cap. XXV). É por isso que
o Tao “com nome”, que é a “Mãe dos
dez mil seres” (Tao Te King, cap. I)
é a “Grande Unidade” (Tai I) situada
simbolicamente, como já vimos, na estrela polar: “Se é preciso dar um nome ao Tao (embora ele não possa ser nomeado),
chamá-lo-emos (como equivalente aproximado) de “Grande Unidade” ... Os dez mil
seres são produzidos por Tai I e
modificados pelo yin e pelo yang”. – No Ocidente, na antiga
“Maçonaria operativa”, um fio de prumo, imagem do eixo vertical, está suspenso
num ponto que simboliza o pólo celeste. É também o ponto de suspensão da “balança”
de que falam diversas tradições (ver Le
Roi du Monde, cap. X); e isto mostra que o “nada” (Ain) da Qabbalah hebraica
corresponde ao “não-agir” (wu wei) da
tradição extremo-oriental.
17. Teremos
ocasião de voltar adiante sobre a distinção do “interior” e do “exterior”, que
é ainda simbólica, assim como, aqui, qualquer outra localização; mas devemos
precisar que a impossibilidade de uma ação exterior só se aplica ao ser total,
e não ao ser individual, e que isso exclui a aproximação que se poderia fazer
aqui com a asserção, análoga em aparência mas sem alcance metafísico, que o
“monadismo” de Leibnitz implica em relação às “substâncias individuais”.
18. Assinalamos
em outra parte a relação que existe entre essas flores simbólicas e a roda
considerada como símbolo do mundo manifestado (Le Roi du Monde, cap. II).
19. Vimos
mais acima que o número de raios da roda varia conforme o caso; o mesmo ocorre
com o número de pétalas das flores emblemáticas. O lótus possui normalmente
oito pétalas; nas representações ocidentais, encontramos notadamente os números
5 e 6, que se referem respectivamente ao “microcosmo” e ao “macrocosmo”.
20. Sobre
o papel do “Raio Divino” na realização do ser e a passagem aos estados
superiores, ver também L’Esotérisme de
Dante, cap. VIII.
XXV
A ÁRVORE E A
SERPENTE
Se
retomarmos agora o símbolo da serpente enrolada ao redor da árvore, de que já
falamos um pouco mais acima, constataremos que esta figura é exatamente a da
hélice traçada em torno do cilindro vertical da representação geométrica que
estudamos. Como a árvore simboliza o “Eixo do Mundo”, a serpente figurará então
o conjunto dos ciclos da manifestação universal (1); e, de fato, o percurso dos
diferentes estados é representado, em certas tradições, como uma migração do ser
para o corpo dessa serpente (2). Como esse percurso pode ser visto segundo dois
sentidos contrários, seja no sentido ascendente, para os estados superiores,
seja no sentido descendente, para os estados inferiores, os dois aspectos
apostos do simbolismo da serpente, um benéfico e outro maléfico, explicam-se
assim automaticamente (3).
Encontramos
a serpente enrolada, não apenas ao redor da árvore, mas também em torno de
diversos outros símbolos do “Eixo do Mundo”(4), e particularmente da montanha,
como se pode ver, na tradição hindu, no simbolismo da “bateção do mar” (5).
Aqui, a serpente Shêsha ou Ananta, representando a indefinidade da
Existência universal, está enrolada ao redor do Mêru, que é a “montanha polar” (6), e ela é puxada em sentidos
contrários pelos Dêvas e pelos Asuras (7). Por outro lado, se
interpretamos o significado disto em termos de “bem” e de “mal”, temos uma
correspondência evidente com os dois troncos opostos da “Árvore da Ciência” e
de outros símbolos similares de que falamos precedentemente )8).
Cabe
observar ainda um aspecto sob o qual a serpente, em seu simbolismo geral,
aparece, senão exatamente como maléfica (o que implica necessariamente na
presença do correlativo benéfico, sendo o “bem” e o “mal” compreensíveis, como
termos de uma dualidade, somente um pelo outro), ao menos como temível, na
medida em que representa o encadeamento do ser à série indefinida dos ciclos de
manifestação (9). Este aspecto corresponde notadamente ao papel da serpente (ou
do dragão, como seu equivalente) como guardiã de certos símbolos de
imortalidade cuja aproximação ela defende: é assim que a vemos enrolada ao
redor da árvore dos pomos de ouro do jardim das Hespérides, ou do Hêtre da
floresta da Cólcida do qual pendia o “tosão de ouro”; é evidente que essas
árvores não são outra coisa que formas da “Árvore da Vida”, e que, em
conseqüência, elas representam também o ”Eixo do Mundo” (10).
Para
realizar-se totalmente, é preciso que o ser escape a este encadeamento cíclico
e passe da circunferência ao centro, ou seja ao ponto aonde o eixo encontra o
plano que representa o estado em que este ser se encontra atualmente; sendo a
integração deste estado realizada desta mesma forma, a totalização dar-se-á em
seguida, a partir deste plano de base, segundo a própria direção do eixo
vertical. Deve-se observar que, enquanto que existe continuidade entre todos os
estados encarados em seu percurso cíclico, como já explicamos, a passagem ao
centro implica essencialmente uma descontinuidade neste desenvolvimento do ser;
ela pode, a este respeito, ser comparada àquilo que é, do ponto de vista
matemático, a “passagem ao limite” de uma série indefinida em variação
contínua. De fato, o limite, sendo por definição uma quantidade fixa, não pode,
como tal, ser atingido no decurso da variação, mesmo se esta prosseguir
indefinidamente; não estando submetido à variação, ele não pertence à série da
qual representa o termo, e é preciso sair desta série para atingi-lo. Da mesma
forma, é preciso sair da série indefinida dos estados manifestados e de suas
mutações para atingir o “Invariável Meio”, o ponto fixo e imutável que comanda
o movimento sem dele participar, como a série matemática inteira é, em sua
variação, ordenada em relação ao seu limite, que lhe fornece assim sua lei, mas
que está ao mesmo tempo além desta lei. Assim como a passagem ao limite, ou
como a integração que é um caso particular, a realização metafísica não pode
efetuar-se “por degraus”; ela é como que uma síntese que não pode ser precedida
de nenhuma análise, e em vista da qual toda análise seria aliás impotente e de
alcance rigorosamente nulo.
Existe
na doutrina islâmica um ponto interessante e importante em conexão com o que
dissemos: o “caminho direito” (Eç-çirâtul-mustâqim) de que se fala na fâtihah (literalmente “abertura”) ou primeira sûrat do Alcorão, não é outra coisa que o eixo vertical tomado em
seu sentido ascendente, pois sua “retidão” (idêntica ao Te de Lao Tsé) deve, segundo a própria raiz do termo que a designa
(qâm, “elevar-se”), ser vista segundo a direção vertical. Podemos agora
compreender facilmente o significado do último versículo, no qual o “caminho
direito” é definido como “caminho daqueles sobre quem Tu colocas Tua graça, não
daqueles sobre quem recai Tua cólera, nem daqueles que permanecem no erro” (çirâta elladhîna anamta alayhim, ghayri
el-maghdûbi alayhim wa lâ ed-dâllîn). Aqueles sobre quem está a “graça”
divina (11), são os que recebem diretamente a influência da “Atividade do Céu”,
e que são conduzidos por esta aos estados superiores e à realização total,
estando seu ser em conformidade com a Vontade universal. Por outro lado,
estando a “cólera” em oposição direta com a “graça”, sua ação deve exercer-se
segundo o eixo vertical, mas com o efeito inverso, percorrendo o eixo em
sentido descendente, em direção aos estados inferiores (12); é a via
“infernal”, que se opõe à via “celeste”, e estas duas vias são as duas metades
inferior e superior do eixo vertical, a partir do nível correspondente ao
estado humano. Enfim, aqueles que estão no “erro”, no sentido propriamente
etimológico deste termo, são aqueles que, como é o caso da imensa maioria dos
seres humanos, atraídos e retidos pela multiplicidade, erram indefinidamente
pelos ciclos da manifestação, representados pelas espiras da serpente enrolada
ao redor da “Árvore do Meio”(13).
Lembremos
ainda, a propósito, que o sentido próprio da palavra Islam é o de “submissão à
Vontade divina” (14); é por isso que se diz, em certos ensinamentos esotéricos,
que todo ser é muslim (muçulmano), no
sentido que não há evidentemente nenhum que possa subtrair-se a esta Vontade, e
que, por conseguinte, cada qual ocupa necessariamente o lugar que lhe foi
assinalado no conjunto do Universo. A distinção dos seres em “fiéis” (mûminîn) e “infiéis” (kuffâr) (15) consiste assim apenas em
que os primeiros conformam-se consciente e voluntariamente à ordem universal,
enquanto que, entre os segundos, existem os que obedecem a esta lei contra a
sua vontade e os que permanecem na ignorância pura e simples. Encontramos assim
as três categorias de seres que acabamos de citar; os “fiéis” são aqueles que
seguem o “caminho direito”, que é o lugar da “paz”, e sua conformidade ao
Querer universal faz deles verdadeiros colaboradores do “plano divino”.
NOTAS
1.
Existe, entre essa figura e a do ourobouros, ou seja da serpente que
morde a própria cauda, a mesma relação que há entre a hélice completa e a
figura do yin-yang, na qual uma das
espiras, tomada à parte, é considerada como plana; o ourobouros representa a indefinidade de um ciclo encarado
isoladamente, indefinidade que, para o estado humano, e em razão da presença da
condição temporal, reveste-se do aspecto da “perpetuidade”.
2.
Encontramos este simbolismo
particularmente na Pistis Sophia
gnóstica, onde o corpo da serpente é dividido segundo o Zodíaco e suas
subdivisões, o que nos leva de volta à figura do ourobouros, pois, nestas condições, trata-se do percurso de um
único ciclo, através das modalidades de um mesmo estado; nesse caso, a migração
vista para o ser limita-se assim aos prolongamentos do estado individual
humano.
3.
Às vezes o simbolismo se desdobra
para corresponder a estes dois aspectos, e temos então duas serpentes enroladas
em sentidos contrários em torno de um mesmo eixo, como na figura do caduceu.
Encontramos um eqüivalente deste em certas formas do bastão brahmânico (Brahma-danda), por um duplo enrolamento
das linhas tomadas respectivamente em relação aos dois sentidos de rotação da
swastika. Este simbolismo tem de resto aplicações múltiplas, que não podemos
desenvolver aqui; uma das mais importantes é a que diz respeito às correntes
sutis do ser humano (ver L’Homme et son
Devenir selon le Vêdânta, cap. XX, 3ª Ed.); a analogia do
“microcosmo” e do “macrocosmo” é ainda válida para este ponto de vista
particular.
4.
Nós a encontramos notadamente ao
redor do omphalos, assim como de
certas representações do “Ovo do Mundo” (ver Le Roi du Monde, cap. IX); assinalamos a este respeito a conexão
que existe geralmente entre os símbolos da árvore, da pedra, do ovo e da
serpente; isto daria lugar a considerações interessantes, mas que nos levariam
muito longe do nosso estudo.
5.
Este recito simbólico acha-se no
Râmâyana.
6.
Ver Le Roi du Monde, cap. IX.
7.
Podemos relacionar estes dois
aspectos com os dois significados opostos que apresenta a própria palavra Asura conforme o modo como a decompomos:
asu-ra “que dá a vida”; a-sura, “não luminoso”. É apenas nesse
último caso que os Asuras se opõem
aos Dêvas, cujo nome exprime a
luminosidade das esferas celestes; no outro sentido, ao contrário, eles se
identificam realmente (donde a denominação de Asuras que se aplica, em certos textos védicos, a Mitra e a Varuna); é preciso estar atento a este duplo significado para
resolver as aparentes contradições que daí se originam. – Se aplicarmos ao
encadeamento dos ciclos o simbolismo da sucessão temporal, compreenderemos sem
dificuldade porque se diz que os Asuras
são anteriores aos Dêvas. É curioso
lembrar que, no simbolismo da Gênese hebraica, a criação dos vegetais antes da
dos astros e luminares pode ser ligada a esta anterioridade; de fato, segundo a
tradição hindu, o vegetal procede da natureza dos Asuras, ou seja dos estados inferiores em relação ao estado humano,
enquanto que os corpos celestes representam naturalmente os Dêvas, ou seja os estados superiores.
Acrescentemos também, a respeito, que o desenvolvimento da “essência
vegetativa” no Éden é o desenvolvimento dos germes provenientes do ciclo
anterior, o que corresponde ainda ao mesmo simbolismo.
8.
No simbolismo temporal, temos
também uma analogia com os dois rostos de Janus,
na medida em que um é considerado voltado para o futuro e o outro para o
passado. Talvez possamos algum dia, em outro estudo, mostrar a ligação profunda
que existe entre todos estes símbolos em diferentes formas tradicionais.
9.
É o samsâra budista, a rotação indefinida da “roda da vida”, da qual o
ser deve libertar-se para atingir o Nirvâna.
A ligação com a multiplicidade é também, em um sentido, a “tentação” bíblica,
que afasta o ser da unidade central original e o impede de alcançar o fruto da
“Árvore da Vida”; e é por isso mesmo, de fato, que o ser é submetido à
alternância das mutações cíclicas, ou seja ao nascimento e à morte.
10. É
preciso mencionar ainda, de um ponto de vista próximo deste, as legendas
simbólicas que, em numerosas tradições, representam a serpente ou o dragão como
guardião de “tesouros escondidos”; estas estão em relação com diversos outros
símbolos muito importantes, como os da “pedra negra” e do “fogo subterrâneo”
(Ver Le Roi du Monde, caps. I e VII):
este é um dos vários pontos que só podemos indicar de passagem, prometendo
voltarmos quando houver ocasião.
11. Esta
“graça” é a “efusão de orvalho” que, na Qabbalah
hebraica, está relacionada diretamente com a “Árvore da Vida” (Ver Le Roi du Monde, caps. III).
12. Esta
descida direta do ser segundo o eixo vertical é representada pela “queda dos
anjos”; isto, quando se trata de seres humanos, só pode evidentemente
corresponder a um caso excepcional, e um tal ser é chamado Waliyush-Shaytân, pois ele é de certo modo o inverso do “santo” ou Waliyur-Rahman.
13. Estas
três categorias de seres poderiam ser chamadas respectivamente de “eleitos”,
“rejeitados” e “perdidos”; lembremos que elas correspondem exatamente às três gunas: a primeira a satwa, a segunda a tamas
e a terceira a rajas. – Certos
comentadores exotéricos do Corão pretenderam que os “rejeitados” fossem os
Cristãos; mas trata-se de uma interpretação estreita, contestável mesmo do
ponto de vista exotérico, e que, em todo caso, não tem nenhuma explicação
conforme a haqîqah. – A respeito da
primeira das três categorias que tratamos aqui, devemos assinalar que o
“Eleito” (El-Mustafâ) é, no Islam,
uma denominação aplicada ao Profeta e, do ponto de vista esotérico, ao “Homem
Universal”.
14. Ver Le Roi du Monde,
cap. VI; assinalamos na ocasião o estreito parentesco
deste termo com aqueles que designam a “salvação” e a “paz” (Es-salâm).
15. Esta
distinção não concerne somente aos homens, pois ela é aplicada também aos Jinns da tradição islâmica; na
realidade, é aplicável a todos os seres.
XXVI
INCOMENSURABILIDADE
DO SER TOTAL E DA
INDIVIDUALIDADE
Devemos
agora insistir sobre um ponto que, para nós, é de uma importância capital: é
que a concepção tradicional do ser, tal como expusemos aqui, difere
essencialmente, em seu princípio mesmo e em função desse princípio, de todas as
concepções antropomórficas e geocêntricas de que a mentalidade ocidental tem
grandes dificuldades de se libertar. Poderíamos mesmo dizer que ela difere
infinitamente, e não seria isto um abuso de linguagem como ocorre normalmente
quando se emprega esta palavra, mas, ao contrário, essa seria uma expressão
mais justa do que qualquer outra, e mais adequada à concepção à qual a
aplicaremos, pois esta é propriamente ilimitada. A metafísica pura não pode de
modo algum admitir o antropomorfismo (1); se este parece às vezes introduzir-se
na sua expressão, trata-se de uma aparência exterior, de resto inevitável em
uma certa medida desde que, se queremos exprimir algo, devemos faze-lo
necessariamente em linguagem humana. Isto não passa de uma conseqüência da
imperfeição que é forçosamente inerente a qualquer expressão, qualquer que
seja, em razão de sua limitação mesma; e essa conseqüência é admitida apenas a
título de indulgência, de concessão provisória e acidental à fraqueza do
entendimento humano individual, à sua insuficiência para atingir aquilo que
ultrapassa o domínio da individualidade. Devido a essa insuficiência, produz-se
já algo do gênero, antes de qualquer expressão exterior, no domínio do pensamento
formal (que, de resto, aparece também como uma expressão se o tomarmos em
relação ao informal): toda idéia na qual se pensa com intensidade acaba por
“representar-se”, tomando de algum modo a forma humana, a mesma do pensador;
dir-se-ia que, segundo uma comparação muito expressiva de Shankarâchârya, “o
pensamento conforma-se no homem como o metal em fusão amolda-se ao molde do
fundidor”. A própria intensidade do pensamento (2) faz com que ele ocupe o
homem inteiro, de modo análogo ao que a água preenche um vaso até a borda; ele
toma assim a forma daquilo que o contém e o limita, o que vale dizer, em outros
termos, que ele se torna antropomórfico. Está aí, mais uma vez, uma imperfeição
da qual o ser individual, dentro das condições restritas e particularizadas de
sua existência, não pode escapar; na verdade, é apenas enquanto indivíduo que
ele não o pode fazer, embora ele deva tender a isto, pois a libertação completa
de uma tal limitação só se obtém nos estados extra-individuais e
supra-individuais, ou seja informais, atingidos no decurso da realização
efetiva do ser total.
Dito
isto para prevenir qualquer objeção possível a respeito, é evidente que não
pode haver medida comum entre, de um lado, o “Si”, visto como a totalização do
ser integrando-se segundo as três dimensões da cruz para reintegrar-se
finalmente em sua Unidade primeira, realizada nesta plenitude mesma da expansão
que simboliza o espaço inteiro, e, de outro lado, uma modificação individual
qualquer, representada por um elemento infinitesimal do mesmo espaço, ou mesmo
a integralidade de um estado, cuja representação plana (ou ao menos considerada
como plana com as restrições que apontamos, ou seja na medida em que encaramos
este estado isoladamente) comporta ainda um elemento infinitesimal em relação
ao espaço de três dimensões, pois, ao situar-se esta representação no espaço
(ou seja dentro do conjunto de estados do ser), seu plano horizontal deve ser
visto como deslocando-se efetivamente de uma quantidade infinitesimal segundo a
direção do eixo vertical (3). Como se trata de elementos infinitesimais, mesmo
num simbolismo geométrico forçosamente restrito e limitado, pode-se ver que, em
realidade e a fortiori, existe aí,
para aquilo que está simbolizado respectivamente pelos dois termos que acabamos
de comparar entre si, uma incomensurabilidade absoluta, que não depende de
nenhuma convenção mais ou menos arbitrária, como sempre acontece com a escolha
de certas unidades relativas nas medidas quantitativas ordinárias. Por outro
lado, quando se trata do ser total, um indefinido é tomado aqui como símbolo do
Infinito, na medida em que é permitido dizer que o Infinito pode ser
simbolizado; mas é claro que isto não eqüivale a confundi-los, como o fazem
habitualmente os matemáticos e filósofos ocidentais. “Se podemos tomar o
indefinido como imagem do Infinito, não podemos aplicar ao Infinito os
raciocínios do indefinido; o simbolismo é descendente e não ascende mais”(4).
Esta
integração acrescenta uma dimensão à representação espacial correspondente;
sabemos com efeito que, partindo da linha que é o primeiro grau de indefinidade
dentro da extensão, a integral simples corresponde ao cálculo de uma
superfície, e a integral dupla ao cálculo de um volume. Portanto, se foi
preciso uma primeira integração para passar da linha à superfície, que é medida
pela cruz de duas dimensões descrevendo o círculo indefinido que não se fecha
(ou a espiral plana vista simultaneamente em todas as posições possíveis), é
preciso uma segunda integração para passar da superfície ao volume, no qual a
cruz de três dimensões produz, pela irradiação de seu centro segundo todas as
direções do espaço onde se situa, o esferóide indefinido do qual um movimento
vibratório nos fornece a imagem, o volume sempre aberto em todos os sentidos que
simboliza o vórtex universal da “Via”.
NOTAS
1.
Sobre esta questão, ver Introduction Générale à l’Étude des
Doctrines Hindoues, 2ª parte, cap, VII.
2.
É claro que o termo “intensidade”
não deve ser tomado aqui num sentido quantitativo, e também que, sendo o
pensamento não submetido à condição espacial, sua forma não é absolutamente
“localizável”; é na ordem sutil que ele se situa, não na corpórea.
3.
Lembramos que a questão da
distinção fundamental entre o “Si” e o “eu”, ou seja em suma entre o ser total
e a individualidade, que resumimos no início deste estudo, foi tratada mais
completamente em L’Homme et son Devenir
selon le Vêdânta, cap. II.
4.
Matgioi, La Voie Métaphysique,
pg. 99.
XXVII
LUGAR DO ESTADO
INDIVIDUAL HUMANO
DENTRO DO
CONJUNTO DO SER
A
partir do que dissemos no capítulo anterior a respeito do antropomorfismo, fica
claro que a individualidade humana, mesmo vista em sua integralidade (e não
restrita apenas à sua modalidade corpórea), não poderia ocupar um lugar privilegiado
e “fora de série” na hierarquia indefinida dos estados do ser total; ela ocupa
aí seu lugar como qualquer dos outros estados e com a mesma importância
exatamente, sem nada de mais nem de menos, conforme à lei de harmonia que rege
as relações entre todos os ciclos da Existência universal. Este lugar é
determinado pelas condições particulares que caracterizam o estado de que se
trata e lhe delimitam o domínio; e, se nós não o podemos conhecer atualmente, é
porque não nos é possível, enquanto indivíduos humanos, sair destas condições
para compará-las com as de outros estados, cujos domínios nos são forçosamente
inacessíveis; mas basta-nos evidentemente, sempre enquanto indivíduos,
compreender que este lugar é aquilo que ele deve ser e que ele não pode ser o
que ele não é, pois cada coisa ocupa rigorosamente o posto que deve ocupar como
elemento da ordem total. Por outro lado, em virtude dessa mesma lei de harmonia
a que aludimos, “sendo a hélice evolutiva regular em toda parte e em todos os
seus pontos, a passagem de um estado a outro se faz tão lógica e simplesmente
quanto a passagem de uma situação (ou modificação) a uma outra no interior de
um mesmo estado”(1), sem que, deste ponto de vista ao menos, haja em qualquer
parte do Universo a menor solução de continuidade.
Se
devemos entretanto fazer uma restrição no que concerne à continuidade (sem a
qual a condição da causalidade universal não poderia ser satisfeita, pois ela
exige que tudo se encadeie sem interrupção), é porque, como já indicamos, existe,
de um ponto de vista diferente daquele do percurso dos ciclos, um instante de
descontinuidade no desenvolvimento do ser: esse momento, que tem um caráter
absolutamente único, é aquele em que se produz, sob a ação do “Raio Celeste”
operando sobre o plano de reflexão, a vibração que corresponde ao Fiat Lux
cosmogônico e que ilumina, por sua irradiação, todo o caos das
possibilidades. A partir desse momento, a ordem sucede ao caos, a luz às
trevas, o ato à potência, a realidade à virtualidade; e, a partir do instante
em que esta vibração atinge seu plano efeito, ampliando-se e repercutindo até
os confins do ser, este, tendo então realizado sua plenitude total, não está
mais sujeito a percorrer tal ou tal ciclo particular, pois ele os abarca a
todos na perfeita simultaneidade de uma compreensão sintética e
“não-distintiva”. É isso que constitui propriamente falando a “transformação”,
concebida como implicando o “retorno dos seres em modificação ao Ser
não-modificado”, fora e além de todas as condições específicas que definem os
graus da Existência manifestada. “A modificação, diz o sábio Shi-Ping-Wen, é o
mecanismo que produz todos o seres; a transformação é o mecanismo pelo qual são
reabsorvidos todos os seres”(2).
Esta
“transformação” (no sentido etimológico de passagem além da forma), pela qual
efetua-se a realização do “Homem Universal”, não é outra coisa que a
“Libertação” (em sânscrito Moksha ou Mukti) de que falamos em outra parte
(3); ela requer, antes de tudo, a determinação prévia de um plano de reflexão
do “Raio Celeste”, de tal modo que o estado correspondente torna-se por isso
mesmo o estado central do ser. De resto, este estado, em princípio, pode ser
qualquer um, pois todos são perfeitamente eqüivalentes quando vistos a partir
do Infinito; e o fato de que o estado humano não é de modo algum distinto em
relação aos demais comporta evidentemente, para ele como para não importa qual
outro estado, a possibilidade de tornar-se este estado central. A
“transformação” pode assim ser atingida a partir do estado humano tomado como
base, e mesmo a partir de qualquer modalidade desse estado, o que eqüivale a
dizer que ela é particularmente possível para o homem corporal e terrestre; em
outros termos, e com já dissemos antes (4), a “Libertação” pode ser obtida “em
vida” (jîvan-mukti), o que não impede
que ela implique essencialmente, para o ser que a obtém assim (como em qualquer
outro caso), a liberação absoluta e completa das condições limitativas de todas
as modalidades e de todos os estados.
No
que concerne ao processo efetivo de desenvolvimento que permite ao ser atingir,
após atravessar certas etapas intermediárias, este momento preciso em que se
opera a “transformação”, não temos a intenção de tratar aqui, poios é evidente
que sua descrição, mesmo sumária, não caberia num estudo como esse, cujo
caráter deve permanecer puramente teórico. Apenas quisemos indicar quais são as
possibilidades do ser humano, possibilidades que, de resto, são
necessariamente, sob o aspecto da totalização, as do ser em cada um de seus
estados, pois estes não podem ter entre si nenhuma distinção diante do
Infinito, no qual reside a Perfeição.
NOTAS
1.
Matgioi, La Voie Métaphysique,
pg. 96-97.
2.
Ibid.,
pg. 76. – Para que a expressão seja correta, é preciso substituir aqui por
“processo” o termo bastante impróprio de “mecanismo”, que foi emprestado
desafortunadamente por Matgioi à tradução do I King de Philastre.
3.
L’Homme
et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XVII, 3ª
ed.
4.
Ibid.,
cap. XVIII, 3ª ed.
XXVIII
A GRANDE TRÍADE
Aproximando
as últimas considerações daquilo que dissemos no início, podemos nos dar conta
facilmente de que a concepção tradicional do “Homem Universal” não tem, na
realidade, malgrado sua designação, nada de antropomórfico; mas, se todo
antropomorfismo é claramente antimetafísico e deve ser rigorosamente descartado
como tal, resta-nos precisar em que sentido e em que condições um certo
antropomorfismo pode, ao contrário, ser considerado legítimo (1). Antes de mais
nada, como já indicamos, a humanidade, do ponto de vista cósmico, desempenha um
papel realmente “central” em relação ao grau de Existência ao qual ela
pertence, mas apenas em relação a ele, e não, bem entendido, ao conjunto da
Existência universal, na qual este grau não passa de mais um dentre uma
multitude indefinida, sem nada que lhe confira uma situação especial em relação
aos outros. A este respeito, não se pode falar de antropomorfismo senão num
sentido restrito e relativo, mas entretanto suficiente para justificar a
transposição analógica a que ‘da lugar a noção de homem, e, consequentemente, a
própria denominação de “Homem Universal”.
De
um outro ponto de vista, vimos que todo indivíduo humano, assim como toda
manifestação de um ser em um estado qualquer, tem em si mesmo a possibilidade
de se tornar centro em relação ao ser total; podemos então dizer que ele o é de
certo modo virtualmente, e que o objetivo a que ele deve se propor é o de
tornar esta virtualidade uma realidade em modo atual. É assim permitido a este
ser, antes mesmo desta realização, e em vista dela, colocar-se por assim dizer
idealmente no centro (2); pelo fato de que ele se encontra no estado humano,
sua perspectiva particular dá naturalmente a esse estado uma importância
preponderante, contrariamente ao que ocorre quando o encaramos do ponto de
vista da metafísica pura, vale dizer do Universal; e essa preponderância
achar-se-á por assim dizer justificada a posterior no caso em que este ser,
tomando efetivamente o estado em questão como ponto de partida e por base de
sua realização, fará dele verdadeiramente o estado central de sua totalidade,
correspondendo ao plano horizontal de coordenadas de nossa representação
geométrica. Isto implica antes de tudo na reintegração do ser considerado no
centro mesmo do estado humano, reintegração que consiste propriamente na
restituição do “estado primordial” e, em seguida, para este mesmo ser , na
identificação do próprio centro humano com o centro universal; a primeira
destas duas fases é a realização da integralidade do estado humano, e a segunda
é a realização da totalidade do ser.
Segundo
a tradição extremo-oriental, “o “homem verdadeiro” (tchen-jen) é aquele que havendo realizado o retorno ao “estado
primordial”, e por conseguinte a plenitude da humanidade, acha daí para frente
estabelecido definitivamente no “Invariável Meio”, e escapa por isso mesmo às
vicissitudes da “roda das coisas”. Acima deste grau está o “homem
transcendente” (cheun-jen), que não é
mais um homem propriamente falando,
porque ele ultrapassou a humanidade e está inteiramente livre de suas condições
específicas: é aquele que chegou à realização total, à “Identidade Suprema”;
este tornou-se verdadeiramente o “Homem Universal”. Isso não ocorre com o
“homem verdadeiro”, mas entretanto podemos dizer que este é ao menos
virtualmente o “Homem universal”, no sentido que, a partir do momento em que
ele não precisa mais percorrer outros estados em modo distintivo, por ter
passado da circunferência ao centro, o estado humano deverá necessariamente ser
para ele o estado central do ser total, embora não o seja ainda de um modo
efetivo (3).
Isto
permite compreender em que sentido deve ser entendido o termo intermediário da
“Grande Tríade” da tradição extremo-oriental: os três termos desta são o “Céu”
(Tien), a “Terra” (Ti) e o “Homem”(Jen), sendo que este último desempenha o papel de “mediador” entre
os dois outros, como unindo em si suas duas naturezas. É verdade que, mesmo no
que concerne ao homem individual, podemos dizer que ele participa realmente do
“Céu” e da “Terra”, que são a mesma coisa que Purusha e Prakriti, os
dois pólos da manifestação universal ; mas não há aí nada que seja especial ao
caso do homem, pois o mesmo acontece necessariamente com qualquer ser
manifestado. Para que ele possa preencher efetivamente, diante da Existência
universal, este papel, é preciso que o homem consiga situar-se no centro de
todas as coisas, ou seja que ele tenha atingido ao menos o estado do “homem
verdadeiro”; ainda assim, ele não estará desempenhando este papel senão para um
único grau da Existência; e é apenas no estado do “homem transcendente” que
esta possibilidade realiza-se em sua plenitude. Isso eqüivale a dizer que o
verdadeiro “mediador”, no qual ä união do “Céu” e da “Terra” acha-se plenamente
cumprida para a síntese de todos os estados, é o “Homem Universal”, que é
idêntico ao Verbo; e, notemo-lo de passagem, muitos aspectos das tradições
ocidentais, mesmo dentro da ordem simplesmente teológica, poderiam achar aí sua
explicação mais profunda (4).
Por
outro lado, sendo o “Céu” e a “Terra” dois princípios complementares, um ativo
e outro passivo, sua união pode ser representada pela figura do “Andrógino”, e
isto nos leva a algumas das considerações que indicamos desde o início no que
diz respeito ao “Homem Universal”. Aqui ainda, a participação dos dois
princípios existe para todo ser manifestado, e ela se traduz nele pela presença
dos dois termos yang e yin, mas em proporções variáveis e
sempre com a predominância de um ou de outro; a união perfeitamente equilibrada
desses dois termos só pode ser realizada no “estado primordial”(5). Quanto ao
estado total, nele não pode mais haver nenhuma distinção de yang e yin, que são agora absorvidos na indiferenciação principial; não
podemos mais falar aqui de “Andrógino”, que implica já uma certa dualidade na
própria unidade, mas apenas de “neutralidade”, que é a do Ser considerado em si
mesmo, para além da distinção da “essência” e da “substância”, do “Céu” e da
“Terra”, de Purusha e de Prakriti. É portanto apenas em relação à
manifestação que o par Purusha-Prakriti
pode ser, como dissemos antes, identificada ao “Homem Universal”(6); e é também
deste ponto de vista, evidentemente, que este é o “mediador” entre o “Céu” e a
“Terra”, termos estes que desaparecem quando se passa além da manifestação (7).
NOTAS
1
É preciso aliás acrescentar que
este antropocentrismo não tem nenhuma solidariedade necessária com o
geocentrismo, contrariamente ao que acontece com certas concepções “profanas”;
o que causa confusão a respeito, é que a terra é às vezes tomada para
simbolizar o estado corporal inteiro; mas é claro que a humanidade terrestre
não constitui a humanidade inteira.
2.
Existe aqui algo de comparável ao
modo com Dante, segundo um simbolismo temporal e não mais espacial, situa a si
próprio no meio do “grande ano” para cumprir sua viagem através dos “três
mundos” (ver L’Ésotérisme de Dante,
cap. VIII).
3.
A diferença entre estes dois
graus é a mesma que existe entre aquilo a que chamamos a imortalidade virtual e
a imortalidade realizada atualmente (L’Homme
et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XVIII, 3ª ed.): trata-se
dos dois estágios que distinguimos desde o início na realização da “Identidade
Suprema”. – O “homem verdadeiro” corresponde, na terminologia árabe, ao “Homem
Primordial” (El-Insânul-qadîm), e o
“homem transcendente” ao “Homem Universal” (El-Insânul-kâmil).
– Sobre a relação do “homem verdadeiro” e do “homem transcendente”, cf. La Grande Triade, cap. XVIII.
4.
A união do “Céu” e da “Terra” é a mesma coisa
que a união das duas naturezas divina e humana na pessoa do Cristo, na medida
em que este é considerado o “Homem Universal”. Dentre os antigos símbolos do
Cristo acha-se a estrela de seis pontas, ou seja o duplo triângulo ou “selo de
Salomão”(cf. Le Roi du Monde, cap.
IV); ora, dentro do simbolismo de uma escola hermética à qual estavam ligados
Alberto o Grande e São Tomás de Aquino, o triângulo direito representa a
Divindade, e o triângulo invertido a natureza humana (“feita à imagem de Deus”,
como seu reflexo em sentido inverso no “espelho das Águas”), de modo que a
união dos dois triângulos representa a união das duas naturezas (Lâhût e Nâsût no esoterismo islâmico). Cabe lembrar, do ponto de vista
próprio do hermetismo, que o ternário humano “spiritus, anima, corpus” está em correspondência com o
ternário dos princípios alquímicos “enxofre, mercúrio e sal”. – Por outro lado,
do ponto de vista do simbolismo numérico, o “selo de Salomão” é a figura do
número 6, que é o número “conjuntivo” (a letra vau em hebraico e em árabe), o número da união e da mediação; é
também o número da criação, e, como tal, ele aplica-se ainda ao Verbo “per quem omnia facta sunt”. As estrelas
de cinco e seis pontas representam respectivamente o “microcosmo” e o
“macrocosmo”, e também o homem individual (ligado às cinco condições de seu
estado, às quais correspondem os cinco sentidos e os cinco elementos corpóreos)
e o “Homem Universal”, ou o Logos. O papel do Verbo, em relação à Existência
universal, pode ainda ser precisado pela adjunção da cruz traçada no interior da
figura do “selo de Salomão”: o braço vertical liga os vértices dos dois
triângulos opostos, ou os dois pólos da manifestação, e o braço horizontal
representa a “superfície das Águas”. – Na tradição extremo-oriental,
encontramos um simbolismo que, ainda que diferindo do “selo de Salomão” pela
disposição, lhe é numericamente eqüivalente: seis traços paralelos, cheios ou
truncados segundo o caso (os sessenta e quatro hexagramas de Wen Wang no I King, dos quais cada qual é formado
pela superposição de dois dos oito kua ou trigramas de Fo-Hi), constituem os
“gráficos do Verbo” (em relação com o simbolismo do Dragão); e eles representam
também o “Homem” como termo médio da “Grande Tríade” (o trigrama superior
corresponde ao “Céu” e o inferior à “Terra”, o que os identifica
respectivamente aos dois triângulos direito e invertido do “selo de Salomão”).
5.
É por isso que as duas metades do
yin-yang constituem por sua reunião a
forma circular completa (que corresponde no plano à forma esférica no espaço
tridimensional).
6.
O que dissemos aqui do verdadeiro
lugar do “Andrógino” na realização do ser e suas relações com o “estado
primordial” explica o papel importante que essa concepção desempenha no
hermetismo, cujos ensinamentos referem-se
ao domínio cosmológico, bem como às extensões do estado humano dentro da
ordem sutil, ou seja em suma àquilo que podemos chamar de “mundo
intermediário”, que não deve ser confundido com o domínio da metafísica pura.
7.
Podemos compreender por aí o
sentido profundo desta frase do Evangelho: “Passarão o céu e a terra, mas
minhas palavras não passarão”. O Verbo em si mesmo, e por conseguinte o “Homem
Universal” que é idêntico a ele, está além da distinção do “Céu” e da “Terra”;
ele permanece então eternamente tal qual é, em sua plenitude de ser, enquanto
que toda manifestação e toda diferenciação (ou seja toda a ordem das
existências contingentes) se desvanecem na “transformação” total.
XXIX
O CENTRO E A
CIRCUNFERÊNCIA
As
considerações que expusemos não nos conduzem, como se poderia crer se não
insistirmos sobre esse ponto, a encarar o espaço como “uma esfera cujo centro
está em toda parte e a circunferência em parte alguma”, segundo a fórmula
conhecida de Pascal, que de resto talvez não seja seu primeiro inventor. Em
todo caso, não cabe aqui analisar em que sentido Pascal entendia essa frase,
que talvez tenha sido mal interpretada; isto não importa aqui, pois é evidente
que o autor das célebres considerações sobre os “dois infinitos”, malgrado seus
incontestáveis méritos em outras áreas, não possuía nenhum conhecimento de
ordem metafísica.
Na
representação espacial do ser total, é verdade, sem dúvida, que cada ponto,
antes de qualquer determinação, é, potencialmente, centro do ser representado
pela extensão em que está situado; mas isto é somente em potência e
virtualmente, na medida em que o centro real não é efetivamente determinado.
Esta determinação implica, para o centro, numa identificação com a natureza mesma do ponto principial,
que, em si, não está propriamente falando em parte alguma, por não estar
submetido à condição espacial, o que lhe permite conter desta todas as
possibilidades; o que está em toda parte, no sentido espacial, são apenas as
manifestações deste ponto principial, que preenchem de fato a totalidade da extensão,
mas que não passam de simples modalidades, de tal modo que a “ubiqüidade” não é
em suma senão o substituto físico da “onipresença” verdadeira (2). Ademais, se
o centro da extensão assimila de certa forma todos os outros pontos pela
vibração que ele lhes comunica, isto é apenas na medida em que ele os faz
participar da mesma natureza indivisível e incondicionada que agora torna-se
também a deles, e esta participação, na medida em que é efetiva, os subtrai por
isso mesmo à condição espacial.
Cabe
em tudo isto levar em conta uma lei geral elementar que já mencionamos e que
nunca deve ser perdida de vista, embora alguns a ignorem quase que
sistematicamente: é que, entre o fato ou objeto sensível (o que no fundo é a
mesma coisa) que tomamos como símbolo e a idéia, ou antes o princípio
metafísico que queremos simbolizar na medida do possível, a analogia é sempre
inversa, o que aliás caracteriza a verdadeira analogia (3). Assim, no espaço
considerado em sua realidade atual, e não mais como símbolo do ser total,
nenhum ponto é e nem pode ser centro; todos os pontos pertencem igualmente ao
domínio da manifestação, pelo fato de pertencerem ao espaço, que é uma das
possibilidades cuja realização está contida nesse domínio, o qual, em seu
conjunto, não constitui outra coisa que a circunferência da “roda das coisas”,
ou o que poderíamos chamar de exterioridade da Existência universal. Falar aqui
em “interior” e em “exterior” é ainda, assim como falar de centro e de
circunferência, uma linguagem simbólica,
e especificamente de um simbolismo espacial; mas a impossibilidade de dispensar
tais símbolos só demonstra a inevitável imperfeição de nossos meios de
expressão, que já assinalamos antes. Se podemos, até um certo ponto, comunicar
nossas concepções a outro, no mundo manifestado e formal (pois trata-se de um
estado individual restrito, fora do qual não se poderia sequer falar de “outro”
propriamente falando, ao menos no sentido “separativo” que esta palavra implica
no mundo humano), é evidentemente apenas através de representações que
manifestam estas concepções em certas formas, ou seja por correspondências e
analogias; eis o princípio e a razão de ser de todo simbolismo, e toda
expressão, em qualquer modo, não passa na realidade de um símbolo (4). Apenas,
“tomemos o cuidado de não confundir a coisa (ou a idéia) com a forma
deteriorada sob a qual a podemos representar, e talvez mesmo compreende-la
(enquanto indivíduos humanos); pois os piores erros metafísicos (ou melhor
antimetafísicos) resultam da insuficiência de compreensão e da má interpretação
dos símbolos. E lembremo-nos sempre do deus Janus, que é representado com duas
faces, e que no entanto possui apenas uma, que não é nenhuma das duas que
podemos ver e tocar”(5). Essa imagem de Janus poderia aplicar-se exatamente à
distinção do “interior” e do “exterior”, assim como à consideração do passado e
do futuro; e o rosto único, que nenhum ser relativo e contingente pode
contemplar sem sair de sua condição limitada, não poderia ser melhor comparado
do que ao terceiro olho de Shiva, que
vê todas as coisas no “eterno presente”.
Nestas
condições, e com as restrições que se impõem a partir do que dissemos, podemos,
e inclusive devemos, para conformar nossa expressão à relação normal de todas
as analogias (que poderíamos chamar, em termos geométricos, uma relação de
homotetia inversa), inverter o enunciado da fórmula de Pascal que citamos mais
acima. É aliás o que encontramos em um dos textos taoístas já mencionados: “O
ponto que é o pivô da norma é o centro imóvel de uma circunferência sobre cujo
contorno giram todas as contingências, as distinções e as individualidades”
(7). À primeira vista, poderíamos quase crer que as duas imagens são
comparáveis, mas, na realidade, elas são exatamente o contrário uma da outra:
em suma, Pascal deixou-se levar por sua imaginação de geômetra, que o fez
inverter as verdadeiras relações, tais como devem ser vistas do ponto de vista
metafísico. É o centro que não está propriamente em parte alguma, pois, como
dissemos, ele é essencialmente “não localizado”; ele não pode ser encontrado em
lugar algum da manifestação, sendo absolutamente transcendente em relação a
esta, embora seja interior a todas as coisas. Ele está além de tudo o que pode
ser alcançado pelos sentidos e pelas faculdades que procedem da ordem sensível:
“O Princípio não pode ser atingido nem pela vista nem pelo ouvido... O
Princípio não pode ser ouvido: o que pode ser ouvido, não é Ele. O Princípio
não pode ser visto; o que se vê, não é Ele. O Princípio não pode ser enunciado;
o que se enuncia, não é Ele. Não podendo ser imaginado, o Princípio tampouco
pode ser descrito”(8). Tudo o que pode ser visto, ouvido, imaginado, enunciado
ou descrito, pertence necessariamente à manifestação, e mesmo à manifestação
formal; é portanto, em realidade, a circunferência que está em toda parte, pois
todos os lugares do espaço, ou mais genericamente, todas as coisas manifestadas
(sendo o espaço aqui um símbolo da manifestação universal), “todas as
contingências, as distinções e as individualidades”, não passam de elementos da
“corrente das formas”, pontos da circunferência da “roda cósmica”.
Assim
sendo, para resumirmos em poucas palavras, podemos dizer que, não apenas no
espaço, mas em tudo o que é manifestado, é o exterior ou a circunferência que está
em toda parte, enquanto que o centro está em parte alguma, por ser ele
não-manifestado; mas (e é aqui que a expressão do “sentido inverso” adquire
toda a força de seu significado) o manifestado nada seria sem esse ponto
essencial, que em si mesmo não tem nada de manifestado, e que, precisamente em
razão de sua não-manifestação, contém em princípio todas as manifestações
possíveis, sendo verdadeiramente o “motor imóvel” de todas as coisas, a origem
imutável de toda diferenciação e de toda modificação. Este ponto produz todo o
espaço (assim como as outras manifestações) saindo de si mesmo de certo modo,
pelo desdobramento de suas virtualidades em uma multitude indefinida de
modalidades, com as quais ele preenche todo o espaço; mas, quando dizemos que
ele sai de si mesmo para efetuar esse desenvolvimento, não se deve tomar ao pé
da letra esta expressão bastante imperfeita, pois isto seria um erro grosseiro.
Na realidade, o ponto principial de que falamos, não estando jamais submetido
ao espaço, pois é ele que o efetiva e que a relação de dependência (ou a
relação causal) não é reversível, permanece “não afetado” pelas condições de
suas modalidades quaisquer, donde resulta que ele não cessa nunca de ser
idêntico na si mesmo. Quando ele realizou sua possibilidade total, é para
voltar (mas sem “que a idéia de “retorno” ou “recomeço seja absolutamente
aplicável aqui) ao “fim que é idêntico ao começo”, vale dizer a esta Unidade
primeira que continha tudo em princípio, Unidade que, sendo ela mesma
(considerada como o “Si”), não pode de modo algum tornar-se outra coisa do que
si mesma (o que implicaria numa dualidade), e de onde, por conseqüência,
encarado em si mesmo, ele nunca saiu. De resto, na medida em que trata do ser
em si, simbolizado pelo ponto, e mesmo do Ser universal, só podemos falar de
Unidade, como o fazemos; mas, se quisermos, ultrapassando os limites do Ser,
encarar a Perfeição absoluta, deveremos passar ao mesmo tempo, para além dessa
Unidade, ao Zero metafísico, que nenhum simbolismo poderia representar, assim
como nenhum nome poderia denominar (9).
NOTAS
1.
Uma pluralidade de infinitos é
evidentemente impossível, pois eles limitar-se-iam mutuamente de modo que
nenhum deles seria realmente infinito; Pascal, como muitos outros, confunde o
infinito com o indefinido, sendo este entendido quantitativamente e tomado nos
dois sentidos opostos das grandezas crescentes e decrescentes.
2.
Ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XXV, 3ª
ed.
3.
Podemos, a propósito,
reportarmo-nos ao que dissemos no início sobre a analogia entre o homem
individual e o “Homem Universal”.
4.
Ver Introduction Générale à l’Étude des Doctrines Hindoues, 2ª
parte, cap. VII.
5.
Matgioi, La Voie Métaphysique,
pgs. 21-22
6.
Ver L’Homme et son Devenir selon le
Vêdânta, cap. XX, 3ª ed., e Le
Roi du Monde, cap. V.
7.
Tchouang-Tsé, cap. II.
8.
Ibid., cap. XXII. – Cf. L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta,
cap. XV, 3ª ed.
9.
Ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XV, 3ª ed.
XXX
ÚLTIMAS NOTAS
SOBRE
O SIMBOLISMO
ESPACIAL
Em
tudo o que precede, não tentamos estabelecer uma distinção entre os
significados respectivos dos dois termos “espaço” e “extensão”, e, na maioria
dos casos, empregamos indiferentemente um ou outro; esta distinção, como a que
há entre “tempo” e “duração”, pode ser muito útil para certas sutilezas
filosóficas, e pode mesmo ter algum valor real do ponto de vista cosmológico,
mas certamente não se aplica à metafísica pura (1). De resto, de modo geral,
preferimos nos abster de todas as complicações de linguagem que não sejam estritamente
necessárias à clareza e à precisão de nossa exposição; e, segundo uma
declaração que não é nossa, mas que podemos citar como se fora, “nós recusamos
carregar a metafísica de novas terminologias, lembrando que elas são objeto de
discussão, de erros e de descrédito; aqueles que as criam, para as necessidades
aparentes de suas demonstrações, sobrecarregam de modo incompreensível seus
textos, e se agarram a elas com tanto amor que muitas vezes, essas
terminologias, áridas e inúteis, acabam por constituir a única novidade do
sistema proposto”(2).
Fora
dessas razões gerais, se nos aconteceu de chamar de espaço aquilo que,
propriamente falando, não é em realidade senão uma extensão específica em três
dimensões, é porque, mesmo no mais alto grau de universalização, do simbolismo
espacial que estudamos, não ultrapassamos os limites dessa extensão, tomada
para criar a representação, necessariamente imperfeita, como explicamos, do ser
total. Entretanto, se quiséssemos nos restringir a uma linguagem mais rigorosa,
deveríamos sem dúvida empregar o termo “espaço” apenas para designar o conjunto
de todas as extensões particulares; assim, a possibilidade espacial, cuja
atualização constitui uma das condições especiais de certas modalidades de
manifestação (tais como nossa modalidade corporal, em particular) dentro do
grau de existência a que pertence o estado humano, contém em sua indefinidade
todas as extensões possíveis, de que cada uma é em si indefinida em menor grau,
e que podem diferir entre si pelo número de dimensões ou por outras
características; e de resto é evidente que a extensão dita “euclidiana”, que a
geometria comum estuda, não passa de um caso particular de extensão em três
dimensões, porque ela não é a única modalidade conceptível dela (3).
Apesar
disso, a possibilidade espacial, mesmo em toda esta generalidade com que a
encaramos, não passa ainda de uma possibilidade determinada, indefinida sem
dúvida, e mesmo indefinida a uma potência múltipla, mas mesmo assim finita,
pois, como o demonstra por exemplo a produção da série dos números a partir da
unidade, o indefinido procede do finito, o que só é possível com a condição de
que o próprio finito contenha em potência este indefinido; e é evidente que o
“mais” não pode sair do “menos”, nem o infinito do finito. De resto, se não
fosse assim, a coexistência de uma indefinidade de outras possibilidades, que
não estão compreendidas naquela (4), e das quais cada uma é igualmente
susceptível de um desenvolvimento indefinido, seria impossível; e esta única consideração,
na falta de outra, bastaria para demonstrar o absurdo deste “espaço infinito”
de que se abusou tanto (5), pois só pode ser infinito aquilo que compreende
tudo, aquilo fora de que nada existe que o possa limitar de qualquer modo que
seja, ou seja a Possibilidade total e universal (6).
Terminaremos
aqui a presente exposição, reservando para outro estudo o restante das
considerações relativas à teoria metafísica dos estados múltiplos do ser, que
veremos então independentemente do simbolismo geométrico que ela permite. Para
permanecermos dentro dos limites que nos impusemos para o momento,
acrescentaremos apenas o seguinte, que nos servirá de conclusão: é pela
consciência da Identidade do Ser, permanente através de todas as modificações
indefinidamente múltiplas da Existência única, que se manifesta, no centro
mesmo de nosso estado humano assim como de todos os outros, este elemento
transcendente e informal, portanto não-encarnado e não-individualizado, que é
chamado de “Raio Celeste; e é esta consciência, superior por isso mesmo a
qualquer faculdade de ordem formal, portanto essencialmente supra-racional e
que implica no assentimento da lei de harmonia que liga e une todas as coisas
no Universo, é, dizíamos, esta consciência que, para nosso ser individual, mas
independentemente dele e das condições às quais ele está submetido, constitui
verdadeiramente a “sensação da eternidade” (7).
NOTAS
1.
Enquanto que a extensão é
habitualmente considerada como uma particularização do espaço, a relação do tempo
e da duração é às vezes encarada em sentido oposto: segundo certas concepções,
de fato, e notadamente as dos filósofos escolásticos, o tempo não passa de um
modo particular da duração; mas isto, que de resto é perfeitamente aceitável,
prende-se a considerações que estão fora do nosso presente objeto. Tudo o que
podemos dizer a respeito, é que o termo “duração” é tomado então para designar
genericamente todo modo de sucessão, ou seja em suma toda condição que, em
outros estados de existência, pode corresponder analogamente àquilo que é o
tempo no estado humano; mas o emprego desse termo pode dar lugar a certas
confusões.
2.
Matgioi, La Voie Métaphysique,
pg. 33 (nota).
3.
A perfeita coerência lógica das
diversas geometrias “não-euclidianas” é uma prova suficiente disso; mas, bem
entendido, não é aqui o lugar de insistir sobre o significado e o alcance
dessas geometrias, assim como da “hipergeometria” ou geometria com mais de três
dimensões.
4.
Para nos mantermos dentro daquilo
que é conhecido por todos, o próprio pensamento, tal como o encaram os
psicólogos, está fora do espaço e não pode ser situado de modo algum.
5.
Assim como, aliás, o “número
infinito”; de um modo geral, o pretenso “infinito quantitativo”, sob todas as
suas formas, não é nem pode ser mais que pura e simplesmente o indefinido; a
partir daí desaparecem todas as contradições inerentes a estes proclamados
infinitos, e que tanto embaraçam os matemáticos e filósofos.
6.
Se nos é impossível, como
dissemos acima, admitir o ponto de vista estreito do geocentrismo,
habitualmente ligado ao antropomorfismo, tampouco aprovamos esta espécie de
lirismo científico, ou antes pseudo-científico, tão caro a alguns astrônomos,
onde se fala sempre de “espaço infinito” e “tempo eterno”, que são, repetimos,
puros absurdos, pois, precisamente, não pode ser infinito nem eterno aquilo que
depende do espaço e do tempo; no fundo, esta é mais uma das numerosas
tentativas do espírito moderno de limitar a Possibilidade universal à medida de
suas próprias capacidades, que praticamente não ultrapassam os limites do mundo
sensível.
7.
É claro que a palavra “sensação”
não deve ser tomada aqui no seu sentido próprio, mas deve ser entendida, por
transposição analógica, no sentido de uma faculdade intuitiva, que capta
imediatamente seu objeto, como o faz a sensação em sua ordem; mas existe aí
toda a diferença que separa a intuição intelectual da intuição sensível, o
supra-racional do infra-racional.
Olá, ouvi dizer que a frase: "O CORAÇÃO DAS IDEIAS OBEDECE A LEIS MUITO PRECISAS. QUEM CONHECE ESSAS LEIS OBTÉM O RESULTADO QUE QUISER" é de autoria do Rene Guenon e gostaria de saber em qual livro está escrita. Grato.
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