quinta-feira, 1 de outubro de 2015

René Guénon - O Simbolismo da Cruz - Parte II

XI

 REPRESENTAÇÃO GEOMÉTRICA
DOS GRAUS DA EXISTÊNCIA


Até agora, apenas examinamos os diversos aspectos do simbolismo da cruz, mostrando sua ligação com o significado metafísico que indicamos em primeiro lugar. Terminadas estas considerações, que são de certa forma preliminares, passaremos a desenvolver agora este significado metafísico, levando o mais longe possível o estudo do simbolismo geométrico através do qual são representados, seja os graus da Existência universal, seja os estados de cada ser, segundo os dois pontos de vista que chamamos de “macrocósmico” e “microcósmico”.

Lembremos inicialmente que, quando se encara um ser no seu estado individual humano, é preciso o cuidado de lembrar que a individualidade corporal não passa na verdade de uma porção restrita, uma simples modalidade desta individualidade humana, e que esta, em sua integralidade, é susceptível de um desenvolvimento indefinido, manifestando-se em modalidades cuja multiplicidade é igualmente indefinida, mas cujo conjunto constitui não mais que um estado particular do ser, inteiramente situado em um só e mesmo grau da Existência universal. No caso do estado individual humano, a modalidade corporal corresponde ao domínio da manifestação grosseira ou sensível, enquanto que as outras modalidades pertencem ao domínio da manifestação sutil, como já explicamos antes (1). Cada modalidade é determinada por um conjunto de condições que delimitam suas possibilidades, e das quais cada uma considerada isoladamente pode estender-se para além do domínio desta modalidade e se combinar com outras condições para constituir os domínios de outras modalidades, todas fazendo parte da mesma individualidade integral (2). Assim, o que determina uma certa modalidade, não é exatamente uma condição especial de existência, mas antes uma combinação ou uma associação de muitas condições; para nos explicarmos melhor sobre este ponto, seria preciso tomar um exemplo tal como o das condições da existência corporal, cuja explicação detalhada demandaria, como já indicamos, todo um estudo a parte.

Cada um dos domínios de que falamos, que contém uma modalidade de um certo indivíduo, pode, se o encaramos genericamente e apenas em relação às condições que ele implica, conter modalidades similares pertencentes a uma infinidade de outros indivíduos, dos quais cada um, por seu turno, é um estado de manifestação de um dos seres do universo; trata-se aí de estados e de modalidades que se correspondem em todos os seres. O conjunto dos domínios que contém todas as modalidades de uma mesma individualidade, domínios que, como dissemos, são em multitude indefinida, possuindo ainda cada qual uma extensão indefinida, este conjunto, dizíamos, constitui um grau da Existência universal, o qual, na sua integralidade, contém uma indefinidade de indivíduos. É claro que aqui estamos supondo um grau de Existência que comporta um estado individual, uma vez que tomamos como tipo o estado humano; mas tudo o que se refere às modalidades múltiplas é igualmente verdadeiro em qualquer outro estado, individual ou não-individual, pois a condição individual só pode trazer limitações restritivas, sem no entanto que as possibilidades que ela inclui percam por isso sua indefinidade (4).

Podemos, a partir do que foi dito, representar um grau de Existência por um plano horizontal, estendendo-se indefinidamente segundo duas dimensões, que correspondem às duas indefinidade que consideramos: de um lado, aquela dos indivíduos, que podemos representar pelo conjunto de retas paralelas a uma das dimensões, definida, se quisermos, pela interseção deste plano horizontal com um plano frontal (5); e, de outro lado, aquela dos domínios particulares às diferentes modalidades dos indivíduos, que será então representada pelo conjunto de retas do plano horizontal perpendiculares à direção precedente, ou seja paralelas ao eixo visual antero-posterior, cuja direção define a outra dimensão (6). Cada uma destas duas categorias compreende uma indefinidade de retas paralelas entre si, e todas indefinidas em comprimento; cada ponto do plano será determinado pela interseção de duas retas que serão pertencentes respectivamente a estas duas categorias, e representará, por conseguinte, uma modalidade particular de um dos indivíduos compreendidos no grau considerado.

Cada um dos graus da Existência universal, que comporta uma indefinidade deles, poderá ser representado também, numa extensão tridimensional, por um plano horizontal. Vimos que a seção de um tal plano por uma plano frontal representa um indivíduo, ou antes, para falarmos de um modo mais geral e susceptível de aplicar-se indistintamente a todos os graus, um certo estado de um ser, estado que pode ser individual ou não-individual, segundo as condições do grau de Existência ao qual ele pertence. Podemos então ver um plano frontal como representando um ser na sua totalidade; este ser compreende uma multitude indefinida de estados, que serão então figurados por todas as retas horizontais deste plano, enquanto que as verticais, por sua vez, serão formadas pelos conjuntos de modalidades que se correspondem respectivamente em todos estes estados. De resto, existe na extensão tridimensional uma indefinidade destes planos, representado a indefinidade de seres contidos no Universo total.






















NOTAS


1.      L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, caps. II, XII e XIII, 3ª Ed. – É preciso observar também que, quando falamos da manifestação sutil, estamos obrigados a compreender dentro deste termo os estados individuais não-humanos, além das modalidades extra-corporais do estado humano de que estamos tratando aqui.
2.      Cabe colocar aqui, e sobretudo quando se trata do estado humano, modalidades que são de certo modo extensões resultantes as supressão pura e simples de uma ou mais condições limitativas.
3.      Sobre estas condições, ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XXIV, 3ª ed.
4.      Lembramos que um estado individual é, como já dissemos, um estado que compreende a forma dentre as suas condições determinantes, de modo que manifestação individual e manifestação formal são expressões equivalentes.
5.      Para melhor compreendermos os termos emprestados à perspectiva, é preciso lembrar que um plano frontal é um caso particular de um plano vertical, enquanto que um plano horizontal, ao contrário, é um caso particular de um plano de topo. Inversamente, uma reta vertical é um caso particular de uma reta frontal, e uma reta de topo é um caso particular de uma reta de topo. É preciso lembrar também que, por todo ponto, passa um só reta vertical e uma multitude indefinida de retas horizontais, mas, ao contrário, apenas um plano horizontal (que contém as retas horizontais que passam por este ponto) e uma multitude indefinida de planos verticais (passando todos pela reta vertical, que é sua interseção comum, e dos quais cada um é determinado por esta reta vertical e uma das retas horizontais que passam pelo ponto determinado).
6.      No plano horizontal, a direção da primeira dimensão é a das retas frontais (ou transversais) e a direção da segunda dimensão a das retas de topo.


























XII

 REPRESENTAÇÃO GEOMÉTRICA
DOS ESTADOS DO SER


Na representação geométrica em três dimensões que expusemos, cada modalidade de um estado de ser qualquer é indicada por apenas um ponto; uma tal modalidade, entretanto, é susceptível de se desenvolver durante o percurso de um ciclo de manifestação que comporta uma indefinidade de modificações secundárias. Assim, para a modalidade corporal do indivíduo humano, por exemplo, estas modificações serão todos os momentos da sua existência (encarada naturalmente sob o aspecto da sucessão temporal, que é uma das condições às quais esta modalidade está submetida), ou, o que dá no mesmo, todos os atos e todos os gestos, quaisquer que sejam, que ele cumprirá ao longo desta existência (1). Para encaixar estas modificações na nossa representação, será preciso figurar a modalidade considerada, não mais apenas por um ponto, mas por uma reta inteira, da qual cada ponto será então uma das modificações secundárias de que tratamos, lembrando sempre que esta reta, ainda que indefinida, não deixa porisso de ser limitada, como o é todo o indefinido, e mesmo, se podemos nos expressar assim, toda potência do indefinido (2). Representando a indefinidade simples por uma linha reta, a dupla indefinidade ou o indefinido à segunda potência o será pelo plano, e a tripla indefinidade ou o indefinido à terceira potência, pela extensão em três dimensões. Se então cada modalidade, encarada como uma indefinidade simples, é representada por uma reta, um estado de ser, que comporta uma indefinidade destas modalidades, ou seja uma dupla indefinidade, será agora figurada, em sua integralidade, por um plano horizontal, e um ser, em sua totalidade, com a indefinidade de seus estados, o será por uma extensão tridimensional. Esta nova representação é assim mais completa do que a primeira, mas é evidente que não poderemos, a não ser saindo da extensão tridimensional, considerar aí senão um único ser, e não mais, como precedentemente, o conjunto de todos os seres do Universo, pois a consideração deste conjunto nos obrigaria a introduzir aqui ainda uma outra indefinidade, que seria então de quarta ordem, e que não poderia ser figurada geometricamente a não ser supondo uma quarta dimensão suplementar acrescentada à extensão (3).

Nesta nova representação, vemos primeiramente que por cada ponto da extensão considerada passam três retas respectivamente paralelas às três dimensões da extensão; cada ponto poderá então ser tomado como vértice de um triedro trirretângulo, que constitui um sistema de coordenadas ao qual toda a extensão será reportada, e cujos três eixos formarão uma cruz de três dimensões. Suponhamos que o eixo vertical deste sistema seja determinado; ele encontrará cada plano horizontal em um ponto, que será a origem das coordenadas retangulares às quais este plano será reportado, coordenadas cujos eixos formarão uma cruz de duas dimensões. Podemos dizer que este ponto é o centro do plano, e que o eixo vertical é o lugar dos centros de todos os planos horizontais; toda vertical, ou seja toda paralela a este eixo, contém também pontos que se correspondem nestes mesmos planos. Se, além do eixo vertical, determinamos um plano horizontal particular para formar a base do sistema de coordenadas, o triedro trirretângulo de que falamos será também inteiramente determinado. Haverá aí uma cruz de duas dimensões, traçada por dois dos três eixos, em cada um dos três planos de coordenadas, dos quais um é o plano horizontal considerado, e os outros dois são dois planos ortogonais que passam cada qual pelo eixo vertical e por um dos dois eixos horizontais; e estas três cruzes terão por centro comum o vértice do triedro, que é o centro da cruz de três dimensões, e que podemos considerar também como o centro de toda a extensão. Cada ponto poderá ser centro, e podemos dizer que o é em potência; mas, de fato, é preciso que um ponto particular  seja determinado, e a seguir diremos como, para que se possa efetivamente traçar a cruz, ou seja medir a extensão toda, ou, analogamente, realizar a compreensão total do ser.

















NOTAS


1.      É propositadamente que empregamos aqui o termo “gestos”, porque ele alude a uma teoria metafísica muito importante, mas que não cabe no presente estudo. Podemos ter uma noção sumária desta teoria reportando-nos ao que dissemos em outra parte a respeito da noção de apûrva na doutrina hindu e das “ações e reações concordantes” (Introduction Générale à l’Étude des Doctrines Hindoues, pgs. 258-261).
2.      O indefinido, que procede do finito, é sempre redutível a este, pois ele não passa de um desenvolvimento das possibilidades incluídas ou implicadas no finito. É uma verdade elementar, ainda que pouco conhecida, que o pretenso “infinito matemático” (indefinidade quantitativa, seja numérica, seja geométrica) não é absolutamente o infinito, sendo limitado por determinações inerentes à sua própria natureza; seria aliás fora de propósito estendermo-nos aqui sobre este ponto, do qual diremos mais algumas palavras adiante.
3.      Não é aqui o lugar para tratarmos da questão da “quarta dimensão” do espaço, que deu lugar a muitas concepções erradas ou fantasistas, e que encontraria melhor seu lugar num estudo sobre as condições da existência corporal.










XIII

 RELAÇÃO DAS DUAS
REPRESENTAÇÕES PRECEDENTES


Na nossa segunda representação em três dimensões, em que consideramos somente um ser em sua totalidade, a direção horizontal segundo a qual se desenvolvem as modalidades de todos os estados deste ser implica, assim como os planos verticais que lhe são paralelos, uma idéia de sucessão lógica, enquanto que os planos horizontais que lhe são perpendiculares correspondem, correlativamente, à idéia de simultaneidade lógica (1). Se projetarmos toda a extensão sobre aquele dos três planos de coordenadas que se acha no último caso, cada modalidade de cada ser será projetada segundo um ponto de uma reta horizontal, cujo conjunto será a projeção da integralidade de um certo estado de ser e, em particular, o estado cujo centro coincide com o do ser total será figurado pelo eixo horizontal situado no plano sobre o qual se faz a projeção. Somos assim conduzidos à primeira representação, em que o ser está inteiramente situado no plano vertical; um plano horizontal poderá então ser novamente um grau da Existência universal, e o estabelecimento desta correspondência entre as duas representações, permitindo-nos passar facilmente de uma à outra, nos dispensa de sair da extensão em três dimensões.

Cada plano horizontal, quando representa um grau de Existência universal, compreende todo o desenvolvimento de uma possibilidade particular, cuja manifestação constitui, em seu conjunto, aquilo que podemos denominar um “macrocosmo”, ou seja um mundo, enquanto que, na outra representação, que se refere a apenas um ser, ele é somente o desenvolvimento da mesma possibilidade dentro deste ser, o que constitui um estado dele, seja uma individualidade integral ou um estado não-individual, que podemos, em todo caso, chamar analogamente um “microcosmo”. De resto, cabe lembrar que o próprio “macrocosmo”, assim como o “microcosmo”, desde que visto isoladamente, não passa de um dos elementos do Universo, como cada possibilidade particular não passa de um elemento da Possibilidade total.

Das duas representações, aquela que se refere ao Universo, pode ser chamada, para simplificar a linguagem, a representação “macrocósmica”, e a que se refere a um ser, a representação “microcósmica”. Já vimos como, nesta última, é traçada a cruz de três dimensões; o mesmo acontecerá com a representação “macrocósmica”, se nela determinarmos os elementos correspondentes, ou seja, um eixo vertical que será o eixo do Universo, e um plano horizontal, que designaremos, por analogia, como seu equador; e lembraremos aqui que cada “macrocosmo” terá aqui seu centro sobre o eixo vertical, como o “microcosmo” possuía na outra representação.

Vemos pelo exposto, a analogia que existe entre o “macrocosmo” e o “microcosmo”, pois cada parte do Universo é análoga às outras partes, e todas são análogas a ele próprio, porque todas são análogas ao Universo total. Resulta daí que, se considerarmos o “macrocosmo”, cada um dos domínios definidos que ele compreende lhe é análogo; da mesma forma, se considerarmos o “microcosmo”, cada modalidade sua lhe é análoga também. É assim que, em particular, a modalidade corporal da individualidade humana pode ser tomada para simbolizar, em suas diversas partes, esta mesma individualidade vista integralmente (2); mas nós nos contentaremos em assinalar este ponto de passagem, pois seria pouco útil entrar aqui em considerações deste gênero, que só tem uma importância secundária, e que, aliás, na forma como é apresentado habitualmente, só responde a uma visão sumária e superficial da constituição do ser humano (3). Em todo caso, desde que se queira entrar em tais considerações, e ainda que se estabeleçam divisões muito gerais na individualidade, não devemos jamais esquecer que esta comporta em realidade uma multitude indefinida de modalidades coexistentes, assim como o próprio organismo corporal compõe-se de um multitude indefinida de células, das quais cada qual tem sua existência própria.













NOTAS


1.      Deve ficar claro que as idéias de sucessão e de simultaneidade não devem ser encaradas aqui senão do ponto de vista puramente lógico, e não cronológico, pois o tempo não passa de uma condição especial, diríamos mesmo sequer de estado humano inteiro, mas apenas de certas modalidades deste estado.
2.      Ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XII, 3ª ed.
3.      Podemos dizer quase o mesmo das comparações da sociedade humana com um organismo, que, como observamos em outra parte a respeito da instituição das castas, encerram certamente uma parte de verdade, mas que muitos sociólogos abusaram do uso, às vezes pouco judiciosamente (ver Introduction Générale à l’Étude des Doctrines Hindoues, pg. 203).














XIV

 O SIMBOLISMO DA TECELAGEM


Existe um simbolismo que se refere diretamente ao que acabamos de expor, embora se faça dele uma aplicação que, à primeira vista, parece afastar-se um pouco: nas doutrinas orientais, os livros tradicionais são freqüentemente designados por termos que, em seu sentido geral, referem-se à tecelagem. Assim, em sânscrito, sûtra significa propriamente “fio”(1): um livro pode ser formado por um conjunto de sûtras, como um tecido é formado por um conjunto de fios; tantra possui também o significado de “fio” e de “tecido”, e designa mais particularmente o urdume de um tecido (2). Da mesma forma, em chinês, king é o urdume de um pano, e wei sua trama; o primeiro destes dois termos designa ao mesmo tempo um livro fundamental, e o segundo seus comentários (3). Esta distinção entre urdume e trama no conjunto das escrituras tradicionais corresponde, segundo a terminologia hindu, à que existe entre a Shruti, que é o fruto da inspiração direta, e a Smriti, que é o produto da reflexão que se exerce sobre os dados da Shruti (4).

Para melhor compreender o significado deste simbolismo, é preciso lembrar primeiramente que o urdume, formado por fios esticados sobre o tear, representa o elemento imutável e principial, enquanto que os fios da trama, passando em meio ao urdume pelo vaivém da navete, representam o elemento variável e contingente, ou seja as aplicações do princípio a tais ou quais condições particulares. Por outro lado, se considerarmos um fio do urdume e outro da trama, percebemos imediatamente que seu cruzamento forma uma cruz, da qual eles são respectivamente a linha vertical e a horizontal; e todo ponto do tecido, sendo assim o ponto de encontro de dois fios perpendiculares entre si, é porisso mesmo o centro de uma tal cruz. Ora, segundo o que vimos quanto ao simbolismo geral da cruz, a linha vertical representa aquilo que une entre si todos os estados de um ser ou todos os graus da Existência, religando seus pontos correspondentes, enquanto que a linha horizontal representa o desenvolvimento de um destes estados ou de um destes graus. Se reportarmos isto ao que já indicamos, podemos dizer que o sentido horizontal figurará por exemplo o estado humano, e o sentido vertical o que é transcendente em relação a este estado; este caráter transcendente é exatamente o da Shruti, que é essencialmente “não humana”, enquanto que a Smriti comporta as aplicações à ordem humana e é o produto do exercício de faculdades especificamente humanas.

Podemos acrescentar aqui outra observação que fará ressaltar a concordância dos diversos simbolismos, mais estreitamente ligados do que se pode supor à primeira vista: trata-se do  aspecto sob o qual a cruz simboliza a união dos complementares. Vimos que, sob este aspecto, a linha vertical representa o princípio ativo ou masculino (Purusha), e a linha horizontal o princípio passivo ou feminino (Prakriti), sendo que toda a manifestação é produzida pela influência “não-agente” do primeiro sobre o segundo. Ora, por outro lado, a Shruti é assimilada à luz direta, figurada pelo sol, e a Smriti à luz refletida (5), figurada pela lua; mas, ao mesmo tempo, o sol e a lua, em quase todas as tradições, simbolizam também respectivamente o princípio masculino e o princípio feminino da manifestação universal.

O simbolismo da tecelagem não se aplica somente às escrituras tradicionais; ele é empregado também para representar o mundo, ou mais exatamente o conjunto de todos os mundos, vale dizer de estados ou graus, em multitude indefinida, que constituem a Existência universal. Assim, nos Upanishads, o Supremo Brahma é designado como “Aquele sobre quem os mundos são tecidos, como urdume e trama”, ou por outras fórmulas similares (6); o urdume e a trama tem naturalmente, aqui também, os mesmos significados respectivos que acabamos de definir. Por outro lado, segundo a doutrina taoísta, todos os seres estão submetidos à alternância contínua dos dois estados de vida e de morte (condensação e dissipação, vicissitudes do Yang e do Yin) (7); e os comentadores chamam a esta alternância “o vaivém da navete sobre o tear cósmico” (8).

De resto, na verdade, existe tanto mais relação entre estas duas aplicações de um mesmo simbolismo que o próprio Universo, em certas tradições, é às vezes simbolizado por um livro: lembraremos apenas, a este propósito, o Liber Mundi dos Rosa-Cruz, e também o símbolo bem conhecido do Liber Vitae apocalíptico (9). Sob este ponto de vista ainda, os fios do urdume, pelos quais são ligados os pontos correspondentes em todos os estados, constituem o livro sagrado por excelência, que é o protótipo (ou antes o arquétipo) de todas as escrituras tradicionais, de que estes não passam da expressão em linguagem humana (10); os fios da trama, dos quais cada um é o desenrolar dos acontecimentos de um certo estado, constituem o seu comentário, no sentido que fornecem as aplicações relativas aos diferentes estados; todos os eventos, vistos na simultaneidade do “intemporal”, estão assim inscritos neste Livro, do qual cada um é por assim dizer uma letra, identificando-se por outro lado a um ponto do tecido. Sobre o simbolismo do livro, citaremos também um resumo do ensinamento de Mohyiddin ibn Arabi: “O Universo é um imenso livro; os caracteres desse livro são todos escritos, em princípio, com a mesma tinta e transcritos na Tábua eterna pela pluma divina; todos são transcritos simultaneamente e indivisíveis; é por isso que os fenômenos essenciais divinos escondidos no “segredo dos segredos” tomam o nome de “letras transcendentes”. E essas mesmas letras transcendentes, ou seja todas as criaturas, antes de serem condensadas virtualmente na onisciência divina, foram, pelo sopro divino, descidas até as linhas inferiores, e compuseram e formaram o Universo manifestado” (11). 

Uma outra forma do simbolismo da tecelagem, que se reencontra também na tradição hindu, é a imagem da aranha tecendo sua teia, imagem que é tanto mais exata na medida em que a aranha forma essa teia de sua própria substância (12). Em razão da forma circular da teia, que é aliás o esquema plano do esferóide cosmogônico, ou seja da esfera não fechada ã qual já fizemos alusão, o urdume é representado aqui pelos fios irradiantes ao redor do centro, e a trama pelos fios dispostos em circunferências concêntricas (13). Para voltarmos daí à figura comum da tecelagem, só temos que considerar o centro como indefinidamente afastado, de tal modo que os raios se tornam paralelos, segundo a direção vertical, enquanto que as circunferências concêntricas se tornam retas perpendiculares a esses raios, ou seja horizontais.

Em resumo, podemos dizer que o urdume representa os princípios que religam entre si todos os mundos e todos os estados, sendo que cada um de seus fios religa pontos correspondentes nestes diferentes estados, e que a trama representa os conjuntos de eventos que se produzem em cada um destes mundos, de modo que cada fio da trama é, como já dissemos, o desenrolar dos eventos em um mundo determinado. De um outro ponto de vista, podemos dizer ainda que a manifestação de um ser em um certo estado de existência é, como todo evento qualquer que seja ele, determinado pelo encontro de um fio do urdume com um fio da trama. Cada fio do urdume é então um ser visto em sua natureza essencial, que, enquanto projeção direta do “Si” principial, faz a ligação de todos os seus estados, mantendo sua unidade própria através da sua indefinida multiplicidade. Neste caso, o fio da trama que este fio do urdume encontra em um certo ponto corresponde a um estado definido de existência, e sua interseção determina as relações deste ser, quanto à sua manifestação neste estado, com o meio cósmico no qual ele se situa sob este aspecto. A natureza individual de um ser humano, por exemplo, é o resultado do encontro de dois fios; em outros termos, sempre caberá distinguir aí duas espécies de elementos, que deverão ser reportados respectivamente ao sentido vertical e ao sentido horizontal: os primeiros exprimem aquilo que pertence propriamente ao ser considerado, enquanto que os segundos provém das condições do meio.

Acrescentemos que os fios de que é formado o “tecido do mundo” são ainda designados, em outro simbolismo equivalente, como os “cabelos de Shiva” (14); podemos dizer que são de certo modo as “linhas de força” do Universo manifestado, e que as direções do espaço são a sua representação na ordem corporal. Vemos sem dificuldade a quantas aplicações diferentes  estas considerações dão lugar; mas quisemos aqui apenas indicar o significado essencial do simbolismo da tecelagem, que é, ao que parece, muito pouco conhecido no Ocidente (15).


























NOTAS


1.      Esta palavra é idêntica ao latim sutura, sendo que a mesma raiz, com o sentido de cozer se encontra igualmente nas duas línguas. – É ao menos curioso contatar que o termo árabe sûrat, que designa os capítulos do Corão, é composto dos elementos que o sânscrito sûtura; este termo tem, aliás, o sentido paralelo de “fila” ou “fileira”, e sua derivação é desconhecida.
2.      A raiz tan desta palavra exprime em primeiro lugar a idéia de extensão.
3.      Ao simbolismo da tecelagem liga-se ainda o uso de cordinhas com nós que fazia as vezes de escrita na China, em épocas muito recuadas; estas cordinhas eram do mesmo gênero que as que os antigos Peruanos também empregavam e às quais eles davam o nome de quipos. Embora se tenha dito que estes últimos só serviam para contar, é provável que também servissem para exprimir idéias bastante mais complexas, tanto mais que constituíam os “anais do império”, e que os Peruanos nunca tiveram outro método de escrita, embora possuíssem uma língua muito perfeita e refinada; este tipo de ideografia era possível pelas múltiplas combinações nas quais o uso de fios com cores diferentes desempenhava um papel importante.
4.      Ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. I, e Autorité Spirituelle et Pouvoir Temporel, cap. VIII.
5.      O duplo sentido da palavra “reflexão” é aqui digna de nota.
6.      Mundaka Upanishad, 2º Mundaka, Khanda, shruti 5ª; Brihad-Aranyaka Upanishad, 3º Adhyâya, 8º Brâhmana, shrutis 7 e 8. – O monge budista Kûmarajîva traduziu em chinês uma obra sânscrita intitulada A rede de Brahma (Fan-wang-king), segundo o qual os mundos estão dispostos como malhas de uma rede.
7.      Tao-Te-King, XVI.
8.      Tchang-Houng-Yang compara também esta alternância à respiração, sendo que a inspiração ativa corresponde à vida e a expiração passiva corresponde à morte, e o fim de uma é o começo da outra. O mesmo comentarista se serve ainda, como termo de comparação, da revolução lunar, sendo a lua cheia a vida e a lua nova a morte, com dois períodos intermediários de crescimento e decréscimo. No que concerne à respiração, o que é dito aqui deve ser referido às fases da existência de um ser comparado a ele quando respira; por outro lado, na ordem universal, a expiração corresponde ao desenvolvimento da manifestação, e a inspiração ao retorno ao não-manifestado, como já foi dito; segundo se encare as coisas em relação à manifestação ou em relação ao Princípio, não se deve esquecer de aplicar o “sentido inverso” na analogia.
9.      Indicamos mais acima que, em certas figurações, o livro selado com sete selos, e sobre o qual está deitado o cordeiro, é colocado, como a Árvore da Vida”, na fonte comum dos quatro rios paradisíacos, e aludimos então à relação entre o simbolismo da árvore e o do livro: as folhas da árvore e os caracteres do livro representam igualmente todos os seres do Universo (os “dez mil seres” da tradição extremo-oriental).
10.  Isto é afirmado expressamente a respeito do Veda e do Corão; a idéia do “Evangelho eterno” mostra também que esta mesma concepção não era totalmente estranha ao Cristianismo.
11.  El-Futûhâtul-Mekkiyah. – Podemos fazer uma aproximação com o papel que desempenham as letras na doutrina cosmogônica do Sepher Ietsirah.
12.  Comentário de Shankarâchârya sobre os Brahma-Sûtras, 2º Adhyâya, 1º Pâda, sûtra 25.
13.   A aranha, mantendo-se no centro da teia, dá a imagem do sol rodeado de seus raios; ela também pode ser tomada como uma figura do “Coração do Mundo”.
14.  Aludimos a isto mais acima, a respeito das direções do espaço.
15.  Encontramos entretanto traços de um simbolismo do mesmo tipo na antigüidade greco-latina, notadamente no mito das Parcas; mas este parece reportar-se apenas aos fios da trama, e seu caráter “fatal” pode com efeito ser explicado pela ausência da noção do urdume, ou seja pelo fato de que o ser é visto somente em seu estado individual, sem nenhuma intervenção consciente (para este indivíduo) de seu princípio pessoal transcendente. Esta interpretação é, aliás, justificada pelo modo como Platão considera o eixo vertical no mito de Er o Armênio (República, livro X); segundo ele, de fato, o eixo luminoso do mundo é o “fuso da Necessidade”; é um eixo de diamante, cercado de anéis concêntricos, de dimensões e cores diversas, que correspondem às diferentes esferas planetárias; a Parca Clotho o faz girar com sua mão esquerda, portanto da direita para a esquerda, o que é o sentido mais habitual e mais normal da rotação da swastika. – A propósito deste “eixo de diamante”, assinalemos ainda que o símbolo tibetano do vajra, cujo nome significa ao mesmo tempo “raio” e “diamante”, está também relacionado ao “Eixo do Mundo”.














XV

REPRESENTAÇÃO DA CONTINUIDADE
DAS DIFERENTES MODALIDADES
DE UM MESMO ESTADO DO SER


Se considerarmos um estado do ser, figurado por um plano horizontal da representação “microcósmica” que descrevemos, resta-nos agora dizer de modo mais preciso a que corresponde o centro deste plano, assim como o eixo vertical que passa por esse centro. Mas, para chegarmos aí, será preciso ainda recorrer a uma outra representação geométrica, um pouco diferente da anterior, e na qual faremos intervir, não apenas o paralelismo ou a correspondência como fizemos até aqui, mas ainda a continuidade de todas as modalidades de cada estado do ser entre si, e também de todos os estados entre si, na constituição do ser total.

Para tanto, seremos naturalmente levados a fazer em nossa figuração uma alteração que corresponde, em geometria analítica, à passagem de um sistema de coordenadas retilíneas para um sistema de coordenadas polares. De fato, ao invés de representar as diferentes modalidades de um esmo estado por retas paralelas, como fizemos precedentemente, poderemos representá-las por circunferências concêntricas traçadas sobre o mesmo plano horizontal, e tendo por centro comum o centro deste plano, ou seja, segundo o que explicamos mais acima, seu ponto de encontro com o eixo vertical.

Deste modo, vemos claramente que cada modalidade é finita, limitada, pois ela é representada por uma circunferência, uma curva fechada, ou ao menos uma linha cujas extremidades nos são conhecidas e como que dadas (1); mas, por outro lado, esta circunferência compreende uma multitude indefinida de pontos (2), representando a indefinidade das modificações secundárias que comporta a modalidade considerada, qualquer que seja ela (3). Além disso, as circunferências concêntricas não devem deixar entre si nenhum intervalo, que não seja a distância infinitesimal entre dois pontos imediatamente vizinhos (voltaremos adiante sobre esta questão), de modo que seu conjunto compreende todos os pontos do plano, o que pressupõe que há continuidade entre todas as circunferências. Ora, para que haja realmente continuidade, é preciso que o final de uma circunferência coincida com o início da circunferência seguinte (e não com o início da mesma circunferência); e para que isto seja possível sem que as duas circunferências sucessivas sejam confundidas, é preciso que essas circunferências, ou antes que as curvas que consideramos como tais, sejam na verdade curvas não fechadas.

Aliás, podemos ir mais longe nesse sentido: é materialmente impossível traçar de modo efetivo um linha que seja verdadeiramente uma curva fechada; para prová-lo, basta lembrar que, no espaço onde se situa nossa modalidade corporal, tudo está constantemente em movimento (pelo efeito da combinação das condições temporal e espacial, de que o movimento é de certo modo a resultante), de tal modo que, se começarmos o traçado em um certo ponto do espaço, iremos nos encontrar forçosamente em outro ponto quando terminarmos, e não passaremos jamais pelo ponto de partida. Da mesma forma, a curva que simboliza o percurso de um ciclo evolutivo qualquer (4) não deverá jamais passar duas vezes pelo mesmo ponto, o que eqüivale a dizer que ela não deverá ser um curva fechada (nem uma curva contendo “pontos múltiplos”). Esta representação mostra que não podem haver duas possibilidades idênticas no Universo, o que aliás eqüivaleria a uma limitação da Possibilidade total, limitação impossível, pois, devendo compreender a Possibilidade, ela não poderia estar contida nela. Da mesma forma toda limitação da Possibilidade universal é, no sentido próprio e rigoroso do termo, uma impossibilidade; e é porisso que todos os sistemas filosóficos, enquanto sistemas, por postularem explícita ou implicitamente tais limitações, estão condenados a uma igual impotência do ponto de vista metafísico (5). Para não voltarmos mais às possibilidades idênticas ou supostamente idênticas, lembraremos ainda, para maior precisão, que duas possibilidades que sejam verdadeiramente idênticas não se distinguirão por nenhuma de suas condições de realização; mas, se todas as condições forem as mesmas, será também uma mesma possibilidade, e não mais duas possibilidades distintas, pois haverá coincidência sob todos os aspectos (6); e este raciocínio pode ser aplicado rigorosamente a todos os pontos de nossa representação, em que cada ponto figura uma modificação particular que realiza uma certa possibilidade determinada (7).

O começo e o fim de qualquer uma das circunferências que consideramos não devem então ser o mesmo ponto, mas dois pontos sucessivos de um mesmo raio, e, na verdade não se pode mesmo dizer que pertençam à mesma circunferência: um pertence ainda à circunferência precedente, da qual é o fim, e o outro pertence já à circunferência seguinte, da qual é o início. Os termos extremos de uma série indefinida podem ser vistos como situados fora dessa série, pelo fato mesmo de que eles estabelecem a sua continuidade com outras séries; e tudo isto pode ser aplicado, em particular, ao nascimento e à morte da modalidade corporal da individualidade humana. Assim, as duas modificações extremas de cada modalidade não coincidem, existindo apenas correspondência entre elas no conjunto do estado do ser de que esta modalidade faz parte, sendo esta correspondência indicada pela situação de seus pontos representativos sobre um mesmo raio saído do centro do plano. Por conseguinte, o mesmo raio conterá as modificações extremas de todas as modalidades do estado considerado, modalidades que aliás não devem ser vistas como sucessivas propriamente falando (pois elas também podem ser simultâneas), mas apenas como encadeando-se logicamente. As curvas que figuram estas modalidades, em lugar de serem circunferências como supusemos de início, são as espiras sucessivas de uma espiral indefinida traçada sobre o plano horizontal e que se desenvolve a partir do seu centro; esta curva vai amplificando-se de modo contínuo de uma espira à outra, sendo que o raio irá variar em quantidades infinitesimais, que serão as distâncias de dois pontos sucessivos desse raio. Esta distância pode ser considerada tão pequena quanto se queira, segundo a própria definição das quantidades infinitesimais, que são quantidades susceptíveis de decrescer indefinidamente; mas ela não pode jamais ser considerada nula, pois os dois pontos sucessivos não se confundem; se ela pudesse tornar-se nula, não haveria mais do que um só e único ponto.




NOTAS




1.      Esta restrição é necessária para que não haja aqui contradição, mesmo que apenas aparente, com aquilo que irá se seguir.
2.      Convém frisar que não dizemos um número indefinido, mas uma multitude indefinida, pois é possível que a indefinidade de que se trata ultrapasse todo número, embora a própria série dos números seja indefinida, porém em modo descontínuo, enquanto que a dos pontos de uma linha o é em modo contínuo. O termo de “multitude” é mais extenso e mais abarcante do que o de “multiplicidade numérica”, e ele pode mesmo aplicar-se fora do domínio da quantidade, de que o número não passa de um modo especial; é o que compreenderam muito bem os filósofos escolásticos, que transpuseram essa noção de “multitude” para a ordem dos “transcendentais”, ou seja dos modos universais do Ser, onde ela está para a multiplicidade numérica assim como conceito da Unidade metafísica está para a unidade aritmética ou quantitativa. Deve ficar claro que é desta multiplicidade “transcendente” que se trata quando falamos dos estados múltiplos do ser, sendo a quantidade não mais que uma condição particular aplicável apenas a alguns destes estados.
3.      Sendo o comprimento de uma circunferência tanto maior quanto mais esta circunferência está afastada do centro, poderá parecer à primeira vista que ela deve conter proporcionalmente mais pontos; mas, por outro lado, se lembrarmos que cada ponto de uma circunferência é a extremidade de um dos seus raios, e que duas circunferências concêntricas possuem os mesmos raios, devemos concluir que não existem mais pontos na maior do que na menor. A solução dessa aparente dificuldade está naquilo que indicamos na nota precedente: é que não existe realmente um número de pontos em uma linha, eles não podem propriamente ser contados, estando sua multitude além do número. Por outro lado, se existem sempre tantos pontos (se é que se pode falar assim nestas condições) em uma circunferência que diminui aproximando-se do seu centro, como essa circunferência, no limite, reduz-se ao próprio centro, este, mesmo não sendo mais que um único ponto, deve conter então todos os pontos da circunferência, o que eqüivale a dizer que todas as coisas estão contidas na unidade.
4.      Por “ciclo evolutivo” entendemos simplesmente, segundo o significado original da palavra, o processo de desenvolvimento das possibilidades compreendidas em um modo qualquer de existência, sem que este processo implique no que quer que seja relacionado com uma teoria “evolucionista” (cf. L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XVII, 3ª ed.);  já dissemos suficientemente aliás o que se deve pensar destas teorias para que seja preciso insistir aqui sobre o tema.
5.      É fácil de ver, por outro lado, que isto exclui todas as teorias mais ou menos “reincarnacionistas” que surgiram no Ocidente moderno, tanto quanto o famoso “eterno retorno” de Nietzche e outras concepções similares; já desenvolvemos estas considerações em L’Erreur Spirite, 2ª parte, cap. VI.
6.      Este é um ponto que Leibnitz parece ter acertado quando colocou o “princípio dos indiscerníveis”, embora ele não o tenha formulado tão claramente (cf. Autorité Spirituelle et Pouvoir Temporel, cap. VII).
7.      Entendemos aqui o termo “possibilidade” na sua acepção mais restrita e especializada: trata-se, não de uma possibilidade particular susceptível de um desenvolvimento indefinido, mas apenas de um qualquer dos elementos que um tal desenvolvimento comporta.

XVI

RELAÇÕES DO PONTO
E DA EXTENSÃO


A questão que a última observação levanta merece que nos detenhamos aí um pouco, sem no entanto tratarmos aqui das considerações relativas à extensão com todos os desenvolvimentos que o assunto merece, que caberiam melhor num estudo sobre as condições da existência corporal. O que queremos assinalar sobretudo, é que a distância de dois pontos imediatamente vizinhos, de que tratamos em razão da introdução da continuidade na representação geométrica do ser, pode ser vista como o limite da extensão no sentido das quantidades indefinidamente decrescentes; em outros termos, ela é a menor extensão possível, aquela após quem não há mais extensão, vale dizer não há mais condição espacial, e que não se pode suprimir sem sair do domínio de existência que está submetido a esta condição. Portanto, a partir do momento em que se divide a extensão indefinidamente (1), e que se leva essa divisão tão longe quanto possível, ou seja até os limites da possibilidade espacial pela qual a divisibilidade está condicionada (e que aliás é indefinida tanto no sentido crescente como no decrescente), não é ao ponto que se chega como resultado último, mas sim à distância elementar entre dois pontos. Resulta daí que, para que haja extensão ou condição espacial, é preciso que haja dois pontos, e a extensão (em uma dimensão), que é realizada por sua presença simultânea e que é precisamente a distância entre eles, constitui um terceiro elemento que exprime a relação existente entre estes dois pontos. De resto, esta distância, na medida em que a consideramos como uma relação, não é evidentemente composta de partes, pois as partes nas quais ela poderia ser dividida, se ela o pudesse, constituiriam outras relações de distância, das quais ela é logicamente independente, assim como, do ponto de vista numérico, a unidade é independente das frações (2). Isto é válido para uma distância qualquer, desde que a encaremos em relação aos dois pontos que são suas extremidades, e o é a fortiori para uma distância infinitesimal, que não é absolutamente uma quantidade definida, mas que exprime apenas uma relação espacial entre dois pontos imediatamente vizinhos, tais como os dois pontos consecutivos de uma linha qualquer. Por outro lado, os próprios pontos, considerados como extremidades de uma distância, não são partes do continuum espacial, embora a relação de distância suponha que eles são vistos como situados no espaço; portanto, em realidade, é a distância que é o verdadeiro elemento espacial.
Consequentemente, não podemos dizer, com todo o rigor, que a linha seja formada de pontos, e isto se compreende facilmente, pois, sendo cada um dos pontos sem extensão, sua simples adição, mesmo sendo eles em multitude indefinida, não poderá jamais formar uma extensão; na verdade, a linha é constituída pelas distâncias elementares entre seus pontos consecutivos. Do mesmo modo, e por uma razão semelhante, se considerarmos em um plano uma indefinidade de linhas paralelas, não podemos dizer que o plano seja formado pela reunião de todas essas retas, ou que elas sejam verdadeiros elementos constitutivos do plano; os verdadeiros elementos são as distâncias entre as retas, distâncias pelas quais elas são retas distintas e não confundidas, e, se as retas formam um plano em um certo sentido, não é por si mesmas, assim como ocorre com os pontos em relação a cada reta. Do mesmo modo ainda, a extensão de três dimensões não é composta por uma indefinidade de planos paralelos, mas das distâncias entre todos esses planos.

Entretanto, o elemento primordial, aquele que existe por si mesmo, é o ponto, pois ele é pressuposto pela distância, sendo esta uma relação; a própria extensão, portanto, pressupõe o ponto. Podemos dizer que este contém em si uma virtualidade de extensão, que ele só pode desenvolver primeiramente desdobrando-se, para colocar-se de certo modo em face de si mesmo, e depois multiplicando-se (ou melhor submultiplicando-se) indefinidamente, de tal sorte que a extensão procede inteiramente desta diferenciação, ou, para falar mais exatamente, dele mesmo na medida em que ele se diferencia. Esta diferenciação aliás só tem realidade do ponto de vista da manifestação espacial; ela é ilusória em relação ao ponto principial, que não cessa porisso de continuar sendo o que era, e cuja unidade essencial não poderia nunca ser afetada (3). O ponto, considerado em si, não está absolutamente submetido à condição espacial, porque, bem ao contrário, ele é o seu princípio: é ele que realiza o espaço, que produz a extensão pelo seu ato, o qual, na condição temporal (mas somente nela), traduz-se pelo movimento; mas, para realizar assim o espaço, é preciso que, através de alguma de suas modalidades, ele próprio se situe dentro desse espaço, que de resto não é nada sem ele, e que ele preencherá inteiramente através do desdobramento de suas próprias virtualidades (4). Ele pode – sucessivamente, na condição temporal, ou simultaneamente, fora dessa condição (o que, diga-se de passagem, nos faria sair do espaço comum tridimensional) – identificar-se, para realizá-los, a todos os pontos dessa extensão, sendo esta então vista apenas como uma pura potência de ser, que não é outra coisa senão a virtualidade total do ponto concebida sob seu aspecto passivo, ou como potencialidade, o lugar ou o continente de todas as manifestações de sua atividade, continente que atualmente não é nada, a não ser pela efetivação de seu conteúdo possível (6).

O ponto primordial, sendo sem dimensões, é também sem forma; ele não está, portanto, na ordem das existências individuais; ele só se individualiza a partir do momento em que ele se situa no espaço, e isto não em si mesmo, mas apenas através de alguma de suas modalidades, de modo que, a bem dizer, são estas que são propriamente individualizadas, e não o ponto principial. De resto, para que haja forma, é preciso que haja previamente diferenciação, portanto multiplicidade realizada numa certa medida, o que só é possível quando o ponto se opõe a si mesmo, se podemos dizer assim, por duas ou mais de suas modalidades de manifestação espacial; e esta oposição é aquilo que, no fundo, constitui a distância, cuja realização é a primeira efetivação do espaço, que, sem ela, é apenas pura potência de receptividade. Lembremos ainda que a distância existe, em primeiro lugar, virtualmente ou implicitamente na forma esférica de que falamos acima, e que é esta que corresponde ao mínimo de diferenciação, sendo “isotrópica” em relação ao ponto central, sem nada que distinga uma direção particular em relação a todas as outras; o raio, que é aqui a expressão da distância (tomada do centro à periferia), não é traçado efetivamente e não faz parte integrante da figura esférica. A realização efetiva da distância só é explicitada na linha reta, e enquanto elemento inicial e fundamental desta, como resultado da especificação de uma certa direção determinada; daí por diante, o espaço não pode mais ser visto como “isotrópico”, e, deste ponto de vista, ele deve ser reportado a dois pólos simétricos (os dois pontos entre os quais existe a distância), em lugar de sê-lo a um centro único.

O ponto que realiza toda a extensão, como indicamos, torna-se seu centro, medindo-a segundo todas as suas dimensões, pela extensão indefinida dos braços da cruz nas seis direções, ou em direção aos seis pontos cardeais desta extensão. É o “Homem Universal”, simbolizado por esta cruz, mas não o homem individual (pois este, enquanto tal, não pode atingir nada que esteja fora de seu próprio estado de ser), que é verdadeiramente a “medida de todas as coisas”, para empregarmos a expressão de Protágoras que já citamos (7), mas, bem entendido, sem atribuir ao sofista grego a menor compreensão desta interpretação metafísica (8).

















NOTAS




1.      Dizemos “indefinidamente”, mas não “ao infinito”, o que seria absurdo, pois a divisibilidade é necessariamente um atributo próprio a um domínio limitado, uma vez que a condição espacial, de que ela depende, é em si essencialmente limitada; é forçoso portanto que haja um limite para a divisibilidade, como para qualquer relatividade ou qualquer determinação, e podemos ter certeza de que este limite existe, mesmo que ele não nos seja atualmente acessível.
2.      As frações não podem ser, propriamente falando, “partes da unidade”, pois uma unidade verdadeira é evidentemente sem partes; esta falsa definição que se dá das frações implica numa confusão entre a unidade numérica, que é essencialmente indivisível, e as “unidades de medida”, que são unidades relativas e convencionais, e que, sendo da natureza das grandezas contínuas, são necessariamente divisíveis e compostas de partes.
3.      Se a manifestação espacial desaparecer, todos os pontos situados no espaço serão reabsorvidos no ponto principial único, porque não haverá entre eles mais nenhuma distância.
4.      Leibnitz distinguiu com razão aquilo que ele chamou de “pontos metafísicos”, que são para ele verdadeiras “unidades de substância”, e que são independentes do espaço, e os “pontos matemáticos”, que não passam de simples modalidades daqueles, na medida em que são determinações espaciais, constituindo seus “pontos de vista” respectivos para representar ou exprimir o Universo. Para Leibnitz também, é tudo o que está situado no espaço que dá ao espaço sua realidade atual; mas é evidente que não se pode reportar ao espaço, como ele o faz, tudo o que constitui, em cada ser, a expressão do Universo total.
5.      A transmutação da sucessão em simultaneidade, na integração do estado humano, implica de certa forma uma “espacialização” do tempo, que pode traduzir-se pela adjunção de uma quarta dimensão.
6.      É fácil perceber que a relação do ponto principial com a extensão virtual, ou antes potencial, é análoga à da “essência” com a “substância”, entendendo-se estes termos na sua acepção universal, ou seja como designando os dois pólos ativo e passivo da manifestação, que a doutrina hindu chama Purusha e Prakriti (ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. IV).
7.      L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XVI, 3ª ed.
8.      Se fosse nossa intenção a de iniciarmos aqui um estudo sobre a condição espacial e suas limitações, poderíamos demonstrar como se pode deduzir, a partir das considerações aqui expostas, o absurdo das teorias atomistas. Diremos apenas, que tudo o que é corporal é necessariamente divisível, pelo fato mesmo de ser extenso, ou seja submetido à condição espacial (cf. Introduction Générale à l’Étude des Doctrines Hindoues, pgs. 239-240).











XVII

ONTOLOGIA DA SARSA ARDENTE


Podemos ainda precisar o significado do desdobramento do ponto central por polarização, tal como expusemos, colocando-nos do ponto de vista propriamente “ontológico”; e, para tornar o assunto mais compreensível, podemos encarar primeiramente a aplicação do ponto de vista lógico e mesmo simplesmente gramatical. De fato, temos aqui três elementos, os dois pontos e a distância entre eles, e é fácil de ver que esses três elementos correspondem exatamente aos de uma proposição: os dois pontos representam os dois termos desta, e sua distância, que exprime a relação que existe entre eles, representa a “cópula”, ou seja o elemento que liga os dois termos um ao outro. Se considerarmos a proposição sob sua forma mais habitual e ao mesmo tempo mais geral, a da proposição atributiva, na qual a “cópula” é o verbo “ser” (1), veremos que ela exprime uma identidade, ao menos sob um certo aspecto, entre o sujeito e o atributo; e isto corresponde ao fato de que os dois pontos não passam na verdade de um desdobramento de um só e mesmo ponto, colocado por assim dizer em face de si mesmo, como já explicamos.

Por outro lado, podemos também encarar a relação entre os dois termos como sendo uma relação de conhecimento: neste caso, o ser, colocando-se por assim dizer em face de si mesmo para conhecer-se, desdobra-se em sujeito e objeto; mas, aqui ainda, estes dois não são senão um na realidade. Isto pode ser estendido a todo conhecimento verdadeiro, que implica essencialmente numa identificação do sujeito com o objeto, o que podemos exprimir dizendo que, sob o aspecto e na medida em que haja aí conhecimento, o ser conhecedor é o ser conhecido; vemos então que este ponto de vista liga-se diretamente ao precedente, pois podemos dizer que o objeto conhecido é um atributo (ou seja, uma modalidade) do sujeito conhecedor.

Se agora considerarmos o Ser universal, que é representado pelo ponto principial em sua indivisível unidade, e do qual todos os seres, na medida em que são manifestados da Existência, não passam em suma de “participações”, podemos dizer que ele se polariza em sujeito e atributo sem que sua unidade seja afetada; e a proposição na qual ele é ao mesmo tempo sujeito e atributo toma esta forma: “o Ser é o Ser”. É o próprio enunciado daquilo que os lógicos chamam de “princípio da identidade”; mas, sob esta forma, vemos que seu alcance ultrapassa o domínio da lógica, e que é propriamente, antes de tudo, um princípio ontológico, quaisquer que sejam as aplicações que se possa dar em diferentes ordens. Podemos dizer ainda que é a expressão da relação do Ser enquanto sujeito (O que é) para com o Ser enquanto atributo (O que ele é), e que, por outro lado, sendo o Ser-sujeito o Conhecedor e o Ser-atributo (ou objeto) o Conhecido, esta relação é o próprio Conhecimento; mas, ao mesmo tempo, é a relação de identidade; o Conhecimento absoluto é portanto a própria identidade, e todo conhecimento verdadeiro, sendo uma participação deste, implica também numa identidade na medida em que é efetivo. Acrescentemos ainda que, como a relação só tem realidade para os dois termos que ela liga, e sendo estes dois não mais que um, os três elementos (o Conhecedor, o Conhecido e o Conhecimento) não são verdadeiramente senão um (2); é o que podemos exprimir dizendo que “o Ser conhece a Si mesmo através de Si mesmo” (3).

O que é importante, e que mostra o valor tradicional da fórmula que explicamos, é que ela se encontra textualmente na Bíblia hebraica, no relato da manifestação de Deus a Moisés na sarça ardente (4): tendo Moisés Lhe perguntado qual é Seu Nome, Ele responde: Eheieh asher Eheieh (5), que se traduz habitualmente por: “Eu sou Aquele que sou” (ou “Aquilo que Eu sou”), mas cujo significado mais exato seria: “O Ser é o Ser” (6). Existem duas maneiras diferentes de encarar a constituição desta fórmula, sendo que a primeira consiste em decompo-la em três estágios sucessivos e graduais, segundo a ordem das três palavras com as quais ela é formada: Eheieh, “O Ser”; Eheieh asher, “O Ser é”; Eheieh asher Eheieh, “O Ser é o Ser”. De fato, sendo dado o Ser, aquilo que se pode dizer (e podemos acrescentar: o que não pode deixar de ser dito), em primeiro lugar, é que Ele é, e em seguida que Ele é o Ser; estas afirmações necessárias constituem essencialmente toda a ontologia no sentido próprio deste termo (7). A segunda maneira de encarar a mesma fórmula, é de colocar antes de tudo o primeiro Eheieh, depois o segundo como reflexo do primeiro num espelho (imagem da contemplação do Ser por Si mesmo); em terceiro lugar, a “cópula” asher vem se colocar entre os dois termos como uma ligação que exprime sua relação recíproca. Isto corresponde exatamente ao que expusemos antes: o ponto, inicialmente único, depois desdobrando-se por uma polarização que é também uma reflexão, e a relação de distância (relação essencialmente recíproca) estabelecendo-se entre os dois pontos pelo fato mesmo de sua situação um em face do outro (8).

NOTAS




1.      Todas as outras formas de proposição com que trabalham certos lógicos podem sempre ser reconduzidas à forma atributiva, porque a relação expressa por essa tem um caráter mais fundamental que as outras.
2.      Ver o que dissemos sobre o ternário Sachchidânanda em L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XIV, 3ª ed.
3.      No esoterismo islâmico, encontramos fórmulas tais como: “Allah criou o mundo de Si mesmo por Si mesmo em Si mesmo”, ou “Ele enviou Sua mensagem de Si mesmo a Si mesmo por Si mesmo”. Estas duas fórmulas são aliás eqüivalentes, pois a “Mensagem divina” é o “Livro do Mundo”, arquétipo de todos os Livros sagrados, e as “letras transcendentes” que compõem este livro são todas as criaturas, como já foi explicado. Resulta daí também que a “ciências das letras” (ilmul-hurûf), entendida em seu sentido superior, é o conhecimento de todas as coisas em seu princípio, enquanto essências eternas; em um sentido que podemos dizer médio, é a cosmogonia; enfim, num sentido inferior, é o conhecimento das virtudes dos nomes e dos números, na medida em que exprimem a natureza de cada ser, conhecimento que permite exercer por seu intermédio, uma ação de ordem “mágica” sobre os próprios seres.
4.      Em certas escolas do esoterismo islâmico, a “sarça ardente”, suporte da manifestação divina, é tomada como símbolo da aparência individual que subsiste a partir do momento em que o ser chega à “Identidade Suprema”, no caso que corresponde ao jîvan-mukta na doutrina hindu (ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XXIII, 3ª ed.): é o coração resplandecente de luz da Shekinah, pela presença efetivamente realizada do “Supremo Si” no centro da individualidade humana.
5.      Êxodo, III, 14.
6.      Eheieh deve, com efeito, ser considerado aqui, não como um verbo, mas como um nome, assim como o demonstra o seguimento do texto, no qual é prescrito a Moisés dizer ao povo: “Eheieh enviou-me a vós”. Quanto ao pronome relativo asher, “aquele que”, “o qual”, quando ele desempenha o papel da “cópula”, como é o caso aqui, ele tem o sentido do verbo “ser” como o que aparece na proposição.
7.      famoso “argumento ontológico” de Santo Anselmo e Descartes, que deu lugar a tantas discussões, e que é, de fato, bastante contestável sob a forma “dialética” como foi apresentado, torna-se perfeitamente inútil, assim como todo o resto do raciocínio, se, em lugar de falarmos em “existência de Deus” (o que aliás implica numa certa confusão sobre o significado da palavra “existência”), colocarmos simplesmente esta fórmula: “O Ser é”, que é evidente por si só, provindo da intuição intelectual e não da razão discursiva (ver Introduction Générale à l’Étude des Doctrines Hindoues, pgs. 114-115).
8.      Não é preciso lembrar que, sendo o Eheieh hebraico o ser puro, o sentido deste nome divino identifica-se exatamente ao de Ishwara na doutrina hindu, que contém também em Si mesmo o ternário Sachchidânanda.









XVIII

PASSAGEM DAS COORDENADAS RETILÍNEAS ÀS COORDENADAS POLARES; CONTINUIDADE POR ROTAÇÃO

Resta-nos agora voltar à representação geométrica que expusemos por último, e cuja introdução, como observamos, eqüivale a substituir por coordenadas polares as coordenadas retilíneas e retangulares de nossa anterior representação “microcósmica”. Toda variação do raio da espiral que encaramos corresponde a uma variação eqüivalente sobre o eixo que atravessa todas as modalidades, ou seja perpendicular à direção segundo a qual efetua-se o desenvolvimento de cada modalidade. Quanto às variações sobre o eixo paralelo a esta última direção, elas são substituídas pelas diferentes posições que ocupa o raio ao girar em torno do pólo (centro do plano ou origem das coordenadas), ou seja pelas variações deste ângulo de rotação, medido a partir de uma certa posição tomada como origem. Esta posição inicial, que será a normal à partida da espiral (pois esta curva parte do centro tangencialmente à posição do raio que é perpendicular a ela), será aquela do raio que contém, como dissemos, as modificações extremas (começo e fim) de todas as modalidades.

Mas, nestas modalidades, apenas o começo e o fim se correspondem, e cada modificação intermediária ou qualquer elemento de uma modalidade tem igualmente sua correspondência em todas as outras, sendo as modificações correspondentes representadas por pontos situados sobre o mesmo raio saído do pólo. Se tomarmos este raio, qualquer que seja ele, como normal à origem da espiral, teremos sempre a mesma espiral, mas a figura toda terá girado de um certo ângulo. Para representarmos a perfeita continuidade que existe entre todas as modalidades, e na correspondência de todos os seus elementos, será preciso supor que a figura ocupa simultaneamente todas as posições possíveis ao redor do pólo, e todas essas figuras similares se interpenetram, pois cada uma delas, dentro do conjunto de seu desenvolvimento indefinido, compreende igualmente todos os pontos do plano. Trata-se, propriamente falando, de uma mesma figura em uma indefinidade de posições diferentes, posições que correspondem à indefinidade dos valores que pode tomar o ângulo de rotação, supondo que este ângulo varie de um modo contínuo até que este raio, partido da posição inicial que definimos, chegue, após uma revolução completa, a se superpor a esta posição primeira.

Nesta suposição, teremos a imagem exata de um movimento vibratório propagando-se indefinidamente, em ondas concêntricas, em torno de seu ponto de partida, em um plano horizontal como a superfície limpa de um líquido (1); e este seria o símbolo geométrico mais exato que se pode dar da integralidade de um estado do ser. Se quiséssemos avançar mais nas considerações de ordem puramente matemática, que só nos interessam aqui na medida em que nos fornecem representações simbólicas, poderíamos mesmo mostrar que a realização desta integralidade corresponde à integração da equação diferencial que exprime a relação existente entre as variações concomitantes do raio e de seu ângulo de rotação, em que um e outro variam, um em função do outro, de modo contínuo, ou seja segundo quantidades infinitesimais. A constante arbitrária que figura na integral será determinada pela posição do raio tomada como origem, e esta mesma quantidade, que só é fixa para uma posição determinada da figura, deverá variar de modo contínuo de 0 a 2pi para todas as suas posições, de modo que, se considerarmos estas como podendo ser simultâneas (o que eqüivale a suprimir a condição temporal, que dá à atividade de manifestação a qualificação particular que constitui o movimento), será preciso manter a constante indeterminada entre estes dois valores extremos.

Entretanto, deve-se tomar o cuidado de lembrar que estas representações geométricas, quaisquer que sejam, são sempre mais ou menos imperfeitas, como toda representação e toda expressão formal. De fato, somos naturalmente obrigados a situá-los em um espaço particular, em uma extensão determinada, e o espaço, mesmo encarado em toda a extensão de que é susceptível, não passa de uma condição especial contida em um dos graus da Existência universal, e à qual (de resto unida ou combinada com outras condições da mesma ordem) estão submetidos alguns dos domínios múltiplos compreendidos neste grau de Existência, domínios dos quais cada qual é, no “macrocosmo”, análogo àquilo que é no “microcosmo” a modalidade correspondente deste estado de ser situado neste mesmo grau. A representação é forçosamente imperfeita, pelo fato mesmo de estar encerrada dentro de limites mais restritos  do que aquilo que é representado, e, aliás, se não fosse assim, ela seria inútil (2); mas, por outro lado, ela é tanto menos imperfeita na medida em que, mesmo permanecendo compreendida dentro dos limites do conceptível, e mesmo dentro dos limites ainda mais estreitos do imaginável (que procede inteiramente do sensível), ela se torna menos limitada, o que, em suma, eqüivale a dizer que ela faz intervir uma potência mais elevada do indefinido (3). Isto se traduz em particular, nas representações espaciais, pela adjunção de uma dimensão, como indicamos precedentemente; de resto, esta questão será esclarecida no seguimento de nossa exposição.



























NOTAS




1.      Trata-se daquilo que se chama em física de superfície limpa “teórica”, pois, de fato, a superfície limpa de um líquido nunca é indefinidamente extensa e jamais realiza perfeitamente o plano horizontal.
2.      É porisso que o superior nunca pode simbolizar o inferior, mas pode sempre ser simbolizado por este; o símbolo deve evidentemente,  para preencher sua condição de “suporte”, ser mais acessível, portanto menos complexo e extenso do que o que ele exprime ou representa.
3.      Nas quantidades infinitesimais, existe algo que corresponde exatamente, mas em sentido inverso, a estas potências crescentes do infinito: são as diferentes ordens decrescentes destas quantidades infinitesimais. Nos dois casos, uma quantidade de uma certa ordem é indefinida, no sentido crescente ou no sentido decrescente, não apenas em relação às quantidades finitas ordinárias, mas também em relação às quantidades que pertencem a todas as ordens de indefinidade precedentes; não existe portanto heterogeneidade radical entre as quantidades ordinárias (consideradas como variáveis) e as quantidades indefinidamente crescentes o indefinidamente decrescentes.






XIX

REPRESENTAÇÃO DA CONTINUIDADE
DOS DIFERENTES ESTADOS DO SER


Em nossa nova representação, só consideramos até aqui um plano horizontal, ou seja um só estado do ser, e é preciso agora figurar também a continuidade de todos os planos horizontais, que representam a indefinida multiplicidade de todos os estados. Esta continuidade obtém-se geometricamente de uma maneira análoga: ao invés de supor o plano horizontal fixo na extensão em três dimensões, suposição que a presença do movimento torna tão irrealizável materialmente quanto o traçado de uma curva fechada, só teremos que supor que ele se desloca insensivelmente, paralelamente a si mesmo, portanto permanecendo sempre perpendicular ao eixo vertical, e de modo a encontrar sucessivamente este eixo em todos os seus pontos consecutivos, e correspondendo a passagem de um ponto a outro ao percurso de uma das espiras que consideramos. O movimento espiroidal será aqui suposto isócrono, inicialmente para simplificar a representação tanto quanto possível, e também para traduzir a eqüivalência das múltiplas modalidades do ser em cada um dos seus estados, quando os encaramos do ponto de vista do Universal.

Podemos mesmo, para maior simplicidade, considerar de novo e provisoriamente cada uma das espiras como já o fizemos no plano horizontal fixo, ou seja como uma circunferência. Desta vez ainda, a circunferência não irá se fechar, pois, quando o raio que a descreve for superpor-se à sua posição inicial, ela já não estará no mesmo plano horizontal (suposto fixo como paralelo à direção de um dos planos de coordenadas e que marca uma certa situação definida sobre o eixo perpendicular a essa direção); a distância elementar que separará as duas extremidades desta circunferência, ou antes a curva suposta como tal, será então medida, não mais sobre um raio saindo do polo, mas sobre uma paralela ao eixo vertical (1). Estes pontos extremos não pertencem ao mesmo plano horizontal, mas a dois planos horizontais superpostos; eles estão situados de parte e de outra do plano horizontal considerado no curso de seu deslocamento intermediário entre estas duas posições (deslocamento que corresponde ao desenvolvimento do estado representado por este plano), porque eles marcam a continuidade de cada estado de ser com aquele que o precede e com aquele que o segue imediatamente, na hierarquização do ser total. Se considerarmos os raios que contém as extremidades das modalidades de todos os estados, sua superposição forma um plano  vertical do qual eles são as linhas horizontais, e este plano vertical é o lugar de todos os pontos extremos de que falamos, e que podemos chamar de pontos-limite para os diferentes estados, como acontecia precedentemente, sob outro ponto de vista, para as diversas modalidades de cada estado. A curva que havíamos provisoriamente considerado como uma circunferência é em realidade uma espira, de altura infinitesimal (distância entre dois planos horizontais que encontram o eixo vertical em dois pontos sucessivos), de uma hélice traçada sobre um cilindro de revolução cujo eixo não é outro que o eixo vertical de nossa representação. A correspondência entre os pontos das espiras sucessivas é aqui marcado pela sua situação sobre uma mesma geratriz do cilindro, ou seja sobre a mesma vertical; os pontos que se correspondem, através da multiplicidade de estados do ser, aparecem confundidos quando os encaramos na totalidade da extensão em três dimensões, em projeção ortogonal sobre o plano de base do cilindro, ou seja sobre o plano horizontal determinado.

Para completar nossa representação, basta agora encarar simultaneamente, de um lado, o movimento helicoidal, efetuando-se sobre um sistema cilíndrico vertical constituído por uma indefinidade de cilindros circulares concêntricos (sendo que o raio de base varia de um para outro segundo uma quantidade infinitesimal), e de outro lado, o movimento espiroidal que consideramos precedentemente em cada plano horizontal suposto fixo. Pela combinação destes dois elementos, a base plana do sistema vertical não será outra coisa que a espiral horizontal, que eqüivale ao conjunto de uma indefinidade de circunferências concêntricas não fechadas; mas, por outro lado, para levarmos mais longe a analogia das considerações relativas respectivamente às duas extensões de duas e três dimensões, e também para melhor simbolizarmos a perfeita continuidade de todos os estados do ser entre si, será preciso encararmos a espiral, não em uma só posição, mas em todas as posições que ela pode ocupar ao redor do seu centro. Teremos assim uma indefinidade de sistemas verticais tais como o precedente, possuindo o mesmo eixo, e interpenetrando-se todos quando os vemos como coexistentes, pois cada um deles compreende igualmente a totalidade dos pontos de uma mesma extensão em três dimensões, na qual estão todos situados; não passa, ainda aqui, do mesmo sistema considerado simultaneamente em todas as posições, em multitude indefinida, que ele pode ocupar ao cumprir uma rotação completa ao redor do eixo vertical.

Veremos entretanto que, na realidade, a analogia assim estabelecida não é ainda totalmente suficiente; mas, antes de irmos mais longe, lembraremos que tudo o que dissemos pode aplicar-se tão bem à representação “macrocósmica” como à “microcósmica”. Neste caso, as espiras sucessivas da espiral indefinida traçada sobre o plano horizontal, ao invés de representar as diversas modalidades de um estado do ser, representarão os domínios múltiplos de um grau da Existência universal, enquanto que a correspondência vertical será a de cada grau da Existência, em cada uma das possibilidades determinadas que ele compreende, com todos os outros graus. Acrescentemos aliás, para não termos de repeti-lo, que esta concordância entre as duas representações “macrocósmica” e “microcósmica” será igualmente verdadeira para tudo o que virá a seguir.
















NOTAS



1.      Em outros termos, é no sentido vertical, e não mais no sentido horizontal como precedentemente, que a curva permanecerá aberta.

XX

O VÓRTEX ESFÉRICO UNIVERSAL


Se voltarmos ao sistema vertical complexo que consideramos por último, veremos que, ao redor do ponto tomado como centro da extensão em três dimensões que preenche o sistema, esta extensão não é “isotrópica”, ou, em outros termos, que, em função da determinação de uma direção particular e de certo modo “privilegiada”, que é a do eixo do sistema, ou seja a direção vertical, a figura não é homogênea em todas as direções a partir deste ponto. Ao contrário, no plano horizontal, quando consideramos simultaneamente todas as posições da espiral em torno do centro, este plano era encarado assim de modo homogêneo e sob um aspecto “isotrópico” em relação a este centro. Para que o mesmo aconteça na extensão em três dimensões, é preciso lembrar que toda reta passando pelo centro pode ser tomada como eixo de um sistema como o que descrevemos, de modo que qualquer direção pode desempenhar o papel da vertical; da mesma forma, sendo qualquer plano que passe pelo centro, perpendicular a uma destas retas, resulta daí que, correlativamente, qualquer direção de planos poderá desempenhar o papel da direção horizontal, e mesmo o da direção paralela a um qualquer dos três planos de coordenadas. De fato, todo plano que passa pelo centro pode tornar-se um desses três planos dentro de uma infinidade de sistemas de coordenadas trirretangulares, pois ele contém uma indefinidade de pares de retas ortogonais cruzando-se no centro (sendo estas retas todos os raios que partem do polo na figuração da espiral), pares que podem cada qual formar dois quaisquer dos três eixos de um destes sistemas. Assim como cada ponto da extensão é o centro em potência, como já dissemos, cada reta desta extensão é eixo em potência, e, mesmo quando o centro tenha sido determinado, cada reta passando por este ponto será ainda, em potência, um qualquer dos três eixos. Quando se tenha escolhido o eixo central ou principal do sistema, restará ainda fixar os dois outros eixos no plano perpendicular ao primeiro e que passem igualmente pelo centro; mas é preciso que, como o próprio centro, os três eixos sejam também determinados para que a cruz seja efetivamente traçada, ou seja para que a extensão inteira possa ser realmente medida segundo estas três dimensões.

Podemos ver como coexistentes todos os sistemas tais como o de nossa representação vertical, tendo respectivamente por eixos centrais todas as retas que passam pelo centro, pois eles são de fato coexistentes em estado potencial, e, de resto, isto não impede de escolher a seguir três eixos de coordenadas determinados, aos quais reportaremos toda a extensão. Aqui ainda, todos os sistemas de que falamos não passam de diferentes posições do mesmo sistema, a partir do momento em que seu eixo toma todas as posições possíveis ao redor do centro, e eles se interpenetram pela mesma razão que precedentemente, ou seja porque cada um deles compreende todos os pontos da extensão. Podemos dizer que é o ponto principial de que falamos, independentemente de qualquer determinação e representando o ser em si, que efetua ou realiza esta extensão, até então apenas potencial e concebida como uma pura possibilidade de desenvolvimento, preenchendo o volume total, indefinido à terceira potência, pela completa expansão de suas virtualidades em todas as direções. De resto, é precisamente na plenitude da expansão que se obtém a perfeita homogeneidade, assim como, inversamente, a extrema distinção só é realizável na extrema universalidade (1); no ponto central do ser estabelece-se, como já dissemos, um perfeito equilíbrio entre os termos opostos de todos os contrastes e de todas as antinomias a que dão lugar os pontos de vista exteriores e particulares.

Como, com a nova consideração de todos os sistemas coexistentes, as direções da extensão desempenham todas o mesmo papel, o deslocamento que se efetua a partir do centro pode ser visto como esférico, ou melhor esferoidal: o volume total é, como já indicamos, um esferóide que se estende indefinidamente em todos os sentidos, e cuja superfície não se fecha, assim como as curvas que descrevemos antes; de resto, a espiral plana, encarada simultaneamente em todas as suas posições, não é outra coisa que uma seção desta superfície por um plano que passa pelo centro. Dissemos que a realização da integralidade de um plano pode traduzir-se pelo cálculo de uma integral simples; aqui, como se trata de um volume, e não de uma superfície, a realização da totalidade da extensão traduz-se pelo cálculo de um integral dupla (2); as duas constantes arbitrárias que se introduzirão neste cálculo poderão ser determinadas pela escolha de dois eixos de coordenadas, sendo o terceiro termo fixado porisso mesmo, pois ele deve ser perpendicular ao plano dos outros dois e passar pelo seu centro. Devemos ainda frisar que o deslocamento deste esferóide não passa, em suma, da propagação indefinida de um movimento vibratório (ou ondulatório, pois estes termos são sinônimos no fundo), não mais apenas num plano horizontal, mas em toda a extensão em três dimensões, sendo o ponto de partida desse movimento visto como o centro. Se considerarmos esta extensão como um símbolo geométrico, ou seja espacial, da Possibilidade total (símbolo necessariamente imperfeito, pois limitado pela sua própria natureza), a representação à que chegamos será a figuração, na medida do possível, do vórtex esférico universal segundo o qual escoa a realização de todas as coisas, e que a tradição metafísica do Extremo-Oriente chama Tao, ou seja, a “Via”.
























NOTAS



1)      Aludimos ainda aqui à união dos dois pontos de vista da “unidade na pluralidade e da pluralidade na unidade”, de que já tratamos antes, em conformidade com os ensinamentos do esoterismo islâmico.
2)      Um ponto importante a lembrar, embora não possamos insistir nele aqui, é que uma integral não pode ser calculada tonando um a um e sucessivamente seus elementos, pois deste modo o cálculo não se completaria jamais; a integração só pode efetuar-se por uma única operação sintética, e o procedimento analítico de formação das somas numéricas não pode ser aplicável ao infinito.















XXI

DETERMINAÇÃO DOS ELEMENTOS
DA REPRESENTAÇÃO DO SER


Pelo que acabamos de expor, levamos até seus limites concebíveis, ou antes imagináveis (porque trata-se de uma representação de ordem sensível), a universalização de nosso símbolo geométrico, introduzindo nele gradualmente, em fases sucessivas, ou mais exatamente vistas sucessivamente ao longo de nosso estudo, uma indeterminação cada vez maior, correspondendo àquilo a que chamamos de potências mais e mais elevadas do indefinido, mas sem sairmos da extensão de três dimensões. Após havermos chegado a este ponto, deveremos agora refazer o caminho em sentido inverso, para dar à figura a determinação de todos os seus elementos, determinação sem a qual, embora existindo inteiramente em estado virtual, ela não pode ser traçada efetivamente; mas esta determinação, que em nosso ponto de partida era vista apenas, por assim dizer, hipoteticamente como uma pura possibilidade, tornar-se-á agora real, pois poderemos marcar o significado de cada um dos elementos constitutivos do símbolo crucial pelo qual ela se caracteriza.

Inicialmente, encararemos, não a universalidade dos seres, mas um só ser na sua totalidade; suporemos que o eixo vertical seja determinado, e em seguida que seja também determinado o plano que passa por este eixo e que contém os pontos extremos das modalidades de cada estado; voltaremos assim ao sistema vertical que tem por base plana a espiral horizontal considerada em uma só posição, sistema que já descrevemos anteriormente. Aqui, as direções dos três eixos de coordenadas são determinadas, mas apenas o eixo vertical tem sua posição efetivamente determinada; um dois eixos horizontais será situado no plano vertical de que falamos, e o outro lhe será perpendicular; mas o plano horizontal que conterá estas duas retas retangulares permanece ainda indeterminado. Se determinarmos este plano, determinaremos também o centro da extensão, ou seja a origem do sistema de coordenadas a que esta extensão está referida, pois este ponto não é outro que a interseção do plano horizontal de coordenadas com o eixo vertical; todos os elementos da figura serão então efetivamente determinados, o que permitirá traçar a cruz de três dimensões, medindo a extensão em sua totalidade.

Devemos ainda lembrar que havíamos considerado, para constituir o sistema representativo do ser total, primeiro uma espiral horizontal, e em seguida uma hélice cilíndrica vertical. Se considerarmos isoladamente uma espira qualquer desta hélice, poderemos, desprezando a diferença elementar de nível entre suas extremidades, vê-la como uma circunferência traçada num plano horizontal; poderemos mesmo tomar como uma circunferência cada espira da outra curva, a espiral horizontal, se desprezarmos a variação elementar do raio nas suas extremidades. Por conseguinte, toda circunferência traçada em um plano horizontal e que tenha por centro o centro desse mesmo plano, ou seja sua interseção com o eixo vertical, poderá inversamente, e com as mesmas aproximações, ser vista como uma espira que pertence ao mesmo tempo a uma hélice vertical e a uma espiral horizontal (1); resulta daí que a curva que representamos como uma circunferência não é, na realidade, nem fechada nem plana.

Esta circunferência representará uma modalidade qualquer de um estado de ser igualmente qualquer, vista segundo a direção do eixo vertical, que projetará a si mesmo horizontalmente em um ponto, centro da circunferência. Por outro lado, se virmos a esta segundo a direção de um ou outro dos dois eixos horizontais, ela irá projetar-se em um segmento, simétrico em relação ao eixo vertical, de uma reta horizontal que forma com este último uma cruz de duas dimensões, sendo esta reta horizontal o traço, sobre o plano  vertical de projeção, do plano sobre o qual esta situada a circunferência considerada.

No que concerne ao significado da circunferência com o ponto central, sendo este o traço do eixo vertical sobre um plano horizontal, lembraremos que, segundo um simbolismo bastante geral, o centro e a circunferência representam o ponto de partida e a finalização de um modo qualquer de manifestação (2); eles correspondem assim respectivamente àquilo que são, no Universal, a “essência” e a “substância” (Purusha e Prakriti na doutrina hindu), ou ainda o Ser em si e sua possibilidade, e eles representam, para qualquer modo de manifestação, a expressão mais ou menos particularizada destes dois princípios vistos como complementares, ativo e passivo um em relação ao outro. Isto acaba de justificar o que dissemos precedentemente sobre a relação existente entre os diversos aspectos do simbolismo da cruz, pois podemos deduzir daí que, em nossa representação geométrica, o plano horizontal (que supusemos fixo enquanto plano de coordenadas, e que pode de resto ocupar uma posição qualquer, sendo determinada apenas sua direção) desempenhará um papel passivo em relação ao eixo vertical, o que eqüivale a dizer que o estado do ser correspondente realizar-se-á em seu desenvolvimento integral soba influência ativa do princípio representado pelo eixo (3); isto será melhor compreendido pelo que se segue, mas era importante indicá-lo desde já.
























NOTAS



1)      Esta circunferência é a mesma que limita exteriormente a figura conhecida como Yin-Yang no simbolismo extremo-oriental, figura a que já aludimos e de que iremos tratar mais adiante.
2)      Vimos que, no simbolismo dos números, esta figura corresponde ao denário, visto como o desenvolvimento da unidade.
3)      Se considerarmos a cruz de duas dimensões obtida pela projeção sobre um plano vertical,  cruz que é naturalmente formada por uma linha vertical e outra horizontal, veremos que, nestas condições, a cruz simboliza a união dos dois princípios ativo e passivo.

XXII

O SIMBOLISMO ORIENTAL DO YIN-YANG:
EQÜIVALÊNCIA METAFÍSICA
DO NASCIMENTO E DA MORTE


Para voltarmos à determinação de nossa figura, só teremos que considerar particularmente duas coisas: de um lado, o eixo vertical, e, de outro, o plano horizontal de coordenadas. Sabemos que um plano horizontal representa um estado do ser, de que cada modalidade corresponde a uma espira plana que consideramos não distinta de uma circunferência; por outro lado, as extremidades desta espira, na verdade, não estão contidas no plano da curva, mas nos dois planos imediatamente vizinhos, pois esta mesma curva, vista dentro do sistema cilíndrico vertical, é “uma espira, uma função de hélice, mas cujo passo é infinitesimal. É por isso que, dado que vivemos, agimos e raciocinamos no presente sobre contingências, podemos e devemos considerar o gráfico da evolução individual (1) como uma superfície (plana). E, em realidade, ela possui desta todos os atributos e as qualidades, e só difere da superfície considerando-se o Absoluto (2). Assim, em nosso plano (ou grau de existência), o “circulus vital” é uma verdade imediata, e o círculo é bem a representação do ciclo individual humano” (3).

O yin-yang que, no simbolismo tradicional do Extremo-Oriente, figura o “círculo do destino individual”, é de fato um círculo, pelas razões precedentes. “É um círculo representativo de uma evolução individual ou específica (4), e ele só participa através de duas dimensões, do cilindro cíclico universal. Não tendo espessura, ele não possui opacidade, e é representado como diáfano e transparente, o que eqüivale a dizer que os gráficos das evoluções, anteriores e posteriores ao seu momento (5), podem ser vistos através de si” (6). Mas, bem entendido, não se deve perder de vista que, se tomado à parte, o yin-yang pode ser considerado como um círculo, ele é, na sucessão das modificações individuais (7), um elemento de hélice: toda modificação individual é essencialmente um vórtex  em três dimensões (8); ele só possui uma única estase humana, e jamais retorna ao caminho já percorrido” (9).

As duas extremidades da espira da hélice de passo infinitesimal são, como dissemos, dois pontos imediatamente vizinhos sobre uma geratriz do cilindro, uma paralela ao eixo vertical (de resto, situada em um dos planos de coordenadas). Estes dois pontos não pertencem realmente à individualidade, ou, de modo mais geral, ao estado do ser representado pelo plano horizontal considerado. “A entrada no yin-yang  e a saída do yin-yang não estão à disposição do indivíduo, pois trata-se de dois pontos que pertencem, embora ao yin-yang, à espira inscrita sobre a superfície lateral (vertical) do cilindro, e que estão submetidos à atração da “Vontade do Céu”. E na realidade, de fato, o homem não é livre no seu nascimento nem na sua morte. Quanto ao nascimento, ele não é livre nem para aceitá-lo, nem para recusá-lo, nem para determinar-lhe o momento; quanto à morte, ele não é livre para subtrair-se a ela; tampouco ele deve ter escolha quanto ao momento de morrer... Em todo caso, ele não possui liberdade sobre nenhuma das condições destes dois atos: o nascimento atira-o invencivelmente no círculo de uma existência que ele não pediu nem escolheu; a morte retira-o desse círculo e lança-o em outro, prescrito e previsto pela “vontade do Céu”, sem que ele possa modificar nada nisso (10). Assim, o homem terrestre é escravo quanto aos seus nascimento e morte, ou seja em relação aos dois atos principais de sua vida individual, os únicos que resumem em suma sua evolução particular em relação ao Infinito”(11).

Deve ser entendido que “os fenômenos morte e nascimento, considerados em si mesmos e fora dos ciclos, são perfeitamente iguais” (12); podemos mesmo dizer que se trata de um único e mesmo fenômeno visto sob dois aspectos diferentes, do ponto de vista de um ou outro dos dois ciclos consecutivos entre os quais ele intervém. Isto pode ser visto imediatamente em nossa representação geométrica, pois o fim de um ciclo qualquer coincide sempre necessariamente com o começo de um outro, e empregamos os termos “nascimento” e “morte” tomando-os na sua acepção mais geral, para designar as passagens entre os ciclos, qualquer que seja aliás a extensão destes, e quer se trate de mundos ou de indivíduos. Estes dois fenômenos “acompanham-se e completam-se um ao outro: o nascimento humano é a conseqüência imediata de uma morte (em outro estado). Uma destas circunstâncias jamais acontece sem a outra. E, como o tempo não existe aqui, podemos afirmar que, entre o valor intrínseco do fenômeno nascimento e o valor intrínseco do fenômeno morte, existe identidade metafísica. Quanto ao seu valor relativo, e devido ao imediato das conseqüências, a morte na extremidade de um ciclo é superior ao nascimento neste mesmo ciclo, no montante do valor da atração da “Vontade do Céu” sobre este ciclo, ou seja, matematicamente, do passo da hélice evolutiva” (13).

NOTAS



1.      Seja para uma modalidade particular, seja mesmo para a individualidade integral se a encararmos isoladamente no ser; desde que se considere apenas um só estado, a representação deve ser plana. Lembraremos ainda, para evitar mal-entendidos, que a palavra “evolução” não pode significar para nós nada além do desenvolvimento de um certo conjunto de possibilidades.
2.      Ou seja encarando o ser na sua totalidade.
3.      Matgioi, La Voie Métaphysique, pg. 128.
4.      A espécie, de fato, não é um princípio transcendente em relação aos indivíduos que fazem parte dela; ela mesmo é da ordem das existências individuais e não ultrapassa essa ordem; ela se situa portanto no mesmo nível na Existência universal, e podemos dizer que a participação à espécie efetua-se no sentido horizontal; talvez algum dia dediquemos um estudo especial sobre a questão das condições da espécie.
5.      Estas evoluções são o desenvolvimento de outros estados, assim repartidos em relação à espécie humana; lembremo-nos que, metafisicamente, não existe “anterioridade” nem “posteridade” senão no sentido de um encadeamento causal e puramente lógico, que não poderia excluir a simultaneidade das coisas no “eterno presente”.
6.      Matgioi, La Voie Métaphysique, pg. 129. – A figura é dividida em duas partes, uma escura e outra clara, que correspondem respectivamente a estas evoluções anteriores e posteriores, podendo os estados de que se trata serem considerados simbolicamente, por comparação com o estado humano, uns como sombrios, outros como luminosos; ao mesmo tempo, a parte obscura é o lado do yin, e a parte clara o lado do yang, conforme o significado original desses dois termos. Por outro lado, sendo o yang e o yin também os dois princípios masculino e feminino, temos também, de outro ponto de vista, e conforme já indicamos, a representação do “Andrógino” primordial cujas duas metades são já diferenciadas, sem estarem ainda separadas. Enfim, enquanto representativo das revoluções cíclicas, cujas fases são ligadas à predominância alternativa do yang e do yin, a mesma figura está ainda em relação com a swastika, como também com a dupla espiral de que falamos precedentemente; mas isto nos afastaria muito de nosso tema.
7.      Consideradas na medida em que se correspondem (em sucessão lógica) nos diferentes estados do ser, que devem aliás ser vistos em simultaneidade para que as diferentes espiras da hélice possam ser comparadas entre si.
8.      É um elemento do vórtex esférico de que se tratou precedentemente; existe sempre analogia e em certa medida “proporcionalidade” (sem que entretanto possa haver medida comum) entre o todo e cada um de seus elementos, mesmo infinitesimais.
9.      Matgioi, La Voie Métaphysique, pg. 131-132 (nota). – Isto exclui ainda formalmente a possibilidade da “reencarnação”. A este respeito, podemos ainda lembrar, do ponto de vista da representação geométrica, que uma reta só pode encontrar um plano em um único ponto; isto ocorre particularmente no caso do eixo vertical em relação a cada plano horizontal.
10.  Isto acontece porque o indivíduo como tal não passa de um ser contingente, não tendo em si mesmo sua razão suficiente; é porisso que o percurso de sua existência, se a vemos sem levar em conta a variação segundo o sentido vertical, aparece como o “ciclo da necessidade”.
11.  Matgioi, La Voie Métaphysique, pg. 132-133. – “Mas, entre seu nascimento e sua morte, o indivíduo é livre, na emissão e no sentido de todos os seus atos terrestres; no “círculo vital” da espécie e do indivíduo, a atração da “Vontade do Céu” não se faz sentir”.
12.  Ibid., pgs. 138-139 (nota).
13.  Ibid., pg. 137. – Sobre esta questão da eqüivalência metafísica entre o nascimento e a morte, ver também L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, caps, VIII e XVII, 3ª ed.

 

 

 

 

 

 

 

XXIII

SIGNIFICADO DO EIXO VERTICAL;
INFLUÊNCIA DA VONTADE DO CÉU


Do que antecede, resulta que o passo da hélice, elemento pelo qual as extremidades de um ciclo individual, qualquer que seja, escapa do domínio próprio da individualidade,, é a medida da “força atrativa da Divindade”(1). A influência da “Vontade do Céu” no desenvolvimento do ser é medida portanto paralelamente ao eixo vertical; isto implica evidentemente na consideração simultânea de uma pluralidade de estados, que constituem outros tantos ciclos integrais de existência (espirais horizontais), sendo que esta influência transcendente não se faz sentir no interior de um estado considerado isoladamente.

O eixo vertical representa então o lugar metafísico da manifestação da “Vontade do Céu”, e ele atravessa cada plano horizontal  pelo seu centro, ou seja no ponto onde se realiza o equilíbrio no qual reside precisamente esta manifestação, ou, em outros termos,  a harmonização completa de todos os elementos constitutivos do estado do ser correspondente. É isto, como vimos mais acima, o que se deve entender como “Invariável Meio” (Tchoung-young), onde se reflete, em cada estado de ser (pelo equilíbrio que é como que uma imagem da Unidade principial no manifestado), a “Atividade do Céu”, que, em si mesmo, é não-agente e não-manifestada, embora ela deva ser concebida como capaz de ação e de manifestação, sem que isto possa afetá-la ou modificá-la de qualquer modo que seja, e mesmo, na verdade, como capaz de qualquer ação e qualquer manifestação, precisamente porque ela está além de todas as ações e manifestações particulares. Por conseguinte, podemos dizer que, na representação de um ser, o eixo vertical é o símbolo da “Via pessoal”(2) que conduz à Perfeição, e que é uma especificação da “Via Universal”, representada precedentemente por uma figura esferoidal indefinida e não fechada; com o mesmo simbolismo geométrico, esta especificação obtém-se, segundo o que dissemos, pela determinação de uma direção particular na extensão, direção que é aquela do eixo vertical (3).

Nós falamos aqui da Perfeição, e, a este respeito, é necessária uma breve explicação: quando este termo é empregado assim, ele deve ser entendido no seu sentido absoluto e total. Mas para pensarmos nele, em nossa condição atual (enquanto seres pertencentes ao estado individual humano), é preciso tornar esta concepção inteligível em modo distintivo; e esta conceptibilidade é a “perfeição ativa” (Khien), possibilidade da vontade dentro da Perfeição, e naturalmente de toda-potência, que é idêntica ao que se designa como a “Atividade do Céu”. Mas, para se falar disto, é preciso por outro lado sensibilizar esta concepção (pois a linguagem, como qualquer expressão exterior, é necessariamente de ordem sensível); trata-se primeiramente da “perfeição passiva” (Khouen), possibilidade de ação como motivo e como resultado. Khien é a vontade capaz de se manifestar, Khouen é o objeto desta manifestação; mas, de resto, quando falamos em “perfeição ativa” ou “perfeição passiva”, não dizemos Perfeição no sentido absoluto, pois existe aí já uma distinção e uma determinação, portanto uma limitação. Podemos ainda, se o quisermos, dizer que Khien é a faculdade agente (seria mais exato dizer “influente”), correspondente ao “Céu” (Tien), e que Khouen é a faculdade plástica, correspondente à “Terra” (Ti); encontramos aqui, na Perfeição, o análogo, mas ainda mais universal, daquilo que designamos, no Ser, como “essência” e “substância” (4). Em todo caso, qualquer que seja o princípio pelo que se os determine, é preciso frisar que Khien e Khouen só existem metafisicamente, do nosso ponto de vista de seres manifestados, assim como não é em si que o Ser se polariza em “essência” e “substância”, mas apenas em relação a nós, na medida em que o vemos a partir da manifestação universal da qual ele é o princípio e à qual pertencemos.

Se voltarmos à nossa representação geométrica, veremos que o eixo vertical é determinado como expressão da “Vontade do Céu” no desenvolvimento do ser, o que determina ao mesmo tempo a direção dos planos horizontais, representando os diferentes estados, e a correspondência horizontal e vertical destes, estabelecendo sua hierarquização. Devido a esta correspondência, os pontos-limite destes estados são determinados como extremidades de das modalidades particulares; o plano vertical que os contém é um dos planos de coordenadas, assim como aquele que lhe é perpendicular segundo o eixo; estes dois planos verticais traçam em cada plano horizontal uma cruz de duas dimensões, cujo centro está no “Invariável Meio”. Resta assim apenas um elemento indeterminado: é a posição do plano horizontal particular que será o terceiro plano de coordenadas; a este plano corresponde, no ser total, um certo estado, cuja determinação permitirá traçar a cruz simbólica de três dimensões, ou seja permitirá realizar a totalização mesma do ser.

Um ponto que importa levantar ainda, antes de avançarmos mais, é o seguinte: a distância vertical que separa as extremidades de um ciclo evolutivo qualquer é constante, o que, parece, eqüivaleria a dizer que, qualquer que seja o ciclo encarado, a “força atrativa da Divindade” age sempre com a mesma intensidade; e é de fato assim do ponto de vista do Infinito: é o que exprime a lei da harmonia universal, que exige a proporcionalidade de certo modo matemática de todas as variações. É verdade, entretanto, que poderia não ser assim, em aparência, se nos colocarmos de um ponto de vista especializado, e se tomarmos em consideração apenas o percurso de um certo ciclo determinado que se queira comparar com os outros sob este aspecto; seria preciso então poder avaliar, no caso específico em que nos colocarmos (admitindo-se que seja possível colocarmo-nos aí efetivamente, o que, em todo caso, está fora do ponto de vista da metafísica pura), o valor do passo da hélice; mas “nós não conhecemos o valor essencial deste elemento geométrico, porque não temos atualmente consciência dos estados cíclicos por que passamos, e não podemos sequer medir a altura metafísica que hoje nos separa de onde saímos” (5). Não temos nenhum meio direto de apreciar a medida da ação da “Vontade do Céu”; “só a conheceremos por analogia (em virtude da lei de harmonia), se, em nosso estado atual, tendo consciência de nosso estado precedente, pudéssemos julgar a quantidade metafísica adquirida (6), e, por conseguinte, medir a força ascensional. Não se diz que isto seja impossível, pois a coisa é facilmente compreensível; mas ela não está dentro das faculdades da presente humanidade” (7).

Lembremos ainda de passagem, e apenas como indicação, como o fazemos sempre que há oportunidade, da correspondência que existe entre todas as tradições, que poderíamos, a partir do que foi exposto sobre o eixo vertical, dar uma interpretação metafísica da conhecida passagem do Evangelho segundo a qual o Verbo (ou a “Vontade do Céu” em ação) é (em relação a nós)  “o Caminho, a Verdade e a Vida” (8). Se retomarmos por um instante nossa representação “microcósmica” inicial, e, se considerarmos seus três eixos de coordenadas, o “Caminho” (específico para o ser encarado) será representado aqui pelo eixo vertical; dos dois eixos horizontais, um representará a “Verdade” e o outro a “Vida”. Enquanto que o “caminho” se refere ao “Homem Universal”, ao qual identifica-se o “Si”, a “Verdade” se refere aqui ao homem intelectual, e a “Vida” ao homem corpóreo (embora este último termo seja passível de uma certa transposição) (9); destes dois últimos, que pertencem ambos ao domínio de um mesmo estado particular, ou seja a um mesmo grau da existência universal, o primeiro deverá ser assimilado à individualidade integral, de que o segundo será apenas uma modalidade. A “Vida” será portanto representada pelo eixo paralelo à direção segundo a qual se desenvolve cada modalidade, e a “Verdade” será pelo eixo que reúne todas as modalidades atravessando-as perpendicularmente a esta mesma direção (eixo que, embora igualmente horizontal, poderá ser visto como relativamente vertical em relação ao outro, segundo o que já dissemos). Isto supõe de resto que o traçado da  cruz de três dimensões está ligado à individualidade humana terrestre, pois é apenas em relação a esta que consideramos aqui a “Vida” e mesmo a “Verdade”; este traçado figura a ação do Verbo na realização do ser total e sua identificação com o “Homem Universal”.




NOTAS



1.      Matgioi, La Voie Métaphysique, pg. 95.
2.      Lembremos ainda que a “personalidade” é para nós o princípio transcendente e permanente do ser, enquanto que a ‘individualidade” não passa de uma manifestação sua, transitória e contingente.
3.      Isto completa o que já indicamos a respeito das relações entre a “Via” (Tao)  e a “Retidão” (Te).
4.      Ver também L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. IV. – Nos koua de Fo-Hi, Khien é representado por três traços cheios, e Khouen por três traços cortados; vimos que o traço cheio é o símbolo do yang ou princípio ativo, e o traço cortado é o do yin ou princípio passivo.
5.      Matgioi, La Voie Métaphysique, pgs 137-138 (nota).
6.      Deve ficar entendido que o termo “quantidade”, que justifica aqui o emprego do simbolismo matemático, deve ser tomado num sentido puramente analógico; o mesmo ocorre com o termo “força” e com todos aqueles que evocam imagens emprestadas ao mundo sensível.
7.      Ibid., pg. 96. – Nesta última citação, introduzimos algumas modificações, mas sem alterar seu sentido, para aplicar a cada ser aquilo que foi dito do Universo em seu conjunto. ‘O homem nada pode sobre sua própria vida, porque a lei que rege a vida e a morte, suas mutações sobre ele, lhe escapa; que pode então ele saber da lei que rege as grandes mutações cósmicas, a evolução universal?” (Tchouang-tsé, cap. XXV). – Na tradição hindu, os Puranas declaram que não existe medida dos Kalpas anteriores e posteriores, ou seja dos ciclos que se referem aos outros graus da Existência universal.
8.      A fim de evitar confusão devemos especificar aqui que se trata exclusivamente de uma interpretação metafísica, e não de uma interpretação religiosa; entre estes dois termos existe uma diferença, como no Islamismo se distingue entre a haqîqah (metafísica e esotérica) e a shariyah (social e exotérica).
9.      Estes três aspectos do homem (dos quais apenas os dois últimos são realmente “humanos”) são designados respectivamente na tradição hebraica pelos termos Adam, Aish e Enôsh.



XXIV

O RAIO CELESTE
E SEU PLANO DE REFLEXÃO


Se considerarmos a superposição dos planos horizontais representativos de todos os estados do ser, podemos dizer ainda que, em relação a estes, encarados separadamente ou em conjunto, o eixo vertical, que une a todos entre si e ao centro do ser total, simboliza aquilo que diversas tradições chamam de “O Raio Celeste” ou “O Raio Divino”: é o princípio que a doutrina hindu designa sob os nomes de Buddhi e de Mahat (1), “que constitui o elemento superior não-encarnado do homem, e que lhe serve de guia através das fases da evolução universal”(2). O ciclo universal, representado pelo conjunto de nossa figura, “e do qual a humanidade (em seu sentido individual e “específico”) constitui não mais que uma fase, tem um movimento próprio (3), independente de nossa humanidade, de todas as humanidades, de todos os planos (representando todos os estados da Existência), de que ele forma a soma indefinida (que é o “Homem Universal”) (4). Este movimento próprio, que ele extrai da afinidade essencial do “Raio Celeste” para com sua origem, aponta-o irreversivelmente para seu Fim (a Perfeição), que é idêntico ao seu Começo, com uma força diretriz ascensional e divinamente benfazeja (ou harmônica)” (5), que não é outra coisa que esta “força atrativa da Divindade” de que se tratou no capítulo precedente.

Falta insistir sobre um ponto, que é o fato de que o “movimento” do ciclo universal é necessariamente independente de uma vontade individual qualquer, particular ou coletiva, que só poderia agir no interior de seu domínio especial, e sem jamais sair das condições determinadas de existência a que este domínio está submetido. “O homem, enquanto homem (individual), não poderia dispor de nada mais ou melhor do que seu destino hominal, cuja marcha individual ele é livre para deter. Mas este ser contingente, dotado de virtudes e de possibilidades contingentes, não poderia mover-se, nem deter-se, ou exercer qualquer influência sobre si mesmo fora do plano contingente particular onde, por hora, ele está colocado e exerce suas faculdades. É irrazoável supor que ele possa modificar, a fortiori a marcha eterna do ciclo universal”(6). De resto, a extensão indefinida das possibilidades do indivíduo, visto em sua integralidade, não muda nada nisto, pois  ela não poderia naturalmente subtrair-se a todo o conjunto de condições limitativas que caracterizam o estado de ser a que ele pertence enquanto indivíduo (7).

O “Raio Celeste” atravessa todos os estados do ser, marcando, como já dissemos, o ponto central de cada um deles com seu traço sobre o plano horizontal correspondente, e o lugar de todos esses pontos centrais é o “Invariável Meio”; mas esta ação do “Raio Celeste” só é efetiva se produzir, por sua reflexão sobre um destes planos, uma vibração que, propagando-se e amplificando-se na totalidade do ser, ilumine seu caos, cósmico ou humano. Dizemos cósmico ou humano, pois isso pode ser aplicado tanto ao “macrocosmo” quanto ao “microcosmo”; em todos os casos, o conjunto das possibilidades do ser não constituem propriamente senão um caos “informe e vazio” (8), dentro do qual tudo é obscuro até o momento em que se produz esta iluminação que determina sua organização harmônica na passagem da potência ao ato (9). Esta mesma iluminação corresponde estritamente à conversão das três gunas uma na outra, que nós descrevemos antes conforme um texto do Veda: se considerarmos as duas fases desta conversão, o resultado da primeira, efetuada a partir os estados inferiores do ser, opera-se no mesmo plano de reflexão, enquanto que a segunda imprime à vibração refletida uma direção ascensional, que a transmite através de toda a hierarquia dos estados superiores do ser. O plano de reflexão, cujo centro, ponto de incidência do “Raio Celeste”, é o ponto de partida desta vibração indefinida, será agora o plano central dentro do conjunto dos estados de ser, ou seja o plano horizontal de coordenadas em nossa representação geométrica, e seu centro será efetivamente o centro do ser total. Este plano central, em que estão traçados os braços horizontais da cruz de três dimensões, desempenha, em relação ao “Raio Celeste” que é o braço vertical, um papel análogo ao da “perfeição passiva” em relação à “perfeição ativa”, ou ao da “substância” em relação à “essência”, de Prakriti em relação a Purusha: é sempre, simbolicamente, a “Terra” em relação ao “Céu”, e também o que todas as tradições cosmogônicas concordam em representar como a “superfície das Águas”(10). Podemos dizer ainda que é o plano de separação das “Águas inferiores” e das “Águas superiores” (11), vale dizer os dois caos, formal e informal, individual e extra-individual, de todos os estados, tanto não-manifestados como manifestados, cujo conjunto constitui a Possibilidade total do “Homem Universal”.

Pela operação do “Espírito Universal” (Atmâ), projetando o “Raio Celeste” que se reflete sobre o espelho das “Águas”, encerra-se no seio destas uma centelha divina, germe espiritual incriado que, dentro do Universo  potencial (Brahmânda ou “Ovo do Mundo”), corresponde a esta determinação do “Não-Supremo Brahma (Apara-Brahma) que a tradição hindu designa como Hiranyagarbha (ou seja o “Embrião de Ouro”) (12). Em cada ser visto em particular, esta centelha da Luz inteligível constitui, se podemos nos expressar assim, uma unidade fragmentária (expressão aliás inexata se a tomarmos ao pé da letra, sendo a unidade de fato indivisível e sem partes) que, desenvolvendo-se para identificar-se em ato com a Unidade total, com a qual ela é realmente idêntica em potência (por conter em si mesma a essência indivisível da luz, assim como a natureza do fogo está toda contida em cada chama) (13), irá irradiar-se em todos os sentidos a partir do centro, e realizará em sua expansão o perfeito desabrochar de todas as possibilidades do ser. Este princípio de essência divina involuída nos seres (apenas na aparência, pois ela não poderia ser realmente afetada pelas contingências, e este estado de “envelopamento” só existe do ponto de vista da manifestação) é ainda, no simbolismo védico, Agni (14), manifestando-se no centro da swastika, que é, como vimos, a cruz traçada no plano horizontal, e que, por sua rotação em torno deste centro, gera o ciclo evolutivo que constitui cada um dos elementos do ciclo universal. O centro, único ponto que permanece imóvel nesse movimento de rotação, é, em razão mesma de sua imobilidade (imagem da imutabilidade principial), o motor da “roda da existência”; ele encerra em si mesmo a “Lei” (no sentido do termo sânscrito Dharma) (15), ou seja a expressão ou a manifestação da “Vontade do Céu”, para o ciclo correspondente ao plano horizontal no qual efetua-se esta rotação, e, segundo o que dissemos, sua influência se mede, ou poderia ser medida se tivéssemos esta faculdade, pelo passo da hélice, evolutiva em relação ao eixo vertical (16).

A realização das possibilidades do ser efetua-se assim por uma atividade que é sempre interior, porque ela se exerce a partir do centro de cada plano; e de resto, metafisicamente, não poderia haver aí nenhuma ação exterior exercendo-se sobre o ser total, pois uma tal ação só é possível de um ponto de vista relativo e especializado, como o do indivíduo (17). Esta própria realização é figurada nos diferentes simbolismos pelo desabrochar, sobre a superfície das “Águas”, de uma flor que é, o mais habitualmente, o lótus nas tradições orientais e a rosa ou a flor de lis nas tradições ocidentais (18); mas não temos a intenção de entrarmos aqui nos detalhes destas representações, que podem variar e modificar-se numa certa medida, em razão das múltiplas adaptações a que se prestam, mas que, no fundo, procedem todas sempre do mesmo princípio, com algumas considerações secundárias que baseiam-se sobretudo nos números (19). Em todo caso, o desabrochamento de que falamos poderá ser visto em primeiro lugar no plano central, ou seja no plano horizontal de reflexão do “Raio Celeste”, como integração do estado de ser correspondente; mas ele se estenderá também para além desse plano, à totalidade dos estados, segundo o desenvolvimento indefinido, em todas as direções a partir do ponto central, do vórtex esférico universal de que falamos precedentemente (20).








NOTAS



1.      Ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. VII, e também cap. XXI, 3ª ed., para o simbolismo do “raio solar” (Sushuma).
2.      Simon e Théophane, Les Enseignements Secrets de la Gnose, pg. 10.
3.      A palavra “movimento” não passa aqui de uma expressão puramente analógica, pois o ciclo universal, em sua totalidade, é evidentemente independente das condições temporal e espacial, assim como de quaisquer outras condições particulares.
4.      Esta “soma indefinida” é propriamente falando uma integral.
5.      Ibid., pg 50.
6.      Ibid., pg 50.
7.      Isto é verdade notadamente para a “imortalidade” entendida no sentido ocidental, ou seja como um prolongamento do estado individual humano dentro da “perpetuidade” ou indefinidade temporal (ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XVIII, 3ª ed)
8.      É a tradução literal do hebraico thohu va-bohu, que Fabre d’Olivet (La Langue Hébraïque Restituée) explica como “potência contingente de ser dentro de uma potência de ser”.
9.      Cf. Gênese, 1, 2-3.
10.  Ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. V.
11.  Cf. Gênese, 1, 6-7.
12.  Ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XIII, 3ª ed.
13.  Ver ibid., cap. V.
14.  Agni é representado como um princípio ígneo (assim como o Raio luminoso que o faz nascer), sendo o fogo visto como o elemento ativo em relação à água, elemento passivo. Agni no centro da swastika, é também o cordeiro junto à fonte dos quatro rios no simbolismo cristão (ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. III; L’Esotérisme de Dante, cap. IV; Le Roi du Monde, cap. IX).
15.  Ver Introduction Générale à l’Étude des Doctrines Hindoues, 3ª Parte, cap. V, e L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. IV. – Já indicamos em outra parte a relação que existe entre a palavra Dharma e o nome sânscrito do pólo, Dhruva, derivados respectivamente das raízes dhri e dhru, que tem o mesmo sentido e exprimem essencialmente a idéia de estabilidade (Le Roi du Monde, cap. I).
16.  “Quando agora (no decurso da manifestação) dizemos “o Princípio”, este termo  não designa mais o Ser que existe em todos os seres, norma universal que preside a evolução cósmica. A natureza do Princípio, a natureza do Ser, são incompreensíveis e inefáveis. Apenas o limitado pode ser compreendido (em modo individual e humano) e expresso. Como o Princípio age como pólo, como eixo da universalidade dos seres, dizemos dele apenas que ele é o polo, que ele é o eixo da evolução universal, sem tentar explicá-lo” (Tchouang-Tsé, cap. XXV). É por isso que o Tao “com nome”, que é a “Mãe dos dez mil seres” (Tao Te King, cap. I) é a “Grande Unidade” (Tai I) situada simbolicamente, como já vimos, na estrela polar: “Se é preciso dar um nome ao Tao (embora ele não possa ser nomeado), chamá-lo-emos (como equivalente aproximado) de “Grande Unidade” ... Os dez mil seres são produzidos por Tai I e modificados pelo yin e pelo yang”. – No Ocidente, na antiga “Maçonaria operativa”, um fio de prumo, imagem do eixo vertical, está suspenso num ponto que simboliza o pólo celeste. É também o ponto de suspensão da “balança” de que falam diversas tradições (ver Le Roi du Monde, cap. X); e isto mostra que o “nada” (Ain) da Qabbalah hebraica corresponde ao “não-agir” (wu wei) da tradição extremo-oriental.
17.  Teremos ocasião de voltar adiante sobre a distinção do “interior” e do “exterior”, que é ainda simbólica, assim como, aqui, qualquer outra localização; mas devemos precisar que a impossibilidade de uma ação exterior só se aplica ao ser total, e não ao ser individual, e que isso exclui a aproximação que se poderia fazer aqui com a asserção, análoga em aparência mas sem alcance metafísico, que o “monadismo” de Leibnitz implica em relação às “substâncias individuais”.
18.  Assinalamos em outra parte a relação que existe entre essas flores simbólicas e a roda considerada como símbolo do mundo manifestado (Le Roi du Monde, cap. II).
19.  Vimos mais acima que o número de raios da roda varia conforme o caso; o mesmo ocorre com o número de pétalas das flores emblemáticas. O lótus possui normalmente oito pétalas; nas representações ocidentais, encontramos notadamente os números 5 e 6, que se referem respectivamente ao “microcosmo” e ao “macrocosmo”.
20.  Sobre o papel do “Raio Divino” na realização do ser e a passagem aos estados superiores, ver também L’Esotérisme de Dante, cap. VIII.


















XXV

A ÁRVORE E A SERPENTE


Se retomarmos agora o símbolo da serpente enrolada ao redor da árvore, de que já falamos um pouco mais acima, constataremos que esta figura é exatamente a da hélice traçada em torno do cilindro vertical da representação geométrica que estudamos. Como a árvore simboliza o “Eixo do Mundo”, a serpente figurará então o conjunto dos ciclos da manifestação universal (1); e, de fato, o percurso dos diferentes estados é representado, em certas tradições, como uma migração do ser para o corpo dessa serpente (2). Como esse percurso pode ser visto segundo dois sentidos contrários, seja no sentido ascendente, para os estados superiores, seja no sentido descendente, para os estados inferiores, os dois aspectos apostos do simbolismo da serpente, um benéfico e outro maléfico, explicam-se assim automaticamente (3).

Encontramos a serpente enrolada, não apenas ao redor da árvore, mas também em torno de diversos outros símbolos do “Eixo do Mundo”(4), e particularmente da montanha, como se pode ver, na tradição hindu, no simbolismo da “bateção do mar” (5). Aqui, a serpente Shêsha ou Ananta, representando a indefinidade da Existência universal, está enrolada ao redor do Mêru, que é a “montanha polar” (6), e ela é puxada em sentidos contrários pelos Dêvas e pelos Asuras (7). Por outro lado, se interpretamos o significado disto em termos de “bem” e de “mal”, temos uma correspondência evidente com os dois troncos opostos da “Árvore da Ciência” e de outros símbolos similares de que falamos precedentemente )8).

Cabe observar ainda um aspecto sob o qual a serpente, em seu simbolismo geral, aparece, senão exatamente como maléfica (o que implica necessariamente na presença do correlativo benéfico, sendo o “bem” e o “mal” compreensíveis, como termos de uma dualidade, somente um pelo outro), ao menos como temível, na medida em que representa o encadeamento do ser à série indefinida dos ciclos de manifestação (9). Este aspecto corresponde notadamente ao papel da serpente (ou do dragão, como seu equivalente) como guardiã de certos símbolos de imortalidade cuja aproximação ela defende: é assim que a vemos enrolada ao redor da árvore dos pomos de ouro do jardim das Hespérides, ou do Hêtre da floresta da Cólcida do qual pendia o “tosão de ouro”; é evidente que essas árvores não são outra coisa que formas da “Árvore da Vida”, e que, em conseqüência, elas representam também o ”Eixo do Mundo” (10).

Para realizar-se totalmente, é preciso que o ser escape a este encadeamento cíclico e passe da circunferência ao centro, ou seja ao ponto aonde o eixo encontra o plano que representa o estado em que este ser se encontra atualmente; sendo a integração deste estado realizada desta mesma forma, a totalização dar-se-á em seguida, a partir deste plano de base, segundo a própria direção do eixo vertical. Deve-se observar que, enquanto que existe continuidade entre todos os estados encarados em seu percurso cíclico, como já explicamos, a passagem ao centro implica essencialmente uma descontinuidade neste desenvolvimento do ser; ela pode, a este respeito, ser comparada àquilo que é, do ponto de vista matemático, a “passagem ao limite” de uma série indefinida em variação contínua. De fato, o limite, sendo por definição uma quantidade fixa, não pode, como tal, ser atingido no decurso da variação, mesmo se esta prosseguir indefinidamente; não estando submetido à variação, ele não pertence à série da qual representa o termo, e é preciso sair desta série para atingi-lo. Da mesma forma, é preciso sair da série indefinida dos estados manifestados e de suas mutações para atingir o “Invariável Meio”, o ponto fixo e imutável que comanda o movimento sem dele participar, como a série matemática inteira é, em sua variação, ordenada em relação ao seu limite, que lhe fornece assim sua lei, mas que está ao mesmo tempo além desta lei. Assim como a passagem ao limite, ou como a integração que é um caso particular, a realização metafísica não pode efetuar-se “por degraus”; ela é como que uma síntese que não pode ser precedida de nenhuma análise, e em vista da qual toda análise seria aliás impotente e de alcance rigorosamente nulo.

Existe na doutrina islâmica um ponto interessante e importante em conexão com o que dissemos: o “caminho direito” (Eç-çirâtul-mustâqim)  de que se fala na fâtihah (literalmente “abertura”) ou primeira sûrat do Alcorão, não é outra coisa que o eixo vertical tomado em seu sentido ascendente, pois sua “retidão” (idêntica ao Te de Lao Tsé) deve, segundo a própria raiz do termo que a designa (qâm, “elevar-se”), ser vista segundo a direção vertical. Podemos agora compreender facilmente o significado do último versículo, no qual o “caminho direito” é definido como “caminho daqueles sobre quem Tu colocas Tua graça, não daqueles sobre quem recai Tua cólera, nem daqueles que permanecem no erro” (çirâta elladhîna anamta alayhim, ghayri el-maghdûbi alayhim wa lâ ed-dâllîn). Aqueles sobre quem está a “graça” divina (11), são os que recebem diretamente a influência da “Atividade do Céu”, e que são conduzidos por esta aos estados superiores e à realização total, estando seu ser em conformidade com a Vontade universal. Por outro lado, estando a “cólera” em oposição direta com a “graça”, sua ação deve exercer-se segundo o eixo vertical, mas com o efeito inverso, percorrendo o eixo em sentido descendente, em direção aos estados inferiores (12); é a via “infernal”, que se opõe à via “celeste”, e estas duas vias são as duas metades inferior e superior do eixo vertical, a partir do nível correspondente ao estado humano. Enfim, aqueles que estão no “erro”, no sentido propriamente etimológico deste termo, são aqueles que, como é o caso da imensa maioria dos seres humanos, atraídos e retidos pela multiplicidade, erram indefinidamente pelos ciclos da manifestação, representados pelas espiras da serpente enrolada ao redor da “Árvore do Meio”(13).

Lembremos ainda, a propósito, que o sentido próprio da palavra Islam é o de “submissão à Vontade divina” (14); é por isso que se diz, em certos ensinamentos esotéricos, que todo ser é muslim (muçulmano), no sentido que não há evidentemente nenhum que possa subtrair-se a esta Vontade, e que, por conseguinte, cada qual ocupa necessariamente o lugar que lhe foi assinalado no conjunto do Universo. A distinção dos seres em “fiéis” (mûminîn) e “infiéis” (kuffâr) (15) consiste assim apenas em que os primeiros conformam-se consciente e voluntariamente à ordem universal, enquanto que, entre os segundos, existem os que obedecem a esta lei contra a sua vontade e os que permanecem na ignorância pura e simples. Encontramos assim as três categorias de seres que acabamos de citar; os “fiéis” são aqueles que seguem o “caminho direito”, que é o lugar da “paz”, e sua conformidade ao Querer universal faz deles verdadeiros colaboradores do “plano divino”.

NOTAS



1.      Existe, entre essa figura e a do ourobouros, ou seja da serpente que morde a própria cauda, a mesma relação que há entre a hélice completa e a figura do yin-yang, na qual uma das espiras, tomada à parte, é considerada como plana; o ourobouros representa a indefinidade de um ciclo encarado isoladamente, indefinidade que, para o estado humano, e em razão da presença da condição temporal, reveste-se do aspecto da “perpetuidade”.
2.      Encontramos este simbolismo particularmente na Pistis Sophia gnóstica, onde o corpo da serpente é dividido segundo o Zodíaco e suas subdivisões, o que nos leva de volta à figura do ourobouros, pois, nestas condições, trata-se do percurso de um único ciclo, através das modalidades de um mesmo estado; nesse caso, a migração vista para o ser limita-se assim aos prolongamentos do estado individual humano.
3.      Às vezes o simbolismo se desdobra para corresponder a estes dois aspectos, e temos então duas serpentes enroladas em sentidos contrários em torno de um mesmo eixo, como na figura do caduceu. Encontramos um eqüivalente deste em certas formas do bastão brahmânico (Brahma-danda), por um duplo enrolamento das linhas tomadas respectivamente em relação aos dois sentidos de rotação da swastika. Este simbolismo tem de resto aplicações múltiplas, que não podemos desenvolver aqui; uma das mais importantes é a que diz respeito às correntes sutis do ser humano (ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XX, 3ª Ed.); a analogia do “microcosmo” e do “macrocosmo” é ainda válida para este ponto de vista particular.
4.      Nós a encontramos notadamente ao redor do omphalos, assim como de certas representações do “Ovo do Mundo” (ver Le Roi du Monde, cap. IX); assinalamos a este respeito a conexão que existe geralmente entre os símbolos da árvore, da pedra, do ovo e da serpente; isto daria lugar a considerações interessantes, mas que nos levariam muito longe do nosso estudo.
5.      Este recito simbólico acha-se no Râmâyana.
6.      Ver Le Roi du Monde, cap. IX.
7.      Podemos relacionar estes dois aspectos com os dois significados opostos que apresenta a própria palavra Asura conforme o modo como a decompomos: asu-ra “que dá a vida”; a-sura, “não luminoso”. É apenas nesse último caso que os Asuras se opõem aos Dêvas, cujo nome exprime a luminosidade das esferas celestes; no outro sentido, ao contrário, eles se identificam realmente (donde a denominação de Asuras que se aplica, em certos textos védicos, a Mitra e a Varuna); é preciso estar atento a este duplo significado para resolver as aparentes contradições que daí se originam. – Se aplicarmos ao encadeamento dos ciclos o simbolismo da sucessão temporal, compreenderemos sem dificuldade porque se diz que os Asuras são anteriores aos Dêvas. É curioso lembrar que, no simbolismo da Gênese hebraica, a criação dos vegetais antes da dos astros e luminares pode ser ligada a esta anterioridade; de fato, segundo a tradição hindu, o vegetal procede da natureza dos Asuras, ou seja dos estados inferiores em relação ao estado humano, enquanto que os corpos celestes representam naturalmente os Dêvas, ou seja os estados superiores. Acrescentemos também, a respeito, que o desenvolvimento da “essência vegetativa” no Éden é o desenvolvimento dos germes provenientes do ciclo anterior, o que corresponde ainda ao mesmo simbolismo.
8.      No simbolismo temporal, temos também uma analogia com os dois rostos de Janus, na medida em que um é considerado voltado para o futuro e o outro para o passado. Talvez possamos algum dia, em outro estudo, mostrar a ligação profunda que existe entre todos estes símbolos em diferentes formas tradicionais.
9.      É o samsâra budista, a rotação indefinida da “roda da vida”, da qual o ser deve libertar-se para atingir o Nirvâna. A ligação com a multiplicidade é também, em um sentido, a “tentação” bíblica, que afasta o ser da unidade central original e o impede de alcançar o fruto da “Árvore da Vida”; e é por isso mesmo, de fato, que o ser é submetido à alternância das mutações cíclicas, ou seja ao nascimento e à morte.
10.  É preciso mencionar ainda, de um ponto de vista próximo deste, as legendas simbólicas que, em numerosas tradições, representam a serpente ou o dragão como guardião de “tesouros escondidos”; estas estão em relação com diversos outros símbolos muito importantes, como os da “pedra negra” e do “fogo subterrâneo” (Ver Le Roi du Monde, caps. I e VII): este é um dos vários pontos que só podemos indicar de passagem, prometendo voltarmos quando houver ocasião.
11.  Esta “graça” é a “efusão de orvalho” que, na Qabbalah hebraica, está relacionada diretamente com a “Árvore da Vida” (Ver Le Roi du Monde, caps. III).
12.  Esta descida direta do ser segundo o eixo vertical é representada pela “queda dos anjos”; isto, quando se trata de seres humanos, só pode evidentemente corresponder a um caso excepcional, e um tal ser é chamado Waliyush-Shaytân, pois ele é de certo modo o inverso do “santo” ou Waliyur-Rahman.
13.  Estas três categorias de seres poderiam ser chamadas respectivamente de “eleitos”, “rejeitados” e “perdidos”; lembremos que elas correspondem exatamente às três gunas: a primeira a satwa, a segunda a tamas e a terceira a rajas. – Certos comentadores exotéricos do Corão pretenderam que os “rejeitados” fossem os Cristãos; mas trata-se de uma interpretação estreita, contestável mesmo do ponto de vista exotérico, e que, em todo caso, não tem nenhuma explicação conforme a haqîqah. – A respeito da primeira das três categorias que tratamos aqui, devemos assinalar que o “Eleito” (El-Mustafâ) é, no Islam, uma denominação aplicada ao Profeta e, do ponto de vista esotérico, ao “Homem Universal”.
14.  Ver Le Roi du Monde, cap. VI; assinalamos na ocasião o estreito parentesco deste termo com aqueles que designam a “salvação” e a “paz” (Es-salâm).
15.  Esta distinção não concerne somente aos homens, pois ela é aplicada também aos Jinns da tradição islâmica; na realidade, é aplicável a todos os seres.























XXVI

INCOMENSURABILIDADE
DO SER TOTAL E DA INDIVIDUALIDADE


Devemos agora insistir sobre um ponto que, para nós, é de uma importância capital: é que a concepção tradicional do ser, tal como expusemos aqui, difere essencialmente, em seu princípio mesmo e em função desse princípio, de todas as concepções antropomórficas e geocêntricas de que a mentalidade ocidental tem grandes dificuldades de se libertar. Poderíamos mesmo dizer que ela difere infinitamente, e não seria isto um abuso de linguagem como ocorre normalmente quando se emprega esta palavra, mas, ao contrário, essa seria uma expressão mais justa do que qualquer outra, e mais adequada à concepção à qual a aplicaremos, pois esta é propriamente ilimitada. A metafísica pura não pode de modo algum admitir o antropomorfismo (1); se este parece às vezes introduzir-se na sua expressão, trata-se de uma aparência exterior, de resto inevitável em uma certa medida desde que, se queremos exprimir algo, devemos faze-lo necessariamente em linguagem humana. Isto não passa de uma conseqüência da imperfeição que é forçosamente inerente a qualquer expressão, qualquer que seja, em razão de sua limitação mesma; e essa conseqüência é admitida apenas a título de indulgência, de concessão provisória e acidental à fraqueza do entendimento humano individual, à sua insuficiência para atingir aquilo que ultrapassa o domínio da individualidade. Devido a essa insuficiência, produz-se já algo do gênero, antes de qualquer expressão exterior, no domínio do pensamento formal (que, de resto, aparece também como uma expressão se o tomarmos em relação ao informal): toda idéia na qual se pensa com intensidade acaba por “representar-se”, tomando de algum modo a forma humana, a mesma do pensador; dir-se-ia que, segundo uma comparação muito expressiva de Shankarâchârya, “o pensamento conforma-se no homem como o metal em fusão amolda-se ao molde do fundidor”. A própria intensidade do pensamento (2) faz com que ele ocupe o homem inteiro, de modo análogo ao que a água preenche um vaso até a borda; ele toma assim a forma daquilo que o contém e o limita, o que vale dizer, em outros termos, que ele se torna antropomórfico. Está aí, mais uma vez, uma imperfeição da qual o ser individual, dentro das condições restritas e particularizadas de sua existência, não pode escapar; na verdade, é apenas enquanto indivíduo que ele não o pode fazer, embora ele deva tender a isto, pois a libertação completa de uma tal limitação só se obtém nos estados extra-individuais e supra-individuais, ou seja informais, atingidos no decurso da realização efetiva do ser total.

Dito isto para prevenir qualquer objeção possível a respeito, é evidente que não pode haver medida comum entre, de um lado, o “Si”, visto como a totalização do ser integrando-se segundo as três dimensões da cruz para reintegrar-se finalmente em sua Unidade primeira, realizada nesta plenitude mesma da expansão que simboliza o espaço inteiro, e, de outro lado, uma modificação individual qualquer, representada por um elemento infinitesimal do mesmo espaço, ou mesmo a integralidade de um estado, cuja representação plana (ou ao menos considerada como plana com as restrições que apontamos, ou seja na medida em que encaramos este estado isoladamente) comporta ainda um elemento infinitesimal em relação ao espaço de três dimensões, pois, ao situar-se esta representação no espaço (ou seja dentro do conjunto de estados do ser), seu plano horizontal deve ser visto como deslocando-se efetivamente de uma quantidade infinitesimal segundo a direção do eixo vertical (3). Como se trata de elementos infinitesimais, mesmo num simbolismo geométrico forçosamente restrito e limitado, pode-se ver que, em realidade e a fortiori, existe aí, para aquilo que está simbolizado respectivamente pelos dois termos que acabamos de comparar entre si, uma incomensurabilidade absoluta, que não depende de nenhuma convenção mais ou menos arbitrária, como sempre acontece com a escolha de certas unidades relativas nas medidas quantitativas ordinárias. Por outro lado, quando se trata do ser total, um indefinido é tomado aqui como símbolo do Infinito, na medida em que é permitido dizer que o Infinito pode ser simbolizado; mas é claro que isto não eqüivale a confundi-los, como o fazem habitualmente os matemáticos e filósofos ocidentais. “Se podemos tomar o indefinido como imagem do Infinito, não podemos aplicar ao Infinito os raciocínios do indefinido; o simbolismo é descendente e não ascende mais”(4).

Esta integração acrescenta uma dimensão à representação espacial correspondente; sabemos com efeito que, partindo da linha que é o primeiro grau de indefinidade dentro da extensão, a integral simples corresponde ao cálculo de uma superfície, e a integral dupla ao cálculo de um volume. Portanto, se foi preciso uma primeira integração para passar da linha à superfície, que é medida pela cruz de duas dimensões descrevendo o círculo indefinido que não se fecha (ou a espiral plana vista simultaneamente em todas as posições possíveis), é preciso uma segunda integração para passar da superfície ao volume, no qual a cruz de três dimensões produz, pela irradiação de seu centro segundo todas as direções do espaço onde se situa, o esferóide indefinido do qual um movimento vibratório nos fornece a imagem, o volume sempre aberto em todos os sentidos que simboliza o vórtex universal da “Via”.


























NOTAS



1.      Sobre esta questão, ver Introduction Générale à l’Étude des Doctrines Hindoues, 2ª parte, cap, VII.
2.      É claro que o termo “intensidade” não deve ser tomado aqui num sentido quantitativo, e também que, sendo o pensamento não submetido à condição espacial, sua forma não é absolutamente “localizável”; é na ordem sutil que ele se situa, não na corpórea.
3.      Lembramos que a questão da distinção fundamental entre o “Si” e o “eu”, ou seja em suma entre o ser total e a individualidade, que resumimos no início deste estudo, foi tratada mais completamente em L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. II.
4.      Matgioi, La Voie Métaphysique, pg. 99.













XXVII

LUGAR DO ESTADO INDIVIDUAL HUMANO
DENTRO DO CONJUNTO DO SER


A partir do que dissemos no capítulo anterior a respeito do antropomorfismo, fica claro que a individualidade humana, mesmo vista em sua integralidade (e não restrita apenas à sua modalidade corpórea), não poderia ocupar um lugar privilegiado e “fora de série” na hierarquia indefinida dos estados do ser total; ela ocupa aí seu lugar como qualquer dos outros estados e com a mesma importância exatamente, sem nada de mais nem de menos, conforme à lei de harmonia que rege as relações entre todos os ciclos da Existência universal. Este lugar é determinado pelas condições particulares que caracterizam o estado de que se trata e lhe delimitam o domínio; e, se nós não o podemos conhecer atualmente, é porque não nos é possível, enquanto indivíduos humanos, sair destas condições para compará-las com as de outros estados, cujos domínios nos são forçosamente inacessíveis; mas basta-nos evidentemente, sempre enquanto indivíduos, compreender que este lugar é aquilo que ele deve ser e que ele não pode ser o que ele não é, pois cada coisa ocupa rigorosamente o posto que deve ocupar como elemento da ordem total. Por outro lado, em virtude dessa mesma lei de harmonia a que aludimos, “sendo a hélice evolutiva regular em toda parte e em todos os seus pontos, a passagem de um estado a outro se faz tão lógica e simplesmente quanto a passagem de uma situação (ou modificação) a uma outra no interior de um mesmo estado”(1), sem que, deste ponto de vista ao menos, haja em qualquer parte do Universo a menor solução de continuidade.

Se devemos entretanto fazer uma restrição no que concerne à continuidade (sem a qual a condição da causalidade universal não poderia ser satisfeita, pois ela exige que tudo se encadeie sem interrupção), é porque, como já indicamos, existe, de um ponto de vista diferente daquele do percurso dos ciclos, um instante de descontinuidade no desenvolvimento do ser: esse momento, que tem um caráter absolutamente único, é aquele em que se produz, sob a ação do “Raio Celeste” operando sobre o plano de reflexão, a vibração que corresponde ao Fiat Lux  cosmogônico e que ilumina, por sua irradiação, todo o caos das possibilidades. A partir desse momento, a ordem sucede ao caos, a luz às trevas, o ato à potência, a realidade à virtualidade; e, a partir do instante em que esta vibração atinge seu plano efeito, ampliando-se e repercutindo até os confins do ser, este, tendo então realizado sua plenitude total, não está mais sujeito a percorrer tal ou tal ciclo particular, pois ele os abarca a todos na perfeita simultaneidade de uma compreensão sintética e “não-distintiva”. É isso que constitui propriamente falando a “transformação”, concebida como implicando o “retorno dos seres em modificação ao Ser não-modificado”, fora e além de todas as condições específicas que definem os graus da Existência manifestada. “A modificação, diz o sábio Shi-Ping-Wen, é o mecanismo que produz todos o seres; a transformação é o mecanismo pelo qual são reabsorvidos todos os seres”(2).

Esta “transformação” (no sentido etimológico de passagem além da forma), pela qual efetua-se a realização do “Homem Universal”, não é outra coisa que a “Libertação” (em sânscrito Moksha ou Mukti) de que falamos em outra parte (3); ela requer, antes de tudo, a determinação prévia de um plano de reflexão do “Raio Celeste”, de tal modo que o estado correspondente torna-se por isso mesmo o estado central do ser. De resto, este estado, em princípio, pode ser qualquer um, pois todos são perfeitamente eqüivalentes quando vistos a partir do Infinito; e o fato de que o estado humano não é de modo algum distinto em relação aos demais comporta evidentemente, para ele como para não importa qual outro estado, a possibilidade de tornar-se este estado central. A “transformação” pode assim ser atingida a partir do estado humano tomado como base, e mesmo a partir de qualquer modalidade desse estado, o que eqüivale a dizer que ela é particularmente possível para o homem corporal e terrestre; em outros termos, e com já dissemos antes (4), a “Libertação” pode ser obtida “em vida” (jîvan-mukti), o que não impede que ela implique essencialmente, para o ser que a obtém assim (como em qualquer outro caso), a liberação absoluta e completa das condições limitativas de todas as modalidades e de todos os estados.

No que concerne ao processo efetivo de desenvolvimento que permite ao ser atingir, após atravessar certas etapas intermediárias, este momento preciso em que se opera a “transformação”, não temos a intenção de tratar aqui, poios é evidente que sua descrição, mesmo sumária, não caberia num estudo como esse, cujo caráter deve permanecer puramente teórico. Apenas quisemos indicar quais são as possibilidades do ser humano, possibilidades que, de resto, são necessariamente, sob o aspecto da totalização, as do ser em cada um de seus estados, pois estes não podem ter entre si nenhuma distinção diante do Infinito, no qual reside a Perfeição.

NOTAS


1.     Matgioi, La Voie Métaphysique, pg. 96-97.
2.     Ibid., pg. 76. – Para que a expressão seja correta, é preciso substituir aqui por “processo” o termo bastante impróprio de “mecanismo”, que foi emprestado desafortunadamente por Matgioi à tradução do I King de Philastre.
3.     L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XVII, 3ª ed.
4.     Ibid., cap. XVIII, 3ª ed.


















XXVIII

A GRANDE TRÍADE


Aproximando as últimas considerações daquilo que dissemos no início, podemos nos dar conta facilmente de que a concepção tradicional do “Homem Universal” não tem, na realidade, malgrado sua designação, nada de antropomórfico; mas, se todo antropomorfismo é claramente antimetafísico e deve ser rigorosamente descartado como tal, resta-nos precisar em que sentido e em que condições um certo antropomorfismo pode, ao contrário, ser considerado legítimo (1). Antes de mais nada, como já indicamos, a humanidade, do ponto de vista cósmico, desempenha um papel realmente “central” em relação ao grau de Existência ao qual ela pertence, mas apenas em relação a ele, e não, bem entendido, ao conjunto da Existência universal, na qual este grau não passa de mais um dentre uma multitude indefinida, sem nada que lhe confira uma situação especial em relação aos outros. A este respeito, não se pode falar de antropomorfismo senão num sentido restrito e relativo, mas entretanto suficiente para justificar a transposição analógica a que ‘da lugar a noção de homem, e, consequentemente, a própria denominação de “Homem Universal”.

De um outro ponto de vista, vimos que todo indivíduo humano, assim como toda manifestação de um ser em um estado qualquer, tem em si mesmo a possibilidade de se tornar centro em relação ao ser total; podemos então dizer que ele o é de certo modo virtualmente, e que o objetivo a que ele deve se propor é o de tornar esta virtualidade uma realidade em modo atual. É assim permitido a este ser, antes mesmo desta realização, e em vista dela, colocar-se por assim dizer idealmente no centro (2); pelo fato de que ele se encontra no estado humano, sua perspectiva particular dá naturalmente a esse estado uma importância preponderante, contrariamente ao que ocorre quando o encaramos do ponto de vista da metafísica pura, vale dizer do Universal; e essa preponderância achar-se-á por assim dizer justificada a posterior no caso em que este ser, tomando efetivamente o estado em questão como ponto de partida e por base de sua realização, fará dele verdadeiramente o estado central de sua totalidade, correspondendo ao plano horizontal de coordenadas de nossa representação geométrica. Isto implica antes de tudo na reintegração do ser considerado no centro mesmo do estado humano, reintegração que consiste propriamente na restituição do “estado primordial” e, em seguida, para este mesmo ser , na identificação do próprio centro humano com o centro universal; a primeira destas duas fases é a realização da integralidade do estado humano, e a segunda é a realização da totalidade do ser.

Segundo a tradição extremo-oriental, “o “homem verdadeiro” (tchen-jen) é aquele que havendo realizado o retorno ao “estado primordial”, e por conseguinte a plenitude da humanidade, acha daí para frente estabelecido definitivamente no “Invariável Meio”, e escapa por isso mesmo às vicissitudes da “roda das coisas”. Acima deste grau está o “homem transcendente” (cheun-jen), que não é mais um homem  propriamente falando, porque ele ultrapassou a humanidade e está inteiramente livre de suas condições específicas: é aquele que chegou à realização total, à “Identidade Suprema”; este tornou-se verdadeiramente o “Homem Universal”. Isso não ocorre com o “homem verdadeiro”, mas entretanto podemos dizer que este é ao menos virtualmente o “Homem universal”, no sentido que, a partir do momento em que ele não precisa mais percorrer outros estados em modo distintivo, por ter passado da circunferência ao centro, o estado humano deverá necessariamente ser para ele o estado central do ser total, embora não o seja ainda de um modo efetivo (3).

Isto permite compreender em que sentido deve ser entendido o termo intermediário da “Grande Tríade” da tradição extremo-oriental: os três termos desta são o “Céu” (Tien), a “Terra” (Ti) e o “Homem”(Jen), sendo que este último desempenha o papel de “mediador” entre os dois outros, como unindo em si suas duas naturezas. É verdade que, mesmo no que concerne ao homem individual, podemos dizer que ele participa realmente do “Céu” e da “Terra”, que são a mesma coisa que Purusha e Prakriti, os dois pólos da manifestação universal ; mas não há aí nada que seja especial ao caso do homem, pois o mesmo acontece necessariamente com qualquer ser manifestado. Para que ele possa preencher efetivamente, diante da Existência universal, este papel, é preciso que o homem consiga situar-se no centro de todas as coisas, ou seja que ele tenha atingido ao menos o estado do “homem verdadeiro”; ainda assim, ele não estará desempenhando este papel senão para um único grau da Existência; e é apenas no estado do “homem transcendente” que esta possibilidade realiza-se em sua plenitude. Isso eqüivale a dizer que o verdadeiro “mediador”, no qual ä união do “Céu” e da “Terra” acha-se plenamente cumprida para a síntese de todos os estados, é o “Homem Universal”, que é idêntico ao Verbo; e, notemo-lo de passagem, muitos aspectos das tradições ocidentais, mesmo dentro da ordem simplesmente teológica, poderiam achar aí sua explicação mais profunda (4).

Por outro lado, sendo o “Céu” e a “Terra” dois princípios complementares, um ativo e outro passivo, sua união pode ser representada pela figura do “Andrógino”, e isto nos leva a algumas das considerações que indicamos desde o início no que diz respeito ao “Homem Universal”. Aqui ainda, a participação dos dois princípios existe para todo ser manifestado, e ela se traduz nele pela presença dos dois termos yang e yin, mas em proporções variáveis e sempre com a predominância de um ou de outro; a união perfeitamente equilibrada desses dois termos só pode ser realizada no “estado primordial”(5). Quanto ao estado total, nele não pode mais haver nenhuma distinção de yang e yin, que são agora absorvidos na indiferenciação principial; não podemos mais falar aqui de “Andrógino”, que implica já uma certa dualidade na própria unidade, mas apenas de “neutralidade”, que é a do Ser considerado em si mesmo, para além da distinção da “essência” e da “substância”, do “Céu” e da “Terra”, de Purusha e de Prakriti. É portanto apenas em relação à manifestação que o par Purusha-Prakriti pode ser, como dissemos antes, identificada ao “Homem Universal”(6); e é também deste ponto de vista, evidentemente, que este é o “mediador” entre o “Céu” e a “Terra”, termos estes que desaparecem quando se passa além da manifestação (7).






NOTAS


1        É preciso aliás acrescentar que este antropocentrismo não tem nenhuma solidariedade necessária com o geocentrismo, contrariamente ao que acontece com certas concepções “profanas”; o que causa confusão a respeito, é que a terra é às vezes tomada para simbolizar o estado corporal inteiro; mas é claro que a humanidade terrestre não constitui a humanidade inteira.
2.      Existe aqui algo de comparável ao modo com Dante, segundo um simbolismo temporal e não mais espacial, situa a si próprio no meio do “grande ano” para cumprir sua viagem através dos “três mundos” (ver L’Ésotérisme de Dante, cap. VIII).
3.      A diferença entre estes dois graus é a mesma que existe entre aquilo a que chamamos a imortalidade virtual e a imortalidade realizada atualmente (L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XVIII, 3ª ed.): trata-se dos dois estágios que distinguimos desde o início na realização da “Identidade Suprema”. – O “homem verdadeiro” corresponde, na terminologia árabe, ao “Homem Primordial” (El-Insânul-qadîm), e o “homem transcendente” ao “Homem Universal” (El-Insânul-kâmil). – Sobre a relação do “homem verdadeiro” e do “homem transcendente”, cf. La Grande Triade, cap. XVIII.
4.       A união do “Céu” e da “Terra” é a mesma coisa que a união das duas naturezas divina e humana na pessoa do Cristo, na medida em que este é considerado o “Homem Universal”. Dentre os antigos símbolos do Cristo acha-se a estrela de seis pontas, ou seja o duplo triângulo ou “selo de Salomão”(cf. Le Roi du Monde, cap. IV); ora, dentro do simbolismo de uma escola hermética à qual estavam ligados Alberto o Grande e São Tomás de Aquino, o triângulo direito representa a Divindade, e o triângulo invertido a natureza humana (“feita à imagem de Deus”, como seu reflexo em sentido inverso no “espelho das Águas”), de modo que a união dos dois triângulos representa a união das duas naturezas (Lâhût e Nâsût no esoterismo islâmico). Cabe lembrar, do ponto de vista próprio do hermetismo, que o ternário humano “spiritus, anima, corpus” está em correspondência com o ternário dos princípios alquímicos “enxofre, mercúrio e sal”. – Por outro lado, do ponto de vista do simbolismo numérico, o “selo de Salomão” é a figura do número 6, que é o número “conjuntivo” (a letra vau em hebraico e em árabe), o número da união e da mediação; é também o número da criação, e, como tal, ele aplica-se ainda ao Verbo “per quem omnia facta sunt”. As estrelas de cinco e seis pontas representam respectivamente o “microcosmo” e o “macrocosmo”, e também o homem individual (ligado às cinco condições de seu estado, às quais correspondem os cinco sentidos e os cinco elementos corpóreos) e o “Homem Universal”, ou o Logos. O papel do Verbo, em relação à Existência universal, pode ainda ser precisado pela adjunção da cruz traçada no interior da figura do “selo de Salomão”: o braço vertical liga os vértices dos dois triângulos opostos, ou os dois pólos da manifestação, e o braço horizontal representa a “superfície das Águas”. – Na tradição extremo-oriental, encontramos um simbolismo que, ainda que diferindo do “selo de Salomão” pela disposição, lhe é numericamente eqüivalente: seis traços paralelos, cheios ou truncados segundo o caso (os sessenta e quatro hexagramas de Wen Wang no I King, dos quais cada qual é formado pela superposição de dois dos oito kua ou trigramas de Fo-Hi), constituem os “gráficos do Verbo” (em relação com o simbolismo do Dragão); e eles representam também o “Homem” como termo médio da “Grande Tríade” (o trigrama superior corresponde ao “Céu” e o inferior à “Terra”, o que os identifica respectivamente aos dois triângulos direito e invertido do “selo de Salomão”).
5.     É por isso que as duas metades do yin-yang constituem por sua reunião a forma circular completa (que corresponde no plano à forma esférica no espaço tridimensional).
6.     O que dissemos aqui do verdadeiro lugar do “Andrógino” na realização do ser e suas relações com o “estado primordial” explica o papel importante que essa concepção desempenha no hermetismo, cujos ensinamentos referem-se  ao domínio cosmológico, bem como às extensões do estado humano dentro da ordem sutil, ou seja em suma àquilo que podemos chamar de “mundo intermediário”, que não deve ser confundido com o domínio da metafísica pura.
7.     Podemos compreender por aí o sentido profundo desta frase do Evangelho: “Passarão o céu e a terra, mas minhas palavras não passarão”. O Verbo em si mesmo, e por conseguinte o “Homem Universal” que é idêntico a ele, está além da distinção do “Céu” e da “Terra”; ele permanece então eternamente tal qual é, em sua plenitude de ser, enquanto que toda manifestação e toda diferenciação (ou seja toda a ordem das existências contingentes) se desvanecem na “transformação” total.














XXIX

O CENTRO E A CIRCUNFERÊNCIA


As considerações que expusemos não nos conduzem, como se poderia crer se não insistirmos sobre esse ponto, a encarar o espaço como “uma esfera cujo centro está em toda parte e a circunferência em parte alguma”, segundo a fórmula conhecida de Pascal, que de resto talvez não seja seu primeiro inventor. Em todo caso, não cabe aqui analisar em que sentido Pascal entendia essa frase, que talvez tenha sido mal interpretada; isto não importa aqui, pois é evidente que o autor das célebres considerações sobre os “dois infinitos”, malgrado seus incontestáveis méritos em outras áreas, não possuía nenhum conhecimento de ordem metafísica.

Na representação espacial do ser total, é verdade, sem dúvida, que cada ponto, antes de qualquer determinação, é, potencialmente, centro do ser representado pela extensão em que está situado; mas isto é somente em potência e virtualmente, na medida em que o centro real não é efetivamente determinado. Esta determinação implica, para o centro, numa identificação  com a natureza mesma do ponto principial, que, em si, não está propriamente falando em parte alguma, por não estar submetido à condição espacial, o que lhe permite conter desta todas as possibilidades; o que está em toda parte, no sentido espacial, são apenas as manifestações deste ponto principial, que preenchem de fato a totalidade da extensão, mas que não passam de simples modalidades, de tal modo que a “ubiqüidade” não é em suma senão o substituto físico da “onipresença” verdadeira (2). Ademais, se o centro da extensão assimila de certa forma todos os outros pontos pela vibração que ele lhes comunica, isto é apenas na medida em que ele os faz participar da mesma natureza indivisível e incondicionada que agora torna-se também a deles, e esta participação, na medida em que é efetiva, os subtrai por isso mesmo à condição espacial.

Cabe em tudo isto levar em conta uma lei geral elementar que já mencionamos e que nunca deve ser perdida de vista, embora alguns a ignorem quase que sistematicamente: é que, entre o fato ou objeto sensível (o que no fundo é a mesma coisa) que tomamos como símbolo e a idéia, ou antes o princípio metafísico que queremos simbolizar na medida do possível, a analogia é sempre inversa, o que aliás caracteriza a verdadeira analogia (3). Assim, no espaço considerado em sua realidade atual, e não mais como símbolo do ser total, nenhum ponto é e nem pode ser centro; todos os pontos pertencem igualmente ao domínio da manifestação, pelo fato de pertencerem ao espaço, que é uma das possibilidades cuja realização está contida nesse domínio, o qual, em seu conjunto, não constitui outra coisa que a circunferência da “roda das coisas”, ou o que poderíamos chamar de exterioridade da Existência universal. Falar aqui em “interior” e em “exterior” é ainda, assim como falar de centro e de circunferência,  uma linguagem simbólica, e especificamente de um simbolismo espacial; mas a impossibilidade de dispensar tais símbolos só demonstra a inevitável imperfeição de nossos meios de expressão, que já assinalamos antes. Se podemos, até um certo ponto, comunicar nossas concepções a outro, no mundo manifestado e formal (pois trata-se de um estado individual restrito, fora do qual não se poderia sequer falar de “outro” propriamente falando, ao menos no sentido “separativo” que esta palavra implica no mundo humano), é evidentemente apenas através de representações que manifestam estas concepções em certas formas, ou seja por correspondências e analogias; eis o princípio e a razão de ser de todo simbolismo, e toda expressão, em qualquer modo, não passa na realidade de um símbolo (4). Apenas, “tomemos o cuidado de não confundir a coisa (ou a idéia) com a forma deteriorada sob a qual a podemos representar, e talvez mesmo compreende-la (enquanto indivíduos humanos); pois os piores erros metafísicos (ou melhor antimetafísicos) resultam da insuficiência de compreensão e da má interpretação dos símbolos. E lembremo-nos sempre do deus Janus, que é representado com duas faces, e que no entanto possui apenas uma, que não é nenhuma das duas que podemos ver e tocar”(5). Essa imagem de Janus poderia aplicar-se exatamente à distinção do “interior” e do “exterior”, assim como à consideração do passado e do futuro; e o rosto único, que nenhum ser relativo e contingente pode contemplar sem sair de sua condição limitada, não poderia ser melhor comparado do que ao terceiro olho de Shiva, que vê todas as coisas no “eterno presente”.

Nestas condições, e com as restrições que se impõem a partir do que dissemos, podemos, e inclusive devemos, para conformar nossa expressão à relação normal de todas as analogias (que poderíamos chamar, em termos geométricos, uma relação de homotetia inversa), inverter o enunciado da fórmula de Pascal que citamos mais acima. É aliás o que encontramos em um dos textos taoístas já mencionados: “O ponto que é o pivô da norma é o centro imóvel de uma circunferência sobre cujo contorno giram todas as contingências, as distinções e as individualidades” (7). À primeira vista, poderíamos quase crer que as duas imagens são comparáveis, mas, na realidade, elas são exatamente o contrário uma da outra: em suma, Pascal deixou-se levar por sua imaginação de geômetra, que o fez inverter as verdadeiras relações, tais como devem ser vistas do ponto de vista metafísico. É o centro que não está propriamente em parte alguma, pois, como dissemos, ele é essencialmente “não localizado”; ele não pode ser encontrado em lugar algum da manifestação, sendo absolutamente transcendente em relação a esta, embora seja interior a todas as coisas. Ele está além de tudo o que pode ser alcançado pelos sentidos e pelas faculdades que procedem da ordem sensível: “O Princípio não pode ser atingido nem pela vista nem pelo ouvido... O Princípio não pode ser ouvido: o que pode ser ouvido, não é Ele. O Princípio não pode ser visto; o que se vê, não é Ele. O Princípio não pode ser enunciado; o que se enuncia, não é Ele. Não podendo ser imaginado, o Princípio tampouco pode ser descrito”(8). Tudo o que pode ser visto, ouvido, imaginado, enunciado ou descrito, pertence necessariamente à manifestação, e mesmo à manifestação formal; é portanto, em realidade, a circunferência que está em toda parte, pois todos os lugares do espaço, ou mais genericamente, todas as coisas manifestadas (sendo o espaço aqui um símbolo da manifestação universal), “todas as contingências, as distinções e as individualidades”, não passam de elementos da “corrente das formas”, pontos da circunferência da “roda cósmica”.

Assim sendo, para resumirmos em poucas palavras, podemos dizer que, não apenas no espaço, mas em tudo o que é manifestado, é o exterior ou a circunferência que está em toda parte, enquanto que o centro está em parte alguma, por ser ele não-manifestado; mas (e é aqui que a expressão do “sentido inverso” adquire toda a força de seu significado) o manifestado nada seria sem esse ponto essencial, que em si mesmo não tem nada de manifestado, e que, precisamente em razão de sua não-manifestação, contém em princípio todas as manifestações possíveis, sendo verdadeiramente o “motor imóvel” de todas as coisas, a origem imutável de toda diferenciação e de toda modificação. Este ponto produz todo o espaço (assim como as outras manifestações) saindo de si mesmo de certo modo, pelo desdobramento de suas virtualidades em uma multitude indefinida de modalidades, com as quais ele preenche todo o espaço; mas, quando dizemos que ele sai de si mesmo para efetuar esse desenvolvimento, não se deve tomar ao pé da letra esta expressão bastante imperfeita, pois isto seria um erro grosseiro. Na realidade, o ponto principial de que falamos, não estando jamais submetido ao espaço, pois é ele que o efetiva e que a relação de dependência (ou a relação causal) não é reversível, permanece “não afetado” pelas condições de suas modalidades quaisquer, donde resulta que ele não cessa nunca de ser idêntico na si mesmo. Quando ele realizou sua possibilidade total, é para voltar (mas sem “que a idéia de “retorno” ou “recomeço seja absolutamente aplicável aqui) ao “fim que é idêntico ao começo”, vale dizer a esta Unidade primeira que continha tudo em princípio, Unidade que, sendo ela mesma (considerada como o “Si”), não pode de modo algum tornar-se outra coisa do que si mesma (o que implicaria numa dualidade), e de onde, por conseqüência, encarado em si mesmo, ele nunca saiu. De resto, na medida em que trata do ser em si, simbolizado pelo ponto, e mesmo do Ser universal, só podemos falar de Unidade, como o fazemos; mas, se quisermos, ultrapassando os limites do Ser, encarar a Perfeição absoluta, deveremos passar ao mesmo tempo, para além dessa Unidade, ao Zero metafísico, que nenhum simbolismo poderia representar, assim como nenhum nome poderia denominar (9).

NOTAS


1.      Uma pluralidade de infinitos é evidentemente impossível, pois eles limitar-se-iam mutuamente de modo que nenhum deles seria realmente infinito; Pascal, como muitos outros, confunde o infinito com o indefinido, sendo este entendido quantitativamente e tomado nos dois sentidos opostos das grandezas crescentes e decrescentes.
2.      Ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XXV, 3ª ed.
3.      Podemos, a propósito, reportarmo-nos ao que dissemos no início sobre a analogia entre o homem individual e o “Homem Universal”.
4.      Ver Introduction Générale à l’Étude des Doctrines Hindoues, 2ª parte, cap. VII.
5.      Matgioi, La Voie Métaphysique, pgs. 21-22
6.      Ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XX, 3ª ed., e Le Roi du Monde, cap. V.
7.      Tchouang-Tsé, cap. II.
8.      Ibid., cap. XXII. – Cf.  L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XV, 3ª ed.
9.      Ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XV, 3ª ed.








XXX

ÚLTIMAS NOTAS SOBRE
O SIMBOLISMO ESPACIAL


Em tudo o que precede, não tentamos estabelecer uma distinção entre os significados respectivos dos dois termos “espaço” e “extensão”, e, na maioria dos casos, empregamos indiferentemente um ou outro; esta distinção, como a que há entre “tempo” e “duração”, pode ser muito útil para certas sutilezas filosóficas, e pode mesmo ter algum valor real do ponto de vista cosmológico, mas certamente não se aplica à metafísica pura (1). De resto, de modo geral, preferimos nos abster de todas as complicações de linguagem que não sejam estritamente necessárias à clareza e à precisão de nossa exposição; e, segundo uma declaração que não é nossa, mas que podemos citar como se fora, “nós recusamos carregar a metafísica de novas terminologias, lembrando que elas são objeto de discussão, de erros e de descrédito; aqueles que as criam, para as necessidades aparentes de suas demonstrações, sobrecarregam de modo incompreensível seus textos, e se agarram a elas com tanto amor que muitas vezes, essas terminologias, áridas e inúteis, acabam por constituir a única novidade do sistema proposto”(2).

Fora dessas razões gerais, se nos aconteceu de chamar de espaço aquilo que, propriamente falando, não é em realidade senão uma extensão específica em três dimensões, é porque, mesmo no mais alto grau de universalização, do simbolismo espacial que estudamos, não ultrapassamos os limites dessa extensão, tomada para criar a representação, necessariamente imperfeita, como explicamos, do ser total. Entretanto, se quiséssemos nos restringir a uma linguagem mais rigorosa, deveríamos sem dúvida empregar o termo “espaço” apenas para designar o conjunto de todas as extensões particulares; assim, a possibilidade espacial, cuja atualização constitui uma das condições especiais de certas modalidades de manifestação (tais como nossa modalidade corporal, em particular) dentro do grau de existência a que pertence o estado humano, contém em sua indefinidade todas as extensões possíveis, de que cada uma é em si indefinida em menor grau, e que podem diferir entre si pelo número de dimensões ou por outras características; e de resto é evidente que a extensão dita “euclidiana”, que a geometria comum estuda, não passa de um caso particular de extensão em três dimensões, porque ela não é a única modalidade conceptível dela (3).

Apesar disso, a possibilidade espacial, mesmo em toda esta generalidade com que a encaramos, não passa ainda de uma possibilidade determinada, indefinida sem dúvida, e mesmo indefinida a uma potência múltipla, mas mesmo assim finita, pois, como o demonstra por exemplo a produção da série dos números a partir da unidade, o indefinido procede do finito, o que só é possível com a condição de que o próprio finito contenha em potência este indefinido; e é evidente que o “mais” não pode sair do “menos”, nem o infinito do finito. De resto, se não fosse assim, a coexistência de uma indefinidade de outras possibilidades, que não estão compreendidas naquela (4), e das quais cada uma é igualmente susceptível de um desenvolvimento indefinido, seria impossível; e esta única consideração, na falta de outra, bastaria para demonstrar o absurdo deste “espaço infinito” de que se abusou tanto (5), pois só pode ser infinito aquilo que compreende tudo, aquilo fora de que nada existe que o possa limitar de qualquer modo que seja, ou seja a Possibilidade total e universal (6).

Terminaremos aqui a presente exposição, reservando para outro estudo o restante das considerações relativas à teoria metafísica dos estados múltiplos do ser, que veremos então independentemente do simbolismo geométrico que ela permite. Para permanecermos dentro dos limites que nos impusemos para o momento, acrescentaremos apenas o seguinte, que nos servirá de conclusão: é pela consciência da Identidade do Ser, permanente através de todas as modificações indefinidamente múltiplas da Existência única, que se manifesta, no centro mesmo de nosso estado humano assim como de todos os outros, este elemento transcendente e informal, portanto não-encarnado e não-individualizado, que é chamado de “Raio Celeste; e é esta consciência, superior por isso mesmo a qualquer faculdade de ordem formal, portanto essencialmente supra-racional e que implica no assentimento da lei de harmonia que liga e une todas as coisas no Universo, é, dizíamos, esta consciência que, para nosso ser individual, mas independentemente dele e das condições às quais ele está submetido, constitui verdadeiramente a “sensação da eternidade” (7).






NOTAS


1.      Enquanto que a extensão é habitualmente considerada como uma particularização do espaço, a relação do tempo e da duração é às vezes encarada em sentido oposto: segundo certas concepções, de fato, e notadamente as dos filósofos escolásticos, o tempo não passa de um modo particular da duração; mas isto, que de resto é perfeitamente aceitável, prende-se a considerações que estão fora do nosso presente objeto. Tudo o que podemos dizer a respeito, é que o termo “duração” é tomado então para designar genericamente todo modo de sucessão, ou seja em suma toda condição que, em outros estados de existência, pode corresponder analogamente àquilo que é o tempo no estado humano; mas o emprego desse termo pode dar lugar a certas confusões.
2.      Matgioi, La Voie Métaphysique, pg. 33 (nota).
3.      A perfeita coerência lógica das diversas geometrias “não-euclidianas” é uma prova suficiente disso; mas, bem entendido, não é aqui o lugar de insistir sobre o significado e o alcance dessas geometrias, assim como da “hipergeometria” ou geometria com mais de três dimensões.
4.      Para nos mantermos dentro daquilo que é conhecido por todos, o próprio pensamento, tal como o encaram os psicólogos, está fora do espaço e não pode ser situado de modo algum.
5.      Assim como, aliás, o “número infinito”; de um modo geral, o pretenso “infinito quantitativo”, sob todas as suas formas, não é nem pode ser mais que pura e simplesmente o indefinido; a partir daí desaparecem todas as contradições inerentes a estes proclamados infinitos, e que tanto embaraçam os matemáticos e filósofos.
6.      Se nos é impossível, como dissemos acima, admitir o ponto de vista estreito do geocentrismo, habitualmente ligado ao antropomorfismo, tampouco aprovamos esta espécie de lirismo científico, ou antes pseudo-científico, tão caro a alguns astrônomos, onde se fala sempre de “espaço infinito” e “tempo eterno”, que são, repetimos, puros absurdos, pois, precisamente, não pode ser infinito nem eterno aquilo que depende do espaço e do tempo; no fundo, esta é mais uma das numerosas tentativas do espírito moderno de limitar a Possibilidade universal à medida de suas próprias capacidades, que praticamente não ultrapassam os limites do mundo sensível.
7.      É claro que a palavra “sensação” não deve ser tomada aqui no seu sentido próprio, mas deve ser entendida, por transposição analógica, no sentido de uma faculdade intuitiva, que capta imediatamente seu objeto, como o faz a sensação em sua ordem; mas existe aí toda a diferença que separa a intuição intelectual da intuição sensível, o supra-racional do infra-racional.



Um comentário:

  1. Olá, ouvi dizer que a frase: "O CORAÇÃO DAS IDEIAS OBEDECE A LEIS MUITO PRECISAS. QUEM CONHECE ESSAS LEIS OBTÉM O RESULTADO QUE QUISER" é de autoria do Rene Guenon e gostaria de saber em qual livro está escrita. Grato.

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