PRÓLOGO
Depois de estudar durante
anos a grande quantidade de material existente acerca das nações indígenas da
América do Norte, grande parte do qual escrito pelo próprios índios, fiquei
convencido de que muitos dos velhos sacerdotes possuíam ainda uma elevada
sabedoria. Sem embargo, esta sabedoria às vezes permanece obscura para nós,
devido ao caráter singular de suas tradições e também devido ao seu, digamos,
gênio poli-sintético, que dá grande importância aos diversos aspectos do mundo
e da Natureza. Mas nesta afirmação e uso das muitas formas da Natureza sempre
encontramos a idéia de Unidade e de Transcendência divinas. O índio, portanto,
nãoé um “pagão”, nem um “idólatra”, mas sim ele sabe que o Grande Espírito é
infinito e que, por conseguinte, inclui em Si mesmo todas as possibilidades, de
modo que todas as formas são funções ou reflexos d’Ele, que em sua essência é
sempre um.
A fim de comprovar que esta
sabedoria era conhecida e compreendida de um modo integral pelos velhos
sacerdotes dos índios, empreendi uma viagem que viria a durar anos e que me
levou a conhecer muitas nações indígenas da América do Norte. Dediquei a maior
parte destes anos aos índios das planícies, pois acreditava já há algum tempo
que estes povos eram como que os aristocratas dos índios, já que seus anciãos
possuíam qualidades e um nível espiritual que raramente se encontram no mundo
de hoje. Para aprender destes povos, devemos efetivamente viver com eles, caçar
e viajar com eles, compartilhar todos os aspectos da sua vida; e aquele que o
faça se verá imensamente recompensado, porque mesmo hoje, em suas vidas muitas
vezes de grande pobreza material, encontram-se ainda, no ritmo de sua sociedade
e na beleza das formas da sua antiga cultura, aquelas grandes qualidades por
cuja falta o mundo moderno está empobrecendo apesar de sua opulência material.
Durante minha estadia entre
os índios da reserva de Pine Ridge, tive a extraordinária fortuna de achar um
antigo sacerdote dos Sioux Oglala, Hehaka Sapa (Alce Negro), que pediu-me que
permanecesse com ele para recolher um relato sobre sua antiga religião; este
ancião sabia que brevemente iria morrer, e não queria que estes conhecimentos
sagrados, muitos dos quais tinham nele seu último depositário, desaparecessem
consigo. Assim, vivi com Alce Negro durante oito meses de inverno em 1978-48, e
ao longo deste período registrei diariamente aquilo que me contava; além de
tudo o que aprendi, beneficiei-me grandemente do fato de compartilhar a nobre
vida de sua família e de muitos amigos. Alce Negro já não está vivo, mas este é
seu livro, e tenho a esperança de que, graças a ele, seguirá vivendo, e que
aqueles que o leiam compreenderão melhor tudo o que constituiu o centro e a
própria vida dessa grande povo.
Encontrei muitos anciãos de
grande santidade entre os índios, mas em Alce Negro havia um poder espiritual
único, e estou seguro de que isto era reconhecido por todos os que tiveram a
oportunidade de conhece-lo. Alce Negro nasceu no início da década de 1860, e
assim conheceu os dias em que seu povo percorria as planícies caçando os
bisontes, além de ter lutado contra os homens brancos em Little Big Horn e em
Wounded Knee Creek. Era primo do grande chefe e sacerdote Cavalo Louco, e
conheceu a Touro Sentado, Nuvem Vermelha e Cavalo Americano. Ainda que não
falasse inglês, teve ocasião de observar bem o mundo do homem branco, pois
viajou com Buffalo Bill à Itália, França e Inglaterra, aonde dançou diante da
Rainha Vitória. Mas, fosse caçando, viajando ou lutando, Alce Negro não era
como os demais homens. Em sua juventude foi instruído no saber sagrado de seu
povo por grandes sacerdotes, dentre os quais contavam-se Caminho Negro, Caçador
de Redemoinho e o sábio Cabeça de Alce, de quem aprendeu toda a história de sua
antiga religião. Com este conhecimento, Alce Negro orou e jejuou muito, e
graças a isto converteu-se em um homem sábio que recebeu muitas visões e um
poder especial destinado a ser empregado para o bem de sua nação. Esta missão
obcecou Alce Negro por toda a sua vida e lhe causou muito sofrimento, pois,
embora houvesse recebido o poder de guiar seu povo pelo caminho sagrado dos
seus antepassados, não via com que meios tornar realidade a visão. Creio que era
esta a razão por que Alce Negro desejava fazer um livro que explicasse a
religião dos Sioux, pois tinha a esperança de que, graças a este livro, seu
povo, assim como os homens brancos, obteria uma melhor compreensão da belez e
verdade de sua antiga religião.
Alce Negro pertencia ao
grupo Oglala dos Dakota Teton, um dos ramos mais poderosos da grande família
Sioux. Sioux na realidade é um nome genérico aplicado a numerosas tribos que
tem uma origem comum e falam a mesma língua; inclui as seguintes nações, classificadas
segundo sua língua: Assiniboin, Vrow, Dakota, Hidatsa, Iowa, Kansa, Mandan,
Missouri, Omaha, Osage, Oto e Ponca. Ao longo de suas migrações e guerras com
tribos vizinhas, os dakota (os aliados) dividiram-se em sete ramos,
constituindo aquilo que foi chamado de Sete Fogos do Conselho, ou Otchenti
Chakowin: os oglala, minnenconjou, ochenopa, unopapa, brulé, além dos “pés pretos” e os “sem arco”.
Segundo uma antiga história que conheci através de Alce Negro, e segundo os
documentos dos primeiros viajantes e missionários, no século XVI os dakota
estavam estabelecidos nas nascentes do Mississipi, e no século XVII foram
expulsos de Minnesota para o oeste por seus poderosos inimigos, os chppewa. Ao
abandonar os bosques e os rios, os dakota substituiram a piroga pelo cavalo com
notável facilidade, e no séculoXIX eram conhecidos e temidos como uma das
nações mais poderosas das planícies; com efeito, estes sioux dakota foram
talvez os que, de todas as tribos indígenas, ofereceram a maior resistência à expansão
dos brancos para o oeste.
Este livro contém muitos
dados que os índios, até estes últimos tempos, evitaram divulgar, porque
consideravam, e com razão, que são coisas demasiado sagradas para serem
comunicados a qualquer um; nos nossos dias, os poucos sábios que ainda vivem
entre eles dizem que, ao aproximar-se o fim de um ciclo, quando em todos os
lugares os homens tornaram-se ineptos para compreender e, sobretudo, para por
em prática as verdades que lhes foram reveladas na origem – o que tem por consequência
a desordem e o caos em todos os campos – é permitido, e mesmo desejável, expor
este conhecimento à luz do dia; pois a verdade, por sua própria natureza,
defende-se contra a profanação, e é possível que assim ela chegue até aqueles
que estão qualificados para penetrá-la profundamente e que sejam capazes,
graças a ela, de consolidar a ponte que é preciso construir para sair desta
idade obscura.
Esta história do Cachimbo
Sagrado dos sioux foi transmitida oralmente pelo anterior “guardião do
Calumet”, Hehaka Pa (Cabeça de Alce) a três homens; dos três, hehaka Sapa era o
única que ainda estava vivo na época em que estivemos com os sioux. Quando
Cabeça de Alce confiou esta história sagrada dos sioux a Alce Negro, disse-lhe
que deveria “ser transmitida de geração em geração, pois, enquanto ela for
conhecida e o Calumet estiver em uso, nosso povo viverá; mas, a partir do
momento em que for esquecida, nosso povo já não terá um centro e perecerá”.
Esta é a razão por que fazemos votos de que este livro ajude em certa medida,
por débil que seja, a preservar este centro de uma nobre nação, da qual muitos
membros, ainda hoje e apesar de uma pressão terrível, estão resolvidos a
salvaguardar estes ritos antigos que lhes foram revelados no princípio pelo
Grande Espírito.
Nas notas estabelecemos
incidentalmente concordâncias com outras tradições com o fim de evidenciar a
universalidade e a ortodoxia – ou a verdade intrínseca – da tradição dos sioux,
e também para mostrar que esta, que de fato coincide com a da maior parte dos
índios da América do Norte, possui todos os elementos de uma verdadeira
espiritualidade. Já é hora que os índios da América do Norte voltem a tomar
consciência de si mesmos, de seu patrimônio espiritual e de sua civilização,
pois já faz demasiado tempo que a verdadeira natureza de sua antiga sabedoria
vem sendo falsificada nos livros, seja por simples ignorância, seja pela
influência de todos os tipos de preconceitos.
Convém assinalar que os
ritos descritos por Alce Nagro correspondem aos seus protótipos originais, de
modo que apresentam em certos aspectos uma diferença bastante considerável em
relação às formas mais complicadas – mas não indispensáveis – que estes ritos
possam ter adquirido mais tarde.
Com exceção das que
mencionam outra fonte, todas as notas concernentes à tradição dos sioux provém
diretamente de Alce Negro e, em algumas ocasiões, também de seu amigo Pequeno
Guerreiro, homem notável que nos auxiliou em mais de um aspecto.
Desejamos expressar nossa
gratidão, em primeiro lugar, ao filho de Alce Negro, que nos serviu de
intérprete. Graças a ele desfrutamos da oportunidade excepcional de ter um
intéprete que compreendia perfeitamente o inglês e o lakota e que, ademais,
estava familiarizado com a sabedoria e os ritos de seu povo; de fato, a
carência destes conhecimentos é uma das causas principais de que existam tantos
textos cheios de erros a respeito dos índios.
Aos leitores que queiram
conhecer mais a respeito do santo homem que nos ditou este livro, recomendamos
a obra de John G. Neihardt, Black Elk Speaks (New York, William Morrow, 1932).
Joseph Epes Brown
INTRODUÇÃO
A tradição dos índios da
América do Norte, ou, mais precisamente, daqueles das planícies e dos bosques
cujos domínio se estende desde as Montanhas Rochosas – e até mais longe – até o
Oceano Atlântico, possui um símbolo e um “meio de graça”de primeira
importância: o Calumet, o qual representa uma síntese doutrinal a um tempo
concisa e complexa, e também um instrumento ritual no no qual se apoia toda a
vida espiritual e social; descrever o simbolismo do Cachimbo sagrado e de seu
rito equivale pois, em certo sentido, a expor toda a sabedoria dos índios. É
verdade que a tradição indígena compreende forçosamente variações bastante
consideráveis devidas à dispersão secular das tribos, e que se referem, por
exemplo,ao mito de origem do Calumet ou ao simbolismo de suas cores; por isso,
não conservaremos aqui senão os aspectos fundamentais da sabedoria indígena,
que permanecem sempre idênticos sob a variedade de suas expressões. Não
obstante, utilizaemos preferencialmente os símboos empregados pelos sioux,
nação à qual pertencia Hehaka Sapa, o venerável autor deste livro, falecido em
1950 na reserva de Pine Ridge em South Dakota.
Os índios da América do
Norte são uma das raças que mais foram estudadas por etnólogos e, sem embargo,
não podemos afirmar que sejam conhecidos perfeitamente; a etnografia, como
qualquer outra ciência comum, não engloba todo o conhecimento possível, e não
poderia ser, por conseguinte, a chave de todo o conhecimento. Se queremos
penetrar o sentido da sabedoria dos índios, não podemos fazê-lo senão com a
ajuda de outras doutrinas tradicionais ou sagradas ou, mais precisamente – o
que dá no mesmo – à luz da philosophia perennis que
permanece una e imutável em todas as formas que possa tomar através das épocas.
O índio de antigamente não
se deixa classificar facilmente em uma das categorias conhecidas de civilização
ou de não-civilização, e parece constituir, deste ponto de vista, um tipo à parte
no conjunto de tipos humanos; mesmo quando não reconhecemos nele o caráter de
“civilizado”, somos obrigados a ver ali um homem estranhamente completo: sua
dignidade e sua inteireza, sua nobreza feita de retidão, de coragem e de
generosidade, além da potente e sóbria originalidade de sua arte que o
assemelha à águia e ao sol, fazem dele uma espécie de ser mitológico que
fascina e obriga ao respeito; talvez os antigos germânicos ou os mongóis
anteriores ao Budismo nos tivessem causado impressão análoga.
Quanto à “civilização”, as
experiências do século XX nos obrigam a reconhecer que é bem pouca coisa, ao
menos na medida em que se distingue e se separa do mundo religioso; de fato, se
entendemos a palavra “civilizado” no sentido bastante superficial que ela tem
correntemente, e que significa que um homem está submetido a condições de vida
artificiais, diferenciadas e “abstratas”, o pele-vermelha não perde nada por
não responder a esta definição; ao contrário, a simplicidade de seu tipo de
vida ancestral cria o ambiente que permite ao seu gênio afirmar-se; queremos
dizer com isto que o objeto deste gênio, como, aliás, acontece com a maior
parte dos nômades e dos semi-nômades (e, em todo caso, com os
caçadores-guerreiros), é muito menos a criação artística, exterior, do que a
própria alma, o homem integral, matéria plástica do “artista primordial”. Esta
ausência das “belas artes” propriamente ditas – não falamos aqui da pictografia
– não é, pois, simplesmente um “menos”, já que está condicionada e compensada por
uma atitude espiritual e moral que, precisamente, nãopermite ao homem
exteriorizar-se a ponto de converter-se em um servidor da matéia inerte, como o
exige forçosamente toda arte “estática”. Um trabalho “servil”ou “de squaw”[1],
ou seja, que reduza o homem a um papel aparentemente periférico, é incompatível
com uma civilização fundada na Natureza e no Homem em suas funções primordiais;
a arte é feita para o homem e não o homem para a arte, pode-se dizer a partir
desta perspectiva, e, de fato, a arte indígena é antes de tudo um
“enquadramento” desta criação divina, central e livre que é o ser humano.
O objeto da manifestação genial é, portanto, sempre o
homem enquanto símbolo e mediador: o que se exterioriza nunca se separa do
microcosmo vivo para converter-se em um ser novo, inerte, numa espécie de
“ídolo” que acabaria por absorver e aplastar o criador humano; numa palavra, o
índio concebe a arte como uma função viva do homem enquanto ser central e
soberano, e é a própria essência espiritual desta arte, e não nenhum tipo de
incapacidade, que exclui a projeção do homem na matéria e esta espécie de
esquecimento de si diante de um ideal materializado. A arte indígena é de uma
simplicidade totalmente primordial, sua linguagem é concentrada, direta,
atrevida; como o próprio índio – tipo não apenas nobre como também
poderosamente original – sua arte é a um tempo “qualitativa” e espontânea;
possui um simbolismo preciso e um frescor surpreendente. “Enquadra”, como
dissemos, a pessoa humana, e isto é o que explica a alta qualidade que alcança
aqui a arte da indumentária: adornos de cabeça
majestosos – sobretudo os cocares de penas de águia – vestimentas cheias
de franjas e bordados com símbolos solares, mocassinos com desenhos que parecem
querer tirar dos pés todo peso e toda uniformidade, vestidos femininos de uma
estranha simplicidade; esta arte índia, tanto em seus aspectos concisos como em
suas expressões mais ricas, não é talvez das mais sutis, mas certamente é uma
das mais geniais que existem.
Alguns autores acham-se na
obrigação de colocar em dúvida que a tradição indígena possua a idéia de Deus,
e isto porque acreditam descobrir nela um “panteísmo” ou “imanentismo” puro e
simples; mas este erro se deve ao fato de que a maior parte dos termos
indígenas que designam a Divindade aplicam-se a todos os aspectos possíveis
desta, e não apenas ao aspecto pessoal; Wakan-Tanka –
o “Grande Espírito” – é Deus, não apenas enquanto Criador e Senhor, mas também
enquanto Essência impessoal.
Este nome de “Grande
Espírito”, como tradução do termo sioux Wakan-Tanka e
de termos similares em outras línguas indígenas, às vezes dá lugar a objeções;
sem embargo, se Wakan-Tanka – e os
termos correspondentes, como Wakonda
ou Manitu – pode ser traduzido como
“Grande Mistério”, “Grande Poder Misterioso”, e até como “Grande Medicina”,
“Grande Espírito”, embora não inteiramente adequado é bastante suficiente; é
verdade que a palavra “espírito” possui uma certa indeterminação, mas ela
apresenta avantagem de não implicar nenhuma restrição, e isto é exatamente o
que convém ao termo “poli-sintético” wakan. A expressão “Grande Mistério” proposta por alguns não esclarece mais
do que “Grande Espírito” a idéia que se quer refletir, pois a palavra
“mistério” não expressa em suma senão uma qualidade extrínseca; ademais, o que
importa saber não é se o termo indígena expressa exatamente o que nós
entendemos por “espírito”, mas se a idéia expressa pelo termo índio pode ser
traduzida por “espírito” ou não.
Dissemos anteriormente que o
“Grande Espírito” é Deus, não apenas enquanto Criador e Senhor, mas também
enquanto Essência impessoal; acrescentaremos que, inversamente, é Deus, não só
como puro Princípio, mas também como Manifestação: Ele é, pois, Deus como tal e
em Si mesmo, e também Deus como Manifestação cósmica, se podemos nos espressar
assim, e, por último, Deus como reflexo de Si mesmo nesta Manifestação, ou seja
como selo divino da Criação.
O que acabamos de dizer se
depreende de modo necessário do próprio uso que os índios fazem da maior parte
dos termos que designam o “Grande Espírito”; mas, fora isto, os sioux
estabelecem explicitamente uma distinção entre os aspectos essenciais de Wakan-Tanka: Tunkashila (“Avô”) é Wakan-Tanka na
medida em que este está além da manifestação, e mesmo além de toda qualidade ou
determinação, seja qual for; Ate
(“Pai”), ao contrário, é “Deus em ato”: o Criador, o Sustentador e o
Destruidor. De modo análogo, no que concerne à Terra, faz-se uma distinção entre Unchi (“Avó”) e Ina (“Mãe”): a primeira é a substância de todas as coisas, enquanto que a
segunda é seu ato criador – considerado aqui como “iluminação” –, ato que produz, juntamente com a “inspiração”
por Ate, todos os seres.
Através das espécies animais
e dos fenômenos fundamentais da Natureza, o índio contempla as essências
angélicas e as Qualidades divinas: nesta ordem de idéias, citaremos as
seguintes considerações de uma carta de Joseph Epes Brown: “É difícil, para
aqueles que vêem a religião dos pele-vermelha do exterior, compreender a
importância que os animais e, de modo geral, todas as coisas contidas no
Universo, têm para eles. Para estes homens, todo objeto criado é importante,
pela simples razão de que eles conhecem a correspondência metafísica entre este
mundo e o “Mundo real”. Nenhum objeto é para eles o que parece ser apenas pelas
aparências; não vêem na coisa aparente senão um débil reflexo de uma realidade
principial (N.T.: relativa ao Princípio). Porisso, tudo é wakan, sagrado, e possui um poder, segundo o grau espiritual que reflete;
assim, muitos objetos possuem um poder para o mal, tanto quanto para o bem, e
todo objeto é tratado com respeito, pois o “poder” particular que contém pode
ser transferido para o homem; os índios sabem que não há nada, no Universo, que
não tenha sua correspondência analógica na alma humana. O índio se humilha
diante de toda a Criação, sobretudo quando “implora” (vale dizer, quando invoca
ritualmente o Grande Espírito na solidão), porque todas as coisas visíveis
foram criadas antes dele (anterioridade que, do ponto de vista de um certo
simbolismo das criaturas, possui também um sentido puramente principial) e que,
por serem seus antepassados, merecem respeito; mas o homem, ainda que tenha
sido criado por último, é, não obstante, o primeiro dos seres, porque somente
ele pode conhecer Wakan-Tanka[2].
Estas considerações
permitirão compreender melhor como toda coisa “característica”, ou seja, que
manifesta uma “essência”, é wakan,
sagrada. Crer que Deus é o sol, é certamente um erro totalmente “pagão” – e
alheio ao pensamento indígena – mas é igualmente absurdo crer que o sol não é
mais do que uma massa ibncandescente, ou seja que ele não “é” Deus de modo
algum. Poderíamos também nos expressar da seguinte maneira: é wakan aquilo que é integralmente conforme ao seu
proprio “gênio”; o Princípio é Wakan-Tanka, vale dizer,aquilo que é absolutamente “si mesmo”; e, por outro lado,
o sábio é aquele que é perfeitamente conforme ao seu “gênio” ou à sua
“essência”; e esta não é outra coisa que o “Grande Espírito”. É wakan, “sagrado”, tudo o que permite
“conformar-se” diretamente à Realidade divina; o homem é wakan quando sua alma manifesta o Divino com a
evidência espontânea e fulgurante das maravilhas da Natureza: os elementos, o
sol, o relâmpago, a águia, o bisonte, o urso, as montanhas, os rios, as
estrelas, e assim por diante. Porisso a covardia – espécie de abandono da
“personalidade” – é o pecado por excelência; e isto explica também o
“individualismo” aparente ou real dos índios, atitude que, partindo da
“personalidade qualitativa”, terminou por converter-se num individualismo
arriscado.
Quanto ao conhecimentio do
“Grande Espírito”, que apenas o homem, dentre todas as criaturas terrestres,
pode alcançar, Hehaka Sapa o definiu nos seguintes termos: “Sou cego e não vejo
as coisas deste mundo; mas quando a luz vem de Cima ela ilumina meu coração e
posso ver, pois o Olho do meu coração (Chante Ishta)
vê tudo. O coração é o santuário em cujo centro se acha um pequeno espaço no
qual habita o Grande Espírito e este é o Olho (Ishta). Este é o Olho do Grande Espírito, mediante o qual Ele vê todas as
coisas, e mediante o qual nós O vemos. Quando o coração não é puro, o Grande
Espírito não pode ser visto, e se morrerdes nesta ignorância, vossa alma não
poderá regressar imediatamente para o Seu lado, mas deverá purificar-se
mediante peregrinações através do mundo. Para conhecer o Centro do coração
aonde reside o Grande Espírito deveis ser puros e bons, e viver segundo o modo
como o Grande Espírito nos ensinou. O homem que é puro deste modo contém o
Universo no bolso do seu coração (Chante Ognaka)”.
Não poderíamos fazer melhor,
antes de comentar sumariamente o simbolismo do Calumet, do que citar a
explicação que Hehaka Sapa ofereceu em seu primeiro livro (Black Elk Speaks): “Encho o Cachimbo sagrado com a casca do
Salgueiro vermelho; mas antes que fumemos, deveis ver como ele é feito e o que
significa: estas quatro fitas que pendem do cano são as quatro Regiões do
Universo: a negra representa o Oeste, aonde vivem as criaturas do Trovão que
nos enviam a chuva; a branca representa o Norte, de onde vem o grande Vento
Branco que purifica; a vermelha representa o Leste, de onde nasce a luz e aonde
mora o Farol da aurora a fim de trazer a ciência aos homens; a amarela
representa o Sul, de onde vem o verão e o poder de crescer. Mas estes quatro
espíritos não são mais do que Um Espírito, e esta pena de águia simboliza o Um,
que é como um Pai; mas representa também os pensamentos dos homens que devem
elevar-se até as alturas como se elevam as águias. Não é o Céu como um pai e a
Terra como uma mãe, e todos os seres vivos seus filhos, quer tenham pés, asas,
ou raízes? E este couro na piteira, que deve ser de pele de bisonte, indica a
Terra, da qual viemos e de cujo seio nutrimos toda a vida, semelhantes a
recém-nascidos, com todos os animais, pássaros, árvores e ervas. E porque
significa tudo isto, e mais do que qualquer homem possa compreender, o Cachimbo
é sagrado”.
Quando um índio pratica o
ritual do Calumet, ele saúda o céu, a terra,os quatro pontos cardeais, seja
“oferecendo-lhes” o Cachimbo, apresentando-lhes o cano, como quer por exemplo o
ritual sioux, seja dirigindo a fumaça para as regiões indicadas e às vezes
também ao “fogo central”[3]
– o agni védico – que arde diante do oficiante; a
ordem destes gestos pode variar, mas seu plano estático é sempre o mesmo, já
que constitui o esquema doutrinal, dogmático se se quiser, que será atualizado
pelo rito.
Conforme alguns usos
rituais, começaremos nossa enumeração do Oeste: este “Vento do Oeste” traz o
trovão e a chuva, ou seja a Revelação e também a Graça; o “Vento do Norte”
purifica e dá força; do “Leste” vem a Luz, e portanto o Conhecimento, ambos
relacionados à Paz, segundo a perspectiva indígena; o “Sul” é a fonte da Vida e
do Crescimento; é ali que começa o “bom Caminho vermelho, a Via da alegria e da
felicidade. Assim é que o Universo depende de quatro determinações primordiais,
a saber: a “Água”, o “Frio”, a “Luz” e o “Calor”; a primeira, a “Água”, não é
outra coisa senão o aspecto positivo da escuridão, que normalmente deveria
opor-se à luz como o frio se opõe ao
calor; o aspecto positivo da escuridão é, com efeito, sua qualidade de
“sombra”, que protege contra a força ressecante do sol e que produz ou favorece
a umidade; é preciso que o céu se escureça antes de poder dar a chuva, e que
Deus manifesta a Cólera – o trovão – antes de conceder a Graça, cujo símbolo
natural é a chuva. Quanto ao “frio” – “o Vento santificante e purificador que
dá a força” – seu aspecto positivo é a pureza, de modo que poderíamos opor a “Pureza”
do Norte ao “Calor” do Sul, assim como a “Chuva” do Oeste se opõe à “Luz” do
Leste; a relação entre o “Frio” e a “Pureza” é evidente: as coisas inanimadas,
e portatnto “frias” – ou seja, os minerais – não estão sujeitas à corrupção
como os seres animados e “quentes”. A “Luz” do Leste, como dissemos, é o
“Conhecimento”; o “Calor” é a “Vida”e, por conseguinte, o “Amor” e também a
“Bondade”, a “Beleza” e a “Felicidade”.
Antes de prosseguirmos,
devemos responder a uma objeção que pode surgir pelo fato de que os “Quatro
Ventos”, na doutrina sioux, parecem corresponder a uma função bastante
secundária da Divindade, que se divide em quatro aspectos subdivididos cada
qual quatro vezes; agora, fora o fato de que não é o simbolismo mitológico
sioux que nos propusemos estudar aqui em primeiro lugar, mas a metafísica da
Quaternidade que transparece em todas as variações da tradição indígena, a
doutrina sioux reconhece aos quatro princípios, mediante uma notável derrogação
da hierarquia mitológica comum, uma preeminência sobre as demais Divindades, e
isto indica claramente que, no ritual do Calumet, ou melhor na perspectiva
vinculada a ele, os pontos cardeais representam as quatro Manifestações divinas
essenciais e, por conseguinte, também seus Protótipos no Ser. É necessário,
ademais, nunca esquecer que, para outros índios, o simbolismo toma formas muito
diferentes das que possuem os sioux; assim, para não citarmos mais que um
exemplo, entre os arapaho, os quatro princípios estão representados por quatro
“Anciãos” que, emanados do “Sol”, velam pelos habitantes do mundo terrestre, e
aos quais são atribuídos simbolicamente o dia (Sudeste), o verão (Sudoeste), a
noite (Noroeste) e o inverno (Nordeste); por último, convém notar ainda que a
Quaternidade é muitas vezes considerada como se constituísse no fundo uma
“Duodecimidade”, e cada um dos seus elementos é concebido segundo três
aspectos, abstraindo-se aí o eixo vertical Céu-terra que acrescenta à
Quaternidade dois elementos novos, ainda que de outra ordem.
Dito isto, voltemos à
consideração dos quatro Princípios em si mesmos: poderíamos também, sempre
particndo do “Oeste” para o “Norte”, designar os quatro “Lugares Cósmicos”
respectivamente pelos termos: “Umidade”, “Frio”, “Secura”, “Calor”; o aspecto
negativo correlativo da umidade é a escuridão e o aspecto positivo correlativo
da secura é a luz. O “Pássaro do Trovão” (Wakinyan-Tanka), que habita o Oeste e protege
a terra e a vegetação contra a secura e a morte é descrito como lançando
relâmpagos pelos olhos e produzindo o
trovão com suas asas[4];
a analogia com a Revelação do Sinai, acompanhada de “trovões” e “relâmpagos” e
de uma “nuvem espessa”, é tanto mais impressionante na medida em que o
acontecimento bíblico teve lugar num penhasco, e que a mitologia índia estabelece
precisamente um vínculo entre o “Pássaro do Trovão” e o “Penhasco”, como
veremos a seguir. Quanto à assimilação simbólica da Revelação com o Oeste, pode
parecer insólita e paradoxal, mas não devemos perder de vista que os pontos cardeais têm aqui forçosamente
um significado positivo: o Oeste não será, pois, o contrário do Leste, ou seja
a “Escuridão” e a “Ignorância”, mas seu complemento positivo, ou seja a “Chuva”
e a “Graça”. Pode parecer surpreendente, por outro lado, o fato de que a
tradição indígena estabeleça um vínculo simbólico entre o “Vento do Oeste”,
portador do trovão e da chuva, e o “penhasco”, personificação “angélica” ou
“semidivina” de um aspecto cósmico de Wakan-Tanka: não obstante, esta aproximação é plausível, pois o penhasco reune em
si os mesmos aspectos complementares da tormenta: o aspecto terrível de sua
dureza destrutiva é, para os índios, símbolo de destruição – donde as armas de
pedra com as quais estão relacionadas as “pedras de raio” – e o aspecto da
Graça, porque dá nascimento às fontes que, como a chuva, regam a terra[5].
Os “Quatro Ventos” são com
as “Potências produtoras” (no sentido do termo sânscrito Shakti) das “Regiões do Mundo” e são concebidos como dando a volta ao
horizonte e determinando a vida terrestre mediante suas influências
combinadas.O vento é como o “hálito” do mundo terrestre em que vivemos;
representa assim a “respiração” cósmica. O “hálito” é em certo sentido o
veículo da “alma” ou do “espírito”; daí a conexão etimológica destas palavras
em muitas línguas; mas ele é também o veículo ativo da vida, pois é ele que
alimenta e purifica o sangue, suporte passivo e inferior do elemento vital. O
“hálito” é, pois, ao mesmo tempo, a “alma” da “vida”, e é feito assim à imagem
do Verbo divino cujo Hálito criador fez o homem.
Os pontos cardeais estão
associados simbolicamente, como dissemos, a quatro Divindades, designadas de
diversas maneiras e que personificam outros tantos aspectos complementares do
Espírito universal; este os une em si mesmo, como as cores se unem na luz; e
ele “é” Wakan-Tanka no sentido de que se identifica com Deus em
virtude da unicidade da Essência, como a luz identifica-se essencialmente com o
Sol. Segundo a cosmologia dos sioux, estas quatro Divindades – ou
“semi-Divindades” – subdividem-se por sua vez cada qual em quatro entidades
hierarquizadas, que levam os nomes mais diversos, tais como “Sol”, “Lua”,
“Bisonte”, “Alma”, e que indicam outras tantas ramificações ou reflexos do
Espírito no cosmo; estas ramificações não são outra coisa que os anjos
secundários cujas inumeráveis modalidades penetram até os confins do criado.
Os sioux estabelecem uma
relação analógica entre os “Quatro Ventos” e os quatro períodos cíclicos,
simbolizados pelas quatro penas de águia que adornam o “círculo sagrado” utilizado
na “Dança do Sol” e em outras ocasiões; o primeiro período é o da “Pedra”, o
segundo, o do “Arco”, o terceiro, o do “Fogo” e o quarto, o do “Cachimbo”,
sendo que cada um destes símbolos representa o meio espiritual do período
respectivo. Do mesmo modo, existem quatro idades através das quais todas as
coisas criadas têm que passar: a primeira é o Sul, que é amarelo e a fonte de
toda a vida, e esta é a primeira idade num ciclo histórico; a segunda é o
Oeste, que é negro; a terceira é o Norte, que é branco; e a quarta, o Leste,
que é vermelho; a humanidade se acha atualmente na quarta idade, que terminará
num grande desastre. Esta divisão, que atribui a “Idade do Ouro” ao Sul e a
“Idade do Ferro” ao Leste, enquanto as demais doutrinas tradicionais atribuem a
primeira ao Norte e a segunda ao Oeste, pode surpreender à primeira vista, mas
devemos ter em conta aqui duas coisas: primeiramente, no que concerne à “Idade
do Ouro” – o Sathya
Yuga hindu – embora seja correto
atribuí-la ao Norte em razão da situação polar do Paraíso terrestre, não é
menos certo também que, de fato, o polo atual está coberto de gelo e que, de um
ponto de vista “qualitativo”, é o Sul que corresponde efetivamente ao Paraíso
e, portanto, à “Idade do Ouro”, de modo que o simbolismo em questão pode
fundametnar-se no calor e na fertilidade do Sul tanto quanto na situação
hiperbórea do Jardim primordial; em segundo lugar, no que concerne à “Idade do
Ferro” – o Kali Yuga – embora seja
justo atribuí-la, segundo a perspectiva do “Velho Mundo” ao Oeste, já que é ali
que o sol se põe e é ali que teve origem o materialismo moderno que estende
suas trevas à humanidade inteira, não é menos certo que, para os pele-vermelha,
este materialismo destruidor da Natureza veio do Leste; é ali aonde se situa aquilo
que para os orientais é o “escuro Ocidente” e é dali que vieram estes
“espíritos” (washicun) de rostos
pálidos que exterminaram a raça vermelha; mas isto não impede de modo algum que
o Salvador universal, o Messias esperado por todos os povos ao fima da “Idade
do Ferro”, venha igualmente do Leste, de modo que o simbolismo solar desta
direção permanece intacto na teoria sioux dos quatro períodos cíclicos. Nesta
mesma ordem de idéias, a cosmologia dos cheyennes insiste na posição ártica da
sede da Tradição pirmordial: situa o Paraíso terrestre no extremo Norte, numa
ilha surgida das águas primordiais, na qual reinava uma perpétua primavera e
aonde os homens e os animais falavam a mesma língua; este relato descreve a
continuação das atribulações, em particular dos dilúvios, depois dos quais a
raça vermelha – ou melhor seus antepassados primordiais – estabeleceu-se de uma
vez por todas no Sul, por sua vez convertido em região fértil.
Não podemos esquecer de
mencionar aqui que o Calumet comprende, juntamente com seu simbolismo
quaternário, também um simbolismo ternário, que se refere aos três mundos, aos
quais correspondem respctivamente o céu, os pontos cardeais e a terra. Estes
três mundos, ademais, encontram-se também indicados, entre os índios Crow, na
forma de três anéis pintados no mastro central da Dança do Sol, mastro que
significa a Árvore da Vida ou o Eixo do
Mundo, conforme o simbolismo hiperbóreo, e que são interpretados como formando
um ternário em sentido ascendente: “corpo, alma, espírito” ou “grosseiro,
sutil, puro”[6].
*****
As funções essenciais da
Existência e seus dois fundamentos “paterno” e “materno”[7]
– ou “divino” e “existencial” – devem ser lembrados e atualizados sempre pelo
Calumet a fim de que o homem não perca nunca o contato com o Todo, do qual ele
é como que uma partícula; o ritual do Calumet equivale a uma oração e a uma
consagração pois, “como nenhuma coisa boa pode ser feita apenas pelo homem,
quero primeiro fazer uma oferenda e enviar uma voz ao Espírito do Mundo para
que me ajude a ser verídico” (Hehaka Sapa). O Calumet é, pois, pontifex: ele é o instrumento “eucarístico” que une o homem, perseguido que
está pelas mordidas do “finito” ao Infinito, e isto explica a veneração e o
amor que os índios lhe têm.
Isto nos leva a considerar
outro aspecto deste rito no qual aparece a analogia entre a fumaça do tabaco
sagrado (kinni-kinnik) e o incenso: na maioria das tradições, o
incenso é de certo modo a “resposta humana” à Presença divina; a fumaça indica,
por conseguinte, a “presença espiritual” do homem frente à Presença
sobrenatural de Deus[8],
como enuncia este encantamento iroquês: “Saudações! Saudações! Saudações! Tu
que criaste todas as coisas, escutai a nossa voz. Obedecemos agora aos Teus
mandamentos. O que Tu criaste volta para Ti, a fumaça do tabaco sagrado
eleva-se até Ti, para que se veja que nossa palavra é verídica”.
No ritual do Calumet o homem
representa o estado de “individuação”; o espaço – com suas seis direções –
representa o Universal no qual o individual deve reabsorver-se ao
transmutar-se; a fumaça que se perde no espaço e que se identifica com ele,
indica esta transmutação do “endurecido”, “opaco” ou “formal”, em “dissolvido”,
“transparente” ou “informal”; indica, ao mesmo tempo, a irrealidade do “eu”, e
portanto a do mundo, que, espiritualmente identifica-se com o microsocmo
humano. Mas esta reabsorção da fumaça no espaço – que “é Deus” – transcreve
igualmente o mistério da “identidade” em virtude da qual, para falarmos em
termos sufis, “o sábio não foi criado”: o homem não é senão ilusoriamente um
“peso” subtraído ao espaço e isolado nele; na realidade, ele “é” este espaço, e
deve “converter-se naquilo que ele é”, como dizem as Escrituras hindus[9].
O homem, ao absorver com a fumaça sagrada o “perfume da Graça”, e ao exalar-se
com ele até o ilimitado, expande-se sobrenaturalmente no “Espaço divino”, se
podemos nos exprimir assim; mas Deus é também representado pelo fogo que
consome o tabaco: este último é o homem, ou, desde um ponto de vista
macrocósmico, o Universo; o espaço “encarna-se” aqui no fogo do Calumet, como
os pontos cardeais se unem, segundo um outro simbolismo, no fogo central.
*****
Segundo Hehaka Sapa,”tudo o
que o índio faz, ele faz em círculo, e é assim porque o Poder do Universo atua
sempre mediante círculos, e todas as coisas tendem a ser redondas. Nos dias de
antes, quando éramos um povo forte e feliz, recebíamos todo nosso poder do
círculo sagrado da nação e, enquanto o círculo permanecia inteiro, o povo
florescia. A árvore florida era o centro vivo do círculo, e o círculo das
quatro direções a nutria. O Leste dava a paz e a luz, o Sul o calor, o Oeste a
chuva, e o Norte, com seu vento frio e potente, dava a força e a resistência.
Este conhecimento veio-nos do mundo exterior (o Mundo transcendente, o Universo)
com nossa religião. Tudo o que faz o Poder do Universo, ele o faz em forma de
círculo. O céu é circular, e ouvi dizer que a terra é redonda como uma bola, e
também as estrelas são redondas. O vento, em sua máxima força, redemoinha. Os
pássaros fazem seus ninhos em forma de círculo, pois eles têm a mesma religião
que nós... Nossas tendas (tipis) eram circulares como os
ninhos dos pássaros e estavam sempre dispostas em círculo: o centro da nação
era como um ninho feito de muitos ninhos, no qual o Grande Espírito queria que
aninhássemos nossos filhos” (Black Elk Speaks).
Todas as formas estáticas da
existência acham-se, pois, determinadas por um arquétipo “concêntrico”,
material ou mental; centrado em seu ego qualitativo, “totêmico”, quase
impessoal, o índio tende à independência, e daí à indiferença, com respeito ao
mundo exterior; ele rodeia-se de silêncio como se este fosse um círculo mágico
e este silêncio é sagrado porque transmite as influências celestes. O índio
extrai sua força espiritual deste silêncio, cujo suporte natural é a solidão;
sua oração comum é muda: o que ela exige não é um pensamento, mas uma
“consciência do Espírito”, e esta consciência é imediata e informal como a
abóboda celeste.
Se o Grande Espírito atua
sempre “mediante círculos”, de um outro ponto de vista Ele atua também sempre
“mediante quaternidades”, como o indicam as direções espaciais e os ciclos
temporais, e então o círculo se converte em cruz dinâmica ou swastika; por isso o índio, cuja vida se desenrola de certo modo entre o ponto
central e o espaço ilimitado, realiza as coisas estáticas segundo o princípio
circular ou unitivo, e as coisas dinâmicas – as ações – segundo o princípio
quaternário[10],
vale dizer, em conformidade com as quatro virtudes cardeais que são para ele o valor,
a paciência, a genrosidade e a fidelidade. Esta estrutura profunda da vida
índia significa que o homem vermelho não
se propões “fixar-se” nesta terra na qual tudo, segundo a lei de estabilização
e de condensação, e ainda de “petrificação”, ameaça “cristalizar-se”; e isto
explica a aversão do índio às casas, sobretudo as de pedra, e também a ausência
de escrita que, segundo esta perspectiva, “fixaria” e “mataria” o fluxo sagrado
do espírito. A civilização européia, ao contrário, tanto em suas formas dinâmicas
como em suas formas estáticas, é profundamente sedentária e urbana; ela está,
pois, ancorada no espaço e se estende quantitativamente por ele, enquanto que a
civlização indígena tem seu eixo de certa maneira fora do espaço, no centro
principial, não localizado; sua expansividade será por conseguinte
“qualitativa”, no sentido de que não é senão puro movimento, símbolo do
ilimitado, e não delimitação quantitativa, “mercantil” da extensão espacial.
Ademais, convém precisar que o Cristianismo, como outras religiões do Velho
Mundo,, fixa o Celestial no plano terrestre e constrói santuários com a matéria
mais estática, a pedra; a tradição dos pele-vermelha, por sua vez, integra o
terrestre – o “espacial” – no celestial onipresente, e também por isso a terra
deve permanecer intacta, virgem, sagrada, tal como saiu das mãos divinas – pois
somente as coisas puras refletem o Eterno[11].
O índio não é “panteísta”, mas sabe que o mundo está misteriosamente submerso
em Deus.
O que dissemos permitirá
compreender porque a natureza – paisagem, céus, astros, elementos, animais
selvagens – é um suporte necessário da tradição dos pele-vermelha no mesmo
nível que são os templos para as demais religiões; todas as limitações impostas
à natureza por obras artificiais, pesadas, inamovíveis – e impostas ao homem
por sua escravidão em relação a elas – são, pois, sacrílegas e mesmo
“idólatras”, e levam em si mesmas os germes da morte[12].
Resulta deste modo de ver que o destino dos pele-vermelha é trágico no sentido
próprio do termo: é trágica uma situação sem saída que resulta, não de uma
causa fortuita, mas de um choque fatal entre dois princípios. O aplastramento
da raça índia é trágico porque o homem vermelho só podia vencer ou morrer[13];
ele sucumbiu porque representava um espírito incompatível com o mercantilismo
dos “caras pálidas”. Este drama imenso poderia ser definido como a luta, não
apenas entre uma civilização mercantil e materialista e outra cavalheiresca e
espiritualista, mas também entre a civilização urbana – no sentido estritamente
humano e pejorativo deste termo, que implica uma idéia de “artifício”e de
“servilismo”- e o reino da Natureza, considerada como a vestimenta majestosa,
pura, ilimitada, do espírito divino[14].
Agora, a Natureza, da qual o índio se sente como que a encarnação e que é ao
mesmo tempo seu Santuário, acabará por vencer a este mundo material e
sacrílego, pois ela é a Vestimenta, o Hábito, a própria Mão do Grande Espírito.
Frithjof Schuon
PREFÁCIO
Por HEHAKA SAPA
Na grande visão que me
sobreveio na aurora da minha vida, quando havia conhecido apenas nove invernos,
havia algo cuja importância foi-me sendo revelada à medida em que as luas
passavam. Quero falar de nosso Cachimbo sagrado e do que ele significa para
nosso povo.
Os homens brancos, ao menos
os que são cristãos, nos disseram que Deus enviou seu Filho aos homens para
restabelecer a ordem e a paz na terra; e nos disseram que Jesus Cristo foi
crucificado, mas que deve regressar no dia do Juízo final, que será o fim deste
mundo ou ciclo. Eu sei e compreendo que isto é certo; mas saibam os homens
brancos que, também para os pele-vermelha, pela vontade de Wakan-Tanka, o Grande Espírito, um animal se
transformou em bípede para trazer o Cachimbo santo a seu povo; e sabemos também
que esta Mulher Bisonte Branco que trouxe nosso Cachimbo aparecerá de novo no
final deste mundo, acontecimento que nós, os índios, sabemos que já não está
muito distante.
A maioria das pessoas chama
nosso Calumet de “Cachimbo da paz”, mas em nossos dias já não existe paz sobre
a terra, nem sequer entre vizinhos, e sei que isto é assim há muito tempo.
Fala-se muito da paz, mas são apenas discursos. É possível, e esta é minha
oração, que por nosso Cachimbo sagrado, e graças a este livro em que explicarei
o que ele é realmente, a paz chegue aos que são capazes de entender; esta
compreensão deve vir do coração e não apenas da cabeça. Estes se darão conta de
que nós, os índios, conhecemos o único Deus verdadeiro e lhe rogamos
constantemente.
Eu ditei este livro sem
outro desejo que o de ajudar meu povo a dar-se conta da grandeza e verdade de
nossa própria tradição, e também para facilitar a vinda da paz à terra, não
apenas entre os homens, mas neles e com toda a Criação.
Devemos compreender que
todas as coisas são obra do Grande Espírito. Devemos saber que Ele está em
todas as coisas: nas árvores, nas ervas, nos rios, nas montanhas, e em todos os
quadrúpedes e seres alados; e, o que é mais importatne, devemos compreender que
Ele está também além de todas estas coisas e de todos estes seres. Quando
tenhamos compreendido isto com toda a profundidade em nossos corações,
temeremos, amaremos e conheceremos o Grande Espírito; então nos esforçaremos
para ser, atuar e viver como Ele quer.
Hehaka Sapa
(Alce Negro)
Manderson, S.D., dezembro de 1947
I
A DESCIDA
DO CACHIMBO SAGRADO
Muitos invernos se passaram desde que isto aconteceu: dois lakota[15]
haviam saído para caçar e estavam sobre uma colina; então viram ao longe, no
mesmo instante em que saía o sol, algo que avançava em sua direção de um modo
estranho e maravilhoso. Quando a coisa se aproximou, viram que era uma mulher
muito bonita, vestida com peles brancas de gamo, que levava às costas uma bolsa
com franjas. Então um dos homens teve pensamentos impuros e os comunicou ao
amigo; mas este lhe disse que não tivesse estes pensamentos, pois seguramente
aquela era uma mulher wakan, uma
mulher sagrada. Logo a mulher estava perto deles; e, depois de deixar sua
bolsa, pediu ao que tinha intenções impuras que se aproximasse. Quando o jovem
acercou-se da mulher misteriosa, uma grande nuvem envolveu os dois, e quando,
pouco depois, dissipou-se, a mulher permanecia em pé e no solo jazia o homem
mau reduzido à condição de um esqueleto, e umas serpentes o devoravam[16].
Então a mulher falou ao outro, o homem bom:
“Considera isto que vês! Vou ao encontro de teu povo e desejo falar a
teu chefe Hehloghecha Najin, Chifre
Ôco Em Pé. Regressa até ele e diga-lhe que prepare uma tenda espaçosa na qual
reunirá todo seu povo e preparará minha chegada. Quero dizer-vos algo muito
importante."
O jovem correu em seguida até a tenda de seu chefe e
narrou-lhe o acontecido, que esta mulher misteriosa vinha fazer-lhe uma visita
e que era preciso preparar sua recepção.
O chefe Chifre Ôco Em Pé
dispunha naquela época de várias tendas desmontadas, e mandou fazer com elas
uma grande, tal como havia pedido a mulher[17].
Logo enviou um arauto para avisar as pessoas de que deveriam colocar suas
melhores vestes e reunirem-se sem tardar na tenda. Todos estavam muito
intrigados enquanto aguardavam na vasta tenda a chegada da mulher celeste, e
todos se perguntavam o que poderia ela querer confiar-lhes.
Logo os jovens que vigiavam a chegada da desconhecida anunciaram que a
víam longe, e que ela se aproximava deles com graça e dignidade; e de repente a
mulher misteriosa entrou na tenda e deu a volta no sentido do movimento do sol[18],
detendo-se diante de Chifre Ôco Em Pé[19].
Tomou da bolsa às suas costas e, segurando-a com as duas mãos diante do chefe,
disse-lhe:
“Contemplai isto e amai-o para sempre! É uma coisa muito sagrada – lilla wakan – e deveis considerá-la como
tal. Nunca um homem impuro estará autorizado a vê-la, pois neste pacote está o
Cachimbo sagrado. Com ele, nos invernos futuros, enviareis vossa voz a Wakan-Tanka, vosso Avô e Pai.”[20]
Depois de falar assim, a mulher tirou da bolsa um Calumet, assim como
uma pedrinha redonda que depositou no chão. Dirigindo o cachimbo pelo cano, ao
céu, disse:
“Com este cachimbo de mistério caminhareis pela Terra; pois a Terra é
vossa Avó e Mãe[21] e
é sagrada. Cada passo dado sobre ela deveria ser como uma oração. O fornilho
deste Cachimbo é de pedra vermelha: é a Terra. Este bisonte jovem que está
gravado na pedra e que olha para o centro, representa os quadrúpedes[22]
que vivem sobre vossa Mãe. O cano do Cachimbo é de madeira, e isto representa
tudo o que cresce sobre a terra. E estas doze plumas que pendem daonde o cano
penetra no fornilho são de Wambali
Galeshka, a Águia Pintada[23],
e representam a Águia e todos os seres alados do ar. Todos esses povos, todas
as coisas do Universo, estão vinculadas a ti, que fumas o Cachimbo; todos
enviam suas vozes a Wakan-Tanka.
Quando orardes com este Cachimbo, orai por todas as coisas e com elas”
A mulher celeste tocou então com o extremo do Cachimbo na pedra redonda
colocada no chão e disse:
“Com este Cachimbo estareis unidos a todos os vossos antepassados:
vosso Avô e Pai, vossa Avó e Mãe. Vosso Pai Wakan-Tanka
também vos presenteia com este seixo redondo feito da mesma pedra vermelha do
fornilho do Cachimbo. É a Terra, vossa Avó e Mãe, e é o lugar aonde vivereis e
crescereis. Esta Terra que Ele nos deu é vermelha, e os homens que vivem nela
são vermelos; e o Grande Espírito também vos deu um dia vermelho e um caminho
vermelho[24].
São veneráveis; não os esqueçais. Cada aurora que chega é um acontecimento
sagrado, e todos os dias são sagrados, pois a luz vem de vosso Pai Wakan-Tanka; e deveis lembrar-vos sempre
de que os homens e todos os demais seres nesta Terra são sagrados e devem ser
tratados como tais.[25]”
“A partir de agora o Cachimbo de mistério estará nesta terra vermelha,
e os homens tomarão do Cachimbo e enviarão suas vozes ao Grande Espírito. Estes
sete círculos[26]
que vêdes na pedra significam muitas coisas, pois representam os sete ritos
segundo os quais se utilizará o Cachimbo. O primeiro grande círculo representa
o primeiro rito que vos irei transmitir, e os outros seis círculos representam
os ritos que vos serão revelados diretamente, cada qual a seu tempo[27].
Chifre Ôco Em Pé, sê bom com respeito a estes dons e para com teu povo, porque
são sagrados. Com este Cachimbo, os homens prosperarão e todo bem chegará a
eles. Lá do alto, o Grande Espírito vos deu este Cachimbo a fim de que, graças
a ele, possais obter o conhecimento. Sejam sempre agradecidos por este dom!
Agora, antes que me vá, desejo dar-vos instrução sobre o primeiro rito com o
qual teu povo deverá usar o Cachimbo.”
“Que seja sagrado para vós o
dia em que um dos vossos morra. Devereis então guardar sua alma como vou
explicar, e assim ganhareis muito poder, pois cada alma fortalecerá vossa
abnegação e vosso amor ao próximo[28].
Enquanto um dos vossos permanecer com sua alma junto ao povo, estareis em
condições de enviar vossa voz ao Grande Espírito através dela.[29]”
Que seja igualmente sagrado o dia em que uma alma se liberte e regresse
à sua morada, que é Wakan-Tanka; pois
naquele dia quatro mulheres serão santificadas e com o tempo trarão fihos que
caminharão pelo caminho da vida segundo o mistério, dando exemplo ao povo.
Olhai-me, pois sou eu que eles levaram nos lábios, e graças a isto se
converterão em santos.”
“O homem que guarda a alma de uma pessoa dever ser virtuoso e puro, e
deve servir-se do Cachimbo para que todos, com a alma, enviem junto suas vozes
ao Grande Espírito. O fruto de vossa Mãe Terra, e o fruto de tudo aquilo que
ela traz, serão assim benditos, e vosso povo caminhará então segundo o mistério
pelo caminho da vida. Não esqueçais que o Grande Espírito vos deu sete dias
para que Lhe envieis vossa voz. Enquanto lembrardes disto, vivereis. O resto
vos será revelado pelo Grande Espírito.
Então a Mulher celeste adiantou-se para sair da tenda, mas voltando-se
novamente para Chifre Ôco Em Pé, disse:
“Olhai este Cachimbo! Lembrai-vos sempre de quão venerável é, e
tratai-o consequentemente, pois ele vos levará até a vossa meta. Lembrai-vos!
Em mim há quatro idades[30].
Agora vou-me, mas velarei por vosso povo durante cada uma das quatro idades, e
ao final regressarei”.
Depois de dar a volta à tenda seguindo o movimento do sol, a mulher
misteriosa saiu; mas, a uma curta distância, voltou-se para o povo e sentou-se.
Quando se levantou, os homens viram com surpresa que havia se transformado num
jovem bisonte vermelho e castanho. Então este jovem bisonte, depois de afastar-se
um pouco mais, deitou-se e se espojou, e olhou para o povo; e quando se
levantou de novo, era um bisonte branco. Afastou-se e espojou-se no chão, e converteu-se num bisonte negro, que
continuou a afastar-se, inclinou-se diante de cada uma das quatro Regiões do
Universo, e desapareceu atrás da colina.
II
A CUSTÓDIA DA ALMA
Com este rito purificamos as almas[31]
dos nossos mortos e nosso amor pelo próximo aumenta. As quatro mulheres puras
que comem a parte sagrada do bisonte[32],
como descreverei, devem lembrar-se sempre que seus filhos serão santificados e
que, por conseguinte, deverão ser criados conforme ao mistério. A mãe deve
sacrificar tudo pelos seus filhos e desenvolver nela e neles um grande amor por
Wakan-Tanka, pois com o tempo estas
crianças se converterão em homens de mistério e em guias da nação, e terão o
poder de converter em santos aos demais. No princípio não guardávamos mais que
as almas de nossos chefes, mas depois temos guardado as de quase todos os
homens virtuosos.
Custodiando uma alma segundo os rituais prescritos, tal como os
recebemos de Ptesan-Win, a Mulher
Bisonte Branco, esta é purificada a fim de que ela e o Espírito se convertam em
um e para que ela possa regressar ao lugar aonde nasceu – Wakan-Tanka – e já não tenha nenhuma necessidade de errar pela
terra, como acontece com os homens perversos; ademais, a custódia da alma nos
ajuda a recordarmos nossa mortalidade, assim como o Grande Espírito que está
além da morte.
Quando se guarda uma alma, muitos homens acodem à tenda desta para
rezar; e no dia em que a alma é liberada todos se reunem e enviam suas vozes ao
Grande Espírito por intermédio desta alma que vai viajar por seu caminho
sagrado. Mas antes vou explicar como nosso povo realizou este rito na sua
origem.
Um bisneto de Chifre Ôco Em Pé tinha um filho a quem
ele e sua mulher queriam muito bem; mas chegou um dia em que esta criança
morreu, o que entristeceu grandemente a seu pai, que foi confiar sua dor ao
guardião do Calumet, que naquela época era Grande Chifre Ôco.
“Fomos instruídos pela Mulher Bisonte no uso do Cachimbo venerável e na
custódia de uma pessoa falecida. Agora a perda de meu bem-amado filho me causa
extrema tristeza, e desejo guardar sua alma comonos ensinaram; e, posto que és
tu o guardião do santo Calumet, peço-te
que me instruas.”
“How! Hechetu welo! Está bem!”, disse Grande Chifre Ôco; e os dois
acudiram ao local aonde repousava a criança e onde estavam as mulheres
chorando. Quando chegaram, cessaram imediatamente as manifestações; Grande
Chifre Ôco aproximou-se da criança e disse:
“Este menino parece morto, mas não está realmente, pois guardaremos sua
alma conosco, e graças a ela nossos filhos e os filhos de nossos filhos se
converterão em santos. Vamos agora proceder como a Mulher Bisonte e o Calumet
nos ensinaram. É desejo de Wakan-Tanka
que assim se faça.” E, tomando um cacho de cabelos do menino, Grande Chifre Ôco
rogou:
“Ó Wakan-Tanka, olhai-nos! É
a primeira vez que fazemos vossa vontade desta maneira, como Vós nos ensinasteis
através da Mulher Bisonte. Guardaremos a alma deste menino para que nossa Mãe
terra leve seus frutos, e para que nossos filhos caminhem pelo caminho da vida
conforme ao mistério.”
Grande Chifre Ôco começou então a purificar o cacho de cabelos do
menino; trouxeram uma brasa e colocaram sobbre ela um pouco de erva aromática[33].
“Ó Wakan-Tanka! – rogou de
novo Grande Chifre Ôco – esta fumaça de erva aromática vai subir até Vós e
estender-se através do Universo; seu perfume será percebido pelos seres alados,
os quadrúpedes e os bípedes, pois comprendemos que somos todos parentes; que
todos os nossos irmãos animais se façam mansos e não nos temam mais!”
Grande Chifre Ôco tomou o cacho de cabelos e, sustentando-o sobre a
fumaça, dirigiu-o ao Céu, à Terra e às quatro Direções do Universo; e disse à
alma que estava nos cabelos:
“Vê, ó alma! O lugar desta terra aonde morares será um lugar sagrado;
este centro fará com que a nação seja sagrada como tu. Nossos filhos caminharão
desde hoje pelo caminho da vida com o coração puro e o passo firme.”
Depois de purificar o cacho com a fumaça, Grande Chifre Ôco voltou-se
para a mãe e o pai do menino e disse:
“Obteremos um grande saber graças a esta alma que acaba de ser
purificada. Sejam bons para com ela e amem-na, pois ela foi santificada.
Cumprimos o desejo do Grande Espírito tal como nos ensinou a Mulher celeste;
não se recordam de como, ao deixar-nos, ela se voltou a segunda vez? Este gesto
representava a custódia da alma que vamos levar a cabo. Que isto nos ajude a
recordar que todos os frutos dos seres alados, dos bípedes e dos quadrúpedes
são na realidade dons do Grande Espírito. Todos são sagrados e devem ser
tratados como tais.”
O cacho foi envolto numa pele de búfalo e este precioso saquinho foi
colocado num lugar especial na tenda. Então Grande Chifre Ôco tomou o Calumet
e, depois de colocá-lo na fumaça, encheu-o com cuidado, segundo o rito; e,
dirigindo o cano ao céu, rogou:
“Ó Wakan-Tanka, sois a
Verdade. Os homens que aproximarem seus lábios deste Calumet se converterão na
Verdade; não haverá neles nada impuro. Ajuda-nos a caminhar sem tropeços pelo
caminho da vida, com nossos pensamentos e nossos corações constantemente
fixados em Vós!”
Então acendeu e fumou o Calumet, e deu a volta ao círculo no sentido do
movimento do sol. Nele, o mundo inteiro foi oferecido ao Grande Espírito.
Quando o Calumet voltou a Grande Chifre Ôco, este esfregou-o com a erva
aromática pelos quatro lados – Oeste, Norte, Leste, Sul – e fim de purificá-lo,
por medo de que tivesse sido tocado por alguém indigno; e voltando-se para a
assistência, disse a seguir:
“Parentes meus, este Calumet é um santuário. Todos sabemos que não pode
mentir. Nenhum homem que tenha qualquer mentira em seu coração pode levá-lo à
boca. Ademais, ó parentes meus, Wakan-Tanka
nos fez conhecer a sua vontade aqui na terra, e devemos sempre cumprir o que
Ele deseja, se quisermos seguir pelo caminho sagrado. É a primeira vez que
realizamos este rito da custódia da alma, e será de grande proveito para nossos
filhos e para os filhos de nossos filhos. Ó parentes meus, ó Avó e Terra Mãe,
somos de terra e lhes pertencemos. Ó Terra Mãe de quem recebemos alimento, Tu
velas pelo nosso crescimento como fazem nossas próprias mães, Cada passo que
dermos sobre Ti deve ser conforme ao mistério; cada passo deve ser como uma
oração. Lembrem-se disto, irmãos e irmãs: o poder desta alma pura os
acompanhará em seus caminhos, pois também ela é fruto da Terra Mãe; é um germe
que, plantado no seu centro, crecerá com o tempo nos seus corações e fará com
que gerações caminhem conforme ao mistério.”
Grande Chifre Ôco levantou então a mão[34]
e enviou sua voz ao Grande Espírito:
“Ó Pai e Avô Wakan-Tanka,
sois a fonte e o fim de todas as coisas. Meu Pai Wakan-Tanka, sois o Um que vigia e mantém a tudo o q eu vive. Ó Avó
minha, Tu és a fonte terrestre de toda a existência. Mãe Terra, os frutos que
levas são a fonte de vida dos povos da terra. Tu velas sem cessar por teus
frutos, como uma mãe. Que os passos que damos sobre Ti durante a vida sejam
sagrados e sem desfalecimento!”
“Ajudai-nos, ó Wakan-Tanka, a
caminhar pelo caminho vermelho com passo firme. Que nós, que somos a vossa
nação, possamos estar de pé diante de Vós de um modo que vos seja agradável!
Daí-nos a força que vem da compreensão dos vossos Poderes! Porque nos fizesteis
conhecer vossa vontade, queremos caminhar santamente pelo caminho da vida,
levando em nossos corações o amor por Vós e o conhecimento de Vós. Por isso, e
por todas as coisas, vos damos graças.”
Então envolveram o corpo do menino num saco, e os homens o levaram a um
lugar elevado e distante do acampamento; depositaram-no num andaime elvantado
em uma árvore[35].
Quando regressaram, Grande Chifre Ôco foi à tenda com o pai do menino
para ensinar-lhe como devia preparar-se para o grande dever que iria cumprir e
que o santificaria.
“Guardas agora a alma do teu filho – disse –. Teu filho não está morto;
está contigo. Desde agora deverás viver segundo o mistério, pois teu filho
estará nesta tenda até que sua alma seja liberada. Lembra-te que os costumes
que adotares neste momento jamais irás abandonar. Assegura-te de que nenhuma
pessoa má entre na tenda aonde guardas a alma, e de que aqui não hajam
discussões nem disputas; a paz deverá reinar sempre na tua tenda. Todas essas
coisas tem influência na alma que aqui está se purificando.”
“Tuas mãos estão consagradas: trata-as como tais! E teus olhos também
estão; quando olhares teus parentes e todas as coisas, olha-os com os olhos do
espírito[36].
Tua boca também está consagrada: que cada palavra que digas reflita este estado
de graça em que viverás a partir de agora. Muitas vezes levantarás a cabeça
para olhar o céu. Cada vez que comeres um fruto da Mãe Terra, alimentarás
também teu filho. Se fizeres isto e tudo o que te ensinei, o Grande Espírito será
misericordioso contigo. Dia e noite, teu filho estará conntigo; vela pela sua
alma todo o tempo, pois assim te lembrarás sempre do Grande Espírito. A partir
deste dia estás santificado; e assim como te instruí, tu instruirás a outros. O
Calumet misterioso seguirá seu caminho durante muito tempo, até o fim; o mesmo
sucederá com a alma do teu filho. É assim, certamente! Hechetu welo!”
*********
Antes de explicar como é liberada a alma, é bom que eu fale de algumas
obrigações que o guardião da alma deve conhecer e cumprir.
Quem custodia uma alma não deve combater nunca, nem sequer manejar um
machado para nenhuma finalidade. Rezar todo o tempo, ser um exemplo em todas as
coisas, tal deve ser sua conduta. O povo deve amar e honrar este santo homem, e
levar-lhe sempre alimentos e presentes; por sua vez, o guardião da alma deverá
oferecer com muita frequência o Calumet ao Grande Espírito, para o bem de
todos.
Quando um grupo de guerreiros vai caçar[37],
o santo guardião da alma deve acompanhá-los; mas enquanto os demais caçam, ele
deve permanecer com o Calumet e enviar sua voz aos Poderes do alto para que a
caça seja boa, e para o bem de toda a tribo. Se um bisonte fêmea é morto na sua
proximidade, o animal lhe pertence, e ele deve sentar-se ao seu lado. Deve encher
seu Cachimbo, oferecendo primeiro um pouco de kinnikinnik[38]
aos Poderes alados do Oeste, do Norte, do Leste e do Sul; depois, deve levantar
um último naco de tabaco para o céu como oferenda ao Grande Espírito. Uma vez
que o Cachimbo tenha sido carregado deste modo, deve dirigir o cano aos olhos
do bisonte[39] e
rezar assim:
“Ó Wakan-Tanka, Tu nos
ensinaste tua vontade por meio de um quadrúpede para que teu povo possa
caminhar pelo caminho sagrado, e para que nossos filhos e os filhos de nossos
filhos sejam beneficiados. Tu, Tatanka,
tens quatro idades; e quando te voltastes para nós pela última vez vimos que Tu
és o fruto de nossa Mãe Terra que nos faz viver. Esta é a razão pela qual serás
o primeiro a ser colocado no centro do círculo de nossa nação, Tu que fortaleces
nossos corpos e também nossos espíritos quando te tratamos segundo a regra
celeste. Geraças a Ti, que nos revelou a vontade do Grande Espírito, existe
agora uma alma santa no meio do círculo. Tu estarás ali com ela, e dali
dispensarás a felicidade ao teu povo. Vê agora este centro!”.
Alguns homens instruídos pelo guardião da alma despedaçam então o
bisonte assim consagrado, enquanto rponunciam orações apropriadas conforme a
parte da carne que cortam. A dos quartos dianteiros representa os bípedes, mas
antes de tudo representa a mulher celeste que trouxe o Calumet; esta carne é,
pois, particularmente sagrada – lilla
wakan – e não pode ser manipulada sem veneração. O guardião da alma não
participa do despedaçamento, já que o contato com o machado e com o sangue lhe
é proibido; mas ele pode levar a carne ao acampamento, sobre o seu cavalo,
assim como o couro que é igualmente sagrado e que está destinado a um uso
especial[40].
Sua chegada ao acompamento é anunciada por um arauto, e a carne é em seguida
leva à tenda do guardião da alma. Neste momento um dos ocupantes da tenda se
dirige à alma nestes termos:
“Neto, o alimento escolhido permanecerá no centro desta tenda, que é
tua morada. Será muito proveitoso para a nação. Hechetu welo!”
Na tenda aonde reside a alma deve estar permanentemente uma mulher,
escolhida para cuidar do saquinho misterioso; a primeira a quem se encomendou
este piedoso dever foi Mulher Dia Vermelho. Esta santa pessoa está encarregada
de secar ao sol a carne sagrada com a qual se faz a wasna, que é carne seca triturada junto com cerejas selvagens e
misturada com medula de bisonte. Este alimento ritual é depositado numa caixa
de pele de bisonte pintada de modo especial; ela é conservada até o dia em que
a alma for liberada.
Nos dias favoráveis, estas relíquias são levadas ao esterior e
suspensas numa trípode voltada para o Sul[41];
as pessoas acodem então em grande número para trazer oferendas e para orar, o
que é muito meritório. Suas oferendas também são colocadas num cofre de couro
pintado de modo especial, para serem mais tarde distribuidos aos pobres.
Depois de ser curtida segundo os ritos, a pele do bisonte é pintada, e
a seguir é purificada novamente na fumaça da erva aromática. Então o guardião
da alma a estende às quatro Partes do Universo, dizendo:
“Ó alma, meu neto, mentém-te firmemente sobre esta Terra e olha ao teu
redor; olha para o Céu, para as quatro Direções do Universo e para nossa Mãe
Terra! E Tu, ó bisonte que estás realmente presente nesta pele[42],
tu viestes a nós para nosso maior bem; agora vais te unir a esta alma. Os dois
estareis no centro do círculo da nação e representareis a unidade do povo. Ao
depositar esta pele sobbre ti, ó alma, coloco-a sobre toda a tribo como se esta
não formasse mais do que uma só alma.”
Uma vez que o saquinho de mistério foi pendurado na trípode diante da
tenda, a pele do bisonte é colocada sobre ela com o pelo para fora; na ponta da
trípode deve ser colocado um cocar de guerra feito com as plumas de Wambali Galeshka, a Águia Pintada.
Os ajudantes estão autorizados a manipular estes objetos; mas só o
guardião da alma pode tocar o saquinho. Ele o carrega sempre sobre o coração,
sob o braço esquerdo, pois este braço está próximo ao coração; e cada vez que
ele leva este saquinho até a tenda, oferece-o primeiro ao Céu, depois à Terra e
as quatro Direções do Universo.
Antes que os ritos que liberam a alma possam ser levados a cabo, devem
ser reunidas muitas coisas, o que pode demorar vários anos; mas a duração
normal da custódia da alma é de um ano. Se o guardião morre antes de terminar o
prazo, é a mulher que guarda a alma, assim como a alma de seu esposo; e se a
mulher morre, os ajudantes são encarregados de guardar estas três almas; sua
função implica então uma
responsabilidade e uma dignidade ainda maiores.
*********
Quando a alma vai ser libertada, todos se reunem, pois todos participal
deste rito misterioso. Com antecedência, todos os homens estiveram caçando
bisontes, e uma vez que vários deles tenham sido abatidos, quebram-se e
fervem-se os ossos; desta mescla de gordura e medula se faz o wasna; as mulheres secam o melhor pedaço
de carne, que leva o nome de papa..
Todos estes preparativos têm um caráter ritual.
Depois de se consultar com os demais homens santos da tribo, o guardião
da alma indica o dia conveniente para o rito, e quando por fim este dia chega,
os ajudantes constróem com várias tendas uma grande tenda ritual e cobrem o
solo com sálvia sagrada.
O ajudante do guardião da alma toma então o Cachimbo e, elevando-o ao
Céu, exclama:
“Vê, ó Wakan-Tanka! Agora
vamos cumprir a Tua vontade. Com todos os seres do Universo Te oferecemos este
Calumet!”
Toma um punhado de tabaco ritual, kinnikinnik
e, segurando-o voltado para o Oeste ao mesmo tempo que o cano do Cachimbo,
exclama:
“Com este tabaco consagrado Te colocamos, ó Poder alado do Oeste, neste
Calumet. Vamos enviar nossas vozes ao Grande Espírito e pedimos tua ajuda.”
“Este dia é sagrado, pois uma alma será liberada. Em todo o Universo
haverá felicidade e alegria. Ó tu, Poder celestial de onde se põe o sol,
fazemos uma grande coisa ao te colocar neste Calumet. Daí-nos, para que
realizemos nosso rito, um dos dias sagrados vermelho e azul[43]
que tu controlas!”
O Poder do Oeste, misteriosamente presente agora no tabaco, é assim
introduzido no Cachimbo; a seguir o ajudante, levantando para o Norte mais um
punhado de kinnikinnik, faz esta
oração:
“Ó Tu, Ser do Trovão, aonde Wazia
tem sua tenda, Tu que vens com os ventos purificadores e que conservas o vigor
dos homens, ó Águia negra do Norte, tuas asas não se cansam nunca! Também para
Ti existe lugar neste Calumet que oferecemos ao Grande Espírito. Ajudai-nos e
daí-nos um dos teus dias sagrados!”
Sustentando então outro punhado de kinnikinnik
para o Leste, o ajudante continua sua ladainha:
“Ó Tu, ser sagrado do lugar de
onde nasce o sol, que controlas o conhecimento! A Ti pertence o caminho do sol
nascente que traz a luz ao mundo. Teu nome é Huntka: Tu possuis a sabedoria e tuas asas são largas. Também pata
Ti existe lugar no Calumet: ajudai-nos a enviar nossa voz ao Grande Espírito!
Daí-nos um dos teus dias sagrados!”
Assim o Poder do Leste é introduzido no Cachimbo; logo o ajudante
levanta um pouco de kinnikinnik para
o Sul, com esta oração:
“Ó Tu que guardas o caminho que leva ao lugar para onde nos voltamos
sempre, e pelo qual caminham nossas gerações, nós Te colocamos neste Cachimbo
de mistério! Tu controlas nossa vida e as vidas de todos os povos do Universo.
Tudo quanto se move e tudo quanto existe enviará uma voz ao Grande Espírito.
Temos um lugar para Ti no Calumet; ajudai-nos a enviar nossa voz e dai-nos um
dos teus dias benéficos! É o que Te pedimos, ó Cisne branco do lugar para onde
sempre nos voltamos!”
Em seguida, o ajudante dirige o cano do Calumet e um pouco de kinnikinnik para a Terra:
“Ó Tu, Terra sagrada de onde saímos, Tu és humilde, ainda que alimentes
todas as coisas; sabemos que és sagrada e que somos teus parentes. Avó e Mãe
Terra fecunda, existe um lugar para Ti no Calumet. Ó Mãe, que tua nação avance
pelo caminho da vida, contra os ventos violentos! Que caminhemos sobre Ti com
firmeza! Que nossos passos não vacilem jamais! Nós e tudo o que se move sobre
Ti enviamos nossas vozes ao Grande Espírito! Ajudai-nos! Todos juntos gritamos
em uníssono: ajudai-nos!”
Quando o Cachimbo está cheio deste modo, com todos os Poderes e tudo o
que contém o Universo[44],
o ajudante o entrega ao guardião da alma quem, entre lamentos, segue para a
tenda do guardião do santo Cachimbo. Deposita o Calumet, dirigindo o cano para
o Sul, nas mãos do guardião:
“Hi ho! Hi ho! Te dou as graças – diz o santo varão ao receber o Cachimbo
–. Este Calumet que me trazes é na verdade tão sagrado quanto o Calumet
original que recebemos da Mulher Bisonte Branco. Em verdade, para aquele que
compreende, eles são realmente o mesmo. Mas o que acabas de me entregar é
particularmente sagrado pois, tal como o vejo, contém agora todo o Universo.
Que desejais?”
“Desejamos que fumes este cachimbo e que assim dirijas os ritos
destinados a libertar a alma de meu filho pequeno. Desejamos que tragas o
Cachimbo original que tens sob teus cuidados.”
“How, hechetu welo! –
responde o homem santo – virei.”
Ele oferece então o Cachimbo ao Céu, à Terra e às quatro Direções e
fume. Depois disto ele recolhe piedosamente as cinzas, porque elas também estão
santificadas.
Em seguida os dois homens vão à tenda que está sendo preparada para o
grande ritual. Nela, dão a volta no sentido do movimento do sol e sentam-se no
Oeste, na direção oposta à porta. A esposa do guardião da alma regressa, entre
lamentos, à sua própria tenda, de onde traz o saquinho misterioso e, detendo-se
diante do guardião do Calumet, deposita a relíquia em suas mãos estendidas.
“Graças te sejam dadas”, diz o santo varão; então ele se dirige nestes termos à
alma guardada no saquinho:
“Ó alma, estavas com teu povo, mas logo partirás. Este dia é teu dia, e
é sagrado. Hoje, teu pai Wakan-Tanka
se inclina para ti para ver-te; todo teu povo veio para estar contigo. Todos os
teus parentes te amam; eles cuidaram muito de ti. Tu e a santa Mulher das
quatro idades que nos trouxe o Calumet estais juntos agora nesta tenda; esta
pele de bisonte que representa a mulher celeste e que te cobria, cobrirá a todo
o teu povo! O Cachimbo que ela nos trouxe fez feliz a toda a tribo. Vê! Este é
o dia sagrado! Hechetu welo!”
No solo é traçado um círculo perfeito que representa um leito de
bisonte e no qual é depositado o saquinho de mistério. Com a terra que foi
tirada deste lugar forma-se outro círculo no qual se traça uma cruz de Oeste a
Leste e de Norte a Sul. O Calumet é posto sobre a cruz, com o cano dirigido
para o Oeste e o fornilho para o Leste. O saquinho misterioso é posto então ao
lado do Calumet, na extremidade do bom caminho vermelho, pois este é o lugar
para onde a alma logo irá viajar.
Um dos ajudantes aproxima-se do fogo que está no centro da tenda[45]
e com um bastão em forma de forquilha retira dele uma brasa que é colocada
diante do guardião do Cachimbo. Este toma o Cachimbo com a mão esquerda, toma
um pouco da erva aromática com a direita, dirige-a ao Céu e abaixa-a lentamente
até o braseiro, detendo-se quatro vezes e orando deste modo:
“Ó Avô Wakan-Tanka, neste dia
sagrado que é Teu, enviamos-te esta fragrância que subirá até o céu. Nesta erva
está a terra, a grande ilha; nela estão minha Avó, minha Mãe e todos os povos
quadrúpedes, alados e bípedes, que marcham todos segundo o mistério. O perfume
desta erva se estenderá a todo o Universo. Ó Wakan-Tanka, sê misericordioso com todos!”
Então o fornilho do Cachimbo é sustentado sobre a fumaça; este passa
através do Cachimbo e é dirigido para o Céu. Deste modo o Grande Espírito é o
primeiro a fumar; mediante este ato ritual, o Calumet é purificado. Enquantoo
faz outras coisas, o guardião reza nestes termos:
“Ó Wakan-Tanka, vê este
cachimbo! A fumaça desta erva deve cobrir todas as coisas da Terra e chegar até
o céu. Que o caminho do teu povo seja como esta fumaça! Nós te oferecemos este
Cachimbo, e agora coloco no seu fornilho o kinnikinnik.
Tu nos ensinaste que o fornilho redondo deste cachimbo é o verdadeiro centro do
Universo e o coração do homem. Ó Wakan-Tanka,
inclina-te hoje para nos olhar; vê teu Calumet com o qual vamos enviar uma voz
junto com os povos alados, os quadrúpedes e todos os frutos de nossa Mãe Terra.
Tudo o que fizestes une-se a nós para enviar esta voz.”
Ao encher o Calumet, o santo guardião faz as oferendas rituais de
tabaco às seis Direções, com as seguintes orações:
“Ó Tu, Poder alado de onde se põe o sol. Tu és sagrado!
Contigo e por tua mediação enviamos uma voz ao Grande Espírito antes de liberar
esta alma. Existe um lugar para Ti neste Cachimbo. Ajudai-nos. Dá a teu povo
teus dias vermelho e azul para que possa caminhar pelo caminho da vida segundo
o mistério.”
“Ó Poder alado do lugar aonde vive Wazia,
purificador da terra, dos homens e de tudo o que é impuro, com a alma de um
homem vamos enviar uma voz ao Grande Espírito por teu intermédio. Existe um
lugar para Ti no Calumet; ajudai-nos, pois, a enviar esta voz! Dá-nos os dias
sagrados que tu possuis!”
“Ó Tu, ser alado do lugar de onde vem o sol; Tu que tens grandes asas e
que controlas o conhecimento, luz do Universo, vamos enviar uma voz ao Grande
Espírito com esta alma que permaneceu junto so povo. Tu também possuis os dois
grandes dias vermelho e azul, dá-nos e ajudai-nos a enviar uma voz!”
“Ó Tu, Maghaska, Cisne Branco
do lugar para o qual nos voltamos sempre. Tu controlas o caminho vermelho que
conduz a onde Wazia tem sua tenda. Tu
guias a todos os povos quadrúpedes e bípedes que viajam neste caminho de
mistério. Vamos liberar uma alma que partirá por teu caminho; mediante esta
alma enviamos uma voz ao Grande Espírito. Ajudai-nos a enviar esta voz e dá-nos
teus dois dias sagrados!”
“Ó Águia Pintada, que estás próxima do Céu, próxima ao Grande Espírito,
tuas asas são poderosas! És Tu quem vela sobre o círculo da nação e sobre tudo
o que está contido neste círculo. Que todos os povos sejam felizes e recebam
muitas bênçãos! Vamos liberar uma alma que parte para uma longa viagem, a fim
de que os passos das gerações futuras sejam santificados. Existe um lugar para
Ti no Calumet! Ajudai-nos a enviar nossa voz até o Grande Espírito e dá-nos os
dias sagrados vermelho e azul que Tu possuis!”
“Ó Wakan-Tanka, vamos
oferecer-te este cachimbo. Inclina tua vista até nós e até nossa Avó e Mãe, a
Terra. Tudo o que leva nossa Mãe, a fonte terrestre de toda a vida, é sagrado.
Nosso povo caminha sobre ela. Que seus passos sejam firmes e fortes! De Ti, Avó
Terra, uma alma vai ser liberada. Neste Calumet existe espaço para Ti e para
todas as tuas criaturas! Todos unidos, como um só ser, enviamos nossa voz ao
Grande Espírito. Ajudai-nos a caminhar segundo o mistério de uma maneira que te
agrade. Dá-nos os dias sagrados vermelhoe azul que Tu reges!”
Deste modo o Universo inteiro foi localizado no Cachimbo; voltando-se
então para a assistência, o guardião do Calumet diz:
“Uma vez que cumprimos tudo isto corretamente, a alma fará uma
boaviagem e ajudará nosso povo a prosperar e a caminhar pelo caminho sagrado de
um mdo que agrade ao Grande Espírito.”
Ele se dirige então à alma nestes termos:
“Ó alma, meu neto, tu és a raiz deste grande ritual. De ti emanarão
muitas coisas santas; com este rito, nosso povo aprenderá a ser generoso, a
ajudar aos que estão necessitados e a seguir em tudo aos ensinamentos do Grande
Espírito. Ó alma, este é teu dia. Chegou agora o momento.”
“Existirão quatro virgens que levarão sempre em si o poder desses
ritos. E tu, ó alma, as cobrirás com tua pele sagrada de bisonte. Este dia é
teu dia; e é um dia de alegria, pois muita luz desceu sobre o nosso povo. Tudo
o que esteve contigo no passado está hoje contigo. Teus parentes vieram com
alimentos que serão purificados e te serão oferecidos, e que a seguir serão
dados às quatro virgens; depois serão repartidos entre os pobres e os desafortunados.
Mas agora é tempo de oferecer este cachimbo ao Grande Espírito e fumá-lo[46].
A Ele oferecemos tudo o que existe no Universo. A Ele enviamos nossas vozes por
intermédio deste Cachimbo. Hechetu welo!”
“Hi-ey-hey-i-i! Tunkashila
Wakan-Tanka, Avô, Grande Espírito, inclina teu olhar para nós! É o dia
sagrado desta alma. Que ela ajude as gerações futuras a caminhar conforme o
mistério! Nós Te oferecemos este Calumet, ó Wakan-Tanka,
e Te pedimos que ajudes a esta alma, a seus parentes e ao povo inteiro. Vê este
Cachimbo e inclina-te para veres como cumprimos Tua vontade. Nós Te enviamos
uma voz desde esta Terra. Sê misericordioso conosco e também com esta alma que será liberada a partir do
centro do círculo da nação. Ó Avô Wakan-Tanka,
tem piedade de nós, para que nosso povo viva!”
A tudo isto a assistência responde: “Hay-yi! Graças sejam dadas! Que assim seja!”
Então Grande Chifre Ôco[47]
acendeu o Calumet, deu várias baforadas e passou-o ao guardião da alma, que
ofereceu-o ao Céu, à Terra e às quatro Direções e, depois de fumar um pouco, o
fez passar por todos os componentes do círculo no sentido do movimento do sol.
Ao fumar, cada qual pedia um favor, e quando o Cachimbo voltou a Grande Chifre
Ôco foi purificado e suas cinzas cuidadosamente recolhidas num saquinho
especial feito de pele de gamo[48].
Agora que o Cachimbo foi oferecido ao Grande Espírito, Grande Chifre
Ôco começou a lamentar-se e logo toda a assistência fez o mesmo. Talvez não
seja inútil explicar que lamentar-se neste momento é uma coisa boa, pois indica
que pensamos na alma liberada e também na morte que espera a tudo o que foi
criado; é sinal de que nos humilhamos diante do Grande Espírito, pois sabemos
que somos como pó diante d’Ele, que é o Todo, e que é todo-poderoso.
Todos os alimentos oferecidos à alma haviam sido colocados do lado de
fora; então as mulheres os levaram para a tenda. Ali, do lado Sul, havia sido
levantado um poste de madeira de salgueiro da altura de um homem, e ao redor da
ponta foi sujeitado um pedaço de pele de gamo no qual estava pintado um rosto;
acima deste rosto havia sido colocado um cocar de guerra e ao redor do poste
uma pele de bisonte. Este rosto representa a alma; haviam sido adicionados a
ela os arcos, as flechas, os machados e todas as demais posses do defunto. As
mulheres regressaram à tenda com alimentos; deram a volta no sentido do
movimento do sol, depois detiveram-se ao Sul, onde abraçaram o poste da alma, e
se retiraram após haver depositado os alimentos.
Uma porção de cada alimento oferecido à alma foi colocado numa cuia de
madeira disposta na frente dos dois homens santos sentados no Oeste. Neste
momento entraram quatro virgens e situaram-se ao Norte, pois o Poder desta
Direção é a Pureza. Enão Grande Chifre Ôco levantou-se e falou à alma nestes termos:
“Ó alma, tu és a semente[49]!
Tu és como a raiz da árvore sagrada que está no centro do círculo de nossa
nação. Que esta árvore floresça! Que o nosso povo e os povos alados e
quadrúpedes prosperem! Ó alma, teus parentes trouxeram este alimento que logo comerás
e, graças a este ato, a bondade se estenderá a toda a tribo. Ó alma, o Grande
Espírito te deu quatro parentes que estão sentados no Norte e que representam
teus parentes verdadeiros: Avô e Pai Wakan-Tanka
e Avó e Mãe Maka, a Terra. Lembra-te
destes quatro parentes que na verdade não são mais que Um; e com eles em teu
espírito, lança um olhar para trás sobre teu povo enquanto viajas pelo grande
caminho!”
Em seguida um pequeno buraco é aberto ao pé do poste da alma; Grande
Chifre Ôco tomou então a cuia de madeira que continha o alimento purificado e,
inclinando-se para a cavidade, disse à alma:
“Vais comer este alimento sagrado. Quando for colocado em tua boca, sua
influência se estenderá e fará crescer e prosperar os frutos de nossa Mãe
terra. Tua Avó é santa; estamos de pé sobre ela e introduzimos este alimento em
tua boca. Não nos esqueças quando fores para Wakan-Tanka e dirige um olhar para trás sobre nós!”
Colocaram o alimento no buraco e em seguida derramaram sobre ele suco
de cerejas selvagens; este suco é a água da vida. Depois o buraco foi coberto
com terra: a alma havia terminado sua última refeição.
As quatro virgens se dispuseram então a comer a carne de bisonte
sagrada e a beber o suco de cerejas; mas antes os alimentos foram purificados
na fumaça da erva aromática, e em continuação Grande Chifre Ôco dirigiu-se às
jovens:
“Netas, ide receber agora a semente espiritual da alma; por sua
virtude, vós e os vossos frutos sereis santificadas para sempre. Netas, não
esqueçais de compartir vossos alimentos e tudo o que possuís, pois o mundo
nunca carece de indigentes, de órfãos e de velhos. Mas, acima de tudo, minhas
netas, nunca esqueçais vossos quatro grandes Parentes, que representam vossos
parentes aqui na Terra. Ide agora a comer e beber o fruto da Mãe Terra e,
mediante este rito, vós e vossos frutos sereis sagrados. Lembrai-vos sempre
disto, filhas!”
Grande Chifre Ôco tomou a cuia, e cada vez que colocava um pedaço de
alimento na boca de uma virgem, dizia:
“Ponho este alimento em tua boca. É doce e tem o aroma do sagrado. O
povo verá tuas gerações futuras.”
A seguir as quatro virgens inclinaram-se e beberam o suco de cerejas
selvagens que havia na cuia de madeira colocada no solo, e quando todas haviam
bebido, Grande Chifre Ôco lhes disse:
“Netas, tudo o que fizemos aqui hoje está cheio de mistério – lilla
wakan –; nós o fizemos segundo as instruções transmitidas pela Mulher celeste
que também era bisonte, e que nos trouxe o santo Calumet. Ela nos disse que
tinha quatro idades; vós também, netas, tendes estas idades. Compreendei-o
profundamente, pois é importante. É uma grande coisa, isto que levamos a cabo
hoje. Em verdade é assim! Hechetu welo!”
Grande Chifre ôco caminhou então em círculo até o Sul e, levantando o
saquinho da alma, lhe disse:
“Neto, vais partir para uma longa viagem. Teu pai e tua mãe, todos os
teus parentes te amavam. Logo serão felizes.”
O pai do menino abraçou então o saquinho sagrado colocando-o em cada
ombro, e depois disto Grande Chifre Ôco lhe disse:
“Tu amavas teu filho, e o guardaste no centro do círculo do nosso povo.
Sê bom para com os demais como foste para com teu filho! A influência
misteriosa da alma do teu filho estará com os homens; é como uma árvore que
sempre florescerá.”
Grande Chifre Ôco avançou então descrevendo um círculo para o Norte e,
tocando cada uma das virgens com o saquinho sagrado, disse:
“Eis aqui a árvore que foi escolhida para ser o centro de vosso círculo
sagrado! Que sempre prospere e floresça segundo o mistério!”
Levantando então o saquinho para o Céu, exclamou:
“Dirige sempre teu olhar para teu povo, para que caminhe com passo
firme pelo caminho sagrado!”
Grande Chifre Ôco lançou este brado quatro vezes enquanto caminhava
para a saída da tenda e, quando se deteve pela quarta vez – já estando fora, diante
da tenda – gritou em tom muito agudo:
“Olha teu povo! Lembra-te dele!”
No instante em que o saquinho franqueou a saída da tenda[50],
a alma foi liberada e partiu pela via dos espíritos[51].
que conduz a Wakan-Tanka.
Desde que a alma parte, o saquinho com a mecha de cabelo deixa de ser wakan, sagrado, em um sentido direto,
mas a família pode conservá-lo como recordação se assim o quiser
As quatro virgens santificadas receberam uma pele de bisonte cada uma e
abandonaram a tenda imediatamente após Grande Chifre Ôco.
Assim terminou o rito; em todo o acampamento as pessoas estavam felizes
e manifestavam sua alegria, e corriam a tocar as quatro virgens que agora eram
lilla wakan; haviam se convertido emum suporte permanente deste grande influxo
espiritual e em uma fonte inesgotável de força e coragem para sua tribo. Foi
feita uma ampla distribuição de presentes aos pobres e aos necessitados, e por
todos os lados não havia mais que festividades e regozijo. Foi, na verdade, um
grande dia. Hechetu welo!
III
INIPI:
O RITUAL DE PURIFICAÇÃO
No ritual do onikaghe – a
cabana de suar – intervêm todos os poderes do Universo: a terra e tudo o que
nasce dela; a água, o fogo e o ar. A água representa os Seres do Trovão, que
aparecem de maneira terrível mas que trazem benefícios: pois o vapor que sai
dos penhascos nos quais jaz o fogo é pavoroso, mas purifica-nos e nos permite
assim viver como o Grande Espírito quer. Se nos tornarmos realmente puros, é
possível mesmo que o Grande Espírito nos envie uma visão.
Quando empregamos a água na cabana de suar devemos fixar nosso
pensamento no Grande Espírito, que se expande sem cessar comunicando seu Poder
e sua Vida a todas as coisas; devemos, ademais, nos esforçarmos sempre em ser
semelhantes à água, que é a mais humilde de todas as coisas e, sem embargo, é
mais forte do que a própria rocha.
A cabana de suar é construída com doze ou dezesseis salgueiros jovens;
também eles nos ensinam algo, pois no outono suas folhas morrem e regressam à
Terra, e na primavera voltam à vida. Do mesmo modo os homens morrem, mas
renascem no Mundo real do Grande Espírito, no qual não existe mais que os
espíritos de todas as coisas; e podemos conhecer esta vida verdadeira aqui na
terra se purificarmos nossos corpos e nossas almas, acercando-nos assim do
Grande Espírito que é Todo-Pureza.
Os salgueiros que formam a armação da cabana de suar são cravados no
solo de maneira a que indiquem as quatro Direções do Universo; deste modo, no
conjunto da cabana está o Universo em imagem, e ela abriga os povos bípedes,
quadrúpedes e alados e também todas as coisas do mundo; todos estes povos e todas estas coisas devem
ser purificados antes de
poder enviar uma voz ao Grande Espírito.
As pedras que empregamos neste ritual representam nossa Avó Terra, da
qual provêm todos os frutos; mas as pedras representam também a natureza
indestrutível e eterna do Grande Espírito.
O fogo que aquece as pedras representa o Poder do Grande Espírito, que
dá vida a todas as coisas; é como um raio de sol, pois o sol também é, sob
certo aspecto, Wakan-Tanka.
A lareira redonda que existe no meio da cabana de suar é o centro do
Universo, e nele mora o Grande Espírito com seu Poder, o fogo. Todas essas
coisas são sagradas para nós e devemos compreende-las profundamente se desejamos
purificar-nos verdadeiramente; o poder de uma coisa ou de um ato reside em seu
significado e também na compreensão que temos dele.
A cabana de suar sempre é construída com a porta para o Leste, pois
dali vem a luz da Sabedoria. A uns dez passos da cabana construímos uma
fogueira ritual chamada Peta Owihankeshni,
“fogo sem fim”, e ali são esquentadas as pedras. Para fazer esta fogueira
começamos por colocar no sol quatro bastões na direção Leste-Oeste, sobre os
quais colocamos outros quatro bastões na direção Norte-Sul; em seguida cravamos
ao redor disto alguns bastões que formam um cone como para se fazer uma tenda,
primemiro para o Oeste, depois para o Norte, o Leste e o Sul; logo são
colocadas pedras nestas quatro direções e para terminar empilhameos sobre este
conjunto certa quantidade de pedras.
Enquanto edificamos este lugar devemos recitar esta oração:
“Ó Wakan-Tanka, este é o fogo
eterno que nos foi dado nesta grande ilha! É tua vontade que construamos este
lugar de uma maneira conforme ao mistério. Este fogo arde sempre; graças a ele
renasceremos, purificados e mais perto dos teus Poderes.”
Para edificar, na cabana de suar, o altar central para onde serão
levadas as pedras quentes, começamos cravando um bastão no solo, no centro da
cabana, e ao redor deste ponto traçamos um círculo com uma tira de couro.
Enquanto fixamos este centro sagrado devemos orar assim:
“Ó Avô e Pai Wakan-Tanka, que
fizeste tudo o que existe, Tu que sempre foste, olhai-me! E Tu, Avó e Mãe
Terra, Tu és sagrada e tens santos ouvidos, escutai-me! Saímos de Ti, somos uma
parte de Ti e sabemos que nossos corpos regressarão a Ti quando nossos
espíritos partirem para o grande caminho. Ao fixar este centro na terra
recordo-me de Ti, para quem meu corpo regressará, mas, acima de tudo, penso no
Grande Espírito, com o qual nossos Espíritos se tornarão Um. Purificando-me
deste modo desejo tornar-me digno de Ti, ó Wakan-Tanka,
para que meu povo viva!”
Então cava-se um buraco no meio da cabana, e com a terra recolhida
traça-se um caminho que conduz para fora da cabana na direção Leste e em cujo
extremose ergue um pequeno montículo; ao fazer isto, oramos nestes termos:
“Sobre Ti, Avó Terra, quero estabelecer o caminho sagrado da vida. Ao
purificarmo-nos para a tribo caminharemos por este caminho com passo firme,
pois ele conduz ao Grande Espírito; nele existem quatro passos sagrados. Que
nosso povo caminhe por este caminho! Oxalá sejamos puros! Oxalá renasçamos!”
Depois, enviando uma voz ao Grande Espírito, gritamos:
“Avô Wakan-Tanka, aprendemos
tua Vontade e sabemos quais passos sagrados devemos dar. Com a ajuda de todas
as coisas e de todos os seres, vamos enviar-te nossa voz. Sê misericordioso
consoco! Ajudai-nos! Eu me coloco neste caminho e envio-Te minha voz pelos
quatro Poderes que sabemos não serem mais do que um Poder. Ajudai-me nisto
tudo! Ó Avô meu Wakan-Tanka, sê
misericordioso conosco. Ajudai meu povo e todas as coisas a viver de um modo
conforme ao mistério, de um modo que te seja agradável. Ó Wakan-Tanka, ajudai-nos a renascer!”
Aquele que dirige o rito de purificação entra então na cabana, só e com
seu Calumet. Dá a volta no sentido do movimento do sol e senta-se no Oeste;
depois consagra o buraco central, que se converte assim em um altar, colocando
sobre ele punhados de tabaco em cada uma de suas quatro partes. É introduzida
na cabana uma brasa que se deposita no centro; o oficinate queima então erva
aromática e esfrega a fumaça por todo o corpo, e depois nos pés, cabeça e mãos;
em continuação o Cachimbo é purificado na fumaça. Deste modo tudo está
consagrado, e se resta alguma influência impura na cabana, ela é expulsa pelo
Poder da fumaça.
Neste momento o oficiante deve oferecer um pouco de tabaco ritual ao
Poder alado do lugar onde se põe o sol, do qual vêm as águas purificadoras;
invoca-se este Poder e se pede sua ajuda no rito. Em seguida o tabaco é posto
no Calumet e do mesmo modo oferecem-se punhadinhos de tabaco aos demais
Poderes; ao Norte, de onde v~em os ventos purificadores; ao Leste, de onde sai
o sol e de onde vem a Sabedoria; ao Céu e, finalmente, à Mãe Terra. Enquanto se
invoca a ajuda de cada Poder e se coloca cada punhado de tabaco no Calumet,
todos os que estão no exterior exclamam:
“How!”, pois estão contentes
e satisfeitos de que o mistério esteja sendo cumprido.
Agora que o Calumet foi carregado e que todas as coisas foram
consgradas, o oficiante sai da cabana, avança até o Leste pelo caminho sagrado
de deposita o Calumet sobre o montículo, com o fornilho voltado para o Oeste e
o cano para o Leste. Todos os que vão ser purificados penetram então na cabana,
com o oficiante à frente, e cada um deles, no momento em que se inclina para
entrar, pronuncia esta oração:
“Hi-ho! Hi-ho! Graças sejam dadas! Ao inclinar-me para entrar nesta cabana
recordo-me de que não sou nada diante de Ti, ó Wakan-Tanka, que és Tudo. És Tu que nos colocou nesta ilha; somos
os últimos seres criados por Ti, que és oPrimeiro e que sempre fostes.
Ajudai-me a me purificar aqui, antes que te envie minha voz. Ajudai-nos em tudo
o que vamos fazer!”
Tão logo entram na cabana, os homens dão a volta nela no sentido do
movimento do sol e sentam-se sobre a s=alvia sagrada espalhada sobre o solo; o
oficiante está sentado no Leste, bem ao lado da porta. Todos permanecem
silenciosos durante um tempo, recordando-se da bondade do Grande Espírito e
lembrando-se de que foi Ele quem criou todas as coisas. O Calumet é então
introduzido na cabana pelo ajudante, que muitas vezes é uma mulher; esta pessoa
permanece fora durante o rito. O homem sentado noOeste toma o Calumet e o
coloca diante de si com o cano dirigido para o Oeste.
Com um bastão em forma de forquilha, o ajudante retira do fogo sagrado
uma das pedras e, pelo caminho, a leva até a cabana e a empurra para o
interior, onde ela é colocada no centro do altar; esta primeira pedra está
dedicada ao Grande Espírito, que está no centro de todas as coisas. O homem
sentado no Oeste toca então a pedra com a base do Calumet, e faz o mesmo cada
vez que uma pedra é posta sobre o a ltar; e todos os homens exclamam: “Hay ye! Graças sejam dadas!”
A segunda pedra que entra na cabana é posta a Oeste do altar, a
seguinte ao Norte, a outra a Leste, outra ainda ao Sul e, por último, há uma
pedra para a Terra; finalmente o buraco é preenchido com o resto das pedras,
que representam tudo o que existe no mundo.
O homem do Oeste oferece então o Calumet ao Céu, à Terra e às quatro
Direções, acende-o e, depois de dar algumas baforadas, esfrega fumaça por todo
o corpo; em seguida dá o Cachimbo ao homem que está à sua esquerda, dizendo: “How Ate” ou “How Tunkashila”, segundo seu grau de parentesco. O que recebe diz o
mesmo, e assim o Cachimbo percorre todo o círculo no sentido do movimento do
sol. Quando volta a ele, o homem que está no Oeste o purifica por medo de que
alguma pessoa impura o tenha tocado, e esvazia cuidadosamente as cinzas, que
coloca na borda do altar. Este primeiro uso do Calumet que acontnece na cabana,
é levado a cabo em memória da santa Mulher Bisonte que primordialmente entrou
na cabana de modo misterioso e que se foi transformando-se.
O Calumet passa de mão em mão até o oficiante principal, que está
sentado no Leste; o oficiante sustenta o Cachimbo por um instatne sobre o altar
com o cano dirigido ao Oeste, e a seguir o entrega ao ajudante que permanece no
exterior; este último o enche de modo ritual e vai apoiá-lo no montículo
sagrado, com o fornilho para o Leste e o cano para o Oeste, pois é o Poder do
Oeste que é invocado agora.
O ajudante fecha a cabana de suar, submergiando-a numa completa
escuridão; esta escuridão representa a da alma, a ignorância de que devemos nos
purificar para receber a luz. Durante a realização da purificação – o ritual do
inipi – a porta se abrirá quatro
vezes e deixará penetrar a luz; isto nos recorsda as quatro idades e como, pela
bondade do Grande Espírito, recebemos a luz de cada uma das idades.
O homem do Oeste lança então uma voz ao Grande Espírito gritando quatro
vezes:
“Hi-ey-hey-i-i!” Isto é o que
dizemos quando precisamos de ajuda ou quando estamos desamparados; e não é o
que acontece agora, quando estamos na escuridão e necessitamos de luz? Logo o
mesmo homem grita quatro vezes: “Envio uma voz!” e “Escutai-me!”. E depois:
“Wakan-Tanka, Avô, Tu és o
Primeiro e sempre tens sido. Tu nos conduzistes a esta grande ilha na qual nosso
povo deseja viver conforme ao mistério. Ensinai-nos a conhecer e a ver todos os
Poderes do Universo, e daí-nos a sabedoria de compreender que não são mais do
que um só Poder. Que nosso povo Te envie sempre sua voz enquanto caminha pelo
sagrado caminho da vida!”
“Ó pedras antigas – Tunkayatakapa
–, estais aqui presentes; o Grande Espírito fez a Terra e vos colocou muito
perto dela. As gerações caminharam sobre vós e seus passos não vacilaram. Ó
pedras, vós que não tendes olho, nem boca, nem membros; vós não vos moveis, mas
com o vosso sopro sagrado, o vapor, nosso povo marchará pelo caminho da vida
com alento poderoso; vosso alento é o próprio alento da vida.”
“Existe um ser alado – ali aonde o sol desce para seu repouso – que
controla as águas a que todos os seres vivos devem a vida. Que nós utilizemos
aqui estas águas conforme ao mistério!”
“Ó vós, que estais sempre em pé, que surgís da Terra e chegais a tocar
o Céu, povos de árvores, sois inumeráveis, mas um de vós foi escolhido para
sustentar esta sagrada cabana de purificação. Vós, povos de árvores, sois os
protetores dos povos alados, pois sobre vós constróem suas tendas e habitam
suas famílias, e debaixo de vós existem muitos povos a quem abrigais. Que eles,
com todas as suas gerações, caminhem juntos com seus parentes!”
“A cada coisa terrestre, ó Wakan-Tanka,
destes um poder, e porque o fogo é a mais poderosa de tuas criações, pois
consome tudo, nós o colocamos em nosso centro; e quando o olhamos ou pensamos
nele nos recordamos realmente de Ti. Que este fogo sagrado esteja sempre em
nosso centro! Ajudai-nos naquilo que vamos fazer!”
O oficiante principal borrifa então as pedras com água, uma vez para
nosso Avô, Tunkashila; uma vez para
nosso Pai, Ate; outra vez para nossa
Avó, Unchi; uma vez também para nossa
Mãe, Ina, a Terra, e uma última vez
para Channonpa, o Calumet; esta
aspersão é feita com um raminho de sálvia ou de erva aromática, para que o
vapor seja odorífico, e enquanto este se ergue e enche a cabana, o oficiante
exclama:
“Ó Wakan-Tanka, olhai-me! Eu
sou teu povo. Ao oferecer-me a Ti eu ofereço todo o povo como um só ser, a fim
de que viva. Desejamos renascer. Ajudai-nos!”
Neste momento faz muito calor na cabana, mas é bom experimentar estas
qualidades purificadoras do fogo, do ar e da água, e sentir o perfume da sálvia
sagrada. Depois que estes poderes atuaram sobre nós, abre-se a porta em memória
da primeira idade, aquela em que recebemos a luz do Grande Espírito. Um pouco
de água é trazido, e o oficiante sentado a Leste a faz circular no sentido do
movimento do sol; cada um dos assistentes bebe um gole ou esparge algumas gotas
no corpo. Ao fazer isto, pensamos no lugar aonde se põe o sol e de onde provém
a água, e o Poder desta Direção nos ajuda a rezar.
O ajudante, que permaneceu fora, pega então o Cachimbo no montículo e
oferece-o ao Céu e à Terra; depois de caminhar pelo caminho ritual o entrega ao
homem sentado a Oeste da tenda, apresentando-lhe o cano. Este oferece o
Cachimbo às seis Direções, dá algumas baforadas e esfrega o corpo com a fumaça,
e a seguir o Calumet dá a volta ao círculo até ser fumado inteiramente. A
pessoa que está a Oeste esvazia-o, deposita as cinzas ao lado do altar central
e passa o Cachimbo ao exterior, como antes. O ajudante carrega-o de novo e vai
apoiá-lo no montículo sagrado com o cano dirigido para o Norte, já que durante
o segundo período de obscuridade que haverá na cabana será invocado o Poder do
ser alado do Norte.
A porta é fechada e os ocupantes submergem pela segunda vez na
escuridão. Agora é a pessoa ao Norte que ora:
“Vê, ó Águia Negra do lugar aonde o gigante Wazia tem sua tenda! O Grande Espírito te colocou ali para que
controles o caminho. Estás ali para guardares a saúde dos homens, para que
vivam. Ajudai-nos com teu vento purificador! Que ele nos faça puros para que
caminhemos pelo caminho conforme ao mistério, de um modo agradável ao Grande
Espírito!”
“Ó Avô Wakan-Tanka, Tu estás
acima de tudo. És Tu que puseste sobre a Terra uma pedra sagrada que está agora
no centro do nosso círculo. Tu nos destes também o fogo; e lá onde o sol se
põe, destes o Poder a Wakinyan-Tanka,[52]
que controla as águas e guarda o Cachimbo santo. Tu pusestes um sr alado no
lugar de onde sai o sol, que nos dá a sabedoria; e pusestes também um ser alado
no lugar para o qual nos voltamos sempre; ele é a fonte da vida e conduz pelo
caminho vermelho. Todos estes Poderes são Teu Poder, e não são em realidade
senão Um; todos estão aqui, agora, nesta cabana.”
“Ó Wakan-Tanka, Avô, que
estás acima de tudo, é a tua vontade que cumprimos aqui! Pelo Poder que vem do
lugar aonde vive o gigante Wazia nos
tornamos tão puros e tão brancos como a neve que cai, Sabemos que estamos ainda
na escuridão, mas logo virá a luz. Quando sairmos desta cabana, oxalá deixemos
atrás de nós todos os pensamentos impuros, toda a ignorância! Que sejamos
semelhantes a crianças recém-nascidas! Oxalá renasçamos, ó Wakan-Tanka!”
A seguir é derramada água sobre as pedras – quatro vezes para os quatro
Poderes das quatro Direções – e enquanto o vapor se eleva, entoamos um canto ou
uma simples melodia; isto nos ajuda a compreender o mistério de todas as
coisas, e o trovão amortecido do nosso tambor nos recorda os Seres do Trovão do
Oeste que controlam as águas e trazem a bondade.
Logo a porta da cabana abre-se pela segunda vez o que representa a
vinda dos Poderes purificadores do Norte, e nos faz ver a luz que expulsa as
trevas, como a sabedoria nos dissipa a ignorância . É entregue a água ao
oficiante sentado a Leste; ele a oferece aos demais homens mencionando seu grau
de parentesco ou de idade com relação a cada um deles, como descrito mais
acima.
O Calumet é novamente introduzido na cabana e entregue ao homem que
está sentado ao Norte; este homem oferece-o às seis Direções, acende-o e,
depois de dar algumas baforadas, esfrega o corpo com a fumaça. Logo o Cachimbo
dá a volta ao círculo. Quando todo o kinnikinnik
foi consumido o Cachimbo volta para o Norte, onde é purificado; suas cinzas são
depositadas juntoao altar central. A seguir ele é devolvido ao ajudante, que o
enche de novo e vai depositá-lo sobre o montículo, com o cano dirigido para o
Leste; pois agora vamos invocar o Poder desta direção. A porta é fechada e o
homem que está sentado a Leste da cabana envia agora a sua voz:
“Ó Wakan-Tanka, por fim vi a
claridade, a luz da vida! Tu destes o Poder da sabedoria à Luz da Aurora no
lugar de onde sai o sdol. O ser alado que guarda este caminho possui um alento
poderoso, e com os dias sagrados que Tu lhe destes, ó Wakan-Tanka, ele guardou o caminho da tribo! Ó Tu que controlas o
caminho de onde sai o sol, olhai-nos com teus dias vermelho e azul e ajudai-nos
a enviar nossas vozes ao Grande Espírito! Ó Tu que possuís o conhecimento,
daí-nos uma parte da tua ciência para que nossos corações se iluminem e para
que copnheçamos tudo o que é sagrado!”
“Ó Luz da Aurora, do lugar de onde sai o sol! Ó Tu que tens a sabedoria
que nós buscamos, ajudai-nos para que nos purifiquermos, assim como ao povo,
para que nossas gerações futuras possuam a luz para caminhar pelo caminho
sagrado. És Tu que conduzes a aurora quando avança, e também ao dia que a segue
cim a sua luz, que é conhecimento. Tu fazes isto para nós e para todos os povos
que existem no mundo, para que vejam com clareza ao seguirem o caminho e para
que conheçam tudo o que é santo e cresçam conforme ao mistério!”
Novamente é vertida água sobre as pedras; logo começamos a cantar um
hino. Pouco depois, quando o calor nos penetrou bastante, abre-se a porta pela
terceira vez e a luz do Leste nos inunda. Enquanto o Cachimbo passa às mãos do
homem que está no Leste, todos exclamam: “Hi
ho! Hi ho! Graças sejam
dadas!” E o oficiante levanta o Cachimbo
para o Céu e envia sua voz:
“Wakan-Tanka, damos graças
pela luz que Tu nos destes por meio do Poder do lugar de onde sai o sol.
Ajudai-nos, ó Tu, Poder do Leste! Sê misericordioso consoco!”
Então acende-se o Cachimbo que é fumado por todo o círculo e, quando
termina a volta, o ajudante toma-o e o deposita sobre o montículo com o cano
voltado para o Sul. Passa-se novamente a
água no círculo no sentido do movimento do sol, e cada uma fricciona o corpo
inteiro e em especial o cocuruto; depois a porta é fechada pela última vez. É o
homem sentado ao Sul que agora envia sua voz:
“Avô Wakan-Tanka, olhai-nos!
Pusestes um grande poder no lugar para o qual nos voltamos sempre, e muitas
gerações vieram desta direção e regressaram a ela. Existe um ser alado nesta
Direção que guarda o caminho vermelho por onde vieram as gerações. A geração
que hoje está aqui deseja lavar-se e purificar-se para renascer!”
“Queimaremos erva aromática como oferenda ao Grande Espírito, e seu
perfume se estenderá pelo Céu e pela Terra; e assim os quadrúpedes, os povos
alados, os povos de estrelas do Céu, serão todos parentes. De Ti, ó Avó Terra,
que és humilde e nos leva em teu seio como uma mãe, emanará este perfume; que
seu poder seja sentido em todo oUniverso, e que purifique os pés e as mãos dos
homens para que avancem pela Terra sagrada levantando suas cabeças para o
Grande Espírito!”
Toda a água que resta é vertida agora sobre as pedras que estão ainda
muito quentes, e enquanto o vapor se desprende e penetra todas as coisas,
cantamos ou modulamos um canto de mistério. Logo o oficiante fala assim:
“O ajudante abrirá a porta pela última vez dentro de alguns instantes,
e quando estiver aberta veremos a luz. É desejo do Grande Espírito que a
claridade entre no meio das Trevas para que possamos ver não só com nossos
olhos, mas sobretudo com o Olho único que existe no Coração – Chante Ishta – e com o qual vemos e
conhecemos tudo o que é verdadeiro e bom. Demos graças ao ajudante: que suas
gerações sejam benditas! Está bem! Terminamos! Hechetu alo!
Quando a porta da cabana é aberta, os homens exclamam: : “Hi ho! Hi ho! Graças sejam dadas!”. E todos estão felizes, pois sairam das
trevas e vivem agora na luz[53].
O ajudante traz logo uma brasa do fogo sagrado e a coloca no caminho ritual,
bem diante do umbral da cabana. Enquanto queima erva aromática sobre a brasa,
ele diz:
“Este é o perfume do Grande Espírito. Por ele, os bípedes, os quadrúpedes,
os seres alados e todos os povos doUniverso serrão felizes e se alegrarão.”
O oficiante principal então diz:
“Este é o fogo que ajudará as gerações futuras se o empregarem conforme
ao mistério. Mas se não fizerem bom uso dele, este fogo terá o poder de
causar-lhes um grande dano.”
O oficiante purifica suas mãos e seus pés com fumaça e, a seguir,
levanta os braços ao céu e reza:
“Hi ho! Hi ho! Hi ho! Hi ho! Wakan-Tanka, hoje foi um bom dia para nós. Nós Te damos graças por
isto. Ponho agora meus pés sobre a Terra. Cheio de felicidade, caminho sobre a
Terra sagrada, nossa Mãe. Que as gerações futuras caminhem também desta
maneira, conforme ao mistério!”
Todos os homens abandonam a cabana de suar seguindo o movimento do sol,
e também eles purificam as mãos e os pés, e rezam ao Grande Espírito, como fez
o oficiante.
O ritual está terminado, e os que tomaram parte nele estão como se
houvessem nascido de novo; fizeram um grande bem, não só a si mesmos, mas
também a toda a nação.
Talvez eu ainda deva mencionar o seguinte: muitas vezes, quando estamos
na cabana de suar, algumas crianças colocam a cabeça no interior e pedem ao
Grande Espírito que purifique suas vidas. Nós não as afastamos, pois sabemos
que as crianças têm o coração inocente.
Quando saimos da cabana de suar somos semelhantes às almas que foram
guardadas, tal como descrevi, e que regressam ao Grande Espírito depois de
purificadas; também deixamos atrás de nós, na cabana do inipi, tudo o que é impuro, a fim de vivermos como quer o Grande
Espírito, e a fim de conhecer algo deste Mundo verdadeiro do Espírito que está
escondido atrás deste mundo.
Estes rituais do inipi são
muito sagrados e são realizados antes de todas as grandes empresas que nos
exigem sermos puros e fortes; há muitos invernos, nossos homens – e muitas
vezes nossas mulheres – praticavam o inipi
todo dia, e às vezes várias vezes ao dia; grande parte de nossa força veio
disto. Agora que descuidamos destes ritos, perdemos grande parte deste poder;
choro quando penso nisto. E rezo para que o Grande Espírito queira mostrar aos
nossos jovens a importância de todas essas práticas veneráveis.
IV
HANBLECHEYAPI:
IMPLORAR UMA VISÃO
Implorar uma visão – hanblecheyapi
– assim como os ritos de purificação do inipi,
foi praticado muito antes da vinda do Calumet à terra. Este modo de oração é
muito importante; é, de certo modo, o centro de nossa religião e graças a ele
temos recebido muitos favores, tais como estes quatro grandes ritos: a dança do
sol, o parentesco, a preparação da jovem, o lançamento da bola.
Todo homem pode implorar uma visão: antigamente, homens e mulheres
imploravam constantemente. O que é obtido assim depende do caráter daquele que
implora; de fato, somente os homens verdadeiramente qualificados recebem as
grandes visões, e estas são logo interpretadas pelos nossos homens santos; dão
força e saúde à nossa tribo. Quando alguém deseja implorar, é muito importante
que solicite a ajuda e os conselhos de um homem santo – wichasha wakan [54]–
a fim de que tudo se cumpra de um modo correto, pois se as coisas não são
feitas segundo as regras, pode ocorrer alguma desgraça; poderia, por exemplo,
aparecer alguma serpente e enrolar-se em torno do implorante.
Todos já ouviram falar de nosso grande chefe e sacerdote Tashunko Witko, Cavalo Louco; mas
provavelmente ninguém sabe que seu grande poder vinha-lhe sobretudo da
imploração que praticava várias vezes ao ano, inclusive no inverno, com um
clima muito frio e muito duro. Ele recebeu as visões do Penhasco, da Sombra, do
Texugo, do Cavalo que empina – daí seu nome –, do Dia e também de Wambali Galeshka, a Águia Pintada; e
recebeu de todas estas visões muito poder e santidade[55].
Muitas razões podem incitar o homem a retirar-se para o cume de uma
montanha para implorar. Alguns obtiveram visões ainda crianças, sem esperá-lo[56];
neste caso, vão implorar para entendê-las melhor. Imploramos também quando
desejamos aumentar nosso valor com vistas a uma grande prova, como a dança do
sol, ou para prepararmo-nos para partir para o caminho da guerra. Às vezes se
implora para pedir alguma favor ao Grande Espírito, como a cura de um parente;
e também para dar graças ao Grande Espírito por algum dom concedido. Mas a
razão mais importante para implorar é, sem dúvida, que isto nos ajuda a nos
darmos conta de nossa unidade com todas as coisas, a compreender que todas as
coisas são nossos parentes; e então, em seu nome, rogamos ao Grande Espírito
que nos dê o conhecimento de Si mesmo, Dele que é a fonte de tudo e que é maior
do que tudo.
Nossas mulheres também imploram, depois de se terem purificado na
cabana de suar; outras mulheres as ajudam, mas elas não vão a uma montanha
elevada e deserta; retiram-se para um colina do vale, pois são mulheres e
necessitam proteção.
Quando um índio deseja implorar, procura com o Cachimbo carregado a um
homem santo; entra na tenda sustenatndo o cano reto diante de si e se senta
frente ao ancião que será seu guia; o implorante coloca o Calumet no solo com o
cano dirigido para si, pois é ele quem deseja adquirir o conhecimento. Ohomem
santio eleva então as mãos ao Grande Espírito e depois para as quatro Direções,
e tomando o Calumet pergunta ao homem o que deseja. “Desejo implorar e oferecer
meu Calumet ao Grande Espírito. Tenho necessidade da tua ajuda e dos teus
conselhos, e desejo que envíes uma voz por mim às Potências do alto.”
A isto o ancião responde: “How!
Está bem”, e os dois saem da tenda; depois de andar um pouco, detêm-se e olham para o Oeste; o
jovem está à esquerda do homem santo. As pessoas que se acham próximas unen-se
a eles. Todos levantam a mão direita, e o ancião reza enquanto dirige o cano do
Calumet para o céu.
“Hi-ey-Hey-i-i!”, diz quatro
vezes, e a seguir continua: “Avô
Wakan-Tanka, Tu és o Primeiro, e sempre fostes. Todas as coisas Te
pertencem. És tu o criador de todas as coisas. Tu és singular e único, e nós Te
enviamos uma voz. Este jovem aqui presente acha-se em dificuldades e deseja
oferecer-te o Calumet. Pedimos-te que o ajudes! Dentro de poucos dias ele Te
oferecerá seu corpo. Porá seus pés sobre a Terra sagrada, nossa Mãe e Avó,
conforme ao mistério.”
“Todos os poderes do mundo, o céu e os povos de estrelas, e os dias
sagrados vermelho e azul, todas as coisas que se movem no Universo, nos rios,
ribeiros, nas fontes, em todas as águas, todas as árvores que se erguem e todas
as ervas de nossa Avó, todos os povos sagrados do Universo; escutai! Este jovem
pedirá um parentesco sagrado com todos vós a fim de que as gerações futuras
cresçam e vivam conforme ao mistério.”
Ó Tu, ser alado de onde o sol se põe, Tu que velas por nosso Calumet
venerável, ajudai-nos! Ajudai-nos a oferecer este Calumet ao Grande Espírito
para que dê sua bênção a este jovem!”
Então todos os demais gritam: “How!”,
e sentam-se em círculo no chão. O ancião oferece o Calumet às seis Direções,
acende-o e entrega-o primeiro ao jovem que vai implorar; este o oferece com uma
oração, e todos os que formam o círculo fumam com ele. Quando o Calumet foi
inteiramente consumido, é devolvido ao homem santo, que o limpa, purifica ee
entrega de novo ao jovem, perguntando-lhe quando deseja implorar; então o dia é
escolhido.
*********
Quando chega o dia eleito, o jovem que irá implorar vai vestido apenas
com sua pele de bisonte, sua tanga e seus mocassinos; chega, chorando, com seu
Calumet à tenda do homem santo. Assim que entra, põe sua mão direita sobre a
cabeça do ancião, dizendo: “Unshimala ye!
Tem misericórdia de mim!” A seguir coloca o Calumet diante do homem santo e
pede sua ajuda. O ancião responde:
“Todos sabemos que o Cachimbo está cheio de mistério, e com ele viestes
chorando. Quero ajudar-te, mas deverás lembrar sempre o que te vou dizer: nos
invernos futuros, procederás segundo as instruções e os conselhos que te darei.
Podes implorar de um a quatro dias, e até mais, se quiseres; quantos dias eleges?”
“Elejo dois dias.”
“Bem! Eis o que deves fazer: primeiro construirás uma cabana de suar,
na qual nos purificaremos, e para isto deves selecionar doze ou dezesseis
salgueiros pequenos. Mas antes de cortar os salgueiros, não te esqueças de
fazer-lhes uma oferenda de tabaco, e quando estiveres diante deles, dirás:
‘Existem muitas espécies de árvores, mas escolhi a vós para que me ajudeis. Vou
arrabncar-vos, mas outros virão em vosso lugar.’ Em seguida, levarás estas
árvores até o lugar em que iremos construir nossa cabana.”
“Reunirás piedosamente pedras e sálvia, e farás um feixe de cinco
bastões grandes, e também outros cinco feixes de doze bastõezinhos que serão
usados como oferendas. Deixarás estes bastões apoiados do lado Oeste da cabana
de suar até que estejamos em ponto de purificá-los. Também necessitaremos rolos
de tabaco dos arikara, kinnikinnik, uma tábua para cortar tabaco, uma pele de
gamo para envolver as oferendas de tabaco, erva aromática, um saco de terra
sagrada, um machado e uma machadinha de pedra. Deves procurar estes objetos por
ti mesmo, e quando estiveres preparado nos purificaremos. Hechetu welo!”
Após haver sido construída a cabana de purificação e terem sido
reunidos todos os apetrechos, o homem santo entra nela e senta-se ao Oeste; o
implorante entra a seguir e senta-se ao Orte; logo um ajudante entra e senta-se
ao Sul do ancião. Trazem então até a cabana uma pedra fria que é colocada do
lado Norte do altar central, onde o homem santo a purifica com uma breve
oração; em seguida o ajudante leva-a de volta para o exterior. É a primeira
pedra destinada à fogueira perpétua – Peta
Owihankeshni – que foi instalada a Leste da cabana.
A Leste do altar central, na cabana de purificação, o
ajudante rastela a terra e deposita uma brasa naquele lugar. Então o homem
santo caminha em círculo até o Leste e, inclinand-se para a brasa, toma um
pouco de erva aromática nas mãos e ora assim:
“Ó Avô Wakan-Tanka,
olhai-nos! Sobre a terra sagrada coloquei esta erva que Tu Criastes. A fumaça
que sobe da terra e do fogo pertencerá a tudo o que se move no Universo: aos
quadrúpedes, aos voláteis e a tudo o que existe. Dar-te-ão sua oferenda, ó Wakan-Tanka! Queremos consagrar-te tudo
o que tocamos!”
No momento em que se coloca a erva aromática sobre a brasa, os outros
homens da cabana exclamam: “Hay ye!
Graças sejam dadas!”, e quando a fumaça sobe, o homem santo esfrega suas mãos
nela e a seguir as passa por seu corpo; o implorante e o ajudante purificam-se
da mesma maneira com a fumaça do mistério. O saquinho de terra também é
purificado e os três homens voltam a ocupar seu lugar a Oeste; todos os
deslocamentos são feitos no sentido do movimento do sol. A terra purificada é
estendida cuidadosamente com um movimento circular no interior da cavidade
central, e este gesto é feito lenta e respeitosamente, pois esta terra
representa todo o Universo. O ajudante dá em seguida um bastão ao homem santo,
que se serve dele para assinalar quatro posições ao redor da cavidade, a Oeste,
Norte, Leste e Sul; depois desenha uma cruz com os braços orientados nestas
direções; e isto é particularmente sagrado, pois esta cruz estabelece os quatro
grandes Poderes do Universo, assim como o centro no qual reside o Grande
Espírito. Neste momento entra um ajudante que traz uma brasa sobre um bastão
com forquilha; caminha lentamente, detém-se quatro vezes, e na quarta vez
coloca o carvão no centro da cruz.
O homem santo, sustentando um pouco de erva aromática sobre o braseiro,
ora assim:
“Ó Avô meu Wakan-Tanka, Tu és
tudo, e Pai meu Wakan-Tanka, todas as
coisas Te pertencem! Vou colocar a erva sobre este fogo. Seu perfume Te
pertence.”
Então o ancião baixa lentamente a erva aromática até o fogo. O ajudante
toma o Calumet e, deslocando-se com ele no sentido do movimento do sol,
entrega-o ao homem santo, que ora assim: “Ó Wakan-Tanka,
olhai este Calumet: eu o sustento sobre a fumaça desta erva. Ó Wakan-Tanka, olhai também este lugar
consagrado que fizemos. Sabemos que no centro está Tua morada. As gerações
caminharão sobre este círculo. Os quadrúpedes, os bípedes, os voláteis e os
quatro Poderes do Universo contemplarão este lugar, que é Teu.”
O homem santo sustenta o Calumet sobre a fumaça, dirigindo o cano
primeiro para o Oeste e a seguir para o Norte, o Leste, o Sul e o Céu; depois
toca a Terra com a base do Cachimbo. Purifica todos os objetos rituais e
confecciona uns saquinhos de tabaco que ata na extremidade dos bastões de
oferendas.
O venerável ancião está agora sentado no Oeste; toma a tábua de cortar
tabaco e começa a cortar e a misturar o kinnikinnik.
Primeiro ele avalia a capacidade do Calumet, pois deve fazer tabaco na medida
justa para encher o fornilho, não mais. Cada vez que corta um pouco de tabaco
ele o oferece a uma das Direções do mundo e toma muito cuidado para que nada
caia da tábua, o que enfureceria os Seres do Trovão. Quando a mistura termina,
o ancião toma o Calumet com a mão esquerda e, levantando um punhado de kinnikinnik com a mão direita, reza
assim:
“Ó Wakan-Tanka, Pai e Avô
meu, Tu és o primeiro e sempre fostes! Olhai este jovem cuja alma está
perturbada. Ele deseja andar pelo caminho sagrado; ele quer oferecer-Te este
Calumet. Sê misericordioso com ele e ajudai-o! Os quatro Poderes e todo o
Universo serão colocados no fornilho do Calumet, e então este jovem o oferecerá
a Ti com a ajuda dos seres alados e de todas as outras coisas.”
“O primeiro a ser colocado no Calumet serás Tu, ó Poder alado do lugar
onde se põe o sol! Tu e teus guardiões sois e estais cheios de mistério. Olhai!
Há um lugar para Ti no Calumet. Ajudai-nos com teus dois dias sagrados vermelho
e azul!”
O homem santo põe este tabaco no Calumet e a seguir levanta outro
punhado para o Norte, aonde vive o gigante Wazia:
“Ó Poder alado do lugar aonde o gigante tem sua tenda,
de onde vêm os ventos purificadores e fortes; há um lugar para Ti no Calumet;
ajudai-nos com os dois dias sagrados que tu possuis!”
O Poder desta direção é introduzido do mesmomodo no Calumeet e um
terceiro punhado de tabaco é dirigido ao Leste:
“Ó Tu que estais aí onde nasce o sol, que guardas a luz e dás o
conhecimento, este Calumet vai ser oferecido ao Grande Espírito; Tu também acharás nele um lugar; ajudai-nos
com teus dias sagrados!”
O Poder do Leste é introduzido do mesmo modo no Calumet e um pouco de
tabaco é erguido ao Sul, o lugar para onde nos voltamos sempre.
“Ó Tu que controlas os ventos sagrados e que vives no lugar para onde
nos voltamos sempre, teu sopro dá a vida; de Ti vêm nossas gerações e para Ti
vão. Este Calumet vai ser oferecido ao Grande Espírito; existe nele um lugar
para Ti! Ajudai-nos com os dias sagrados que tu possuis!”
Desta maneira os Poderes das quatro Direções foram introduzidos no
fornilho do Calumet, e o ancião levanta agora um pouco de tabaco para o Céu; é
para Wambali Galeshka, a Águia
Pintada, que está por cima de todas as coisas criadas e que manifesta
diretamente o Grande Espírito.
“Ó Wambali Galeshka, Tu que
dá voltas nos mais altos céus, Tu vês tudo o que existe no céu e na terra. Este
jovem vai oferecer este Calumet ao Grande Espírito com o fim de obter o
conhecimento. Ajudai-o, assim como aos que, por teu intermédio, enviam suas
vozes ao Grande Espírito. Existe um lugar para Ti neste Calumet; ddaínos teus
dois dias sagrados vermelho e azul!”
Com esta oração, a Águia Pintada é introduzida no fornilho do Cachimbo;
depois o ancião estende um punhado de
tabaco à Terra, orando assim:
“Ó Unchi e Ina, nossa Avó e Mãe, Tu estás cheia de
mistério! Sabemos que nossos corpos vieram de Ti. Este jovem deseja chegar a
ser uno com todas as coisas; deseja adquirir conhecimento. Pelo bem de todas as
criaturas, ajudai-o! Há um lugar para Ti no Calumet; daí-nos teus dias sagrados
vermelho e azul!”
Assim a Terra, que agora está realmente presente no tabaco, é
introduzida no Cachimbo, e desta maneira os seis Poderes do Universo foram
convertidos em Um. Mas, a fim de que todos os povos dom undo, sem exceção,
sejam incluídos no Calumet, o homem santo oferece pequenas sementes de tabaco
para cada um dos seguintes povos alados:
“Ó tu, pássaro que voas nos dias sagrados; tu que crias tão bem tua
família, oxalá nós cresçamos e vivamos da mesma maneira! Este Calumet logo será
oferecido ao Grande Espírito; aqui há um lugar para ti. Ajude-nos!”
Com uma oração idêntica, são oferecidas e introduzidas no Cachimbo
pequenas sementes de tabaco para a cotovia dos campos, o melro, o pássaro
carpinteiro, o pássaro da neve, o corvo, a gralha, a pomba, o falcão, o gavião,
a águia careca, e o que sobra do tabaco é oferecido pelo bípede que vai
implorar oferecendo-se a si mesmo para o Grande Espírito.
A seguir o Calumet é selado com graxa, pois o implorante o levará
consigo quando for para o cume da montanha, e ali o oferecerá ao Grande
Espírito; mas não fumará antes de haver terminado a súplica e de haver-se
reunido novamente com o homem santo.
Todas as varas e todos os apetrechos, já purificados, são deixados fora
da cabana, a Oeste. Os três homens saem e se preparam para o inipi, e tiram as
vestes, com exceção da tanga. Todos os presentes estão autorizados a participar
deste rito de purificação.
*********
O implorante é o primemiro a entrar na cabana de suar; depois de dar a
volta na cabana imitando o movimento do sol, senta-se a Oeste. Toma seu
Calumet, que foi deixado ali; depois desloca-se no sentido do movimento do sol
sustentando o Cachimbo diante de si com o cano voltado para o Leste; conservará
esta posição durante toda a primeira parte do ritual. O homem santo entra a
seguir e, passando por trás doimplorante, senta-se a Leste, bem ao lado da
porta. Todos os que desejam tomar parte no rito ocupam então o espaço livre
e dois homens permanecem do lado de fora
na qualidade de ajudantes.
Um dos ajudantes enche um Calumet do modo ritual e o entrega ao homem
que está sentado à esquerda do implorante. A pedra que havia sido purificada
anteriormente é introduzida com o batão em forma de forquilha, pois está muito
quente; esta pedra é deixada no centro do buraco consagrado. Logo uma segunda
pedra é colocada a Oeste, no mesmo buraco, e as outras são postas ao Norte, a
Leste e ao Sul. Durante essa operação, o que tem o Calumet toca cada pedra com
a base do Cachimbo e ao mesmo tempo todos exclamam: “Hay ye! Hay ye!”. Logo o
Calumet é aceso e é oferecido ao Céu, à Terra e às quatro Direções, e fuma-se
por turnos. À medida em que passa de mão em mão, cada homem dirige-se ao
vizinho chamando-o pelo grau de parentesco, e quando todos fumaram, dizem em
coro: “Mitakuye oyasin! Somos todos
parentes!” Aquele que acendeu o Calumet esvazia-o e deixa as cinzas sobre o
altar central; depois de tê-lo purificado, estende-o ao vizinho da esquerda,
que o faz passar para fora da cabana. O ajudante carrega-o nocvamente e o
coloca sobre o montículo sagrado com o cano dirigido para o Oeste. Fecha-se a
porta, e o homem santo, sentado a Leste, começa a rezar na escuridão:
“Olhai! Tudo quanto se move no Universo está aqui!”. Isto é repetido
por todos, e para terminar todos exclamam: “How!”.
Depois gritam quatro vezes: “Hi-ey-hey-i-i!”,
e também quatro vezes: “Wakan-Tanka,
Avô, olhai-nos! Nesta grande ilha existe um homem que quer oferecer-te um
Calumet. Hoje ele cumprirá sua promessa. A quem enviaria uma voz, senão a Ti, Wakan-Tanka, Avô e Pai nosso? Ó Wakan-Tanka, este homem Te pede que
sejas misericordioso com ele. Diz que seu pensamento está perturbado e que tem
necessidade de Tua ajuda. Ao oferecer-Te este Cachimbo, oferecerá todo seu
corpo e toda sua alma. Chegou o momento: logo irá a um lugar elevado e ali
implorará para conseguir tua ajuda. Sê mirericordioso com ele!”
“Ó vós, os quatro Poderes do Universo, vós, alados do ar, e todos os
povos que se movem no Universo, todos vós fostes colocados no Calumet. Ajudai a
este jovem com o conhecimento que o Grande Espírito vos deu. Sêde
misericordiosos! Ó Wakan-Tanka,
permite que este jovem tenha parentes; que não seja senão um com os Quatro
Ventos, os quatro Poderes do Mundo e com a luz da aurora. Que compreenda seu
parentesco com todos os povos alados do ar. Ele porá seus pés sobre a terra
sagrada do cume de uma montanha; que possa recebr, lá no alto, a sabedoria; que
suas gerações futuras permaneçam conforme ao mistério! Todas as coisas Te dão
graças, ó Wakan-Tanka, Tu que és
misericordioso e nos ajuda a todos. A Ti pedimos tudo isto, sabendo que Tu és o
Único e que Teu poder se estende sobre todas as coisas!"
Enquanto se verte um pouco de água sobre as pedras ardentes, todos o
shomens cantam:
Avô, envio uma
voz!
Aos céus do
Universo envio uma voz,
Para que meu povo viva!
Enquanto os homens cantam isto e o vapor sobe, o implorante soluça,
pois se humilha ao pensar em sua nulidade em presença do Grande Espírito[57].
Ao cabo de alguns instantes, um ajudante abre a porta e o implorante
abraça então seu Calumet colocando-o sobre um ombro e depois sobre o outro, e
suplicando sem cassar ao Grande Espírito: “Tem piedade de mim! Ajudai-me!”. Este
Calumet passa de mão em mão e todos o abraçam e choram como o implorante. Deste
modo o Cachimbo é passado para o lado de fora, e os ajudantes também o abraçam;
em seguida colocam-no sobre o montículo com o cano voltado parao Leste; esta é
a Direção na qual acha-se a Fonte da luz e do conhecimento.
O segundo Calumet, que deve ser empregado no rito de
purificação, e que estava sobre o montículo com o cano virado para o Oeste, é
então introduzido na cabana e entregue à pessoa que está sentada imediatamente à
esquerda do Implorante. Este Cachimbo é aceso e depois todos os membros do
círculo fumam dele; logo é retirado para o exterior. Em continuação se faz
circular água e o implorante é autorizado a beber quanto quiser, mas deve ter o
cuidado de não derramar nem uma gota, nem no chão nem sobre seu corpo, pois
isto provocaria a cólera dos Seres do Trovão que custodiam as águas sagradas e
que poderiam aparecer-lhe à noite enquanto implora. O homem santo lhe diz para
esfregar o corpo com a sálvia; a porta se fecha novamente, e um homem venerável
que já tenha tido uma visão faz uma oração:
“Sobre esta pedra cheia de mistério, os Seres do Trovão se mostraram
cheios de misericórdia para comigo: deram-me um poder proveniente do lugar
aonde vive o gigante Wazia. Apareceu-me
uma águia. Ela te verá também quando fores implorar uma visão. Do lugar aonde
nasce o sol, enviaram-me uma águia careca; também ela te verá. Do lugar para
onde sempre nos voltamos, enviaram-me um ser alado. Foram muito misericordiosos
comigo. Nas alturas do Céu existe um Ser alado que está próximo ao Grande
Espírito: é a Águia Pintada, e também ela te verá. Irão contemplar-te todos os
Poderes e a Terra sagrada sobre que estás. Eles indicaram-me um bom caminho a
seguir sobre esta Terra; oxalá possas tu tamvbém conhecer esta via! Aplica teu
espírito em compreender o significado destas coisas, e verás! É assim, não te
esqueças! Hechetu welo!”
Então o ancião canta:
Eles enviam-me uma voz.
Desde o lugar aonde se põe o sol
Nosso Avô
envia-me uma voz.
Desden o lugar
aonde se põe o sol
Me falam
quando vêm.
A voz de nosso
Avô me chama.
Este Ser alado
que está no lugar onde vive o Gigante
Envia-me uma voz:
ele me chama. Nosso Avô me chama!
Enquanto o ancião canta, verte-se água sobbre as
pedras, e depois de uns momentos de silêncio em meio à escuridão e do vapor
quente e perfumado, abre-se de novo a porta, e o ar fresco e a luz penetram na
cabana. Mais uma vez o Cachimbo é retirado do montículo e entregue, na cabana,
ao homem que está sentado ao Norte. Depois de fumado, é reposto no montículo
com o cano dirigido para o Leste. Fecha-se a porta, e desta vez é o homem santo
sentado ao Leste quem reza:
“Ó Wakan-Tanka, observa tudo
o que fazemos aqui e Te pedimos! Ó Tu, Poder do lugar aonde o sol se põe, Tu
que controlas as águas: com o sopro de tuas águas este jovem se purifica. E
também vós, ó pedras de idade imemorial que agora nos ajudais, escutai! Estais
firmemente fixadas nesta terra; sabemos que os ventos não podem mover-vos. Este
jovem vai enviar uma voz e chorar para obter uma visão. Vós o ajudais dando-lhe
uma parte de vosso poder; vosso sopro o purifica.”
“Ó Fogo eterno do lugar onde sai o sol, contigo este jovem ganha em
força e lucidez. Ó árvores, o Grande Espírito vos deu o poder de permanecer em
pé. Que este jovem possa sempre tomar-vos como exemplo; que possa vincular-se
firmemente a vós. Está bem! Hechetu welo!”
Novamente todos cantam; depois de alguns instantes abre-se a porta e o
Calumet é entregue ao homem santo sentado a Leste, que o acende, dá algumas
baforadas e o faz circular por todo o grupo. Quando o tabaco foi consumido, o
ajudante toma o Cachimbo e o coloca outra vez no montículo, como cano dirigido
para o Sul. A porta da inipi é
fechada pela última vez, e então o homem santo dirige sua oração às pedras:
“Ó vós, pedras antigas, estais cheias de mistério, não tendes orelhas
nem olhos, e sem embargo ouvis e vêdes todas as coisas. Graças a vossos poderes
este jovem se tornou puro e digno de partir para receber uma mensagem do Grande
Espírito. Logo os homens que guardam a porta desta cabana sagrada irão abri-la
pela quarta vez e veremos a luz do mundo. Tende piedade dos homens que guardam
a porta. Que suas gerações sejam benditas!”
Verte-se água sobre as pedras que ainda estão quentes e, depois que o vapor
preencheu a cabana toda durante algum tempo, abre-se a porta e os homens
exclamam: “Hi ho! Hi ho! Graças sejam dadas!”
O implorante é o primeiro a abandonar a cabana e, chorando sem cessar,
vai sentar-se no caminho ritual, em frente ao montículo em que descansa o
Cachimbo. Um dos ajudantes recolhe a pele de bisonte purificada e a coloca
sobre os ombros do implorante; outro toma o Cachimbo e o apresenta ao jovem,
que agora está preparado para ir a uma alta montanha implorar uma visão.
*********
Trazem-se três cavalos; em dois deles são colocados os bastões de
oferendas e uma certa quantidade de sálvia; o implorante monta no terceiro,
chorando de lástima e sustentando diante de si o Calumet. Quando chegam ao sopé
da montanha, os dois ajudantes adiantam-se com todos os apetrechos para
preparar no cume o lugar ritual: avançam na direção que mais depressa os afasta
do acampamento e vão diretamente ao local escolhido como centro; ali
descarregam os apetrechos. Começam fazendo um buraco no chão, onde depositam um
pouco de kinnikinnik; a seguir cravam
ali uma longa vara, em cuja extremidade foram atadas as oferendas. Um dos
ajudantes dá dez passos na direção Oeste e crava ali outra vara, na qual
sujeita mais oferendas. Continuando, regressa ao centro, onde toma outra vara,
que vai cravar ao Norte; logo retorna ao centro. De modo semelhente, crava uma
vara a Leste e outra ao Sul. Enquanto isto, o outro ajudante esteve ocupado em
preparar no centro um leito de sálvia no qual o implorante, nos momentos de
fadiga, poderá repousar apoiando a cabeça na vara central e estendendo os pés
para o Leste. Quando tudo está terminado, os ajudantes abandonam o local
sagrado pelo caminho do norte e reunem-se com o implorante, que espera na base
da montanha.
O implorante tira então os mocassinos e inclusive a tanga, pois, se
desejamos realmente implorar, devemos ser pobres em bens deste mundo; então ele
sobe só, até o cume, sustentando seu Calumet adiante e levando sua pele de
bisonte, que usará durante a noite. Enquanto caminha, chora e repete
constantemente: “Wakan-Tanka unshimala ye
oyate wani wachin cha! Ó Wakan-Tanka,
tem piedade de mim para que meu povo viva!”
Quando chega ao local consagrado, dirige-se à vara central e olha para
o Oeste; levantando seu Calumet com as duas mãos, continua rezando entre
lágrimas: “Ó Wakan-Tanka, tem piedade de mim para que
meu povo viva!”. Em seguida aproxima-se muito devagar da vara que está a Oeste;
ali oferece a mesma oração e regressa ao centro. Do mesmo modo, vai até a vara
do Norte, a do Leste e a do Sul, voltando ao centro de cada vez; e depois de
cada um desses trajetos, eleva seu Calumet ao Céu e pede aos seres alados e a
todas as coisas que o ajudem; depois dirige o cano para o chão e pede ajuda de
tudo o quento cresce sobre nossa Mãe.
Tudo isto ocuparia pouco tempo; mas o implorante deve fazê-lo tão
lentamente, e de um modo tão solene, que muitas vezes passa-se uma hora, ou até
duas, para fazer apenas um dos trajetos. Ele não pode deslocar-se de outra
maneira; mas enquanto percorre esta forma de cruz pode deter-se em qualquer
ponto do trajeto, e durante o tempo que desejar. É isto que fará todo dia,
orando sem descanso, seja em voz alta ou silenciosamente em seu interior, pois
o Grande Espírito está em todas as partes e por conseguinte ouve tudo o que há
em nossos pensamentos e em nossos corações; não é preciso falar-lhe em voz
alta. O implorante não está obrigado a dizer sempre a oração que indiquei; pode
permanecer em silêncio, concentrando toda a sua atenção no Grande Espírito ou
em um de seus Poderes. Deve evitar cuidadosamente os pensamentos que o
distraiam, mas, por outro lado, deve permanecer desperto para reconhecer
qualquer mensageiro que o Grande Espírito possa enviar-lhe; estes mensageiros
tomam frequentemente a forma de um animal, às vezes tão minúsculo e
aparentemente insignificante como uma formiga. É possível também que do Oeste
lhe venha yma águia pintada, ou do Norte uma águia negra, ou do Leste uma águia
careca, ou do Sul um pássaro carpinteiro de cabela vermelha. Mesmo quando de
início nenhuma dessas aves lhe fale, todas tem importância e devem ser
observadas. Se chega um passarinho, ou um esquilo, o implorante deve também
fixar-se nele. Talvez no começo os animais se mostrem selvagens, mas logo se
tornarão dóceis e os pássaros pousaram sobre os bastões, e inclusive haverá
formigas e lagartas que caminhem sobre o Calumet. Todos esses povos são
importantes, pois são sábios à sua maneira e podem ensinar-nos muitas coisas, a
nós, os bípedes, se adotamos uma atitude humilde diante deles. Dentre todas as
criaturas, as mais dignas de atenção são as aves; são as que se acham mais
perto do céu e não estão atadas à terra como os quadrúpedes ou os pequenos
povos reptilianos.
Covém ressaltar que não é algo gratuito que os humanos sejam bípedes
como as aves; pois estas abandonam a terra com suas asas, e nós, os homens,
podemos também sair deste mundo, não com asas, mas com o espírito. Isto ajudará
a compreender porque consideramos sagrados e importantes a todos os seres
criados: toda coisa possui uma influência – wochanghi
– que pode ser-nos dada, e graças à qual podemos adquirir um pouco mais de
compreensão se estivermos atentos.
Durante todo o dia o implorante envia sua voz ao Grande
Espírito para obter sua ajuda, e se desloca seguindo o caminho ritual em forma
de cruz; esta forma tem muito poder: cada vez que voltamos ao centro é como se
voltássemos ao Grande Espírito, que é o centro de todas as coisas; e ainda que
possamos crer que nos afastamos d’Ele, deveremos regressar a Ele cedo ou tarde,
junto com todas as demais criaturas.
Ao chegar a noite o imlorante está muito cansado; ele não pode nem
beber nem comer durante os dias que consagra a implorar uma visão. Pode
cochilar no leito de sálvia que lhe foi preparado e deve apoiar a cabeça no
mastro central, pois assim, ainda que durma, permanecerá próximo ao Grande
Espírito; com muita frequência, as visões mais poderosas acontecem durante o
sono. Não se trata de sonhos comuns, pelo contrário: as visões são muito mais
reais e intensas do que nos sonhos; não provêm de nós, mas do Grande Espírito.
Pode suceder que a primeira vez que imploramos não recebamos nenhuma visão nem
mensagenm de espécie alguma, mas dvemos tentar sem descanso; pois não devemos
esquecer que o Grande Espírito está sempre disposto a ajudar a quem o busca com
o coração puiro.É claro que muito depende da natureza daquele que implora, do
seu grau de purificação e de preparação.
Às vezes durante a noite vêm os Seres do Trovão e, ainda que sejam
aterrorizantes, fazem-nos um grande bem colocando à prova nossa força e nossa
resistência. Eles também nos ajudam a entendermos quão pequenos e
insignificantes somos diante dos Poderes incomensuráveis do Grande Espírito.
Lembro-me de um dia em que implorava; um grande furacão vinha do lugar
onde o sol se põe, e eu conversava com os Seres do Trovão que vinham com o
granizo, os trovões, relâmpagos e uma chuva abundante; pela manhã vi que o
granizo se acumulara ao redor do local consagrado, mas este achava-se
completamente seco. Creio que tentaram provar-me. E houve uma noite em que os
maus espíritos vieram roubar as oferendas das varas, e ouvi suas vozes debaixo
do chão, sendo que um deles dizia: “Vá ver se está implorando”. Ouvi ruídos de
matraca, mas eles permaneciam fora do recinto sagrado e não podiam penetrar
nele, pois eu estava decidico a não me assustar, e não cessava de enviar minha
voz ao Grande Espírito para obter sua ajuda. Mais tarde, em algum lugar sob a
terra, um dos maus espíritos disse: “Sim, certamente está implorando”, e pela
manhã vi que as varas com as oferendas estavam em seus lugares. Eu estava bem
preparado e não fraquejei, de modo que nada de mau poderia me acontecer.
O implorante deve levantar-se no meio da noite e ir até as quatro
Regiões, voltando ao centro cada vez e sem deixar de enviar sua voz. Deve estar
de pé com as primeiras luzes da aurora e iniciar andando para o Leste,
dirigindo o cano do seu Calumet para a estrela de mistério e pedindo que ela
lhe dê sabedoria; faz esta oração em silêncio, do fundo do coração, e não em
voz alta. É assim que o implorante deve proceder durante os três ou quatro
dias.
*********
Ao final deste período vêm os ajudantes com os cavalos e levam o
implorante com seu Calumet de volta ao acampamento; assim que chega, entrea no inipi que foi preparadio para ele.
Senta-se no Oeste, tendo o Calumet constantemente diante de si. O santo ancião
que é seu guia espiritual entra imediatamente depois e, passando por trás do
implorante, vai sentar-se a Leste; os demais homens ocupam o espaço que foi
deixado livre.
A primeira pedra ritual, que já foi esquentada, e introduzida na cabana
e colocada no centro do altar; as demais pedras são trazidas na sequência, tal
como já descrevi. Tudo isto é feito de maneira muito solene, mas mais depressa
do que antes, pois todos os homens estão impacientes para ouvir o implorante e
para saber que grandes coisas lhe sucederam na montanha. Quando tudo está no
ponto, o homem santo diz ao implorante:
“Ho! Enviastes uma voz ao
Grande Espírito. A partir de agora este Calumet é muito venerável, pois todo o
Universo o viu. Oferecestes este Calumet aos quatro Poderes celestes; eles o
viram! O Poder alado do lugar aonde se põe o sol, que controla as águas, te
ouvirá! As árvores que estão aqui presentes te ouvirão! E também te ouvirá o
Cachimbo sagrado que a tribo recebeu; dize-nos pois a verdade e assegura-te de
que não inventas nada! Talvez mesmo as minúsculas formigas e as lagartas foram
ver-te quando, lá em cima, imploravas uma visão! Dize-nos tudo! Nos trouxestes
o Calumet que oferecestes. Foi terminado! E posto que levarás à boca este
Calumet, nos dirás somente a verdade. O Calumet é santo e sabe de tudo; não
podes enganá-lo. Se mentires, Wakinian-Tanka,
a Ave do Trovão que custodia o Calumet te castigará. Hechetu welo!”
O homem santo levanta-se então de seu posto no Leste e, dando a volta
na tenda no sentido do movimento do sol, vai sentar-se à direita do implorante.
Diante deste colocam-se umas costelas secas de bisonte sobre as quais é
colocado o Calumet com o cano voltado para o Céu. O homem santo retira do
fornilho o selo de graxa e o coloca sobre as costelas de bisonte. Com uma brasa
que retira do fogo, acende o Calumet e, depois de oferece-lo aos Poderes das
seis Direções, dirige o cano para o implorante, que apenas o toca com os
lábios. O homem santo então descreve um círculo com o cano, fuma um pouco e
novamente o aproxima dos lábios do implorante. A seguir volta a descrever um
círculo com o cano e dá mais algumas baforadas. Isto é feito quatro vezes;
depois o Calumet passa de mão em mão e todos os homens fumam. Quando regressa a
ele, o homem santo o esvazia golpeando-o quatro vezes no monte formado pelo
selo de graxa e pelas costelas de bisonte, e logo o purifica. Sustentando o
Calumet diante de si, diz ao implorante:
“Jovem, há três dias te fostes daqui com teus ajudantes, que
construiram para ti os cinco pilares do lugar consagrado. Dize-nos tudo o que
te sucedeu lá em cima depois de tua partida! Não omitas nada! Nós rezamos muito
por ti ao Grande Espírito, e pedimos ao Calumet que fosse misericordioso[58].
Dize-nos agora o que te sucedeu!”
O implorante responde, e cada vez que diz alguma coisa importante, os
homens que estão na tenda exclamam: “Hay
ye!”
“Fui à montanha, e depois de penetrar no recinto consagrado, caminhei
até cada uma das quatro Direções, regressando sempre ao centro, como me
ensinastes. No primeiro dia, enquanto achava-me de frente para o lugar aonde o
sol se põe, vi uma águia que voava na minha direção, e quando esteve mais perto
distingui que se tratava de uma águia pintada. Pousou numa árvore próxima de
mim, mas não disse nada; em seguida levantou vôo para o lugar aonde vive o
gigante Wazia.”
A isto todos o shomens respondem: “Hay
ye!”
“Regressei ao centro e fui até o Orte, e enquanto
estava ali vi uma águia que dava voltas no alto; e quando desceu até mim notei
que era uma águia jovem, mas tampouco ela me disse nada; e logo voltou-se e
voou para o lugar para onde sempre nos voltamos. Voltei ao centro, onde
implorei e lancei minha voz, e depois me dirigi até o lugar de onde nasce o
sol. Ali percebi que algo voava em minha direção e logo vi que era uma águia
careca, mas também ela não disse nada. Implorando constantemente, regressei ao
centro, e então quando ia para o lugar para onde sempre olhamos, vi um pássaro
carpinteiro de cabeça vermelha pousado numa das varas de oferendas. Talvez
tenha me dado algo de seu gênio – seu wochanghi
–, pois ouvi que me dizia em voz muito
baixa mas clara: “Wachin ksapa yo!
Esteja atento! E não tenhas medo, ms não faça caso de nenhuma coisa ruim que
possa vir e falar-te.”
Todos dizem então em voz alta: “Hay
ye!”, pois esta mensagem da ave é muito importante. O implorante continua:
“ Ainda que eu tenha implorado e enviado minha voz continuamente, isto
é tudo o que vi e ouvi naquele dia. Chegou a noite e recostei-me com a cabeça
no centro; dormi e, durante o sono, ouvi e vi meu povo e notei que era feliz.
Levantei-me no meio da noite e andei novemente até cada uma das quatro
Direções, regressando sempre ao centro e enviando constantemente minha voz.
Logo antes de aparecer a estrela da aurora visistei de novo as quatro Direções,
e quando cheguei ao lugar de onde nasce o sol, vi a estrela dalva e observei
que a princípio era vermelha; logo se tornou azul, depois amarela e ao gfinal
vi que era branca; nestas quatro cores discerni as quatro idades. Ainda que a
estrela não tenha me falado, sem embargo ensinou-me muito.”
“Ali fiquei, esperando que saísse o sol, e no instante mesmo da aurora
vi o mundo cheio de pequenos povos alados cheios de alegria. Por fim saiu o
sol, trazendo sua luz ao mundo; comecei então a implorar e voltei ao centro, e
ali me estendi, deixando o Calumet apoiado na estaca central.”
“Enquanto me achava encostado ouvi todo tipo de
pequenos seres alados que estavam nas varas, mas nenhum deles me falou. Olhei o
Calumet e vi duas formigas que avançavam pelo cano. Talvez quisessem falar-me,
mas logo se foram.”
“Algumas vezes, enquanto implorava e enviava minha voz, aproximavam-se
de mim pássaros e borboletas;uma vez uma borboleta branca veio pousar na
extremidade do cano do Calumet, agitando suas lindas asas. Naquele dia não vi
grandes quadrúpedes, apenas animais pequenos. Justo antes que o sol descesse
para ir repousar, vi que as nuvens se agrupavam e vieram os Sers do Trovão. O
relâmpago encheu o céu e o trovão era aterrador, e creio que até me assustei um
pouco. Mas sustive meu Calumet erguido e segui enviando minha voz ao Grande
Espírito, e logo ouvi outra voz que dizia: “Hi-ey-hey-i-i!
Hi-ey-hey-i-i!” Quatro vezes repetiu-se
este grito, e então perdi todo o medo, pois lembrei-me das palavras do pequeno
pássaro e me senti cheio de coragem. Ouvi também outras vozes que não pude
compreender. Ignoro quanto tempo estive ali com os olhos fechados. Quando os
abri, todas as coisas eram muito brilhantes, mais brilhantes até do que durante
o dia; e vi um grande número de homens que vinham até mim a cavalo, e todos
montavam cavalos de cores distintas. Um dos cavaleiros dirigiu-se a mim nestes
termos: “Jovem, ofereces o Calumet ao Grande Espírito; alegramo-nos muito que o
faças!” Isto foi tudo o que disseram; em seguida desapareceram.”
“No dia seguinte, imediatamente antes de sair o sol, e enquanto
visitava as quatro Direções, vi o mesmo pequeno pássaro carpinteiro de cabeça
vermelha; achava-se pousado na vara do lugar para o qual nos voltamos sempre e
disse-me mais ou menos a mesma coisa que no dia anterior: “Amigo, estejas
atento enquanto caminhas!” Isto foi tudo; e pouco depois os dois ajudantes
vieram buscar-me. Isto é tudo o que sei. Disse a verdade e não inventei nada!”
Assim o implorante termina seu relato. O homem santo lhe entrega seu
Calumet, que ele abraça e faz circular. Depois um ajudante o toma e o coloca,
com o cano para o Oeste, no montículo sagrado a leste da cabana. Mais pedras
quentes são trazidas; e porta é fechada e começa o inipi. O homem santo se põe a rezar e dá graças ao Grande Espírito:
“Hi-ey-hey-i-i!”, diz quatro
vezes. E prossegue: “Ó Avô Wakan-Tanka!
Hoje nos ajudastes. Fostes misericordioso com este jovem ao dar-lhe
conhecimento e um caminho que possa seguir. Fizestes feliz a teu povo, e todos
os seres que se movem no Universo se alegram!”
“Avô, este jovem que te ofereceu o Calumet ouviu uma voz que lhe dizia:
esteja atento ao caminhar! Ele deseja saber o que significa esta mensagem; é
preciso explicar-lhe. Esta mensagem significa que deverá sempre recordar-se de
Ti, ó Wakan-Tanka, quando caminhar
pelo sagrado caminho da vida, e que deve prestar atenção a todos os sinais que
nos destes. Se atuar sempre assim, converter-se-á em um homem sábio que será um
guia para seu povo. Ó Wakan-Tanka,
ajudai-nos a estarmos sempre atentos![59]”
“Este jovem tembém viu as quatro idades na estrela do
lugar de onde nasce o sol. São as idades pelas quais devem passar todas as criaturas
ao longo de sua viagem que vai do nascimento até a morte. Todos os povos e
todas as coisas devem passar por estas quatro idades.”
“Ó Wakan-Tanka,
quando este jovem viu a aurora do dia, viu como a tua luz vinha ao Universo; é
a luz da sabedoria. Revelastes todas estas coisas porque tua vontade é que os
povos do mundo não vivam nas trevas da ignorância.”
“Ó Wakan-Tanka,
Tu estabelecestes um parentesco com este jovem, e com este parentesco ele
comunicará vigor à sua tribo. Nós que estamos aqui sentados representamos a
toda a nação e Te damos graças, ó Wakan-Tanka!
Elevamos agora nossas mãos a Ti e dizemos: ó Wakan-Tanka, Te damos graças por este conhecimento e e por este
parentesco que nos destes. Mostra-te sempre misericordioso conosco! Que este
parentesco exista até o fim.”
Continuando, todos os homens cantam:
“Avô,
olhai-me!
Avô, olhai-me!
Sustentei o Calumet e
o ofereci a Ti
Para que meu povo
viva!
Avô, olhai-me!
Avô, olhai-me!
Dou-te todas estas
oferendapara que meu povo viva!
Avô, olhai-me!
Avô, olhai-me!
Nós, que representamos
toda a nação
Nos oferecemos a Ti
Para que vivamos!”
Depois deste canto verte-se água sobre as pedras e
prossegue o inipi da maneira como já
foi descrito. Este jovem que implorou uma visão pela primeira vez talvez chegue
a se converter num homem santo; se caminhar com o pensamento e o coração fixos
no Grande Espírito e em seus Poderes, como lhe foi ensinado, andará certamente
pelo caminho vermelho que conduz à bondade e à santidade. Mas deverá ainda
implorar uma visão pela segunda vez, e então os maus espíritos podem tentá-lo;
mas se é realmente um eleito resistirá firmemente e vencerá todos os
pensamentos dispersantes; será purificado de tudo o que é nocivo e poderá
receber então uma grande visão que trará vigor à toda a nação. Se depois da
segunda lamentação ainda tiver dúvidas, que tente uma terceira, uma quarta vez;
e se permanecer sincero e humilhar-se diante de todas as coisas, receberá ajuda
com certeza, pois o Grande Espírito ajuda sempre aos que imploram com o coração
puro[60].
V
WIWANYAG WACHIPI:
A DANÇA DO SOL
A “dança que olha para o sol” – wiwanyag wachipi – é um de nossos ritos mais importantes e foi
instituído muitos invernos depois que nosso povo recebeu o Calumet da Mulher
Bisonte Branco. É celebrado todos os anos durante a lua da engorda (Junho) ou a
lua das cerejas que escurecem (Julho), sempre na lua cheia, pois o crescimento
e o descréscimo da lua nos recorda nossa ignorância que vai e vem; mas quando a
lua está cheia é como se a Luz eterna do Grande Espírito se estendesse por todo
o mundo. Mas agora quero contar como este ritual chegou ao nosso povo e como se
levou a cabo na sua origem.
Um dia, nosso povo acampava num lugar propício, em
círculo, como sempre, e os anciãos estavam sentados celebrando um conselho; de
repente observaram que um de nossos homens, Kablaya
– Aquele-Que-Se-Estende – havia deixado cair seu manto até a cintura e dançava
sozinho a uma certa distência com a mão estetndida para o céu. Os anciãos pensaram
que talvez estivesse lou co e enviaram um deles para inteirar-se do que se
tratava; mas o enviado também enrolou o manto na cintura e começou a dançar com
Aquele-Que-Se-Estende. Achando aquilo estranho, os anciãos foram ver por si
mesmos. Então Aquele-Que-Se-Estende lhes explicou:
“Faz muito tempo, o Grande Espírito nos disse como
devíamos otrara com o Cachimbo sagrado; mas nós fomos relaxando na prática da
oração e nossa gente está perdendo o vigor. Uma nova maneira de orar acaba de
ser-me revelada em uma visão; o Grande Espírito veio em nossa ajuda.”
Ao ouvir estas palavras, todos os anciãos exclamaram: “How!” e mostraram uma grande alegria.
Celebraram o conselho e enviaram dois homens ao guardião do Cachimbo sagrado, a
quem correspondia dar sua opinião sobre questões do gênero. O guardião
respondeu aos mensageiros dizendo que certamente tratava-se de algo muito bom;
pois “foi-nos prometido que teríamos sete maneiras de rezar ao Grande Espírito,
e esta é seguramente uma delas, já que Aquele-Que-Se-Estende recebeu instruções
a respeito numa visão; pois bem, é assim que foi dito que receberíamos nossos
ritos.”
Os dois mensageiros transmitiram esta notícia aos
anciãos, que pediram a Aquele-Que-Se-Estende que lhes instruísse acerca do que
deveriam fazer. Então ele lhes disse:
“Esta será a Dança do Sol: não podemos faze-la em
seguida, mas devemos esperar quatro dias, que dedicaremos aos preparativos, tal
como me foi ensinado em minha visão. Esta dança será uma oferenda de nossos
corpos e nossas almas ao Grande Espírito, e estará cheia de mistério. Que se
reunam todos os nossos homens sábios e anciãos; construam um grande pavilhão e
adornem seu interior com sálvia. Necessitamos também dos seguintes objetos: um
rolo de tabaco da tribo dos arikara; casca de salgueiro vermelho; erva
aromática; um machado de osso; uma machadinha de sílex; medula de bisonte; um
crânio de bisonte; uma bolsa de couro cru; uma pele curtida de bisonte jovem;
peles de coelho; plumas de águia; pintura de terra vermelha; pintura azul; uma
pele sem curtir; penas da cauda da águia; apitos feitos de ossos de águia
pintada.”
Quando todos estes objetos foram reunidos,
Aquele-Que-Se-Estende pediu aos que sabiam cantar que acudissem à sua casa
naquela mesma noite para aprender os cantos revelados; acrescentou que deviam
trazer um grande tambor feito de pele de bisonte, assim como baquetas com a
extremidade recoberta de pele de bisonte com o lado do pelo voltado para fora.
Como o tambor é com frequência o único instrumento que
utilizamos em nossos rituais, talvez eu deva agora explicar porque é assim tão
venerável e importante para nós; é porque a forma redonda do tambor representa
o Universo e seu toque regular e forte é o pulso, o coração que bate no centro
do Universo. É como a voz do Grande Espírito, e este som nos põe em movimento e
nos ajuda a compreender o mistério e o poder de todas as coisas.
Naquela noite, os cantores – quatro homens e uma mulher
– acudiram à tenda de Aquele-Que-Se-Estende, que lhes disse:
“Ó parentes meus, durante muito tempo enviamos nossas
vozes ao Grande Espírito. Isto é o que Ele disse que fizéssemos. Rogamos a Ele
de muitas maneiras e garças a este modo santo de viver nossas geraões
aprenderam a caminhar pelo caminho
vermelho com passo firme. O Calumet está sempre no centro de nossa nação
e com ele o povo avançou e continuará avançando de maneira conforme ao
mistério.”
“Neste novo rito que acabei de receber, um dos povos
que está sempre em pé foi escolhido para estar em nosso centro: é o wagachun, a árvore murmurante, o álamo;
ele será nosso centro e também nossa tribo. Esta ávore sagrada representará
também o caminho do povo, pois não se ergue a árvore da terra até o céu[61]?
Esta nova maneira de enviar nossas vozes ao Grande Espírito será muito
poderosa; seu uso se difundirá, e todos os anos, durante esta estação, muita
gente rezará ao Grande Espírito. Antes de que os ensine os cantos sagrados,
ofereçamos o Calumet ao nosso Pai e Avô Wakan-Tanka.”
“Ó Avô, Pai, Wakan-Tanka,
vamos cumprir Tua vontade, como nos ordenastes em uma visão. Sabemos que será
uma maneira muito poderosa de enviar-te nossas vozes; que nossa nação receba,
graças a ela, a sabedoria! Que nos ajude a avançar pelo caminho sagrado com
todos os Poderes do Universo! Nossa prece será verdadeiramente a prece de todas
as coisas, pois em realidade todas elas não são mais do que uma. Tudo isto eu
vi em minha visão. Que os quatro Poderes do Universo nos ajudem a realizar bem
este ritual! Ó Wakan-Tanka, tem
piedade de nós!”
Todos fumaram o Calumet e logo Aquele-Que-Se-Estende
pôs-se a ensinar-lhes os cantos misteriosos. Ao redor dos cantores haviam se
reunido muitas outras pessoas, e Aquele-Que-Se-Estende lhes disse que enquanto
escutavam deveriam gritar muitas vezes: Ó Avô Wakan-Tanka, ofereço-Te o Calumet a fim de que meu povo viva!”
O primeiro canto ensinado pelo profeta era sem
palavras; era uma simples melodia repetida quatro vezes com um vigoroso toque
de tambor. As palavras do segundo canto eram as seguintes:
Wakan-Tanka,
tem piedade de nós,
A fim de que nosso povo viva.
O terceiro era assim:
Dizem: chega
uma manada de bisontes,
Já estão aqui!
Sua bênção nos
alcançará.
Já está entre nós!
O quarto canto era uma melodia sem palavras. Depois,
Aquele-Que-Se-Estende ensinou aos homens o modo de utilizar os apitos de ossos
de águia que haviam trazido; indicou-lhes, ademais, as coisas que deviam
preparar e explicou o significado de cada objeto ritual:
“Fareis um colar de pele de lontra no qual será
pendurado um aro com uma cruz inscrita. Nos quatro pontos em que a cruz se
junta com o aro serão presas penas de águia que representarão os quatro Poderes
do Universo e as quatro idades. No centro do aro fixareis uma pluma arrancada
do peito da águia, pois este é o lugar mais próximo do coração da ave sagrada.
Esta pluma representará o Grande Espírito que mora nas profundezas do Céu e que
é o centro de todas as coisas.”
“Deveis procurar apitos de osso de águia; colocareis
uma pluma na extremidade de cada um. Ao soprar em vosos apitos lembrai-vos
sempre de que é a voz da Águia Pintada e que nosso Avô Wakan-Tanka a escuta constantemente; deveis compreender que é
realmente a sua própria voz.”
“Recortareis uma lua, em forma de quarto crescente, em
uma pele sem curtir; a lua representa uma criatura e também todo o criado, pois
todas as coisas criadas se fazem e se desfazem, vivem e morrem. Deveis
compreender também que a noite representa a ignorância, mas que a lua e as
estrelas trazem a luz do Grande Espírito a estas trevas. Como sabeis, a lua vai
e vem, mas o sol vive sempre; ele é a fonte da luz, e por esta razão é
semelhante ao Grande Espírito.”
“Recortareis em uma pele sem curtir uma estrela de
cinco pontas. Será a estrela sagrada da alma, que está entre a escuridão e a
luz, e que representa o Conhecimento.”
“Fareis um círculo de pele sem curtir que represente o
sol; será pintado de vermelho, mas no centro haverá um círculo azul, pois este
centro, que é o mais íntimo, representa o Grande Espírito em seu aspecto de Avô
nosso. A luz deste sol ilumina todo o Universo, e assim como as chamas do sol
nos chegam com a aurora desce sobre nós a graça do Grande Espírito, que ilumina
todas as criaturas. Esta é a razão pela qual os quadrúpedes e os seres alados
se alegram quando chega a luz. Durante o dia podemos ver, e esta vista é algo
profundo, pois representa a visão do Mundo real que podemos obter através do
Olho do Coração. Ao levar este signo misterioso durante a dança, lembrai-vos de
que trazeis luz ao Universo, e obtereis um grande proveito se vos concentrardes
nestes diversos significados.”
“Recortareis um círculo, que pintareis de vermelho e
que representará a Terra. A Terra está cheia de mistério, pois nela colocamos
os pés e a partir dela enviamos nossas vozes ao Grande Espírito. É parente
nossa e sempre que a chamamos Avó ou Mãe devemos recordarmo-nos disto. Quando
rezamos, levantamos a mão para o céu e em seguida tocamos o solo; pois não
procede nosso espírito do Grande Espírito e nossos corpos da Terra? Somos
parentes de todas as coisas: a terra, as estrelas, todos elevamos a mão para o
Grande Espírito e só rezamos para Ele.”
“Recortareis também um círculo numa pele sem curtir e o
pintareis de azul para representar o céu. Quando dançardes, levantareis a
cabeça e a mão para o Céu, que olhareis, pois se fizerdes isto vosso Avô vos
verá. Ele é o dono de tudo; não há nada que não lhe pertença, e portanto só a
Ele rezareis.”
“Por último, recortareis numa pele sem curtir a forma
de tatanka, o bisonte: representa a nação, e também o Universo, e deve ser
tratado sempre com veneração; não estava ele aqui antes que os povos bípedes, e
acaso não se mostra generoso ao proporcionar-nos nossas tendas e nosso
alimento? O bisonte é sábio em muitas coisas e devemos, por conseguinte,
aprender com ele e sabermos sempre que somos aparentados a ele.”
“Cada homem levará um desses símbolos sobre seu peito e
será consciente de seu significado, tal como acabo de vos explicar. Neste
grande ritual ireis oferecer vosso corpo em sacrifício em nome de toda a tribo;
graças a vós, a tribo ganhará em sabedoria e força. Sede sempre conscientes
dessas coisas que vos disse; são sagradas.”
*********
No dia seguinte era preciso eleger a árvore murmurante
que seria levantada no centro do grande recinto; Aquele-Que-Se-Estende disse ao
ajudante que tipo de árvore deveria buscar e assinalar com sálvia para que um
“grupo de guerreiros” pudesse localizá-la e levá-la ao acampamento. Indicou
também como deveriam delimitar o terreno ao redor da árvore sagrada aonde seria
construído o pavilhão ritual da dança do sol, e como deveriam assinalar com
ramos verdes a entrada do Leste.
Os exploradores, designados pelos sacerdotes, sairam a
escolher uma boa árvore; uma vez que a encontraram, regressaram ao acampamento
e, depois de dar a volta no sentido do movimento do sol no local aonde será
construído o pavilhão, precipitaram-se para a entrada, tratando de acertar-lhe
um golpe. Em seguida tomaram um Calumet e, depois de oferece-lo às seis
Direções, juraram dizer a verdade. Aquele-Que-Se-Estende falou então aos homens
nestes termos:
“Vós tomasteis o Cachimbo sagrado; por conseguinte,
deveis contar-nos veridicamente o que haveis visto. Sabeis que ao longo do cano
do Cachimbo existe um caminho que vai direto ao coração do Calumet; que vossos
pensamentos sejam tão retos como esta via. Que vossas línguas não estejam
fendidas. Fostes enviados para achar uma árvore que será de muito proveito para
nossa nação; contai-nos pois, fielmente o que haveis encontrado.”
Então o profeta fez quatro vezes um movimento circular
com o Calumet e dirigiu o cano para o explorador que iria fazer o relato.
“Subi a uma colina e vi ali um grande número destes
povos sagrados que estão sempre em pé.”
“Em que direção olhavas, e o que vistes detrás da
primeira colina?”
“Estava de cara para o Oeste – respondeu o explorador –
segui mais adiante e mirei além de uma segunda colina; e vi ainda mais povos
dos que estão sempre em pé e que viviam ali.”
O explorador foi interrogado desta maneira quatro
vezes; como vocês sabem, fazemos todas as coisas boas quatro vezes; ademais,
quando vamos pelo caminho da guerra sempre interrogamos deste modod nossos
exploradores; pois bem, nós consideramos esta árvore como um inimigo que vamos
matar[62].
Depois que os exploradores informaram, todos se
vestiram como se fossem para o caminho da guerra; a seguir sairam do
acampamento como se fossem atacar um inimigo. Muitos homens seguiram os
exploradores, e quando chegaram perto da árvore eleita juntaram-se todos ao seu
redor. Aquele-Que-Se-Estende chegou por último com seu Calumet; segurou o cano
voltado para a árvore e falou assim:
“Dentre os numerosos povos que estão sempre em pé, tu,
ó álamo sussurante, foste escolhido de uma maneira conforme ao mistério; irás
para o centro sagrado da nação; representarás a tribo e nos ajudarás a cumprir
a vontade do Grande Espírito. És uma árvore benévola e de bela aparência; os
povos alados criaram suas famílias sobre ti; em ti, desde a ponta dos galhos
mais altos até tuas raízes, os povos alados e os quadrúpedes fizerram suas
moradas. Quando estiveres erguida no centro do círculo sagrado serás a nação, e
serás como o Calumet, estendido entre o céu e a terra. Os débeis se apoiarão em
ti e serás um sustento para a tribo. Com as extremidades de teus ramos
sustentas os dias sagrados vermelho e azul. Erguer-te-ás aonde se cruzam os
quatro caminhos do mistério, ali tu serás o centro dos grandes Poderes do
Universo. Que os homens sigamos sempre teu exemplo, pois vemos como olhas
constantemente para o Céu. Logo, com todos os povos do mundo, levantar-te-ás no
centro; trarás o bem a todos os seres e a todas as coisas. Hechetu welo!”
A seguir o profeta ofereceu seu Calumet ao Céu e à
Terra, e com o cano tocou a árvore pelos lados Oeste, Norte, Leste e Sul;
depois acendeu o Cachimbo e fumou.
Creio que devo explicar agora porque consideramos
sagrado o álamo. Para começar direi que, em tempos remotos, ele nos ensinou a
construir nossas cabanas cônicas, já que suas folhas são um modelo exato do tipi; aprendemos assim: alguns anciãos
observaram crianças que confeccionavam com estas folhas cabanas para brincar.
Isto, ademais, é um exemplo de que os adultos podem sempre aprender com os
pequenos, pois os corações das crianças são puros; o Grande Espírito pode
mostrar-lhes muitas coisas que passam desapercebidas aos maiores. Outra razão
porque escolhemos o álamo para colocá-lo no centro de nosso pavilhão, é que o
Grande Espírito nos ensinou que, ao cortar um membro superior desta árvores,
aparece na fibra uma perfeita estrela de cinco pontas, que representa para nós
a Presença do Grande Espírito. Talvez vocês já tenham bnotado que a voz do
álamo pode ser ouvida mesmo com a mais tênue brisa; compreendemos que isto é
sua prece ao Grande Espírito[63],
pois não só os homens, mas todas as coisas e todos os seres oram continuamente,
ainda que de modos distintos.
Os chefes executaram uma curta dança de vitória ao
redor da árvore, cantando seus cantos de chefe, e enquanto cantavam e dançavam
escolheram o homem que teria a honra de tocar a árvore com a lança[64];
este homem deve ter um bom caráter e deve ter-se mostrado valente até o
auto-sacrifício no caminho da guerra. Outros três foram eleitos ainda, e cada
um dos quatro homens situou-se em um dos quatro lados da árvore, com o guia a
Oeste. Este último contou então suas façanhas guerreiras e quando terminou os
homens o aclamaram e as mulheres soltaram gritos agudos; em seguida ele ameaçou
três vezes a árvore com seu tomahawk,
e na quarta a golpeou. Depois dele, os outros três bravos relataram por seu
turno suas proezas na guerra, e quando terminaram golpearam a árvore do mesmo
modo, e a cada golpe todos exclamavam: “Hi
hey!” Quando a árvore estava a ponto de cair, os chefes misturaram-se com a
multidão e elegeram uma pessoa de caráter tranquilo e piedoso, que deu o último
golpe na árvore; sua queda foi saudada com grandes aclamações e as mulheres
lançaram seus agudos. Foram tomadas grandes precauções para que, ao cair, o
tronco não tocasse o solo, e ninguém estava autorizado a passar por cima dele.
Em continuação, seis homens transportaram a árvore para
o acampamento, mas, antes de chegar a ele, detiveram-se quatro vezes; depois da
última parada imitaram o grito do coiote, tal como fazem os combatentes que
regressam do caminho da guerra; logo seguiram para o acampamento e depositaram
a árvore sobre umas estacas – já que não deve tocar o solo – com a base
apontada para o buraco que havia sido preparado e a copa voltada para o Oeste.
Ainda não havia sido erguido o pavilhão ao redor da árvore, mas já estavam
prontas todas as varas e o equipamento necessário para construí-lo.
Então Aquele-Que-Se-Estende, junto com os que iam
participar da dança, dirigiu-se a uma grande tenda; deu-lhes instruções e eles
se prepararam para o rito. A tenda foi inteiramente fechada, e inclusive
puseram-se folhas em torno de sua base.
*********
Aquele-Que-Se-Estende, profeta e grande sacerdote,
achava-se sentado a Oeste. Em priemiro lugar escavou o chão diante de si e fez
com que colocassem uma brasa no local; nela acendeu a erva aromática e disse:
“Queimamos esta erva para o Grande Espírito, a fim de que todos os povos
bípedes e alados do Universo sejam parentes próximos. E assim haverá muita
felicidade.”
A seguir foi construído um pequeno modelo de secador de
carne com três paus, dois em forquilha cravados no solo e um terceiro reto
posto em cima, e foram pintados de azul; pois o secador de carne representa o
céu, e nós rezamos para que nossos secadores estejam sempre tão cheios como os
céus. Logo, após a purificação pela fumaça, o Cachimbo foi apoiado no secador,
pois deste modo representa muitas orações; ele é o caminho que leva da terra ao
Céu.
Todos os objetos que deveriam ser utilizados na dança
foram então purificados na fumaça da erva aromática: as figuras de pele, as
figuras de pele de bezerro, as bolsas de gamo; e também purificaram-se os
dançarinos. Quando tudo havia sido feito, o grande sacerdote levantou seu
Calumet para o céu e orou:
“Ó Avô Wakan-Tanka,
Tu és o Criador de todas as coisas! Sempre fostes e serás sempre! Tu te
mostrastes benévolo para com o povo, pois nos ensinastes o modo de orar com o
Cachimbo que nos destes; e agora me mostrastes em uma visão a dança de mistério
que irei ensinar ao meu povo. Hoje queremos fazer a tua vontade.”
“De pé sobre esta terra sagrada sobre a qual gerações
de meu povo estiveram erguidas, envio uma voz a Ti oferecendo este Cachimbo.
Olhai-me, ó Wakan-Tanka, pois
represento o povo inteiro. Neste Calumet quero colocar os quatro Poderes e
todos os seres alados do Universo; junto com eles, que não serão mais do que
um, quero enviar-te uma voz. Olhai-me! Iluminai meu pensamento com tua luz
imorredoura!”
“Ofereço este Calumet ao Grande Espírito, primeiro
contigo, ó Poder alado do lugar aonde se põe o sol; há um lugar para ti neste
Calumet; ajudai-nos com estes dois dias, vermelho e azul, que santificam a
nação!”
Aquele-Que-Se-Estende tomou então um pouco de tabaco e,
depois de mostrá-lo ao Céu, à Terra e às quatro Regiões, colocou-o no fornilho;
a seguir, enquanto pronunciava as orações que vou dizer, colocou no Calumet um
pouco de tabaco para cada uma das demais Direções:
“Ó Poder alado do lugar aonde vive Wazia, vou oferecer
este Calumet ao Grande Espírito; ajudai-me com os dois dias benéficos, o
vermelho e o azul, que Tu possuis – dias que purificam o povo e o Universo. Há
um lugar para Ti neste Calumet! Ajudai-nos!”
“Ó Tu, Poder do lugar de onde nasce o sol, que dás o
conhecimento e guardas a aurora do dia, ajudai-nos com teus dois dias vermelho
e azul que dão a compreensão e a luz. Há um lugar para Ti neste Calumet que vou
oferecer ao Grande Espírito. Ajudai-nos!”
“Ó Tu, Poder sacrossanto do lugar para onde sempre nos
voltamos, Tu que és a fonte da vida, que guardas a nação e as gerações futuras,
ajudai-nos com teus dias vermelho e azul! Há um lugar para Ti neste Calumet!”
“Ó Tu, Águia Pintada do Céu, sabemos que possuis olhos
penetrantes com os quais vês os menores objetos que se movem sobre a Avó Terra;
Tu que estás nas alturas do Céu e sabes tudo: ofereço este Calumet ao Grande
Espírito! Ajudai-nos com teus dias benéficos vermelho e azul!”
“ó Tu, Avó Terra, que estás estendida sustentando todas
as coisas, sobre Ti levanta-se um homem que oferece um Calumet ao Grande
Espírito. Tu estás no centro dos dois dias vermelho e azul. Haverá um lugar
para Ti neste Calumet. Ajudai-nos!”
O profeta e grande sacerdote colocou então um pouco de
tabaco no Cachimbo para cada uma das seguintes aves: o papamoscas, o pintaroxo, a andorinha, que canta nos dois dias
benéficos; o pássaro carpinteiro, o gavião, que torna a vida tão difícil para
os demais povos alados; o falcão, a gralha, que sabe de tudo; o melro, e muitos
outros pássaros; de modo que todos os objetos da criação e as seis Direções do
espaço foram introduzidos no fornilho do Cachimbo; então este foi selado com
gordura e medula de bisonte, e apoiada no pequeno secador azul.
O profeta tomou então outro Calumet, encheu-o e
dirigiu-se até aonde repousava a árvore sagrada. Trouxeram uma brasa, e a
árvore e o buraco foram purificados com a fumaça da erva aromática.
“Ó Wakan-Tanka
– orou Aquele-Que-Se-Estende elevando seu Calumet com uma das mãos – olhai esta
árvore misteriosa que logo será colocada neste buraco! Erguer-se-á junto com o
Cachimbo sagrado; será o próprio Cachimbo! Eu a toco com a cor vermelha e
poderosa de nossa Avó e com a gordura do bisonte quadrúpede. Ao tocar este
ser-árvore com a terra vermelha, lembramo-nos de que as gerações de tudo quanto
se move provêm de nossa Mãe Terra. Com tua ajuda, ó árvore, logo oferecerei meu
corpo e minha alma ao Grande Espírito; e comigo – em mim – ofereço meu povo e
todas as gerações futuras!”
O grande sacerdote tomou então a pintura vermelha,
ofereceu-a às seis Direções e dirigiu-se novamente à arvore sagrada:
“Ó árvore, vais colocar-te de pé; sê miseriocordiosa
com meu povo para que, debaixo de ti, prospere!”
Então ele pintou um risco vermelho nos lados Oeste,
Norte, Leste e Sul da árvore, e fez na extremidade uma marca bem pequena para o
Grande Espírito; em continuação colocou na base um pouco de pintura para a Mãe
Terra. Por útimo, tomou uma pele de bisonte jovem e disse:
“Nossa nação vive deste ser-bisonte; ele nos
porporciona nossas casas, nossas roupas, nosso alimento, tudo o que nos faz
falta. Ó jovem bisonte, dou-te agora um lugar sagrado no alto da árvore. Ela te
segurará em suas mãos e te elevará até o Grande Espírito. Vê o que vou fazer!
Graças a isto, todas as coisas que se movem e que voam na terra e no céu serão
felizes.”
E levantou uma pequena muda de cerejeira e continuou
orando:
“Olhai isto, ó Wakan-Tanka,
pois é a árvore da nação e rogamos para que leve fruto abundante.”
Sujeitaram a arvorezinha ao álamo sagrado, logo abaixo
da pele de bisonte, assim como um saquinho de pele de gamo que continha um
pouco de gordura.
Aquele-Que-Se-Estende levantou então as imagens de
couro do bisonte e do homem, e oferecendo-as às seis Direções, rogou:
“Olhai, ó Avô, este bisonte que nos destes; ele é o
chefe de todos os quadrúpedes que existem sobre nossa Mãe sagrada; a nação
procede dele, e com ele caminha pela via do mistério. Olhai também o homem que
representa a tribo. Eles são os dois chefes desta grande ilha; concedei todos
os favores que te pedem, ó Wakan-Tanka!”
Estas duas imagens foram colocadas logo abaixo do lugar
em que a árvore bifurca; depois o profeta ergueu um saquinho de gordura – que
mais tarde será posto debaixo da árvore – e rezou assim:
“Ó Avô Wakan-Tanka,
olhai esta gordura sagrada sobbre a qual este ser-árvore será levantado: que a
terra seja sempre tão fértil e fecunda como esta grodura! Ó árvore, este dia é
sagrado para ti e para todos os nossos; a terra deste círculo te pertence, ó
árvore, e é aqui, sob ti, onde vou oferecer meu corpo e minha alma por amor à
tribo[65].
Aqui estarei enviando-te minha voz, ó Wakan-Tanka,
com a oferenda do Cachimbo de mistério. Tudo isto é sem dúvida muito difícil de
fazer, mas deve cumprir-se para o bem de todos. Ajudai-me, ó Avô, e daí-me
valor e força para suportar os sofrimentos que me esperam. Ó árvore, agora
estás admitida no pavilhão.”
Entre muitas exclamações e gritos estridentes, a árvore
foi posta em pé muito lentamente, pois os homens detiveram-se por quatro vezes
antes de tê-la erguida e colocada no buraco preparado para ela. Todo mundo, os
bípedes, os quadrúpedes e os seres alados do ar se alegraram; todos iriam
prosperar debaixo da proteção da árvore. Ela nos ajudará a irmos pelo caminho
sagrado; podemos apoiar-nos nela, e ela nos guiará e fortalecerá sempre.
Executaram uma curta dança em torno da base da árvore,
e começaram a construir o recinto ao seu redor cravando em um amplo círculo
vinte e oito postes em forquilha, em cima dos quais puseram varas que iam
unir-se à árvore situada no centro.
Devo explicar agora que, ao edificar o pavilhão da
dança do sol, construímos realmente uma imagem do Universo; pois é preciso
compreender que cada um dos postes representa algum objeto particular da
criação, de modo que o círculo completo é a totalidade da criação, e a árvore
única no centro, sobre a qual descansam as vinte e oito varas, é o Grande
Espírito, que constitui o centro de todas
as coisas. Tudo procede d’Ele, e tudo regressa a Ele, cedo ou tarde.
Devo dizer também porque empregamos vinte e oito varas: já expliquei a razão
pela qual os números quatro e sete são sagrados; se contarmos quatro vezes sete
teremos vinte e oito. A lua tem vinte e oito dias, que formam nosso mês; cada
um destes dias representa algo que para nós é sagrado. Dois destes dias
representam o Grande Espírito; outros dois a Mãe Terra; quatro, os quatro
Ventos; um dia a Águia Pintada, outro o sol e outro a lua; existe um dia para a
Estrela da aurora e quatro dias para as quatro idades; sete dias representam
nossos sete grandes rituais, um dia o bisonte, um dia o fogo, um a água, outro
a rocha e, por último, um dia representa o povo bípede. Se somamos estes dias,
obtemos um total de vinte e oito. É preciso saber, ademais, que o bisonte tem
vinte e oito costelas, e que em nossos cocares de guerra empregamos normalmente
vinte e oito plumas. Como se vê, todas as coisas têm seu significado, e é bom
saber e lembrar-se disto. Mas voltemos à dança do sol.
Os guerreiros vestiram-se e pentearam-se. Entraram no
recinto e dançaram ao redor da árvore central; deste modo o solo se purificava
e nivelava. Os chefes reuniram-se e escolheram os valentes, um dos quais
deveria ser o diretor da dança. Estes homens escolhidos dançaram avançando
primeiro para o Oeste e voltando ao centro, a seguir para o Norte e de novo ao
centro, depois para o Leste regressando outra vez ao centro, e finalmente para
o Sul e de novo ao centro; deste modo fizeram um percurso em forma de cruz.
*********
Mas antes de proceder à dança do sol, os homens tinham
que purificar-se na cabana de suar. O profeta entrou em primeiro lugar na
cabana do inipi com o Calumet já
carregado, e sentou-se no Oeste; os demais homens que iam participar da dança
entraram a seguir, evitando passar diante dele; a última a entrar foi uma
mulher, que sentou-se perto da porta.
Todas as roupas de pele de bisonte que seriam usadas na
dança foram colocadas em cima da cabana do inipi,
pois assim seriam purificadas. As cinco pedras aquecidas que representavam as
cinco Direções foram então introduzidas e colocadas sobre o altar em seus
lugares respectivos, após o que uma sexta pedra foi colocada no caminho ritual.
Aquele-Que-Se-Estende tomou o Calumet que iria servir
para a dança; mas para o ritual do inipi foi enchido um segundo Calumet, que
foi entregue ao grande sacerdote para que o abençoasse e acendesse. Fumou-se o
Cachimbo em grupo, da maneira ritual, e depois de purificá-lo levaram-no para
fora da cabana. A porta foi fechada; era o momento em que o profeta explicaria
ao povo a sua visão:
“Parentes meus, escutai-me todos! O Grande Espírito foi
benévolo conosco e nos estabeleceu em uma terra sagrada; nela estamos sentados
agora. Acabais de ver as cinco pedras colocadas no centro, e esta sexta pedra
que foi posta no caminho representa a nação. Para o bem de todos vós, o Grande
Espírito ensinou-me numa visão um caminho de adoração que vou ensinar-vos.”
“Os céus são sagrados, pois neles vive nosso Avô, o
Grande Espírito; estes céus são como um manto para o Universo; este manto está
agora sobre mim, que estou diante de vós. Ó Wakan-Tanka,
eu Te mostro o círculo de nossa nação, este círculo que está aqui e no qual há
uma cruz; esta cruz, um dos nossos a leva sobre seu peito. Eu Te mostro a Terra
que Tu fizestes e fazes sem cessar; está representada por este círculo vermelho
que levamos. Também levamos a luz inextinguível que muda a noite em dia, a fim
de que esteja entre os nossos e que eles possam ver. Mostro-Te também a estrela
da aurora, que nos dá o conhecimento. O bisonte quadrúpede que pusestes aqui
embaixo antes dos bípedes está também conosco. E igualmente está aqui a mulher
celeste que veio a nós de modo tão misterioso. Todos estes povos e todas estas
coisas, que são santos, escutam neste momento o que digo.”
“Logo, junto com meus parentes que se acham aqui,
sofrirei e suportarei grandes penas em favor de meu povo. Em meio às lágrimas e
ao sofrimento elevarei meu Calumet e lançarei minha voz até Ti, ó Wakan-Tanka! Oferecerei meu copro e
minha alma para que meu povo viva. Ao enviar-Te minha voz, ó Wakan-Tanka,
utilizarei aquilo que une a Ti as quatro Regiões, o Céu e a Terra[66].
Tudo quanto se move no Universo – os quadrúpedes, os insetos, os seres alados –
regozija-se e nos ajuda, a mim e à minha tribo.”
E entoou um canto de mistério:
Ouço vir o
sol, a luz do mundo,
Vejo seu rosto quando
chega.
Faz felizes aos seres
da terra, e eles se alegram.
Ó Wakan-Tanka, Te ofereço este mundo de luz!
O Calumet que deveria ser empregado na dança foi então
envolvido em sálvia e a mulher tirou-o da cabana; levou-o pelo caminho sagrado
até o Leste e colocou-o sobre o crânio de bisonte, cuidadno para que o cano
estivesse dirigido para o Leste. A mulher permaneceu fora da cabana de suar e
ajudou a abrir e fechar a porta. O inipi
começou então da maneira como já descrevi. Depois que a porta foi fechada pela
segunda vez, o profeta rezou assim:
“Avô Wakan-Tanka,
olhai-nos! O Cachimbo sagrado que nos destes e com o qual criamos nossos filhos
logo irá para o centro do Universo, junto com o bisonte que ajudou a fortalecer
nossos corpos. A mulher de mistério que veio outrora ao centro de nosso círculo
voltará ao nosso centro; e um homem que sofrerá por seu povo irá igualmente ao
centro. Ó Wakan-Tanka, que quando
estivermos todos no centro, não tenhamos em nossos pensamentos e em nosso
coração mais do que a Ti!”
Então cantou outro canto que havia recebido em sua
visão:
Ouço-o vir.
Vejo seu rosto.
Teu dia é sagrado. Eu
To ofereço.
Ouço-o vir. Vejo seu
rosto.
Naquele dia sagrado,
fizestes o bisonte vagar.
Fizestes um dia feliz
para o mundo.
Eu Te ofereço todas as coisas.
A seguir, derramaram água sobre as pedras quentes,
enquanto o sacerdote rezava:
“Ó Wakan-Tanka,
neste momento nos purificamos para sermos dignos de elevarmos nossas mãos a
Ti!”
Então, levantando a mão direita, todos os homens
cantaram:
Avô, envio-Te
uma voz.
Avô, envio-Te uma voz.
Junto com todo o
Universo, Avô, envio-Te uma voz.
Para que eu viva.
Quando a porta foi aberta pela terceira vez, os homens
puderam beber um pouco de água, mas esta foi a única ocasião durante o rito que
lhes foi permitido fazê-lo. Enquanto os homens recebiam a água, o profeta
disse:
“Eu vos dou a água, mas lembrai-vos d’Aquele que, no
Oeste, custodia as águas e também o mistério de todas as coisas. Ireis beber a
água, que é vida; não desperdiceis uma só gota. Quando terminardes, levantai a
mão para dar graças ao Poder do lugar aonde o sol se põe; ele vos ajudará a
suiportar os sofrimentos que ireis experimentar.”
A porta foi fechada pela última vez, e de novo todos os
homens cantaram, enquanto o calor e o vapor os purificavam, e quando ao final a
porta foi aberta todos sairam conduzidos pelo profeta e levantaram a mão para
as seis Direções, dizendo: “Hay ho! Hay ho! Graças sejam dadas!”
Cada um dos dançarinos tinha um ajudante encarregado de
tirar de cima da cabana de suar uma das peles de bisonte purificadas e
colocá-la ao redor do seu corpo. Aquele-Que-Se-Estende tomou então seu Calumet,
que descansava sobre o crânio de bisonte, e voltou com todos os homens ao
grande tipi em que haviam se reunido
antes da consagração da árvore e antes do rito do inipi.
*********
O grande sacerdote deixou seu Calumet apoiado no
pequeno secador que havia sido pintado de azul para representar o céu. Foi
posta erva aromática sobre uma brasa e todos se purificaram na fumaça sagrada.
Ato contínuo, enquanto abençoava e purificava o tambor e as baquetas, o profeta
disse:
“Este tambor é o bisonte e irá para o centro. Tocando o
tambor com as baqueta, certamente venceremos a nossos inimigos.”
Todas as roupas e apetrechos foram purificados, assim
como os quatro crânios de bisonte que um dos homens iria levar cravados em sua
carne até que se desprendessem.
O profeta explicou aos homens que seus corpos
purificados eram agora sagrados e nem sequer podiam ser tocados pelas suas
próprias mãos. Assim, os dançarinos deveriam levar nos cabelos uns pauzinhos
com os quais poderiam coçar-se, se necessário, e que iriam utilizar para se
pintarem com a tintura de tera vermelha.
Aquele-Que-Se-Estende colocou ao redor do pescoço o
círculo de couro pintado de azul que representava o Céu, e os demais levaram
cada qual um símbolo diferente: o círculo com a cruz, o da terra vermelha, o
sol, a lua, a estrela Dalva, o bisonte; a mulher levava o Calumet, já que
representava a Mulher Bisonte Branco. Do mesmo modo, os homens colocaram peles
de coelho sobre os braços e as pernas, pois o coelho representa a humildade,
por ser dócil, manso e sem presunção, qualidades que todosdevemos possuir
quando vamos ao centro do mundo. Por último, os homens colocaram penas no
cabelo, e uma vez terminados os preparativos o profeta lhes explicou o que
tinham que fazer quando estivessem no pavilhão da dança sagrada.
“Quando formos ao centro do círculo, todos derramaremos
lágrimas, pois devemos saber que tudo o que entra através do nascimento neste
mundo que vêdes ao vosso redor deve sofrer e suportar penas. Agora vamos sofrer
no centro do círculo sagrado, e, fazendo-o, oxalá tomemos sobre nós uma grande
parte do sofrimento de nosso povo!”
Cada homem declarou então qual sacrifício suportaria e
o profeta expressou seu voto em primeiro lugar:
“Sujeitarei meu corpo às correias do Grande Espírito
que descem até a terra. Esta será minha oferenda.”
Devo dizer aqui que a carne representa a ignorância e,
portanto, quando dançamos e nossa carne desgarrada se desprende das correias, é
como se nos liberássemos dos laços da carne. O mesmo acontece quando se doma um
potro: de início o cabresto é indispensável, mas quando o potro está domado a
corda não é mais necessária. Também nós somos como potros quando começamos a
dançar, mas logo nos tornamos domados e submetidos ao Grande Espírito.
O segundo dançarino disse:
“Quero unir-me aos quatro Poderes do mundo que foram
estabelecidos pelo Grande Espírito.”
Neste caso o dançarino estará situado efetivamente no
centro, pois se achará no meio de quatro postes e o lado direito de seu peito
será amarrado ao poste do Leste, o lado esquerdo ao poste do Norte, o ombro
direito ao poste do Sul e o ombro esquerdo ao poste do Oeste. Dançará nesta
posição até que as quatro correias se desprendam de sua carne.
O terceiro dançarino fez seu voto:
“Quero levar quatro de meus parentes mais próximos, o
antigo bisonte.”
O dançarino quis dizer com isto que seriam fixadas
quatro correias às suas costas, às quais estariam presos quatro crânios de
bisonte; estas quatro ataduras representam as cadeias da ignorância; esta, de
fato, deveria estar sempre atrás de nós, posto que devemos nos voltar para a
luz que está diante de nós.
O quarto dançarino disse:
“Quero deixar doze pedaços da munha carne ao pé desta
árvore sagrada. Um é para nosso Avô Wakan-Tanka,
outro para nosso Pai Wakan-Tanka, um
terceiro para nossa Avó, a Terra, e um quarto para nossa Mãe, a Terra. Quero
deixar quatro pedaços de carne para os Poderes das quatro Direções,
abandeonarei outro para a Águia Pintada, outro para a estrela Dalva, outro para
a lua e, por último, outro para o Sol.”
O quinto dançarino disse:
“Quero fazer uma oferenda de oito pedaçoes da minha
carne: dois serão para o Grande Espírito, dois para a Terra, e quatro para os
Poderes das quatro Direções.”
O sexto dançarino disse:
“Quero abando nar na árvore sagrada quatro pedaços de
minha carne: um será para o Grande Espírito, outro para a Terra sobre a qual
caminhamos, um para anação, a fim de que caminhe com passo firme, e um para os
povos alados do Universo.”
O sétimo dançarino fez seu voto:
“Quero deixar um pedaço de minha carne para o Grande
Espírito e outro para a Terra.”
Então o oitavo dançarino, que era a mulher, fez seu
voto:
“Quero oferecer um pedaço de minha carnme ao Grande
Espírito e em favor de todas as coisas que se movem no Universo, para que elas
dêem seus poderes para a tribo, a fim de que esta avance com seus filhos pelo
caminho vermelho da vida.”
Quando terminaram de pronunciar seus votos, o grande
sacerdote lhes disse que se purificassem esfregando o rosto e todo o corpo com
sálvia, “pois vamos nos aproximar agora do lugar sagrado em que se ergue a árvore;
a árvore é também o Calumet que se estende do Céu até a terra. Temos que ser
dignos de ir a este centro.”
*********
Todos os membros da tribo haviam se reunido ao redor do
pavilhão do mistério; no interior, ao sul, estavam os cantores junto com as mulheres
que os ajudavam, e todos levavam coroas de folhas à frente e tinham nas mãos
ramos de plantas sagradas.
Então chegaram os dançarinos conduzidos pela mulher que
levava o Calumet e seguidos pelo profeta que levava o crânio de bisonte, e no
final desta fila vinham os ajudantes com todos os apetrechos. Caminharam
lentamente ao redor do pavilhão imitando o percurso do sol e chorando e se
lastimando sem cessar:
“Ó Wakan-Tanka,
tende piedade de mim para que meu povo viva! É por ele que me sacrifico!”
Enquanto os dançarinos cantavamdeste modo, os demais
choravam, pois eles eram a nação pela qual os dançarinos iriam sofrer. Estes
entraram no pavilhão do sol e situaram-se no Oeste. O profeta colocou o crânio
de bisonte entre os dançarinos e a árvore sagrada, com o osso nasal dirigido
para o Leste; frente a si colocou os três bastões pintados de azul, e sobre
este cavalete a mulher depositou o Calumet. Então os cantores entoaram um dos
cantos inspirados:
Ó Wakan-Tanka, tende misericórdia de nós!
Queremos viver!
Esta é a razão pela
qual fazemos isto.
Dizem que vem uma
manada de bisontes:
Já estão aqui.
O Poder do bisonte vem
a nós;
Já está aqui!
Quando cessou o canto, todos romperam em pranto; e
durante o resto do dia e da noite dançaram. Esta dança da primeira noite
representa o povo submergido na escuridão da ignorância; ainda não são dignos
de encontrar a luz do Grande Espírito, que brilhará sobre eles quando chegar o
dia seguinte; devem sofrer e purificar-se antes de serem dignos de estar com o
Grande Espírito.
No último momento, antes da aurora, a dança se deteve e
então os dançarinos ou seus parentes depositaram oferendas fora do pavilhão, no
lugar correspondente a cada uma das quatro Regiões.
Com a aurora, os dançarinos voltaram a entrar no
pavilhão, e o guardião do Cachimbo sagrado ia com eles; o profeta lhe havia
pedido que construísse o altar sagrado, mas aquele homem venerável respondeu:
“Tu tivestes a visão, Kablaya, e a ti
corresponde fazer o altar; mas eu estarei ao teu lado e, quando terminares,
oferecerei a oração.”
E foi assim que o profeta e grande sacerdote dispôs o
recinto sagrado: primeiro traçou no solo, diante de si, um círculo, em cujo
centro depositou uma brasa[67];
em seguida, colhendo algumas ervas aromáticas e sustentando-as sobre sua
cabeça, orou:
“Ó Avô Wakan-Tanka,
esta é a tua erva misteriosa, que coloco no fogo; sua fumaça se estenderá por
todo o mundo e chegará mesmo até o céu; os povos quadrúpedes e alados e todas
as coisas saberão o que é esta fumaça e se alegrarão. Que esta oferenda ajude a
estabelecer um parentesco entre todas as coisas, todos os seres e nós! Que
todos eles nos dêem seus poderes para que possamos suportar os sofrimentos que
nos esperam. Olhai, ó Wakan-Tanka,
ponho esta erva aromática no fogo e a fumaça se elevará até Ti.”
Enquanto colocava a erva no fogo, cantou este canto de
mistério:
Faço a fumaça
sagrada;
Assim faço a fumaça;
Que todos os povos a
vejam!
Faço a fumaça sagrada;
Que todos estejam
atentos e vejam!
Que todos os seres
alados e os quadrúpedes
Estejam atentos e
vejam!
Desta maneira faço a
fumaça;
Em todo o Universo se alegrarão!
O machado destinado a abrir o peito dos dançarinos foi
então purificado na fumaça, assim como uma pequena machadinha de pedra e um
pouco de terra. Aquele-Que-Se-Estende pode então fazer o altar, mas antes
rezou:
‘Ó Avô Wakan-Tanka,
quero agora converter isto em um lugar sagrado. Quando fizer este altar, todas
as aves do ar e todas as criaturas da terra se regozijarão e acudirão de todas
as direções para contemplá-lo. Todas as gerações do meu povo se alegrarão. Este
lugar será o centro dos caminhos dos quatro grandes Poderes. A aurora do dia
verá este lugar santo. Quanto tua luz aparecer, ó Wakan-Tanka, tudo quanto se move no Universo se alegrará.”
Depois de ser oferecido ao Céu e à Terra, um pouco de
terra purificada foi colocado no centro do recinto ritual. Outros bocados foram
oferecidos ao Oeste, ao Norte, ao Leste e ao Sul, e depositados no lado Oeste
do círculo; do mesmo modo, foi posta terra nos lugares das demais direções e
logo esparramada por todo o círculo por igual. Esta terra representa os
bípedes, os quadrúpedes, os seres alados e tudo o que existe no Universo. Então
o grande sacerdote começou a construir o altar neste recinto sagrado: tomou
primeiro um bastão, dirigiu-o às seis Direções e a seguir, baixando-o até o
solo, traçou um pequeno círculo no centro; este círculo indica a morada do
Grande Espírito. Continuando, depois de haver novamente dirigido o bastão
às seis Direções, traçou
uma linha do Oeste até a borda do círculo e do mesmo modo traçou uma linha do
Leste até a borda do círculo, e repetiu a operação desde o Norte e o Sul.
Construindo a altar desta maneira, vemos que tudo conduz e regressa ao centro;
e este centro que está aqui, e que sabemos que se encontra em toda a parte, é o
Grande Espírito.

“Ó Wakan-Tanka,
olhai-nos! O que está mais próximo dos bípedes, o chefe dos quadrúpedes, é tatanka, o bisonte. Eis aqui seu crânio
seco; ao vê-lo, sabemos que também nós nos convertiremos em crânios e
esqueletos, e deste modo marcharemos juntos pelo caminho de regresso ao Grande
Espírito.. Quando chegarmos ao final de nossos dias, sêde misericordioso
consoco, ó Wakan-Tanka! Aqui, na
terra, vivemos com o bisonte e lhe somos agradecidos por isto, pois ele nos dá
nosso alimento e faz feliz ao nosso povo. Por esta razão, agora dou a erva ao
nosso parente o bisonte.”
Fez então um pequeno leito de sálvia a Leste do altar e,
segurando o crânio pelos chifres e olhando para o Leste, cantou:
Dou erva ao
bisonte;
Que o povo o contemple
Para que viva!
Logo, voltando-se e levantando o crânio para o Oeste, o
grande sacerdote cantou:
Dou tabaco ao bisonte;
Que o povo o contemple
Para que viva!
Voltando-se para o Norte, cantou:
Dou um vestido para o bisonte;
Que o povo o contemple
Para que viva!
E, voltando-se para o Sul, cantou:
Dou pintura ao
bisonte;
Que o povo o
contemple,
Para que viva!
Então, de pé sobre a sálvia, cantou:
Dou água ao
bisonte;
Que o povo o
contnemple,
Para que viva!
Continuando, o crânio do bisonte foi colocado no leito
de sálvia, voltado para o Leste, e Aquele-Que-Se-Estende colocou umas bolinhas
de sálvia nas órbitas; logo atou um saquinho de tabaco no chifre que apontava o
Sul, e um pedaço de pele de gamo no chifre que apontava o Orte, pois esta pele
representa o vestido oferecido ao bisonte. Em seguida pintou uma linha vermelha
ao redor da cabeça e outra linha vermelha que ia da fronte ao osso nasal, e
enquanto o fazia, disse:
“Ó bisonte, tu és a Terra. Oxalá compreendamos isto e
tudo o que foi feito aqui! Hechetu welo!
Está bem!”
Quando terminaram as oferendas ao bisonte, os
dançarinos deram volta ao pavilhão e detiveram-se à entrada, olhando o Leste
para saudar o sol levante.
“Olhai estes homens, ó Wakan-Tanka – rogou o grande sacerdote levantando a mão direita – o
rosto da aurora encontrará seus rostos; o dia que chega sofrirá com eles. Será
um dia sagrado, pois Tu, ó Wakan-Tanka,
estás aqui presente!”
Então, no exatop momento em que o sol começou a
despontar, os dançarinos cantaram uma melodia inspirada sem palavras, e o
profeta entoou um de seus cantos de mistério:
O Pai se
levanta!
A luz do Grande
Espírito está sobre o meu povo;
Torna brilhante toda a
terra.
Meu povo está feliz
agora!
Todos os seres que se movem regozijam-se!
Enquanto os homens cantavam sem palavras e o profeta
cantava as fórmulas sagradas, todos dançavam, e ao fazê-lo se deslocavam de
maneira que seu rosto mirava o Sul, depois o Oeste e o Norte, para depois deterem-se de novo no
Leste, olhando desta vez para a árvore sagrada.
Os cantos e os toques de tambor cessaram e os
dançarinos foram sentar-se a Oeste do pavilhão, nos leitos de sálvia que haviam
sido preparados. Os ajudantes esfregaram o corpo dos dançarinos para tirar a
pintura e depois colocaram sobre suas cabeças coroas de sálvia e penas de
águia; as mulheres fizeram o mesmo em suas cabeleiras.
Durante toda a dança do sol levamos coroas de sálvia na
cabeça, pois é sinal de que nossos pensamentos e nossos corações estão próximos
do Grande Espírito e de seus Poderes, já que a coroa representa as coisas
celestes – as estrelas e os planetas – que estão cheias de mistério.
Aquele-Que-Se-Estende indicou então aos homens como
deveriam pintar-se: a parte superior do corpo, a partir do ventre, de vermelho,
e o rosto também de vermelho; o vermelho representa, com efeito, tudo o que é
sagrado, e especialmente a Terra; assim, pois, devemos recordar-nos de que
nossos corpos vêm da Terra, e de que voltarão para ela. Deve-se pintar um
círculo negro ao redor do rosto, pois este círculo nos ajuda a recordarmos o
Grande Espírito, que, como o círculo, não tem fim. Como já disse, existe muito
poder no círculo; os pássaros o sabem, posto que voam em círculos e constróem
seus ninhos com esta forma; também os coiotes o sabem, pois vivem na terra em
buracos redondos. Deve ser traçada uma linha negra desde a fronte até entre as
sobrancelhas, outra linha em cada bochecha, assim como no queixo: estas quatro
linhas representam os quatro Poderes das quatro Direções. Pintam-se ademais
riscas negras ao redor do pulso, do cotovelo, da parte superioir do braço e dos
tornozelos; é preciso saber que o negro é a cor da ignorância[68],
e portanto estes riscos são como os laços que nos atam à terra. Deve-se
observar também que estes riscos partem da terra e não sobem além do peito,
pois ali ficam as correias que estão ligadas ao corpo; estas correias são como
os raios de luz do Grande Espírito. Assim, quando puxamos estas correias até
nos desprendermos delas, é como se o Espírito fosse libertado de nossos corpos
obscuros. Quando esta dança foi executada pela primeira vez, todos os homens
iam pintados desta maneira, e só numa época mais recente cada dançarino passou
a se pintar de um jeito diferente conforme a visão que possa ter tido.
Quando todos estavam pinntados, os dançarinos se
purificaram com a fumaça da erva aromática e colocaram os vários símbolos que
descrevi. O dançarino que havia feito o voto de carregar os quatro crânios de
bisonte levava uma forma de bisonte sobre o peito, e na cabeça chifres feitos
de sálvia.
*********
Quando os preparativos terminaram, os dançarinos
situaram-se ao pé da árvore sagrada, a Oeste; e, olhando a copa da árvore,
levantaram a mão direita e tocaram os apitos feitos de ossos de águia; enquanto
isto, o sacerdote rezou:
“Ó Avô Wakan-Tanka,
inclina-te e dirige um olhar a mim enquanto elevo a mão a Ti. Vês aqui os
rostos de meu povo. Tu vês os quatro Poderes do Universo e nos vistes agopra em
cada uma das quatro Direções. Vistes o lugar sagrado e o centro que fixamos,
aonde vamos sofrer. Ofereço-Te todo meu sofrimento pelo bem do meu povo. Existe
um bom dia diante de mim, pois estou diante de Ti, e isto me aproxima de Ti, ó Wakan-Tanka! É a tua luz que vem com a
aurora e que atravessa os céus. Estou de pé sobre a tua Terra sagrada. Tende
misericórdia de mim, ó Wakan-Tanka,
para que meu povo viva!”
Então todos os cantores puseram-se a cantar em coro:
Ó Wakan-Tanka,
tende misericórdia de mim!
Faço isto para que meu povo viva!
Os dançarinos giraram em círculo para o Leste, olhando
para a copa da árvore, a Oeste; e, levantando as mãos, cantaram:
“Nosso Avô Wakan-Tanka nos deu um caminho que é
sagrado.”
Indo agora para o Sul e olhando para o Norte, os dançarinos
tocaram seus apitos de osso de águia, enquanto os outros cantavam:
Vem um
bisonte, dizem,
Já está aqui!
O Poder do bisonte
vem;
Já está sobre nós!
Durante este canto, os dançarinos se deslocaram em
círculo para o Oeste e fizeram frente para o Leste tocando sem descanso seus
estridentes apitos de osso de águia. Em seguida foram ao Norte e fizeram frente
para o Sul, e finalmente foram de novo para o Oeste e fizeram frente para o
Leste. Então todos os dançarinos romperam em soluços; o profeta recebeu uma
correia e dois alfinetes de madeira, foiao centro e, segurando a árvore
sagrada, soluçou:
“Ó Wakan-Tanka,
tende misericórdia de mim! Faço isto para que meu povo viva!”
Chorando continuamente, foi ao Norte e dali deu uma
volta completa no recinto, detendo-se em cada um dos vinte e oito postes.
Levando consigo seus alfinetes e suas correias, os dançarinos fizeram como ele
e, quando todos estavam no Norte, de cara para o Sul, o profeta foi para o Sul
e agarrou com as duas mãos a árvore sagrada.
Enquanto os cantores e os tambores aceleravam o ritmo
de seus cantos e dobrados, os ajudantes ergueram-se de um salto, agarraram
rudemente o sacerdote e lançaram-no por terra; um deles puxou a pele do seio
esquerdo do grande sacerdote e cravou nele um bastãozinho encerado, e fez o
mesmo no seio direito. A longa correia de couro cru foi fixada pelo meio ao
redor da árvore sagrada, perto da cúspide, e seus extremos foram presos aos
alfinetes cravados no peito de Aquele-Que-Se-Estende. Os ajudantes puseram-no
de pé rudemente; começou a tocar seu apito de osso de águia e, inclinando-se
para trás e sustentado pelas ataduras, pôs-se a dançar. Dançará nesta posição
até que as correias se desprendam de sua carne.
Quero explicar agora porque utilizamos duas correias
que, a bem da verdade, não são mais do que uma muito longa, presa no centro da
árvore e feita com uma só pele de bisonte cortada circularmente. Isto deve nos
fazer recordar que, embora pareça que existem duas correias separadas, estas
não são em realidade senão uma; só o ignorante vê como múltiplo aquilo que é
realmente único. Esta verdade da unidade de todas as coisas é melhor
compreendida participando deste rito e oferecendo a nós mesmos em sacrifício.
O segundo dançarino foi até o centro e, como o profeta,
abraçou a árvore e rompeu em soluços. Os ajudantes precipitaram-se sobre ele e,
depois de atirá-lo rudemente ao solo, perfuraram seu peito e suas espáduas à
direita e à esquerda; cravaram em sua carne umas agulhas de madeira às quais
ataram umas cordas curtas. Este valente foi então atado entre quatro postes,
tão fortemente que não podia mover-se para nenhum lado. Primeiro chorou, não de
dor como uma criança[69],
mas porque sabia que sofria por seu povo e compreendia a santidade da união em
seu corpo das quatro Direções, em cujo centro ele se convertia realmente.
Elevando suas mãos ao céu e tocando o apito, este homem iria dançar até que as
correias fossem arrancadas de sua carne.
O terceiro dançarino, que deveria levar quatro crânios
de bisonte, foi ao centro e, depois de abraçar a árvore sagrada, foi por sua
vez derrubado e posto de cara ao chão; cravaram-lhe quatro bastõezinhos que
atravessaram a carne de suas espáduas e nos quais sujeitaram os quatro crânios
de bisonte. Os ajudantes puxaram os crânios para certificarem-se de que
aguentavam firmemente; depois entregaram ao dançarino seu apito de águia, que
ele tocou sem cessar enquanto dançava. Creio que é compreensível até que ponto
isto era dolorido para ele, pois a cada
movimento os chifres ponteagudos dos crânios penetravam em sua pele ,
mas naqueles tempos nossos homens eram valorosos e não mostravam o menor sinal
de sofrimento; estavam realmente contentes em sofrer pelo seu povo.
Parentes e amigos se acercavam vez por outra dos
dançarinos e dançavam ao seu lado para dar-lhes alento, ou uma jovem que amava
a um deles tomava uma erva que havia mastigado e a punha na boca deste
dançarino para dar-lhe forças e acalmar sua sede. O tanger dos tambores, os
cantos e a dança nunca se detinham, e podia ouvir-se, dominando todos os sons,
o solvo agudo dos apitos de osso de águia.
O quarto homem, que havia feito o voto de doar doze
pedaços de carne, avançou e sentou-se ao pé da árvore, que abraçou com suas
mãos; os ajudantes tomaram uma faquinha talhada em um osso e em diversos
lugares levantaram a carne, da qual cortaram seis pedacinhos do lado direito e
seis do lado esquerdo. Esta carne foi deixada como oferenda ao pé da árvore, e
o homem pôs-se de pé e foi juntar-se à dança com os demais.
Do mesmo modo, o quinto dançarino sacrificou oito
pedaçoes de sua carne; o sexto deu quatro da sua e o sétimo sacrificou dois.
Por último, a mulher abraçou a árvore, sentou-se e disse entre lágrimas:
“Pai Wakan-Tanka,
neste único pedaço de carne ofereço-me a Ti, aos teus Céus, ao Sol, à Lua, à
Estrela Dalva, aos quatro Poderes e a todas as coisas.”
Continuaram dançando, e as pessoas aclamavam o profeta,
dizendo-lhe que puxasse com mais força as correias, o que ele fez até que por
fim uma delas se soltou, e todos gritaram “hi
ye!”. Caiu, mas ajudaram-no a levantar-se e continuou dançando até que a
outra correia foi arrancada. Caiu de novo, mas pôs-se em pé e levantou as mãos
para o céu, e então todos o aclamaram com grandes vozes. Sustentaram-no até que
chegou ao pé da árvore sagrada, onde descansou num leito de sálvia; puxou a
carne palpitante de seu peito e arrancou doze pedaços, que colocou no pé da
árvore. Os pajés colocaram uma erva curativa sobre suas feridas e o trasladaram
a um lugar na sombra aonde descansou por alguns instantes; logo levantou-se e
continuou dançando com os demais.
Ao final, o homem que havia dançado com os quatro
crânios perdeu dois, e então o profeta ordenou que lhe cortassem a pele de modo
a que os outros dois se desprendessem. Mas apesar de se ver libertado dos
quatro crânios, este valente continuou dançando.
Então, o que havia dançado no centro dos quatro postes
rompeu duas de suas ataduras; o profeta disse que já havia suportado bastante,
e com uma faca cortou-lhe a pele, de modo que se viu livre das duas outras ataduras.
Estes dois homens ofereceram então doze pedaços de sua carne à árvore sagrada,
e todos os dançarinos e muitas outras pessoas prosseguiram a dança até quase o
por do sol.
*********
No momento que precede o por do sol o Calumet foi
levado aos dançarinos e aos cantores como sinal de que sua função havia
terminado e que podiam fumar. Então os dançarinos e o guardião do Cachimbo
sentaram-se ao Norte do pavilhão, e a mulher tomou em suas mãos o Cachimbo que
havia ficado à sua frente; levantando o cano do Cachimbo, caminhou ao redor do
crânio do bisonte e deteve-se diante do guardião do Calumet; e rezou assim:
“Ó Pai santo, tende piedade de mim! Ofereço meu Calumet
ao Grande Espírito. Ó Avô Wakan-Tanka,
ajudai-me! Faço isto para que meu povo viva e cresça conforme ao mistério!”
A mulherr ofereceu três vezes o Calumet ao guardião, e
na quarta vez entregou-o. “How!”,
disse o guardião ao receber o Cachimbo; logo afastou-se e permaneceu debaixo da
árvore sagrada, ao Norte, e gritou quatro vezes: “Hi-ey-hey-i-i!”. E orou assim:
“Avô Wakan-Tanka,
Tu estás mais próximo de nós do que qualquer outra coisa, hoje vistes tudo o
que fizemos. Agora acabou, nossa tarefa está terminada. Hoje um ser bípede
levou a cabo um rito muito sagrado que Tu lhe ordenastes realizar. Estes oito
homens aqui presentes Te ofereceram seus corpos e suas almas. Com seu
sofrimento enviaram suas vozes a Ti; inclusive ofereceram uma parte da sua
carne, que está agora ao pé da árvore sagrada. O favor que eles Te pedem é que
seu povo caminhe pelo caminho da vida e que cresça segundo o mistério[70].”
“Olhai este Cachimbo que Te oferecemos, junto com a
Terra, os quatro Poderes, e todas as coisas. Sabemos que somos parentes, que
formamos uma unidade com tudo o que existe no Céu e na Terra, e sabemos que todas
as coisas que se movem são um povo como nós. Todos desejamos viver e crescer
segundo o mistério. A estrela Dalva e a aurora que vem com ela, o sol da noite
(a lua, hanhepi wi) e as estrelas do
céu estiveram todos aqui reunidos. Tu nos ensinastes nosso parentesco com todas
as coisas e todos os seres, e Te damos graças por isto, agora e sempre. Que
sejamos continuamente conscientes deste parentesco existente entre os
quadrúpedes, os bípides e os voláteis. Que todos possamos alegrarmo-nos e viver
em paz!”
“Olhai este Calumet, que é aquele que o quadrúpede[71]
trouxe para a nação[72];
com ele cumprimos a sua vontade. Ó Wakan-Tanka,
Tu pusestes teu povo num caminho sagrado; que possa segui-lo com passo firme e
seguro, de mãos dadas com seus filhos, e que os filhos de seus filhos caminhem
também segundo o mistério.”
“Tende piedade, ó Wakan-Tanka,
das almas que percorreram a terra e que partiram. Que estas almas sejam dignas
de caminhar pelo grande caminho branco que estabelecestes! Vamos acender e
fumar este Calumet, e sabemos que esta oferenda é muito benéfica. A fumaça que
se elevará se estenderá por todo o Universo, e todos os seres se alegrarão.”
Então os dançarinos sentaram-se a Oesten do pavilhão e
o guardião retirou a gordura do fornilho do Calumet, colocando-a sobre uma
costela purificada de bisonte. O Cachimbo foi aceso com uma brasa e, depois de
oferece-lo às seis Direções e de dar umas baforadas, o guardião passou-o a
Aquele-Que-Se-Estende, que por sua vez ofereceu-o entre lágrimas, deu umas
baforadas e passou para a pessoa que estava ao seu lado. Cada um dos homens,
depois de oferece-lo e fumar, o devolvia ao grande sacerdote, que o oferecia ao
homem mais próximo. Uma vez que todos fumaram, o profeta depositou-o lenta e
cuidadosamente entre as cinzas no meio do altar e rezou:
“Ó Wakan-Tanka,
este lugar sagrado é teu. Nele tudo se realizou. Alegramo-nos por isto.”
Dois ajudantes puseram então sobre o altar algumas
cinzas do fogo de mistério situado a Leste do pavilhão; de igual modo, foi
posto sobre o altar o barro purificado, e depois todas as grinaldas, as peles,
as penas e os símbolos utilizados na dança foram amontoados no centro do
recinto sagrado. Isto foi feito porque estas coisas eram demasiado sagradas
para ser conservadas, e deviam regressar para a terra. Só foram conservadas a
roupa de pele de bisonte e os apitos de osso de águia; estes objetos serão
sempre considerados como particularmente veneráveis, já que foram empregados na
primeira grande festa da dança do sol. Por cima do monte formado pelos objetos
utilizados no rito foi colocado o crânio de bisonte; este crânio nos recorda a
morte e também nos ajuda a recordar que aqui consumou-se um ciclo.
Então todos se alegraram, e as crianças foram
autorizadas a brincar com os velhos, mas ninguém se preocupou com isso nem se
pensou em castigá-las, pois todo mundo estava contente.
Não obstante, os dançarinos ainda não haviam terminado;
tomaram suas roupas de pele de bisonte e voltaram à tenda dos preparativos; uma
vez ali, tiraram as roupas com exceção da tanga e entraram na cabana do inipi, menos a mulher, que estava
encarregada de guardar a porta. Foram introduzidas as cinco pedras e fumou-se o
Calumet por turno; mas antes de fumar os homens apoiaram-no em uma das pedras.
Fechou-se a porta e o grande sacerdote disse o seguinte:
“Parentes, desejo dizer algumas palavras. Escutai com
atenção! Hoje fizesteis uma coisa cheia de mistério, pois houvestes dado vosos
corpos ao Grande Espírito. Quando regressardes para os vossos lembrai-vos
sempre de que graças a este ato fostes santificados. No futuro vós sereis os
guias de vosso povo, e deveis ser dignos deste piedoso dever. Sêde
misericordiosos com os vossos, sêde bons e amáveis! Mas lembrai-vos sempre
disto: que voso parente mais próximo é vosso Avô e Pai Wakan-Tanka, e que depois d’Ele vem vossa Avó e Mãe a Terra.”
Derramou-se água sobre as pedras quentes e quando o
vapor encheu a pequena cabana, fazendo muito calor, a porta foi aberta e
introduziram água. A erva aromática foi molhada na água e aplicada aos lábios dos
dançarinos, e esta foi toda a água que puderam receber naquele momento. O
Cachimbo foi passado por todo o círculo, a porta foi fechada e de novo o
profeta dirigiu-se aos homens:
“Graças às vossas ações, reforçasteis o círculo de
nossa nação. Fizesteis um centro sagrado que estará sempre com vós, e criasteis
um parentesco mais estreito com todas as coisas do Universo.”
Novamente derramou-se água sobre as pedras e, enquanto
subia o vapor, os homens cantaram. Quando a porta foi aberta pela terceira vez,
os homens foram autorizados a beber um pouco de água, e o Calumet percorreu o
círculo como antes. De novo a porta foi fechada e, enquanto o vapor se elevava
das pedras, todos os homens cantaram:
Envio uma voz
ao meu Avô!
Envio uma voz ao meu
Avô!
Escutai-me!
Junto com todas as
coisas do Universo
Envio uma voz ao Grande Espírito!
O profeta disse ainda:
“Os quatro caminhos dos quatro Poderes são vossos
parentes próximos. A aurora e o sol do dia são vossos parentes. A estrela Dalva
e todas as estrelas dos céus sagrados são vossos parentes. Lembrai-vos sempre
disto.”
A porta foi aberta pela quarta e última vez, e os
homens beberam quanta água quiseram, e quando terminaram de beber,
Aquele-Que-Se-Estende disse estas últimas palavras:
“Vistes agora quatro vezes a luz do Grande Espírito.
Esta luz estará sempre convosco. Lembrai-vos de que há quatro passos que
conduzem ao final do caminho sagrado[73].
Mas chegareis lá! Está bem! Está terminado! Hechetu
welo!”
Os homens voltaram então para a tenda dos preparativos,
aonde lhes foi servida muita comida, e todos estavam felizes e contentes. Havia
sido realizada uma grande coisa; nos invernos futuros, a vida da nação
receberia muita força graças a este grande ritual.
VI
HUNKAPI:
O PARENTESCO
No ritual do parentesco – hunkapi – estebelecemos um vínculo que reflete no plano terrenoo
parentesco real que nunca deixou de existir entre o homem e o Grande Espírito.
Posto que amamos a Wakan-Tanka em
primeiro lugar, e mais do que a tudo, devemos também amar ao próximo e reforçar
os laços que podem unir-nos, mesmo no caso em que pertençam a outras tribos.
Realizando este rito que vou descrever, e assistindo a ele, cumprimos a vontade
do Grande Espírito, pois este é um dos sete ritos que, na origem, a Mulher
Bisonte nos prometeu.
Outras tribos pretendem que este ritual teve origem
nelas, mas não é assim, já que foi o lakota Mato-Hokshila – Jovem Urso –, um
homem muito santo, quem recebeu este rito, em uma visão, da parte do Grande
Espírito.
É preciso saber que a planta sagrada – o milho – não
provém do país dos sioux; mas Jovem Urso o viu em uma visão e, mais tarde,
achando-se em viagem, encontrou um pequeno campo de milho, exatamente parecido
com o que havia visto em sua visão; e levou este milho ao seu ovo, sem saber
que era propriedade da tribo dos arikara[74],
com a qual os sioux estavam em guerra há muito tempo. Ora, o milho era tão
sagrado para os arikara como o Calumet para nosso povo; por isso, pouco depois
que seu milho desaparecera, os arikara enviaram mensageiros ao acampamento dos
sioux com muitos presentes e muito tabaco trançado do tipo que eles fazem e que
nós apreciamos enormemente; e pediram que devolvêssemos seu milho.
Os sioux aceitaram a proposta de paz; e Jovem Urso, que
então compreendeu o significado de sua visão explicou-o ao seu povo e disse
que, mediante o rito que dela resultava, os sioux deviam estabelecer um
parentesco perpétuo com os arikara, uma paz que duraria até o fim dos tempos e
que seria um exemplo para as demais tribos.
Todo mundo aceitou com alegria, e os sioux conferiram a
Jovem Urso autoridade e poder para fazer a paz com a ajuda do rito hunkapi, o parentesco. Jovem Urso
explicou então que sempre que se realizasse este rito, aquele que desejasse
aparentar-se com alguém seria considerado como um arikara, e que seria ele quem
deveria cantar sobre o outro. Jovem Urso disse então aos arikara que
construíssem uma tenda ritual e escolhessem um de seus homens para representar
toda a sua tribo; seria ele quem deveria cantar sobre Jovem Urso, que, por sua
vez, representava a tribo dos sioux.
Ao cabo de um tempo, Jovem Urso encheu seu Cachimbo,
aproximou-se do arikara escolhido para representar sua tribo e, enquanto lhe
oferecia o Calumet, fez este discurso:
“Desejo ajudar-vos realizando este rito que me foi dado
em uma visão pelo Grande Espírito para o bem de nossa tribo. É sua vontade que
façamos isto. Ele, que é nosso Avô e Pai, estabeleceu um parentesco com meu
povo, os sioux; nosso dever é fazer uma imagem deste parentesco entre as
diferentes nações. Que isto que fazemos sirva de exemplo para outros povos! Tu
representas toda a tribo dos arikara e eu represento os sioux. Vistes aqui para
fazer a paz, e nós aceitamos teu oferecimento; mas, como vês, vamos estabelecer
algo mais profundo do que nos pedistes. Ao pedir a paz trouxeste-nos vosso
tabaco, que apreciamos muito e, do mesmom odo, vamos dar-te o milho sagrado que
vós amais acima de tudo. Ambas as coisas são sagradas, pois provêm do Grande
Espírito. Ele as fez para nós!”
Então Jovem Urso ensinou aos arikara como deveria ser
feita a oferenda destinada aos sioux, e enumerou tudo o que necessitava para o
ritual, a saber: um Cachimbo e tabaco; quatro pés de milho sem espigas; um
crânio de bisonte; três bastões para fazer um cavalete; carne de bisonte seca;
pintura vermelha e azul escuro; penas de águia; uma faca; erva aromática; uma
bexiga seca de bisonte.
Quando todas estas coisas estavam reunidas, Jovem Urso
tomou uma faca e escavou o solo para purificá-lo. Neste lugar consagrado
puseram quatro brasas, nas quais Jovem Urso queimou um pouco de erva aromática,
e rezou assim:
“Ó Avô Wakan-Tanka, olhai-nos! Neste lugar queremos
criar parentes e fazer a paz; tua vontade é que isto se cumpra. Faço fumaça com
esta erva aromática que te pertence, e ela subirá até Ti. Em tudo o que
fazemos, Tu és o primeiro, e depois vem nossa Mãe Terra; depois dela vêm as
quatro Regiões do Universo. Ao observar este rito queremos realizar a tua
vontade sobre esta terra, e quermos estabelecer uma paz que deverá durar até o
final dos tempos. A fumaça aromática estará com todas as coisas do Universo.
Está bem!”
Todos os objetos rituais foram então purificados na
fumaça; os três bastões foram dispostos em forma de secador de carne, e o
Cachimbo foi apoiado sobbre este cavalete. Jovem Urso colocou então a bexiga de
bisonte diante de si e, sustentando um pouco de tabaco para o Oeste, orou deste
modo:
“Ó Tu que guardas o caminho de onde se põe o sol e que
controlas as águas; vamos estabelecer um parentesco e uma paz sagrada. Tu tens
dois dias de mistério; que o povo desfrute deles e caminhe pelo caminho da vida
com passo firme! Deves ser incluído neste parentesco e nesta paz que estamos
dispostos a estabelecer; ajudai-nos! Realizamos aqui, na terra, o parentesco
que sempre existiu entre o Grande Espírito e seu povo!”
Este tabaco, a partir de agora identificado com o Poder
do Oeste, foi depositado na bexiga. Devo dizer que esta bexiga é tão sagrada
para muitas tribos como o Calumet é para nós, pois também ela pode conter todo
o Universo.
Então ofereceu um pouco de tabaco para o Norte com esta
oração:
“Tu, lugar onde mora o gigante Wazia; Tu, que controlas os ventos purificadores, deves ser
colocado nesta bolsa sagrada; ajudai-nos, pois, com teus dois dias de mistério,
e ajudai-nos para que possamos caminhar pelo caminho reto da vida!”
O Poder do Norte, identificado agora com o tabaco, foi
inroduzido na bolsa; a seguir, Jovem Urso ofereceu um pouco de tabaco ao Poder
do Leste:
“Ó Tu, que controlas o caminho de onde nasce o sol; Tu,
que dás o conhecimento, estás incluído nesta oferenda; ajudai-nos, pois, com
teus dois dias sagrados!”
Por último, depois de colocar o Poder do Leste na
bexiga, Jovem Urso ofereceu um pouco de tabaco à Região para onde sempre nos
voltamos, e orou assim:
“Ó Tu, Cisne Branco; Tu, que controlas o caminho pelo
qual caminham as gerações, há um lugar para Ti nesta bolsa sagrada; ajudai-nos,
pois, com teus dias vermelho e azul!”
Depois de colocar o Poder do Sul na bolsa ritual, Jovem
Urso ofereceu um pouco de tabaco ao Céu:
“Avô e Pai Wakan-Tanka,
que nós conheçamos este parentesco quaternário que nos ata a Ti; que
empreguemos este conhecimento fazendo a paz com outra tribo. Ao estabelecermos
parentescos aqui na terra, sabemos que cumprimos com tua vontade. Ó Wakan-Tanka, Tu estás acima de todas as
coisas, mas hoje estás conosco!”
Depois de colocar o
tabaco para o Grande Espírito na bolsa de mistério, Jovem Urso orou
assim:
“Avó Terra, escutai-me! Vamos estabelecer sobre Ti um
parentesco com um povo. Assim como Tu estabelecestes um parentesco conosco ao
nos dar nosso Calumet sagrado[75]. Os bípedes, os quadrúpedes, os seres alados e
tudo quanto se move sobre Ti[76],
somos teus filhos. Queremos ser, com todas as criaturas e com todas as coisas,
como os membros de uma só família; assim como estamos aparentados contigo, ó
Mãe, também queremos fazer a paz com outro povo, e seremos parentes deles.
Oxalá caminhemos com amor e misericórdia por este caminho que é sagrado! Ó Avó
e Mãe, Te colocamos nesta bolsa de mistério. Ajudai-nos a estabelecer um
parentesco e uma paz perpétua!”
E deste modo a Terra foi introduzida na bolsa, que foi
fechada e sobre a qual colocaram pelos de bisonte e erva aromática.
Jovem Urso disse então ao representante da tribo dos
arikara:
“Cuidarás desta bolsa, pois está cheia de mistério, e a
tratarás como estas coisas devem ser tratadas; é realmente semelhante ao
Cachimbo sagrado que os sioux recebeream, e fará a paz entre muitas tribos. Mas
deves recordar-te sempre disto: nossos parentes mais próximos são nosso Avô e
Pai Wakan-Tanka e nossa Avó e Mãe
Terra. Com esta bolsa sagrada, vai para juntos dos chefes sioux, e com ela
estabelecerás o parentesco.”
Então envolveu-se a bolsa em uma pele de gamo que
ataram pelos dois lados com uma correia de couro, de modo que o saquinho
pudesse ser transportado facilmente; assim terminou o primeiro dia do ritual.
*********
No dia seguinte, no instante mesmo da saída do sol,
Jovem Urso tomou seu Calumet e foi à tenda do arikara. Depois de oferecer o
Cachimbo às seis Direções, fumou um pouco e deu-o ao arikara; este disse; “Hi ho! Hi ho!” e tomou ao Cachimbo, fumou um pouco e passou-o aos demais
homens presentes no tipi. Quando
todos fumaram o Calumet voltou para Jovem Urso, que o purificou e o pôs de
volta em sua bolsa.
Depois disto, Jovem Urso foi até a sua tenda; ali
esperou, junto com os demais chefes sioux e com os sábios de sua tribo, a
chegada do arikara, que devia trazer-lhes a oferenda de acordo com as
instruções que recebera no dia anterior.
Quando os sioux viram chegar o homem dos arikara
gritaram: “Hi ho! Hi ho!”, e quatro deles foram ao seu
encontro e o conduziram à tenda. O arikara deu a volta seguindo o movimento do
sol, parou em pé diante de Jovem Urso, que estava sentado no Oeste, e colocou
em sua frente a bolsa das oferendas. Jovem Urso queimou erva aromática na brasa
e a seguir susteve o saquinho de mistério sobre a fumaça. Continuando gritou: “Hi ho! Hi ho!”, abraçou o saquinho e fez esta oração:
“Avô e Pai Wakan-Tanka,
olhai-nos! Sobre esta terra cumprimos a tua vontade. Estabelecestes um
parentesco conosco ao dar-nos o Calumet, e agora estendemos este parentesco a
outro povo fazendo a paz com ele depois de havermos estado em guerra. Sabemos
que realizamos um dos sete ritos que nos foram prometidos na origem. Que estes
dois povos, graças a este rito, estejam sempre em paz e sirvam de exemplo para
outras nações. Com esta oferenda minha tribo se alegrará. Este é um dia
sagrado! Está bem! Vamos agora abrir este saquinho de mistério e mediante esta
oferenda ficaremos vinculados a Ti e a Teus Poderes. Wakan-Tanka, contemplai o que fazemos.”
Depis de
pronunciar esta oração, Jovem Urso tirou as correias da bolsa e desenrolou
lentamente a pele de gamo, e quando viram a bexiga de bisonte, exclamaram: “Hi ye!”, pois todos sabiam porque esta
bexiga era tão wakan, tão sagrada.
Jovem Urso sustentou então a bexiga sobre a fumaça das ervas aromáticas,
abraçou-a e repetiu sem cessar: “Hi ye!”,
e depois disse esta oração:
“Sêde misericordioso! Agora que viestes a nós, o povo
caminhará pelo caminho do mistério levando seus filhos pela mão. Eu sou o povo
(sioux), e te amo, quero ter-te carinho, quero cuidar sempre de ti. O povo de
onde vens (os arikara) deverá também amar-te sempre, e saber sempre que és
santa.”
Depois deste discurso, Jovem Urso ofereceu a bexiga às
seis Direções, e quando a abraçou e beijou sua abertura, todo o povo gritou: “Hi ho!”. Jovem Urso voltou-se para o
arikara e disse:
“Para nossa tribo esta oferenda significa que desejais
a paz e estabelecer um vínculo de parentesco conosco. É por esta razão que
trouxeste um dom tão sagrado?”
O arikara respondeu:
“Sim! Desejamos ter um vínculo de parentesco convosco,
e que seja tão estreito quanto o parentesco entre vós e o Grande Espírito!”
Esta resposta agradou aos sioux; então levaram a bexiga
de mistério para fora da tenda para que toda a tribo pudesse abraçá-la e beijar
sua abertura como fez Jovem Urso. Logo puseram-na na ponta da vigésima oitava
vara do tipi para mostrar que a
proposta de paz dos arikara havia sido aceita, e para colocar o saquinho que
continha a bexiga no lugar mais sagrado. Como já expliquei, esta vigésima
oitava vara representa o Grande Espírito, pois é a vara-chave que sustenta as
demais vinte e sete varas da tenda.
Assim terminou o ritual da oferenda. Os mensageiros dos
arikara regressaram aos seus tipis, onde começaram os preparativos para o dia
seguinte, e Jovem Urso preparou uma tenda especial para novos rituais. De cada
lado da entrada haviam sido penduradas peles que formavam um caminho com dez passos
de comprimento; o tabique de peles tinha uma altura de quatro pés; este é o
caminho da vida, que conduz à tenda. Quem entra por ele não pode desviar-se do
caminho, pois os tabiques o impedem; deve, pois, caminhar em linha reta até o
centro.
*********
No dia seguinte, quatro homens dos arikara foram
escolhidos para rpresentar toda a tribo; com seus apetrechos rituais
dirigiram-se até a tenda que Jovem Urso havia preparado. Jovem Urso estava
sentado a Oeste; antes de preparar o altar, disse-lhes:
“O milho que os sioux possuem agora pertence na
realidade aos arikara, pois eles o amam e o consideram coisa sagrada, assim
como fazemos com nosso Calumet; pois eles também receberam o milho do Grande
Espírito através de uma visão. É vontade do Grande Espírito que tenha seu
milho. Por esta razão, nós queremos, não apenas devolver-lhes seu milho, mas
também estabelecer um rito mediante o qual criaremos a paz ao mesmo tempo que
um parentesco real que será um reflexo do vínculo de parentesco existente entre
nós e Wakan-Tanka. Quero produzir
agora uma fumaça aromática que chegará até os céus e também até a estrela
Dalva, que divide o dia em escuridão e luz; chegará também até os quatro
Poderes que velam pelo Universo. Esta fumaça erguer-se-á desde nossa Avó, a
Terra.”
Jovem Urso pôs então a erva aromática sobre as brasas e
purificou na fumaça o Calumet, a espiga de milho, a machadinha e os demais
objetos rituais; agora já podia preparar o altar.
Tomou a machadinha, dirigiu-a às seis Direções e em
seguida golpeou o solo a Oeste. Repetindo o mesmo movimento, golpeou o solo ao
Norte e depois, do mesmo modo, a Leste e a Sul; logo levantou a machadinha ao
céu e golpeou o solo duas vezes no centro para a Terra e depois duas vezes para
o Grande Espírito. Depois Jovem Urso escavou o chão e, com o bastão que havia
purificado na fumaça e oferecidoàs seis Direções, traçou uma linha que ia do
Oeste até o centro, em seguida outra do Leste até o centro e outra do Sul até o
centro; depois ofereceu o bastão ao céu e tocou o centro, e à terra e tocou o
centro. Assim ser fez o altar; como já disse, fixamos aqui o centro da terra, e
este centro, que em realidade está em todas as partes, é a morada do Grande
Espírito[77].
Jovem Urso tomou então uma espiga de milho e cravou um
bastão em um dos extremos; no outro colocou uma pena de águia.
“Este milho pertence em realidade aos arikara – disse –
e ser-lhes-á devolvido porque o amam como nós amamos nosso Calumet. A espiga de
milho que aqui vêdes tem doze significados importantes, pois está formada por
doze fileiras de grãos, e os recebe dos diversos Poderes do Universo. Ao pensar
nas distintas coisas que o milho pode ensinar-nos, não devemos esquecer,
sobretudo, a paz e o parentesco que estabelece entre nós. Devemos recordar-nos
antes de mais nada, de que nossos parentes mais próximos são nosso Avô e Pai Wakan-Tanka, nossa Avó e Mãe Terra, os
quatro Poderes do Universo, os dias vermelho e azul (luz e escuridão), a
estrela Dalva, a Águia Pintada que guarda tudo o que é sagrado no milho; nosso
Calumet também é como um parente, pois protege a tribo, e através dele rogamos
ao Grande Espírito.”
“O penacho que cresce na ponta da espiga de milho, e
que assinalamos com uma pena de águia, representa a presença do Grande
Espírito; pois, assim como o pólem se
espalha a partir do penacho e dá a vida, assim também a presença do Grande
Espírito dá vida a todas as coisas. Esta plumagem que está sempre fixa na ponta
da planta é a primeira a ver a luz da aurora; vê também a noite, a lua e as
estrelas. Por todas estas razões é wakan,
sagrada. E Este bastãozinho que cravei na espiga de milho é a árvore da vida,
que se estende da terra até o céu[78],
e o fruto, que é a espiga com todos os seus grãos, representa o povo e todas as
coisas do Universo. É preciso recordar estas coisas para poder compreender os
ritos que iremos realizar.”
Jovem Urso apoiou então a espiga de milho no cavalete
que havia erguido junto ao altar; este cavalete é uma imagem do secador em que
se seca a carne do bisonte; agora é o secador do milho, pois o milho é tão
importante para os arikara como o bisonte para os sioux. Jovem Urso arrancou
uma espiga de seu talo, estendeu-a ao representante da tribo dos arikara, e
falou assim:
“É vontade do Grande Espírito que este milho retorne
para vós. Deste modo faremos a paz e celebraremos um parentesco que será um
exemplo para as nações. Muito falamos dos Doze Poderes do Universo; uniremos
estes doze Poderes, junto com os sioux e os arikara, em um só. Ao fazê-lo, os
arikara devem cantar para os sioux; eu representarei meu povo, e voso chefe
representará o vosso; nós nos converteremos em parentes, e por isto nossos dois
povos serão como um só e viverão em paz. No passado, os homens que o Grande
Espírito pôs nesta ilha[79]
foram inimigos, mas este rito trará a paz, e no futuro outras nações desta ilha
tornar-se-ão parentes graças a ele.”
“Vós, os arikara, deveis fazer agora como se
estivésseis no caminho da guerra contra nós; deveis afastar-vos em busca do
inimigo cantando vossos cantos de guerra."
Depois de ouvir este discurso, o arikara colheu a
espuiga de milho com a mão direita e o talo com a esquerda, e declarou que os
homens de sua tribo buscavam o inimigo, os sioux; e, entoando seus cantos de
guerra, agitaram os talos de milho. Este balanço dos talos representa o milho quando
o sopro do Grande Espírito o acaricia: quando sopra o vento, o pólen cai do
penacho na palha que rodeia a espiga, e é isto que faz com que o fruto
amadureça e seja fértil. Podeis ver como o exemplo do milho prefigura o
parentesco que vamos estabelecer entre estes dois povos.
Enquanto os mensageiros dos arikara simulavam buscar
seus inimigos, os sioux, todo mundo se juntou para observá-los, e todos estavam
felizes, pois compreendiam o que ia acontecer. Logo os arikara se viram diante
do tipi aonde os esperavam os quatro
sioux, e o chefe arikara disse aos seus valentes:
“Quem de vós foi o primeiro a tocar o inimigo[80]
no caminho da guerra? Agora vos cabe contar os golpes sobre esta tenda e entrar
nela para capturar Jovem Urso; logo faremos prisioneiros a outros. Mas antes
deveis relatar os atos de bravura que realizasteis no caminho da guerra.”
Entãoo arikara se pôs a contnar suas façanhas
guerreiras, e depois de cada frase todos os assistentes gritaram: “Hi ho! Hi ho!”, e as mulheres mostravam seu júbilo soltando gritos
agudos.. Quando terminou, precipitou-se para a tenda, tocou-a, depois entrou e
saiu com Jovem Urso; os demais arikara também entraram e buscaram os outros
quatro sioux. Os arikara continuaram cantando seus cantos de guerra, e todos os
assistentes, sioux e arikara, estavam contentes e presenteavam-se mutuamente
com alimentos, roupas e até cavalos.
Formou-se então um cortejo dirigido pelo arikara, que
agitava continuamente os talos de milho; atrás dele iam os quatro sioux
capturados, entre os quais havia uma mulher, um menino e uma menina, para que
toda a tribo estivesse representada. Os arikara levavam as crianças sobre seus
ombros, e no fim do cortejo iam os cantores, os tambores e todos os assistentes
das duas tribos. O cortejo deteve-se quatro vezes, e de cada vez as pessoas
uivavam como coiotes, tal como fazem as brigadas guerreiras quando regressam ao
acampamento. Logo chegaram ao tipi
sagrado que havia sido preparado no centro do acampamento circular, e os sioux
capturados foram conduzidos a uns leitos situados a Oeste da tenda, sobre os
quais estavam amontoados muitos presentes oferecidos pelos arikara.
Os ajudantes arikara tomaram então umas roupas de pele
de bisonte e as sustetntaram diante dos cinco sioux e do chefe arikara: a isto
se chama “esconder os parentes próximos”. Então um guerreiro arikara e uma
mulher desta tribo deslizaram para trás da cortina e pintaram os rostos dos
sioux. A mulher pintou de vermelho os rostos da mulher sioux e da menina,
enquanto o guerreiro fazia a mesma coisa com os homens sioux e o menino,
pintando um círculo azul ao redor dos seus rostos e uma linha azul na frente,
nas maçãs do rosto e no queixo.
Durante todo este tempo os arikara agitaram os talos de
milho e cantaram cantos de mistério. Logo titraram as penas de águia das
espigas e as plantaram nos cabelos dos sioux; ao mesmo tempo, pintaram de
vermelho um crânio de bisonte, e os quatro Poderes foram representados por
quatro linhas; preencheram com sálvia as órbitas e o nariz do crânio, e este
foi colocado, de cara para o Leste, sobre um montículo cuja terra havia sido
retirada do local consagrado.
Então retiraram-se as roupas de bisontne, de modo que
todos puderam ver os sioux com o rosto pintado. Talvez eu deva explicar o que
isto significa: mediante a pintura, os homens foram transformados;
experimentaram um novo nascimento e adquiriram com isto novas
responsabilidades, novas obrigações e um novo parentesco[81].
Esta transformação é tão sagrada que deve acontecer na obscuridade[82]:
deve ser subtraída da vista da maioria; mas quando se abre a cortina aparecem
puros, livres da ignorância, e esqueceram as inquietações do passado. Agora são
uma coisa só, com os arikara: o parentesco realizou-se[83].
Enquanto agitavam seus talos de milho, os arikara
entoaram este canto:
Todos estão
aparentados (huntka),
Todos estes são parentes.
Depois, voltando-se para cada uma das quatro Direções,
cantaram:
Ó Tu, Poder de
onde o sol se põe,
Tu és um parente!
Ó Tu, Poder de onde
vive o gigante,
Tu és um parente!
Ó Tu, Poder de onde
sai o sol,
Tu és um parente!
Ó Tu, Poder do lugar
para onde sempre nos voltamos,
Tu és um parente!
A seguir, olhando o céu, cantaram:
Este é nosso parente.
E inclinando-se para a terra, e também sobre o crânio
de bisonte, cantaram:
A Terra é nosso parente.
Finalmente, agitando o milho sobre os sioux, cantaram:
“Estes cinco são nossos parentes! Todos estamos
aparentados; todos somos um!”
Continuando, Jovem Urso levantou-se, tomou o Calumet
que estava apoiado no cavalete, situou-se no meio da tenda e, levantando sua
mão direita e sustentando o Cachimbo com a mão esquerda, fez esta oração:
“Ó Wakan-Tanka,
elevo minha mão para Ti! Hoje estás muito próximo de nós. Ofereço-te meu
Calumet. Também a vós, ó Poderes alados que habitais o lugar onde se põe o sol,
vos oferecemos este Cachimbo. Neste dia bendito reunimos tudo o que existe de
sagrado no Universo; neste dia se fez uma grande paz. Ó Avô Wakan-Tanka, que esta paz dure para
sempre! Que nenhum homem, nenhuma circunstância, a destruam! Estes povos
caminharão juntos por este caminho único que é vermelho e sagrado!”
Voltando-se para assembléia, Jovem Urso disse:
“Os ritos chegam ao seu fim! Estamos unidos, somos um!
Ó vós, arikaras, este milho que amais, e que havíeis perdido, vos será
devolvido.”
Ao ouvir estas palavras, os homens mostraram júbilo e
as mulheres fizeram seus agudos, e os cantos começaram de novo; os arikara que
agitavam os talos de milho dançaram até a porta do Leste, e precipitaram-se
cinco vezes até os cinco sioux; depois os movimentos e as danças cessaram.
Então trouxeram muita comida para atenda; o chefe
arikara, tomando um pedaço de carne seca e purificando-o na fumaça das ervas
aromáticas, fez esta oração:
“Ó Wakan-Tanka,
olhai-me e tende misericórdia de mim! Esta carne é o germe: deve ser introduzida
em vossa boca e converter-se em vosso corpo e vossa alma, que o Grande
Espírito, em sua bondade, vos deu. Assim como Ele é misericordioso convosco,
deveis sê-lo vós com os demais.”
Com estas palavras, o chefe arikara pôs a carne
consagrada ma boca de cada um dos quatro sioux; ele e Jovem Urso sentaram-se de
frente um para o outro no meio da tenda. Jovem Urso tinha diante de si o crânio
de bisonte e o Calumet, e diante do chefe arikara achava-se uma espiga e os
quatro talos. O chefe arikara tomou então um pedaço de carne de bisonte e
depois de purificá-lo na fumaça, estendeu-o a Jovem Urso e disse:
“Ho, filho
meu! Vou ser teu pai. Neste dia que lhe pertence, o Grande Espírito viu nossos
rostos; a aurora deste dia nos viu, e nossa Avó a Terra nos escutou. Estamos no
centro, e os quatro Poderes unem-se em nós. Quero colocar esta carne em tua
boca, e a partir deste dia jamais deverás temer a minha casa, pois minha casa é
tua casa[84],
e tu és meu filho.”
O chefe colocou a carne na boca de Jovem Urso; a tribo
dos arikara alegrou-se e deu graças, pois, mediante este ato, os doispovos
convertiam-se em um só. Então Jovem Urso tomou igualmente um pedaço de carne,
purificou-o na fumaça e oferecendo-o ao arikara, disse-lhe:
“Ho, meu pai!
Fizemos a paz segundo a vontade do Grande Espírito, não apenas entre nós, mas
também dentro de nós e com todos os Poderes do Universo. A aurora deste dia
certamente nos viu, e o Bisonte, que é a fonte de nossa vida nesta terra e que
protege a tribo, esteve conosco; e nosso Calumet, que deu ao nosso povo o
alimento para suas almas, esteve concosco; e tivemos conosco vosso milho, que
vos é sagrado e com o qual realizamos o parentesco. Quero colocar este alimento
em tua boca para que nunca temas minha casa, que será a tua casa. Que por fazermos
isto, Wakan-Tanka seja misericordioso
connosco!”
Jovem Urso colocou a carne na boca do chefe arikara, e
todos os sioux deram mostras de júbilo e deram graças. Continuando, Jovem Urso
tomou o Cachimbo, acendeu-o, ofereceu-o às seis Direções, e depois de dar
quatro baforadas ofereceu-o ao arikara, dizendo:
“Ho, meu pai!
Tomai isto e fumai, e que em teu coração não haja senão a verdade!”
O arikara tomou o Calumet, ofereceu-o às seis Direções,
e depois de dar quatro baforadas, passou-o aos assistentes. Todos os arikara e
todos os sioux que se achavam presentes fumaram por turnos, e mesmo quando o
fogo já havia apagado colocavam-no na boca e o abraçavam. Enquanto isto, o
chefe arikara disse a Jovem Urso:
“Ho, filho
meu! Nos devolvestes a espiga de milho que o Grande Espírito nos deu, mas que
colhestes devido à visão que tivestes. Cmoo queríamos que nos devolvesses nosso
milho, viemos propor-vos a paz; mas nos destes mais do que isto ao realizar
hoje o mistério do parentesco. Com o fim de nos ligarmos ainda mais
intimamente, dou-te uma parte do milho com o direito de empregá-lo em vossos
rituais. Desde agora, também para vós será sagrado, como o é para nós.”
O povo estava feliz ao ver que grande coisa se havia
cumprido, e fez uma festa que duoru toda a noite.
Desejo mencionar aqui que com estes ritos
estabeleceu-se uma tríplice paz. A primeira paz é a mais importante: é a que
surge na alma dos homens quando se dão conta de seu parentesco, de sua unidade,
com o Universo e todos os seus Poderes, e quando se dão conta de que no centro
do Universo mora o Grande Espírito, e que na realidade este centro está em
todas as partes. Esta é a paz real; as outras pazes não passam de reflexos
dela. A segunda paz é a que se estabelece entre os indivíduos; a terceira é a que
se concerta entre as nações. Mas é preciso compreender que nunca poderá haver
p-az entre as nações antes que se saiba que a verdadeira paz está na alma dos
homens.
VII
ISHNA TA AWI
CHA LOWAN:
PREPARAÇÃO DA MENINA
PARA OS DEVERES DE MULHER
Os rituais de preparação da menina – ishna ta awi cha lowan, “cantaram apenas
para ela” – são realizados após o primeiro período menstrual; neste momento a
menina converte-se em mulher; deve compreender o significado desta mudança e
ser instruída nas obrigações que deverá cumprir a partir de então. É necessário
que se dê conta de que a mudança produzida nela é algo sagrado, pois a partir
de agora ela será como a Mãe Terra e poderá fazer filhos, que deverão ser
educados segundo o caminho do Grande Espírito. Ademais, deve saber que a cada
mês, quando chegar seu período, ela carrega um influxo com o qual deverá ter
cuidado, pois a presença de uma mulher neste estado pode tirar o poder de um
homem santo[85].
Portanto, ela deve observar com cuidado os ritos que purificação que vou
descrever, e que nos foram dados pelo Grande Espírito numa visão.
Antes de receber a revelação deste rito, era costume
que, durante o período menstrual, a mulher ou menina retirava-se para um
pequeno tipi fora do círculo do
acampamento; uma mulher levava-lhe a comida e ninguém mais podia aproximar-se
da tenda. Quando uma mulher tinha seu primeiro período menstrual, uma mulher
mais velha a instruía nas coisas que toda mulher deve saber, inclusive na arte
de confeccionar mocassinos e roupas. Esta mulher de mais idade, que purifica a
menina com a ajuda da fumaça aromática, deve ser uma pessoa boa e pura, pois
suas virtudes e seus costumes passam para a menina que ela purifica. Antes de
voltar para sua família, a jovem deveria ainda purificar-se na cabana inipi. Mas agora vou contar como
recebemos nossos novos ritos de preparação ao estado de mulher casada.
Há muito tempo, um lakota chamado Tatanka Hunkeshni – Bisonte Lento – teve uma visão: uma mãe bisonte
limpava uma pequena bisonte, sua filha. Graças aopoder desta visão, Bisonte
Lento converteu-se em um homem santo (wichascha
wakan), e compreendeu que lhe havia sido revelado um rito para as jovens de
sua tribo.
Alguns meses depois de Bisonte Lento ter recebido sua
visão, uma menina de quatorze anos, chamada Mulher-Bisonte-Branco-Aparece, teve
suas primeiras regras, e seu pai, Pena-Na-Cabeça, lembrou-se imediatamente da
visão de Bisonte Lento; tomou, pois, um Calumet cheio de tabaco e ofereceu-o a
Bisonte Lento, que aceitou o Cachimbo, dizendo: “Hi ho! Hi ho! Porque
motivo me trazes este Cachimbo sagrado?”
Pena-Na-Cabeça respondeu:
“Tenho uma filha que tem suas primeiras regras, e quero
que a purifiques e a prepares para seu papel de mulher, pois sei que tiveste
uma visão muito poderosa com a qual aprendeste um modo mais eficaz e mais santo
de fazê-lo do que o que seguimos até agora.”
“Certamente farei o que desejas”, respondeu Bisonte
Lento. O povo dos bisontes, que foi instruído pelo Grande Espírito e que nos deu
este rito, está próximo dos homens; ele é nossa fonte de vida sob muitos
aspectos[86].
Na origem, a Mulher Bisonte Branco nos deu nosso santo Calumet, e desde então
temos sido irmãos dos quadrúpedes e de tudo quanto se move. Tatanka, o bisonte, é o parente mais
próximo que temos entre os quadrúpedes; vivem como uma tribo, como nós[87].
É vontade de nosso Avô Wakan-Tanka
que seja assim; e sua vontade é que este rito seja realizado pelos homens na
terra; é por isso que iremos agora estabelecer este ritual, que será muito
proveitoso para nosso povo. É certo que os quadrúpedes e todos os povos que se
movem no Universo possuem este rito de purificação, especialmente nossos
parentes bisontes. Vi que também eles purificam seus filhos e os preparam para
levar frutos. Será um dia sagrado quando fizermos isto, e agradará ao Grande
Espírito e a todos os povos que se movem. Primeiro deverás colocar em teu
Calumet a todos os povos e a todos os Poderes do Universo para que, junto com
eles, possamos enviar uma voz ao Grande Espírito.”
“Vou preparar um local consagrado para tua filha, que é
pura[88]
e que está a ponto de converter-se em uma mulher. A aurora, que é a luz de
Wakan-Tanka, estará neste lugar, e tudo será sagrado. Amanhã deverás levantar
uma tenda, justo fora do círculo de nosso acampamento; deverá ter uma via de
acesso protegida, exatamente como no tiro do parentesco; e deverás reunir os
seguintes objetos: um crânio de bisonte, uma taça de madeira, algumas cerejas,
água, erva aromática, sálvia, um Calumet, um pouco de tabaco trançado dos
arikara, tabaco kinnikinnik, uma
faca, uma machadinha de pedra, pintura vermelha e azul.”
Pena-Na-Cabeça deu a Bisonte Lento cavalos e outros
presentes, e se foi a preparar todas as coisas para o dia seguinte.
*********
No dia seguinte tudo estava pronto na tenda ritual, e
toda a população reuniu-se ao redor, com exceção das mulheres que preparavam a
festa que encerraria os ritos. Bisonte Lento estava sentado a Oeste do tipi; diante dele o solo havia sido
escavado e neste local foi depositada uma brasa. Sustentando a erva aromática
sobre a brasa, Bisonte Lento pronunciou esta oração:
“Avô e Pai
Wakan-Tanka, ofereço-te esta erva sagrada. Avó terra, de quem viemos, e Mãe
Terra que trazes muitos frutos, escutai! Vou fazer uma fumaça que penetrará nos
Céus e chegará até nosso Avô Wakan-Tanka;
ela se estenderá por cima de todo o Universo e tocará todas as coisas.”
Depois de colocar erva aromática sobre o braseiro,
Bisonte lento purificou o Calumet e todos os objetos destinados ao rito. A
seguir disse:
“Tudo o que for feito hoje, será realizado com a ajuda
dos Poderes do Universo. Oxalá nos ajudem a purificar e tornar wakan – sagrada – esta menina que vai
agora converter-se em mulher. Encho este Cachimbo de mistério e, ao fazê-lo,
ponho nele todos os Poderes que hoje nos ajudarão.”
Bisonte Lento purificou-se com a fumaça, estendendo as
mãos sobre a ela e esfregando o corpo, e em seguida, sustentando o Calumet na
mão esquerda tomou um pouco de tabaco com a direita e rezou:
“Avô Wakan-Tanka, vamos enviar uma voz a Ti mediante
nosso Calumet. Este é um dia eleito, pois vamos purificar esta menina,
Mulher-Bisonte-Branco-Aparece. Existe um lugar neste Cachimbo para todos os
Poderes do Universo; tende, pois, piedade de nós e aceitai nossas oferendas!”
“Ó Tu, Poder de onde sai o sol, que guardas o Calumet e
que apareces de modo tão terrível para purificar o mundo e seus habitantes[89],
queremos oferecer este cachimbo ao Grande Espírito e necessitamos tua ajuda e
tuas águas purificadoras; estamos dispostos a purificar e santificar não apenas
a esta memnina, mas também a toda uma geração. Ajudai-nos com teus dias
benéficos vermelho e azul! Há um lugar para Ti neste Calumet.”
Bisonte Lento colocou este tabaco no Cachimbo e,
sustentando outro bocado de tabaco na direção de onde vêm os ventos
purificadores[90],
orou:
“Ó Tu, gigante Wazia,
Poder do Norte, que preservas a saúde da tribo com teus ventos e que purificas
a terra branqueando-a; Tu, que guardas o caminho pelo qual caminha nosso povo,
ajuda-nos hoje com teu influxo purificador; vamos santificar uma virgem, Mulher-Bisonte-Branco-Aparece;
dela sairão as gerações de nossa tribo. Há um lugar para Ti neste Calumet;
ajuda-nos com teus dias benéficos!”
O Poder do Norte foi colocado no cachimbo; a seguir,
sustentando um pouco de tabaco na direção de onde vem a luz, Bisonte Lento
continuou orando:
“Ó Tu, Hunkta[91],
Ser e Poder do lugar de onde vem a aurora do dia e a luz do Grande Espírito, Tu
que tens grande alento e que dás o conhecimento aos homens, daí hoje algo de
tua sabedoria a esta virgem, Mulher-Bisonte-Branco-Aparece, que vai ser
purificada. Ajudai-nos com teus dias vermelho e azul! Há um lugar para Ti neste
Calumet!”
Depois de colocar o Poder do lugar de onde vem a luz no
Cachimbo, e sustentando um pouco de tabaco na direção para a qual sempre nos
voltamos, rezou:
“Ó Tu, Cisne Branco, Poder do lugar para onde sempre
nos voltamos, que controlas o caminho das gerações e de tudo quanto se move,
vamos purificar uma virgem para que suas gerações futuras possam caminhar de um
modo conforme ao mistério pelo caminho que Tu controlas. Há um lugar para Ti
neste Calumet. Ajudai-nos com teus dias vermelho e azul!”
O Poder do Sul foi colocado no Cachimbo e, dirigindo um
pouco de tabaco para o ceú, Bisonte Lento continuou:
“Ó Wakan-Tanka,
Avô, olhai-nos! Vamos oferecer-te um Calumet!”
A seguir, dirigindo o tabaco à terra:
“Ó Tu, Avó, sobre quem as gerações da tribo têrm
caminhado, que Mulher-Bisonte-Branco-Aparece e suas gerações futuras caminhem
sobre Ti conforme o mistério nos invernos futuros! Ó Mãe Terra, que dás frutos
sem conta, e que és como uma mãe para as gerações, esta virgem que está hoje
aqui será purificada e consagrada; oxalá se pareça a Ti, e seus filhos e os
filhos de seus filhos caminhem pelo caminho sagrado em conformidade com o
mistério. Ajudai-nos, ó Avó e Mãe, com teus dias vermelho e azul!”
A Terra, em suas qualidade de Avó e Mãe, estava agora
no tabaco e achava-se no Calumet; e Bisonte Lento ergueu ainda uma vez um pouco
de tabaco para o céu e rezou:
“Ó Wakan-Tanka,
olhai-nos! Vamos oferecer-te este Calumet!”
Continuando, dirigiu o mesmo tabaco ao crânio do
bisonte:
“Ó tu, parente quadrúpede, tu que dentre todos os povos
quadrúpedes és o mais próximo a nós, também deves ser posto no Cachimbo, pois
nos ensinastes como limpas teu bezerro, e ao purificarmos Mulher-Bisonte-Branco-Aparece
queremos imitar tua maneira de fazê-lo. Dou-te como oferenda, ó quadrúpede,
água e pintura, suco de cerejas e ervas. Há um lugar para Ti neste Calumet,
ajudai-nos!”
Deste modo o povo quadrúpede dos bisontes foi colocado
no Cachimbo, e Bisonte Lento elevou pela última vez um pouco de tabaco ao
Grande Espírito e rogou:
“Ó Wakan-Tanka
e todos os Poderes alados do Universo, olhai-nos! Este tabaco eu ofereço a Ti,
Chefe de todos os Poderes, Tu que és representado pela águia pintada que vive
nas profundidades dos Céus, e que guardas tudo quanto há neles. Vamos purificar
uma jovem ue logo será mulher. Protegei as gerações que sairão dela! Há um
lugar para Ti no calumet; ajudai-nos com teus dias vermelho e azul!”
O Cachimbo, que agora continha todo o Universo, foi
apoiado no pequeno secador, com o pé tocando o solo e a boca voltada para o céu[92].
Bisonte Lento começou então a preparar o lugar ritual, e somente os parentes
mais próximos de Mulher-Bisonte-Branco-Aparece foram admitidos na tenda; os
rituais que iriam seguir-se não eram para todo mundo.
*********
“O Grande Espírito – disse Bisonte Lento – deu aos
homens um quádruplo parentesco: seu Avô, seu Pai, sua Avó e sua Mãe. Estes são
sempre nossos parentes mais próximos. Posto que tudo o que é bom é feito de
modo quaternário, os homens passarão atavés de quatro idades; assim,
assemelhar-se-ão a todas as coisas. Nosso parente mais próximo entre os
quadrúpedes é Tatanka, o bisonte;
quero dizer-vos que ele estabeleceu um parentesco comigo. Disponho-me a
preparar um lugar consagrado para esta virgem, Mulher-Bisonte-Branco-Aparece, e
recebi do bisonte o poder para fazê-lo. Todas as coisas e todos os seres foram
reunidos aqui para que sejam testemunhos disto, e para ajudar-nos. Assim é! Hechetu welo!”
Fez-se fumaça com a erva aromática e Bisonte Lento,
colocando-se sobre ela, purificou todo seu corpo. Antes de preparar o lugar
sagrado, era necessário que Bisonte Lento demonstrasse possui realmente um
poder do bisonte, e por isso ele cantou o canto de mistério que aquele lhe
ensinara:
Venham ver
isto!
Vou fazer um lugar
quwe será sagrado.
Venham ver!
Mulher-Bisonte-Branco-Aparece
Está sentada de uma
maneira sagrada.
Venham todos vê-la!
Quando terminou este canto, Bisonte Lento emitiu um
longo huh!, semelhante ao mugido do
bisonte, e de sua boca saiu uma poeira vermelha, tal como faz a bisonte fêmea
quando tem um bezerro. Bisonte Lento fez isto seis vezes e lançou fumaça
vermelha sobre a jovem e depois sobre todo o lugar consagrado. Todo o tipi ficou cheio desta fumaça vermelha;
as crianças que espiavam por uma abertura da porta assustaram-se e fugiram
depressa, porque o espetáculo era verdadeiramente assustador.
Bisonte Lento tomou então sua machadinha e, depois de
purificá-la na fumaça da erva aromática, golpeou o chão no meio da tenda e fez
ali uma cavidade semelhante a um leito de bisonte; com a terra retirada fez um
montículo a Leste da cavidade. A seguir tomou um pouco de tabaco e depois de
dirigi-lo ao céu colocou-o no centro do lugar ritual; logo traçou com tabaco
uma linha que ia de Oeste a Leste e outra que ia de Norte a Sul, formando uma
cruz. Todo o Universo achava-se agora contido neste espaço de mistério. Por
último, Bisonte Lento tomou um pouco de pintura azul e, depois de dirigi-la ao
céu, tocou com ela o centro da cruz; depois colocou tinta azul sobre as linhas
de tabaco, primeiro na direção Oeste-Leste e depois na direção Norte-Sul.
O emprego da cor azul é muito importante; sua santidade
é evidente quando se compreende seu significado, pois, como já disse, o poder
de uma coisa ou de um ato reside na compreensão do seu significado. O azul é a
cor dos céus; ao colocar o azul sobre o tabaco, que representa a terra, unimos
o céu e a terra, e tudo se torna unificado.
Bisonte Lento colocou então o crânio de bisonte sobre o
montículo, com o rosto voltado para o Leste; a seguir pintou um círculo
vermelhoao redor do crânio e uma linha reta da mesma cor desde a parte superior
da cabeça – ente os chifres – até a fronte, e colocou bolas de sálvia nas órbitas;
por último colocou uma taça de madeira cheia d’água diante da boca do bisonte.
Então foram colocadas verejas na água; representavam os frutos da terra, que
são para a terra como os filhos são para os homens. A cerejeira que vemos é o
Universo e estende-se da terra até o céu; os frutos desta árvore, e que são
vermelhos como nós, são como os frutos de nossa Mãe Terra; e é por isso – e por
outras razões que não poderia aqui enumerar – que esta árvore é para nós wakan, sagrada.
Bisonte Lento confeccionou um pequeno ramo de ervas
aromáticas, casca de cerejeira e pelos de um bisonte vivo. Estes pelos são
sagrados porque provêm de uma árvore viva[93];
por aí vemos que o povo dos bisontes também possui uma religião: esta é a
oferenda que fazem à árvore[94].
Então Mulher-Bisonte-Branco-Aparece levantou-se e
Bisonte Lento, sustentando o pequeno ramalhete de substâncias misteriosas sobre
a cabeça da jovem, falou assim:
“Aquilo que está sobre tua cabeça é como o Grande
Espírito, pois, quando estás de pé, tu te estendes da terra ao céu, e tudo o
que há acima da tua cabeça é como o Grande Espírito. Tu és a árvore da vida.
Agora serás pura e santa; que tuas gerações tragam muitos frutos! Aonde quer
que pousem teus pés o solo será santificado, pois desde agora levarás contigo
um influxo poderoso. Que os quatro Poderes do Universo te ajudem a
purificar-te, pois no mesmo momento em que eu pronunciar o nome de cada Poder,
esfregarei cada lado do teu corpo de cima abaixo com este pequeno ramalhete.
Que as águas purificadoras do lugar aonde se põe o sol desçam para
purificar-te! Que sejas como a neve purificadora que vem do lugar aonde vive Wazia! Que a estrela Dalva te dê
sabedoria quando a aurora do dia descer sobre ti! Que o Poder do lugar para o
qual sempre nos voltamos te purifique, e que os povos que caminharam por este
caminho reto e bom te ajudem a purificar-te! Que sejas como o Cisne Branco que
vive no lugar para onde olhas, e que teus filhos sejam puros como os filhos do
Cisne!”
*********
A menina sentou-se, e Bisonte Lento contou a toda a
assistência como, em sua visão, havia recebido o poder do bisonte:
“Vi uma grande tribo que levantava seu acampamento e
dispunha-se a partir. Dirigia-me até eles quando subitamente agruparam-se todos
em círculo, e encontrei-me no meio deles. Conduziram uma menina até o centro e
disseram-me que esta menina devia ser purificada segundo o costume de sua
tribo. Então prepararam um lugar ritual em forma de leito de bisonte e puseram
nele a menina, e a seguir pediram-me que soprasse sobre ela para purificá-la.
Soprei sobre ela, mas logo me disseram que queriam ensinar-me seu modo de
fazê-lo, que era melhor, e imediatamente transformaram-se em bisontes, e chegou
um grande bisonte e soprou, expelindo uma poeira vermelha sobre o pequeno
bezerro que estava no centro; e estando o bezerro ali deitado, todos os
bisontes vieram e o lamberam, e cada vez que o lambiam respiravam ruidosamente
e uma misteriosa fumaça vermelha saía de seus narizes e bocas. Disseram-me que
era assim que purificavam seus filhos, e que o pequano bezerro, agora que
estava purificado, continuaria vivendo e produziria frutos santamente, e que,
continuando sua vida, chegaria ao final das quatro idades. Esta menina,
disseram-me, iria pelo caminho sagrado sendo guia de seu povo e ensinaria seus
filhos a caminhar de uma maneira santa pelo caminho do mistério. Depois de
mostrar-me isto estabeleceram um parentesco comigo; mostraram-me um bisonte
adulto e disseram: “Ele será teu avô”; e mostrando-me um mais jovem, disseram:
“Ele será teu pai”; em seguida mostraram-me uma fêmea e disseram: “Ela será tua
avó”; e por último mostraram-me uma fêmea mais jovem e disseram: “Ela será tua
mãe”. Declararam que eu deveria regressar ao meu povo com este parentesco
quádruplo e ensinar tudo o que havia aprendido. Isto é o que eu vi e é isto que
estou fazendo ao purificar deste modo a uma jovem de minha própria tribo; esta
virgem, Mulher-Bisonte-Branco-Aparece, é o pequeno bezerro que vi. Agora quero
deixá-la beber água sagrada, e esta água é a vida.”
Bisonte Lento
cantou então outro de seus hinos:
Estes povos são
sagrados.
Desde todas as partes
do Universo vêm ver isto.
Mulher-Bisonte-Branco-Aparece
Está sentada aqui de
uma maneira sagrada
Todos vêm vê-la.
Bisonte Lento ergueu o crânio de bisonte pelos chifres,
e enquanto cantava seu hino saiu fumaça vermelha pelas narinas do crânio;
depois, como se fosse um bisonte, pôs-se a investir sobre a menina com o
crânio, empurrando-a até a taça cheia de água; uma vez ali, a jovem ajoelhou-se
e bebeu quatro goles, e ao ver isto todos os presentes se alegraram.
Então deram um pedaço de carne de bisonte a Bisonte
Lento, e depois de purificá-lo na fumaça das ervas aromáticas e de oferecê-lo
às seis Direções, susteve-o diante da jovem e disse:
“Ó Mulher-Bisonte-Branco-Aparece, rezastes para o
Grande Espírito; de agora em diante caminharás entre a tribo segundo o mistério
e serás um exemplo para todos. Amarás as coisas mais sagradas do Universo;
serás como nossa Mãe Terra, humilde e fecunda. Que teus passos e os passos de teus
filhos sejam firmes e respeitosos! Assim como o Grande Espírito foi
misericordioso contigo, também tu serás misericordiosa com os demais, sobretudo
com as crianças sem pais. Quando uma destas crianças vier ao teu tipi, ainda que só tenhas um pedaço de
carne que tenhas posto na boca, retira-lo-ás e o darás à criança. Serás assim
generosa! Quando eu puser esta carne em tua boca nos lembraremos da
misericórdia do Grande Espírito que atende às nossas necessidades; do mesmo
modo, atenderás às necessidades dos teus filhos”.
Bisonte Lento colocou a carne na boca da menina; a
seguir, a taça de água com cerejas deu a volta e todo mundo bebeu um gole dela.
Logo Bisonte Lento tomou o Calumet que estava apoiado no secador e, sustenatndo
o cano para o alto, disse quatro vezes: “Hi-ey-hey-i-i!”
e pronunciou esta oração:
“Avô Wakan-Tanka,
olhai-os! Este povo e todas as gerações futuras são tuas. Olhai esta virgem,
Mulher-Bisonte-Branco-Aparece, que foi purificada e honrada neste dia feliz.
Que a luz que nunca escurece esteja sempre com ela e com todos os seus
parentes! Avó e Mãe Terra, a tribo caminhará sobre Ti; que ela siga o caminho
do mistério com a luz, sem a escuridão da ignorância! Que se lembrem sempre de
seus parentes das quatro Regiões, e saibam que são parentes de tudo quanto se
move no Universo, e antes de mais nada do bisonte, que é o chefe dos
quadrúpedes e ajuda a criar a tribo! Ó Wakan-Tanka,
ajudai-nos e tende misericórdia de nós, para que vivamos de um modo feliz e
santo! Tende misericórdia de nós para que vivamos!”
Então todos exclamaram: “Hi ho! Hi ho!” e
alegraram-se. Levaram Mulher-Bisonte-Branco-Aparece para fora da tenda e as
pessoas precipitaram-se a tocá-la com as duas mãos, pois agora ela era mulher e
os ritos que haviam levado a cabo para ela haviam-lhe conferido muita força
misteriosa. A tribo estava em festa; as pessoas fizeram muitos presentes e
todos estiveram contentes devido ao grande acontecimento daquele dia.
Assim foram instituídos os rituais de preparação da
menina ao estado de mulher; foram fonte de muita força espiritual, não apenas
para nossas mulheres, mas para toda a tribo.
VIII
TAPA WANKA YAP:
O LANÇAMENTO DA BOLA
Até os últimos tempos praticava-se entre nós um jogo de
bola com quatro equipes e quatro metas situadas nas quatro Regiões. Hoje em dia
muito poucos dos nossos compreendem ainda porque este jogo é sagrado ou o que
ele foi em sua origem, num passado longínquo, quando não era um simples jogo,
mas um de nossos rituais mais importantes. Hoje vou descrever este rito; é o
sétimo e último que o Grande Espírito nos deu naquela época, em uma visão.
Este jogo representa o transcurso da vida humana, vida
que deveria ser consagrada a pegar a bola, pois esta representa o Grande
Espírito, ou o Universo, como explicarei mais adiante. Tal como o jogo é
praticado atualmente, é difícil ficar com a bola, pois todas as possibilidades
– que representam a ignorância – estão contra o jogador, e só uma ou duas
equipes podem tomar a bola e marcar. Mas no rito original todos podiam
apoderar-se da bola, e se pensarmos no
que isto representa, veremos que este fato encerra uma grande verdade.
Foi um lakota, Washkan
Mani – Que-Se-Move-Caminhando – quem recebeu este rito em uma visão, há
muitíssimos invernos. Não falou disto a ninguém durante muito tempo, até o dia
em que um lakota chamado Grande-Chifre-Ôco viu em um sonho que
Que-Se-Move-Caminhando havia recebido um rito que devia pertencer a todos. Por
esta razão, Grande-Chifre-Ôco construiu uma tenda-santuário, segundo nosso costume,
no círculo do acampamento, encheu seu Calumet segundo o ritual e, acompanhado
de quatro homens santos, foi ver Que-Se-Move-Caminhando, a quem ofereceu o
Calumet.
“Hi ho! Hi ho! Hechetu welo! Está
bem! – disse Que-Se-Move-Caminhando – que desejais de mim?”
“Soube por um sonho – disse Grande-Chifre-Ôco – que
recebeste um rito cheio de mistério, que será o sétimo que a
Mulher-Bisonte-Branco nos prometeu no princípio. A tribo espera agora que
realizes este ritual.”
“Assim será – respondeu Que-Se-Move-Caminhando.
Anunciai a todos que amanhã será um dia santo, que todos devem pintar os rostos
e colocar suas melhores vestes. Teremos este rito que o Grande Espírito me
enviou através do bisonte.”
Que-Se-Move-Caminhando ergueu então o Calumet para o
Céu e rogou:
“Ó Avô Wakan-Tanka,
olhai-nos! Seste-nos este Calumet para que nos aproximemos deTi! Com o Calumet
caminhamos pela via sagrada durante este tempo. Fizemos tua vontade sobre a
terra e agora queremos oferecer-te uma vez mais este Calumet. Dai-nos um dia vermelho
e azul! Que seja sagrado; que todos se alegrem!”
Que-Se-Move-Caminhando disse então a Grande-Chifre-Ôco
e aos quatro outros homens santos que deveriam reunir os seguintes objetos: um
Calumet; kinnikinnik; erva aromática;
uma pena de águia pintada; uma faca; uma machadinha; sálvia; uma bola de pelos
de bisonte recoberta com pele de bisonte; um saquinho cheio de terra; pintura
vermelha e azul; um crânio de bisontne; um secador de carne pintado de azul.
Os cinco lakotas foram fazer os preparativos para o dia
seguinte. Já se haviam agrupado muitas pessoas ao redor da tenda-santuário. Um
homem disse: “Deve ser o sétimo rito, pois até agora só recebemos seis, e creio
que se trata do jogo que representa a vida. Parece-me que será lançada uma
bola, pois acabo de ouvir que deve haver uma na equipe. Amanhã será um grande
dia!” Durante toda a noite as pessoas falaram sobre o que ía acontecer no dia
seguinte, e todos estavam felizes, pois aquilo que Mulher-Bisonte-Branco
prometera iria cumprir-se inteiramente.
Antes da aurora tudo estava pronto. Havia sido
espalhada sálvia em todo o chão da tenda; e no exato instante em que ía sair o
sol, Que-Se-Move-Caminhando aproximou-se a passos lentos do santuário,
chorando, pois havia pensado nos seis ritos que seu povo já possuía, e sabia
que a Mulher-Bisonte-Branco estaria de novo entre eles. Muitos saíram para ir
ao encontro de Que-Se-Move-Caminhando, e também eles choraram ao aproximar-se
da tenda sagrada. O profeta foi o primeiro a entrar e sentou-se na direção do
sol poente; a seguir escavou o chão diante de si com a faca e pediu aos
ajudantes que lhe trouxessem uma brasa. Tomou da erva aromática, que sustentou
sobre a fumaça, e rezou:
“Avô Wakan-Tanka,
sempre fostes e sempre serás. Tu criastes todas as coisas; nada há que não Te
pertença. Conduzistes o povo vermelho até esta ilha, e nos destes o
conhecimento para que conhecêssemos todas as coisas. Sabemos que é a tua luz
que chega com a aurora, e sabemos que é a Estrela Dalva que nos traz a
sabedoria. Tu nos destes o poder de conhecer os Quatro Seres do Universo e de
saber que na verdade estes Quatro Seres são Um. Vemos sempre os céus sagrados e
sabemos o que são e o que representam. Este será um grande dia, e tudo quantno
se move na terra e no Universo se alegrará. Neste dia coloco tua erva aromática
neste fogo que Te pertence, e a fumaça que se desprender se estenderá por todo
o Universo e irá elevar-se até as profundidades do céu.”
Que-Se-Move-Caminhando abaixou o braço para colocar
erva aromática sobre o braseiro, detendo-se quatro vezes; a seguir purificou o
Calumet, a bola, o crânio de bisontne e todos os apetrechos.
“Ó Wakan-Tanka,
Avô – rezou o profeta – fiz uso da tua erva aromática e a fumaça estendeu-se
por todo oUniverso. Quero erguer aqui o lugar de mistério, e o dia que se
aproxima o verá: olhar-se-ão cara a cara. Ao fazer isto cumpro a tua vontade.
Este é teu lugar, ó Wakan-Tanka!
Estarás aqui conosco!”
Quando os primeiros raios penetraram na tenda,
Que-Se-Move-Caminhando tomou o machado de pedra, ofereceu-o ao Grande Espírito,
e golpeou o centro do lugar consagrado que havia escavado diante de si.
Ofereceu o machado para o Oeste e golpeou deste lado, e do mesmo modo golpeou o
solo nas outras três Regiões; e depois de dirigir o machado para a Terra
golpeou de novo o centro.
Logo tomou a faca e retirou lentamente a terra do lugar
que havia escavado, e a colocou no Leste; depois pegou um punhado desta terra
purificada e, após oferecer um pouco ao Poder do Oeste, colocou-o a Oeste do
lugar consagrado. Da mesma maneira, colocou terra nas outras três Direções e no
centro. A seguir, com a terra que havia colocado no Leste, fez um montículo no
centro e espalhou cuidadosamente por todo o lugar sagrado, nivelando finalmente
com a pena de águia.
Que-Se-Move-Caminhando tomou então uma vara pontiaguda[95]
e depois de oferecê-la ao Grande Espírito, traçou na terra fofa uma linha que
ia de Leste a Oeste e, depois de oferecer o bastão aos céus, traçou outra linha
de Norte a Sul. Finalmente, o altar foi terminado com duas linhas de tabaco
sobre os dois caminhos desenhados na terra, e em continuação este tabaco foi
tingido de vermelho. Assim, o centro deste altar representa o Universo e tudo o
que existe nele, e em seu centro reside o Grande Espírito. Ele está realmente
presente neste altar, e esta é a razão por que se faz com tanto cuidado e
segundo ritos precisos.
Enquanto procedia deste modo, o profeta cantou o canto
do Cachimbo sagrado – channon pawakan
olowan – enquanto outro homem tocava o tambor rápida e suavemente:
Amigo, faz isto!
Amigo, faz isto! Amigo, faz isto!
Se fizeres isto, teu
Avô te verá.
Quando estiverers de
pé no círculo sagrado,
Pensa em mim ao
colocar o tabaco no Cachimbo.
Se fizeres isto, Ele te dará tudo o que
pedires.
Amigo, faz
isto! Amigo, faz isto! Amigo, faz isto!
Se fizeres isto, teu
Avô te verá.
Quando estiverers de
pé no círculo sagrado,
Envia tua voz a
Wakan-Tanka.
Se fizeres isto, ele te dará tudo o que
desejas.
Amigo, faz
isto! Amigo, faz isto! Amigo, faz isto!
Se fizeres isto, teu
Avô te verá.
Quando estiverers de
pé no círculo sagrado,
Com gritos e lágrimas,
envia tua voz a Wakan-Tanka.
Se fizeres isto, terás tudo o que desejas.
Amigo, faz
isto! Amigo, faz isto! Amigo, faz isto!
Se fizeres isto, teu
Avô te verá.
Quando estiverers de
pé no círculo sagrado,
Eleva tua mão a
Wakan-Tanka
Faz isto, e Ele te concederá tudo o que
desejas.
Existe um grande poder neste canto, pois nos foi dado
pela Mulher-Bisonte-Branco quando nos trouxe o Cachimbo santo. Este canto é
ainda praticado em nossos dias, e reanima meu coração sempre que o canto ou
ouço.
Enquanto o profeta e grande sacerdote
Que-Se-Move-Caminhando construía o altar cantando, uma jovem que teria um papel
importante no rito foi introduzida na tenda por seu pai; depois de dar a volta
à tenda no sentido do sol, colocou-se à esquerda do grande sacerdote. Seu nome
era Wasu Sna Win,
Mulher-Grito-Estridente, e era filha de Grande-Chifre-Ôco.
Que-Se-Move-Caminhando tomou a bola ritual feita com
pelos e couro curtido de bisonte. Pintou-a de vermelho, a cor do mundo, e
marcou as quatro Direções com quatro pontos azuis, a cor do céu; depois, pintou
dois círculos azuis ao redor da bola, formando assim dois caminhos que unem as
quatro Direções. Com estas linhas azuis, que circundavam totalmente a bola
vermelha, os Céus e a Terra foram unidos nela, o que lhe conferiu um caráter
sagrado.
O grandee sacerdote pôs erva aromática sobre a brasa e
purificou o Calumet na fumaça; em seguida, ergueu o Calumet para o céu e rezou:
“Ó Wakan-Tanka,
olhai este Calumet que vamos oferecer-te. Sabemos que Tu és o primeiro e que
sempre fostes. Queremos caminhar pela via sagrada da vida com o Cachimbo de
mistério que nos destes em uma mão e nossos filhos pela outra. Assim, as
gerações virão e irão, e viverão segundo o mistério. Este é Teu dia sagrado,
pois neste dia estabeleceremos um rito que completará o número de ritos do
Calumet. Ó Wakan-Tanka, dirige teu
olhar para nós enquanto Te oferecemos este Calumet. Neste dia os quatro Poderes
do Universo estarão conosco. Ó Tu, Poder do lugar aonde se põe o sol, que
controlas as águas, vamos oferecer este Calumet; ajudai-nos com teus dias
benéficos! Ajudai-nos!”
O tabaco destinado ao Oeste e aos demais Poderes ou
Direções foi colocado no cachimbo com estas ladainhas:
“Ó Tu, Poder de onde vive o gigante Wazia, que purificas com teu sopro
branco; e Tu, ser alado que guardas este caminho reto: nós Te colocamos neste
cachimbo; ajudai-nos, pois, com Teus dias vermelho e azul!”
“Ó Tu, Poder de onde nasce o sol; e Tu, Estrela da
aurora, que separas as trevas da luz, dando sabedoria aos homens; contigo
queremos oferecer este cachimbo; ajudai-nos com teus dias benéficos!”
“Ó Tu, Poder do lugar para o qual sempre olhamos, de
onde as gerações vêm e vão; ó Tu, Cisne Branco que guardas o caminho do
mistério; há um lugar para Ti neste Calumet que vamos oferecer ao Grande
Espírito. Ajudai-nos com teus dois dias benéficos!”
“Ó Tu, Ser alado dos céus azulados; Tu que possuis asas
poderosas e olhos que vêem todas as coisas: Tu vives nas profundezas dos céus;
estás muito próximo do Grande Espírito. Vamos oferecer este Calumet; ajudai-nos
com teus dias vermelho e azul!”
“Ó Tu, Avó, de quem provêm todas as coisas terrestres,
e Tu, Mãe Terra, que trazes a todos os frutos e os alimentas: olhai-nos e
escutai! Sobre Ti há um caminho sagrado pelo qual caminhamos pensando no
mistério de todas as coisas. Sobre Ti será santificada esta virgem jovem e
pura, Grito-Estridente, pois ela estará no centro da terra sustetntando a bola
ritual. Ajudai-nos, ó Avó e Mãe com teus dois dias felizes, agora que
oferecemos este Calumet ao Grande Espírito.”
Durante estas ladainhas o Calumet foi enchido e apoiado
no pequeno secador azul; este era formado por três paus, dois dos quais estavam
cravados no solo e sustentavam o terceiro
Que-Se-Move-Caminhando tomou então a bola e ofereceu-a
à jovem dizendo-lhe que se pusesse de pé, segurando a bola na mão esquerda e
levantando a direita para o céu. Então pôs-se a rezar, segurando o Cachimbo com
a mão esquerda e erguendo a direita para o céu:
“Ó Avô Wakan-Tanka,
Pai Wakan-Tanka, olhai-nos! Olhai
Grito-Estridente que está aqui em pé sustentando o Universo em sua mão. Tudo o
que se move sobre a terra alegra-se-á hoje. Os quatro Poderes do Universo,
assim como os céus, estão na bola, Tudo isto, Grito-Estridente vê. A aurora do
dia com a luz do Grande Espírito está agora nela. Ela vê suas gerações futuras
e a árvore da vida no centro. Vê também o caminho sagrado que leva do lugar
para onde sempre nos voltamos para o lugar aonde vive o gigante Wazia. Vê sua Avó e Mãe Terra e todos os
seus parentes nas coisas que se movem e crescem. Ela está ali de pé com o
Universo na mão, e ali todos os seus parentes são verdadeiramente Um. Ó Avô Wakan-Tanka, Pai Wakan-Tanka, é por Tua vontade que tua luz brilha nesta jovem. Hoje
todos sentimos a Tua presença; sabemos que estás aqui conosco. Por isto, e por
tudo o que nos destes, Te damos graças!”
O grande sacerdote colocou-se diante do crânio de
bisonte e falou-lhe nestes termos:
“Espírito Huntka,
hoje te deram uma cor que ponho sobbre ti, pois és parente do povo bípede e
vivemos graças a ti. Quando eu puser esta pintura sagrada sobre ti, sairás com
esta jovem e comunicarás tua graça a todos os seres.”
A seguir o profeta e grande sacerdote pintou o bisonte
traçando uma linha vermelha ao redor de sua cabeça e uma linha reta que ia por
entre os chifres até o meio de suas órbitas. Quando terminou foi sentar-se
perto de Grito-Estridente e lhe disse:
“Grito-Estridente, estás sentada aqui de modo sagrado.
Está bem, pois os espíritos dos bisontes vieram ver-te. Vou revelar-te,
portanto, a visão que tive. Nela, eu me dirigia ao lugar onde vive o Gigante, e
vi um grande povo em marcha. Tinham sua guarda, seus chefes e seus homens
santos, exatamente como nós. Quando me aproximei detiveram-se, e um de seus
chefes avançou até mim e disse:
“Homem, olhai estas pessoas, que são celestes. Vão
ensinar a andar a uma jovem muito estimada, e em sua vida verás quatro idades.”
“Trouxeram uma menina de aspecto frágil, Sentou-se, e
vi que era um bisonte fêmea jovem. Levantou-se e começou a andar, mas tropeçou
e caiu. Sua tribo, que agora eu via como um povo de bisontes, reuniu-se ao seu
redor, e um bisonte fêmea soprou sobbre ela, expelindo um hálito vermelho; e
quando o pequeno bisonte fêmea tombou pela segunda vez, vi que havia se
transformado num bisonte branco muito pequeno. Sua mãe continuou lançando seu
sopro vermelho e a empurrou com o focinho; e quando o pequeno animal se
levantou pela segunda vez, vi que de novo havia mudado e que agora já era um bisonte
maior. Deitou-se, e quando se levantou havia se desenvolvido inteiramente;
então fugiu para trás da colina, e todos os bisontes sopraram ruidosamente, a
tal ponto que todo o Universo estremeceu. Percebi então uns bisontes nas quatro
Regiões, mas transformaram-se em homens e vi a jovenzinha de pé no centro com
uma bola na mão. Lançou a bola para o lugar onde o sol se põe, e todos se
precipitaram e a devolveram ao centro. Do mesmo modo, a menina lançou a bola
para o lugar aonde vive o Gigante, depois para o lugar de onde sai o sol e em
seguida para o lugar para onde sempre nos voltamos, e cada vez a bola era
devolvida para ela, no centro. Por último, lançou-a para o ar e no mesmo
instante todos voltaram a se converter em bisontes, de modo que nenhum deles
pode pegar a bola, porque os bisontes não têm mãos como nós. A memnina, que de
novo se tornara um pequeno bisonte, me disse:
“Este Universo pertence, em verdade, aos homens, pois
os bisontes quadrúpedes não podem jogar com a bola; por isso é necessário que
tu a tomes e regresses para teu povo, e lhes expliques o que aqui te
ensinamos.”
Que-Se-Move-Caminhando explicou então o rito a
Grito-Estridente e a todos os que estavam ali reunidos:
“O bisonte tem quatro idades, como me mostraram em
minha visão. Grito-Estridente e o bisonte representado por este crânio sairão
juntos desta tenda, e ela lançará a bola como vos expliquei em minha visão. Não
esqueçais que esta bola é o mundo, e que é também nosso Pai Wakan-Tanka, pois o mundo – o Universo –
é sua morada. Por isto, aquele que se apoderar da bola receberá uma grande
bênção. Deveis tratar de pegá-la e Grito-Estridente será a jovem bisonte do
centro. Agora ela irá sair e deter-se quatro vezes, e cada um de seus passos
será um benefício para o povo.”
Toda a tribo havia se reunido ao redor da tenda para
ouvir o que se dizia; todos haviam posto suas melhores roupas e estavam
contentes. Grande-Chifre-Ôco, com o Calumet, foi o primeiro a sair da tenda;
depois dele saiu sua filha Grito-Estridente, que levava a bola na mão direita;
atrás vinha Que-Se-Move-Caminhando, que sustentava o crânio e soprava; ele
empurrou quatro vezes Grito-Estridente com o crânio, e de cada vez saía deste
uma fumarola vermelha. Enquanto isto, ele cantava um de seus cantos de
mistério:
De uma maneira
sagrada, de todas as direções,
Vêm para ver-te.
Grito-Estridente esteve sentada de um modo
sagrado.
Todos vêm vê-la!
Finalmente, quando se detiveram pela quarta vez,
Grande-Chifre-Ôco e Que-Se-Move-Caminhando colocaram-se de cada lado da jovem,
os três voltados pera o lugar aonde o sol se põe. Grito-Estridente lançou a
bola para o Oeste e um dos homens a pegou; depois de beijá-la e oferecê-la às
seis Direções, devolveu-a para a menina que estava no centro. De igual modo, os
três voltaram-se para o lugar onde vive o gigante Wazia, e a bola foi lançada nesta direção; todos se precipitaram
para agarrá-la, e a bola foi devolvida ao centro. Continuando, foi lançada para
o lugar de onde nasce o sol, e depois para o lugar para onde sempre olhamos;
todos os que tiveram a sorte de agarrá-la receberam um cavalo ou algum presente
valioso. Na quinta vez a bola foi lançada para cima e houve um grande tumulto,
até que finalmente um homem pode pegá-la e devolvê-la ao centro.
Quando o lançamento da bola terminou, Grande-Chifre-Ôco
ofereceu o Calumet ao profeta; este dirigiu o cano para o céu e começou a
enviar uma voz ao Grande Espírito:
“Hi-ey-hey-i-i!”,
gritou quatro vezes. “Envio-te uma voz, ó
Wakan-Tanka, a Ti que sempre fostes e que estás acima de tudo. Pai Wakan-Tanka, Tu és o chefe de todas as
coisas; tudo é Teu, pois fostes Tu que criastes o universo. Pusestes nosso povo
nesta grande ilha e nos destes a sabedoria que revela todas as coisas. Tu nos
fizestes conhecer a lua e o sol, os quatro ventos e os quatro Poderes do
Universo. Sabemos que as gerações vêm do lugar para onde olhamos, e que
regressam a ele; e caminhamos santamente por este caminho reto e vermelho que
leva ao lugar onde vive o Gigante. E, acima de tudo, sabemos que nossos quatro
parentes mais próximos são nosso Avô e Pai Wakan-Tanka
e nossa Avó e Mãe Maka, a Terra.
Ó Wakan-Tanka, olhai hoje
Mulher-Grito-Estridente, que tem na mão a bola que é a Terra. Ela tem na mão
aquilo que dará força às gerações que amanhã herdarão a Terra que é Tua; e os
passos que darão serão firmes, e serão libertadas das trevas da ignorância.
Grito-Estridente está aqui de pé, sustentando teu Universo, e a partir deste
dia a bola pertencerá às gerações futuras, e marcharão todos alegres tendo seus
filhos pela mão. Ajudai-os a caminhar sem ignorância pelo caminho sagrado. Que
os céus nos contemplem e tenham misericórdia de nós! Avô Wakan-Tanka, Pai Wakan-Tanka,
que sempre conheçamos e cumpramos a Tua vontade! Que a queiramos e amemos! Ó Wakan-Tanka, tem misericórdia de mim
para que meu povo viva!”
Então todos os presentes fumaram ou tocaram o Calumet;
os homens que haviam tido a sorte de agarrar a bola sagrada receberam cavalos
ou roupas de bisonte; todo o povo estava feliz e cheio de alegria, pois aquilo
que Ptesan-Win, a Mulher-Bisonte-Branco,
prometeu no princípio, estava realizado.
Eu, Alce negro, devo explicar agora algumas coisas
deste rito que talvez sejam difíceis de entender. Deve-se observar que é uma
menina e não uma pessoa adulta que está no centro e lança a bola. Assim deve
ser, pois o Grande Espírito é eternamente jovem e puro, e assim é também esta
criança que acaba de chegar de Wakan-Tanka:
é pura e sem obscuridades.
A bola é lançada desde o centro às quatro Regiões, do
mesmo modo que o Grande Espírito está em todas as Direções e em todos os
rincões do mundo; e a bola cai sobre o povo, assim como o Poder do Grande
Espírito é recebido por poucos homens, sobretudo nestes últimos tempos.
Sem dúvida compreende-se que o povgo quadrúpede dos
bisontes não era capaz de jogar este jogo, e por esta razão deu-o aos bípedes.
Isto é muito justo, pois, como disse anteriormente, de todas as criaturas do
Universo, apenas os bípedes, se se purificam e se humilham, podem chegar a ser
unos com Wakan-Tanka, ou podem
conhecê-lo.
Nestes tristes
tempos em que nosso povo se perdeu, corremos atrás da bola, e alguns sequer
tentam agarrá-la; e choro quando penso nisto. Mas sei que a bola logo será
agarrada, pois o fim acerca-se rapidamente, e então ela será devolvida ao
centro, e com ela estará nosso povo. Minha oração é que assim seja; e é para
contribuir para este restabelecimento da bola que eu quis fazer este livro.
[1] Squaw:
tratamento ofensivo dado aos índios norte-americanos pelos homens brancos
[2] “Fala-se geralmente da religião dos índios como
sendo um culto da Natureza e dos animais. Este termo é demasiado amplo e
confuso. Uma investigação paciente e uma observação cuidados nos ensinam, ao
contrário, que o índio não adora os objetos que invoca ou menciona em seus
ritos. A terra, os quatro ventos, o sol, a lua e as estrelas, as pedras, a
água, os diversos animais, todos são representantes de uma vida e de um poder
misterioso...” (Alice C. Fletcher, The
Elk Mistery Festival). “Uma coisa não é apenas o que é para os sentidos,
mas também aquilo que ela representa. Os objetos, naturais ou artificiais, não
são para o primitivo, como podem sê-lo para nós, “símbolos” arbitrários de uma
dada realidade distinta e superior; são para ele a manifestação efetiva desta
realaidade: a águia ou o leão, por exemplo, não são tanto um símbolo ou uma
imagem do Sol, mas são de fato o Sol
sob um de seus aspectos (porque a forma essencial é mais importante do que a
espécie em que ela se manifesta); do mesmo modo, toda casa é o mundo em efígie e todo altar está situado no centro da terra;
se este modo de considerar as coisas parece “inconcebível”, é apenas porque
“nós” estamos mais interessados no que as coisas são do que naquilo que elas
significam, mais interessados nos fatos do que nas idéias universais. Quando se
diz que um grupo humano descende de um tótem, não existe nisto, como crêem os
antropólogos, um absurdo puro e simples;
o que está expresso aí é que o grupo descende do Sol, o Progenitor e Prajapati de todos os seres, na forma
particular com a qual, numa visão ou em sonhos, este se revelou ao antepassado
fundador do clã. O mesmo raciocínio justifica a comida eucarística: o
Pai-Progenitor é sacrificado e dividido por seus descendentes nas espécies da
carne do animal sagrado: “Este é meu corpo, tomai e comei”. Deste modo, como
disse Lévy-Bruhl a respeito dos símbolos deste gênero, “frequentemente estes
não tem por função “representar” aos olhos seu objeto, mas permitir participar
dele”, e que “se sua função essencial consiste em “representar”, no pleno sentido desta palavra, a seres ou
objetos invisíveis, em tornar efetiva sua presença, resulta daí que não
consistem necessariamente em reproduçãoes ou imagens destes seres e destes
objetos”. O objetivo da arte primitiva é inteiramente distinto das intenções
estéticas ou decorativas do “artista” moderno (para quem os antigos sobrevivem
apenas como “formas de arte” desprovidas de significado) e este objetivo
explica seu caráter abstrato.” (Ananda K. Coomaraswamy, Figures of Speech or Figures of Though).
[3] “O fogo de seu conselho ou de sua grande
tenda-de-medicina é, como às vezes indicam suas canções, o mais antigo de tudo;
vem a ser o que os filósofos gregos da escola de Pitágoras chamavam a Hestia
que arde no centro do mundo. Misturando seu hálito com o fogo do tabaco
sagrado, toma parte deste fogo central, e é este mesmo fogo que se eleva com
sua fumaça até o zênite do Universo ou desce até o nadir tocando a terra, ou
que se une aos quatro ventos que percorrem os lados de nosso habitáculo humano
cheios da vida sussurrante dos altos céus” (Hartley Burt Alexander, L’Art et la Philosophie des Indiens de
l’Amérique du Nord).
[4] Segundo a mitologia iroquês, “Hino, o Espírito do trovão, é o guardião do Céu. Armado com um
potente arco e com flechas de fogo (de raios), destrói todas as coisas nocivas.
Sua esposa é o arco-íris (...) Oshadagea,
a “Grande Águia do Orvalho”, está também a serviço de Hino. Habita no Céu do Oeste é leva um lago de orvalho entre suas
espáduas. Quando os espíritos maléficos do fogo destróem sobre a terra toda
espécie de verdor, Oshadagea alça vôo
e, de suas asas abertas a umidade benéfica vai caindo gota a gota” (Max
Fauconnet, Mythologie des deux Amériques).
A associação do relâmpago com o “Pássaro do Trovão” é tanto mais notável na
medida em que nas tradições mais diversas o relâmpago é assimilado à Revelação,
como a chuva o é com a Graça. A águia pertence ao mesmo simbolismo universal do
raio, donde a associação deste animal com São João, autor inspirado do
Apocalipse e “filho do Trovão” (Boanerges).
[5] Convém mencionar, a respeito, o fato de que, no mundo
dos pele-vermelha, as Montanhas Rochosas – os penhascos – encontram-se a Oeste,
e que delas nascem numerosos rios que fertilizam as planícies. “Quando uma
visão vem da parte dos Seres do Trovão do Oeste, vem com terror e como um
furacão; mas quando o furacão da visão passa, o mundo está mais verdse e mais
feliz; pois cada vez que vem a este mundo a verdae revelada (the truth of vision), esta é como a c
huva. O mundo fica mais feliz após o Terror do furacão” (Black Elk Speaks). A ascese responde à mesma conexão cósmica entre
o “terror” e a “Graça”: “fazer medicina” é praticar, durante um período
especialmente consagrado, o jejum, a ação de graças, a oração, a abnegação e
mesmo a tortura voluntária (...) O objetivo é subjugar inteiramente as paixões
da carne e aperfeiçoar o “si” espiritual. A abstinência corporal e a
concentração mental em pensamentos elevados purifica o corpo e a alma (...)
Então o espírito individual se torna
mais conforme ao Espírito da Grande Medicina que está sobre nós” (Woodon
Leg – índio cheyenne – em seu livro A
Warrior who fought Custer).
[6] “Lembremos que, em diversas tradições, a imagem do Sol
está também vinculada à da árvore, pois está representado nela como o fruto da
Árvore do Mundo; ele abandona sua árvore no princípio de um ciclo e vem pousar
nela ao final, de modo que a árvore é efetivamente uma “estação do Sol”. (René
Guénon, L’Arbre du Monde)
[7] O “Grande Espírito” é de fato o “Pai” ou o “Avô”; a
“Terra” é a “Mãe que engendra todos os seres, a “única Mãe”. Os índios pawnies
designam a Deus com o nome de “Pai” (Tirawa)
e o distinguem do Espírito manifestado (Kawaharu);
na mesma ordem de idéias – a assimilação simbólica do céu a Deus enquanto
princípio paterno – os índios pés-pretos chamam o Grande Espírito de “Poder
solar” (Natosiwa), mas sem jamais
identificá-lo ao sol visível.
[8] Este adjetivo não é um pleonasmo, pois a presença
“natural” de Deus não é outra coisa que a Existência e suas diversas expressões
ou formas, tais como, precisamente, os símbolos da Natureza, o Sol, a Lua, o
Bisonte e outros que, para o índio, são wakan,
sagrados. Citemos aqui a explicação, de um profundo simbolismo, dada por um
chefe índio à etnóloga Alice Fletcher: “Tudo o que se move detém-se num lugar
para fazer ali seu ninho, em outro para descansar de seu vôo. Um homem que
caminha detém-se quando quer. É assim que a Divindade deteve-se. O sol, tão
radiante e tão belo, é um dos lugares em que Ela se deteve. Ela esteve com a
lua, com as estrelas e os ventos. As árvores, os animais, todos estão aonde Ela
se deteve, e o índio pensa nestes lugares e envia a eles suas orações para
alcançar o lugar em que Divindade se deteve, e então receberá ajuda e bençãos”.
[9] Os “moinhos de oração” budistas pertencem a um
simbolismo inversamente análogo ao do Calumet; enquanto que neste a Realidade
divina se atualiza nas direções do espaço para as quais se dirigem, a partir do
centro que é o estado de individuação, as aspirações espirituais do indivíduo,
o “moinho de oração” encarnará a Realidade divina na forma da Palavra revelada,
fixada no espaço pelas letras sagradas que a transcrevem, e abençoando,
mediante sua rotação, o Universo em sua manifestação espacial. Segundo um Upanishad, “Brahma está no Norte, está no Sul, no Leste, no Oeste, no Zênite e
no Nadir”. O Corão diz, no mesmo sentido: “Para onde voltares o olhar, ali
encontrareis o rosto de Allah”.
[10] Lembramos que o círculo tem também um significado
dinâmico em relação com a cruz considerada segundo seu simbolismo estático; não
falamos do quadrado, forma estática por excelência, pois este não intervém na
perspectiva nômade de que se trata aqui. De fato, se a cruz representa, não uma
tendência centrífuga, mas os pontos cardeais, o círculo por sua vez não
indicará uma tendência concêntrica, mas o movimento circular dos “Quatro
Ventos” ao redor do mundo, ou seja a “passagem da potência ao ato” dos quatro
Princípios cósmicos; a mesma imagem está representada na swastika, na qual a cruz simples é evidentemente estática, enquanto
seus braços são dinâmicos e “circulares”.
[11] Esta perspectiva explica as grandes “revoluções
nômades” que, partindo das estepes mongóis com ímpeto inaudito, projetavam
varrer as cidades, lugares de corrupção e “petrificação”, da superfície da
Terra; acrescerntemos que o anel de Gengis Khan levava a swastika, que aparece também com frequência na arte dos
pele-vermelha. Quanto à atitude dos pele-vermelha frente à Natureza de um lado
e às cidades do outro, Tácito assinala características análogas nos povos
germânicos: “Consideram que o fato de encerrar entre muros e representar com
aspecto humano aos deuses seria desagradar à sua magestade: eles lhes consagram
bosques e selvas, e invocam, com os nomes de divindades, ao Mistério que não
v~eem senão através do temor reverencial (...) É sabido que os germânicos não
têm cidades e que nem sequer suportam que suas moradias toquem umas nas
outras”. Marcelino, autor do século IV, refere que os germânicos contemplavam
as cidades romanas com horror, como se fossem prisões ou sepulcros, e as
abandonavam logo após tê-las tomado.
[12] Como disse um “guardião do Calumet” a Epes Brown, Deus
mostra uma bondade mantendo a natureza intacta: “Mesmo que tenhamos sido
aplastrados de todas as maneiras possíveis pelo homem branco, ainda nos resta
muito por quê dar graças ao Grande Espírito, pois, mesmo neste período de
obscurecimento, sua obra na natureza permanece intacta e nos recorda
continuamente Sua Presença divina”.
[13] Cabe perguntar o que foi mais ignóbil, se os métodos
desleais empregados durante o avanço para o Oeste, ou o tratamento inflingido
aos índios depois de sua derrota: “A tentativa de suprimir a autoridade dos
chefes e a ordem social indígena começou com um agente (do governo) que veio a
Pine Ridge em 1879 (...) Segundo sua convicção sincera, o índio não poderia
adaptar-se à sua nova situação senão aceitando criar gado e estabelecendo-se em
terrenos destinados ao cultivo. Sem embargo, como todos os homens de sua época,
o agente estimava também que isto deveria ser acompanhado do abandono completo
dos costumes índios. Assim, quando os índios pareciam empenhar-se com demasiada
tenacidade em seus costumes de acampar em grupos e de celebrar conselhos entre
si, ou quando não se mostravam bastante solícitos em colaborar, retinha suas
rações ou usava a polícia para impor a mudança à força (...) O soterramento da
sociedade indígena e da autoridade dos chefes foi seguida mais tarde por
regulamentos oficiais que proibiam as danças e os rituais, em uma palavra, os
costumes pagãos (...) De fato, as crianças eram raptadas à força e enviadas às
escolas do governo; seu cabelo era cortado, suas vestes índias trocadas; eram
proibidos de falar sua própria língua (...) Os que persistiam em seu antigo
modo de vida e os que fugiam e eram capturados ganhavam o cárcere. Na medida do
possível, as crianças eram retidas na escola ano após ano para serem subtraídas
à influ~encia das suas famílias” (Gordon McGregor, Warriors without Weapons).
[14] “Caim, que matou a seu irmão Abel, o pastor, e
construiu u ma cidade, prefigura a civilização moderna – civilização que foi
descrita como uma “máquina mortífera desprovida de consciência e de ideal” (G.
la Piana) , “nem humana, nem normal, nem cristã” (Eric Gill), e de fato, “uma anomalia,
para não dizer uma monstruosidade” (René Guénon). Já se disse: “Os valores da
vida declinam lentamente; o que fica é a aparência de uma civilização sem
nenhuma das suas realidades” (ª N. Whitehead). Críticas parecidas existem às
centenas. “A civilização moderna, por seu divórcio de todo e qualquer
princípio, é comparável a um cadáver sem cabeça cujos últimos movimentos são
convulsivos e insignificantes; não é, aliás, de suicídio, mas de assassinato
que estamos falando” (Ananda K. Coomaraswamy, Am I my Brother’s Keeper?). “Nós os chamamos selvagens porque seus
costumes diferem dos nossos, que consideramos como perfeição a urbanidade; eles
pensam o mesmos dos seus... Por terem poucas necessidades dispõem de muito
tempo livre para cultivar a alma mediante a conversação. Ele estima o nosso
gênero laborioso de vida como serrvil e baixo, comparado com o seu; e a
instrução segundo a qual nós nos valorizamos, eles a consideram frívola e vã”
(Benjamin Franklin, Remarks concerning
the Savages of North America)
[15] Os lakota são sioux do ramo teton; Alce negro pertencia
ao grupo oglala deste ramo. Os outros três ramos dos sioux propriamente ditos
são os dakota do oeste, os santi e os yankton (nakotas). A família linguística
dos sioux compreende muitas outras tribos, principalmente os crow, hidatsa e mandan,
[16] Alce negro nos explicou que isto não deve ser
interpretado simplesmente como um acontecimento temporal, mas também como uma
verdade eterna: “Todo homem – disse-nos – que está apegado aos sentidos e às
coisas do mundo e que, por isso, vive na ignorância, é devorado por
serpentes, suas próprias paixões”.
[17] A tenda cerimonial dos sioux é construída com vinte e
oito traves; uma delas é a “chave” que sustenta todas as demais e, segundo os
sábios, representa o Grande Espírito que sustenta o Universo, que é
representado pelo conjunto da tenda.
[18] A circumabulação segundo o movimento do sol é de uso
corrente entre os sioux; sem embargo, o movimento inverso é igualmente
utilizado em certas ocasiões, para danças e ritos que se seguem ou que precedem
uma catástrofe: este movimento, com efeito, é o dos Seres do Trovão que sempre
atuam de modo contnrário às leis gerais da natureza, já que chegam de uma
maneira terrível e muitas vezes trazem a destruição. A razão da marcha “solar”
é explicada por Alce Negro nestes termos: “Não é o Sul a fonte da vida? E o
ramo florido, não vem verdadeiramente dali? E o homem, não vem dali, avançando
até o poente de sua vida? Não vem depois o frio do Norte, aonde estão os
cabelos brancos? E logo, não chega, se ainda vive, a fontne de luz e de
conhecimento que é oLeste? Não regressa, por último, ao lugar de onde veio, que
é sua segunda infância, a fim de devolver sua vida a tudo o que é vivo, e sua
carne à Terra de onde ela veio? Quanto mais penseis nisto, mais significados
achareis.” (Black Elk Speaks)
[19] Chifre Ôco Em Pé, como chefe da tribo, devia estar
sentado no Oeste, o lugar de honra; dali se observa a porta, que está no Leste,
de onde vem a luz, que simboliza a sabedoria; um chefe deve possuir sempre esta
iluminação para poder guiar sua tribo de uma maneira wakan, “sagrada”, “conforme o mistério”.
[20] Wakan-Tanka
como “Avô” é o Grande Espírito na medida em que é independente da criação; ele
é não-qualificado e não-determinado, no sentido da “Divindade” (Godhead) da doutrina cristã, o do Brahma-Nirguna hindu. Wakan-Tanka como “Pai” é o
Grande-Espírito considerado em relação com a sua maniferstação, seja como
Criador, como Conservador ou como Destruidor; ele é então o “Deus” (God) cristão ou o Brahma-Saguna hindu.
[21] Também Maka, a Terra divide-se entre “Avó” e “Mãe”;
esta é a Terra considerada como produtora de todas as coisas que crescem,
portanto das coisas em ato, enquanto que a “Avó” é a substância de todas estas
coisas, ou seja sua potencialidade. É a mesma distinção, no fundo, que os escolásticos estabelecem
entre natura naturata e natura naturans.
[22] O bisonnte era para os índios o mais importante dos
quadrúpedes, pois porporcionava-lhes alimento, roupas e mesmo suas casas, que
eram feitas de peles curtidas. Como o bisonte continha em si todas estas coisas
– e também por muitas outras razões – era um símbolo natural do Universo, ou
seja da totalidade das formas manifestadas. Todas as coisas acham-se
simbolicamente contidas neste animal: a terra e tudo o que cresce nela, todos o
s animais e invclusive os “povos bípedes”; cada parte do bisonte representa,
para o índio, uma das categorias da criação. Do mesmo modo, suas patas
representam as quatro idades, que são uma condição da criação.
[23] A Águia Pintada voa mais alto do que todas as demais
criaturas, e porisso é considerada como a função reveladora de Wakan-Tanka. É uma ave solar, sua plumas
são parecidas com os raios do sol; quando um índio leva uma destas plumas – não
importa como, às vezes apenas na mão – ela representa, ou melhor, “é” a
“Presença Real”. O índio que porta o cocar de penas de águia “converte-se” em
águia, ou seja, identifica-se em princípio – ou virtualmente – com o resplendor
de Wakan-Tanka. A Águia Pintada
corresponde àquilo que a doutrina hindu chama de Buddhi, ou o Intelecto, princípio informal e transcendente de toda
a manifestação; Buddhi é muitas vezes
definido como o raio que emana diretamente de Atma, o Sol espiritual. Tudo isso permitirá compreender o que
significa o canto – tantas vezes mal interpretado – da “Dança dos Espíritos”:
“A Águia Pintada vem para levar-me ao leão” (Wambali Galeshka wanyan nihi youwe).
[24] O “caminho vermelho” é o eixo que une o Norte e o Sul;
é a via boa e reta, pois para os índios o Norte é a Pureza e o Sul é a Vida.
Este “caminho vermelho” é assim similar à “via reta e estreita” do
Cristianismo; é a linha vertical da cruz, ou também o çirat-el-mustaqin corânico. Por outro lado, existe, na cosmologia
sioux, o caminho azul ou negro que liga o Leste ao Oeste, e que é a via do erro
e da destruição; “Quem viaja por este caminho – diz Alce Negro – está
desorientado, dominado pelos sentidos, e vive mais para si do que para o seu
povo”. O “povo” aqui deve ser entendido
no sentido do “próximo”, como nos Evangelhos.
[25] Quando o índio mata, na caça ou na guerra, deve
realizar rituais de reconciliação, de purificação ou de dor, a fim de
restabelecer o equilíbrio.
[26] Os sete círculos estão dispostos circularmente por
ordem de tamanho, de modo que o menor acha-se colocado ao lado do maior.
[27] Segundo Alce negro, dois destes ritos já eram
conhecidos dos sioux antes da chegada da Mulher celeste: os ritos purificadores
da cabana de suar e os ritos encantatórios para receber uma visão; o ritual do
Calumet foi acrescentados a estas duas técnicas espirituais.
[28] Traduzimos a palavra sioux wanaghi como “alma” e não como “espírito”, como preferem alguns
etnólogos; o primeiro termo, entendido em seu sentido cristão e escolástico, é
mais exato, pois o que é guardado e
purificado neste rito é a totalidade dos elementos psíquicos do ser; estes
elementos, embora estejam localizados em uma forma material – normalmente no
redemoinho do cabelo – são na realidade de natureza sutil ou anímica, e
intermediária entre o corpo material e o puro Espírito. Não devemos esquecer,
por outro lado, que é o Espírito puro – a presença de Wakan-Tanka – que está no “centro” dos elemetnos sutis e materiais.
A alma é assim retida, do modo como será descrito, num prolongamento do estado
individual, a fim de que a parte sutil ou psíquica seja purificada e possa
consumar-se uma libertação virtual. Isto é muito parecido com o estado que a
doutrina católica chama de Purgatório.
[29] “É bom – diz Alce negro – ter diante de nós algo que
nos lembre a morte, pois isto nos ajuda a compreender a impermanência da vida
terrena, e esta compreensão pode nos ajudar a prepararmos nossa própria morte.
Aquele que está bem preparadosabe que ele não é nada perto de Wakan-Tanka, que é tudo; então ele
conhece este Mundo divino, que é o único real”.
[30] Segundo a mitologia dos sioux, no princípio do ciclo um
bisonte foi colocado no Oeste para reter as águas que ameaçavam a Terra. A cada
ano o bisonte perde um pelo, e em cada uma das idades cíclicas perde uma pata;
quando todas as quatro patas e todos os pelos tenham desaparecido, as águas
inudarão novamente o mundo e o ciclo terá chegado ao fim. O mesmo mito acha-se,
em uma forma bastante concordante, na tradição hindu: cada pata do touro Dharma – a Lei divina – representa uma
idade (yuga) do ciclo total (maha yuga), e em cada idade o touro
retira uma pata. Ao longo das quatro idades, a espiritualidade obscurece
progressivamente, até que o ciclo termina num cataclisma; então a
espiritualidade primordial é restaurada e um novo ciclo começa. Tanto os
pele-vermelha como os hindus admitem que, em nossa época, o bisonte – ou o
touro – sustenta-se em uma só pata e
está quase sem pelos. Existem mitos análogos em outras tradições.
[31] Mediante um decreto que revela tanta incompreensão
quanto hostilidade, este rito de “custódia da alma” foi proibido pelo governo
em 1890, e chegou-se inclusive a exigir que todas as almas guardadas pelos
sioux fossem liberadas numa certa data fixada arbitrariamente por decreto. Para
uma descrição deste rito tal como foi praticado em 1882, ver Alice C. Fletcher,
The Shadow of Ghost Lodge, Cambridge,
1884).
[32] O bisonte, que representa o Universo, contém todas as
coisas, como o cavalo ashwamedha. A
parte que corresponde ao gênero humano – e também à Mulher Bisonte Branco – é
um pedaço de carne tirado do quarto dianteiro. Esta carne é para os índios – mutatis mutandis – o que a Sagrada
Eucaristia é para os cristãos; o Calumet tem o mesmo papel, mas a analogia
formal é menos direta.
[33] A erva aromática – wachanga
– que os índios preparam em forma de trança tem a mesma função ritual que o
incenso nos diversos cultos do “velho mundo”.
[34] “Elevamos as mãos quando rezamos, porque dependemos
inteiramente do Grande Espírito; sua Mão generosa atende a todas as nossas
necessidades. Depois golpeamos o solo porque somos miseráveis criaturas, vermes
que se arrastam diante de sua Face” – palavras de um sioux pé-preto ao Padre de
Smet (Life, Letters and Travels,
F.P.Harper, New York, 1905)
[35] Deste modo o cropo material ou grosseiro é restituído
aos elementos de onde provém; ele é deixado esposto aos agentes do céu: os
Quatro Ventos, as chuvas, os “seres alados” do ar, cada qual, assim como a terra, absorvendo uma
parte dele.
[36] O caráter sagrado do parentesco é um dos aspectos mais
importantes da civilização pele-vermelha: como a criação é essencialmente una,
todas as suas partes estão relacionadas. Os índios dirigem-se uns aos
outros, não por seus nomes próprios, mas
com um termo que expressa um grau de relação determinado mais pela idade do que
pelos laços de sangue. Assim, um jovem dirige-se a uma pessoa de mais idade
chamando-a de “pai” ou “mãe”, ou, se a diferença de idade é muito grande, “avô”
e “avó”; por sua vez, os mais velhos dirigem-se aos mais novos chamando-os de
“filho”, “filha”, “neto” ou “neta”. Para os índios, todos os graus de
parentesco terrestre simbolizam o parentesco metafísico entre o homem e o
Grande Espírito, ou entre o homem e a Terra, considerada como Princípio. Ao
utilizar estes termos, os píndios invoca realmente o Princípio, ou ao menos
recordam-no; o indivíduo, como todas as coisas, é para eles como um reflexo obscurecido da Realidade
principial.
[37] Para o índio todo ato tem um sentido metafísico, e
especialmente a caça, à qual consagra uma grande parte do seu tempo. A
perseguição e morte de um animal são vistos pelos índios segundo dois aspectos
aparentemente opostos, mas complementares: a morte simboliza a destruição da
ignorância, mas também um contato com o Grande Espírito. Este último significado
explica a importância ritual do rastreamento,
pois ao seguir a pista do animal, se está ritualmente – e portatnto
virtualmente – no caminho que conduz a Wakan-Tanka;
encontrar a presa, em meio às dificuldades e aos perigos, equivale a encontrar
o Grande Espírito, que é para todos os povos tradicionais a finalidade da
existência. “A doutrina dos vestigia
pedis é comum aos ensinamentos grego, cristão, hindu, budista e islâmico e
constitui a base da iconografia das “pegadas”” (Cf., por exemplo, Platão, Fedro, 253A, 266B; e Rumi, Mathnavi, c60-161). “Qual é o viático do
sufi? São as pegadas. Persegue a caça como um caçador; vê o rastro do gamo
almiscareiro e segue suas pegadas”. Mestre Eckhart fala da “alma que vai à caça
ardente de sua presa, o Cristo”. As pegadas dos precursores podem ser seguidas
até a Porta do Sol, Janua Coeli, o
Final do Caminho; mais além não se pode seguir sua pista. O simbolismo do
rastreamento, assim como o do “erro” (pecado) enquanto “falha em acertar o
alvo” é um dos que nos chegaram das mais antigas civilizações de caçadores”
(Anada Coomaraswamy, Hindouisme et
Bouddhisme). Assinalemos também que cada arma de caça ou de guerra tem seu
significado próprio. Assim o arco é especialmente sagrado para os índios, e as
flechas são quase sempre decoradas com uma linha vermelha em zig-zag que
representa o relâmpago , ou o Conhecimento que é lançado pelo Olho único de Wakinyan-Tanka, a grande Ave do Trovão
do Oeste. As flechas assim consagradas são literalmente riscos de luz que dissipam
as trevas; são assimiláveis ao raio – vajra
– do Indra védico ou à espada dos cruzados cristãos, que era considerada comoum
fragmento separado da “Cruz de luz”. A espada da “Guerra santa” islâmica tem o
mesmo sentido.
[38] O kinnikinnik,
também chamado chanshasha, é um
ingrediente do tabaco ritual dos sioux; é a casca interior seca do alisio
vermelho ou do cornejo vermelho (Cornus
stolonifera). Raramente é fumado só devido ao seu gosto amargo; é costume
acrescentar uma parte igual de tabaco enrolado da tribo dos rees ou arikara, ao
qual se adiciona uma pequena porção de raiz ou erva odorífica, como a raiz da
Artemisia (Artemisia annua); a
mistura dos ingredientes é sempre feita de modo ritual.
[39] Com este gesto se pede perdão à alma do animal morto e
assim o sopro vital que lhe foi tirado é ritualmente restituído mediante o
Cachimbo sagrado.
[40] O couro, identificado simbolicamente com o bisonte, é,
como este, o Universo; em outros tempos, quando todos os índios possuíam uma
dessas peles, usavam-nas não só para aquecer-se, mas também como suporte para a
realização de sua identidade – enquanto homens – com o Universo, a Totalidade.
[41] Os três pés desta trípode estão orientados para o
Oeste, o Norte e o Leste; ela é deixada aberta para o Sul, direção que, para os
sioux, é tomada pelos defuntos. O saquinho de mistério é pendurado deste lado,
imediatamente abaixo da intersecção dos três bastões; este ponto central
representa a Wakan-Tanka, para quem a
alma irá partir logo, e deste ponto pende até o solo uma tira de couro que
representa o caminho que conduz da terra a Wakan-Tanka.
Este caminho que a alma precorre agora e a posição do saquinho indicam que a
viagem está quase terminando.
[42] Trata-se novamente do Bisonte mitológico e celeste, do
Bisonte Fêmea Branco, manifestação do Logos revelador.
[43] Os sioux designam deste modo os “dias” do “fim do
mundo”, quando a lua se tornará vermelha e o sol azzul. Se admitimos, como em
todas as doutrinas tradicionais, que o macrocosmo tem sua correspondência no
microcosmo, existe um “fim do mundo” também para o ser individual, quando este
recebe a iluminação de Wakan-Tanka; o ego – ou a ignorância – morre, e o ser
vive da permanência do Espírito.
[44] Quando o Calumet está cheio, todo o espaço –
representado pelas oferendas aos Poderes das Seis direções – e todas as coisas
criadas – figuradas pelas porçoes de tabaco – estão concentrados num único
ponto: o fornilho ou “coração” do Cachimbo. Sendo o mundo, o macrocosmo, o
Calumet é também o homem, o microcosmo; e o índio que enche o Cachimbo deve
identificar-se com ele e assim atualizar não só o centro do mundo, mas também
seu próprio centro. Isto implica que ele se “dilata” virtualmente, de modo que
as seis Direções do espaço, que estavam no exterior, situam-se então no
interior. Quando esta “dilatação” ou expansão se torna efetiva, o homem deixa
de ser uma parte oufragmento e se torna total e santo; a ilusão da
separativiodade é abolida. Para tornar mais clara esta identidade misteriosa
entre o homem e o Cachimbo-altar, citaremos este canto dos índios osage:
Esta gente tinha
um Calumet do qual fizeram seu corpo.
Ó Hon-ga, tenho um Calumet do qual fiz meu corpo;
Se Tu também
fizeres dele teu corpo, terás um corpo liberado do que causa morte.
Vê a ligação do
pescoço, fiz dela a ligação do meu próprio pescoço.
Vê a boca do
Calumet, fiz dela minha própria boca.
Vê o lado direito
do Calumet, fiz dele o lado direito do meu corpo.
Vê a espinha do
Calumet, fiz dela minha própria espinha.
Vê o lado esquerdo
do Calumet, fiz dele meu próprio lado esquerdo.
Vê a cavidade do
Calumet; fiz dela a cavidade do meu próprio corpo.
Vê o que une o
Cachimbo ao cano, fiz dele minha traquéia.
Utilizai o Calumet
como oferenda em vossas súplicas:
Vossas preces
serão prontamente atendidas.
(Extraído de Francis La Flesche, War
Ceremony and Peace Ceremony of the Osage Indians, Washington, 1939)
[45] Uma vez que para o sioux a tenda – tipi – é uma imagem do mundo, o fogo mantido em seu centro
representa – ou melhor, “é” – Wakan-Tanka
“no mundo”. Par sublinhar o caráter ritual deste fogo central, assinalaremos
que, na época em que os sioux ainda eram nômades, um homem designado como
“guardião do fogo” erguia sua tenda
habitualmente no centro do acampamento circular. Quando o acampamento se
deslocava, o guardião levava o fogo em um pequeno tronco de árvore, e quando o
acampamento se estabelecia de novo, todas as tendas acendiam seus fogos neste
fogo central. Este fogo nunca era apagado e só era substituído por outro –
sempre de maneira ritual – apenas em caso de uma grande calamidade, ou quando
todo o acampamento necessitasse de uma purificação completa.
[46] Assinalemos que o ritual completo do Calumet consta de
três fases distintas: a “purificação”, com a fumaça da erva ritual; a
“expansão”, pela qual todo o Universo é transferido para o Calumet; e, por
último, a “identidade” ou o sacrifício de tudo no fogo que representa Wakan-Tanka “no mundo”. Estas três fases
são comuns, de uma forma ou de outra, a todos os métodos tradicionais e
ortodoxos de realização espiritual.
[47] Alce Negro aparentemente perdeu de vista o fato de que
estava descrevendo um ritual e não sua instituição, e assim ele substitui o
“guardião do Cachimbo” por Grande Chifre Ôco, retomando o relato inicial.
[48] Cada vez que se fuma em um Calumet original, as cinzas
são recolhidas para serem transportadas, em uma época determinada, a um alto
cume, de onde são esparcidas aos quatro Ventos, de preferência o pico Harney
nas Black Hills (Pa Sapa), que os
sioux consideram como o centro do mundo.
[49] Esta palavra, hokshichankiya,
não é usada em linguagem corrente. Significa “semente primordial”, “raiz”,
“fonte”, “influência espiritual”.
[50] Para captar mais claramente o significado deste ato
ritual devemos lembrar que o tipi é o
Universo, o cosmo, enquanto que o espaço exterior ao tipi é simbolicamente o Infinito, Wakan-Tanka.
[51] Segundo os sioux, a alma liberada viaja para o Sul, ao
longo do “caminho do Espírito” – a Via Láctea – até um lugar em que o caminho
se divide. Ali está sentada uma anciã chamada Maya Owichapaha, “a que empurra até a outra margem”, ou seja, a que
julga as almas. Deixa os bons prosseguirem seu caminho pela estrada da direita,
enquanto “empurra para a outra margem”, à esquerda, os maus. Os que vão pela
direita chegam à união com Wakan-Tanka, enquanto que os que vão pela esquerda
devem permanecer num estado condicionado até que estejam suficientemente
purificados.
[52] A grande “Ave do Trovão” do Oeste, Wakinyan-Tanka, é um dos aspectos mais importantes e profundos da
doutrina sioux. Os índios a descrevem dizendo que ela vive “numa tenda
localizada no cume de uma montanha situada no extremo do mundo aonde se põe o
sol. Ela é múltipla, mas todos os seus duplos não são mais do que Um. Não tem
forma, mas possui umas asas que possuem cada qual quatro articulações; não tem
patas, mas possui garras imensas; não tem cabeça mas possui um bico imenso com
fileiras de dentes como os dos lobos; sua voz é o estalo do trovão, e o bater
de suas asas contra as nuvens é o fragor do trovão que retumba; tem um olho só,
cujo olhar éo relâmpago. Num grande cedrosituado ao lado de sua tenda acha-se
seu ninho, feito de ossos secos; ali acha-se um ôvo enorme do qual saem
continuamente suas crias. Ela devora as crias e cada uma delas se converte em
um de seus inumeráveis duplos. Voa ao longo de toda a extensão dos céus,
escondida em um manto de nuvens. Suas funções consistem em livrar o mundo das
impurezas e combater os monstros que sujam as águas. Seu símbolo é uma linha
vermelha em zig-zag com uma forquilha num dos extremos”. (J.R. Walker, in Antrhropological
Papers of the American Museum of Natural History, vol XVI, parte II, New
York, 1917). Esta
Ave do Trovão é na verdade Wakan-Tanka
enquanto dispensador da Revelação, simbolizada pelo relâmpago; corresponde a Garuda, o grande pássaro – com um olho
só – da tradição hindu, e ao Dragão chinês que cavalga as nuvens de tempestade
e cuja voz é o trovão; como dispensador da Revelação, tem a mesma função do
Arcanjo Gabriel nas religiões semíticas. É normal que a Ave do Trovão seja para
os índios o Protetor do Cachimbo sagrado, pois este, como o relâmpago, é o eixo
que une o céu e a terra.
[53] A entrada na luz depois da permanência na escuridão da
tenda de purificação representa a liberação com respeito ao Universo, ou
também, do ponto de vista do microcosmo, a desaparição do ego; o ego e o mundo
são “escuros”, não possuem mais do que uma realidade relativa ou ilusória,
pois, em última instância, não existe outra realidade distinta de Wakan-Tanka, que é representado aqui
pela luz do dia ou pelo espaço que rodeia a tenda. Esta libertação com respeito
ao cosmo, ou esta desaparição da individualidade, está particularmente bem
represntada no rito de Purificação dos índios osage: “Ao final da cerimônia, o
chefe diz aos homens que segurem cada um uma das varas que formam a armação da
pequena habitação, e quando todos o fizeram, ele exclama: ‘Não há outra saída,
amigos meus!’, e juntos lançam a casinha pelos ares em direção ao sol poente”
(Francis La Flesche, War and Peace
ceremony of the Osage Indians, Washington, 1939)
[54] Traduzimos wichasha
wakan como “homem santo” ou “sacerdote”, em vez de “homem-medicina”,
expressão incorreta empregada em muitas obras sobre os índios. O termo lakota
que corresponde a “médico” ou “doutor” é
pejuta wichasha. Para esclarecer
melhor as coisas, vamos reproduzir a explicação dada por Espada, um sioux
ogalalla, a J.R. Walker: Wichasha wakan
designa um sacerdote lakota da antiga religião; um homem-medicina se chama,
entre os lakotas, pejuta wichaska. Os
brancos designam nosso wichasha wakan
como homem-medicina, o que é um erro, Ademais, dizem que um wichasha wakan “faz medicina” quando
executa um ritual; isto também é um erro. Os lakotas só chamam a uma coisa
“medicina” quando ela é usada para curar um enfermos ou um ferido, e então o
termo certo é pejuta.” (Anthropological Papers of the
American Museum of Natural History, vol XVI, parte II, pg. 152)
[55] O índio identifica-se espiritualmente com a Qualidade
cósmica – ou divina – do ser ou da coisa que aparece numa visão, seja um
mamífero, um pássaro, um dos elementos ou qualquer aspecto da criação. Para que
este “Poder” nunca o abandone, o índio leva sempre consigo alguma forma
material que represente o animal ou objeto do qual recebeu seu “Poder”. Estes
objetos foram muitas vezes chamados de “fetiches”, o que é impróprio, pois
correspondem mais àquilo que o cristão chama de “anjo custódio”; para o índio,
os animais e todas as coisas inanimadas são os “reflexos” – em uma forma
material – dos Princípios divinos. O índio não se liga à forma como tal, mas ao
Princípio que está de certo modo “contido” na forma.
[56] O próprio Alce Negro recebeu sua grande visão quando
tinha apenas nove anos.
[57] Esta humilhação através da qual o índio se torna “menor
que a menor formiga”, como disse um dia Alce Negro, equivale àquilo que os
cristãos chamam de “humildade” ou “pobreza”; é o faqr do sufismo ou o balya
do hinduismo; esta pobreza é a condição dos seres que se dão conta de que, em
comparação com o Princípio, sua própria individualidade não é nada.
[58] Quando um homem vai implorar uma visão, é costume que
seus parentes e amigos se reunam em sua tenda para cantar e rezar durante os
dias e as noites que dura sua lamentação. Ao menos uma vez por noite, todos
saem e olham em silêncio para o lugar em que se acha o implorante; observam com
atenção qualquer sinal que possa aparecer nesta direção; um relâmpago, por
exemplo, símbolo da Revelação, é considerado um sinal particularmente
favorável.
[59] A mensagem “Esteja atento!” expressa muito bem um
estado de espírito característico dos índios; implica que em todo ato, em toda
coisa, em todo momento, o Grande Espírito está presente, e que a pessoa deve
estar contínua e intensamente “atento” à Presença divina. Esta presença de Wakan-Tanka – e a consciência que se
tenha dela – é aquilo que os santos cristãos denominaram “a vida no momento”, o
“eterno agora”, ou aquilo que o Sufismo designa pela palavra waqt, “instante”, ou seja,
“instantaneidade espiritual”. Em lakota, esta presença é denominada Taku Shkanshkan, ou simplesmente Shkan na linguagem dos homens santos.
Citemos a respeito a conversação entre um sacerdote lakota e J.R. Walker: “O
que é que faz cairem as estrelas? Taku
Shkanshkan... faz cair a tudo o que cai e mover-se tudo o que move. Quando
faz um movimento, que é que o faz mover-se? Shkan.
Quando se lança um flecha com o arco, o que a faz deslocar-se pelo ar? Shkan... Taku Shkanshkan dá o espírito ao arco e o faz lançar a flecha. Que
é que faz a fumaça subir? Taku
Shkanshkan. O que faz com que a água corra num rio? Taku Shkanshkan. O que faz com que as nuvens se movam por cima do
muno? Taku Shkanshkan. Alguns lakotas
me disseram que este Taku Shkanshkan
é o Céu; é assim? Sim. Taku Shkanshkan
é um Espírito, e o azul do Céu é tudo o que a Humanidade pode ver d’Ele, mas
ele está em toda parte. Taku Shkanshkan é Wakan-Tanka? Sim” (Anthropological
Papers of the American Museum of National History, vol. XVII, pg. 11)
[60] Em nossos dias,
alguns lakota recorrem a um ritual diferente do que descrevi neste
capítulo. As mulheres estabelecem o recinto sagrado no cume da montanha
preparando primeiro um leito de sálvia disposto na direção Leste-Oeste e que
tem uma pedra como almofada; são colocadas como oferendas flâmulas azuis,
brancas, vermelhas e amarelas nas quatro esquinas, que formam um retângulo ao
redor do leito. Nestas estacas são penduradas como oferendas bolsas de tabaco.
Três grandes cordões, cada um com centenas de saquinhos de tabaco atados, são
presos às varas, do Sul para o Oeste, do Oeste para o Norte, do Norte para o
Leste, deixando aberto o lado Sul; então é cravado no solo, em frente à
almofada de pedra, um bastão de madeira de cerejeira que representa a árvore da
vida e que tem uma pluma de águia na ponta. O implorante, que jejuou todo o dia
e que acaba de realizar os ritos de purificação, acerca-se então do lugar; ele
e todas as pessoas presentes voltam-se para cada uma das quatro Direções e
oferecem uma oração apropriada para cada qual. A seguir o imploramte entra no
recinto sagrado, com seu Calumet e vestido tão somente com sua tanga e uma
manta; a cadeia de saquinhos de tabaco é fechada atrás de si e ele começa a
lamentar-se, pedindo ajuda ao Grande Espírito; e permanece neste recinto,
orando sem cessar, durante um período que vai de um a quatro dias. Não é raro
que lhe sejam atados mãos, braços e pés, o que é uma forma de sacrifício muito
penosa, pois mesmo no verão as noites são muito frias no Estado de Dakota.
[61] No Atharva Veda Sanhita das Escrituras hindus, o
significado simbólico da árvore do mundo é idêntico ao que tem a árvore para os
lakota: como afirma Ananda Coomaraswamy, “a árvore do mundo, cujo tronco é
também uma coluna do sol, o poste do sacrifício ou o axis mundi que se eleva
sobre o altar que existe no umbigo da terra, penetra pela porta do mundo e se
desenvolve por cima do teto do mundo”, como o “ramo não-existente
(não-manifestado) que nossos defuntos conhecem como o Supremo” (X, 7-21).
[62] Alce negro explicou-nos um dia que a árvore sagrada
destinada à dança do sol é capturada como um inimigo pela seguinte razão:
“Pouco tempo depois que nos foi entregue o Cachimbo sagrado, saímos à caça e
troxemos a cabeleira de um inimigo; fixamos esta cabeleira no Cachimbo para
assim guardar uma alma em nosso centro, a fim de que os bípedes, junto com os
demais seres do Universo, estivessem representados no Cachimbo. Em memória
deste fato colhemos a árvore como se fosse um inimigo, pois, como vêem, a
árvore também vai agora para o nosso centro como o fez a alma do inimigo morto.
Os nossos não matam jamais como o fazem os brancos; para nós era uma coisa
sagrada e honrávamos grandemente os mortos em batalha, inclusive quando eram
inimigos”. Cremos que não é demais complementar este relato de Alce Negro com
esta explicação de origem omaha: “Meu filho viu uma árvore maravilhosa. As Aves
do Trovão vão e vêm ao redor desta árvore, e formam uma estrela de fogo que
deixa atrás de si quatro caminhos de erva queimada que se estendem até os
Quatro Ventos. Quando as Aves do Trovão pousam nesta árvore, esta incendeia-se
e o fogo sobe até a cúspide. A árvore arde, mas ninguém pode ver o fogo, salvo
à noite. A tribo deliberou sobre o que isto poderia significar, e os chefes
disseram: “Vamos buscá-la; coloquem seus apetrechos e preparem-se como se fossem
para o combate”. Os homens despiram-se, pintaram-se, colocaram seus adornos e
foram em busca da árvore, que erguia-se junto a um lago. Precipitaram-se sobre
ela como se a atacassem, como se fosse um guerreiro inimigo. Todos correram. O
primeiro a alcançar a árvore foi um ponca, que a golpeou como se golpeasse um
inimigo. Derrubaram a árvore, e quatro homens em fila a levaram sobre os ombros
até a povoação.” (Fletcher & La Flesche, The Omaha Tribe)
[63] Jalal ed-Din Rumi diz em seu Matnawi, falando dos derviches e do combate espiritual: “Existem
homens que dançam e giram no campo de batalha; neles, músicos tocam pandeiros:
em seu êxtase, os mares explodem em espuma. Vocês não o vêem, mas, para seus
ouvidos, até as folhas das árvores batem palmas... é preciso possuir um ouvido
espiritual, não o do corpo.”
[64] Esta lança ou vara servia para “contar golpes”, ou
seja, para tocar o inimigo – não para matá-lo – o que era considerado uma
grande proeza.
[65] O ato espiritual não concerne, propriamente falando, ao
indivíduo, mas ao estado de existência do qual o ser específico é uma
expressão, e a fortiori à Divindade da qual ele é como que um reflexo. Um ato
implica sempre a consciência da distinção entre o “eu” e o “próximo”, e, num
grau mais elevado, entre “nós” e o Si”.
[66] Trata-se da tira de couro cru que vai da árvore ao
peito do dançarino.
[67] Esta brasa deve ter sido tirada de um fogo que esteve
ardendo durante toda a noite anterior, e que arderá todas as noites enquanto
durar a dança. Está situado a Leste, fora do pavilhão, e, segundo Alce Negro,
mantém-se aceso para recordar a eterna presença de Wakan-Tanka. Durante o dia o fogo não é necessário, pois o sol está aí para recordar esta
presença.
[68] Os sioux também pintam de negro o rosto por ocasião da
dança que se executa quando regressam do caminho da guerra, pois, como dizia
Alce Negro, “sabemos que indo pelo caminho da guerra fazemos algo de mau, e
desejamos ocultar nossos rostos de Wakan-Tanka”.
[69] Isto é evidente, pois o índio devia suportar os piores
sofrimentos sem uma queixa. Todos os povos guerreiros são estóicos, mas nenhum
superou os pele-vermelhas no domínio da dor. As lágrimas em questão tem a
finalidade de apiedar a Divindade.
[70] Repetimos que o ego identifica-se sempre com a
coletividade. “Que todos os seres sejam felizes”, diz a ladainha budista. Por
outro lado, não custa lembrar que a vida “sagrada” e a conformidade ao
“mistério” coincidem com a obtenção da salvação.
[71] A Bisonte celeste.
[72] A “nação” ou o “povo” identificam-se em última
instância com o “gênero humano”. Contando em milênios, a divisão em “tribos” é
relativamente tardia; é o que os sioux expressam dizendo que todas as tribos
indígenas separaram-se deles no transcurso dos séculos, que eles são a
humanidade primitiva; outros índios afirmam a mesma coisa de suas respectivas
tribos.
[73] Os quatro passos representam para os sioux as quatro
idades ou fases de um ciclo; a idade da pedra, a idade do arco, a idade do fogo
e a idade do cachimbo; a pedra, o arco, o fogo e o cachimbo constituem cada
qual o prinipal suporte da idade respectiva. As quatro idades podem também
referir-se, do ponto de vista microcósmico, às quatro fases da vida humana, do
nascimento até a morte.
[74] Os arikara pertencem à família linguística dos caddo;
são, portanto, parentes próximos dos pawnies.
[75] Não devemos esquecer que o bisonte é como uma
encarnação animal do princípio Terra, cuja manifestação material é a terra
visível; mas a Terra-Princípio é evidentemente divina, e é esta a razão pela
qual a Mulher Bisonte vem do Céu. Terra e Céu – as Regiões visíveis – têm seu
protótipo eterno no Divino; estes protótipos formam uma dupla, não se
confundem; mas Wakan-Tanka, em sua unidade suprema, supera esta dualidade. O
fato de que o Calumet foi trazido por um
Bisonte fêmea celeste significa que aquele é um dom da dupla Terra-Céu: a
matéria do Calumet indica a Terra, e a
fumaça, o Céu.
[76] E cujos protótipos acham-se incluídos no princípio
Terra.
[77] Esta definição é notável, pois contém a doutrina do
altar primordial, do santuário enquanto tal.
[78] A analogia com o simbolismo cosmológico dos povos mais
antigos aparece aqui de modo impressionante; recordemos por exemplo o freixo
Ygdrasil, o eixo do m undo na mitologia germânica.
[79] O continente pele-vermelha, a terra que se estende
entre dois oceanos.
[80] É sasbido que tocar um inimigo sem matá-lo, com uma
vara adornada de plumas, era considerado uma façanha particularmentte
meritória.
[81] O papel da pintura ritual encon tra-se também no
Hinduismo; na maior parte das civilizações a pintura é substituída pela
indumentária, como no caso da vestimenta ocre do sannyasi ou o hábito monacal.
[82] Também esta obscuridade é simbólica: indica a passagem
mais ou menos “caótica” de um plano de consciência a outro.
[83] Por transposição espiritual: o “eu” se torna uno com o
próximo. O simbolismo iniciático desta passagem é especialmente explícito.
[84] Como a fórmula de cortesia árabe: “Minha casa é tua
casa” (dari darek)
[85] Os índios nos falaram de uma mulher que, por descuido, entrou um dia na tenda de um
“homem de mistério” e com sua presença tirou o poder não só do homem, como
também da “bolsa de medicina” deste, que estava pendurada no tipi. Fatos análogos, ainda que menos
extremados – o caso citado parece ser muito especial – encontram-se na maioria
das tradições; existem incompatibilidades de correntes sutis que devem ser
levadas em conta, mas que podem ser neutralizadas por outras influências.
Trata-se, em todo caso, do plano psíquico e não do plano espiritual; não
obstante, o espiritual pode depender em certa medida – não em si, mas em sua
manifestação – de veículos psíquicos, o que explica as prescrições de
purificação que se encontram nas mais diversas religiões.
[86] Devemos recordar que os índios, como todos os povos de
espírito ainda primordial, vêem, em primeiro lugar, não o plano de existência
que limita, mas a essência que atravessa todos os planos de existência; o
bisonte visível “é” o Bisonte-Princípio, ma apenas em um dado nível de
manifestação cósmica. Os pele-vermelhas não “adoram”, evidentemente, o animal
bisonte, posto que o matam; entretanto, jamais esquecem o “gênio” da espécie,
no sentido mais elevado do termo.
[87] Como o índio, o bisonte vive em grandes rebanhos uma
vida nômade.
[88] Com estas palabras Bisonte Lento declara expressamente
que a impureza menstrual não atinge o indivíduo.
[89] O vento do Oeste, as tormentas.
[91] O pássaro carpinteiro de cabeça vermelha, cujo nome
corrente é kankecha; este pássaro
vive no Leste, de onde vem a luz.
[92] Sabe-se que a cabeça de um Calumet tem a forma de um T
invertido, pelo menos entre os sioux e a maior parte das outras tribos; por
isso, a parte que ultrapassa o fornilho – que é o “altar” – é consniderado como
o “pé” do Calumet, enquanto que a boquilha é sua “boca”.
[93] Os bisontes esfregam-se nas árvores e deixam nelas
pelos que os índios recolhem piedosamente.
[94] Aqui a árvore é que é divinizada porque une a terra ao
céu, enquanto que o bisonte é considerado neste caso sob seu aspecto puramente
terrestre. Os índios consideram todas as coisas da natureza alternativamente
desde o ponto de vista da essência universal, que vincula as coisas ao Divino,
e desde a acidentalidade existencial, que as limita no nível da sua aparência
imediata. Este modo de ver as coisas encontra-se em todas as tradições de
caráter mais ou menos primordial ou mitológico que conservam ainda uma
vitalidade suficiente.
[95] Os sioux tem o costume de traçar os caminhos rituais
com a vara que serve para carregar o Cachimbo e que, por esta razão, é um
auxiliar do fogo e um instrumento indispensável para o sacrifício. Os índios
dizem que representa a vontade do homem, posto que né necessária uma iniciativa
por parte do homem para que possa fazer um sacrifício ou receber a sabedoria de
Wakan-Tanka.
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