quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Mohyiddin Ibn Arabi - A Sabedoria dos Profetas - Parte II

A SABEDORIA DA BEATITUDE MISERICORDIOSA
(AL HIKMAT AR-RAHMANIYAH)
SEGUNDO O VERBO DE SALOMÃO


[Bilqis disse:] “Em verdade, ela é de Salomão, e ela está em nome de Deus, o Clemente (ar-rahman), o Misericorioso (ar-rahim)”; isto significa: “Em verdade, esta carta é de Salomão, e seu conteúdo é: em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso...”[1]. Algumas pessoas quiseram deduzir [desta passagem] que Salomão havia colocado seu próprio nome antes do nome de Deus; mas não foi assim, porque isto seria irreconciliável com o conhecimento que Salomão tinha do seu Senhor; e como poderia ser assim, se a própria Bilqis disse: “uma carta nobre (ou: generosa) acaba de ser-me entregue...”, ou seja uma carta que a honrava? Talvez as pessoas tenham sido levadas àquela interpretação pela história de Chosroes que picou a carta do enviado de Deus [porque Maomé teria escrito seu nome antes do nome do imperador]; entretanto, ele só fez isto após ter lido a carta inteira e tomado conhecimento do conteúdo. Da mesma forma Bilqis: se ela não houvesse aceitado [a graça] que lhe era destinada, o respeito pelo autor não a teria impedido de rejeitar a carta, tivesse ou não o nome deste aparecido antes ou depois do nome de Deus.
[No início de sua carta] Salomão menciona as duas misericórdias divinas: a misericórdia incondicionada que corresponde ao nome ar-rahman, e a misericórdia condicionada, que corresponde ao nome ar-rahim[2]. Segundo o primeiro destes nomes, Deus prodigaliza Sua misericórdia sem restrição [às criaturas]; conforme o segundo Ele a impõe a Si mesmo como um dever [para com aqueles que a merecem]. Ora, este dever provém igualmente de Sua misericórdia incondicionada, de modo que o sentido do nome ar-rahim está contido no nome ar-rahman. Pois “Deus prescreveu a Si próprio a misericórdia”[3] destinando-a ao Seu adorador em recompensa pelas obras que Ele mencionou [na Escritura santa] e pelas quais o adorador adquire um direito sobre Deus, o qual fez para Si uma lei de ser misericordioso para com o autor destas obras. Mas qualquer um dentre os servidores de Deus que possua este estado [que lhe garante a misericórdia divina] sabe por isso mesmo quem é realmente o autor de suas obras. Pois podemos dividir as obras [de adoração] em função dos oito “órgãos” do homem [que são: as mãos, os pés, os olhos, as orelhas, a língua, o coração, o ventre e o sexo]; ora, Deus nos fez saber [pela palavra muitas vezes mencionada]  que é Ele próprio o “Si” (al-huwiyah) de cada um destes “órgãos”; portanto, somente Deus é o autor de todos os atos; é apenas a forma que pertence propriamente ao servidor, sendo o “Si” divino principialmente inerente a ele – ou seja ao seu “nome” [que é a sua “forma” pessoal] – . Pois Deus é a essência de tudo o que se manifesta e que é chamado de criatura. É neste sentido que podemos atribuir os nomes “o Exterior” (az-zahir) e “o Último” (al-akhir) [nomes que de resto são atributos divinos] ao servidor; o segundo destes nomes lhe pertence aliás porque o servidor veio da não-existência para a existência. Segundo este mesmo significado, os nomes “o Interior” (al-batin)e “o Primeiro” (al-awwal) pertencem a Deus, porque é dele que dependem tanto a manifestação do servidor quanto a de seus atos. Portanto, quando vemos a criatura, contemplamos o Primeiro e o Último, o Exterior e o Interior.
Este conhecimento não estava oculto a Salomão; ao contrário, porque ele fazia parte de um “reino que não pertenceria a nenhum outro” depois dele[4], ou seja que ninguém depois dele poderia manifestar na ordem sensível. Maomé recebeu tudo o que Salomão recebera, mas ele não o manifestou. Foi assim que Deus deixou em seu poder o Ifrit[5] que viera de noite para fazer-lhe mal; mas quando ele quis capturá-lo e prendê-lo a uma das colunas da mesquita até a manhã, para que as crianças de Medina se divertissem com ele, ele lembrou-se da prece de Salomão [que havia pedido a Deus que lhe desse um reino do qual ninguém depois dele poderia dispor] e viu-se impedido de manifestar seu poder como Salomão havia manifestado. Ora, Salomão fala de um “reino”, sem generalizar, donde sabemos que se trata de um reino específico. Todavia, sabemos que ele compartilha cada parte deste reino com outros [profetas e santos], donde podemos deduzir que seu privilégio consistia em possuir este reino em toda a sua extensão. Por outro lado, resulta da história do Ifrit que apenas a manifestação exterior deste reino era privilégio exclusivo de Salomão. A bem dizer, pertenciam-lhe propriamente a síntese e a manifestação exterior [do reino em questão]. Se o Profeta, em seu relato do encontro com o Ifrit não houvesse dito: “e Deus o deixou em meu poder”, poderíamos pensar que Deus lembrou-lhe a prece de Salomão apenas para fazê-lo saber que ele não possuía poder sobre o Ifrit; mas como ele disse: “e Deus o deixou em meu poder”, sabemos que ele recebeu o poder de dispor dele, e que apenas na sequência ele lembrou-se da prece de Salomão e respeitou seu privilégio. Assim, aquilo de que nenhuma criatura depois de Salomão poderá dispor, é a manifestação deste reino [cósmico] em toda a sua extensão.
Em tudo isso não tivemos em vista senão as duas misericórdias divinas que Salomão expressou pelos dois nomes que, em língua árabe, são ar-rahman e ar-rahim. Deus condicionou a misericórdia que Ele Se impôs como lei e estendeu a outra além de todo limite, conforme a palavra: “Minha misericórdia abarca todas as coisas”[6]; vale dizer que ela abarca inclusive os Nomes divinos -  entendo com isto as relações essenciais, pois Ele mostrou-Se misericordioso para com elas manifestando-nos: nós somos o fruto da generosidade divina incondicionada para com os Nomes divinos [que exigem a criação como complementação lógica], assim como para com as relações dominicais [que exigem o servidor como objeto]. Em seguida, Deus prescreveu Sua misericórdia para Si mesmo, manifestando-nos a nós mesmos; Ele nos fez conhecer nosso “Si” (huwiyah), a fim de que saibamos que Ele não destinou sua misericórdia senão para Si mesmo, de modo que ela jamais sai d’Ele; – e para quem, fora d’Ele mesmo, Ele manifestaria sua misericórdia, uma vez que não há nada senão Ele? Claro que podemos certamente distinguir graus de dignidade [a receber Sua misericórdia], uma vez que as criaturas possuem mais ou menos conhecimento, mesmo a Essência sendo uma. No fundo, essa ordem hierárquica das criaturas quanto ao conhecimento é análoga à que existe entre o Conhecimento e a Vontade divinas, ou seja ela se reduz à hierarquia das Qualidades divinas: a Vontade é inferior, em suas relações com seus objetos, ao Conhecimento [do qual ela depende], do mesmo modo como ela é, por outro lado, superior, em suas relações, à Potência. Da mesma forma, o Ouvido e a Vista divinas, assim como todos os nomes divinos, constituem uma hierarquia, à qual corresponde a hierarquia do manifestado, de sorte que podemos dizer: este é mais sábio do que aquele, embora a Essência seja uma. Assim como cada um dos nomes divinos ao qual se atribua uma dignidade superior à dos demais implica por isto mesmo os significados de todos os outros, cada criatura comporta em si a dignidade de tudo o que lhe está hierarquicamente subordinado. – [No fundo] cada partícula do mundo é o mundo todo, no sentido que ela recebe nela todas as diferentes realidades essenciais (haqaiq) que constituem o mundo. Assim nossa afirmação de que este é inferior àquele em seu conhecimento, não contradiz a verdade que a Ipseidade (al-huwiyah) divina é a essência tanto de um como de outro, nem que esta essência é mais perfeita e mais conhecedora no segundo do que no primeiro, da mesma maneira como distinguimos os Nomes divinos, que entretanto não são outra coisa senão Deus: em Sua qualidade cognitiva, Deus possui uma relação mais universal [para com as possibilidades] do que a que possui em sua qualidade volitiva ou de potência, e no entanto ele permanece sempre idêntico a Si mesmo e não se torna jamais outro que não Ele. Não O reconheça apenas de um lado, ó santo homem, ignorando-Lhe o outro, nem O afirme aqui, negando-O lá! – a menos que você O afirme sob o aspecto  que Ele próprio afirma e o negue igualmente sob o aspecto que Ele próprio nega, segundo a passagem corânica que sintetiza a afirmação e a negação em relação a Deus:  “Nada é semelhante a Ele, mas é Ele quem ouve e vê tudo”[7]; na primeira parte deste versículo, Deus nega [toda qualidade diante de Si], e na segunda parte Ele afirma [Seu Ser] sob o aspecto da qualidade que engloba todos os seres vivos dotados de ouvido e visão; ora, não existe outra coisa senão seres vivos, embora esta verdade esteja oculta neste mundo inferior à inteligência da maioria das pessoas e só apareça a todos no além, que é a morada dos vivos, bem como do resto deste mundo, embora sua vida [presente em todas as coisas] permaneça escondida para alguns servidores [de Deus], a fim de que os graus de eleição e a hierarquia dos servidores de Deus manifestem-se naquilo que eles conhecem das realidades essenciais do mundo.
No ser de maior inteligência, o princípio divino é mais aparente do que naquele cujo conhecimento é mais limitado. Não se deixe confundir pelas diferenças entre os seres, e não diga que é falso afirmar que a criatura é essencialmente Deus, agora que mostramos a hierarquia dos nomes divinos, que você não duvida serem Deus e cujo significado implícito não é outra coisa que seu sujeito, ou seja Deus.
Mas voltemos a Salomão: como poderia ele ter colocado seu nome antes do de Deus, como quiseram alguns, quando ele próprio estava incluído naquilo que recebe sua existência da Misericórdia divina? Seria preciso que ele mencionasse primeiro o Clemente, o Misericordioso, a fim que a relação d’Aquele que dispensa a Misericórdia com aquele que a recebe ficasse indicada com clareza, pois é contrário à ordem das coisas que se coloque antes o que deve vir depois, ou inversamente.
A sabedoria de Bilqis e sua grande ciência aparecem quando ela não menciona o mensageiro que lhe transmitiu a carta; ela agiu assim para que seus seguidores vissem que ela tinha fontes de informação que eles ignoravam. Esta é uma disposição divina na arte de governar. Pois se a via pela qual as notícias chegam ao rei permanecer desconhecida, os membros do governo serão prudentes e não se permitirão ações que possam trazer-lhes a cólera de seu príncipe, ao chegarem ao seu conhecimento. Ao contrário, se eles perceberem por qual intermediário as notícias chegam ao rei, eles buscarão corromper este intermediário, para que eles possam fazer o que quiserem sem que o rei saiba. O fato de que ela disse simplesmente: “uma carta acaba de ser-me transmitida...” sem nomear o mensageiro, é assim um ato de sua política que lhe assegurava o respeito de seus seguidores e dos dignatários do reino, e que justificava sua superioridade em relação a eles[8].
Quanto à superioridade do sábio humano sobre o sábio de entre os gênios (al-jinn)[9], ela consiste em que o primeiro conhece os segredos das transformações e das virtudes essenciais das coisas. É o que está expresso [no Corão] pelo lapso de tempo [necessário, a um como a outro, para operar o transporte do trono de Bilqis][10], pois “o retorno do olhar” àquele que olha é evidentemente mais rápido do que o gesto de levantar-se do lugar, pois o “movimento” do olhar na percepção de um objeto é mais rápido do que o deslocamento do corpo; o “movimento” do olhar é idêntico ao ato de sua percepção de uma coisa, e este ato não depende da distância que separa o espectador de seu objeto; no mesmo instante em que o olho se abre, a vista atinge até o céu das estrelas fixas. Quanto ao tempo que necessita o “retorno do olhar” ao espectador, ele reduz-se simplesmente à cessação da visão. O ato de um homem que se levanta de seu lugar não é desta natureza nem possui esta rapidez. Açaf ibn Barkhiya[11] era portanto superior aos gênios por sua maneira de agir: no mesmo instante em que Açaf ibn Barkhiya falava, sua operação cumpriu-se e Salomão viu o trono de Bilqis “colocado diante dele”; – [o Corão esclarece com estas palavras] para que não se pense que ele viu o trono em seu lugar [no reino de Sabá] sem que ele tivesse sido transferido. Ora, não existe, neste mundo, deslocamento instantâneo, mas a desaparição do trono e sua remanifestação operaram-se de uma maneira da qual só é consciente aquele que a conhece. Ela se acha indicada na palavra corânica: “Eles são iludidos por uma criação nova”[12], o que significa: não decorre um instante para eles sem que eles percebam aquilo que eles vêem[13]. Uma vez que é assim, a coincidência da desaparição do trono de seu lugar original com sua reaparição junto a Salomão foi devida à renovação da criação “em cada sopro (nafas)”[14]. Ninguém conhecia o poder de que se trata; pois o homem não se dá conta espontaneamente daquilo que não é e é novamente (lam yakun thumma kana) a cada “sopro”. E se eu digo “novamente”, eu não suponho nenhum intervalo temporal, mas uma sucessão puramente lógica. Na “renovação da criação a cada sopro”, o instante da negação coincide com o instante da manifestação do semelhante (mathal)[15]. É como a incessante renovação dos acidentes segundo a teoria de Asharites[16]. A história do transporte do trono de Bilqis é uma das histórias mas perturbadoras [do Corão], exceto para aqueles que conhecem a realidade a que fazemos alusão. Açaf não teve outro mérito do que o de ter transposto a renovação [incessante da forma do trono] para a proximidade de Salomão. O trono não foi transportado através do espaço, e seu deslocamento não aboliu a condição espacial, se é que se compreende o que queremos dizer[17]. [A transferência de que se trata] foi operada por um dos companheiros de Salomão para que este tivesse a honra aos olhos de Bilqis e seu séquito, que foram testemunhas. A razão [profunda deste milagre] reside no fato de que Salomão era o dom de Deus a David, segundo a palavra: “E Nós demos Salomão a David”[18]; ora, um dom é aquilo que provém da pura generosidade do doador, não aquilo que se recebe em recompensa ou porque é merecido, e neste sentido o próprio Salomão era “a graça superabundante, a prova evidente e o golpe cortante”[19].
Quanto à ciência de Salomão, Deus diz a respeito: “Nós demos a Salomão a inteligência deste assunto”[20] – onde o julgamento [de seu pai David] havia falhado, entretanto Deus deu “aos dois um poder de julgamento (hukm) e uma ciência (‘ilm)...” Isto significa que a ciência de David era uma ciência recebida [ou seja um conhecimento refletido, tornado humano], enquanto que a ciência de Salomão era o conhecimento divino a respeito da coisa, no sentido que Salomão identificava-se diretamente ao Juízo divino, pois ele era o intérprete de Deus em estado de perfeita veracidade. [A diferença entre o conhecimento de Salomão e o de David] é análogo àquilo que faz com que um homem que quer conhecer o julgamento divino num certo assunto e o encontra por si mesmo ou graças ao que foi revelado a um dos profetas, tenha um duplo mérito, enquanto que um outro, que tenha igualmente buscado mas que se enganou na sua conclusão tenha apenas o mérito de seu esforço: o primeiro recebeu um “julgamento”, enquanto que o segundo não possui senão a “ciência” [que o torna capaz de procurar]...
Quando Bilqis viu seu trono, convencida que estava da impossibilidade de levá-lo tão longe em tão pouco tempo, ela disse: “é como se fosse ele mesmo”[21]; nisto ela tinha razão, se considerarmos o que dissemos sobre a renovação constante da criação das formas semelhantes; é verdade que era o próprio trono, e ela disse corretamente, no sentido em que uma pessoa é essencialmente idêntica, no momento de sua renovação, ao que ela era no passado.
A perfeição [espiritual] de Salomão manifesta-se também no conselho que ele deu a Bilqis quando a fez entrar em seu palácio pavimentado de cristal[22], que ela tomou por um espelho d’água, de sorte que ela descobriu as pernas para não molhar as roupas. Salomão indicou-lhe com isto que a aparição do trono que ele lhe mostrara era da mesma natureza[23]. Foi assim que Salomão lhe fez plena justiça, fazendo-a compreender desta maneira que ela tinha razão em dizer: “é como se fosse ele mesmo”; por isso ela disse: “meu Senhor, minha alma enganou-se, eu me submeto com Salomão” – ou seja, com a submissão de Salomão – “a Deus, o mestre dos mundos”. Ao se expressar assim, Bilqis não fez sua submissão depender de Salomão, mas do Mestre dos mundos, enquanto que Salomão fazia parte dos mundos. A definição que ela deu de sua fé não difere portanto daquela que deram da sua alguns enviados de Deus, contrariamente ao que fez o Faraó que, a ponto de afogar-se no Mar Vermelho, referiu-se ao Senhor de Moisés e de Aarão[24], embora o sentido de seu credo coincida sob certo aspecto com o de Bilqis, mas sem ser tão direto. Ela foi portanto mais sábia do que o Faraó ao definir sua ligação com Deus. É verdade que o faraó estava sob o impacto do momento quando disse: “Eu acredito n’Aquele em que crêem os filhos de Israel”; ao dizer isto, ele vinculou sua fé a uma coisa particular; mas ele fez isto porque ele havia escutado os mágicos [vencidos] dizerem, afirmando sua fé em Deus: “O Senhor de Moisés e de Aarão”[25]. Quanto à submissão (islam) de Bilqis, ela a identificou com a de Salomão no sentido que ela seguiria Salomão em tudo que implicasse a fé deste último.
É assim que caminhamos pelo Caminho direito (aç-çirat al-mustaqin) sobre a qual o próprio Senhor se encontra, pois ele tem a mecha no topo da nossa cabeça em sua mão, de modo que nós jamais podemos ser separados d’Ele[26]. Estamos portanto com Ele implicitamente, e Ele está conosco soberanamente. Pois Ele disse: “Deus está convosco aonde quer que estejais”[27], enquanto que Ele está conosco porque Ele segura nossa “mecha”. Na realidade, Ele está consigo mesmo aonde quer que Ele vá conosco por sua Via, e neste sentido não há ninguém que não esteja sobre algum caminho reto, o qual não será outra coisa que o Caminho do Senhor, exaltado seja! É isto o que Bilqis aprendeu com Salomão, e é por isso que ela disse: “[eu me submeto com Salomão] a Deus, o Mestre dos mundos”, sem referir-se a um mundo em particular.
Quanto à dominação cósmica que era privilégio de Salomão e que havia-lhe sido dada por Deus como “um reino do qual ninguém disporia depois dele”, trata-se do poder do comando (al-amr) direto. Pois Deus disse: “Nós tornamos o vento servil a ele, para que sopre segundo sua ordem”[28]. Seu privilégio não consistia assim em que [as forças cósmicas] lhe fossem servis [enquanto tais], pois Deus disse a respeito de cada um de nós, sem exceção: “Ele vos submeteu tudo o que está nos céus e na terra, pois tudo emana d’Ele”[29], assim como são mencionados os ventos, as estrelas e outras coisas como servindo ao homem, não sob nosso comando mas sob as ordens de Deus. Assim, se refletirmos bem, veremos que o privilégio de Salomão consistia na ordem [ou comando] que age diretamente, sem que ele estivesse num estado de concentração da alma e sem que ele projetasse sua vontade espiritual (himmah); acrescentamos isso porque sabemos que o corpo deste mundo obedece à projeção voluntária da alma quando esta se encontra em um estado de união [espiritual], pois tivemos esta experiência neste caminho espiritual. Aquele que busca o poder de Salomão [saiba que], é próprio de Salomão apenas a ação pela pura enunciação da ordem, sem aspiração espiritual nem concentração da alma. Saiba também – e que Deus ajude a ele e a mim, por um espírito que emane d’Ele – que quando um tal dom é atribuído a um servidor [de Deus], qualquer que seja, ele não será contado no além, ou seja este dom não será deduzido daquilo que ele terá a receber lá. Isto é verdadeiro para Salomão, embora ele tenha pedido este dom ao seu Senhor e embora, segundo a intuição dos homens desta via espiritual, o Senhor lhe tenha concedido antecipadamente aquilo que Ele reserva a outros [no além], e que, por consequência, Ele poderia deduzi-lo de sua recompensa se quisesse. Mas Deus lhe havia dito: “Este é o Nosso dom”[30] sem acrescentar: para ti, ou: para alguém, “então, desperdiça-o ou guarda-o sem contá-lo”; donde sabermos pela intuição inerente a esta via espiritual, que Salomão havia solicitado este dom por ordem de seu Senhor, pois se a demanda é feita em obediência à ordem divina, o demandante recebe dela uma plena recompensa, por haver pedido; quanto ao Criador (al-bari), Ele atende a demanda, se quiser, ou não a atende, e em qualquer caso o servidor cumpriu aquilo que dele exigia a ordem de seu Senhor, porque Lhe endereçou a oração exigida. Ao contrário, se o servidor endereça um pedido por sua própria iniciativa, sem haver recebido a ordem do Senhor, o dom, se lhe for concedido, será deduzido da recompensa no além. Esta lei aplica-se a tudo o que pedimos a Deus, exaltado seja Ele. Neste sentido, Deus disse a Seu profeta Maomé: “diga: meu Senhor, aumente meu conhecimento!” O Profeta obedeceu à ordem de seu Senhor, e pediu de tal modo que seu conhecimento fosse aumentado, que cada vez que lhe  davam leite, ele interpretava como significando mais conhecimento. Foi assim aliás que ele interpretou um sonho no qual ele recebia um copo de leite cujo restante ele passou a Omar ibn al-Khattab; quando seus companheiros lhe perguntaram: “e pelo quê o tomas?”, ele respondeu: “pelo conhecimento”. Do mesmo modo, quando Deus o levou [em sua “viagem noturna”], o Anjo lhe apresentou uma taça cheia de leite e outra cheia de vinho[31], e ele bebeu o leite, após o que o Anjo lhe disse: “tu escolhestes a verdadeira natureza primordial (al-fitrah); através de ti Deus salvaguardará tua comunidade”. O leite é sempre a forma aparente do conhecimento, qualquer que seja o estado de existência em que ele apareça; a bem dizer, ele é o conhecimento manifestado sob a forma do leite, como Gabriel mostrou-se a Maria sob a forma de um homem harmonioso. Quando o Profeta disse: “os homens dormem, e quando eles morrem, eles acordam”, ele entendia com isto que tudo o que o homem percebe durante sua vida terrestre corresponde às visões de alguém que sonha, de sorte que todas as coisas exigem uma interpretação. Na verdade, o universo é imaginação, e ele é Deus segundo sua realidade essencial. Aquele que compreende isto alcança os segredos da via espiritual. Por isso, quando levaram leite ao Profeta, ele disse: “Ó Deus, abençoai-nos nisto e dai-nos mais disto!”, porque ele viu o leite como a forma aparente do conhecimento, e porque Deus lhe havia ordenado pedir mais conhecimento. E quando lhe levaram outras coisas que não lleite, ele disse: “Ó Deus, abençoai-nos nisto e alimentai-nos com o que é melhor!”
Se Deus dá a alguém uma coisa em virtude de uma prece engendrada por uma ordem divina, este dom não será deduzido daqueles que ele deverá receber na morada do além. Ao contrário, se Ele dá a alguém uma coisa em virtude de uma oração que não foi engendrada por uma ordem divina, de sorte que a Ordem de Deus não está [necessariamente] implicada nela, Deus compensará este dom, se Ele quiser, ou não compensará, se não quiser. Esperemos assim em particular que Deus não conte Seus dons de conhecimento, pois Sua ordem ao Profeta – sobre ele a Bênção e a Paz! – de pedir o aumento do conhecimento foi ao mesmo tempo uma ordem dirigida a toda a sua comunidade. Pois não disse Ele: “vós tendes no enviado de Deus um modelo perfeito”[32]? Que modelo poderia ser melhor do que este, se o compreendemos por Deus [ou seja, por um conhecimento divino]?
Se expuséssemos o estado espiritual de Salomão em toda a sua plenitude, seríamos tomados de terror. A maior parte dos sábios desta via espiritual ignora qual era verdadeiramente o estado de Salomão e seu grau; a realidade é diferente daquela que eles imaginam.




A SABEDORIA SUBLIME
(AL HIKMAT AL-‘ULUWIYAH)
SEGUNDO O VERBO DE MOISÉS

Segundo seu significado espiritual (hikmah), a morte dos filhos homens [dos Israelitas, ordenada pelo Faraó] com o objetivo de destruir o profeta [cujo nascimento lhe havia sido predito][33], aconteceu para que a vida de cada criança morta com esta intenção fluísse para Moisés; pois foi na suposição de que seria Moisés é que cada um dos meninos foi morto; ora, não existe ignorância [na ordem cósmica], de modo que a vida [ou seja o espírito vital][34] de cada uma destas vítimas tinha necessariamente que chegar a Moisés. Eram vidas puras, primordiais, que ainda não haviam sido contaminadas por desejos egoistas. Moisés era portanto [em sua constituição psíquica] a soma das vidas daqueles que haviam sido mortos na intenção de destruí-lo. A partir de então, tudo o que estava prefigurado na predisposição psíquica de cada criança morta, reencontrou-se em Moisés, o que representa um favor divino excepcional que ninguém antes dele havia recebido[35].
[Conforme à sua constituição psíquica] as sabedorias de Moisés[36] são numerosas. Se Deus quiser, explanarei algumas neste capítulo, na medida em que o Comando divino me inspirar. Ora, a primeira coisa que esta ordem me ensinou é isto que acabei de mencionar.
Moisés nasceu assim como uma síntese de muitos espíritos vitais, que eram forças ativas; pois o jovem age sobre o adulto. Pois não vemos como uma criança influencia o adulto pelo poder atrativo que lhe é inato, de modo que o adulto deixa de lado sua dignidade para divertir a criança, para fazê-la rir, colocando-se no nível da inteligência infantil? É porque ele obedece inconscientemente ao poder de fascinação da criança, que o obriga assim a ocupar-se dela, a protegê-la, a buscar aquilo que ela necessita, a consolá-la para que ela não se angustie. Tudo isto faz parte da influência exercida pelo jovem sobre o adulto; a causa disto é a potência contida no estado, pois o jovem está mais diretamente ligado ao seu Senhor, devido à sua primordialidade, enquanto que o adulto está mais afastado. Ora, aquele que está mais próximo de Deus é servido pelo que está mais afastado, como os Anjos mais próximos de Deus são servidos pelos outros. O enviado de Deus tinha o costume de expor a cabeça nua à chuva assim que ela começava, e ele dizia que a chuva trazia o frescor de seu Senhor. Consideremos então este conhecimento de Deus [manifestado por este gesto] do Profeta; haverá algo de mais luminoso, mais sublime, mais claro? É assim que a chuva fascinava o mais nobre dos homens, por sua proximidade em relação a Deus; ela era como um enviado celeste que lhe trazia a inspiração divina. Ela atraía o Profeta espontaneamente, em virtude de sua natureza essencial, de sorte que ele devia oferecer-se a ela para receber aquilo que ela lhe trazia de divino; pois ele não teria se exposto à chuva se ela não lhe transmitisse uma benfeitoria divina. Esta é a função mediadora (risalah) da água, com a qual Deus “criou tudo o que é vivo”[37] – é preciso compreender bem isto!
No que tange à sabedoria implicada no fato de que Moisés foi colocado num cesto e abandonado ao Nilo, diremos que o cesto (at-tabut) corresponde ao seu receptáculo humano (an-nasut) e o Nilo ao conhecimento que ele deveria assimilar por intermédio deste corpo, ou seja por meio do pensamento e das faculdades de sensação e imaginação, faculdades que não poderiam transmitir qualquer coisa à alma humana sem a existência prévia deste corpo composto de elementos. Somente quando a alma chega ao corpo e dispõe dele por ordem divina e o governa, ela passa a ser dotada das faculdades correpondentes, que lhe permitem realizar aquilo que Deus quer que ela realize através do governo deste cesto, onde habita a Paz (as-sakinah) do Senhor[38]. É assim que Moisés foi exposto ao Nilo em seu cesto, a fim de realizar com suas faculdades os domínios respectivos do conhecimento. Deus o ensinou com isto que se o espírito é o rei [do organismo humano], este entretanto não o rege senão através dele, ou seja por intermédio das faculdades ligadas a este receptáculo humano (an-nasut) cujo símbolo é o cesto[39]. Da mesma forma, Deus não rege o mundo senão através do próprio mundo, ou por sua “forma” [qualitativa]. Ele o rege por ele mesmo, segundo a lei que faz com que a existência do gerado depende da do gerador, as finalidades de seus fins, o condicionado das suas condições, os efeitos de suas causas, as conclusões de suas provas, e toda coisa verdadeira das verdades que as definem. Pois tudo isto [tanto uns como outros desses termos] faz parte do mundo[40], de modo que Deus [coordenando esses complementares] governa o mundo pelo mundo; nós acrescentamos: “ou pela forma do mundo”: com isto entendemos a forma essencial do mundo, a saber os Nomes divinos e as Qualidades transcendentes de Deus. De fato, não  conhecemos Nome divino no qual não se encontre o significado e o espírito no mundo, de modo que, sob este aspecto, Deus não governa o mundo senão através da “forma” do mundo. É por isso que [o Profeta] disse a respeito da criação de Adão, que é o protótipo que sintetiza todas as categorias da Presença divina – a Essência (adh-dhat), as Qualidades (aç-çifat) e as Atividades (al-af’al) –, que “Deus  criou Adão em Sua forma”. Ora, Sua “forma” não é outra coisa que a própria Presença divina, de modo que Deus manifestou neste nobre “resumo” que é o homem perfeito (ou Homem universal: al-insan al-kamil) todos os Nomes divinos e as Realidades essenciais (al-haqaiq) de tudo o que existe fora dele, no macrocosmo, em modo “detalhado”. Ele fez do homem perfeito o espírito do mundo e lhe sujeitou o alto e o baixo[41] por causa da perfeição (ou universalidade: kamal) de sua “forma”. Assim como não há no mundo “nada que não exalte a Deus por sua louvação”[42], não há nada no mundo que não sirva a este homem, devido à essência de sua forma: “Deus vos submeteu o que está nos céus e na terra, tudo o que emana d’Ele”[43]; tudo o que o mundo contém está sujeito ao homem. Isto é sabido por aquele que conhece, ou seja o homem universal, e ignorado por aquele que ignora, ou seja o homem animal[44].
Segundo as aparências, o fato de Moisés ter sido colocado no cesto e abandonado ao Nilo significaria sua perda; na realidade foi por isso que ele foi salvo e triunfou, assim como a alma é vivificada pelo conhecimento após sua morte na ignorância, segundo a palavra corânica: “aquele que estava morto” na ignorância “e que Nós vivificamos” pelo conhecimento “dando-lhe uma luz com a qual ele caminha entre os homens”, – sendo esta luz a direção divina, “é ele como alguém que, na parábola, acha-se nas trevas” do erro “sem poder sair delas”[45] – sendo o estado de ignorância indefinido em si mesmo, sem descontinuidade.
A direção divina consiste em que o homem seja levado à perplexidade (al-hayrah) [em face da Realidade supra-racional], para que ele saiba que a existência é toda perplexidade [a saber a conciliação entre dois aspectos divinos aparentemente contraditórios]; ora, a perplexidade é instabilidade [no sentido de não-inércia] e movimento, e o movimento é vida, de modo que não existe inércia nem morte, mas pura existência, sem ausência.
Esta é também a natureza da água, que comunica vida à terra e provoca seu movimento, segundo a palavra corânica: “E tu vês a terra deserta, e quando Nós despejamos água sobre ela, ela freme, concebe e produz” – ou gera – “todas as espécies de pares em beleza”[46], ou seja que ela não gera o que não é conforme à sua própria natureza, a qual está sujeita à dualidade, que é uma polaridade[47]. Da mesma forma, o Ser divino assume a multiplicidade [dos aspectos e] dos Nomes, que o designam como tal ou qual, em vista do mundo, que pressupõe por sua natureza as múltiplas essências dos Nomes que nele se afirmam. Inversamente, a multiplicidade do mundo é unidade sob o aspecto da sua essência. Assim como a Hylé é múltipla em virtude das formas que aparecem nela, e das quais ela é o suporte substancial, Deus aparece como múltiplo em virtude das formas de Sua própria revelação, de modo que Ele é o “lugar da revelação” (majla) onde as formas do mundo revelam-se umas às outras, ao mesmo tempo em que permanece essencialmente um[48]. Considerem então a beleza deste ensinamento divino, cuja explicação Deus dá àqueles que Ele escolhe dentre seus servidores!
Quando a família do Faraó encontrou Moisés no Nilo junto a uma árvore, o Faraó chamou-o Musa, sendo que em língua egípcia mu significa “água” e sa, “árvore” – porque o cesto ficou retido por uma árvore em meio à correnteza. Primeiramente o Faraó quis matá-lo, mas sua mulher opôs-se, falando por inspiração divina, pois ela havia sido criada para a perfeição espiritual, segundo a palavra do Profeta que disse que ela e Maria haviam atingido a perfeição dos perfeitos dentre os homens[49].  Ela disse então ao Faraó a respeito de Moisés: “Ele será um consolo para mim e para ti”[50], e, de fato, foi por ele que ela foi consolada recebendo a perfeição espiritual, como dissemos. Por outro lado, ele também foi um consolo para o Faraó, por causa da fé que Deus lhe deu [antes que ele se afogassse no mar Vermelho], de modo que Deus colheu o espírito do Faraó num estado purificado, sem sujidades, pois Ele o tomou em sua fé [toda nova], antes que ele a pudesse sujar com um pecado; pois a submissão a Deus apaga todo pecado que a precede. Deus também fez dele um sinal de Seu auxílio livremente dirigido a qualquer um que Ele queira [segundo a palavra corânica: “para que sejas um sinal para aqueles que viverão depois de ti”[51]] a fim de que ninguém desespere da misericórdia divina, pois “só desesperam do Espírito de Deus aqueles que não crêem”[52]. Se o Faraó estivesse entre aqueles que desesperam, ele não se teria subitamente submetido a Deus[53]. Assim, Moisés foi, como disse a esposa do Faraó, “um consolo para mim e para ti; não o mates, pode ser que ele nos seja útil”[54]. É o que aconteceu de fato, pois Deus fez-lhes o bem por causa de Moisés, embora eles não duvidassem que era ele o profeta que viria a destruir o reino do faraó e de sua família.
Quando Deus o protegeu assim do Faraó, o coração de sua mãe foi libertado da dor que o oprimia. Depois, Deus impediu a criança de aceitar ama de leite até que ele recebeu o seio de sua mãe, que o alimentou, e com isto Deus trouxe para ela uma felicidade perfeita[55]. Isto é análogo ao conhecimento das diferentes vias sagradas (shara’i), segundo a palavra divina: “A cada um de vós Nós demos uma via (shir’atan) e uma direção (minhaja)”[56]; este último termo significa [quando o decompomos em minha e ja][57] a proveniência de um ser; ora, esta corresponde à nutrição pelo leite materno, assim como uma planta se nutre pela sua raiz. [Conforme a este princípio, que diz que um ser só se alimenta de sua raiz], uma coisa pode ser ilícita segundo uma dada via sagrada e lícita segundo outra – entendo isto nas aparências, pois, na realidade, não se trata senão de uma só e mesma coisa, neste caso como em outros, uma vez que a Ordem divina [ou seja, a Existência] é feita de uma contínua renovação da criação, sem repetição alguma. Ora, essa divergência das vias sagradas é simbolizada, na história de Moisés, por sua aversão às amas de leite.
A verdadeira mãe de uma criança é aquela que o amamenta e não aquela que dá à luz apenas, pois esta última carrega a criança como algo que lhe foi confiado, que cresce dentro dela e que se alimenta de seu sangue materno sem que a vontade da mãe esteja implicada nisto, nem sua generosidade, pois o embrião só se nutre do sangue que faria sua mãe doente e a mataria, se a criança não se alimentasse dele e se este sangue não pudesse sair dela. É portanto o embrião que é uma benfeitoria para sua mãe, porque ele se alimenta do sangue materno e a protege do mal que sua retenção lhe causaria. Não é este o caso da mãe que amamenta, pois ao dar o leite ela quer conservar a vida da criança. Ora, Deus destinou como ama de leite a Moisés a mãe que o gerou, para que nenhuma outra mulher fora sua mãe tivesse qualquer direito sobre ele, e também para que ela se consolasse embalando-o e vendo-o crescer junto ao seu seio.
Assim, Deus salvou Moisés da angústia do cesto; e porque Deus lhe deu o conhecimento, ele atravessou as trevas da natureza [física], sem todavia sair dela. Ele foi testado “em muitas provas”[58], vale dizer, Deus o instruiu sobre muitas aparências, para que ele adquirisse a paciência nas provas divinas. A primeira destas provas foi a morte do egípcio[59], ato que ele cometeu por impulsão divina e com a aprovação de Deus em seu foro íntimo, sem que no entanto ele se desse conta; entretanto, ele não constatou em sua alma nenhuma aflição por ter matado o egípcio, embora ele não tenha se perdoado até que recebeu uma revelação divina a respeito. Pois todo profeta é interiormente preservado do pecado mesmo sem que ele seja consciente disto antes que uma inspiração lhe mostre. É por isso que al-Khidr lhe mostrou a morte do jovem, ação que Moisés condenou, sem se lembrar da morte do egípcio, tendo al-Khidr lhe dito: “eu não o fiz por minha iniciativa”, lembrando assim a Moisés o estado em que este se encontrava quando ele ainda não sabia que estava essencialmente preservado de todo movimento contrário à ordem divina[60].
Ele lhe mostrou também o furo no barco, aparentemente feito para matar as pessoas, mas que teve entretanto o sentido oculto de salvá-las das mãos de um “violento”. Ele apresentou-o como uma analogia com o cesto que guardou Moisés quando ele foi lançado ao Nilo; segundo as aparências, este ato foi igualmente feito para destruí-lo, mas, segundo o sentido oculto, foi o que o salvou. Sua própria mãe o havia feito por temor do “violento”, que era o Faraó, para que ele não matasse a criança cruelmente. E ela o contemplou, segura pela inspiração divina da qual ainda não se dera conta, encontrando nela mesma a certeza de que haveria de amamentá-lo; mas temendo por ele, ela atirou-o ao Nilo, como se dissesse para si mesma [conforme o provérbio]: “o que o olho não vê, não aflige o coração”, e como se ela não temesse por ele como se tivesse que assistir [à sua morte]; mas o pensamento que Deus lhe trouxe [impôs-se a ela] devido à sua confiança em Deus, e foi deste pensamento que ela viveu, compensando o desespero e o medo com a esperança. Quando ela teve a inspiração de entregar a criança ao Nilo, ela disse a si mesma: talvez seja este o profeta pelo qual o Faraó e os egípcios serão destruídos; e ela viveu desta imaginação, que era em si um conhecimento[61].
Na seqüência, quando procuravam Moisés [depois que ele matou o egípcio], ele “saiu da cidade, fugindo por medo” [do castigo][62], segundo as aparências, mas na verdade ele fugiu por amor à salvação, pois o impulso do movimento é sempre o amor, embora o observador possa ser confundido pela aparência das causas secundárias. Mas não existe esta ou aquela causa [verdadeira] para o movimento, pois o princípio do movimento é a passagem do mundo de seu estado de não-maifestação, em que ele está em repouso [enquanto pura possibilidade], à manifestação. Diz-se então que a ordem (al-amr) [divina] é movimento partindo do repouso. Ora, o movimento, que é a própria existência do mundo, é um movimento de amor, como indica a palavra do Profeta [pronunciada em nome de Deus]: “Eu era um tesouro escondido. Eu quis ser conhecido, e Eu criei o mundo”[63]; se não tivesse havido este amor divino, o mundo não teria sido manifestado. O movimento do mundo da não-existência à existência é assim [na realidade] o movimento do amor que se manifesta. Por outro lado, o “mundo” também ama contemplar-se como existente, como se ele se contemplasse em seu estado de imobilidade principial. Sob qualquer ângulo que o consideremos, o movimento do mundo de seu estado de não-existência permanente para sua existência será sempre um movimento do amor, tanto do lado divino como do lado do mundo.
Pois a Essência ama a perfeição (al-kamal); ora, o conhecimento que Deus possui de Si mesmo, na medida em que Ele é independente dos mundos, não se refere senão a Ele; para que o conhecimento seja perfeito em todos os graus, é preciso que o conhecimento do efêmero, conhecimento este que resulta exatamente destas determinações – a saber, das determinações do mundo na medida em que elas existem – realize-se igualmente. A perfeição [ou Infinitude] divina exprime-se assim quando ela manifesta tanto o conhecimento relativo quanto o conhecimento eterno, de modo que a dignidade divina do Conhecimento seja perfeita sob um e outro aspectos [embora o conhecimento do relativo não acrescente nada ao Conhecimento absoluto].
Do mesmo modo o Ser se perfecciona. Pois o Ser (al-wujud) é de um lado eterno e de noutro não-eterno ou porvir. O Ser eterno é o ser de Deus em Si mesmo; o ser não-eterno é o Ser divino [refletindo-se] nas “formas” do mundo imutável [ou seja nos arquétipos]; é o que se chama porvir (ou evento: huduth) porque o Ser manifesta-se aí de uma parte a outra. Ele manifesta portanto a Si mesmo nas formas do mundo, a fim que o Ser seja perfeito [sob todos os aspectos, embora o relativo não possa acrescentar nada ao eterno][64].
O movimento do mundo nasce assim do amor à perfeição [ou à infinitude]. Pois não vemos que [Deus] aliviou [naffasa, palavra que remete à Expiração do Clemente: nafas ar-rahman] os Nomes divinos de seu estado [de contração, onde eles se encontravam] antes da manifestação de seus efeitos nesta substância chamada mundo? Ele ama o repouso [ou a detenção: ar-rahah], e não o atinge senão através da existência formal, nem mais nem menos. Daí resulta que o movimento é motivado pelo amor, e que não existe movimento no cosmo que não seja um movimento do amor.
Existem sábios que conhecem isto, e outros que são iludidos pela existência de causas secundárias, mais aparentes num momento dado e mais conscientes para a alma. Assim, o medo era mais consciente para a alma de Moisés, devido ao assassinato do egípcio, mas este medo implicava o amor à própria salvação; ele fugiu então “por medo”, o que significa que ele fugiu porque desejava salvar-se do Faraó e do castigo que ele lhe infligiria; ele próprio não mencionou [em seu diálogo com o Faraó][65] senão a causa imediata [de sua fuga do Egito], aquela de que ele tinha mais consciência no momento dado, como o próprio corpo é imediatamente consciente ao homem, enquanto que o amor da salvação estava implícito, como o espírito é imanente ao corpo.
Os profetas servem-se de uma linguagem concreta porque eles se dirigem à coletividade e porque eles confiam no entendimento do sábio que os irá compreender. Se eles falam de forma figurada, é por causa do vulgo e porque eles conhecem o grau de intuição daqueles que o compreendem verdadeiramente. É assim que o Profeta disse, ao falar da liberalidade, que ele não dava nada a alguns que lhe eram mais caros do que outros, de medo que Deus os atirasse ao fogo infernal. Ele se expressava assim devido aos fracos de espírito que são escravos da avidez e das tendências naturais.
Da mesma forma, tudo o que os profetas trouxeram em matéria de ciências veio revestido de formas acessíveis às mais comuns das capacidades intelectuais, a fim de que aquele que não vai até o fundo das coisas detenha-se nesta vestimenta e a tome pelo que há de mais belo, enquanto que o homem de compreensão sutil, o mergulhador que pesca as pérolas da Sabedoria, saiba indicar por que razão uma dada Verdade divina reveste-se de um dada forma terrestre; ele avalia a vestimenta e o pano de que ela é feita e reconhece assim tudo o que ela recobre, atingindo assim uma ciência que permanece inacessível aos que não possuem um conhecimento desta ordem.
Uma vez que os profetas, os enviados e seus herdeiros sabem que existem no mundo e em suas comunidades homens possuidores desta intuição, eles apóiam suas demonstrações sobre uma linguagem concreta, acessível igualmente à elite e ao homem comum, de modo a que o homem da elite tire dela tanto o que tira o homem comum como muito mais, na medida em que o termo “eleito” (khaçç) se aplique realmente a ele e o distinga do cego; e é através disso [dessa compreensão intuitiva] que os sábios distinguem-se uns dos outros. Tal é portanto o significado da expressão de Moisés: “e eu fugi do meio de vós por medo”, ao invés de “eu fugi do meio de vós por amor à salvação”.
Ele chegou assim a Midian, e encontrou as duas mulheres e encheu seus cântaros de água, sem lhes pedir salário[66]. Depois, ele “se retirou para a sombra”, ou seja para a sombra divina, e disse: “ó meu Senhor, eu sou pobre diante do bem com que Tu me dotastes”; ele atribuiu assim apenas a Deus a essência do bem que ele fez e qualificou a si mesmo como “pobre” (faqir) perante Deus. É por isto que al-Khidr reconstruiu diante dele o muro derrubado sem pedir pagamento pelo seu trabalho, o que Moisés repreendeu nele, até que al-Khidr lembrou-lhe seu ato de buscar água sem exigir recompensa, e outras coisas que não são mencionadas no Corão; de sorte que o Enviado de Deus – que Deus o abençoe e lhe dê a Paz! – lamentou que Moisés não tenha permanecido com al-Khidr, a fim de que Deus lhe contasse mais das suas ações.
Com isto reconhecemos o estado ao qual Moisés foi elevado sem que ele fosse consciente; pois se ele fosse consciente, ele não teria negado a mesma coisa junto a al-Khidr, de quem o próprio Deus testemunhara a Moisés ser puro e justo; apesar disto, Moisés esqueceu a justificativa divina assim como a condição segundo a qual lhe foi permitido seguir al-Khidr, o que só aconteceu pela misericórdia divina para conosco, para os casos em que nos esqueçamos das ordens de Deus. Se Moisés fosse consciente [do estado espiritual que o fez atuar junto às mulheres de Midian], al-Khidr não lhe teria dito: “[Deus deu-me um conhecimento que] tu não aprendestes”, ou seja, eu possuo um conhecimento do qual não tens a intuição, assim como tu possuis um conhecimento que eu não tenho. Assim ele foi justo. Quanto à sua decisão de separar-se de Moisés, o próprio Deus diz: “Aquilo que o enviado vos trouxer, agarrai-o, e o que vos negar, fugi-lhe”[67], e por estas palavras Deus obriga os sábios que conhecem o tamanho da função do enviado divino. Ora, al-Khidr sabia que Moisés era enviado de Deus; ele então prestou atenção ao que emanava dele, para não faltar ao respeito para com o enviado de Deus. Moisés lhe havia dito: “Se eu te interrogar ainda uma vez sobre qualquer coisa, então não terás mais a minha companhia”, e por isso mesmo ele impediu-o de permanecer com ele; quando Moisés interrogou-o pela terceira vez, al-Khidr disse-lhe: “Aqui nos separamos”, e Moisés não lhe respondeu: ele não lhe pediu para continuar em sua companhia, pois ele sabia do alcance de sua própria dignidade de enviado, que lhe havia feito pronunciar a proibição de acompanhá-lo mais adiante; ele então se deteve e eles separaram-se. Considerem a perfeição destes dois homens em seu conhecimento e em seu tato em relação à Realidade divina, assim como a imparcialidade de al-Khidr – sobre ele a Paz! – quando disse a Moisés: “Eu possuo uma ciência que Deus me ensinou e que tu não conheces e tu possuis uma ciência que Deus te deu e que eu não conheço”[68]. Estas palavras foram um bálsamo sobre a ferida que ele lhe havia feito ao dizer: “...e como terás paciência diante de [coisas] que tua ciência não alcança?”[69]; ao dizer isto, ele sabia que Moisés havia recebido a dignidade de enviado de Deus, enquanto que ele próprio não tinha esta função. A mesma [distinção das ciências] aparece, no seio da comunidade maometana, na história da fertilização da palmeira, quando o Profeta disse [aos seus companheiros]: “Sois mais sábios do que eu nas coisas do vosso mundo”. Ora, não há dúvida que o conhecimento de uma coisa vale mais do que a ignorância a seu respeito; também Deus louva a Si mesmo ao afirmar Sua onisciência; o Profeta reconheceu assim que os seus companheiros eram mais sábios do que ele nas coisas úteis deste mundo, porque ele não as havia aprendido, porque tratava-se de ciências empíricas que ele não tinha podido adquirir, por estar ocupado com a inspiração divina. Eu mostro a vocês uma suprema polidez, que será muito útil se vocês a aprenderem de todo coração.
Quanto à palavra de Moisés [dirigida ao Faraó][70]: “...e Deus investiu-me do poder de julgamento (hukm), ela indica a função de representante (khalifah) de Deus sobre a terra, enquanto que a seqüência: “e ele contou-me entre os enviados”, indica a missão divina (ar-risalah); porque nem todo enviado é representante de Deus sobre a terra; o representante de Deus julga pela espada, ele destitui do poder e institui, enquanto que o enviado apenas transmite a missão da qual foi encarregado; se ele combate por sua missão e a defende com a espada, ele é a um tempo representante de Deus sobre a terra e enviado de Deus. Assim como nem todo profeta é enviado[71], nem todo enviado é representante de Deus sobre a terra, dispondo do reino e do poder de julgamento temporal[72].
Quanto à questão do Faraó sobre a qüididade (mahiyah)[73] divina [“Quê é o Senhor dos mundos?”], ela não foi colocada por ignorância, mas com a intenção de testar Moisés, que havia se declarado enviado do Senhor. Pois o Faraó sabia muito bem qual deveria ser o estado de conhecimento de um enviado, de modo que ele quis provar Moisés nesta questão, para saber se ele era sincero. Por outro lado, é por causa dos que estavam presentes que ele colocou uma pergunta imaginária, a fim de ver o que ele pressentiria diante resposta, sem que os outros se dessem conta [de seu disfarce]; pois se Moisés lhe respondesse como deveria responder um conhecedor da Realidade, o Faraó poderia demonstrar, em favor de sua própria dignidade, que Moisés não lhe havia respondido em conformidade com a sua pergunta, de modo que os [cortesãos] presentes acreditassem, dentro de sua estreiteza de visão, que o Faraó era mais sábio do que Moisés. Assim, quando Moisés lhe deu a resposta que convinha a semelhante questão [ele respondeu: “O Senhor dos Céus e da terra e de tudo o que está entre os dois, se tiveres a certeza”][74], mas que parecia não correponder ao que foi perguntado,  - e o Faraó sabia muito bem que ele lhe responderia assim – o Faraó pode dizer a seguir: “em verdade, vosso enviado” – aquele que vos foi enviado – “está possuído”[75], ou seja sua inteligência está velada, ele não é capaz de ver aquilo sobre que lhe questionei, como de resto não é conveniente que saibamos do que se trata [ou: que ele saiba].
A questão [do Faraó] era válida enquanto tal, pois a questão sobre a qüididade refere-se à realidade (haqiqah) daquilo de que queremos informação; ora, não há dúvida de que o objeto da questão é em si real. Quanto aos que dizem que a definição [à pergunta: “quid est?”] deve ser composta de gênero e de espécie, eles têm razão para tudo o que pode ser associado a outra coisa [e que portanto esta compreendido numa categoria]; mas o que ultrapassa o gênero não necessariamente está desprovido de realidade em si mesmo, pois esta realidade pode não pertencer a outra coisa [como é o caso da realidade de Deus]. A questão era portanto válida segundo o uso dos conhecedores, dos sábios e dos homens razoáveis; mas, da mesma forma, ela não poderia ser respondida de outro modo que não o de Moisés.
Existe aí um grande segredo: Moisés respondeu demonstrando a ação, embora tivesse sido questionado sobre a definição essencial daquilo de que se tratava; ele fez da relação de Deus para com as formas que se manifestam por Ele – ou n’Ele – a definição essencial [de Deus], como se ele dissesse, ao responder a quem quisesse saber o que é o Senhor do mundo: “É aquele no qual se manifestam as formas do mundo, de seu grau supremo – o Céu – até seu grau mais baixo – a terra -, se tiveres a certeza”; ou então: “Aquele que se manifesta pelas formas do mundo,etc.”. Quando o Faraó disse em seguida à sua corte que Moisés estava possuído – no sentido que já explicamos – este acrescentou uma outra demonstração, para dar a entender ao Faraó seu grau de conhecimento divino; pois Moisés sabia que o Faraó era instruído nestas coisas; ele disse então: “O Senhor do oriente e do ocidente” – mencionando aquilo de onde [o sol] aparece e aonde ele se esconde, pois Deus é ao mesmo tempo o Aparente (az-zahir) e o Oculto (al-batin) – “e daquilo que está entre os dois” – pois Deus conhece todas as coisas “se raciocinardes”[76], ou seja, se se mantiver a razão discursiva, que delimita as coisas.
A primeira resposta endereçava-se assim àqueles que possuíam a certeza (yaqin), ou seja a intuição (kashf) e a identificação com o Ser (al-wujud), pois ele disse: “se tiveres a certeza” – vós, homens de intuição e de identificação, pois eu vos faço saber aquilo de que já tendes um conhecimento direto em vossa consciência e em vosso estado de ser; mas se não sois desta categoria de homens, então vos respondo com minha segunda resposta, porque estais ligados à razão (‘aql) e às limitações formais, de modo que encerrais a Verdade em argumentos discursivos. Desta maneira Moisés manifestou as duas faces [do conhecimento] para que o Faraó reconhecesse sua superioridade e sua sinceridade; pois Moisés bem sabia que o Faraó conhecia tudo isso, porque ele o havia interrogado sobre a qüididade [de Deus], e Moisés reconheceu que ele não colocou a questão ao modo dos filósofos, que esperam uma definição; é aliás por isso que ele lhe respondeu; pois se ele tivesse entendido a pergunta do Faraó de outra maneira, sua resposta teria sido errada.  Como Moisés afirmou que a realidade à qual se referia a questão era a essência do mundo, o Faraó usou por seu turno desta maneira de se expressar, sem que os assistentes notassem; ele disse a Moisés: “Em verdade, se tomares a outro fora eu por divindade, nós o colocaremos na prisão”[77]; ora, na palavra “prisão” (sijn) [composta das letras sin, jim e nun], o sin faz parte das letras acessórias [de modo que o significado sutil da palavra reside no grupo jim-nun, que comporta a idéia de “esconder”, “ocultar” ou “velar”]; ele quis fazê-lo entender que ele o confundiria, como se ele lhe dissesse: “Pelo que me respondestes [a saber, que a Realidade divina é a própria essência do mundo], tu me autorizas a dizer-te outro tanto [afirmando que esta mesma essência divina está presente na minha pessoa]; e se tu me respondes em linguagem encoberta: eu ignoro, ó Faraó, tua pretensão a meu respeito, pois a essência é uma [e está presente tanto em mim quanto em ti] como podes separá-la? – e eu te responderei: eu não separo a essência, eu só separo os graus de manifestação da essência; certo, a essência é indivisível, inseparável enquanto tal, mas o grau de sua manifestação atual em mim é o do poder sobre ti, ó Moisés; eu sou tu mesmo, pela essência, mas sou outro pela dignidade”. Quando Moisés compreendeu este pensamento do Faraó, ele lhe rendeu justiça sobre seu próprio plano e o fez compreender que o Faraó não tinha o poder [de confundi-lo]. A dignidade [que se auto-atribuía o Faraó] prova-se pelo poder e a faculdade de agir sobre outrem, pois na assembléia [em que se achavam Moisés e o Faraó] a Realidade divina que se manifestava exteriormente no Faraó dominava a dignidade que revestia Moisés. Por isso, Moisés colocou uma barreira à hostilidade do Faraó e lhe disse: “E se eu vos produzir uma coisa evidente?”[78]. Então o Faraó não pode evitar de dizer: “Produze-a se fores sincero”[79], para não parecer injusto aos olhos dos fracos de espírito de sua própria companhia. Pois eles já tinham dúvidas a seu respeito; tratava-se de uma turma de pessoas que o Faraó mantinha sob dominação inspirando-lhes irresponsabilidade, e que o obedeciam por serem “um povo corrompido”[80], ou seja porque eles não se mantinham dentro de um quadro de razão sã, que deveria necessariamente rejeitar uma pretensão como a do Faraó [proclamando-se Deus]; pois a razão detém-se a um certo limite, que só a intuição e a certeza [contemplativa] ultrapassam. É por isso que Moisés dirigiu-se, em suas respostas, aos que possuíam a certeza, de um lado, e aos que tinham a razão, de outro.
“Moisés atirou seu bastão (‘aça)”, que era a forma aparente daquilo pelo que o Faraó havia “desobedecido” (‘aça) Moisés ao rejeitar sua demanda – “e eis que ele tornou-se um dragão evidente”[81], ou seja uma serpente visível; a desobediência, que é um vício, transformou-se assim em obediência, que é virtude, segundo a palavra divina: “Deus muda seus vícios em virtudes”[82], vale dizer segundo o julgamento [divino]. O julgamento aparece aqui como se fossem essências diversas em uma substância única, pois tratava-se a um só tempo de um bastão e de uma serpente ou “dragão evidente”. Como serpente, ela subjugou as outras serpentes, e como bastão os bastões [dos mágicos]. Foi assim que a prova de Moisés venceu as provas do Faraó sob a forma de bastões, serpentes e cordas... Quando os mágicos viram isto, eles conheceram o grau de conhecimento de Moisés, porque o que eles viam ultrapassava a medida do homem; só estava ao alcance do homem em virtude de um conhecimento que distinguia entre a realidade e a imaginação ou ilusão. A partir daí, eles acreditaram no “Senhor dos mundos, o Senhor de Moisés e Aarão”[83], ou seja o Senhor para o qual Moisés e Aarão chamavam os homens; [e eles expressaram-se assim] por causa do povo que sabia bem que Moisés não os chamava para o Faraó. Entretanto, como o Faraó tinha a função da autoridade, como ele era o senhor do seu tempo e representava a Deus pela espada, mesmo transgredindo a Lei sagrada, ele disse: “Eu sou o vosso Senhor supremo”[84] – ou seja, embora vocês sejam todos senhores sob algum aspecto, eu sou o senhor supremo devido à autoridade que me foi dada. Os mágicos, sabendo que ele falava a verdade, não o contradisseram, mas confirmaram-no dizendo: “tu não reges senão a vida terrestre, decide então o que queres (Corão, XX, 75), o reino é teu”; este é o sentido das palavras: “Eu sou vosso senhor supremo”. Pois, se [o senhor supremo] não é outro que a essência divina, a forma individual assumida por esta essência era a do Faraó. Daí, a ação de cortar as mãos e os pés e de crucificar[85] foi cumprida pela essência divina revestida de uma forma vã a fim de realizar os graus do ser[86] que não poderiam se realizar senão por este ato. O encadeamento das causas não poderia ser abolido, uma vez que estava determinado pelas essências imutáveis (al-a’yan ath-thabitah); pois estas não se manifestam na existência a não ser segundo as “formas” que elas implicam em seu estado de permanência: “Não existe mudança para as palavras de Deus”[87]; ora, as palavras de Deus não são outra coisa que as essências das coisas existentes; elas são eternas em seu estado de imutabilidade, e estão contidas no porvir (huduth) na medida em que aparecem na existência.
Quanto à palavra divina: “E quando eles viram Nosso castigo, sua fé não lhes serviu mais. Esta é a diretriz divina que se perpetuará entre Seus servidores”[88] e à exceção feita ao povo de Jonas[89], isto não significa que a fé daqueles que viram o castigo não lhes tenha servido [no além], exceção feita ao povo de Jonas, mas que sua fé tardia não impediria que o castigo lhes chegasse na terra. Por esta razão o Faraó foi destruído malgrado sua fé, seja porque chegou à fé na certeza de sua destruição iminente, seja porque acreditou poder salvar-se; ora, a situação imediata, no momento em que deu testemunho de sua fé, prova que ele não estava certo de sua morte, porque ele via os crentes caminhar sobre a via seca que havia sido aberta no mar batido pelo bastão de Moisés. O Faraó portanto não teve a certeza de sua destruição até ser atingido. Ele acreditou naquele em que acreditavam os filhos de Israel  (“Eu creio que não há divindade fora daquela em que crêem os filhos de Israel”[90]) mesmo tendo certeza de sua própria salvação; e aconteceu aquilo em que ele acreditava, se bem que de uma maneira diferente da que ele esperava, pois Deus salvou-o do castigo infernal em sua alma e salvou seu cadáver [das ondas], com é dito no Corão: “Neste dia Nós salvaremos teu corpo, para que sejas um sinal para os que vierem depois de ti”[91], pois se sua forma corporal houvesse desaparecido, seu povo poderia dizer que ele tinha sido oculto deles [por sua ascensão ao céu]. Seu corpo morto reapareceu e foi reconhecido pelo seu povo. Foi assim que a salvação atingiu-o na alma e chegou a seu corpo.
Quanto àquele que é atingido pelo decreto divino do castigo no além, ele não crê, mesmo se todos os sinais divinos lhe foram mostrados: [“Aqueles contra quem a palavra do Teu Senhor foi pronunciada e não acreditam, mesmo quando todos os sinais foram dados, até que eles vêem o castigo doloroso”[92]] ou seja até que tenham a experiência. O Faraó não era desta categoria; é o que fica evidente no texto revelado. Diremos ainda, referindo-nos nisto a Deus, que a crença geral na condenação do Faraó não repousa sobre nenhum texto sagrado. Quanto ao seu povo, ele sofreu uma outra lei; mas não cabe aqui tratarmos disto.
Saiba que Deus não colhe a alma de um homem sem que ele acredite, ou seja sem mensagens divinas; entendo com isto aqueles que são conscientes da morte; e, por esta razão, repudiamos a morte súbita e a do inconsciente. Quanto à morte súbita, ela se define por atingir o homem após uma das fases respiratórias, quando o sopro expirado não pode mais ser aspirado. Nesta condição, o homem não está mais presente em espírito. Da mesma forma, a morte do inconsciente consiste em que a pessoa é atingida na nuca por trás, sem que se aperceba, de modo que sua alma é tomada no estado em que se achava no instante, na fé ou na descrença, e é por isso que o Profeta diz: “o homem é convocado [para o julgamento final] no estado em que morrer”, assim como sua alma é tomada no estado em que se achar no momento da morte. Ao contrário, aquele que está consciente da morte é necessariamente testemunha [da Realidade divina que se manifesta a ele no instante do trespasse]; ele portanto crê naquilo de que é testemunha, e sua alma será colhida neste estado; pois ele é uma letra (harf) existencial que não está ligada ao tempo a não ser pelo encadeamento lógico dos estados[93]; sua alma é então tomada tal e qual. Por esta razão fazemos uma distinção entre o descrente que toma consciência de sua morte iminente e o descrente morto inconscientemente ou vítima de morte súbita, conforme definimos anteriormente.
Quando Deus falou a Moisés na forma da sarsa ardente foi porque Moisés havia procurado o fogo[94]; Deus então apareceu-lhe no objeto de seu desejo para que ele se orientasse para Ele e não se voltasse em outra direção;  pois se Deus tivesse Se revelado sob qualquer outra forma, ele teria se voltado para outro lado, devido à sua concentração sobre um objetivo específico. Ora, se Moisés houvesse se afastado de Deus, sua ação recairia sobre ele, e Deus por sua vez teria Se afastado dele. Mas Moisés era um eleito e próximo de Deus, e se Deus aproxima alguém de Si, Ele Se revela à pessoa no objeto do seu desejo, sem que ela saiba:
Como o fogo de Moisés, que ele enxergou com os olhos de seu desejo,
E que era a Divindade que ele não teria reconhecido.


  


A SABEDORIA DA SINGULARIDADE
(AL HIKMAT AL-FARDIYAH)
SEGUNDO O VERBO DE MAOMÉ




A essência da sabedoria do Profeta é a singularidade [ou “incomparabilidade”], pois ele foi o indivíduo mais perfeito do gênero  humano[95]. É por isto que o ato criador (al-amr) começa com ele, [enquanto  protótipo permanente], e termina com ele; pois, de um lado, ele era “profeta”  enquanto Adão  ainda estava entre a água e a argila[96] e, por outro, ele foi,  em  sua existência terrestre, o “selo” (khatim) de todos os profetas[97].

O primeiro número singular, do qual derivam todos os outros, é o ternário[98]. Ora, Maomé foi o primeiro símbolo de seu Senhor, pois ele havia recebido as “palavras universais”, que são os conteúdos dos nomes que Deus ensinou a Adão; também  possuía ele a natureza tríplice do símbolo, sendo o  próprio  símbolo[99]. É porque a realidade essencial (haqiqah) de Maomé comporta a singularidade primordial – manifesta em tudo o que é naturalmente tríplice – que ele diz, falando do amor, fonte da existência: “Três coisas de  vosso  mundo, entre tudo o que ele contém de triplo, foram-me dignas de amor”, a saber,  as mulheres, os perfumes e a oração, onde ele encontrava “o frescor de seus olhos”[100].

Ele menciona as mulheres em primeiro lugar e a oração em último lugar,  porque a mulher é uma parte do homem por sua origem, que a manifestou[101], e porque o homem deve conhecer sua própria alma antes de poder conhecer seu Senhor;  pois seu conhecimento do Senhor é como que o fruto de seu conhecimento de si-mesmo, donde a palavra do Profeta: “Quem conhece a si mesmo, conhece seu Senhor” (man 'arafa  nafsahu faqad 'arafa rabbah). Daí podemos deduzir, seja que Deus não pode ser conhecido e que não O poderíamos atingir – o que é  perfeitamente válido – seja que Deus pode ser conhecido. É necessário  que  você  saiba, primeiro  que você não se conhece, e a seguir que você se conhece e que, por conseqüência, você conhece o seu Senhor. Maomé era o símbolo mais evidente de  seu  Senhor,  assim  como cada partícula do  Universo, [de  que  Maomé representa a síntese qualitativa], é símbolo de sua origem, que é seu  Senhor. As  mulheres  “foram-lhe dignas de amor” no sentido que ele  inclinou-se  para elas  com a afeição que tem o todo pelas suas partes. É o que exprime, na  sua realidade íntima e do ponto de vista divino, a palavra de Deus sobre a criação do homem: “E quando eu o tiver modelado, e nele soprado de Meu espírito”[102]. Por outro lado, Deus fala de Seu intenso desejo de reencontrar o homem,  pois ele diz a David a respeito daqueles que O desejam: “Ó David, sou Eu que os desejo ainda mais intensamente”[103]. Aquilo que Ele deseja, é um reencontro particular, aquele que é mencionado no hadith sobre o Anticristo: “Nenhum de vós verá o Senhor sem que antes morra”. É necessário então que o desejo de reencontrar a Deus, entre aqueles que tem esta qualidade, seja verdadeiramente intenso. Quanto ao desejo de Deus por aqueles que Lhe são próximos – e que Ele quer todavia,  como  a todos os seres, mas que quer que O queiram, o que é impedido pela sua condição –, quanto a este desejo, dizíamos, ele é análogo ao sentido da palavra divina: “Nós havemos de os experimentar até conhecermos os que lutam pela causa de Deus e os que perseveram...”[104]; e entretanto Deus sabe tudo. É que Ele deseja que se manifeste esta qualidade [divina] particular que não pode se manifestar senão na morte [daqueles que O amam]. Por esta qualidade, ele põe à prova o desejo que eles tem de Si, como Ele diz no hadith sobre a hesitação divina, palavra que se refere igualmente ao que tratamos aqui: “Em nada do que Eu faço, Eu hesito tanto quanto em arrebatar a alma  de meu servidor crente, que tenha horror à morte; e Eu tenho horror de fazer-lhe mal; e entretanto é necessário que ele Me reencontre”. Exprimindo-se assim, Deus consola o servidor; Ele não diz: “e entretanto é preciso que  ele morra”, para não afligí-lo com a idéia da morte; mas porque o homem não  pode encontrar Deus senão após a morte, - segundo a palavra do Profeta: “Nenhum  de vós verá o Senhor sem que antes morra” –, Ele diz: “e entretanto é necessário que ele Me  reencontre”. Ora, Deus nos fez saber que Ele insuflou no homem Seu Espírito, de sorte que é Ele mesmo que Ele deseja; pois não criou Ele o  homem “à sua imagem”, o que significa que ele é saído de Seu Espírito?

Do fato de que o homem, na sua constituição natural, é composto de quatro elementos, que são também chamados “humores” sob o aspecto de sua manifestação [orgânica] no corpo, o Sopro divino, iluminando-se por contraste com a umidade contida no corpo humano, confere ao espírito humano sua natureza ígnea[105]. Por esta razão Deus dirigiu-se a Moisés sob a aparência do fogo, após haver provocado nele o desejo de procurar por fogo[106]. Se a constituição humana participasse diretamente da Natureza universal [que engloba também os anjos], o Espírito insuflado nele seria pura luz. Por outro lado, se Deus simboliza [Seu ato criador] pelo insuflamento, é que ele faz alusão à Expiração do Clemente, [nafas ar-rahman, ou seja à expansão misericordiosa das possibilidades de manifestação a partir de seu estado latente no Princípio][107]. Pela Expiração divina, a determinação essencial do homem foi tornada manifesta; e devido ao receptáculo predisposto, o Espírito surgiu, não como luz (nur), mas como fogo (nar). O Sopro divino é portanto inerente àquilo pelo que o homem é homem [no sentido de sua qualidade humana primordial]. Desta natureza [primordial do homem], Deus fez derivar uma segunda “pessoa”, criada em sua forma, e a chamou mulher. Desde que esta surgiu da forma do homem, [ou como uma imagem de sua “forma” essencial], que este se inclina para ela, porque um ser ama a si próprio, e ela inclina-se para ele como para seu país natal.

Assim, as mulheres “foram-lhe dignas de amor”, assim como Deus ama aquele que Ele criou “à Sua imagem”, de modo que ele ordenou aos anjos de luz, em todo seu poder e da altura de sua posição e natureza, de prostrarem-se diante dele[108]. Daí procede este parentesco [íntimo entre Deus e o homem]. É a forma, [no sentido puramente qualitativo do termo], que constitui o mais alto, o mais evidente e o mais perfeito dos parentescos, pois ela é em certo modo o “duplo” da Existência divina, assim como, por sua existência, a mulher desdobra o homem e faz dele um dos polos de um casal. Existe aí, portanto, um ternário: Deus, o homem e a mulher; o homem tende para seu Senhor, que é sua origem, como a mulher tende para o homem.

Deus “tornou-lhe as mulheres dignas do amor” pelo motivo mesmo que Ele ama aquele que Ele criou “à Sua imagem”. O amor [divino] não tem por objeto outra coisa que o que brota do ser amando; e o amor do Profeta não provém senão daquilo de onde ele próprio saiu, ou seja de Deus; é por isso que ele diz: “elas foram-me dignas de amor” e não que ele as amou por si sós; pois o seu amor estava ligado ao seu Senhor, de quem ele recebeu sua “forma” – mesmo  seu amor  por  sua mulher, que ele amava em virtude do amor de Deus  por  si,  por identificação com o Amor divino.

Quando o homem ama a mulher, ele deseja a união, vale dizer a união mais completa que seja possível no amor; e no mundo da forma composta de elementos, não existe união mais intensa que aquela do ato conjugal. Deste fato, a volúpia invade todas as partes do corpo e pela mesma razão a lei sagrada prescreve a ablução total [do corpo antes do ato conjugal], a purificação devendo ser total, como a extinção do homem na mulher foi total no êxtase pela volúpia [da união sexual]. Pois Deus é ciumento de Seu servidor, Ele não tolera que este acredite gozar de outra coisa que não de Si. Ele o purifica então [pelo rito prescrito], afim de que ele se volte, na sua visão, para Aquele  em  que ele se extingue na realidade –pois não há em  verdade  outra  coisa que isto.

Desde que o homem contempla a Deus na mulher, sua contemplação aplica-se sobre o que é passivo; se ele O contempla em si mesmo, em vista do fato de que a mulher provém do homem, ele O contempla naquilo que é ativo; e desde que ele O contemple apenas, sem a presença de uma forma qualquer saída de si, sua contemplação corresponde a um estado de passividade perante Deus, sem intermediário. Portanto, sua contemplação de Deus na mulher é a mais perfeita, pois é então Deus enquanto simultaneamente ativo e passivo que ele contempla, enquanto que na contemplação puramente interior, ele não O contempla senão em modo passivo. Também o Profeta – sobre ele a bênção e a paz – amou as mulheres por causa da perfeita contemplação de Deus nelas. Não seria possível jamais contemplar a Deus diretamente na ausência de todo suporte [sensível ou espiritual], pois Deus, na sua Essência absoluta, é independente dos mundos[109].  Ora, como a realidade [divina] é inatingível sob este aspecto [da Essência], e como não há contemplação (shahadah) senão na substância, a contemplação de Deus nas mulheres é a mais intensa e a mais perfeita; e a união mais intensa na ordem sensível, que serve de suporte a esta contemplação, é o ato conjugal.

Este ato corresponde à projeção da Vontade divina sobre aquele que Ele “criou em sua Forma”, no momento mesmo em que ele o criou, para aí reconhecer-Se, e Ele o desenvolveu e o conformou harmoniosamente e lhe insuflou Seu espírito, que  não  é  outro  que a Si mesmo, de tal forma  que o  exterior  do  [homem primordial] é criatura e seu interior é Deus. Sendo assim, Deus dotou o homem da faculdade de dispor deste templo, [o corpo humano], da mesma forma como Deus "dispõe da ordem, do céu" – que é o grau supremo de existência – "até  a terra" – que é o que há de mais baixo, o elemento terra ocupando a base da hierarquia dos elementos[110].

Falando das mulheres,  o  Profeta  as  chama na-nisa,  plural  ao  que  não corresponde singular[111]; pois ele diz: “Três coisas do vosso mundo  foram-me tornadas  dignas  de amor, as mulheres (na-nisa)(...)”, e não “a  mulher”  (al-mar'ah),  fazendo  assim  alusão ao fato de que as mulheres  ocupam  um  ponto ontológico  posterior ao seu; a raiz da palavra nisa, de fato,  significa  vir depois, ser o último. Ora, o Profeta amou as mulheres precisamente em razão de seu posto ontológico, porque elas eram como que o receptáculo passivo de  seu ato, e elas se situavam em relação a si como a Natureza universal (at-tabi'ah) em relação a Deus; é bem na Natureza universal que Deus fez eclodir as  formas do mundo por projeção de Sua vontade e pelo Comando [ou Ato: al-amr] divino, o qual se manifesta como ato sexual no mundo das formas constituídas pelos elementos, como vontade espiritual (al-himmah) no mundo dos espíritos de luz e como conclusão lógica[112] na ordem discursiva, tudo não sendo senão o ato  de amor  do  ternário  primordial  refletindo-se em cada  um  de  todos  os  seus aspectos.

Aquele que ama as mulheres desta maneira, as ama por amor divino; mas aquele que só as ama em virtude da atração natural, priva a si mesmo do conhecimento inerente a esta contemplação. O ato sexual será para ele uma forma sem espírito; bem entendido, o espírito permanece sempre imanente à  forma  como tal: apenas, ele se torna invisível àquele que se aproxima de sua esposa – ou de uma mulher qualquer – pela simples volúpia, sem conhecer o verdadeiro objeto de seu desejo. Este homem é tão ignorante de si como o seria um estranho a quem nunca houvesse sido apresentado.

“As pessoas bem sabem que eu sou amoroso;
mas elas não sabem de quê...”

Isto se aplica bem àquele que ama pela simples volúpia, ou seja ao que ama o suporte da volúpia, a mulher, mas permanece inconsciente do sentido espiritual daquilo de que se trata. Se ele o conhecesse, ele saberia em virtude de que ele goza, e o que flui [realmente] desta volúpia[113]; então ele seria [espiritualmente] perfeito [114].

Assim como a mulher [na sua condição natural,  mas  não  na  sua essência inteligente]  ocupa um  posto posterior ao do homem[115] – conforme à palavra corânica: “Quanto aos homens, eles precedem na sua [dignidade  legal] em um grau às mulheres”[116], -   o ser criado “à imagem de Deus” ocupa um  grau hierarquicamente inferior ao d'Aquele que o criou “à sua imagem”,  apesar  da identidade  da  forma  de Um e de outro. É precisamente por  este grau,  que distingue o Criador de Sua criação, que Deus é “independente dos mundos”, e  o primeiro  agente; pois  o segundo agente é a “forma”, embora  ela  não  tenha evidentemente o papel de um princípio autônomo. É assim que as  determinações essenciais (al-a'yan)  se  distinguem  umas  das  outras  em virtude de suas posições  [ontológicas],  e é em virtude disto que todo conhecedor [de Deus] atribui a cada coisa real seu grau de realidade; também Maomé - sobre ele a bênção  e a paz - amou as mulheres por amor divino. Quanto a Deus, “ele dá a cada coisa sua natureza própria”[117], portanto sua realidade própria; o que equivale a dizer que Ele dá a cada coisa aquilo que lhe é devido essencialmente, por aquilo mesmo que ela representa [como possibilidade].

O Profeta menciona as mulheres em primeiro lugar, porque elas representam o princípio passivo e porque a Natureza universal [que é o  princípio  plástico universal]  precede  aquilo  que se manifesta a partir  dela  pela  [ação  da] “forma”.  Ora, a  Natureza universal não é outra coisa, em realidade  que  o Expirar  misericordioso (an-nafas ar-rahmani) a partir do qual se desenvolvem as formas do mundo, da mais alta à mais baixa, pela infusão (suryan) do Sopro divino sobre a materia prima (al-jawhar al-hayulani); é o que teve lugar para o mundo  dos  corpos [terrestres e celestes]; quanto à infusão do Sopro  divino [sobre  a Natureza total] no instante da manifestação dos espíritos de luz e das condições [gerais de existência], ela é de outra ordem[118].

Na sua sentença (“Três coisas de vosso mundo...”) o Profeta fez prevalecer o feminino  sobre o masculino, insistindo assim no papel das mulheres; pois ele diz thalathun para “três”, palavra que só se emprega em  árabe para um coletivo feminino;  entretanto,  das três coisas enumeradas [a saber  as  mulheres,  os perfumes  e  a  oração] há uma que é masculina;  e os árabes  fazem  sempre prevalecer o masculino ( por exemplo, eles dizem: ‘as meninas e o menino estão sentados”, e não “sentadas”, sem observar a proeminência numérica do  feminino num coletivo). Ora, o Profeta era conhecedor da língua árabe [e portanto perfeitamente consciente do emprego inusitado do termo], e  ele  quis  fazer alusão ao significado espiritual deste amor, que lhe havia sido inspirado  sem que ele o tenha alcançado voluntariamente; foi assim, de resto, que Deus lhe “ensinou” aquilo que ele “desconhecia” anteriormente[119] e que o favor divino ante seus olhos foi imenso. Ele fez portanto prevalecer o feminino sobre o masculino exprimindo-se desta maneira; e quem melhor do que ele conheceria  as verdades principiais e seria mais perspicaz a respeito das leis?  Além  disto, ele  fez da última das três coisas mencionadas o contrapeso da primeira  pelo gênero  feminino  e  inseriu a realidade masculina entre  as  duas,  pois  ele começou a frase pela menção das mulheres e terminou-a pela da oração,  sendo uma e outra noções do gênero feminino; quanto ao perfume, ele se acha mencionado entre as duas, por analogia com a situação ontológica do próprio Profeta: o homem encontra-se [com efeito] colocado como intermediário entre a Essência  (dhat), da qual ele emana, e a mulher, que emana dele; ele situa-se assim entre duas entidades femininas, das quais uma, a Essência, é feminina por noção, sendo a outra realmente feminina, assim como as mulheres, na  frase do Profeta, são realmente femininas, enquanto que a oração não é feminina senão verbalmente; o perfume, ele, está situado entre as duas como Adão se situa entre a Essência que o manifesta e Eva que se manifesta a partir dele. De resto, se se preferir, pode-se substituir “Essência” por “Qualidade” ou por “Potência”;  qualquer que seja o nome escolhido para a primeira entidade, ele será sempre feminino, mesmo que se siga o costume de alguns  [cosmólogos]  que fazem de Deus “a  causa” do Universo, pois a “causa” é igualmente um termo feminino[120].

Quanto  à significação espiritual do perfume que o Profeta menciona  após  as mulheres, - devido aos perfumes da existência[121] que se acham nas  mulheres, conforme o dito: o melhor perfume é o abraço da amada, - esta significação é a seguinte:  o Profeta foi criado como o adorador (al'abd) por excelência,  que jamais levantou a cabeça para atribuir-se a senhoria[122], mas  que não cessou de  prosternar-se  e  aprumar-se  diante de Deus,  em estado de [perfeita] receptividade, até que Deus extraiu de si o que nele havia sido criado, e lhe conferiu a função ativa no mundo das emanações (anfas) espirituais que são  os perfumes da existência que se renovam incessantemente a partir dos arquétipos. É por  isto  que o perfume lhe foi tornado digno de amor, e por que ele o mencionou após as mulheres.

Por esta ordem [indo das mulheres aos perfumes e à oração], o Profeta respeitou  a ordem ascendente da manifestação divina [que, do ponto  de  vista relativo,  procede  da  potencialidade indistinta da substância  passiva  em direção  à atualização completa de todos os seus conteúdos virtuais], ordem à qual faz alusão a palavra corânica: “Aquele que sobe por degraus, o Senhor  do Trono...”[123]; Deus é aí chamado “Senhor do Trono” devido à sua “entronização” [a  partir de Sua manifestação integral] em Seu nome O Clemente [ar-rahman, segundo a palavra: ‘o Clemente está sentado sobre o Trono”[124]]; tudo o  que engloba o Trono é atingido pela Misericórdia (rahmah) divina, conforme ao dito (hadith  qudsi): “Minha misericórdia engloba todas as coisas”, assim  como  o Trono engloba todas as coisas[125]. É pelo princípio desta revelação do rahman sobre  o trono que engloba tudo (al-'arsh al-muhit) que a Misericórdia  divina se  expande no interior do mundo, como já explicamos neste livro e em nossos Futuhat.

O  perfume  é  relacionado à união sexual na passagem corânica que atesta a inocência de 'Aïshah [a esposa do Profeta a quem alguns haviam  caluniado]. Deus disse a este propósito: “Que as mulheres impuras pertençam aos impuros, e os  homens  impuros às impuras, e que as mulheres puras pertençam aos homens puros,  e os homens puros às puras; estes são isentos do que dizem [os caluniadores]...” (Corão, XXIV, 26), [passagem que também pode ser  traduzida assim: “Que  as mulheres fétidas sejam para os homens fétidos, e eles  para elas; e que as mulheres perfumadas sejam para os homens perfumados, e eles para  elas”]; os puros são descritos como exalando um bom odor [assim  como  a palavra  bom empregada  no Corão é tayibah, ou seja "bom" ou "perfumado"], porque a palavra é essencialmente sopro, como o odor é essencialmente exalação; a palavra pode portanto ser chamada perfumada ou fétida segundo o que ela manifesta por seu conteúdo verbal. Na medida em que a palavra [ou o sopro] é principialmente divina, em sua realidade essencial, todo enunciado é bom [ou perfumado]; mas, desde que se lhe aplique a distinção do bem e do mal[126], ele será às vezes bom [ou perfumado], às vezes mau [ou fétido]. É assim que  o  Profeta diz do alho: “é uma planta cujo odor eu detesto”, e não “uma planta que eu detesto”, pois a essência mesma de uma coisa não é jamais detestável[127]; o que se detesta é uma certa manifestação, podendo esta aversão  aliás  provir de um costume, da não afinidade das naturezas, de uma tendência  individual, de uma lei sagrada, de uma imperfeição ou de outros  fatores ainda.

A  partir do momento em que a ordem (al-amr) se divide em bem e mal, como acabamos de estabelecer, o Profeta foi dotado do amor ao bem [ou ao bom  odor] à exclusão do mal [ou do mau odor]. O Profeta diz dos anjos serem eles ofendidos pelos maus odores; e uma vez que o homem foi criado “da argila de vaso fermentada”[128], ou seja putrefata, os anjos o detestam por natureza. O escaravelho, ao contrário, não suporta o perfume da rosa, que é entretanto um dos melhores; mas, para o escaravelho, ele é ruim. Da mesma forma, todo homem que tem o temperamento do escaravelho, mental e formalmente, não suporta a verdade quando a escuta, mas prefere ao contrário a vaidade, segundo a palavra corânica:  “aqueles que crêem na vaidade e não crêem em Deus...”[129], e  mais adiante: “...são eles os perdidos”, que se perdem a si mesmos, pois aquele que não distingue o bem do mal [ou o bom odor do mau] não possui inteligência.

Deus  não  inspirou ao Profeta senão o amor do bem em todas as coisas, e não existe, essencialmente, senão o bem. Ora, é concebível que exista no mundo uma constituição que só conheça o bem e ignore o mal? Diremos que isto não é possível, pois, dentro do próprio princípio do qual emana este mundo, ou  seja em  Deus,  não encontramos a repulsa e o amor; ora, o mal não é  outra coisa senão aquilo que se detesta, e o bem o que se ama[130]; o mundo é criado “na forma  de Deus” [portanto segundo o amor e a repulsa]; quanto ao homem, ele  é criado segundo duas formas [a de Deus e a do Mundo]. Não pode haver  portanto constituição que não experimente senão um aspecto da realidade; ao contrário, pode  perfeitamente existir uma constituição que distinga o bem do mal  [ou o perfumado do fétido],  sabendo entretanto que o que é mau por seu sabor é bom em  si-mesmo, abstraindo-se o sabor. Que este ser seja distraído, pela sua concentração sobre o bem, da sensação do ruim, tal ocorre; mas quanto a  dizer que  o  mal possa  desaparecer  do mundo, ou seja do cosmo, eis  aí algo impossível. A Misericórdia divina, é verdade, se manifesta no mal como no bem [pois  não  existe  mal absoluto, tendo todo mal aspectos bons, ainda que ínfimos];  um ser mau é bom em si-mesmo [na homogeneidade do sistema fechado que ele representa], e é a ele que o bom aparece como mau; não existe nada de bom que não seja mau sob certo aspecto e para uma certa constituição, e inversamente, como acabamos de demonstrar[131]

Quanto  ao  terceiro  termo,  o que  encerra [o ternário que exprime] a singularidade primordial [da sabedoria mohamediana], é a oração (aç-çala), da qual o Profeta  diz: “o frescor dos meus olhos me é dado pela oração” [ou seja, que nela ele encontra a consolação][132] pois a oração é uma contemplação e um chamamento secreto trocado entre Deus e Seu servidor, conforme a palavra divina: “Lembrai-vos de Mim, e lembrar-Me-ei de vós” (ou: “nomeai-Me e Eu vos nomearei”: adhkurunî  adhkurkum)[133]. Segundo a palavra divina fielmente transmitida a partir do Profeta, a oração é um culto cujo sentido é partilhado entre Deus e Seu servidor e que se refere de um lado a Deus e de outro ao indivíduo: “Eu partirei a oração entre Mim e Meu servidor em duas metades, sendo uma devida a Mim, e a outra ao Meu servidor; e Meu servidor receberá o que ele pede”. Assim [na recitação da surata al-fatihah [134]que constitui o texto principal da oração ritual] o servidor diz: “Em nome de Deus, o Clemente (ar-rahman), o Misericordioso (ar-rahim)”, e Deus responde: “Meu servidor  Me menciona (ou: se lembra de Mim)”; o servidor diz a seguir: “Glória a Deus, o Mestre dos mundos” e Deus diz, por sua vez: “Meu servidor Me rende graças”; o servidor continua: “o Clemente, o Misericordioso”, e Deus diz: “Meu  servidor Me louva”;  o servidor recita: “o Rei do dia do Juizo”, e Deus diz: “Meu servidor me glorifica, ele se entrega a Mim”. Esta é a  primeira  metade da oração, a que se refere a Deus –  seja Ele exaltado exclusivamente. A seguir, o servidor pronuncia: “É a Ti que adoramos, e é de Ti que imploramos o socorro”;  e  Deus diz: “isto é partilhado entre Mim e Meu  servidor, e Meu servidor receberá aquilo que ele pede”; este versículo exprime portanto uma participação mútua. Quando o servidor diz a seguir: “Conduzi-nos pelo  caminho reto,  a  via  daqueles sobre quem está Tua graça, não a dos que sofrem Tua cólera, nem daqueles que  erram”, Deus diz: “tudo isto pertence ao Meu servidor, e Meu servidor receberá o que ele pede”. A segunda metade da oração refere-se exclusivamente ao indivíduo, assim como a primeira metade se refere apenas a Deus. Isto permite compreender a necessidade [ritual] de recitar esta surata [na oração]; aquele que não a recita não cumpre a oração partilhada entre Deus e Seu servidor.

A oração é um chamamento secreto trocado entre Deus e o adorador; ela é portanto também uma invocação  (dhikr) [significando indiferentemente: invocação, menção, apelo, reminiscência]. Ora, aquele que invoca a Deus, acha-se na presença de Deus, segundo a palavra divina (hadith qudsi) transmitida fielmente desde o Profeta: “Eu assisto à invocação daquele que Me invoca: (ana jalisu man dhakarani); e o que se encontra na presença d'Aquele a quem invoca, contempla-O, se for dotado de visão intelectual. Aí reside a contemplação (mushahadah) e a visão (ru'yah); mas aquele que não possui a visão intelectual (baçar) não O Contempla. É por esta presença ou ausência de visão na oração que o adorador pode julgar seu próprio grau  espiritual. Se ele  não O quer, ele pode adorá-Lo então pela fé, “como se ele O visse” [segundo a definição que o Profeta deu de ihsan, a virtude espiritual: “é adorar a Deus como se O vísseis, e se não O vedes, Ele entretanto vos vê”]; e ele pode imaginá-Lo diante de si [literalmente: na sua qiblah, a orientação ritual] quando ele Lhe dirige seu apelo[135], e que ele “empreste o ouvido” àquilo que Deus lhe responder. Se ele é o iman [ou seja o que guia a prece em comum] de seu próprio microcosmo e dos anjos que rezam consigo – e qualquer um que cumpra a oração é iman, pois os anjos rezam após o adorador que ora  só, como o atesta a palavra profética – , ele realiza por isso mesmo a função de enviado divino na oração, no sentido que ele é representante de Deus; quando ele recita [erguendo-se da inclinação]: “Deus ouve a quem O louva”, ele anuncia a si mesmo e aos que rezam depois de si que Deus o ouviu; e os anjos e os outros assistentes respondem: “nosso Senhor, a Vós os louvores!”. Pois é Deus que fala pela boca de Seu adorador: “Deus ouve a quem O louva” [sendo este enunciado, como também sua resposta, obrigatórios na oração ritual]. Vejam então a que função sublime corresponde a oração e a que finalidade ela serve. Quem não atingir este grau de visão espiritual (ar-ru'yah) na oração não a realizou plenamente e não encontrou ainda “o frescor dos seus olhos”; pois ele não vê Aquele a quem se dirige. Se ele não percebe aquilo que Deus lhe responde na oração, ele não é daqueles que “emprestam o ouvido”: aquele que não está presente diante de seu Senhor quando ora, que não O escuta e não O vê, não está verdadeiramente em estado de prece, e a palavra corânica: “quem empresta o ouvido e quem é testemunha” não se aplica a ele. O que distingue a oração de qualquer outro rito [ou obrigação comum], é que ela exclui, enquanto dura, toda outra ocupação (ritual ou profana); mas o que há de  maior em  tudo o que ela comporta em palavras e gestos, é a menção de Deus [ou a invocação de Deus: dhikr-ullah]. Nós já explicamos nos Futuhat o estado perfeitamente viril do homem após a oração. Pois Deus diz [no Corão]: “A oração impede as transgressões passionais e o pecado grave"[136], precisamente porque o adorador é levado a não se ocupar de nada senão da oração, enquanto ela dura; “mas certamente, a invocação de Deus (dhikr-ullah) é maior...”[137]. O que, aplicado à oração deve entender-se no sentido que a invocação [ou apelo] endereçado por Deus a Seu servidor, durante a resposta divina ao chamado e à louvação, é maior que a dirigida do adorador a Deus; pois a grandeza não é atribuível senão a Deus, exaltado seja Ele. É por isso que  Ele diz: “Deus conhece o que fazeis”[138], e Ele diz: “...ou quem empresta o ouvido e quem é testemunha...”[139], vale dizer, quem empresta o ouvido ao apelo (dhikr) que Deus lhe endereça na oração.

Nesta ordem de idéias diremos também: pelo fato de que a existência surge de um movimento inteligível, do mesmo que produz o mundo a partir de seu estado de não-manifestação, a oração ritual sintetiza todos os movimentos, que são [essencialmente] três, a saber: um movimento ascendente, que corresponde à posição ereta do adorador, um movimento horizontal, análogo à posição inclinada, e um movimento descendente, indicado pela prosternação ritual.O movimento ascendente corresponde de resto à atitude por excelência do homem, enquanto que a tendência animal é horizontal, e a tendência das plantas é descendente [sendo as raizes seus órgãos de nutrição]. Quanto aos  minerais, eles não tem um movimento próprio; quando uma pedra se move, ela obedece a um impulso externo[140].

No que se refere à palavra do Profeta: “o frescor dos meus olhos me é dado na oração”, sua forma indica expressamente que o estado de que se trata não é o resultado de uma tendência individual, pois a  revelação (tajalli) de Deus na oração é um ato divino e não um ato de quem reza. Se o Profeta  não houvesse mencionado este estado de coisas concernentes à oração, isto significaria que ele havia recebido a ordem de cumprir a oração sem que Deus Se houvesse revelado a ele. Mas como esta ordem era a expressão de um favor divino diante de si, o Profeta diz: “o frescor dos meus olhos me é dado na oração”. Ora, este “frescor dos olhos” não é senão a contemplação do Bem-amado, contemplação que [segundo os significados de “repouso” e “imobilidade” implicados no termo qurrah,  “frescor”] descansa o olho do amante e faz com que ele imobilize sua visão, de maneira que ele não olha para outra coisa, voluntária ou involuntáriamente. É por isso que ele é impedido de se voltar [da  orientação ritual] durante a oração, pois este voltar-se é um furto de Satan à oração, pelo qual ele impede o adorador de contemplar seu Bem-amado. Se for verdadeiramente o Bem-amado [que ele busca contemplar], o adorador que  volta seu olhar de sua orientação ritual, não o fará; mas todo homem é consciente de seu próprio estado de alma, e ele bem sabe qual é sua atitude espiritual durante a adoração, porque “o homem é testemunho de si mesmo, seja qual for a desculpa que proferir”[141]; ou seja, ele distingue bem a mentira da sinceridade em sua alma, pois é impossível que um ser ignore seu próprio estado, objeto de seu assentimento (dhawq) direto.

Aquilo que se designa pelo termo “oração” (çalah) comporta ainda outras distinções: pois, segundo o texto corânico, Deus nos ordena de uma parte de Lhe endereçarmos a oração e, de outra parte, Ele nos faz saber que Ele próprio nos dispensa a graça de sua própria “oração” (çalah), que ele “reza” sobre nós[142], de modo que a oração vai de nós a Ele e d'Ele a nós. Quando é Ele que "reza", Ele o faz em virtude de Seu nome “O Último” (al-akhir), pois sob este aspecto Sua manifestação pressupõe a manifestação prévia do ser criado. Ora, esta [revelação divina segundo o sentido do Nome “O Último”] não é outra coisa que a determinação de Deus que o adorador “crie” dentro de sua orientação ritual, seja por sua visão intelectiva, seja por sua crença dogmática. É a conformação da Divindade à crença: a Divindade varia segundo a capacidade de seu “lugar” [ou receptáculo] de revelação; assim como se exprimiu Junayd ao responder à pergunta [sobre a relação que existe entre o conhecimento de  Deus e o conhecedor]: “a cor da água é a cor do seu recipiente”; esta é bem uma resposta magistral, concernendo à natureza do assunto; [esta determinação divina “criada” quando da oração] é Deus na medida em que Ele “ora” sobre nós. Em contrapartida, se somos nós que rezamos, é a nós que se refere o nome “O Último”, no sentido de que somos então implicados nesse nome, em razão do que explicamos sobre a condição divina correspondente a este Nome[143];  nós estamos então próximos a Ele, na medida de nosso próprio estado [espiritual], de sorte que Ele não nos vê senão em virtude da forma [espiritual] que manifestamos; pois é bem aquele que reza que permanece atrás[144]. É dito no Corão: “Não vedes que todos exaltam a Deus, os que estão nos céus e sobre a terra, e os pássaros que voam em bandos? Cada um conhece sua oração e seu louvor”[145]; vale dizer que ele conhece seu próprio estado de “retardo” [ou de inferioridade] na adoração [em relação ao que seria uma adoração plenamente adequada] de seu Senhor e [que ele conhece] seu louvor que é [conforme a] ao que sua capacidade [espiritual: al-isti'dad] pode afirmar da transcendência divina. “Há algo que exista que não exalte Sua glória?”[146], ou seja o louvor de seu Senhor, o Sábio, Aquele que perdoa; [“mas vós não compreendeis seu louvor”’ ]: nós não saberíamos compreender o louvor [os modos de louvor] de todo o universo distintamente, cada coisa tomada à parte.

Segundo  um certo ponto de vista, o pronome, na frase: “Há algo que exista que não exalte a Sua glória?” refere-se à coisa em si, vale dizer que a criatura louva pelo que ela é. Isto é análogo ao que dissemos do crente, ou  seja que ele louva a Divindade que é conforme à sua crença e a ela se liga;  ora, todo ato retorna ao seu autor, de maneira que o crente louva a si mesmo,  como a obra louva o seu artista, sendo toda perfeição e toda imperfeição que ela manifesta imputada a ele. Da mesma forma, a Divindade [na medida em que é] conforme à crença é criada por aquele que se concentra sobre Ela, e Ela é sua obra. Ao louvar aquilo em que crê, o crente louva sua própria alma, e é por isso que ele condena outra crença que não a sua; se ele fosse eqüitativo, ele não o faria; somente, aquele que está fixado sobre tal adoração particular, ignora necessariamente [a verdade intrínseca de outras crenças], pelo mesmo fato de que sua crença em Deus implica numa negação de outras formas de crença. Se ele conhecesse o sentido das palavras de Junyad: “a cor da água é a cor do seu recipiente”, ele admitiria a validade de todas as crenças, e ele reconheceria a Deus em toda forma e em todo objeto de fé. É que ele  não tem conhecimento [de Deus], mas se funda unicamente sobre a opinião (zann), de que trata a palavra divina: “Eu Me conformo à opinião que Meu servidor faz de Mim”, o que eqüivale a dizer: “Eu não Me manifesto a Meu adorador senão na forma de sua crença”; portanto, que ele generalize, se quiser, ou que ele determine a Divindade conforme à crença é aquela que pode ser definida, e é Ela o Deus que o coração pode conter [segundo a palavra divina: “nem Meus céus nem Minha terra Me podem conter, mas o coração de Meu servidor Me contém”]. Pois a Divindade absoluta não pode ser contida por coisa alguma, pois Ela é a essência mesma das coisas e Sua própria essência; não dizemos de um ser qualquer que ele contém a si mesmo; por outro lado, não se diz que ele não se contém. Compreendei então! Deus –  exaltado seja Ele – diz a verdade, e é Ele que conduz sobre o caminho reto.


APÊNDICE I

Os 99 nomes de Deus, de acordo com a tradição islâmica são:

  1. ALLAH (الله) O Deus
  2. Al Rahman (الرحمن) O Compassivo; O Beneficente
  3. Al Rahim (الرحيم) O Clemente; O Misericordioso
  4. Al Malik (الملك) O Soberano
  5. Al Quddus (القدوس) O Sagrado
  6. Al Salam (السلام) A Fonte da Paz
  7. Al Mu'min (المؤمن) O Guardião da Fé; A Fonte da Fé
  8. Al Muhaymin (المهيمن) O Protetor
  9. Al 'Aziz (العزيز) O Poderoso (Onipotente)
  10. Al Jabbar (الجبار) O Irresistível; O que Compele
  11. Al Mutakabbir (المتكبر) O Majestoso
  12. Al Khaliq (الخالق) O Criador
  13. Al Bari' (البارئ) O que Faz evolui; O que Concebe
  14. Al Musawwir (المصور) O Formador; O Modelador
  15. Al Ghaffar (الغفار) O que Perdoa
  16. Al Qahhar (القهار) O Dominador
  17. Al Wahhab (الوهاب) O Doador
  18. Al Razzaq (الرزاق) O Provedor
  19. Al Fattah (الفتاح) O que abre
  20. Al Alim (العليم) O que Tudo Sabe; O Onisciente
  21. Al Qabid (القابض) Aquele que Constringe
  22. Al Basit (الباسط) O que Expande; O Magnânimo
  23. Al Khafid (الخافض) O que Rebaixa
  24. Al Rafi' (الرافع) O que Exalta
  25. Al Mu'izz (المعز) O que Honra
  26. Al Mudhill (المذل) O que Desonra
  27. Al Sami' (السميع) O que Tudo Ouve
  28. Al Basir (البصير) O que Tudo Vê
  29. Al Hakam (الحكم) O Juiz
  30. Al 'Adl (العدل) O Justo
  31. Al Latif (اللطيف) O Sutil
  32. Al Khabir (الخبير) O Ciente; O Desperto
  33. Al Halim (الحليم) O Clemente; O Delicado
  34. Al 'Azim (العظيم) O Magnificiente; O Infinito
  35. Al Ghafur (الغفور) O que Tudo Perdoa
  36. Al Shakur (الشكور) O Apreciador
  37. Al 'Ali (العلى) O Mais Alto
  38. Al Kabir (الكبير) O Maior
  39. Al Hafiz (الحفيظ) O Preservador
  40. Al Muqit (المقيت) O que Sustenta
  41. Al Hasib (الحسيب) O que Reconhece
  42. Al Jalil (الجليل) O Sublime
  43. Al Karim (الكريم) O Generoso
  44. Al Raqib (الرقيب) O Vigilante
  45. Al Mujib (المجيب) O que Responde
  46. Al Wasi' (الواسع) O que Tudo Abarca
  47. Al Hakim (الحكيم) O Sábio
  48. Al Wadud (الودود) O Amante
  49. Al Majid (المجيد) O Glorioso
  50. Al Ba'ith (الباعث) O que Ressuscita
  51. Al Shahid (الشهيد) A Testemunha
  52. Al Haqq (الحق) A Verdade, Aquele que é Real
  53. Al Wakil (الوكيل) O Confiável; O Depositário
  54. Al Qawiyy (القوى) O Mais Forte
  55. Al Matin (المتين) O Firme, o Leal
  56. Al Wali (الولى) O Amigo Protetor, O Patrono e Ajudante
  57. Al Hamid (الحميد) O Digno de Louvor
  58. Al Muhsi (المحصى) O Calculador, O Numerador de Tudo
  59. Al Mubdi' (المبدئ) O que Dá Origem; O Produtor; O Originador e Iniciador de Tudo
  60. Al Mu'id (المعيد) O Restaurador; Que Traz Tudo de Volta
  61. Al Muhyi (المحيى) o Doador da Vida
  62. Al Mumit (المميت) O Criador da Morte, O Destruidor
  63. Al Hayy (الحي) O Eterno Vivente
  64. Al Qayyum (القيوم) O Auto-Subsistente; O que a Tudo Sustém
  65. Al Wajid (الواجد) O que Encontra; O que Percebe; O Infalível
  66. Al Majid (الماجد) O Nobre; O Magnificente
  67. Al Wahid (الواحد) O Único; O Indivízível
  68. Al Samad (الصمد) O Eterno; O Impregnável
  69. Al Qadir (القادر) O Capaz
  70. Al Muqtadir (المقتدر) O Mais Poderoso; O Dominante; O que Tudo Determina
  71. Al Muqaddim (المقدم) O que Adianta; O que Apressa
  72. Al Mu'akhkhir (المؤخر) O que Atraza; O que Retarda
  73. Al Awwal (الأول) O Primeiro
  74. Al Akhir (الأخر) O Último
  75. Al Zahir (الظاهر) O Manifesto
  76. Al Batin (الباطن) O Oculto
  77. Al Wali (الوالي) O que Governa; O Patrão
  78. Al Muta'al (المتعالي) O Mais Elevado
  79. Al Barr (البر) A Fonte da Bondade; O Mais Generoso e Correto
  80. Al Tawwab (التواب) O que Aceita o Arrependimento
  81. Al Muntaqim (المنتقم) O Vingador
  82. Al 'Afuww (العفو) O que Perdoa
  83. Al Ra'uf (الرؤوف) O Compassivo
  84. Malik al Mulk (مالك) (الملك) O Detentor de Toda  Majestade; O Eterno Detentor da Soberania
  85. Dhu al Jalal wa al Ikram (ذو الجلال و الإكرام) O Senhor da Majestade e da Generosidade
  86. Al Muqsit (المقسط) O Equitativo
  87. Al Jami' (الجامع) O que Reúne; o que Unifica
  88. Al Ghani (الغنى) O Auto-Suficiente; O Independente; O Possuidor de Todas as Riquesas
  89. Al Mughni (المغنى) O Enriquecedor; O Emancipador
  90. Al Mani'(المانع) O que Impede; O que Defende
  91. Al Darr (الضار) O que Causa Preocupações (Este atributo só se acha em hadith. No Corão este atributo é usado exclusivamente para Satanás, na Surata LVIII, 10)
  92. Al Nafi' (النافع) O que Beneficia
  93. Al Nur (النور) A Luz
  94. Al Hadi (الهادئ) O Guia
  95. Al Badi (البديع) O Incomparável, O Originador
  96. Al Baqi (الباقي) O Perpétuo
  97. Al Warith (الوارث) O Herdeiro Supremo
  98. Al Rashid (الرشيد) O Guia para o Caminho Reto, O Professor Infalível, O Conhecedor
  99. Al Sabur (الصبور) O Paciente, O Eterno



APÊNDICE II
Glossário dos termos árabes citados no texto:

Al-‘abd: o servidor, o escravo; em linguagem religiosa designa o adorador, e de modo geral a criatura na medida em que ela depende do seu Senhor.
‘Abd al-Karim al-Jili, ibn Ibrahim: ca. 1365 – ca. 1417; Sufi; escreveu entre outros o célebre Al-Insan Al-Kamil (“O Homem Universal”).
‘Abd ar-Razzaq al-Qashani: Sufi do século XIII, comentador de Ibn’Arabi.
Abu Sa’id al-Kharraz: célebre sufi de Bagdá, morto no Cairo em 899.
‘aça: bastão; pretérito definido de “desobedecer”.
Açaf ibn Barkhiya: nome próprio de um sábio, companheiro de Salomão.
Adab: educação, polidez, tato.
‘adam: ver ‘udum.
Adhkuruni ‘adhkurkum: “Lembrai-vos de Mim, Eu Me lembrarei de vós”; ou “Mencionai-Me, e Eu vos mencionarei” (Corão, II, 147).
Al-‘adl: justiça. Equidade; um dos Nomes divinos.
Afada: transbordar, emanar; ver: fayd.
Al-af’al: plural de al-fi’l: ação, atividade; al-af’al al-ilahiyah: Atividades divinas.
Ahad: um; ver: ahadiyah.
Ahadith: plural de hadith.
Al-ahadiyah: a unidade; em Sufismo: a Unidade suprema que não é objeto de nenhum conhecimento distintivo, que não é sequer acessível à criatura como tal; somente o próprio Deus conhece a Si mesmo em Sua Unidade. Como estado espiritual, a Unidade comporta a extinção de todo e qualquer traço do criado.
Ahadiyat al-kuthrah: a unidade do múltiplo.
Ahl al-haqaiq: “a família das Realidades essenciais”; os homens que contemplam as Realidades Essenciais; ver haqiqah.
‘Aissa: Jesus.
Al-akhir: o último; um dos Nomes divinos.
‘alam al-amthal: sinônimo de ‘alam al-mithal.
alam al-jabarut: “o mundo do Todo-Poderoso”; identificado às vezes com ‘alam al-arwah, “o mundo dos puros espíritos”; ver: hahut.
‘alam al-khayal: o mundo da imaginação; ver: ‘alam al-mithal.
‘alam al-mithal: “o mundo das analogias”, o mundo formal, tanto psíquico como corporal; correponde a ‘alam al-khayal.
Al-‘ali: o elevado; um dos Nomes divinos.
Al-‘alin: os espíritos superiores; os anjos mais próximos de Deus,
Al-amr: a ordem, o comando; em teologia: o Cmando divino, simbolizado pela palavra criadora kun, “sê”, ou “seja”: “Seu comando (amruhu), quando Ele deseja alguma coisa, é dizer: sê! E ela é.” (Corão, XXXVI, 81). O Comando corresponde assim ao Verbo, e a palavra amr tem aliás este sentido em aramaico. As duas passagens do Corão a seguir afirmam implicitamente a identidade do Comando com a Palavra (kalimah) divina ou Verbo: “Jesus era aos olhos de Deus como foi Adão; Deus o formou do pó, e depois disse: seja (kun)! E ele foi.” (III, 54); “O Messias, Jesus, filho de Maria, é o enviado de Deus e Sua palavra (kalimatuhu) que Ele projetou sobre Maria, e o Seu espírito...” (IV, 170). Sobre a relação Verbo-Espírito, ver ruh. Al-amr toma muitas vezes o sentido de “realidade”, “ato”, “coisa atual”; o Comando divino corresponde ao Ato puro e opõe-se como tal à pura passividade da Natureza (at-tabi’ah). O plural de amr, umur, significa “realidades”, como na expressão corânica: “A Ele retornam as realidades”, referindo-se evidentemente às realidades essenciais das coisas, que retornarão a Deus; ora, estas correspondem aos múltiplos “aspectos” do Comando ou do Verbo divinos.
Ana jalisu man dhakhdarani: “Eu sou o companheiro daquele que Me invoca” (hadith qudsi).
Anfas: plural de nafas.
Al-‘aqil: o conhecedor, o inteligente. O ternário al-‘aqil (o conhecedor), al-ma’qul (o conhecido), al-‘aql (o intelecto, o conhecimento) desempenha um papel importante na metafísica.
Al-‘aql: o intelecto; al-‘aql al-awwal: o Intelecto primeiro, análogo ao Cálamo supremo (al-qalam) e a ar-ruh; correponde ao Nous de Plotino.
Al-‘arsh: o Trono divino.
Al-‘arsh a- muhit: o Trono divino que engloba todas as coisas.
Asma: plural de ism: nome; al-asma al-ilahiyah são os Nomes divinos, que se subdividem em asma-dhatiyah, “Nomes essenciais”, que exprimem a transcendência pura da Essência, e asma çyfatiyah, “Nomes qualitativos” que exprimem as Qualidades universais; estes últimos compreendem ainda os asma af’aliyah, os Nomes que exprimem as Atividades divinas.
Asma al-husna: “os mais belos Nomes” ou “os Nomes de Beleza”; expressão corânica que designa os Nomes divinos.
Al-awwaliyah al-awwaliyah: a primordialidade.
Al-awwal al-awwal: o primeiro; um dos Nomes divinos.
Al-a’yan: plural de ‘ayn: as essências ou determinações primeiras das coisas; al-a’yan ath-thabitah: as “essências imutáveis” ou possibilidades principiais, os arquétipos.Al-‘ayn: a essência, a determinação primeira, a fonte; al-‘ayn ath-thabitah, às vezes apenas al-‘ayn: a essência imutável, o arquétipo, a possibilidade principial de um ser ou de uma coisa.
‘aynah: sua essência (acusativo); forma possessiva de ‘ayn.
‘aynuh: sua essência (nominativo): forma possessiva de ‘ayn.
Al-azal: eternidade sem começo; ver al-qidam.
Al-‘aziz: o poderoso, o precioso, o querido; um dos Nomes divinos.
Baçar: visão; visão intelectual
Barakah: bênção, influxo ou influência espiritual.
Al-bari: o produtor (aspecto do Criador); um dos Nomes divinos.
Al-barzakh: istmo; em sentido figurado, o intermediário entre dois estados de existência.
Al-bashar: o homem; o homem feito de carne.
Batin: interior, oculto; contrário de zahir, “exterior”, “aparente”. Distingue-se a “ciência interior” (al-‘ilm al-batin), esotérica, da “ciência exterior” (al-‘ilm al-zahir) dos Doutores da Lei. Al-batin, “O Interior”, é um dos nomes corânicos de Deus.
Bilqis: nome árabe da Rainha de Sabá.
Aç-çalah: a prece ritual.
Aç´çifat: as qualidades ou atributos; aç-çifat al-ilahiyah: as Qualidades ou Atributos divinos. Ver: dhat.
Aç-çirat al-mustaqin: a Via direita.
Aç-çurah: a forma; aç-çurat al-ilahiyah: a Forma divina.
Adh-dhat: a Essência, a Qüididade. A dhat de um ser é o objeto ao qual referem-se todas as suas qualidades (çifat); as qualidades diferem entre si mas não em sua ligação a um mesmo objeto.
Dhatiyah: essencial.
Adh-dhawq: o sabro; em sentido figurado, a intuição.
Dhikr: lembrança, menção; como rito: invocação.
Dhikr-ullah: invocação a Deus, menção de Deus, lembrança de Deus.
Al-façç: o engaste.
Al-faqir ila-Llah: “os pobres de Deus”, segundo a expressão corânica: “Ó vós homens, vós sois os pobres ante Deus, e Deus é o Rico, o Glorioso” (XXXV, 16); especificamente, todo homem que segue uma via contemplativa é chamado de faqir ila-Llah, ou simplesmente faqir; o equivalente persa é derviche. A aplicação do nome faqir a certos ascetas de baixa categoria que se exibem em locais públicos na Índia provém de uma corrpução do sentido original do termo.
Al-faqr: a indigência, a pobreza; a pobreza espiritual.
Al-fard: o singular
Al-fatihah: “Aquela que abre”, a primeira surata do Corão, oração ritual do Islam.
Al-fayd: o transbordamento, o fluxo, a efusão, a emanação; em metafísica, isto não deve ser concebido como uma emanação substancial: o “transbordamento” do Ser infinito sobre as possibilidades relativas não é evidentemente uma saída do Ser para fora de si mesmo.
Al-fayd al-aqdas: a “Efusão santíssima”, a manifestação principial, supraformal.
Al-fayd al-muqaddas: a “Efusão santa”, a manifestação de Deus nas formas.
Al-fitrah: a natureza principial, não corrompida.
Fuçuç: plural de façç: engastes.
Al-fuqara: on indigentes, os pobres; os pobres no Espírito.
Al-furqan: a discriminação; nome corânico do Livro revelado – ou da revelação em geral – sob seu aspecto de Lei. Ver al-qur’an.
Al-ghaffar: o Perdoador; um dos Nomes divinos.
Ghani binafsihi: literalmente: rico por si mesmo, ou: independente.
Al-ghayb: o mistério, o não-manifestado.
Al-ghayb al-mutlaq: o Mistério absoluto, a não-manifestação pura.
Al-Ghazzali, Abu Hamid Muhammed; 1058-1111. Grande teólogo e vivificador das ciências religiosas do Islam.
Al-haba: a substância plástica universal, a materia prima.
Al-hadarat (plural de hadarah): as Presenças divinas ou as modalidades das Presenças divinas na contemplação. Distinguem-se as seguintes principais “Presenças”:
-       hadarat al-ghayb al-mutlaq: a Presença divina na não-manifestação absoluta;
-       hadarat al-ghayb al-mudafi: a Presença divina na não-manifestação relativa;
-       hadarat ash-shahadat al-mutlaqah: a Presença divina na manifestação absoluta;
-       al-hadarat al-jam’iyah: a Presença divina integral.
Hadarat al-khayal: a Presença divina no mundo da imaginação.
Hadith: sentença, palavra do Profeta transmitida fora do Corão por uma cadeia de intermediários conhecidos; existem dois tipos de ahadith: hadith qudsi (sentença sagrada), que designa uma revelação direta, em que Deus fala na primeira pessoa pela boca do Profeta; e hadith nabawi (sentença profética), que designa uma revelação indireta, quando o Profeta fala por sua própria pessoa.
Al-hahut: a Natureza essencial de Deus; derivada do Nome divino huwa, “Ele”, e formada por analogia com os seguintes termos (citados pela ordem hierárquica desendente):
-       al-lahut: a Natureza divina criadora;
-       al-jabarut: a Potência, a Imensidade divina, o mundo informal;
-       al-malakut: o Reino angélico, o mundo espiritual;
-       an-nasut: a natureza humana, em especial a forma corporal humana.
Al-hakam: o juiz; um dos Nomes divinos.
Al-hakim: o sábio; um dos Nomes divinos.
Al-hal (plural: ahwal): estado, estado espiritual; às vezes opõe-se hal (estado) a maqam (estação espiritual); neste caso, o primeiro é considerado como passageiro, e segundo com estável.
Al-hamid: o Glorioso, digno de louvação; um dos Nomes divinos.
Al-haqaiq: plural de haqiqah.
Al-haqiqah: a verdade, a realidade; no Sufismo, a Verdade ou a Realidade divinas, a realidade essencial de uma coisa. Cf. a palavra do Profeta: likulli dhi haqqin haqiqah, “a toda coisa real corresponde uma Realidade (ou Verdade) divina”.
Haqiqat al-haqaiq: a “Verdade das verdades” ou a “Realidade das realidades”, análoga ao Logos; ela é considerada como um istmo (barzakh) inatingível, intermediário entre o Ser divino e o cosmo.
Al-haqq: a Verdade ou a Realidade; no Sufismo, al-haqq designa a Divindade na medida em que ela se distingue da criatura (al-khalq).
Al-harf: singular de huruf.
Al-haybah: o temor reverencial, o temor da Majestade divina.
Al-hayrah: a consternação, a perplexidade.
Al-hikam: plural de hikmah, sabedoria.
Al-hikmah: a sabedoria.
Al-himmah: a vontade espiritual, a força de decisão, a aspiração na direção de Deus.
Al-hudur: a presença, o estado de concentração espiritual.
Al-huduth: o efêmero; oposto a al-qidam (a eternidade).
Al-hukm: o princípio, o julgamento.
Hulul: localização, imanência localizada de Deus; heterodoxia.
Al-huruf: as letras do alfabeto e os sons que elas representam.
Huwa: “Ele”; um dos Nomes divinos.
Al-huwiyah: derivado de huwa, “Ele”: a Ipseidade divina, o “Si” supremo.
Idris: Enoch.
‘ifrit: espécie de gênio.
Al-ihsan: a virtude espiritual, a beleza interior. Segundo o Profeta, ela consiste em que “adores a Deus como se o visses; se tu não o vês, Ele no entanto te vê” (hadith Jibrail). Notemos este ternário fundamental, comentado pelo Profeta: al-islam, o abandono à Vontade divina, al-iman, a fé, e al-ihsan, a virtude santificante.
Al-ikhlaç: a pureza, a sinceridade.
Ilah: divindade.
Al-‘ilm: o conhecimento, a ciência.
Iman: modelo, protótipo; ritualmente: aquele que preside a prece comunitária; chefe de uma comunidade religiosa.
Insan: homem.
Al-insan al-kabir: o “Grande Homem”, o macrocosmo, segundo o adágio: “o cosmo é um grande homem, e o homem é um cosmo pequeno”.
Al-insan al-kamil: o “homem perfeito” ou “homem universal”; termo sufi para aquele que realizou todos os graus do Ser; designa também o protótipo permanente do homem.
Al-islam: a submissão, o abandono à Vontade divina.
Al-isti’dad: a predisposição, a aptidão, a preparação para receber, a virtualidade.
Al-jabarut: o mundo da Plenipotencialidade ou Imensidão divinas.
Al-jabbar: o Todo-Poderoso; um dos Nomes divinos.
Al-jam’iyat al-ilahiyah: a síntese divina.
Al-janab al-ilahi: o lado divino.
Al-jannah: o paraíso.
Al-jasad: o corpo concreto ou sutil.
Al-jawhar al-hayulani: a substância primeira, materia prima; literalmente, a “jóia substancial”.
Al-jinn: os gênios, seres que pertencem ao mundo psíquico.
Al-Junaid, Abu-l-Qasim, morto em 910, célebre mestre sufi, cognominado “o chefe da tropa”.
Al-kalimah: a palavra, o Verbo.
Al-kamal: a perfeição, a plenitude, a infinitude.
Kashf: intuição; literalmente, erguer um véu ou uma cortina.
Al-kashf al-ilahi: intuição divina, conhecimento das possibilidades essenciais por Deus.
Katab-Alahu ‘ala nafsihi-r-rahman: “Deus prescreve a Si próprio Sua misericórdia” (Corão, VI, 12).
Kathif: grosseiro, concreto, corpóreo.
Al-kawn: o cosmo, o universo.
Al-khaçç: o homem de elite.
Khalaqa: criar. Ver também: khalq.
Al-khalifah: o representante.
Al-khalil: amigo íntimo; khalil-Allah: o amigo de Deus (Abrahão).
Al-khatam: o selo; ver também: khatim.
Khatim: selo; khatim al-wilaya: “Selo da Santidade”; khatim al-nubuwwa, “Selo da Profecia”; a primeira expressão é muitas vezes relacionada ao Cristo quando da sua próxima vinda, e a segunda expressão sempre refere-se ao Profeta Maomé.
Khatim al-awlya: “Selo dos Santos”.
Khatim ar-rusul: “Selo dos Enviados”.
Al-khayal: a faculdade imaginativa; ela é puramente pasiva, seja em relação à faculdade conjectural (al-wham), que lhe confere o caráter de ilusão, seja em relação ao intelecto (al-‘aql) ou ao Espírito (ar-ruh) que podem imprimir-lhe visões proféticas.
Al-Khidr: nome de um misterioso personagem que Moisés encontra perto da fonte.
Al-kufr: a descrença.
Kun: seja!, sê!; a ordem criadora. Ver al-amr.
Ladunni: “perto de Mim”; adjetivo que serve para designar a inpiração divina imediata.
Al-lahut: a Natureza divina criadora. Ver al-ahahut.
Lam yakun thumma kana: “ele não estava, depois estava”.
Mahall: lugar, estação, parada, morada.
Mahiyah: palavra derivada do proneme relativo intnerogativo ma, “que”, “quem”, significando a ipseidade de uma coisa.
Majla: lugar de irradiação, de revelação, plano de reflexão do tajalli divino, teatro.
Al-makan: o lugar.
Al-mala al-a’la: a assembléia suprema, os arcanjos e os seres mais próximos de Deus.
Al-malaikat al-muhaymiyah: “os Anjos perdidos de amor”; os Anjos supremos absorvidos no Ser divino.
Al-malakut: a Soberania permanente, o Reino celeste e angélico; cf. o versículo corânico: “É Ele que possui em Sua Mão a Soberania sobre todas as coisas...” (XXXVI, 83).
Man’arafa nafsahu ‘arafa rabbah: “Quem conhece a si mesmo, conhece seu Senhor” (hadith).
Maqamat: estações; plural de maqam.
Al-mar’ah: a mulher.
Mathal: análogo, semelhante. Ver: ‘alam al-mithal.
Al-mawjudat al-‘ayniyah: as existências individuais. Ver: wujud ’ayni.
Minhaj: via, regra.
Mishkat: nicho, tabernáculo. Cf. a surata da “Luz”: “Deus é a luz dos Céus e da terra. O símbolo de Sua luz é como um tabernáculo (mishkat); neste tabernáculo existe uma lâmpada; a lâmpada está num vidro; o vidro é como uma estrela brilhante...” (XXIV, 35).
Al-mubasharah: a doçura, a ação de agradar alguém.
Muhyi-d-din: vivificador da religião.
Al-mumkinat (plural de mumkim): as possibilidades; em lógica, distingue-se entre mumkim (possível), wajib (necessário) e jaiz (contingente); do ponto de vista metafísico, o possível remete principialmente ao necessário, uma vez que toda possibilidade possui necessariamente uma realidade que ela comporta por sua própria natureza.
Musa: nome árabe de Moisés.
Musawwi: direito, igual, homogêneo.
Mushahadah: contemplação. Ver também: shahadah.
Mutawahham: ilusório, imaginário; termo vindo da mesma raiz de wham.
Nabi: profeta. Ver também: rasul.
Nafas ar-rahman: a “Expiração do Clemente”, também chamada de an-nafas ar-rahmani: “Expiração misericordiosa”; a Misericórdia divina considerada como princípio da manifestação e portanto como potência quase maternal de Deus. Ver rahmah.
Naffasa: soprar, expirar, dilatar, consolar. Ver nafas.
An-nafs: a alma, a psique, ou seja a realidade sutil do indivíduo; o “eu”. Em sua oposição ao espírito (ruh) ou ao intelecto (‘aql), nafs aparece sob um aspecto negativo, por ser constituído pelo conjunto das tendências individuais ou egocêntricas. Distinguem-se no entanto:
-       an-nafs al-haywaniyah: a alma animal, ou seja a alma na medida em  que obedece passivamente aqos impulsos naturais;
-       an-nafs al-ammarah: “a alma que copmanda”, ou seja a alma passional e egoísta;
-       an-nafs al-lawwamah: “a alma envergonhada”, ou seja a alma que é consciente de suas imperfeições;
-       an-nafs al-mutmainnah: “a alma tranquila”, ou seja a alma reintegrada no Espírito, que repousa na certeza.
As três últimas expressões são corânicas.
An-nafs al-kulliyah: a Alma universal, que engloba todas as almas individuais; ela corresponde à Tábua Guardada (al-lawh al-mahfuz) e opõe-se ao Espírito (ar-ruh) ou Intelecto primeiro (al-‘aql al-awwal); ela é análoga à psique de Plotino.
An-nafs al-wahidah: “a alma única” da qual foram criadas todas as almas individuais.
An-nar: o fogo.
Al-nasut: a natureza humana.
An-nisa: as mulheres (coletivo).
Nisab dhatiyah: relações essenciais, relações inerentes à Essência divina.
An-nur: a luz; em metafísica: a Luz divina, fonte da existência.
Nuzul: literalmente, descida; a revelação, no sentido específico do termo.
Omar ibn al-Khattab: nome de um companehiro do Profeta, que foi o segundo califa.
Al-qabil: o receptáculo, a substância passiva e receptiva, derivada da raiz QBL que significa “receber”, “situar-se defronte a”.
Al-qadr: a potencialidade, a predestinação, a medida da potencialidade inerente a uma coisa.
Al-qahhar: o domador, o vitorioso; um dos Nomes divinos.
Al-qalb: o coração; o órgão da intuição supra-racional, que correponde ao coração assim como o pensamento correponde ao cérebro. O fato de que os modernos localizam no coração o sentimento ao invés da intuição mostra que aquele ocupa para eles o centro da individualidade.
Al-qawabil: plural de qabil.
Qawwatun malakutiyah: “uma força celeste”, “uma força angélica”.
Qiblah: orientação ritual.
Al-qidam: eternidade, antiguidade.
Al-qu’ran: o Corão; literalmente, “a recitação” ou “a leitura”; no simbolismo sufi, este termo considera a revelação sob seu aspecto de conhecimento imediato, não diferido. Ver também al-furqam.
Qurrah: repouso, frescor, consolação.
Ar-rahah: repouso, parada, descanso.
Ar-rabb: o senhor; um dos Nomes divinos.
Ar-rahim: aquele que é misericordioso (para com os seres); forma ativa da raiz RHM; ver também: ar-rahmah.
Ar-rahmah: a Misericórdia (divina); a mesma raiz RHM acha-se em dois Nomes divinos: ar-rahman (O Clemente, Aquele cuja Misericórdia engloba todas as coisas) e ar-rahim (O Misericordioso, Aquele que salva por Sua graça); a palavra mais simples da mesma raiz é rahim: “matriz”, donde o aspecto maternal destes Nomes divinos.
Ar-rahman: O Clemente.
Ar-ramaniyah: a Qualidade divina integral, correspondente ao Nome divino ar-rahman; a Beatitude misericordiosa.
Rasul: enviado, mensageiro; em teologia: enviado divino. É enquanto mensageiro (rasul) que um profeta (nabi) promulga uma nova Lei sagrada; nem todo profeta é rasul, embora tendo a inspiração divina, mas todo rasul é implicitamente nabi.
Ar-raqib: o observador; um dos Nomes divinos.
Rawh: repouso, alegria, graça, justiça.
Rayhan: mirra; toda planta perfumada.
Risalah: a função de rasul, de enviado de Deus.
Ar-rabubiyah: a soberania; a Qualidade divina que correponde ao Nome divino ar-rabb, o Senhor.
Ar-ruh: o espírito; no Sufismo, esta palavra comporta os seguintes sentidos:
-       o Espírito divino, incriado (ar-ruh al-ilahi); também chamado ar-ruh al-qudus, o Espírito Santo;
-       o Espírito universal, criado (ar-ruh al-kulli);
-       o espírito individual ou mais exatamente polarizado em relação ao indivíduo;
-       o espírito vital, intermediário entre a alma e o corpo.
Cf. o Corão: “Eles te questionarão a respeito do Espírito; diga-lhes: o espírito provém do Comando (amr) de meu Senhor...”
Ar-ruh al-amin: o “Espírito fiel”, nome do Arcanjo gabriel.
Ar-rah al-manawi: o espírito intelectual.
Rusul: plural de rasul.
Ru’ya: vista, visão, ato de enxergar.
Ruya: visão, sonho.
Sahl at-Tastari, Abu Muhammed, 818-896, célebre teólogo sufi, de Tustar em Ahwaz; suas “Mil sentenças” foram recolhidas por seus discípulos.
As-sa’id: o feliz.
As-sakinah: a Paz divina que reside num santuário ou no coração. A raziz SKN comporta os significados de “imobilidade” (sukun) e de “habitação”. É análogo ao hebraico shekhina, a Glória divina que habita a arca da aliança. Cf. o versículo corânico: “É Ele que faz descer a sakinah no coração dos crentes, a fim de que eles adquiram uma nova fé acima de sua fé...” (XLVIII, 4).
As-Samiri: nome próprio do hebreu que induziu os filhos de Israel a fazer o bezerro de ouro; às vezes este nome é traduzido como “o Samaritano”, o que é um evidente anacronismo.
Shahadah: testemunho, contemplação, percepção objetiva.
Shahid: testemunha. Ver shuhud e shahadah.
Ash-shara’i: as diversas leis reveladas; plural de shari’ah.
Shari’ah: lei sagrada, revelada. Cada Mensageiro (rasul) divino traz uma nova shari’ah em conformidade com as condições do ciclo cósmico humano. Opõe-se a shari’ah à haqiqah, a Lei sagrada à Verdade ou Realidade divinas; as Leis sagradas difrem, enquanto que a Realidade divina é sempre a mesma.
Ash-sahy: a coisa.
Sijin: prisão; designação corânica dos mundos inferiores.
Sijn: prisão.
Sirr: segredo, mistério. No Sufismo, as-sirr designa também o centro íntimo e inefável da consciência, o “ponto de contato” entre o indivíduo e seu princípio divino.
As-sitr: o véu, a cobertura.
As-suryan: o processo, a propagação.
At-tabi’ah: a Natureza; Tabi’at al-kull: a Natureza universal. Ela é um aspecto passivo e “plástico” da Substância universal (al-haba); ela é esta substância enquanto geratriz do mundo, donde sua natureza maternal. Ibn’Arabi atribui-lhe uma realidade coestensiva a toda a manifestação universal e identifica-a com a “Expiração do Clemente”.
At-tabut: o cesto no qual Moisés foi colocado no rio Nilo).
At-tajalli: revelação, irradiação, retirada do véu (plural: tajalliyat).
Takwin: “existenciação”, criação.
Tanfis: alívio (de um sofrimento).
At-tanzih: distanciamento, exaltação, afirmação da transcendência divina. Antônimo: tashbih: comparação, similitude, afirmação do simbolismo. As duas afirmações acham-se reunidas em passagens corânicas tais como esta: “Nada é semelhante a Ele (=tanzih), e é Ele quem entende e vê (=tashbih).
Tasbih: louvação; ação de atribuir a Deus todas as perfeições.
At-tashbih: a semelhança, a analogia, o simbolismo.
Taqdis: santificação; ação de proclamar santo a Deus, vale dizer isento de toda e qualquer imperfeição ou limite.
Ayibah: bom, bem cheiroso
Thalathatun, fem. Thalathun: três.
Al-ubudiyah: a qualidade de servidor, de adorador perfeito.
Al-udum: às vezes vocalizado ‘adam: a não-existência, a ausência, o Não-Ser, o nada. No Sufismo, esta expressão comporta de um lado um sentido positivo, o da não-manifestação, do estado principial situado além da existência e mesmo além do Ser, e de outro lado um sentido negativo, de privação, de nada relativo.
Al-uluhiyah: palavra derivada de ilah, “divindade” e que seignifica “Qualidade-Deus” ou “Qualidade de Divindade”, não no sentido de uma Qualidade divina em especial, mas como a Natureza divina total.
Al-umur: plural de al-amr: os comandos (divinos).
Al-umur al-kulliyah: as realidades universais; os “universais”.
Umurun ‘adamiyah: realidades não-existentes, ou seja não manifestadas.
Al-uns: a intimidade confiante; oposto a al-haybah.
Al-wahhab: o doador; um dos Nomes divinos.
Al-wahi: a inspiração divina.
Wahid: único. Ver wahidiyah.
Al-wahidiyah: a Unicidade divina; ela se distingue da Unidade (ahadiyah) divina que se subtrai a todo conhecimento distintivo, enquanto que a Unicidade aparece no diferenciado, assim como as distinções principiais aparecem nela.
Al-wahm: a faculdade conjectural, a opinião. Ver também al-khayal.
Al-wali: o Senhor; um dos Nomes divinos.
Al-wali: o santo, o homem de Deus.
Al-warith: o herdeiro; um dos Nomes divinos.
Al-wasi: o vasto; um dos Nomes divinos.
Al-wilaya: a santidade.
Al-wujud: o Ser, a existência.
Wujud ‘ainy: existência determinada, individual, dotada de substância.
Al-wujuh: as faces, os aspectos (plural de wajh).
Al-yaqin: a certeza.
Zahir: exterior, aparente; contrário de batin (ver). Az-zahir, “O Exterior” ou “O Aparente” é um dos Nomes corânicos de Deus.
Az-zann: o pensamento, a opinião.

[1]              Isto refere-se à passagem corânica sobre Salomão e a Rainha de Sabá, cujo nome em árabe é Bilqis: quando Salomão passava em revista o exército dos pássaros,  o galo-da-serra lhe trouxe novas a respeito de Sabá: “Eu encontrei uma mulher que reina sobre os homens, ela recebeu abundância de todas as coisas, e ela possui um grande trono. Eu vi que ela e seu povo adoram o sol ao lado de Deus: Satanás embelezou suas obras aos seus olhos, e os desviou da via direita, de sorte que eles não estão mais dirigidos, e não adoram mais a Deus que produz em pleno dia os segredos dos céus e da terra, que conhece o que se esconde e o que se mostra; Deus, fora quem não existe divindade, o Senhor do Grande Trono.” – “Veremos, disse Salomão, se falas a verdade ou mentes. Vá a ela com esta carta de minha parte; entrega-a e fica de parte, e verás qual será a sua resposta. [Uma vez que o pássaro cumpriu sua missão, a rainha] disse aos grandes do seu reino: “Senhores, uma carta nobre acaba de ser-me entregue. Em verdade, ela é de Salomão, e diz assim: Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso, não vos levanteis contra mim; antes, venham a mim, abandonados [à vontade de Deus]...” (Corão, XXVII, 23-31).
[2]              Os dois nomes derivam de ar-rahmah, “misericórdia”.
[3]                       Corão, VI, 12: katab Allahu ‘ala nafsihi-r-rahmah. Este versículo pode ser traduzido assim: “Deus prescreveu para Si mesmo a misericórdia”, o que significa que a misericórdia, que é o aspecto “beatífico” da Infinitude divina, não possui outro objeto senão Deus.
[4]              Corão, XXXVIII, 34. Salomão comandava os gênios, os ventos e os animais.
[5]              Ifrit: nome de uma categoria de gênios mal-feitores.
[6]              Corão, VII, 155.
[7]              Corão, XLII, 9.
[8]              Lembremos a propósito que Ibn’Arabi foi conselheiro de muitos reis.
[9]              Os gênios são seres sutis que pertencem ao mesmo mundo individual dos homens. Enquanto que o homem foi criado “de argila”, os gênios foram criados “do fogo”, ou seja seu meio vital não é o estado corporal, mas o psíquico.
[10]             Isto se refere à continuação da história de Salomão e da rainha de Sabá, contada no Corão: “...[Salomão disse aos seus:] Ó Senhores! Quem dentre vós me aproximará do trono [da rainha de Sabá], antes que eles próprios venham abandonar-se à vontade [de Deus]? – Serei eu, respondeu um Ifrit entre os gênios, eu o trarei antes que te levantes do teu lugar. Sou forte o bastante para isto, e fiel. – Um outro, que tinha ciência do Livro  [disse a Salomão}: Eu o trarei antes que teu olhar retorne para ti. E quando Salomão viu o trono colocado diante de si, ele disse: É um sinal do favor de Deus, Ele testou-me para saber se sou reconhecido ou ingrato. Quem for reconhecido, o será para sua vantagem; quem for ingrato, Deus [pode passar sem ele, pois Ele] é rico e generoso...” (Corão, XXVIII, 38-40).
[11]             É o nome do companheiro de Salomão que operou a transferência milagrosa do trono; este nome não é mencionado no Corão.
[12]             “Estamos Nós esgotados pela primeira criação? Certamente, eles são iludidos por uma criação nova” (Corão, L, 14).
[13]             A percepção do mundo é contínua apesar de sua incessante renovação.
[14]             Ou “a cada sopro”. O sopro ou expiração (nafas) é aqui a imagem do princípio expansivo, o poder divino que “dilata” os mundos a partir de seu estado de não-manifestação. No capítulo sobre Jesus, Ibn’Arabi identifica a “Expiração do Clemente” (nafas ar-rahaman) com a Misericórdia divina que “dilata” (naffasa) o mundo. É nisto que as considerações sobre o milagre do Trono de Bilqis ligam-se ao objeto inicial do capítulo.
[15]             As manifestações sucessivas de um único e mesmo arquétipo são semelhantes ou análogas entre si; é por isso que o mundo das formas é chamado de “mundo dos semelhantes” (a’lam al-amthal).
[16]             A escola teológica de Asharites afirmava uma descontinuidade quase absoluta do mundo.
[17]             O comentador al-Qashani escreve a respeito desta passagem: “O fluxo superabundante do Ser ou da Expiração do Clemente atravessa continuamente as existências, como a água de um rio, renovando-se sem cessar. Da mesma forma, a individuação do Ser, recebida das essências imutáveis (al-a’yan ath-thabitah) contidas no Conhecimento eterno, não cessa de renovar-se, sem descontinuidade. Por isto, é possível que a individuação primordial do Ser seja abstraída de sua determinação espacial e se reproduza em outro lugar, após haver desaparecido, quanto à sua manifestação, do primeiro lugar, e isto mesmo permanecendo rigorosamente idêntica no Conhecimento divino e no estado de não-manifestação. É  esta verdade que Açaf ibn Barkhiya conhecia pela graça divina. Ao mesmo tempo, ele estava qualificado para dispor dela por um poder supraformal (qawwatun malakutiyah) (...) Não existe intervalo temporal entre a desaparição e a remanifestação, de modo que não percebemos a interrupção entre duas criações análogas e sucessivas, e a existência assim parece homogênea (...) Na medida em que o homem é uma possibilidade de manifestação, mas que ele não vê aquilo que o manifesta, ele é pura ausência (‘udum); ao contrário, na medida em que ele recebe seu ser da irradiação (tajalli) perpétua da Essência, ele é. A incessante revelação das Atividades divinas decorrentes dos Nomes divinos renova-se após cada desaparição, na instantaneidade, sem sucessão temporal perceptível, mas segundo uma sucessão puramente lógica, pois não existe aí mais do que uma não-existência permanente, que é a da pura possibilidade, e existe um Ser permanente, a revelação da Essência única, porque as atividades e as individuações sucedem-se com os sopros que decorrem dos Nomes divinos, pois os indivíduos renovam-se a cada instante presente...”
[18]             Corão, XXXVIII, 29.
[19]                                                                                                        Locuções árabes.
[20]             “Lembrai-vos também de David e Salomão quando eles pronunciaram uma sentença sobre um campo onde os rebanhos de uma família haviam causado estragos. Nós estávamos presentes a este julgamento. Nós demos a Salomão a inteligência deste assunto, e aos dois um poder de julgamento e uma ciência...” (Corão, XXI, 78-79). Eis a explicação desta passagem: alguns carneiros haviam feito estragos no campo de um cultivador; este fez comparecer o proprietário da tropa diante de David, que decidiu que o cultivador deveria tomar os carneiros como compensação pelos danos que eles haviam causado. Salomão, presente a este julgamento e então com a idade de onze anos, foi de opinião que seria mais razoável dar ao cultivador apenas o usufruto dos carneiros, ou seja que a lã, o leite e os carneirinhos lhe pertenceriam durante o tempo suficiente para compensar as perdas. David aprovou o julgamento do seu filho (conforme M. Kasimirski: Le Koran).
[21]               “...Tornem irreconhecível este trono [disse Salomão]. Veremos se ela está no caminho reto, ou se está entre aqueles que não podem ser dirigidos. E quando [a rainha] veio, foi-lhe perguntado: É este seu trono? Ela respondeu: é como se fosse ele mesmo (ka’annahu huwa)...”  (Corão, XXVII, 41-42)
[22]             “...Disseram-lhe: Entre neste palácio. E quando ela o viu, acreditou tratar-se de um espelho d’água, e descobriu suas pernas. É um palácio pavimentado de cristal, disse-lhe Salomão. Ela disse: meu Senhor, minha alma enganou-se; eu me submeto com Salomão à vontade de Deus, o mestre dos mundos” (Corão, XXVII, 44-45)
[23]             O comentador an-Nabulusi acrescenta: “ou seja, ele a fez compreender que tudo o que ela tomava como real não passava de uma ilusão – ou sugestão – assim como o cristal do palácio lhe havia sugerido a água...”
[24]             “Nós atravessamos o mar com os filhos de Israel. O Faraó, insolente e hostil, segui-os com sua armada, até o momento em que, mergulhado nas ondas, ele gritou: Eu acredito que não há outro deus do que aquele em que acreditam os filhos de Israel. Eu sou um dos que se abandonam a ele. – Agora tu és, mas antes tu te mostrastes rebelde, e estavas entre o número dos transgressores,,” (Corão, X, 90-91).
[25]             Isto refere-se à vitória de Moisés sobre os magos do Faraó: “...Os mágicos prosternaram-se adorando a Deus, dizendo: nós cremos em Deus, o mestre dos mundos, o Senhor de Moisés e de Aarão...” (Corão, VII, 117).
[26]             “Não existe ser animado que Ele não segure pela mecha da cabeça; em verdade, meu Senhor está num caminho reto...” (Corão, XI, 56).
[27]             Corão, LVII, 3.
[28]             Corão, XXI, 81.
[29]             Corão, XLV, 12.
[30]             Corão, XXXVIII, 38.
[31]             Segundo uma outra versão da mesma tradição, o Anjo apresentou ao Profeta três taças: uma de leite, uma de vinho e uma terceira de água. Estas três bebidas correspondem a três tendências espirituais: o leite simboliza a essência intelectual da alma, portanto o conhecimento ou a sabedoria, o vinho correponde ao amor e à embriaguez espiritual, e a água representa a pureza receptiva da alma; é por isso que o Anjo disse ao Profeta: “Se tivesses escolhido o vinho, tua comunidade teria se perdido, e se tivesses escolhido a água, ela teria se dispersado”.
[32]             Corão, XXXIII, 21.
[33]             Segundo algumas tradições, os astrólogos egípcios haviam predito a Salomão o nascimento de um profeta israelita que o destruiria.
[34]             O espírito vital (ar-ruh) é o intermediário entre a alma imortal e o organismo físico. Geralmente ele se dissolve após a morte; em certas condições, ele pode transferir-se total ou parcialmente para um homem vivo, como um conjunto de forças que carrega a marca da alma do defunto; é o que acontece na sucessão das hierarquias lamaístas chamadas Tulku. Al-Qashani acrescenta que o Faraó, que tentara quebrar a predestinação divina matando os filhos homens dos israelitas,  favoreceu com isto a manifestação do profeta, que deveria ser como que a síntese das almas de seu povo. Observe-se a relação recíproca entre sacrifício e descida salvadora.
[35]             Segundo o Zohar, Moisés era não apenas o representante do povo de Israel, mas o próprio povo aos olhos de Deus.
[36]             Ou seja as sabedorias divinas que se manifestaram nas palavras, nos atos e no próprio destino de Moisés.
[37]             Corão, XXI, 31.
[38]             As-sakinah correponde ao hebraico ha shekhina, que designa a Presença de Deus na arca da aliança. É o corpo que é o suporte da “Presença real”, e não omental.
[39]             De modo que, aí também, a manifestação da realidade essencial depende formalmente de seu suporte: o espírito (ar-ruh) rege o corpo por intermédio do mental e das faculdades de sensação e ação, cuja existência, como faculdades diferenciadas, depende da do corpo.
[40]             Deus não é assim nem uma verdade nem uma causa no sentido cosmológico do termo, nem um fim. Ou melhor, se Deus é a causa do mundo, no sentido que Ele o contém essencialmente, a causalidade cósmica não será senão um símbolo desta relação principial, a partir do momento que a causa cósmica não contém seu efeito sob todos os aspectos; assim, por exemplo, a alma tem necessidade do corpo para manifestar algumas de suas virtualidades.
[41]             O mundo dos espíritos ativos e o das matérias receptivas.
[42]             Corão, XVII, 46.
[43]             Corão, XXII, 64.
[44]             Ou seja que esta soberania do homem não pode ser conhecida senão no puro Espírito, essencialmente idêntico ao protótipo do universo, enquanto que as faculdades psíquicas e sensíveis não a alcançam.
[45]             Corão, VI, 122.
[46]             Corão, XXII, 5.
[47]             A polaridade é o caráter próprio da Natureza universal, da qual a terra é símbolo.
[48]             A unidade substancial, passiva, da Natureza ou da Hylé é a imagem inversa da Unidade essencial.
[49]             “Dentre os homens, muitos atingiram a perfeição (al-kamal), mas entre as mulheres só foram perfeitas Aasiyah, a esposa do Faraó, e Maria...”.
[50]             Corão, XXVIII, 9.
[51]             Corão, X, 91.
[52]             Corão, XII, 87.
[53]             “Nós conduzimos os filhos de Israel através do mar. O Faraó, insolente e hostil, seguiu-os com seu exército. Mas quando o  mar ameaçou engoli-lo, ele disse: Eu creio que não há deus senão aquele em que crêem os filhos de Israel; eu  me submeto a Ele. Agora crês, mas antes eras rebelde e transgressor. Hoje Nós salvaremos teu corpo para que sejas um sinal para os que viverão depois de ti. Em verdade,  muitas pessoas negligenciam Nossos sinais” (Corão, X, 89-91).
[54]             Corão, XXVIII, 10.
[55]             “O coração impaciente da mãe de Moisés tornou-se vazio, e pouco faltou para que ela se delatasse, não lhe tivéssemos Nós confortado o coração, para que continuasse sendo uma das fiéis. E ela disse à irmã dele (Moisés): Segue-o! e esta o observou de longe, sem que os demais se apercebessem. E fizemos com que recusasse as nutrizes. E disse (a irmã, referindo-se ao bebê): Quereis que vos indique uma casa familiar, onde o criarão para vós e serão seus custódios? Restituímo-lo, assim, à mãe, para que ela se consolasse e não se afligisse, e para que verificasse que a promessa de Deus é verídica. Porém, a maioria o ignora.” (Corão, XXVIII, 9-12).
[56]             Corão, V, 52.
[57]             Minha = dela; ja = veio.
[58]             Corão, XX, 41.
[59]             “E entrou na cidade, em um momento de descuido, por parte dos seus moradores, e encontrou nela dois homens brigando; um era da sua casta, e o outro da de seus adversários. O da sua casta pediu-lhe ajuda a respeito do adversário; Moisés espancou este e o matou. (Mas voltando a si} disse: Isto é obra de Satanás, porque é um inimigo declarado, desencaminhador! Disse (ainda): Ó Senhor meu, certamente me condenei! Perdoa-me, pois! E (Deus) o perdoou, porque é o Indulgente, o Misericordiosíssimo” (Corão, XXVIII, 14-15).

[60]             Esta passagem refere-se ao encontro de Moisés com al-Khidr, o misterioso personagem a quem Deus disse ter dado a ciência que está “junto a Mim” (ladunni). O nome de al-Khidr, que significa “o Verde” não é mencionado no Corão; ele foi conservado pela tradição oral. Para o esoterismo islâmico, este personagem desempenha o mesmo papel que Elias no esoterismo judaico. Moisés quis seguir al-Khidr, para que este lhe ensinasse o conhecimento do “caminho direito”. Mas al-Khidr insinuou que Moisés não teria jamais paciência suficiente para com ele; no entanto ele aceitou sua companhia, com a condição que Moisés não o interrogasse sobre nenhuma de suas ações sem que ele primeiro se referisse a elas; “E Moisés lhe disse: Posso seguir-te, para que me ensines a verdade que te foi revelada? Respondeu-lhe: Tu não serias capaz de ser paciente para estares comigo. Como poderias ser paciente em relação ao que não compreendes? Moisés disse: Se Deus quiser, achar-me-á paciente e não desobedecerei às tuas ordens. Respondeu-lhe: Então segue-me e não me perguntes nada, até que eu te faça menção disso. Então, ambos se puseram a andar, até embarcarem em um barco, que o desconhecido perfurou. Moisés lhe disse: perfuraste-o para afogar seus ocupantes? Sem dúvida que cometeste um ato insólito! Retrucou-lhe: Não te disse que és demasiado impaciente para estares comigo? Disse-lhe: Desculpa-me por ter-me esquecido, mas não me imponhas uma condição demasiado difícil. E ambos se puseram a andar, até que encontraram um jovem, o qual (o companheiro de Moisés) matou. Disse-lhe então Moisés: Acabas de matar um inocente, sem que tenha causado morte a ninguém! Eis que cometeste uma ação inusitada. Retrucou-lhe: Não te disse que não poderás ser paciente comigo? Moisés lhe disse: Se da próxima vez voltar a perguntar algo, então não permitas que te acompanhe, e me desculpa. E ambos se puseram a andar, até que chegaram a uma cidade, onde pediram pousada aos seus moradores, os quais se negaram a hospedá-los. Nela, acharam um muro que estava a ponto de desmoronar e o desconhecido o restaurou. Moisés lhe disse então: Se quisesses, poderias exigir recompensa por isso. Disse-lhe: Aqui nós nos separamos; porém, antes, inteirar-te-ei da interpretação, porque tu és demasiado impaciente para isso: Quanto ao barco, pertencia aos pobres pescadores do mar e achamos por bem avariá-lo, porque atrás dele vinha um rei que se apossava, pela força, de todas as embarcações. Quanto ao jovem, seus pais eram fiéis e temíamos que os induzisse à transgressão e à incredulidade. Quisemos que o seu Senhor os agraciasse, em troca, com outro puro e mais afetuoso. E quanto ao muro, pertencia a dois jovens órfãos da cidade, debaixo do qual havia um tesouro seu. Seu pai era virtuoso e teu Senhor quis que alcançassem a puberdade, para que pudessem tirar o seu tesouro. Isso é do beneplácito de teu Senhor. Não o fiz por minha própria vontade. Eis a explicação daquilo em relação ao qual não foste paciente.” (Corão, XVIII,  66-82)

[61]             “Eis o que inspiramos à mãe de Moisés: amamenta-o, e se temes por ele, lança-o ao Nilo e não temas; não te aflijas, pois Nós o restituiremos um dia, e faremos dele um dos Nossos enviados” (Corão, XXVIII, 6).
[62]             Corão, XXVIII, 21.
[63]             Hadith qudsi.
[64]             A mesma idéia foi expressa por um mestre sufi atual nestes termos: “Deus é tão grande que ele pode até assumir limites sem por isto se tornar limitado”.
[65]             “[O Faraó disse a Moisés:] Não te carregamos conosco toda a tua infância? Passastes anos de tua vida entre nós. Depois cometestes a ação que nos contastes; tu és um ingrato. Ele respondeu: Sim, eu cometi essa ação; mas então eu estava desorientado. E fugi do vosso meio por medo. Depois, Deus investiu-me do poder de julgamento e colocou-me no número de seus enviados” (Corão, XXVI, 17-20).
[66]             “Ele se dirigiu para as bandas de Midian. Talvez Deus, disse ele, conduza-me ao caminho direito. Quando ele chegou à fonte de Midian,  encontrou uma tribo de homens que davam de beber aos seus rebanhos. Ao lado deles havia duas mulheres que haviam separado seu rebanho. Ele lhes perguntou: De que vocês têm necessidade? Elas responderam: Não podemos dar de beber ao nosso rebanho senão quando eles partirem; nosso pai é um velho. Moisés deu água ao rebanho delas e depois, retirando-se para uma sombra, disse: Meu Senhor! Eu sou pobre diante do bem com que Tu me dotastes”. (Corão, XXVIII, 21-24).
[67]             Corão, LIX, 7.
[68]             Segundo uma palavra do Profeta, citado por al-Bukhari e outros.
[69]             Corão, XVIII, 67.
[70]             Corão, XXVI, 20.
[71]             A profecia caracteriza-se pela inspiração divina, mas apenas a missão divina (ar-risalah) implica a promulgação  de uma nova lei sagrada.
[72]             Lembremo-nos das palavras do Cristo: “Meu reino não é deste mundo” (Jo, XVIII, 36).
[73]             De ma: “que” (latim: quid); al-mahiyah é a natureza de uma coisa.
[74]             Corão, XXVI, 23.
[75]             Corão, XXVI, 26.
[76]             Corão, XXVI, 27.
[77]             Corão, XXVI, 28.
[78]             Corão, XXVI, 29.
[79]             Corão, XXVI, 30.
[80]             “O Faraó inspirava a irresponsabilidade ao seu povo, e eles o obedeciam, porque eram corrompidos” (Corão, XLIII, 54).
[81]               Corão, XXVI, 31.
[82]               Corão, XXV, 70.
[83]             Corão, XXV, 46-47.
[84]             Corão, LXXIX, 24.
[85]             “O Faraó disse: eu farei com que cortem as mãos e os pés alternativamente, e crucificarei a todos” (Corão, XXVI, 49).
[86]             Aqueles que os mágicos condenados deveriam realizar depois da morte.
[87]             Corão, X, 65.
[88]             Corão, XL, 85.
[89]             “Aqueles contra os quais a palavra de Teu Senhor foi pronunciada não acreditaram, mesmo quando todos os sinais foram dados, até que eles viram o castigo doloroso. Se fosse de outro modo, uma cidade que tivesse acreditado teria encontrado nisto sua salvação. Salvo o povo de Jonas: quando eles acreditaram, Nós os liberamos do castigo do opróbio neste mundo, e Nós os deixamos subsistir até um dado termo” (Corão, X, 96-98).
[90]             Corão, X, 89.
[91]             Corão, X, 92.
[92]             Corão, X, 96.
[93]             Assim como o tempo, numa frase, não condiciona as palavras enquanto tais, mas apenas seu encadeamento ocasional.
[94]             “Já ouviste a história de Moisés? Quando ele viu o fogo, ele disse à sua família: Fiquem aqui, eu vi fogo. Talvez eu vos traga um tição, ou talvez, com a ajuda do fogo, eu possa acertar com o caminho. E quando ele se aproximou, uma voz lhe disse: Ó Moisés! Em verdade, Eu sou o teu Senhor: tira tuas sandálias, pois estás no vale santo de Tuwa...” (Corão, XX, 8-sg)
[95]             Isto não significa, na perspectiva de Ibn 'Arabi, que Jesus tenha sido menos perfeito que Maomé; apenas a perfeição do primeiro situa-se de  certa forma  fora  da série dos seres humanos, não tendo o Cristo um pai  humano.  O Profeta,  ao contrário,  era inteiramente homem, do lado paterno  e  do  lado materno.  Desnecessário  dizer que estas considerações não comportam  nenhuma ingerência  no sentido do dogma cristão, que afirma a humanidade  perfeita  do Cristo.
[96]             Palavras do Profeta.
[97]             Ele é chamado "Selo dos Profetas", porque não há mais profetas após dele, até o fim do ciclo atual da humanidade. A função de "selo" implica a  síntese daquilo que o precede: a mensagem de Maomé confirma e resume as  dos  profetas precedentes.  Por sua  realidade espiritual,  portanto  "interior",  Maomé identifica-se necessariamente com o Verbo eterno; por outro lado, seu papel cíclico "termina" [completa a manifestação terrestre do  Verbo]. Esta polaridade  dos dois aspectos principial e temporal do Profeta  situa-se numa outra "dimensão" cósmica  do que a das duas "descidas" do Cristo, das quais  a primeira  anuncia o fim do ciclo presente, enquanto a segunda abrirá  o  ciclo futuro.

[98]             Fard significa ao mesmo tempo "singular" e "ímpar".  O primeiro número ímpar  é três, sendo a unidade não um  número, mas o princípio mesmo da  série dos  números. O primeiro ternário metafísico é o do Conhecedor (al-'aqil),  do Conhecido (al-ma'qul) e do Conhecimento (al-'aql); o primeiro ternário cósmico é  o  da Pena (a essência ativa), da Tábua (a substância passiva) e  do  Livro Universal (seu produto comum).
[99]             De sorte que o símbolo comporta uma essência, uma forma aparente e o que liga uma à outra. O significado lógico do símbolo coincide com a sua  essência ontológica.
[100]            Metáfora árabe que significa "consolação".
[101]            Não é na sua essência que a mulher é uma parte do  homem, sua essência sendo independente da polaridade dos sexos, mas na sua determinação  cósmica, que é hierarquicamente inferior à do homem
[102]            Corão, XV, 29.
[103]            Segundo palavras do Profeta.
[104]            Corão, XLVII, 33.
[105]            É o que constitui a diferença entre o espírito transcendente e o espírito vital, a qualidade ígnea sendo coexistente à vida individual,  sutil  e física.  
[106]            Corão, XX, 8-10.
[107]            "O Clemente (ar-rahman) assenta-se sobre o trono" (Corão, XX, 4); ora,  o trono  simboliza  a  manifestação integral; é, portanto sob  este aspecto  de Beatitude-Misericórdia  (ar-rahmaniyah)  que Deus "desenrola"  a  manifestaçao universal. Sobre a teoria do Hálito divino, ver "Introduction  aux  doctrines ésotériques de l'Islam", p. 69.
[108]            Corão, II, 30-34.
[109]            A  contemplação (shahadah ou mushahadah) implica numa  certa polaridade entre  sujeito e objeto; polaridade que somente o Conhecimento essencial  pode ultrapassar; mas nesse caso, não existe mais nem sujeito individual nem  mundo objetivo.
[110]            Corão, XXXII, 4.
[111]            Segundo o comentador an-Nabulusi, a forma coletiva exprime  sempre a passividade.
[112]            Vale dizer como "acoplamento" das premissas, que engendra a conclusão.
[113]            Sendo a Realidade divina simultaneamente sujeito e objeto verdadeiros  de todo ato primordial.
[114]            Pela união, na sua consciência espiritual, dos complementares primordiais.
[115]            Nos Futuhat, Ibn'Arabi assinala que a mulher é virtualmente capaz das mesmas perfeições espirituais que o homem, o que é provado pela existência  de mulheres  "perfeitas  como  a mãe do Cristo, a esposa do Faraó e  a  filha  do Profeta; é a condição cósmica das mulheres que é inferior à do homem;  também as  mulheres  espiritualmente  perfeitas são mais raras  que  os  homens  que atingiram esta perfeição.
[116]            Corão, II, 228.
[117]            Corão, XX, 52.
[118]            Daí resulta que para Ibn 'Arabi a Natureza universal (tabi’at al-kull)  é análoga ao que os Hindus designam como Prakriti, enquanto que a materia  prima (al-jawhar  al-hayulani) não corresponde senão à substância plástica do  mundo formal, assim como o entendem os cosmólogos helenizantes.
[119]            Corão, XCVI, 4.
[120]            Al-Qashani observa que o macho corresponde à determinação, enquanto que a natureza  feminina é relativamente indeterminada, a partir do momento  em  que ela se aparenta à substância receptiva não formada; é este aspecto da natureza feminina  que  o simbolismo verbal transpõe por analogia  inversa à  Natureza principial, cuja realidade ultrapassa toda determinação ou forma.
[121]            Literalmente:  da  "existenciação"  (takwin);  trata-se  das  expirações (anfas)  da  Misericórdia  divina que  "dilata"  (naffasa) as possibilidades susceptíveis de existência.
[122]            Segundo as palavras do Profeta: "Dizei de mim: o servidor ('abd) de Deus e  Seu enviado, para que não incidais no exagero que as pessoas manifestam  em relação a meu irmão Jesus".
[123]            Corão, XL, 15.
[124]            Corão, XX, 4.
[125]            O  Trono  (al-'arsh)  "engloba  todas  as  coisas";  ele simboliza a manifestação universal tomada no seu total desabrochar, que comporta o equilíbrio e a harmonia; ele é o suporte da manifestação gloriosa de Deus, da Misericórdia-Beatitude (ar-rahmaniyah). Embora intemporal do ponto de vista divino, o desenvolvimento total do cosmo apresenta-se relativamente como seu acabamento final. O trono divino está "sobre as águas" (Corão, XI, 9), ou seja ele  domina o conjunto das potencialidades cósmicas ou o oceano da substância primordial;  isto lembra o símbolo hindu e búdico do lótus que desabrocha  na superfície da água e que é ao mesmo tempo a imagem do universo e o assento  da Divindade   revelada. Essencialmente,  o  Trono identifica-se  ao   Espírito Universal. Segundo o ponto de vista do sufismo, cada coisa, considerada na sua natureza  primordial, é  o Trono de Deus. Em  particular,  é o coração  do contemplativo  que se identifica ao Trono, assim como o lótus,  no  simbolismo hindu-búdico, identifica-se ao coração.
[126]            Ou seja: desde que se a considere na sua particularidade distintiva, que é, seja conforme, seja contrária às perfeições do Ser.
[127]            Por que esta essência provém de uma necessidade cósmica, de uma "idéia" platônica.
[128]            Corão, XV, 26.
[129]            Corão, XXIX, 52.
[130]            Ibn 'Arabî pensa aqui no sentido que se dá "de fato" à palavra "mal", e não  ao  que  se deveria "em princípio" lhe atribuir. É em  todo caso de  se admirar  que  Ibn’Arabi  não  precise esta nuance,  ou  que  o faça  apenas implicitamente  em dizendo  que  aquele que não distingue  o  bem  do  mal  é desprovido de inteligência. Se os anjos tem uma aversão pelo homem, é por  uma razão  objetiva, sendo a "luz" da qual foram criados mais conforme ao  Ser  do que a "argila putrefata".
[131]            O  mal é  "bom",  não na medida em que se opõe  ao  bem, mas por seu fundamento  ontológico,  que é forçosamente positivo, na sua causalidade  que implica necessariamente em fatores positivos, e finalmente na sua  necessidade cósmica.
[132]            Segundo  a metáfora árabe, os olhos se refrescam quando a amargura e o abrasamento das lágrimas cessa.
[133]            Corão, II, 147.
[134]            Corão, I.
[135]            Conforme às  palavras do Profeta: "Em verdade, Deus  está presente na qiblah de cada um de vós"; o comentador an-Nabulusi ajunta: "Esta concentração imaginativa  não é contrária à fé quando é exercida  conscientemente,  sabendo que  se  é  impotente em compreender a Deus pela imaginação; pois  é  dito  no Corão: Nós não impomos a cada alma senão a obrigação de que ela é capaz"  (II, 286; VI, 153: VII, 40).
[136]            Corão, XXIX, 44.
[137]            Ibid.
[138]            Ibid.
[139]            “Nisto  há  verdadeiramente uma advertência para aquele que possui um coração, ou que empresta o ouvido e que é testemunha (ou: consciente)”  (Corão, XL, 36).
[140]            Segundo o comentador al-Qashani, os três movimentos "existenciais" que traçam os gestos do fiel e as tendências naturais das três categorias de seres orgânicos,  são rincipialmente:  o movimento criador  descendente,  que  se distancia  por  assim dizer do Princípio para estabelecer  os fundamentos  do universo,  depois o movimento criador ascendente, que faz eclodir os graus  da manifestação a partir de sua base "material", e enfim o movimento de  expansão "horizontal"  da  manifestação  em seus diversos níveis  de atualidade.  Isto corresponde  rigorosamente às três tendências universais que os hindus  chamam gunas.
[141]            Corão, LXXV, 14-15.
[142]            Vale dizer que Ele nos abençoa, tendo o verbo çalla o duplo sentido de "rezar" e de "abençoar".
[143]            Ou seja: nós viemos "depois", porque nossa prece pressupõe alguém a quem se dirija, a saber, Deus.
[144]            Vale dizer: que limita ou restringe, que determina o conteúdo em função do receptáculo.
[145]            Corão, XXIV, 41.
[146]            Corão, XVII, 46.

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