quinta-feira, 1 de outubro de 2015

René Guénon - Os Estados Múltiplos do Ser - Parte II

X
OS CONFINS DO INDEFINIDO


Embora tenhamos falado de uma hierarquia das faculdades individuais, convém nunca perder de vista que elas estão todas compreendidas na extensão de um único e mesmo estado do ser total, ou seja no plano horizontal da representação geométrica do ser, tal como expusemos em nosso estudo anterior (*), enquanto que a hierarquia dos diferentes estados é marcada por sua superposição segundo a direção do eixo vertical da mesma representação. A primeira destas duas hierarquias não ocupa portanto, propriamente falando, nenhum lugar na segunda, pois seu conjunto reduz-se aí a um único ponto (o ponto de encontro do eixo vertical com o plano correspondente ao estado  considerado); em outros termos, a diferença das modalidades individuais, por se referirem apenas ao sentido da “amplidão”, é rigorosamente nula segundo o sentido da “exaltação” (1).

Não se deve esquecer, por outro lado, que a “amplidão”, no desabrochar integral do ser, é tão indefinida quanto a “exaltação”; e é isto que nos permite falar da indefinidade das possibilidades de cada estado, mas, bem entendido, sem que esta indefinidade deva ser interpretada como supondo alguma ausência de limites. Já nos explicamos suficientemente a respeito quando estabelecemos a distinção entre o Infinito e o Indefinido, mas podemos fazer intervir aqui uma representação geométrica de que ainda não falamos: num plano horizontal qualquer, os confins do indefinido são marcados pelo círculo-limite ao qual alguns matemáticos deram o nome, por sinal absurdo, de “reta do infinito” (2), e o círculo não se fecha em nenhum de seus pontos sendo um grande círculo (seção por um plano diametral) do esferóide indefinido cujo desdobramento abarca a integralidade da extensão, representando a totalidade do ser (3). Se agora considerarmos, em seu plano, as modificações individuais partes de um ciclo qualquer exterior ao centro (ou seja sem identificação com este segundo o raio centrípeto) e propagando-se indefinidamente em modo vibratório, sua chegada ao círculo-limite (segundo o raio centrífugo) corresponderá à sua máxima dispersão, mas, ao mesmo tempo, será o ponto de detenção de seu movimento centrífugo. Este movimento, indefinido em todos os sentidos, representará a multiplicidade dos pontos de vista parciais, fora da unidade do ponto de vista central, de onde entretanto eles procederam todos como os raios emanados do centro comum, e que constituirá assim sua unidade essencial e fundamental, mas não atualmente realizada em relação à sua via de exteriorização gradual, contingente e multiforme, na indefinitude da manifestação.

Falamos aqui de exteriorização colocando-nos do pont de vista da própria manifestação; mas não devemos esquecer que toda exteriorização é, como tal, essencialmente ilusória, porque, como já dissemos, a multiplicidade, que está contida na unidade sem que esta seja afetada, jamais pode sair dela realmente, o que implicaria uma “alteração” (no sentido etimológico) em contradição com a imutabilidade principial (4). Os pontos de vista parciais, em multitude indefinida, que são todas as modalidades de um ser em cada um de seus estados, não passam em suma de aspectos fragmentátios do ponto de vista central (fragmentação também ilusória, sendo este ponto de vista central essencialmente indivisível na realidade, pelo fato de que a unidade não tem partes), e sua “reintegração” na unidade deste ponto de vista central e principial é propriamente uma “integração” no sentido matemático do termo: ela não poderia extrair senão os elementos que, num dado momento, tivessem sido verdadeiramente isolados de sua soma, ou que tivessem sido assim considerados de outro modo que não por uma simples abstração. É verdade que esta abstração nem sempre é efetuada conscientemente, porque ela é uma conseqüência necessária da restrição das faculdades individuais sob tal ou tal de suas modalidades específicas, modalidades que só podem ser realizadas pelo ser que se coloca em um ou outro destes pontos de vista parciais de que tratamos.

Estas poucas observações podem ajudar a fazer compreender como se deve considerar os confins do indefinido, e como sua realização é um fator importante na unificação efetiva do ser (5). É preciso aliás reconhecer que sua concepção, mesmo simplesmente teórica, não é isenta de dificuldades, e é normal que seja assim, pois o indefinido é precisamente aquilo culos limites foram recuados até os perdermos de vista, ou seja até que eles escapem ao alcance de nossas faculdades, ao menos no seu exercício normal; mas, sendo estas faculdades também susceptíveis de uma extensão indefinida, não é em virtude de sua natureza própria que o indefinido as ultrapassa, mas apenas em virtude de uma limitação de fato devida ao grau de desenvolvimento existente na maior parte do seres humanos, de modo que não existe nesta concepção nenhuma impossibilidade, assim como tampouco ela nos faz sair da ordem das possibilidades individuais.

Seja como for, para fornecer a este respeito maiores detalhes, seria preciso considerar mais particularmente, a título de exemplo, as condições específicas de um determinado estado de existência, ou, para falarmos mais rigorosamente, de uma dada modalidade definida, tal como a que constitui a existência corporal, coisa que não podemos fazer dentro dos limites desta exposição; sobre esta questão, remeteremos, como já fizemos outras vezes, ao estudo que nos propomos a consagrar inteiramente a respeito das condições da existência corporal.




















NOTAS



(*) O Simbolismo da Cruz
1.      Sobre o significado destes termos emprestados ao esoterismo islâmico, ver O Simbolismo da Cruz, cap. III.
2.      Esta denominação deriva do fato de que um círculo cujo raio cresce indefinidamente tem como limite uma reta; e, em geometria analítica, a equação do círculo-limite em questão, e que é o lugar de todos os pontos do plano indefinidamente distantes do centro (origem das coordenadas), reduz-se efetivamente a uma equação do primeiro grau, como a de uma reta.
3.      Ver O Simbolismo da Cruz, Cap. XX.
4.      Sobre a distinção do “interior” e do “exterior” e os limites dentro dos quais ela é válida, ver ibid., cap. XXIX.
5.      Isto deve ser relacionado ao que já dissemos, que é na plenitude da expansão que se obtém a perfeita homogeneidade, assim como, inversamente, a extrema distinção não é realizável senão na extrema universalidade (ibid., cap. XX).

XI
PRINCÍPIOS DE DISTINÇÃO
ENTRE OS ESTADOS DE SER


Até aqui, no que concerne mais especificamente ao ser humano, consideamos sobretudo a extensão da possibilidade individual, a única que de resto constitui o estado propriamente humano; mas o ser que possui este estado possui também, ao menos virtualmente, todos os outros estados, sem os quais não se poderia tratar do ser total. Se considerarmos todos estes estados em suas relações com o estado individual humano, podemos classificá-los em “pré-humanos” e “pós-humanos”, mas sem que o emprego destes termos dva absolutamente sugerir a ideia de uma sucessão temporal; aqui só se pode falar de “antes” e “depois” de modo simbólico (1), e trata-se de uma ordem de conseqüência puramente lógica, ou melhor lógica e ontológica, nos diversos ciclos de desenvolvimento do ser, pois, metafisicamente (ou seja do ponto de vista principial), todos estes ciclos são essencialmente simltâneos, e não podem se tornar sucessivos senão acidentalmente de certo modo, tendo em vista certas condições específicas de manifestação. Insistimos mais uma vez sobre este ponto, que a condição temporal, por mais generalizada que se possa supor sua concepção, só é aplicável a alguns ciclos e a alguns estados particulares, como o estado humano, ou mesmo a algumas modalidades destes estados, como a moddalidade corporal (certos prolongamentos da individualidade humana podem escapar ao tempo, sem por isso sair da ordem das possibilidades individuais), e que ela não pode de modo algum intervir na totalização do ser (2). O mesmo acontece aliás para a condição espacial ou para não importa qual outra das condições às quais estamos atualmente submetidos enquanto seres individuais, assim como para aquelas às quais estão também submetidos todos os demais estados de manifestação compreendidos na integralidade do domínio da Existência universal.

Certamente é legítimo estabelecer, como indicamos, uma distinção no conjunto dos estados do seres reportando-os ao estado humano, quer os chamemos logicamente anteriores ou posteriores, ou ainda superiores ou inferiores a este, e mostramos desde o início as razões que justificam esta distinção; mas, a bem dizer, este não passa de um ponto de vista particular, e o fato de que ele é presentemente o nosso não deve iludir-nos a respeito; assim, em todos os casos em que não seja indispensável colocarmo-nos deste ponto de vista, será melhor recorrer a um princípio de distinção que seja de ordem mais geral e que apresente um caráter mais fundamental, sem esquecer jamais, de resto, que toda distinção é forçosamente algo contingente. A distinção mais principial de todas, e a que é mais susceptível da aplicação mais universal, é a dos estados de manifestação e dos estados de não-manifestação, que desde o começo do presente estudo colocamos antes de todas as outras, por ser ela de importância capital para todo o conjunto da teoria dos estados múltiplos. Entretanto, pode acontecer às vezes considerarmos uma distinção de alcance mais restrito, como a que podemos estabelecer, por exemplo, ao nos referirmos não mais à manifestação universal em sua integralidade, mas simplesmente a alguma das condições gerais ou específicas de existência que nos são conhecidas: dividiremos então os estados do ser em duas categorias, segundo sejam ou não submetidos à condição em questão, e, em todos os casos, os estados de não-manifestação, por serem incondicionados, entrarão necessariamente na segunda destas categorias, aquela cuja determinação for puramente negativa. Aqui, teremos então, de uma parte, os estados compreendidos no interior de um domínio determinado, seja ele mais ou menos extenso, e de outra, todo o resto, ou seja todos os estados que estiverem fora deste mesmo domínio; existe, por conseguinte, uma certa assimetria e como que uma desproporção entre estas duas categorias, das quais apenas a primeira é realmente delimitada, e isto qualquer que seja o elemento característico que sirva para determiná-las (3). Para termos uma representação geométrica disto, podemos, dada uma curva qualquer traçada sobre um plano, considerar esta curva como dividindo o pano inteiro em duas regiões: uma situada no interior da curva, que a envolve e delimita, e outra estendendo-se a tudo o que é exterior à mesma curva; a primeira das duas regiões é definida, enquanto que a segunda é indefinida. As mesmas considerações aplicam-se a uma superfície fechada na extensão tridimensional, que tomamos para simbolizar a totalidade do ser; mas convém frisar que, também neste caso, uma região é estritamente definida (ainda que compreenda sempre uma indefinidade de pontos) uma vez que a superfície é fechada, enquanto que, na divisão dos estados do ser, a categoria que é susceptível de uma determinação positiva, portanto de uma delimitação efetiva, não deixará de comportar, por restrita que a suponhamos em relação ao conjunto, possibilidades de desenvolvimento indefinido. Para evitar esta imperfeição da representação geométrica, basta levantar a restrição que nos impomos ao considerarmos uma superfície fechada, à exclusão de uma superfície não fechada: indo aos confins do indefinido, com efeito, uma linha ou uma superfície, qualquer que seja, é sempre redutível a uma curva ou uma superfície fechada (4), de modo que podemos dizer que ela divide o plano ou a extensão em duas regiões, que podem ambas ser indefinidas em extensão, e das quais no entanto apenas uma, como precedentemente, é condicionada por uma determinação positiva resultando das propriedades da curva ou da superfície considerada.

No caso em que se estabelece uma distinção reportando o conjunto dos estados a um dentre eles, seja o estado humano ou qualquer outro, o princípio determinante é de natureza diferente daquele que acabamos de indicar, pois não se pode relacioná-lo simplesmente à afirmação ou à negação de uma certa condição (5). Em termos  geométricos, será preciso agora considerar a extensão como dividida em dois pelo plano que representa o estado tomado como base ou como termo de comparação; aquilo que está situado de um lado ou de outro do que consideramos, e que apresenta então uma espécie de simetria ou de equivalência que não havia no caso precedente. Esta distinção é a que já expusemos, sob sua forma mais geral, a propósito da teoria hindu das três gunas (6): o plano que serve de base é indeterminado em princípio, e ele pode ser aquele que representa um estado incondicionado qualquer, de sorte que é apenas secundariamente que o determinamos como representando o estado humano, quando pretendemos nos colocarmos do ponto de vista deste estado em particular.

Por outro lado, pode ser vantajoso, particularmente para facilitar as aplicações corretas da analogia, estender esta última representação a todos os casos, mesmo àqueles aos quais ela parece não convir diretamente conforme às considerações precedentes. Para obtermos este resultado, basta evidentemente representar como um plano de base aquilo pelo que se detetrmina a distinção que se quer estabelecer, qualquer que seja seu princípio: a parte da extensão que situa-se abaixo do plano poderá representar o que está submetido à condição considerada, e a que fica acima representará o que não está submetido àquela mesma determinação. O único inconveniente de uma tal representação é que as duas regiões da extensão parecem ser igualmente indefinidas, e do mesmo modo; mas podemos destruir esta  simetria vendo o plano de separação como o limite de uma esfera cujo centro está indefinidamente distanciado segundo a direção descendente, o que nos conduz na realidade ao primeiro modo de representação, pois este não passa de um caso particular desta redução a uma superfície fechada a que aludimos há pouco. Em suma, basta lembrar qua a aparência de simetria, em tal caso, não se deve mais do que a um certa imperfeição do símbolo empregado; e, de resto, pode-se sempre passar de uma representação a outra quando houver maior comodidade ou vantagens de outra ordem, pois, em razão mesmo desta imperfeição inevitável pela própria natureza das coisas, uma única representação é normalmente insuficiente para responder integralmente (ao menos sem outra reserva do que a do inexprimível) uma concepção do tipo de que se trata aqui.

Embora, de um modo ou de outro, dividamos os estados do ser em duas categorias, á claro que não existe aí nenhum tipo de dualismo, pois esta divisão se faz através de um princípio único, tal como uma dada condição de existência, e assim não há senão uma determinação que é vista a um tempo positiva e negativamente. De resto, para rejeitarmos toda suspeita de dualismo, por injustificada que seja, basta observar que todas estas distinções, longe de serem irredutíveis, só existem do ponto de vista relativo aonde elas foram estabelecidas, e que elas só adquirem esta existência contingente (a única de que são susceptíveis), na medida em que atribuimos a elas nossa concepção. O ponto de vista da manifestação inteira, embora evidentemente mais universal do que os outros, é ainda relativo como eles, pois a própria manifestação é puramente contingente; isto aplica-se então mesmo à distinção que consideramos como a mais fundamental e a mais próxima da ordem principial, a dos estados de manifestação e dos estados de não-manifestação, como já indicamos ao falarmos do Ser e do Não-Ser.




















NOTAS



1.      Cf. O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. XVII. Este simbolismo temporal é por sinal constantemente empregado na teoria dos ciclos, seja ela aplicada ao conjunto dos seres ou a cada um deles em particular; os ciclos cósmicos não são outra coisa que os estados ou graus da Existência universal, ou suas modalidades secundárias quando se trata de ciclos subordinados e mais restritos, que de resto apresentam fases correspondentes às dos ciclos mais amplos nos quais elas se integram, em virtude desta analogia entre a parte e o todo de que já falamos.
2.      Isto é verdadeiro, não apenas para o tempo, mas também para a “duração” vista, segundo algumas concepções, como compreendendo, além do tempo, todos os outros modos possíveis de sucessão, ou seja todas as condições que, em outros estados de existência, possam corresponder analogamente àquilo que é o tempo no estado humano (ver O Simbolismo da Cruz, cap. XXX).
3.      Cf. O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. II.
4.      É assim, por exemplo, que a reta é redutível a uma circunferência e o plano a uma esfera, como limites de uma e outra quando se supõe que seus raios cresçam indefinidamente.
5.      Deve ficar entendido que é a negação de uma condição, ou seja de uma determinação ou de uma limitação, que possui um caráter de positividade do ponto de vista da realidade absoluta, como já explicamos a respeito do emprego de termos em forma negativa.
6.      O Simbolismo da Cruz, cap. V.






XII
OS DOIS CAOS


Dentre as distinções que se fundam sobre a consideração de uma condição de existência, uma das mais importantes, podemos mesmo dizer a mais importante de todas, é a dos estados formais e dos estados informais, porque ela não é outra, metafisicamente, que a distinção entre o individual e o universal, sendo este último visto como compreendendo a um tempo a não-manifestação e a manifestação informal, como já explicamos (1). De fato, a forma é uma condição específica de certos modos da manifestação, e é a este título que ela é, notadamente, uma das condições de existência do estado humano; mas, ao mesmo tempo, ela é propriamente, de modo geral, o modo de limitação que caracteriza a existência individual, e que pode servir-lhe de definição de certo modo. Deve ficar entendido, aliás, que esta forma não é necessariamente determinada coom espacial e temporal, como acontece no caso particular da modalidade corporal humana; ela não pode sê-lo nos estados não-humanos, que não estão submetidos ao espaço e ao tempo, mas a condições totalmente outras (2). Assim, a forma é uma condição comum, não a todos os modos da manifestação, mas ao menos a todos os seus modos individuais, que diferem entre si pela adjunção de tais ou tais outras condições mais particulares; o que faz a natureza própria do indivíduo como tal, é que ele é revestido de uma forma, e tudo o que está sob seu domínio, como o pensamento individual no homem, é igualmente formal (3). A distinção que colocamos é assim, no fundo, a dos estados individuais e dos estados não-individuais (ou supra-individuais), compreendendo os primeiros em su conjunto todas as possibilidades formais, e os segundo todas as possibilidades informais.

O conjunto das possibilidades formais e o das possibilidades informais são o que as diferentes doutrinas tradicionais simbolizam respectivamente pelas “Águas inferiores” e as “Águas superiores” (4); as Águas, de modo geral e no sentido mais amplo, representam a Possibilidade, entendida como a “Perfeição passiva” (5), ou o princípio universal que, no Ser, é determinado como a “substância” (aspecto potencial do Ser); neste último caso, não se trata mais senão da totalidade das possibilidades de manifestação, estando as possibilidades de não-manifestação além do Ser (6). A “superfície das Águas”, ou seu plano de separação, que já descrevemos como o plano de reflexão do “Raio Celeste” (7), marca então o estado no qual opera-se a passagem do individual ao universal, e o símbolo bem conhecido da “marcha sobre as Águas” figura a libertação da forma, ou a liberação da condição individual (8). O ser que chegou ao estado para ele correspondente à “superfície das Águas”, mas sem elevar-se ainda acima desta, acha-se como que suspenso entre dois caos, nos quais tudo ainda não é senão confusão e obscuridade (tamas), até o momento em que se produz a iluminação que determina nele a organização harmônica na passagem da potência ao ato, e pela qual opera-se, como pelo Fiat Lux cosmogônico, a hierarquização que fará brotar a ordem do caos (9).

Esta consideração dos dois caos, correspondentes ao formal e ao informal, é indispensável para a compreensão de um grande número de representações simbólicas e tradicionais (10); por isso a mencionamos especialmente aqui. De resto, embora já tenhamos tratado do assunto em nosso estudo anterior, ele liga-se tão diretamente ao presente objeto que não pudemos deixar de mencioná-lo, ao menos brevemente.


























NOTAS



1.      O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. II.
2.      Ver ibid., cap. XIX, e também O Simbolismo da Cruz, cap. I. “A forma, geometricamente falando, é o contorno: é a aparência do Limite” (Matgioï, La Voie Métaphysique, pg. 85). Podemos defini-la como um conjunto de tendências de direção, por analogia com a equação tangencial da curva; é claro que esta concepção geométrica é transponível na ordem qualitativa. Assinalemos também que podemos fazer intervir estas considerações no que diz respeito aos elementos não individualizados (mas não supra-individuais) do “mundo intermediário”, aos quais a tradição extremo-oriental dá o nome genérico de “inflluências errantes”, e sua possibilidade de individualização temporária e fugitiva, em determinação de direção, pela entrada em relação com a consciência humana (cf. O Erro Espírita, Parte I, cap. VII).
3.      É sem dúvida deste modo que se deve entender o que diz Aristóteles, que o homem (enquanto indivíduo) jamais pensa sem imagens”, ou seja sem formas.
4.      A separação das Águas, do ponto de vista cosmogônico, acha-se descrita no início do Gênese (I, 6-7).
5.      Ver O Simbolismo da Cruz, cap. XXIII.
6.      Cf. O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. V)
7.      O Simbolismo da Cruz, cap. XXIV. – É também, no simbolismo hindu, o plano segundo o qual o Brahmânda ou “Ôvo do Mundo”, no centro do qual reside Hiranyagarbha, divide-se em duas metades; este “Ôvo do Mundo” é de resto representado como flutuando na superfície das Águas primordiais (ver O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, caps. V e XIII).
8.      Nârâyana, que é um dos nomes de Vishnu na tradição hindu, significa literalmente “aquele que caminha sobbre as Águas”; existe aí uma aproximação com a tradição evangélica que impõe-se por si só. Naturalmente, aí como em  toda parte, o significado simbólico não causa nenhum dano ao caráter histórico que existe no segundo fato considerado, fato que, de resto, é tanto menos contestável na medida em que sua realização, que corresponde à obtenção de um certo grau de iniciação efetiva, é bem menos raro do que se supõe normalmente.
9.      Ver O Simbolismo da Cruz, caps. XXIV e XXVII.
10.  Cf. notadamente o simbolismo extremo-oriental do Dragão, que corresponde de certo modo à concepção teológica ocidental do Verbo como “lugar dos possíveis” (ver O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. XVI).


XIII
AS HIERARQUIAS ESPIRITUAIS


A hierarquização dos estados múltiplos na realização efetiva do ser total permite compreender como é preciso considerar, do ponto da metafísica pura, aquilo que se chama vulgarmente de “hierarquias espirituais”. Sob este nome, entende-se normalmente hierarquias de seres diferentes do homem e diferentes entre si, como se cada grau fosse ocupado por seres especiais, limitados respectivamente aos estados correspondentes; mas a concepção dos estados múltiplos nos dispensa de colocarmo-nos deste ponto de vista, que pode ser muito legítimo para a teologia ou para outras ciências ou especulações particulares, mas que nada tem de metafísico. No fundo, pouco nos importa em si mesmo a existência de seres extra-humanos e supra-humanos, que certamente podem ser de uma indefinidade de tipos, quaisquer que sejam as denominações pelas quais os designamos; se temos toda razão em admitir esta existência (nem que seja porque vemos também seres não-humanos no mundo que nos cerca, e que por conseguinte devem existir em outros estados seres que não passam pela manifestação humana, mesmo que sejam apenas aqueles que são representados neste mundo por essas individualidades não-humanas), não temos entretanto nenhum motivos para nos ocuparmos deles em particular, tanto quanto do seres infra-humanos, que existem igualmente e que poderiam ser vistos da mesma forma. Ninguém sonharia em fazer da classificação detalhada dos seres não-humanos do mundo terrestre objeto de um estudo metafísico ou supostamente metafísico; não vemos porque teria que ser diferente apenas pelo fato de que se trata de seres existentes em outros mundos, ou seja que oupam outros estados, os quais, por superiores que possam ser em relação ao nosso, nem por isso deixam de fazer parte, da mesma forma, do domínio da manifestação universal. Apenas, é fácil entender que os filósofos que pretenderam limitar o ser a um único estado, considerando o homem, em sua individualidade mais ou menos extensa, como constituindo um todo completo em si mesmo, se entretanto eles chegam a pensar vagamente, por qualquer razão, que existem outros graus na Existência universal, não puderam conceber estes graus senão como o domínio de seres inteiramente estranhos para nós, salvo naquilo que possa haver de comum entre todos os seres; e, ao mesmo tempo, a tendência antropomótfica muitas vezes levou-os a exagerar a comunhão de naturezas, emprestando a estes seres faculdades não simplesmente análogas, mas similares e mesmo idênticas às que pertencem propriamente ao homem individual (1). Na realidade, os estados em questão são incomparavelmente mais diferentes do estado humano do que qualquer filósofo do Ocidente moderno jamais pode conceber, mesmo de longe; mas, apesar disto, estes mesmos estados, quaisquer que possam ser os seres que os ocupam atualmente, podem ser igualmente realizados por todos os outros seres, inclusive por aquele que é ao mesmo tempo um ser humano em outro estado de manifestação, sem o que, como já dissemos, não se poderia falar de totalização de nenhuma maneira, pois esta totalização deve, para ser efetiva, compreender necessariamente todos os estados, tanto de manifestação (formal e informal) quanto de não-manifestação, cada qual segundo o modo pelo qual o ser considerado é capaz de o realizar. Já notamos que quase tudo o que é dito teologicamente dos anjos pode ser dito metafisicamente dos estados superiores do ser (2), assim como, no simbolismo astrológico da idade média, os “céus”, ou seja as diferentes esferas planetárias e estelares, representam estes mesmos estados, e também os graus iniciáticos aos quais corresponde sua realização (3); e, como os “céus” e os “infernos”, os Dêvas e os Asuras, na tradição hindu, representam respectivamente os estados superiores e inferiores em relação ao estado humano (4). Bem entendido, tudo isso não exclui nenhum dos modos de realização que podem ser próprios a utros seres, do mesmo modo como existem os que são próprios ao ser humano (na medida em que seu estado individual é tomado como ponto de partida e por base da realização); mas esses modos que nos são alheios não nos importam assim como não nos importam todas as formas que jamais seremos chamados a realizar (como as formas animais, vegetais e minerais do mundo corporal), porque elas já são realizadas por outros seres na ordem da manifestação universal, cuja indefinidade exclui toda repetição (5).

Resulta do que dissemos que, por “hierarquias espirituais”, não podemos entender propriamente nada de diferente do que o conjunto de estados do ser que são superiores à individualidade humana, e mais especialmente os estados informais ou supra-individuais, estados que devemos aliás ver como realizáveis para o ser a partir do estado humano, e isto inclusive no decurso de sua existência corporal e terrestre. Com efeito, esta realização esta essencialmente implicada na totalização do ser, portanto na “Libertação” (Moksha ou Mukti), pela qual o ser é liberto dos laços de qualquer condição particular de existência, e que, não sendo susceptível de diferentes graus, é tão completa e tão perfeita quer seja obtida como “libertação em vida” (jîvan-mukti), quer como “libertação além da forma” (videha-mukti), como já tivemos ocasião de explicar (6). Da mesma forma, tampouco pode haver nenhum grau espiritual que seja superior ao do Yogî, pois este, tendo chegado à esta “Libertação”, que é ao mesmo tempo a “União” (Yoga) ou a “Identidade Suprema”, não tem mais nada a obter ulteriormente; mas, se o objetivo a ser atingido é o mesmo para todos os seres, é claro que cada qual o atinge segundo a sua “via pessoal”, portanto atrav’s de modalidades susceptíveis de variações indefinidas. Compreendemos por conseguinte que haja, no decurso desta realização, etapas múltiplas e diversas, que podem de resto ser percorridas sucessiva ou simultaneamente segundo o caso, e que, por se referirem ainda a estados detetrminados, não devem ser confundidas com a liberação total que é seu fim e objetivo supremo (7): trata-se de graus que podemos considerar nas “hierarquias espirituais”, qualquer que seja a classificação mais ou menos geral que se estabeleça, quando cabível, na indefinidade de suas modalidades posíveis, e que dependerá naturalmente do ponto de vista no qual se esteja colocado mais particularmente (8).

Existe aqui uma observação essencial a fazer: os graus d que falamos, representando estados que são ainda contingentes e condicionados, não importam metafisicamente em si mesmos, mas apenas em vista do objetivo para o qual tendem todos, precisamente na medida em que são vistos como graus, constituindo apenas como que uma preparação para tal. Não existe de resto nenhuma medida comum entre um estado particular qualquer, por elevado que seja, e o estado total e incondicionado; jamais devemos perder de vista que, diante do Infinito, toda a manifestação é rigorosamente nula, e as diferenças entre os estados que fazem parte dela o são evidentemente também, por consideráveis que sejam em si mesmas quando consideramos apenas os estados condicionados que elas separam uns dos outros. Se a passagem a certos estados superiores constitui de certa forma, relativamente ao estado tomado como ponto de partida, uma espécie de encaminhamento rumo à “Libertação”, deve entretanto ficar entendido que esta, uma vez realizada, implicará sempre uma descontinuidade em relação ao estado no qual se encontre atualmente o ser que a obterá, e que, qualquer que seja este estado, esta descontinuidade não será nem mais nem menos prounda, porque, em todos os casos, não haverá, entre o estado do ser “não-liberto” e o do ser “liberto”, nenhuma relação comoa que existe entre diferentes estados condicionados (9).

Em razão da equivalência de todos os estados diante do Absoluto, uma vez que o objetivo final é atingido em um ou outro destes graus, o ser não  tem nenhuma necessidade de have-los percorrido a todos previamente, e aliás ele os possui todos “por acréscimo”, por assim dizer, porque gtrata-se aí de elementos integrantes de sua totalização. Por outro lado, o ser que possui assim todos os estados poderá sempre evidentemente, ser visto mais particularmente em relação a um qualquer destes estados e como se ele estivesse aí efetivamente “situado”, embora ele esteja verdadeiramente além de todos os estados e que eles os contenha todos em si msmo, longe de podr ser contido em algum deles. Podemos dizer que, em tal caso, tratar-se-á aí simplesmente de aspectos diversos que constituirão de certa forma outras tantas “funções” deste ser, sem que este seja afetado por suas condições, que não existem mais para ele senão em modo ilusório, pois, na medida em que ele é verdadeiramente “si”, seu estado é essencialmente incondicionado. É assim que a aparência formal, mesmo a corporal, pode subsistir para o ser que foi “liberto em vida” (jîvan-mukta), e que, “durante sua residência no corpo, não mais é afetado por suas propriedades, como o firmamento não é afetado pelo que flutua em seu seio” (10); e ele permanece igualmente “não-afetado” por todas as outras contingências, qualquer que seja o estado, individual ou supra-individual, vale dizer formal ou informal, aos quais elas se refiram na ordem da manifestação, que, no fundo, não é em si mesma senão a soma de todas as contingências.

























NOTAS



1.      Se os estados “angélicos” são os estados supra-individuais que consntituem a manifestação informal, não podemos atribuir aos anjos nenhuma das faculdades que são de ordem puramente individual; por exemplo, como dissemos mais acima, não podemos supô-los como dotados de razão, que é característica exclusiva da individualidade humana, e eles podem não ter senão um modo de inteligência puramente intuitiva.
2.      O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. X. – O tratado De Angelis de São Tomás de Aquino é particularmente característico a este respeito.
3.      L’Esotérisme de Dante, pgs. 10 e 58-61.
4.      O Simbolismo da Cruz, cap. XXV.
5.      Cf. ibid., cap. XV.
6.      O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. XXIII.
7.      Cf. ibid., caps. XXI e XXII.
8.      Estas “hierarquias espirituais”, na medida em que os diversos estados que elas comportam são realizados pela obtenção respectiva dos graus iniciátios efetivos, correspondem ao que o esoterismo islâmico chama de “categorias da iniciação” (Tartîbut-taçawuf); assinalaremos a respeito em especial o tratado de Mohyiddin ibn Arabî que tem este título.
9.      Ver O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. XX.
10.  Atmâ-Bodha de Shankarâchârya (ver ibid., cap. XXIII).







XIV
RESPOSTA ÀS OBJEÇÕES TIRADAS DA PLURALIDADE DOS SERES


No que precede, existe um ponto que poderia prestar-se a uma objeção, embora, a bem dizer, já a tenhamos respondido em parte, ao menos implicitamente, pelo que expusemos a propósito das “hierarquias espirituias”. Esta objeção é a seguinte: dado que existe uma indefinidaqde de modalidades que são realizadas por seres diferentes, é realmente legítimo falar-se em totalidade para cada ser? Podemos responder a isto, primeiramente, lembrando que assim colocada a objeção só se aplica evidentemente aos estados manifestados, porque, no não-manifestado, não se poderia tratar de nenhum tipo de distinção real, de tal sorte que, do ponto de vista destes estados de não-manifestação, o que pertence a um ser pertence igualmente a todos, na medida em que eles efetivamente realizaram estes estados. Ora, se considerarmos deste ponto de vista todo o conjunto da manifestação, ele não constitui, em razão de sua contingência, mais do que um simples “acidente”  no sentido próprio do termo, e, por conseguinte, a importância de tal ou tal de suas modalidades, considerada em si mesma e “distintivamente”, é assim rigorosamente nula. Ademais, como o não-manifestado contém em princípio tudo aquilo que faz a realidade profunda e essencial das coisas que existem sob qualquer modo da manifestação, isto sem o que o manifestado não teria mais do que uma existência puramente ilusória, podemos dizer que o ser que chegou efetivamente ao estado de não-manifestação possui por isso mesmo todo o resto, e que ele o possui verdadeiramente “por acréscimo”, do mesmo modo como, conforme dissemos no capítulo anterior, ele possui todos os estados ou graus intermediários, mesmo sem tê-los percorrido préviamente e distintivamente.

Esta resposta, na qual não consideramos senão o ser que atingiu a realização total, é plenamente satisfatória do ponto de vista puramente metafísico, e é mesmo a única que pode ser de fato suficiente, pois, se não considerarmos o ser desta maneira, se nos colocarmos em outro caso que não este, não haverá mais sentido em falar em totalidade, de sorte que a própria objeção não mais poderá aplicar-se. O que é preciso dizer, em suma, tanto aqui como para as objeções concernentes à existência da multiplicidade, é que o manifestado, considerado como tal, ou seja sob o aspecto da distinção que o condiciona, não é nada diante do não-manifestado, pois não pode haver nenhuma medida comum entre um e outro; o que é absolutamente real (sendo todo o reston ilusório, no sentido de uma realidade que não é mais do que derivada e como que “participada”), é, mesmo para as possibilidades que comporta a manifestação, o estado permanente e incondicionado sob o qual elas pertencem, principial e fundamentalmente, à ordem da não-manifestação.

Entretanto, embora isso seja suficiente, trataremos agora ainda de um outro aspecto da questão, no qual consideraremos o ser como tendo realizado, não mais a totalidade do “Si” incondicionado, mas apenas a integralidade de um certo estado. Neste caso, a objeção precedente deve tomar uma nova forma: como é possível consinderar esta totalidade para apenas um ser, enquanto que o estado em questão constitui um domínio que lhe é comum com uma indefinidade de outros seres, na medida em que estes estão igualmente submetidos às condições que caracterizam e determinam este estado ou este modo de existência? Não se traata mais da mesma objeção, mas apenas de uma objeção análoga, guardadas as proporções entre os dois casos, e a resposta deve ser também análoga: para o ser que chegou a colocar-se efetivamente do ponto de vista central do estado considerado, o que é a única maneira possível de realizar sua integralidade, todos os outros pontos de vista, mais ou menos particulares, não importam mais para ele na medida em que são tomados distintamente, porque ele unificou-os todos neste ponto de vista central; é portanto na unidade deste que eles existem a partir de então para ele, e não mais fora desta unidade, porque a existência da multiplicidade fora da unidade é puramente ilusória. O ser que realizou a integralidade de um estado fez de si mesmo o centro deste estado, e, como tal, podemos dizer que ele preenche este estado inteiro com sua própria irradiação (1): ele assimila tudo o que está contido nele, de modo a fazer disto outras tantas modalidades secundárias de si mesmo (2), mais ou menos comparáveis àquilo que são as modalidades que se realizam no estado de sonho, segundo o que já dissemos antes. Em conseqüência, este ser não é absolutamente afetado, em sua extensão, pela existência que estas modalidades, ou ao menos algumas delas, podem ter além e fora de si mesmo (sendo que esta expressão “fora” não tem mais sentido do seu próprio ponto de vista, mas apenas do ponto de vista dos demais seres, que permaneceram na multiplicidade não unificada), em razão da existência simultânea de outros seres no mesmo estado; e, por outro lado, a existência dessas mesmas modalidades em si mesmo em nada afeta a sua unidade, mesmo tratando-se da unidade ainda relativa que é realizada no centro deste estado em particular. Todo este estado não é realizado senão pela irradiação de seu centro (3), e todo ser que se coloque efetivamente neste centro torna-se igualmente, por isso mesmo, mestre da integralidade deste estado; é assim que a indiferenciação principial do não-manifestado reflete-se no manifestado, e deve ficar bem entendido, de resto, que este reflexo, estando no manifestado, mantém sempre por isso a relatividade que é inerennte a toda existência condicionada.

Estabelecido  isso, entenderemos sem dificuldade que considerações análogas podem ser aplicadas às modalidades compreendidas, a diversos títulos, numa unidad ainda mais relativa, como a de um ser que não realizou senão um certo estado parcialmente, e não integralmente. Um tal ser, como o indivíduo humano por exemplo, sem ter ainda chegado ao seu inteiro desabrochar no sentido da “amplidão” (correspondente ao grau de existência no qual ele está situado), assimilou entretanto para si, numa medida mais ou menos completa, tudo aquilo de que verdadeiramente tenha tomado consciência dentro dos limites de sua extensão atual; e as modalidades acessórias que ele assim agregou, e que são evidentemente susceptíveis de serem acrescentadas constantemente e indefinidamente, constituem uma parrte muito importante desses prolongamentos da individualidade a que já aludimos em diversas ocasiões.





NOTAS



1.      Cf. O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. XVI.
2.      O símbolo da “nutrição” (anna) é frequentemente empregado nos Upanishads para designar esta assimilação.
3.      Isto foi amplamente explicado em nosso estudo sobre O Simbolismo da Cruz.

























XV
A REALIZAÇÃO DO SER PELO CONHECIMENTO


Dissemos que o ser assimila para si mais ou me nos completamente tudo aquilo de que ele toma consciência; com efeito, não existe conhecimento verdadeiro, em qualquer domínio que seja, senão o que nos permite penetrar mais ou menos profundamente na natureza íntima das coisas, e os graus do conhecimento não podem consistir precisamente senão em que esta penetração seja mais ou menos profunda e chegue a uma assimilação mais ou menos completa. Em outros termos, não existe conhecimento verdadeiro senão na medida em que implique uma identificação do sujeito com o objeto, ou, se preferirmos a relação em sentido inverso, uma assimilação do objeto pelo sujeito (1), e na medida precisa em que ele implique efetivamente uma tal identificação ou uma tal assimilação, da qual os graus de realização constituem, por conseqüência, os prórpios graus de conhecimento (2). Devemos então agora, apesar de todas as discussões filosóficas mais ou menos ociosas a que este ponto pode dar lugar (3), dizer que todo conhecimento verdadeiro e efetivo é imediato, e que um conhecimento mediato não pode ter senão um valor puramente simbólico e representativo (4). Quanto à possibilidade mesma de um conhecimento imediato, a própria teoria dos estados múltiplos torna suficientemente compreensível; de resto, pretender colocá-la em dúvida, equivale a provar uma perfeita ignorância dos princípios metafísicos mais elementares, pois, sem este conhecimento imediato, a própria metafísica seria inteiramente impossível (5).

Falamos de idntiicação ou de assimilação, e podemos empregar aqui os dois termos quase que indiferentemente, embora não se reportem exatamente ao mesmo ponto de vista; do mesmo modo, podemos ver o conhecimento como indo ao mesmo do sujeito ao objeto do qual ele toma consciência (ou, mais genericamente e para não nos lmitarmos às condições de certos estados, do qual ele faz uma modalidade secundária de si mesmo) e do objeto ao sujeito que o assimila, e lembraremos a respeito a definição aristotélica do conhecimento, no domínio sensível, como “o ato comum daquele que sente e daquele que é sentido”, que implica efetivamente uma tal reciprocidade da relação (6). Assim, no que diz respeito a este domínio sensível ou corporal, os órgãos dos sentidos são, para o ser individual, as “entradas” do conhecimento (7); mas, de outro  ponto de vista, eles são também as “saídas”, precisamente porque todo conhecimento implica um ato de identificação que parte do sujeito conhecedor na direção do objeto individual, como a emissão de uma espécie de prolongamento exterior de si mesmo. Vale lembrar, de resto, que um tal prolongamento não é exterior senão em relação à individualidade considerada em sua porção mais restrita, pois ele é parte integrante da individualidade extensa; o ser, estendendo-se assim por um desenvolvimento de suas possibilidades, não precisa absolutamente sair de si mesmo, o que, na realidade, não teria nenhum sentido, pois um ser não pode, em caso algum, tornar-se outro do que si mesmo; isto responde diretamente, ao mesmo tempo, à principal objeção dos filósofos ocidentais contra a possibilidade do conhecimento imediato; vemos claramente assim que aquilo que dá origem a uma tal objeção não é senão uma incompreendão metafísica pura e simples, em razão da qual estes filósofos desconhecem as possibilidades do ser, mesmo individual, em sua extensão indefinida.

Tudo isso é verdadeiro a fortiori se, sainda dos limites da individualidade, o aplicamos aos estados superiores: o conhecimento verdadeiro destes estados implica sua possessão efetiva, e, inversamente, é por este connhecimento que o ser toma possessão deles, pois estes dois atos são inseparáveis um do outro, e podemos mesmo dizer que, no fundo, eles são um só. Naturalmente, isto não deve ser entendido senão do conhecimento imediato, o qual, uma vez estendido à totalidade dos estados, comporta em si mesmo sua realização, e que é, por conseguinte, “o único meio de obter a Libertação completa e final” (8). Quanto ao conhecimento que permanece puramente teórico, é evidente que ele não poderia de modo algum equivaler a uma tal realização, e não sendo uma captação imediata de seu objeto, ele não pode ter, como já dissemos, senão um valor simbólico; mas ele não deixa de ser uma preparação indispensável à aquisição do conhecimento efetivo pelo qual, e somente pelo qual, opera-se a realização do ser total.

Devemos insistir particularmente, em todas as ocasiões, sobre esta realização do ser pelo conhecimento, pois ela é totalmente estranha às concepções ocidentais modernas, que não vão além do conhecimento teórico, ou mais exatamente de uma fraca parte deste, e que opõem artificialmente o “conhecer” ao “ser”, como se não fossem as duas faces inseparáveis de uma só e mesma realidade (9); não pode haver metafísica verdadeira para quem não compreenda que o ser se realiza pelo conhecimento, e que ele não pode realizar-se senão desta maneira. A doutrina metafísica pura não tem que se preocupar, por pouco que seja, com todas as “teorias do conhecimento”, penosamente elaboradas pela filosofia moderna; podemos mesmo ver, nestes ensaios de substituir o conhecimento verdadeiro por uma “teoria do conhecimento”, uma real confissão de impotência, certamente inconsciente, da parte desta filosofia, tão completamente ignorante da possibilidade de uma realização efetiva. Por outro lado, o conhecimento verdadeiro, por ser imediato como dissemos, pode ser mais ou menos completo, mais ou menos profundo, mais ou menos adequado, mas não pode ser essencialmente “relativo” como o quer essa filosofia, ou ao menos ele só é relativo na medida em que seus objetos também o sejam. Em outros termos, o conhecimento relativo, metafisicamente falando, não é outra que o conhecimento do relativo e do contingente, ou seja aquele que se aplica ao manifestado; mas o valor desse conhecimento, no interior de seu domínio próprio, é tão grande quanto lhe permite a natureza deste domínio (10), e não é assim que o entendem os que falam da “relatividade do conhecimento”. Fora as considerações dos graus de um conhecimento mais ou menos completo e profundo, graus que não mudam em nada sua natureza essencial, a única distinção que podemos fazer legitimamente, quanto ao valor do conhecimento, é aquela que já indicamos entre o conhecimento imediato e o conhecimento mediato, ou seja entre o conhecimento efetivo e o conhecimento simbólico.






NOTAS



1.      Deve ficar bem entendido que tomamos aqui os termos “sujeito” e “objeto” em seu sentido habitual, para designar respectivamente “aquele que conhece” e “aquilo que é conhecido” (ver O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. XV).
2.      Já asinalamos em diferentes ocasiões que Aristóteles colocou em princípio a identificação pelo conhecimento, mas que esta afrimação, tanto nele quanto em seus continuadores escolásticos, parece ter permanecido puramente teórica, sem que jamais se tenha tirado nenhuma conseqüência no que diz respeito à realização metafísica (ver notadamente Introduction générale à l’étude des doctrines hindoues, 2ª parte, cap. X, e O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. XXIV).
3.      Não fazemos alusão aqui às modernas “teorias do conhecimento”, sobre cuja vacuidade já nos explicamos antes (Introduction générale à l’étude des doctrines hindoues, 2ª  parte, cap. X); voltaremos a isto mais adiante.
4.      Esta diferença é a que existe entre o conhecimento intuitivo e o conhecimento discursivo, de que já falamos suficientemente.
5.      Ver ibid., 2ª parte, cap. V.
6.      Podemos lembrar também que o ato comum a dois seres, segundo o sentido que Aristóteles dá ao termo “ato”, é aquilo pelo que suas naturezas coincidem, e portanto identificam-se ao menos parcialmente.
7.      Ver O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. XII; o simbolismo das “bocas” de Vaishwânara refere-se à analogia da assimilação cognitiva com a assimilação nutritiva.
8.      Atmâ-Bodha de Shankarâchârya (ver ibid., cap. XXII).
9.      Ver ainda Introduction générale à l’étude des doctrines hindoues, 2ª parte, cap. X.
10.  Isto aplica-se mesmo ao simples conhecimento sensível que é também, na ordem inferior e limitada que é a sua, um conhecimento imediato, e portanto necessariamente verdadeiro.
XVI
CONHECIMENTO E CONSCIÊNCIA


Uma conseqüência muito importante do que foi dito até aqui, é que o conhecimento, entendido de modo absoluto e em toda a sua universalidade, não é de nenhuma maneira sinônimo ou equivalente da consciência, cujo domínio é apenas coextensivo ao  de vertos estados de ser determinados, de sorte que é somente nestes estados, à exclusão de todos os demais, que o conhecimento se realiza por meio daquilo que podemos chamar propriamente de uma “tomada de consciência”. A consciência, tal como a entendemos anteriormente, mesmo em sua máxima generalidade e sem restringi-la à sua forma especificamente humana, não passa de um modo contingente e especial de conhecimento sob certas condições, uma propriedade inerente ao ser considerado em certos estados de manifestação; com mais forte razão não se poderia tratar dela em nenhum grau para os estados incondicionados, ou seja para tudo o que ultrapassa o Ser, pois ela sequer é aplicável a todo o Ser. Ao contrário, o conhecimento, considerado em si e independentemente das condições afeitas a qualquer estado em particular, não pode admitir nenhuma restrição, e, para ser adequado à verdade total, ele deve ser coextensivo, não apenas ao Ser, mas à própria Possibilidade universal, devendo portanto ser infinito como esta necessariamente é. Isto equivale a dizer que conhecimento e verdade, assim considerados metafisicamente, não são no fundo outra coisa do que aquilo a que chamamos, numa expressão aliás bastante imperfeita, de “aspectos do Infinito”; e é o que afirma com uma clareza especial esta fórmula que é um dos enunciados fundamentais do Vêdânta: “Brahma é a Verdade, o Conhecimento, o Infinito” (Satyam Jnânan Anantam Brahma) (1).

Quando dissemos que “conhecer” e “ser” são as duas faces de uma mesma realidade, não se deve portanto tomar o termo “ser” senão no seu sentido analógico e simbólico, pois o conhecimento vai além do Ser; acontece aqui o mesmo que no caso em que falamos da realização do ser total, implicando esta realização essencialmente o conhecimento total e absoluto, e não sendo absolutamente distinto deste mesmo conhecimento, na medida em que se trate, bem entendido, do conhecimento efetivo, e não de um simples conhecimento teórico e representativo. E cabe aqui precisar um pouco, por outro lado, o modo como se deve entender a indentidade metafísica do possível e do real: uma vez que todo possível é realizado pelo conhecimento, esta identidade, tomada no  universal, constitui propriamente a verdade em si, pois esta pode ser concebida precisamente como a perfeita adequação do conhecimento com a Possibilidade total (2). Vemos sem dificuldade todas as conseqüências que podemos tirar desta última observação, cujo alcance é imensamente maior do que o de uma definição simplesmente lógica da verdade, pois existe aí toda a diferença entre o intelecto universal e incondicionado (3) e o entendimento humano com suas condições individuais, e também, por outro lado, toda a diferença que separa o ponto de vista da realização daquele de uma “teoria do conheimento”. A própria palavra “real”, habitualmente muito vaga, até mesmo equívoca, e que o é forçosamente para os filósofos que mantém a pretensa distinção do possível e do real, toma assim um valor metafísico, ao ver-se reportada a este ponto de vista da ralização (4), ou, para falar de modo mais preciso, ao tornar-se uma expressão da permanência absoluta, no Universal, de tudo aquilo de que o ser atinge a posse efetiva pela total realização de si mesmo (5).

O intelecto, enquanto princípio universal, poderia ser concebido como o continente do conhecimento total, mas com a condição de não se ver aí senão uma simples maneira de falar, pois aqui estamos essencialmente na “não-dualidade”, e o continente e o conteúdo devem ser absolutamente idênticos (pois um e outro devem ser igualmente infinitos, e uma “pluralidade de infinitos”, como dissemos, é uma impossibilidade). A Possibilidade universal, que compreende tudo, não pode ser compreendida por nada senão por si mesma, e ela compreende a si mesma, “sem no entanto que esta compreensão exista de qualquer forma” (6); tampouco se pode falar correlativamente do intelecto e do conhecimento, no sentido universal, senão como falamos mais acima do Infinito e da Possibilidade, ou seja vendo aí uma única e mesma coisa, considerada simultaneamente sob um aspecto ativo e sob um aspecto passivo, mas sem que haja aí nenhuma distinção real. Não devemos distinguir, no Universal, intelecto e conhecimento, nem, por conseguinte, inteligível e cognoscível: sendo o conhecimento verdadeiro imediato, o intelecto torna-se rigorosamente uno com seu objeto; não é senão nos modos condicionados do conhecimento, modos sempre indiretos e inadequados, que cabe estabelecer uma distinção, porque este conhecimento relativo opera, não pelo intelecto em si mesmo, mas por uma refração do intelecto nos estados do ser considerados, e, como vimmos, é uma refração deste tipo que constitui a consciência individual; mas, direta ou indiretamente, sempre existe participação no intelecto universal na medida em que haja conhecimento efetivo, seja sob um modo qualquer, seja fora de qualquer modo em particular.

Sendo o conhecimento total adequado à Possibilidade universal, não há nada que seja incognoscível (7), ou, em outros termos, “não existem coisas ininteligíveis, mas apenas coisas atualmente incompreensíveis” (8), ou seja inconcebíveis, não em si e de modo absoluto, mas apenas para nós enquanto seres condicionados, vale dizer limitados, em nossa manifestação atual, às posibilidades de um estado determinado. Colocamos assim o que podemos chamar de um princípio de “inteligibilidade universal”, não como é entendido de ordinário, mas num sentido puramente metafísico, portanto além do domínio lógico, onde este princípio, como todos os que são de ordem propriamente universal (os únicos que merecem ser chamados de princípios), não encontrará senão uma aplicação particular e contingente. Bem entendido, isto não postula para nós nenhum “racionalismo”, bem ao contrário, pois a razão, essencialmente diferente do intelecto (sem cuja garantia ela não poderia ser validada), não é nada além de uma faculdade especificamente humana e individual; existe assim necessariamente, não diremos um “irracional” (9), mas um “supra-racional”, e este é, com efeito, um caráter fundamental de tudo o que é de ordem verdadeiramente metafísica: este “supra-racional” não deixa por isso de ser inteligível em si, mesmo não sendo atualmente compreensível para as faculdades limitadas e relativas da individualidade humana (10).

Isto enseja ainda uma outra observação para evitar qualquer engano: como o termo “razão”, o termo “consciência” pode ser às vezes universalizada, por uma transposição puramente analógica, que já fizemos aliás para dar o significado do termo sânscrito Chit (11); mas uma tal transposição só é possível quando nos limitamos ao Ser, como foi o caso da consideração do ternário Sachchitdânanda. Entretanto, devemos compreender que, mesmo com esta restrição, a consciência assim transposta não será mais entendida em seu sentido próprio, como definimos precedentemente, e como conservamos de modo geral: neste sentido, ela não é, repetimos, senão o modo especial de um conhecimento contingente e relativo, como é relativo e contingente o estado de ser condicionado ao qual ele pertence essencialmente; e, se podemos dizer que ela é uma “razão de ser” para um tal estado, não é senão na medida em que ela é uma participação, por refração, à natureza deste intelecto universal e transcendente que é em si, final e eminentemente, a suprema “razão de ser” de todas as coisas, a verdadeira “razão suficiente” metafísica que determina a si mesma em todas as ordens de possibilidades, sem que nenhuma de suas determinações possa afetá-lo como quer que seja. Esta concepção da “razão suficiente”, bem diferente das concepções filosóficas ou teológicas em que se fecha o pensamento ocidental, resolve aliás imediatamente muitas questões diante das quais este deve confessar-se impotente, e isto ao mesmo tempo em que opera a conciliação do ponto de vista da necessidade com o da contingência; estamos aqui, de fato, bem além da oposição entre a necessidade e a contingência entendidas em sua acepção ordinária (12); mas alguns esclarecimentos complementares serão úteis para fazer compreender porque a questão não se coloca em metafísica pura.





NOTAS



1.      Taittirîaka Upanishad, 2º Vallî, 1º Anuvâka, shloka 1.
2.      Esta fórmula concorda com a definição que São Tomás de Aquino dá sobre a verdade como adequatio rei et intellectus; mas ela é de certo modo uma transpoição sua, porque deve-se ter em conta que a doutrina escolástica encerra-se exclusivamente no Ser, enquanto que o que dizemos aplica-se igualmente a tudo o que está além do Ser.
3.      Aqui, o termo “intelecto”  está também transposto para além do Ser, portanto com mais razão para além da Buddhi, a qual, embora de ordem universal e informal, pertence ainda ao domínio da manifestação, e portanto não pode ser dita incondicionada.
4.      Lembraremos ainda o estreito parentesco, que nada tem de fortuito, entre as palavras “real” e “realização”.
5.      É esta mesma permanência que se exprime de outro modo, na linguagem teológica ocidental, quando se diz que os possíveis estão eternamente no entendimento divino.
6.      Risâlatul-Ahadiyah de Mohyiddin ibn Arabî (cf. O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. XV).
7.      Rejeitamos formalmente e absolutamente todo “agnosticiscmo”, em qualquer grau que seja; poderíamos aliásperguntar aos “positivistas”, assim como aos partidários da famosa teoria do “Incosgnoscível” de Herbert Spencer, o que os autoriza a afirmar que existem coisas que não podem ser conhecidas, e esta questão provavelmente ficaria sem resposta, tanto mais que alguns parecem, de fato, confundir simplesmente o “desconhecido” (ou seja, o que é desconhecido para eles) e o “incognoscível” (ver Orient et Occident, 1ª parte, cap. I, e La Crise du Monde moderne, pg. 98).
8.      Matgioi, La Voie Métaphysique, pg. 86).
9.      O que ultrapassa a razão, de fato, não é por isso contrário à razão, que é o sentido geralmente atribuído ao termo “irracional”.
10.  Lembremos a propósito que um “mistério”, mesmo entendido na sua concepção teológica, não é absolutamente uma coisa incognoscível e ininteligível, mas sim, segundo o sentido etimológico da palavra, algo que é inexprimível, portanto incomunicável, o que é bem diferente.
11.  O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. XIV.
12.  Digamos aliás que a teologia, bem superior nisto do que a filosofia, reconhece ao menos que esta oposição pode e deve ser ultrapassada, mesmo que sua resolução não apareça com a evidência que ela apresenta quando vista da perspectiva metafísica. É preciso acrescentar que é sobbretudo do ponto de vista teológico, em razão da concepção religiosa da “criação”,  que esta questão das relações da necessidade e a contingência revestiram-se da importância que depois guardaram filosoficamente no pensamento ocidental.



















XVII
NECESSIDADE E CONTINGÊNCIA


Toda possibilidade de manifestação, dissemos acima, deve se manifestar pelo simples fato de ser o que é, ou seja uma possibilidade de manifestação, de tal modo que a manifestação está necessariamente implicada em princípio pela própria natureza de certas possibilidades. Assim, a manifestação, que é puramente contingente enquanto tal, não deixa de ser necessária em seu princípio, assim como, transitória em si mesma, ela possui no entanto uma raiz absolutamente permanente na Possibilidade universal; e é isto, aliás, que faz toda sua realidade. Se fosse de outra forma, a manifestação nãopoderia ter senão uma existência ilusória, e poderíamos mesmo considerá-la como rigorosamente inexistente, pois, sendo sem princípio, ela não guardaria mais do que um caráter essencialmente “privativo”, como só pode sê-lo o de uma negação ou de uma limitação considerada em si mesmo; e a manifestação, vista desta forma, não seria nada mais do que o conjunto de todas as condições limitativas possíveis. Somente, a partir do momento em que essas condições são possíveis, elas são metafisicamente reais, e esta realidade, que não era senão negativa quando as concebíamos como simples limitações, torna-se positiva, de certa forma, quando as consideramos enquanto possibilidades. É portanto devido ao fato da manifestação estar implicada na ordem das possibilidades que ela possui sua realidade própria, sem que esta realidade possa de modo algum ser independente dessa ordem universal, pois é aí, e somente aí, que ela possui sua verdadeira “razão suficiente”: dizer que a manifestação é necessária em seu princípio, não é outra coisa, no fundo, que dizer que ela está compreendida na Possibilidade universal.

Não existe nenhuma dificuldade em conceber que a manifestação seja assim ao mesmo tempo necssária e contingente sob pontos de vista diferentes, desde que se tenha atenção para este ponto fundamental, que o princípio não pode ser afetado por qualquer determinação que seja, por ser essencialemtne independente delas, como o é a causa de seus efeitos, de sorte que a manifestação, necessária por seu princípio, não poderia inversamente ser necessária a ele. É assim a “irreversibilidade” ou a “irreciprocidade” da relação que consideramos aqui que resolve toda a dificuldade normalmente suposta para esta questão (1), dificuldade que só existe porque se perde de vista a “irreciprocidade”; e, se a perdemos de vista, é porque, pelo fato de estarmos atualmente colocados na manifestação, somos naturalmente levados a atribuir a esta uma importância que, do ponto de vista universal, ela não pode ter. Para nos fazermos melhor entender, podemos tomar aqui ainda um símbolo espacial, e dizer que a manifestação, em sua integralidade, é verdadeiramente nula diante do Infinito, assim como (salvo as reservas exigidas pela imperfeição da comparação) um ponto situado no espaço é igual a zero em relação a este espaço (2); isto não quer dizer que este ponto seja absolutamente nada (tanto mais que ele existe necessariamente pelo fato mesmo que o espeço existe), mas ele é nada sob o aspecto da extensão, ele é rigorosamente um zero de extensão; e a manifestação não é nada mais, em relação ao todo universal, do que é o ponto em relação ao espaço considerado em toda a indefinidade de sua extensão, e ainda com a diferença de que o espaço é algo limitado por sua própria natureza, enquanto que o Todo universal é o Infinito.

Devemos indicar aqui uma outra dificuldade, mas que reside muito mais em sua expressão do que em sua concepção: tudo o que existe em modo transitório na manifestação deve ser transposto em modo permanente no manifestado; a própria manifestação adquire assim a permanência que faz toda a sua realidade principial, mas não se trata mais da manifestação enquanto tal, mas do conjunto das possibilidades de manifestação na medida em que não se manifestam, apesar de implicarem a manifestação em sua própria natureza, sem o que elas seriam outra coisa do que são. A dificuldade desta transposição ou desta passagem do manifestado ao não manifestado e a obscuridade aparente que dela resulta, são as que encontramos igualmente quando queremos exprimir, na medida em que se pode, as relações do tempo, ou mais genericamente da duração sob todos os seus modos (ou seja de toda condição de existência sucessiva) com a eternidade; e no fundo é a mesma questão, encarada so b dois aspectos um pouco diferentes, e dos quais o segundo é apenas mais particularizado do que o primeiro, por referir-se apenas a uma condição determinada, dentre todas as que comporta o manifestado. Tudo isso, repetimos, é perfeitamente concebível, mas é preciso deixar a parte do inexprimível, como aliás em tudo o que pertence ao domínio metafísico; quanto aos meios de realização de uma concepção efetiva, e não simplesmente teórica, que se estenda até o próprio inexprimível, é algo de que não podemos falar aqui, pois considerações desta ordem não cabem no quadro do estudo a que nos propusemos presentemente.

Voltando à contingência, podemos, de modo geral, dar a seguinte definição dela: é contingente tudo aquilo que não tem em si sua razão suficiente; e assim vemos que toda coisa contingente é também necessária, no sentido que ela é necessitada pela sua razão suficiente, pois, para existir, ela deve ter uma, mas que não está nela, ao menos na medida em que a consideramos sob a condição particular em que ela tem este caráter de contingência, que ela não teria mais se a víssemos em seu princípio, uma vez que então ela se identificaria com sua própria razão suficiente. Tal é o caso da manifestação, contingente enquanto tal, porque seu princípio ou sua razão suficiente acha-se no não-manifestado, na medida em que este comporta o que podemos chamar de “manifestável”, ou seja as possibilidades de manifestação enquanto possibilidades puras (e não por comportar o “não-manifestável” ou as possibilidades de não-manifestação). Princípio e razão suficiente são assim a mesma coisa, mas é particularmente importante considerar o princípio sob este aspecto de razão suficiennte quando queremos compreender a noção de contingência em seu sentido metafísico; e é preciso ainda frisar, para evitar confusões, que a razão suficiente é exclusivamente a razão de ser última de uma coisa (última se partirmos da consideração da coisa para remontar ao princípio, mas primeira na ordem do encadeamento, tanto lógico como ontológico, que vai do princípio às conseqüências), e não simplesmente sua razão de ser imediata, pois tudo o que é, sob qualquer modo que seja, mesmo contingente, deve ter em si mesmo su arazão de ser imediata, entendida no sentido em que dissemos precedentemente que a consciência constitui uma razão de ser para certos estados de existência manifestada.

Uma conseqüência muito importante disso, é que podemos dier que todo ser traz em si mesmo seu destino, seja de modo relativo (destino individual), se se tratar apenas de um ser considerado no interior de um certo estado condicionado, seja de modo absoluto, se se trata do ser em sua totalidade, “pois o termo ‘destino’ designa da verdadeira razão de ser das coisas” (3). Apenas, o ser condicionado ou relativo não pode trazer em si senão um destino igualmente relativo, exclusivamente afeito a suas condições específicas de existência; se, considerando o ser deste modo, quisermos falar de seu destino último ou absoluto, este não estará mais nele, por não ser mais verdadeiramente o destino deste ser contingente como tal, por se referir em realidade ao ser total. Esta observação  basta para mostrar a inutilidade de todas as discussões que se referem ao “determinismo” (4): esta é mais uma destas questões, tão numerosas na filosofia ocidntal moderna, que só existem porque são mal colocadas; existem aliás muitas concepções diferentes do determinismo, e também muitas concepções diferentes da liberdade, das quais a maior parte nada tem de metafísico; é assim importante definir a verdadeira noção metafísica da liberdade, e é por esta que terminaremos nosso estudo.










NOTAS



1.      É esta mesma “irreciprocidade” que exclui igualmente todo “panteísmo” e todo “imanentismo”, como já indicamos (O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. XXIV).
2.      Trata-se aqui, bem entendido, do ponto situado no espaço, e não do ponto principial do qual o próprio espaço não é mais do que uma expansão ou um desenvolvimento. – Sobre as relações entre o ponto e a extensão, ver O Simbolismo da Cruz, cap. XVI.
3.      Comentário tradicional de Tcheng-Tsé sobre o Y King (cf. O Simbolismo da Cruz, cap. XXII).
4.      Podemos dizer omesmo de boa parte das discussões relatuivas à finalidade; é assim, notadamente, que a distinção ente a “finalidade interna” e a “finalidade externa” não pode ser válida senão quando se admite a suposição anti-metafísica de que um ser individual é um ser completo e constitui um “sistema fechado”, pois, de outra forma, o que “externo” para o indivíduo pode ser “interno” para o ser verdadeiro, se é que a distinção implicada no termo seja ainda aplicável (ver O Simbolismo da Cruz, cap. XXIX); e é fácil dar-se conta de que. No fundo, finalidade e destino são a mesma coisa.











XVIII
NOÇÃO METAFÍSICA DA LIBERDADE


Para provar metafisicamente a liberdade, basta, sem as complicações dos argumentos filosóficos ordinários, estabelecer que ela é uma possibilidade, pois o possível e o real são metafisicamente idênticos. Para tanto, podemos inicialmente definir a liberdade como ausência de sujeição: definição negativa em sua forma, mas que, aqui ainda, é positiva no fundo, pois é a sujeição que é uma limitação, ou seja uma verdadeira negação. Ora, quanto à Possibilidade universal considerada além do Ser, ou seja como o Não-Ser, não podemos falar de unidade, como já dissemos, porque o Não-Ser é o Zero metafísico, mas podemos ao menos, sempre empregando a forma negativa, falar de “não-dualidade” (adwaita) (1). Onde não existe dualidade, necessariamente não existe nenhuma sujeição, e isto basta para provar que a liberdade é uma possibilidade, a partir do momento em que ela resulta imediatamente da “não-dualidade”, que é evidentemente isenta de qualquer contradição.

Agora, podemos acrescentar que a liberdade é, não apenas uma possibilidade, no sentido mais universal, mas também uma possibilidade de ser ou de manifestação; basta aqui, para passarmos do Não-Ser ao Ser, passar da “não-dualidade” à unidade: o Ser é “um” (sendo o Um o Zero afirmado), ou antes ele é a prória Unidade metafísica, primeira afirmação, mas também, por isso mesmo, primeira determinação (2). O que é uno é manifestamente isento de toda sujeição, de modo que a ausência de sujeição, ou seja a liberdade, acha-se no domínio do Ser, onde a unidade apresenta-se de certa forma como uma especificação da “não-dualidade” principial do Não-Ser; em outros termos, a liberdade pertence também ao Ser, o que equivale a dizer que ela é também uma possibilidade de ser, ou, segundo o que explicamos antes, uma possibilidade de manifestação, pois o Ser é antes de tudo o princípio da manifestação. Ademais, dizer que esta possibilidade é essencialmente inerente ao Ser como conseqüência imediata de sua unidade, é dizer que ela se manifestará, em um grau qualquer, em tudo o que proceda do Ser, ou seja em todos os seres particulares, na medida em que eles pertencem ao domínio da menifestação universal. Apenas, a partir do momento em que existe a multiplicidade, como é o caso na ordem das existências particulares, é evidente que não pode tratar-se mais senão de uma liberdade relativa; e podemos considerar, a este respeito, seja a multiplicidade dos seres particulares em si mesmos, seja a dos elementos constitutivos de cada um deles. No que diz respeito à multiplicidade dos seres, cada um deles, nos seus estados de manifestação, é limitado pelos outros, e esta limitaçãopode trraduzir-se como uma restrição à liberdade; mas dizer que um ser qualquer não é livre em nenhum grau, seria dizer que ele não é ele próprio, que ele é “os outros”, ou que ele não tem em si msmo sua razão de ser, mesmo imediata, o que, no fundo, equivale a dizer que ele não é de modo algum um ser verdadeiro (3). Por outro lado, uma vez que a unidade do Ser é o princípio da liberdade, tanto nos seres particulares como  no Ser universal, um ser será livre na medida em que participar desta unidade; em outros termos, ele será tanto mais livre quanto mais unidade tiver em si mesmo, quanto mais “uno” ele for (4); mas, como já dissemos, os seres particulares só o são relativamente (5). De resto, importa lembrar, a respeito, que não é exatamente a maior ou menor complexidade da constituição de um ser que irá fazê-lo mais ou menos livre, mas antes o caráter desta complexidade, segundo ela seja mais ou menos unificada efetivamente; isto resulta do que dissemos antes sobre as relações entre a unidade e a multiplicidade (6).

A liberdade, assim considerada, é portanto uma possibilidade que, em diversos graus, é um atributo de todos os seres, quaisquer que sejam e seja em que estado se situem, e não apenas do homem; a liberdade humana, a única em causa em todas as discussões filosóficas, apresenta-se aqui como um simples caso particular, que é o que ela é realmente (7). De resto, o que mais importa do ponto de vista metafísico, não é a liberdade relativa dos seres manifestados, assim como os domínios particulares e restritos em que ela pode se exercer; é a liberdade entendida em seu sentido universal, e que reside propriamente no instante metafísico da passagem da causa ao efeito, devendo a relação causal ser transposta analogicamente de modo conveniente para poder ser aplicada a todas as ordens de possibilidades. Como esta relação causal não é nem pode ser uma relação de sucessão, a efetuação deve ser vista aqui essencialmente sob o aspecto extra-temporal, e isto tanto mais que o ponto de vista temporal, sendo específico de um estado determinado da existência manifestada, ou mais exatamente ainda a algumas modalidades deste estado, não é de modo algum passível de universalização (8). A conseqüência disto, é que este instante metafísico, que nos parece inapreensível, por não haver nenhuma solução de continuidade entre a causa e o efeito, é na realidade ilimitado, ultrapassando assim o Ser, como estabelecemos em primeiro lugar, e é coextensivo à própria Possibilidade total; ele constitui aquilo a que podemos chamar figuradamente de “estado de consciência universal” (9), participante da “permanente atualidade” inerente à própria “causa inicial” (10).

No Não-Ser, a ausência de sujeição só pode residir no “não-agir” (o wu-wei da tradição extremo-oriental)  (11); no Ser, ou mais exatamente na manifestação, a liberdade efetua-se na atividade diferenciada, que, no estado individual humano, toma a forma da ação no sentido habitual do termo. De resto, no domínio da ação, e msmo de toda manifestação universal, a “liberdade da indiferença” é impossível, por ser propriamente o modo de liberdade que convém ao não-manifestado (e que, rigorosamente falando, não é de jeito algum um modo especial) (12), ou seja ela não é a liberdade enquanto possibilidade de ser, ou ainda a liberdade que pertence ao Ser (ou a Deus concebido como o Ser, em suas relações com o Mundo entendido como o conjunto da manifestação universal), e, por conseguinte, aos seres manifestados que estão em seu domínio e participam de sua natureza e de seus atributos segundo a medida de suas próprias possibilidades respectivas. A realização das possibilidades de manifestação, que constituem todos os seres em todos os seus estados manifestados e com todas as suas modificações, ações ou outras, que pertencem a estes estados, esta realização, dizemos, não pode assim repousar sobre uma pura indiferença (ou sobre um decreto arbitrário da Vontade divina, seguindo a teoria cartesiana bem conhecida, que pretende aliás aplicar esta concepção da indiferença tanto a Deus quanto ao homem) (13), mas ela é determinada pela ordem da possibilidade universal de manifestação, que é o próprio Ser, de sorte que o Ser determina a si mesmo, não apenas em si, mas também em todas as suas modalidades, que são todas as possibilidades particulares de manifestação. É apenas nestas últimas, consideradas de modo “distintivo” e mesmo sob o aspecto da “separatividade”, que é possível haver determinação por “outro do que si mesmo”; dito de outra forma, os seres particulares podem ao mesmo tempo determinar-se (na medida em que cada um possui uma certa unidade, donde uma certa liberdade, por participar do Ser) e serem determinados (em razão da multiplicidade dos seres particulares, não remetida à unidade na medida em que são vistos sob o ponto de vista dos estados de existência manifestada). O Ser universal não pode ser determinado, mas ele determina a si mesmo; quanto ao Não-Ser, ele não pode determinar-se nem ser determinado, por estar além de toda determinação e não admitir nenhuma.

Vemos, pelo que precede, que a liberdade absoluta não pode ser realizada senão pela completa universalização: ela será “auto-determinação” enquanto coextensiva ao Ser, e “indeterminação” para além do Ser. Enquantoque uma liberdade relativa pertence a todos os seres sob qualquer condição que seja, esta liberdade absoluta não pode pertencer senão ao ser liberto das condições da existência manifestada, individual ou mesmo supra-individual, e que tornou-se absolutamente “um” e “uno”, no grau do Ser puro, ou “sem dualidade”, se sua realização ultrapassar o Ser (14). É então, mas somente então, que podemos falar do ser “que é ele mesmo sua própria lei” (15), porque este ser é plenamente idêntico à sua razão suficiente, que é ao mesmo tempo sua origem principial e seu destino final.





NOTAS



1.      Cf. O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. XXII.
2.      Ver ibid., cap. VI.
3.      Podemos ainda lembrar que, uma vez que a multiplicidade procede da unidade, na qual está implicada ou contida em princípio, ela não pode destruir a unidade, nem tampouco aquilo que é uma conseqüência desta unidade, como a liberdade.
4.      Todo ser, para ser verdadeiramente tal, deve possuir uma certa unidade da qual traz o princípio em si mesmo; neste sentido, Leibnitz tem razão em afirmar: “O que não é verdadeiramente um ser , tampouco será verdadeiramente um ser”; mas esta adaptação da fórmula escolástica “ens et unun convertuntur” perde nele seu alcance metafísico pela atribuição da unidade absoluta e completa às “substâncias individuais”.
5.      É aliás em razão desta relatividade que podemos falar em graus da unidade, e também, por conseguinte em graus de liberdade, pois só existem graus no que é relativo, e o que é absoluto não é passível de “mais” ou de “menos” (tomados aqui em sentido analógico, e nÃo apenas em sua acepção quantitativa).
6.      É preciso distinguir entre a complexidade que não passa de pura multiplicidade e aquela que, ao contrário, é uma expansão da unidade (cf. Asrâr rabbaâniyah no esoterismo islâmico: O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. IX, e O Simbolismo da Cruz, cap. IV); podemos dizer que, em relação às possibilidades do Ser, a primeira refere-se à “substância” e a segunda à “essência”. – Podemos considerar também as relações de um ser com os outros (relações que, para este ser considerado no estado em que elas acontecem, entram como elementos na complexidade de sua natureza, por fazerem parte de seus atributos como outras tantas modificações secundárias de si mesmo) sob dois aspectos aparentemente opostos, mas em realidade complementares, segundo este ser, em suas relações, assimile os outros ou seja assimilado por eles, constituindo esta assimilação numa “compreensão” no sentido próprio do termo. A relação que existe entre dois seres é ao mesmo tempo uma modificação de um e de outro; mas podemos dizer que a causa determinante desta modificação reside naquele dos dois que age sobre o outro, ou que o assimila quando a relação é tomada a partir do ponto de vista precedente, que é, não mais o da ação, mas o do conhecimento na medida em que este implica identificação entre seus dois termos.
7.      Pouco importa que alguns prefiram chamar de “espontaneidade” ao que chamamos aqui liberdade, a fim de preservar este último t ermo à liberdade humana; este emprego de dois termos diferentes tem o defeito de poder fazer crer que esta liberdade humana é de outra natureza, quando trata-se apenas de uma diferença de graus, ou que ao menos ela constitua uma espécie de “caso previlegiado”, o que é insustentável metafisicamente.
8.      A própria duração, entendida no sentido mais geral, como condicionando toda a existência em modo sucessivo, ou seja como compreendendo toda condição que corresponde analogicamente ao tempo em outros estados, não poderia tampouco ser universalizada, pois, no Universal, tudo deve ser visto em simultaneidade.
9.      Devemos nos reportar ao que dissemos acima sobre as reservas que se deve fazer quando se pretende universalizar o sentido do termo “consciência” por transposição analógica. – A expressão empregada aqui é, no fundo, quase equivalente à dos “aspectos do Infinito”, que tampouco pode ser tomada literalmente.
10.  Cf. Matgioi, La Voie Métaphysique, pgs. 73-74.
11.  A “Atividade do Céu” em si mesma (na indiferenciação principial do Não-Ser) é não-agente e não-manifestada (ver O Simbolismo da Cruz, cap. XXIII).
12.  Ela só se torna tal em sua concepção filosófica vulgar, que é, não apenas errônea, mas verdadeiramente absurda, porque supõe que alguma coisa poderia existir sem possuir nenhuma razão de ser.
13.  Só indicamos a tradução em termos teológicos para facilitar a comparação que se pod estabelecer com os pontos de vistas habituais do pensamento ocidental.
14.  Ver O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, caps. XV e XVI.
15.  Sobre esta expressão que pertence mais particularmente ao esoterismo islâmico, e sobre seu equivalente svêchchhâchârî na doutrina hindu, ver O Simbolismo da Cruz, cap. IX. – Ver também o que foi dito sobre o estado de Yogî ou do jîvan-mukta (O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, caps. XXIII e XXIV).



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