X
OS CONFINS DO
INDEFINIDO
Embora tenhamos falado de uma hierarquia das
faculdades individuais, convém nunca perder de vista que elas estão todas
compreendidas na extensão de um único e mesmo estado do ser total, ou seja no
plano horizontal da representação geométrica do ser, tal como expusemos em
nosso estudo anterior (*), enquanto que a hierarquia dos diferentes estados é
marcada por sua superposição segundo a direção do eixo vertical da mesma
representação. A primeira destas duas hierarquias não ocupa portanto,
propriamente falando, nenhum lugar na segunda, pois seu conjunto reduz-se aí a
um único ponto (o ponto de encontro do eixo vertical com o plano correspondente
ao estado considerado); em outros
termos, a diferença das modalidades individuais, por se referirem apenas ao
sentido da “amplidão”, é rigorosamente nula segundo o sentido da “exaltação”
(1).
Não se deve esquecer, por outro lado, que a “amplidão”, no
desabrochar integral do ser, é tão indefinida quanto a “exaltação”; e é isto
que nos permite falar da indefinidade das possibilidades de cada estado, mas,
bem entendido, sem que esta indefinidade deva ser interpretada como supondo
alguma ausência de limites. Já nos explicamos suficientemente a respeito quando
estabelecemos a distinção entre o Infinito e o Indefinido, mas podemos fazer
intervir aqui uma representação geométrica de que ainda não falamos: num plano
horizontal qualquer, os confins do indefinido são marcados pelo círculo-limite
ao qual alguns matemáticos deram o nome, por sinal absurdo, de “reta do
infinito” (2), e o círculo não se fecha em nenhum de seus pontos sendo um
grande círculo (seção por um plano diametral) do esferóide indefinido cujo
desdobramento abarca a integralidade da extensão, representando a totalidade do
ser (3). Se agora considerarmos, em seu plano, as modificações individuais
partes de um ciclo qualquer exterior ao centro (ou seja sem identificação com
este segundo o raio centrípeto) e propagando-se indefinidamente em modo
vibratório, sua chegada ao círculo-limite (segundo o raio centrífugo)
corresponderá à sua máxima dispersão, mas, ao mesmo tempo, será o ponto de
detenção de seu movimento centrífugo. Este movimento, indefinido em todos os
sentidos, representará a multiplicidade dos pontos de vista parciais, fora da
unidade do ponto de vista central, de onde entretanto eles procederam todos
como os raios emanados do centro comum, e que constituirá assim sua unidade
essencial e fundamental, mas não atualmente realizada em relação à sua via de
exteriorização gradual, contingente e multiforme, na indefinitude da
manifestação.
Falamos aqui de exteriorização colocando-nos do pont de
vista da própria manifestação; mas não devemos esquecer que toda exteriorização
é, como tal, essencialmente ilusória, porque, como já dissemos, a
multiplicidade, que está contida na unidade sem que esta seja afetada, jamais
pode sair dela realmente, o que implicaria uma “alteração” (no sentido
etimológico) em contradição com a imutabilidade principial (4). Os pontos de
vista parciais, em multitude indefinida, que são todas as modalidades de um ser
em cada um de seus estados, não passam em suma de aspectos fragmentátios do
ponto de vista central (fragmentação também ilusória, sendo este ponto de vista
central essencialmente indivisível na realidade, pelo fato de que a unidade não
tem partes), e sua “reintegração” na unidade deste ponto de vista central e
principial é propriamente uma “integração” no sentido matemático do termo: ela
não poderia extrair senão os elementos que, num dado momento, tivessem sido
verdadeiramente isolados de sua soma, ou que tivessem sido assim considerados
de outro modo que não por uma simples abstração. É verdade que esta abstração
nem sempre é efetuada conscientemente, porque ela é uma conseqüência necessária
da restrição das faculdades individuais sob tal ou tal de suas modalidades
específicas, modalidades que só podem ser realizadas pelo ser que se coloca em um
ou outro destes pontos de vista parciais de que tratamos.
Estas poucas observações podem ajudar a fazer compreender
como se deve considerar os confins do indefinido, e como sua realização é um
fator importante na unificação efetiva do ser (5). É preciso aliás reconhecer
que sua concepção, mesmo simplesmente teórica, não é isenta de dificuldades, e
é normal que seja assim, pois o indefinido é precisamente aquilo culos limites
foram recuados até os perdermos de vista, ou seja até que eles escapem ao alcance
de nossas faculdades, ao menos no seu exercício normal; mas, sendo estas
faculdades também susceptíveis de uma extensão indefinida, não é em virtude de
sua natureza própria que o indefinido as ultrapassa, mas apenas em virtude de
uma limitação de fato devida ao grau de desenvolvimento existente na maior
parte do seres humanos, de modo que não existe nesta concepção nenhuma
impossibilidade, assim como tampouco ela nos faz sair da ordem das
possibilidades individuais.
Seja como for, para fornecer a este respeito maiores
detalhes, seria preciso considerar mais particularmente, a título de exemplo,
as condições específicas de um determinado estado de existência, ou, para
falarmos mais rigorosamente, de uma dada modalidade definida, tal como a que
constitui a existência corporal, coisa que não podemos fazer dentro dos limites
desta exposição; sobre esta questão, remeteremos, como já fizemos outras vezes,
ao estudo que nos propomos a consagrar inteiramente a respeito das condições da
existência corporal.
NOTAS
(*) O
Simbolismo da Cruz
1. Sobre o significado destes
termos emprestados ao esoterismo islâmico, ver O Simbolismo da Cruz, cap. III.
2. Esta denominação deriva do
fato de que um círculo cujo raio cresce indefinidamente tem como limite uma
reta; e, em geometria analítica, a equação do círculo-limite em questão, e que
é o lugar de todos os pontos do plano indefinidamente distantes do centro
(origem das coordenadas), reduz-se efetivamente a uma equação do primeiro grau,
como a de uma reta.
3. Ver O Simbolismo da Cruz, Cap. XX.
4. Sobre a distinção do
“interior” e do “exterior” e os limites dentro dos quais ela é válida, ver ibid., cap. XXIX.
5. Isto deve ser relacionado ao
que já dissemos, que é na plenitude da expansão que se obtém a perfeita
homogeneidade, assim como, inversamente, a extrema distinção não é realizável
senão na extrema universalidade (ibid.,
cap. XX).
XI
PRINCÍPIOS DE
DISTINÇÃO
ENTRE OS ESTADOS
DE SER
Até aqui, no que concerne mais especificamente ao
ser humano, consideamos sobretudo a extensão da possibilidade individual, a
única que de resto constitui o estado propriamente humano; mas o ser que possui
este estado possui também, ao menos virtualmente, todos os outros estados, sem
os quais não se poderia tratar do ser total. Se considerarmos todos estes
estados em suas relações com o estado individual humano, podemos classificá-los
em “pré-humanos” e “pós-humanos”, mas sem que o emprego destes termos dva
absolutamente sugerir a ideia de uma sucessão temporal; aqui só se pode falar
de “antes” e “depois” de modo simbólico (1), e trata-se de uma ordem de
conseqüência puramente lógica, ou melhor lógica e ontológica, nos diversos
ciclos de desenvolvimento do ser, pois, metafisicamente (ou seja do ponto de
vista principial), todos estes ciclos são essencialmente simltâneos, e não
podem se tornar sucessivos senão acidentalmente de certo modo, tendo em vista
certas condições específicas de manifestação. Insistimos mais uma vez sobre
este ponto, que a condição temporal, por mais generalizada que se possa supor
sua concepção, só é aplicável a alguns ciclos e a alguns estados particulares,
como o estado humano, ou mesmo a algumas modalidades destes estados, como a
moddalidade corporal (certos prolongamentos da individualidade humana podem
escapar ao tempo, sem por isso sair da ordem das possibilidades individuais), e
que ela não pode de modo algum intervir na totalização do ser (2). O mesmo
acontece aliás para a condição espacial ou para não importa qual outra das
condições às quais estamos atualmente submetidos enquanto seres individuais,
assim como para aquelas às quais estão também submetidos todos os demais
estados de manifestação compreendidos na integralidade do domínio da Existência
universal.
Certamente é legítimo estabelecer, como indicamos,
uma distinção no conjunto dos estados do seres reportando-os ao estado humano,
quer os chamemos logicamente anteriores ou posteriores, ou ainda superiores ou
inferiores a este, e mostramos desde o início as razões que justificam esta
distinção; mas, a bem dizer, este não passa de um ponto de vista particular, e
o fato de que ele é presentemente o nosso não deve iludir-nos a respeito;
assim, em todos os casos em que não seja indispensável colocarmo-nos deste ponto
de vista, será melhor recorrer a um princípio de distinção que seja de ordem
mais geral e que apresente um caráter mais fundamental, sem esquecer jamais, de
resto, que toda distinção é forçosamente algo contingente. A distinção mais
principial de todas, e a que é mais susceptível da aplicação mais universal, é
a dos estados de manifestação e dos estados de não-manifestação, que desde o
começo do presente estudo colocamos antes de todas as outras, por ser ela de
importância capital para todo o conjunto da teoria dos estados múltiplos.
Entretanto, pode acontecer às vezes considerarmos uma distinção de alcance mais
restrito, como a que podemos estabelecer, por exemplo, ao nos referirmos não
mais à manifestação universal em sua integralidade, mas simplesmente a alguma
das condições gerais ou específicas de existência que nos são conhecidas:
dividiremos então os estados do ser em duas categorias, segundo sejam ou não
submetidos à condição em questão, e, em todos os casos, os estados de
não-manifestação, por serem incondicionados, entrarão necessariamente na
segunda destas categorias, aquela cuja determinação for puramente negativa.
Aqui, teremos então, de uma parte, os estados compreendidos no interior de um
domínio determinado, seja ele mais ou menos extenso, e de outra, todo o resto,
ou seja todos os estados que estiverem fora deste mesmo domínio; existe, por
conseguinte, uma certa assimetria e como que uma desproporção entre estas duas
categorias, das quais apenas a primeira é realmente delimitada, e isto qualquer
que seja o elemento característico que sirva para determiná-las (3). Para
termos uma representação geométrica disto, podemos, dada uma curva qualquer
traçada sobre um plano, considerar esta curva como dividindo o pano inteiro em
duas regiões: uma situada no interior da curva, que a envolve e delimita, e
outra estendendo-se a tudo o que é exterior à mesma curva; a primeira das duas
regiões é definida, enquanto que a segunda é indefinida. As mesmas
considerações aplicam-se a uma superfície fechada na extensão tridimensional,
que tomamos para simbolizar a totalidade do ser; mas convém frisar que, também
neste caso, uma região é estritamente definida (ainda que compreenda sempre uma
indefinidade de pontos) uma vez que a superfície é fechada, enquanto que, na divisão
dos estados do ser, a categoria que é susceptível de uma determinação positiva,
portanto de uma delimitação efetiva, não deixará de comportar, por restrita que
a suponhamos em relação ao conjunto, possibilidades de desenvolvimento
indefinido. Para evitar esta imperfeição da representação geométrica, basta
levantar a restrição que nos impomos ao considerarmos uma superfície fechada, à
exclusão de uma superfície não fechada: indo aos confins do indefinido, com
efeito, uma linha ou uma superfície, qualquer que seja, é sempre redutível a
uma curva ou uma superfície fechada (4), de modo que podemos dizer que ela
divide o plano ou a extensão em duas regiões, que podem ambas ser indefinidas
em extensão, e das quais no entanto apenas uma, como precedentemente, é
condicionada por uma determinação positiva resultando das propriedades da curva
ou da superfície considerada.
No caso em que se estabelece uma distinção
reportando o conjunto dos estados a um dentre eles, seja o estado humano ou
qualquer outro, o princípio determinante é de natureza diferente daquele que
acabamos de indicar, pois não se pode relacioná-lo simplesmente à afirmação ou
à negação de uma certa condição (5). Em termos
geométricos, será preciso agora considerar a extensão como dividida em
dois pelo plano que representa o estado tomado como base ou como termo de
comparação; aquilo que está situado de um lado ou de outro do que consideramos,
e que apresenta então uma espécie de simetria ou de equivalência que não havia
no caso precedente. Esta distinção é a que já expusemos, sob sua forma mais
geral, a propósito da teoria hindu das três gunas (6): o plano que serve de
base é indeterminado em princípio, e ele pode ser aquele que representa um
estado incondicionado qualquer, de sorte que é apenas secundariamente que o
determinamos como representando o estado humano, quando pretendemos nos
colocarmos do ponto de vista deste estado em particular.
Por outro lado, pode ser vantajoso, particularmente
para facilitar as aplicações corretas da analogia, estender esta última
representação a todos os casos, mesmo àqueles aos quais ela parece não convir
diretamente conforme às considerações precedentes. Para obtermos este
resultado, basta evidentemente representar como um plano de base aquilo pelo
que se detetrmina a distinção que se quer estabelecer, qualquer que seja seu
princípio: a parte da extensão que situa-se abaixo do plano poderá representar
o que está submetido à condição considerada, e a que fica acima representará o
que não está submetido àquela mesma determinação. O único inconveniente de uma
tal representação é que as duas regiões da extensão parecem ser igualmente
indefinidas, e do mesmo modo; mas podemos destruir esta simetria vendo o plano de separação como o
limite de uma esfera cujo centro está indefinidamente distanciado segundo a
direção descendente, o que nos conduz na realidade ao primeiro modo de
representação, pois este não passa de um caso particular desta redução a uma
superfície fechada a que aludimos há pouco. Em suma, basta lembrar qua a
aparência de simetria, em tal caso, não se deve mais do que a um certa
imperfeição do símbolo empregado; e, de resto, pode-se sempre passar de uma
representação a outra quando houver maior comodidade ou vantagens de outra
ordem, pois, em razão mesmo desta imperfeição inevitável pela própria natureza
das coisas, uma única representação é normalmente insuficiente para responder
integralmente (ao menos sem outra reserva do que a do inexprimível) uma
concepção do tipo de que se trata aqui.
Embora, de um modo ou de outro, dividamos os estados
do ser em duas categorias, á claro que não existe aí nenhum tipo de dualismo,
pois esta divisão se faz através de um princípio único, tal como uma dada
condição de existência, e assim não há senão uma determinação que é vista a um
tempo positiva e negativamente. De resto, para rejeitarmos toda suspeita de
dualismo, por injustificada que seja, basta observar que todas estas
distinções, longe de serem irredutíveis, só existem do ponto de vista relativo
aonde elas foram estabelecidas, e que elas só adquirem esta existência
contingente (a única de que são susceptíveis), na medida em que atribuimos a
elas nossa concepção. O ponto de vista da manifestação inteira, embora
evidentemente mais universal do que os outros, é ainda relativo como eles, pois
a própria manifestação é puramente contingente; isto aplica-se então mesmo à
distinção que consideramos como a mais fundamental e a mais próxima da ordem
principial, a dos estados de manifestação e dos estados de não-manifestação,
como já indicamos ao falarmos do Ser e do Não-Ser.
NOTAS
1. Cf. O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. XVII. Este simbolismo
temporal é por sinal constantemente empregado na teoria dos ciclos, seja ela
aplicada ao conjunto dos seres ou a cada um deles em particular; os ciclos
cósmicos não são outra coisa que os estados ou graus da Existência universal,
ou suas modalidades secundárias quando se trata de ciclos subordinados e mais
restritos, que de resto apresentam fases correspondentes às dos ciclos mais
amplos nos quais elas se integram, em virtude desta analogia entre a parte e o
todo de que já falamos.
2. Isto é verdadeiro, não
apenas para o tempo, mas também para a “duração” vista, segundo algumas
concepções, como compreendendo, além do tempo, todos os outros modos possíveis
de sucessão, ou seja todas as condições que, em outros estados de existência,
possam corresponder analogamente àquilo que é o tempo no estado humano (ver O Simbolismo da Cruz, cap. XXX).
3. Cf. O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. II.
4. É assim, por exemplo, que a
reta é redutível a uma circunferência e o plano a uma esfera, como limites de
uma e outra quando se supõe que seus raios cresçam indefinidamente.
5. Deve ficar entendido que é a
negação de uma condição, ou seja de uma determinação ou de uma limitação, que
possui um caráter de positividade do ponto de vista da realidade absoluta, como
já explicamos a respeito do emprego de termos em forma negativa.
6. O Simbolismo da Cruz, cap. V.
XII
OS DOIS CAOS
Dentre as distinções que se fundam sobre a
consideração de uma condição de existência, uma das mais importantes, podemos
mesmo dizer a mais importante de todas, é a dos estados formais e dos estados
informais, porque ela não é outra, metafisicamente, que a distinção entre o
individual e o universal, sendo este último visto como compreendendo a um tempo
a não-manifestação e a manifestação informal, como já explicamos (1). De fato,
a forma é uma condição específica de certos modos da manifestação, e é a este
título que ela é, notadamente, uma das condições de existência do estado
humano; mas, ao mesmo tempo, ela é propriamente, de modo geral, o modo de
limitação que caracteriza a existência individual, e que pode servir-lhe de
definição de certo modo. Deve ficar entendido, aliás, que esta forma não é
necessariamente determinada coom espacial e temporal, como acontece no caso
particular da modalidade corporal humana; ela não pode sê-lo nos estados
não-humanos, que não estão submetidos ao espaço e ao tempo, mas a condições
totalmente outras (2). Assim, a forma é uma condição comum, não a todos os
modos da manifestação, mas ao menos a todos os seus modos individuais, que
diferem entre si pela adjunção de tais ou tais outras condições mais
particulares; o que faz a natureza própria do indivíduo como tal, é que ele é
revestido de uma forma, e tudo o que está sob seu domínio, como o pensamento
individual no homem, é igualmente formal (3). A distinção que colocamos é
assim, no fundo, a dos estados individuais e dos estados não-individuais (ou
supra-individuais), compreendendo os primeiros em su conjunto todas as
possibilidades formais, e os segundo todas as possibilidades informais.
O conjunto das possibilidades formais e o das
possibilidades informais são o que as diferentes doutrinas tradicionais
simbolizam respectivamente pelas “Águas inferiores” e as “Águas superiores”
(4); as Águas, de modo geral e no sentido mais amplo, representam a
Possibilidade, entendida como a “Perfeição passiva” (5), ou o princípio
universal que, no Ser, é determinado como a “substância” (aspecto potencial do
Ser); neste último caso, não se trata mais senão da totalidade das
possibilidades de manifestação, estando as possibilidades de não-manifestação
além do Ser (6). A “superfície das Águas”, ou seu plano de separação, que já
descrevemos como o plano de reflexão do “Raio Celeste” (7), marca então o
estado no qual opera-se a passagem do individual ao universal, e o símbolo bem
conhecido da “marcha sobre as Águas” figura a libertação da forma, ou a liberação
da condição individual (8). O ser que chegou ao estado para ele correspondente
à “superfície das Águas”, mas sem elevar-se ainda acima desta, acha-se como que
suspenso entre dois caos, nos quais tudo ainda não é senão confusão e
obscuridade (tamas), até o momento em
que se produz a iluminação que determina nele a organização harmônica na
passagem da potência ao ato, e pela qual opera-se, como pelo Fiat Lux cosmogônico, a hierarquização
que fará brotar a ordem do caos (9).
Esta consideração dos dois caos, correspondentes ao
formal e ao informal, é indispensável para a compreensão de um grande número de
representações simbólicas e tradicionais (10); por isso a mencionamos
especialmente aqui. De resto, embora já tenhamos tratado do assunto em nosso estudo
anterior, ele liga-se tão diretamente ao presente objeto que não pudemos deixar
de mencioná-lo, ao menos brevemente.
NOTAS
1. O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. II.
2. Ver ibid., cap. XIX, e também O
Simbolismo da Cruz, cap. I. “A forma, geometricamente falando, é o
contorno: é a aparência do Limite” (Matgioï, La Voie Métaphysique, pg. 85). Podemos defini-la como um conjunto
de tendências de direção, por analogia com a equação tangencial da curva; é
claro que esta concepção geométrica é transponível na ordem qualitativa.
Assinalemos também que podemos fazer intervir estas considerações no que diz
respeito aos elementos não individualizados (mas não supra-individuais) do
“mundo intermediário”, aos quais a tradição extremo-oriental dá o nome genérico
de “inflluências errantes”, e sua possibilidade de individualização temporária
e fugitiva, em determinação de direção, pela entrada em relação com a
consciência humana (cf. O Erro Espírita,
Parte I, cap. VII).
3. É sem dúvida deste modo que
se deve entender o que diz Aristóteles, que o homem (enquanto indivíduo) jamais
pensa sem imagens”, ou seja sem formas.
4. A separação das Águas, do
ponto de vista cosmogônico, acha-se descrita no início do Gênese (I, 6-7).
5. Ver O Simbolismo da Cruz, cap. XXIII.
6. Cf. O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. V)
7. O Simbolismo da Cruz, cap. XXIV. – É também, no simbolismo hindu, o
plano segundo o qual o Brahmânda ou
“Ôvo do Mundo”, no centro do qual reside Hiranyagarbha,
divide-se em duas metades; este “Ôvo do Mundo” é de resto representado como
flutuando na superfície das Águas primordiais (ver O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, caps. V e XIII).
8. Nârâyana, que é um dos nomes de Vishnu
na tradição hindu, significa literalmente “aquele que caminha sobbre as Águas”;
existe aí uma aproximação com a tradição evangélica que impõe-se por si só.
Naturalmente, aí como em toda parte, o
significado simbólico não causa nenhum dano ao caráter histórico que existe no
segundo fato considerado, fato que, de resto, é tanto menos contestável na
medida em que sua realização, que corresponde à obtenção de um certo grau de
iniciação efetiva, é bem menos raro do que se supõe normalmente.
9. Ver O Simbolismo da Cruz, caps. XXIV e XXVII.
10. Cf. notadamente o simbolismo
extremo-oriental do Dragão, que corresponde de certo modo à concepção teológica
ocidental do Verbo como “lugar dos possíveis” (ver O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. XVI).
XIII
AS HIERARQUIAS
ESPIRITUAIS
A hierarquização dos estados múltiplos na realização
efetiva do ser total permite compreender como é preciso considerar, do ponto da
metafísica pura, aquilo que se chama vulgarmente de “hierarquias espirituais”.
Sob este nome, entende-se normalmente hierarquias de seres diferentes do homem
e diferentes entre si, como se cada grau fosse ocupado por seres especiais,
limitados respectivamente aos estados correspondentes; mas a concepção dos
estados múltiplos nos dispensa de colocarmo-nos deste ponto de vista, que pode
ser muito legítimo para a teologia ou para outras ciências ou especulações
particulares, mas que nada tem de metafísico. No fundo, pouco nos importa em si
mesmo a existência de seres extra-humanos e supra-humanos, que certamente podem
ser de uma indefinidade de tipos, quaisquer que sejam as denominações pelas
quais os designamos; se temos toda razão em admitir esta existência (nem que
seja porque vemos também seres não-humanos no mundo que nos cerca, e que por
conseguinte devem existir em outros estados seres que não passam pela
manifestação humana, mesmo que sejam apenas aqueles que são representados neste
mundo por essas individualidades não-humanas), não temos entretanto nenhum
motivos para nos ocuparmos deles em particular, tanto quanto do seres
infra-humanos, que existem igualmente e que poderiam ser vistos da mesma forma.
Ninguém sonharia em fazer da classificação detalhada dos seres não-humanos do
mundo terrestre objeto de um estudo metafísico ou supostamente metafísico; não
vemos porque teria que ser diferente apenas pelo fato de que se trata de seres
existentes em outros mundos, ou seja que oupam outros estados, os quais, por
superiores que possam ser em relação ao nosso, nem por isso deixam de fazer
parte, da mesma forma, do domínio da manifestação universal. Apenas, é fácil
entender que os filósofos que pretenderam limitar o ser a um único estado,
considerando o homem, em sua individualidade mais ou menos extensa, como
constituindo um todo completo em si mesmo, se entretanto eles chegam a pensar
vagamente, por qualquer razão, que existem outros graus na Existência
universal, não puderam conceber estes graus senão como o domínio de seres
inteiramente estranhos para nós, salvo naquilo que possa haver de comum entre
todos os seres; e, ao mesmo tempo, a tendência antropomótfica muitas vezes levou-os
a exagerar a comunhão de naturezas, emprestando a estes seres faculdades não
simplesmente análogas, mas similares e mesmo idênticas às que pertencem
propriamente ao homem individual (1). Na realidade, os estados em questão são
incomparavelmente mais diferentes do estado humano do que qualquer filósofo do
Ocidente moderno jamais pode conceber, mesmo de longe; mas, apesar disto, estes
mesmos estados, quaisquer que possam ser os seres que os ocupam atualmente,
podem ser igualmente realizados por todos os outros seres, inclusive por aquele
que é ao mesmo tempo um ser humano em outro estado de manifestação, sem o que,
como já dissemos, não se poderia falar de totalização de nenhuma maneira, pois
esta totalização deve, para ser efetiva, compreender necessariamente todos os
estados, tanto de manifestação (formal e informal) quanto de não-manifestação,
cada qual segundo o modo pelo qual o ser considerado é capaz de o realizar. Já
notamos que quase tudo o que é dito teologicamente dos anjos pode ser dito
metafisicamente dos estados superiores do ser (2), assim como, no simbolismo
astrológico da idade média, os “céus”, ou seja as diferentes esferas
planetárias e estelares, representam estes mesmos estados, e também os graus
iniciáticos aos quais corresponde sua realização (3); e, como os “céus” e os
“infernos”, os Dêvas e os Asuras, na tradição hindu, representam
respectivamente os estados superiores e inferiores em relação ao estado humano
(4). Bem entendido, tudo isso não exclui nenhum dos modos de realização que podem
ser próprios a utros seres, do mesmo modo como existem os que são próprios ao
ser humano (na medida em que seu estado individual é tomado como ponto de
partida e por base da realização); mas esses modos que nos são alheios não nos
importam assim como não nos importam todas as formas que jamais seremos
chamados a realizar (como as formas animais, vegetais e minerais do mundo
corporal), porque elas já são realizadas por outros seres na ordem da
manifestação universal, cuja indefinidade exclui toda repetição (5).
Resulta do que dissemos que, por “hierarquias
espirituais”, não podemos entender propriamente nada de diferente do que o
conjunto de estados do ser que são superiores à individualidade humana, e mais
especialmente os estados informais ou supra-individuais, estados que devemos
aliás ver como realizáveis para o ser a partir do estado humano, e isto
inclusive no decurso de sua existência corporal e terrestre. Com efeito, esta
realização esta essencialmente implicada na totalização do ser, portanto na
“Libertação” (Moksha ou Mukti), pela qual o ser é liberto dos
laços de qualquer condição particular de existência, e que, não sendo
susceptível de diferentes graus, é tão completa e tão perfeita quer seja obtida
como “libertação em vida” (jîvan-mukti),
quer como “libertação além da forma” (videha-mukti),
como já tivemos ocasião de explicar (6). Da mesma forma, tampouco pode haver
nenhum grau espiritual que seja superior ao do Yogî, pois este, tendo chegado à esta “Libertação”, que é ao mesmo
tempo a “União” (Yoga) ou a
“Identidade Suprema”, não tem mais nada a obter ulteriormente; mas, se o
objetivo a ser atingido é o mesmo para todos os seres, é claro que cada qual o
atinge segundo a sua “via pessoal”, portanto atrav’s de modalidades
susceptíveis de variações indefinidas. Compreendemos por conseguinte que haja,
no decurso desta realização, etapas múltiplas e diversas, que podem de resto
ser percorridas sucessiva ou simultaneamente segundo o caso, e que, por se
referirem ainda a estados detetrminados, não devem ser confundidas com a
liberação total que é seu fim e objetivo supremo (7): trata-se de graus que
podemos considerar nas “hierarquias espirituais”, qualquer que seja a
classificação mais ou menos geral que se estabeleça, quando cabível, na
indefinidade de suas modalidades posíveis, e que dependerá naturalmente do
ponto de vista no qual se esteja colocado mais particularmente (8).
Existe aqui uma observação essencial a fazer: os
graus d que falamos, representando estados que são ainda contingentes e condicionados,
não importam metafisicamente em si mesmos, mas apenas em vista do objetivo para
o qual tendem todos, precisamente na medida em que são vistos como graus,
constituindo apenas como que uma preparação para tal. Não existe de resto
nenhuma medida comum entre um estado particular qualquer, por elevado que seja,
e o estado total e incondicionado; jamais devemos perder de vista que, diante
do Infinito, toda a manifestação é rigorosamente nula, e as diferenças entre os
estados que fazem parte dela o são evidentemente também, por consideráveis que
sejam em si mesmas quando consideramos apenas os estados condicionados que elas
separam uns dos outros. Se a passagem a certos estados superiores constitui de
certa forma, relativamente ao estado tomado como ponto de partida, uma espécie
de encaminhamento rumo à “Libertação”, deve entretanto ficar entendido que
esta, uma vez realizada, implicará sempre uma descontinuidade em relação ao
estado no qual se encontre atualmente o ser que a obterá, e que, qualquer que
seja este estado, esta descontinuidade não será nem mais nem menos prounda,
porque, em todos os casos, não haverá, entre o estado do ser “não-liberto” e o
do ser “liberto”, nenhuma relação comoa que existe entre diferentes estados
condicionados (9).
Em razão da equivalência de todos os estados diante
do Absoluto, uma vez que o objetivo final é atingido em um ou outro destes
graus, o ser não tem nenhuma necessidade
de have-los percorrido a todos previamente, e aliás ele os possui todos “por
acréscimo”, por assim dizer, porque gtrata-se aí de elementos integrantes de
sua totalização. Por outro lado, o ser que possui assim todos os estados poderá
sempre evidentemente, ser visto mais particularmente em relação a um qualquer
destes estados e como se ele estivesse aí efetivamente “situado”, embora ele
esteja verdadeiramente além de todos os estados e que eles os contenha todos em
si msmo, longe de podr ser contido em algum deles. Podemos dizer que, em tal
caso, tratar-se-á aí simplesmente de aspectos diversos que constituirão de
certa forma outras tantas “funções” deste ser, sem que este seja afetado por
suas condições, que não existem mais para ele senão em modo ilusório, pois, na
medida em que ele é verdadeiramente “si”, seu estado é essencialmente
incondicionado. É assim que a aparência formal, mesmo a corporal, pode
subsistir para o ser que foi “liberto em vida” (jîvan-mukta), e que, “durante sua residência no corpo, não mais é
afetado por suas propriedades, como o firmamento não é afetado pelo que flutua
em seu seio” (10); e ele permanece igualmente “não-afetado” por todas as outras
contingências, qualquer que seja o estado, individual ou supra-individual, vale
dizer formal ou informal, aos quais elas se refiram na ordem da manifestação,
que, no fundo, não é em si mesma senão a soma de todas as contingências.
NOTAS
1. Se os estados “angélicos”
são os estados supra-individuais que consntituem a manifestação informal, não
podemos atribuir aos anjos nenhuma das faculdades que são de ordem puramente
individual; por exemplo, como dissemos mais acima, não podemos supô-los como
dotados de razão, que é característica exclusiva da individualidade humana, e
eles podem não ter senão um modo de inteligência puramente intuitiva.
2. O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. X. – O tratado De Angelis de São Tomás de Aquino é particularmente característico
a este respeito.
3. L’Esotérisme de Dante, pgs. 10 e 58-61.
4. O Simbolismo da Cruz, cap. XXV.
5. Cf. ibid., cap. XV.
6. O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. XXIII.
7. Cf. ibid., caps. XXI e XXII.
8. Estas “hierarquias
espirituais”, na medida em que os diversos estados que elas comportam são
realizados pela obtenção respectiva dos graus iniciátios efetivos, correspondem
ao que o esoterismo islâmico chama de “categorias da iniciação” (Tartîbut-taçawuf); assinalaremos a
respeito em especial o tratado de Mohyiddin ibn Arabî que tem este título.
9. Ver O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. XX.
10. Atmâ-Bodha de Shankarâchârya (ver ibid.,
cap. XXIII).
XIV
RESPOSTA ÀS
OBJEÇÕES TIRADAS DA PLURALIDADE DOS SERES
No que precede, existe um ponto que poderia
prestar-se a uma objeção, embora, a bem dizer, já a tenhamos respondido em
parte, ao menos implicitamente, pelo que expusemos a propósito das “hierarquias
espirituias”. Esta objeção é a seguinte: dado que existe uma indefinidaqde de
modalidades que são realizadas por seres diferentes, é realmente legítimo
falar-se em totalidade para cada ser? Podemos responder a isto, primeiramente,
lembrando que assim colocada a objeção só se aplica evidentemente aos estados
manifestados, porque, no não-manifestado, não se poderia tratar de nenhum tipo
de distinção real, de tal sorte que, do ponto de vista destes estados de
não-manifestação, o que pertence a um ser pertence igualmente a todos, na
medida em que eles efetivamente realizaram estes estados. Ora, se considerarmos
deste ponto de vista todo o conjunto da manifestação, ele não constitui, em
razão de sua contingência, mais do que um simples “acidente” no sentido próprio do termo, e, por
conseguinte, a importância de tal ou tal de suas modalidades, considerada em si
mesma e “distintivamente”, é assim rigorosamente nula. Ademais, como o
não-manifestado contém em princípio tudo aquilo que faz a realidade profunda e
essencial das coisas que existem sob qualquer modo da manifestação, isto sem o
que o manifestado não teria mais do que uma existência puramente ilusória,
podemos dizer que o ser que chegou efetivamente ao estado de não-manifestação
possui por isso mesmo todo o resto, e que ele o possui verdadeiramente “por
acréscimo”, do mesmo modo como, conforme dissemos no capítulo anterior, ele
possui todos os estados ou graus intermediários, mesmo sem tê-los percorrido
préviamente e distintivamente.
Esta resposta, na qual não consideramos senão o ser
que atingiu a realização total, é plenamente satisfatória do ponto de vista
puramente metafísico, e é mesmo a única que pode ser de fato suficiente, pois,
se não considerarmos o ser desta maneira, se nos colocarmos em outro caso que
não este, não haverá mais sentido em falar em totalidade, de sorte que a
própria objeção não mais poderá aplicar-se. O que é preciso dizer, em suma,
tanto aqui como para as objeções concernentes à existência da multiplicidade, é
que o manifestado, considerado como tal, ou seja sob o aspecto da distinção que
o condiciona, não é nada diante do não-manifestado, pois não pode haver nenhuma
medida comum entre um e outro; o que é absolutamente real (sendo todo o reston
ilusório, no sentido de uma realidade que não é mais do que derivada e como que
“participada”), é, mesmo para as possibilidades que comporta a manifestação, o
estado permanente e incondicionado sob o qual elas pertencem, principial e
fundamentalmente, à ordem da não-manifestação.
Entretanto, embora isso seja suficiente, trataremos
agora ainda de um outro aspecto da questão, no qual consideraremos o ser como
tendo realizado, não mais a totalidade do “Si” incondicionado, mas apenas a
integralidade de um certo estado. Neste caso, a objeção precedente deve tomar
uma nova forma: como é possível consinderar esta totalidade para apenas um ser,
enquanto que o estado em questão constitui um domínio que lhe é comum com uma
indefinidade de outros seres, na medida em que estes estão igualmente
submetidos às condições que caracterizam e determinam este estado ou este modo
de existência? Não se traata mais da mesma objeção, mas apenas de uma objeção
análoga, guardadas as proporções entre os dois casos, e a resposta deve ser
também análoga: para o ser que chegou a colocar-se efetivamente do ponto de
vista central do estado considerado, o que é a única maneira possível de
realizar sua integralidade, todos os outros pontos de vista, mais ou menos
particulares, não importam mais para ele na medida em que são tomados distintamente,
porque ele unificou-os todos neste ponto de vista central; é portanto na
unidade deste que eles existem a partir de então para ele, e não mais fora
desta unidade, porque a existência da multiplicidade fora da unidade é
puramente ilusória. O ser que realizou a integralidade de um estado fez de si
mesmo o centro deste estado, e, como tal, podemos dizer que ele preenche este
estado inteiro com sua própria irradiação (1): ele assimila tudo o que está
contido nele, de modo a fazer disto outras tantas modalidades secundárias de si
mesmo (2), mais ou menos comparáveis àquilo que são as modalidades que se
realizam no estado de sonho, segundo o que já dissemos antes. Em conseqüência,
este ser não é absolutamente afetado, em sua extensão, pela existência que estas
modalidades, ou ao menos algumas delas, podem ter além e fora de si mesmo
(sendo que esta expressão “fora” não tem mais sentido do seu próprio ponto de
vista, mas apenas do ponto de vista dos demais seres, que permaneceram na
multiplicidade não unificada), em razão da existência simultânea de outros
seres no mesmo estado; e, por outro lado, a existência dessas mesmas
modalidades em si mesmo em nada afeta a sua unidade, mesmo tratando-se da
unidade ainda relativa que é realizada no centro deste estado em particular.
Todo este estado não é realizado senão pela irradiação de seu centro (3), e
todo ser que se coloque efetivamente neste centro torna-se igualmente, por isso
mesmo, mestre da integralidade deste estado; é assim que a indiferenciação
principial do não-manifestado reflete-se no manifestado, e deve ficar bem
entendido, de resto, que este reflexo, estando no manifestado, mantém sempre
por isso a relatividade que é inerennte a toda existência condicionada.
Estabelecido
isso, entenderemos sem dificuldade que considerações análogas podem ser
aplicadas às modalidades compreendidas, a diversos títulos, numa unidad ainda
mais relativa, como a de um ser que não realizou senão um certo estado
parcialmente, e não integralmente. Um tal ser, como o indivíduo humano por
exemplo, sem ter ainda chegado ao seu inteiro desabrochar no sentido da
“amplidão” (correspondente ao grau de existência no qual ele está situado),
assimilou entretanto para si, numa medida mais ou menos completa, tudo aquilo
de que verdadeiramente tenha tomado consciência dentro dos limites de sua
extensão atual; e as modalidades acessórias que ele assim agregou, e que são
evidentemente susceptíveis de serem acrescentadas constantemente e
indefinidamente, constituem uma parrte muito importante desses prolongamentos
da individualidade a que já aludimos em diversas ocasiões.
NOTAS
1. Cf. O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. XVI.
2. O símbolo da “nutrição” (anna) é frequentemente empregado nos Upanishads para designar esta
assimilação.
3. Isto foi amplamente
explicado em nosso estudo sobre O
Simbolismo da Cruz.
XV
A REALIZAÇÃO DO
SER PELO CONHECIMENTO
Dissemos que o ser assimila para si mais ou me nos
completamente tudo aquilo de que ele toma consciência; com efeito, não existe
conhecimento verdadeiro, em qualquer domínio que seja, senão o que nos permite
penetrar mais ou menos profundamente na natureza íntima das coisas, e os graus
do conhecimento não podem consistir precisamente senão em que esta penetração
seja mais ou menos profunda e chegue a uma assimilação mais ou menos completa.
Em outros termos, não existe conhecimento verdadeiro senão na medida em que
implique uma identificação do sujeito com o objeto, ou, se preferirmos a
relação em sentido inverso, uma assimilação do objeto pelo sujeito (1), e na
medida precisa em que ele implique efetivamente uma tal identificação ou uma
tal assimilação, da qual os graus de realização constituem, por conseqüência,
os prórpios graus de conhecimento (2). Devemos então agora, apesar de todas as
discussões filosóficas mais ou menos ociosas a que este ponto pode dar lugar
(3), dizer que todo conhecimento verdadeiro e efetivo é imediato, e que um
conhecimento mediato não pode ter senão um valor puramente simbólico e
representativo (4). Quanto à possibilidade mesma de um conhecimento imediato, a
própria teoria dos estados múltiplos torna suficientemente compreensível; de
resto, pretender colocá-la em dúvida, equivale a provar uma perfeita ignorância
dos princípios metafísicos mais elementares, pois, sem este conhecimento
imediato, a própria metafísica seria inteiramente impossível (5).
Falamos de idntiicação ou de assimilação, e podemos
empregar aqui os dois termos quase que indiferentemente, embora não se reportem
exatamente ao mesmo ponto de vista; do mesmo modo, podemos ver o conhecimento
como indo ao mesmo do sujeito ao objeto do qual ele toma consciência (ou, mais
genericamente e para não nos lmitarmos às condições de certos estados, do qual
ele faz uma modalidade secundária de si mesmo) e do objeto ao sujeito que o
assimila, e lembraremos a respeito a definição aristotélica do conhecimento, no
domínio sensível, como “o ato comum daquele que sente e daquele que é sentido”,
que implica efetivamente uma tal reciprocidade da relação (6). Assim, no que
diz respeito a este domínio sensível ou corporal, os órgãos dos sentidos são,
para o ser individual, as “entradas” do conhecimento (7); mas, de outro ponto de vista, eles são também as “saídas”,
precisamente porque todo conhecimento implica um ato de identificação que parte
do sujeito conhecedor na direção do objeto individual, como a emissão de uma
espécie de prolongamento exterior de si mesmo. Vale lembrar, de resto, que um
tal prolongamento não é exterior senão em relação à individualidade considerada
em sua porção mais restrita, pois ele é parte integrante da individualidade
extensa; o ser, estendendo-se assim por um desenvolvimento de suas
possibilidades, não precisa absolutamente sair de si mesmo, o que, na
realidade, não teria nenhum sentido, pois um ser não pode, em caso algum,
tornar-se outro do que si mesmo; isto responde diretamente, ao mesmo tempo, à
principal objeção dos filósofos ocidentais contra a possibilidade do
conhecimento imediato; vemos claramente assim que aquilo que dá origem a uma
tal objeção não é senão uma incompreendão metafísica pura e simples, em razão
da qual estes filósofos desconhecem as possibilidades do ser, mesmo individual,
em sua extensão indefinida.
Tudo isso é verdadeiro a fortiori se, sainda dos limites da individualidade, o aplicamos
aos estados superiores: o conhecimento verdadeiro destes estados implica sua
possessão efetiva, e, inversamente, é por este connhecimento que o ser toma
possessão deles, pois estes dois atos são inseparáveis um do outro, e podemos
mesmo dizer que, no fundo, eles são um só. Naturalmente, isto não deve ser
entendido senão do conhecimento imediato, o qual, uma vez estendido à
totalidade dos estados, comporta em si mesmo sua realização, e que é, por
conseguinte, “o único meio de obter a Libertação completa e final” (8). Quanto
ao conhecimento que permanece puramente teórico, é evidente que ele não poderia
de modo algum equivaler a uma tal realização, e não sendo uma captação imediata
de seu objeto, ele não pode ter, como já dissemos, senão um valor simbólico;
mas ele não deixa de ser uma preparação indispensável à aquisição do
conhecimento efetivo pelo qual, e somente pelo qual, opera-se a realização do
ser total.
Devemos insistir particularmente, em todas as
ocasiões, sobre esta realização do ser pelo conhecimento, pois ela é totalmente
estranha às concepções ocidentais modernas, que não vão além do conhecimento
teórico, ou mais exatamente de uma fraca parte deste, e que opõem
artificialmente o “conhecer” ao “ser”, como se não fossem as duas faces
inseparáveis de uma só e mesma realidade (9); não pode haver metafísica
verdadeira para quem não compreenda que o ser se realiza pelo conhecimento, e
que ele não pode realizar-se senão desta maneira. A doutrina metafísica pura
não tem que se preocupar, por pouco que seja, com todas as “teorias do
conhecimento”, penosamente elaboradas pela filosofia moderna; podemos mesmo
ver, nestes ensaios de substituir o conhecimento verdadeiro por uma “teoria do
conhecimento”, uma real confissão de impotência, certamente inconsciente, da
parte desta filosofia, tão completamente ignorante da possibilidade de uma
realização efetiva. Por outro lado, o conhecimento verdadeiro, por ser imediato
como dissemos, pode ser mais ou menos completo, mais ou menos profundo, mais ou
menos adequado, mas não pode ser essencialmente “relativo” como o quer essa
filosofia, ou ao menos ele só é relativo na medida em que seus objetos também o
sejam. Em outros termos, o conhecimento relativo, metafisicamente falando, não
é outra que o conhecimento do relativo e do contingente, ou seja aquele que se
aplica ao manifestado; mas o valor desse conhecimento, no interior de seu
domínio próprio, é tão grande quanto lhe permite a natureza deste domínio (10),
e não é assim que o entendem os que falam da “relatividade do conhecimento”.
Fora as considerações dos graus de um conhecimento mais ou menos completo e
profundo, graus que não mudam em nada sua natureza essencial, a única distinção
que podemos fazer legitimamente, quanto ao valor do conhecimento, é aquela que
já indicamos entre o conhecimento imediato e o conhecimento mediato, ou seja
entre o conhecimento efetivo e o conhecimento simbólico.
NOTAS
1. Deve ficar bem entendido que
tomamos aqui os termos “sujeito” e “objeto” em seu sentido habitual, para
designar respectivamente “aquele que conhece” e “aquilo que é conhecido” (ver O Homem e seu devir segundo o Vêdânta,
cap. XV).
2. Já asinalamos em diferentes
ocasiões que Aristóteles colocou em princípio a identificação pelo conhecimento,
mas que esta afrimação, tanto nele quanto em seus continuadores escolásticos,
parece ter permanecido puramente teórica, sem que jamais se tenha tirado
nenhuma conseqüência no que diz respeito à realização metafísica (ver
notadamente Introduction générale à
l’étude des doctrines hindoues, 2ª parte, cap. X, e O Homem e seu devir segundo o Vêdânta,
cap. XXIV).
3. Não fazemos alusão aqui às
modernas “teorias do conhecimento”, sobre cuja vacuidade já nos explicamos
antes (Introduction générale à l’étude
des doctrines hindoues, 2ª
parte, cap. X); voltaremos a isto mais adiante.
4. Esta diferença é a que
existe entre o conhecimento intuitivo e o conhecimento discursivo, de que já
falamos suficientemente.
5. Ver ibid., 2ª parte, cap. V.
6. Podemos lembrar também que o
ato comum a dois seres, segundo o sentido que Aristóteles dá ao termo “ato”, é
aquilo pelo que suas naturezas coincidem, e portanto identificam-se ao menos
parcialmente.
7. Ver O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. XII; o simbolismo das
“bocas” de Vaishwânara refere-se à
analogia da assimilação cognitiva com a assimilação nutritiva.
8. Atmâ-Bodha de Shankarâchârya (ver ibid.,
cap. XXII).
9. Ver ainda Introduction générale à l’étude des
doctrines hindoues, 2ª parte, cap. X.
10. Isto aplica-se mesmo ao
simples conhecimento sensível que é também, na ordem inferior e limitada que é
a sua, um conhecimento imediato, e portanto necessariamente verdadeiro.
XVI
CONHECIMENTO E
CONSCIÊNCIA
Uma conseqüência muito importante do que foi dito
até aqui, é que o conhecimento, entendido de modo absoluto e em toda a sua
universalidade, não é de nenhuma maneira sinônimo ou equivalente da
consciência, cujo domínio é apenas coextensivo ao de vertos estados de ser determinados, de
sorte que é somente nestes estados, à exclusão de todos os demais, que o
conhecimento se realiza por meio daquilo que podemos chamar propriamente de uma
“tomada de consciência”. A consciência, tal como a entendemos anteriormente,
mesmo em sua máxima generalidade e sem restringi-la à sua forma especificamente
humana, não passa de um modo contingente e especial de conhecimento sob certas
condições, uma propriedade inerente ao ser considerado em certos estados de
manifestação; com mais forte razão não se poderia tratar dela em nenhum grau
para os estados incondicionados, ou seja para tudo o que ultrapassa o Ser, pois
ela sequer é aplicável a todo o Ser. Ao contrário, o conhecimento, considerado
em si e independentemente das condições afeitas a qualquer estado em
particular, não pode admitir nenhuma restrição, e, para ser adequado à verdade
total, ele deve ser coextensivo, não apenas ao Ser, mas à própria Possibilidade
universal, devendo portanto ser infinito como esta necessariamente é. Isto
equivale a dizer que conhecimento e verdade, assim considerados metafisicamente,
não são no fundo outra coisa do que aquilo a que chamamos, numa expressão aliás
bastante imperfeita, de “aspectos do Infinito”; e é o que afirma com uma
clareza especial esta fórmula que é um dos enunciados fundamentais do Vêdânta:
“Brahma é a Verdade, o Conhecimento,
o Infinito” (Satyam Jnânan Anantam Brahma)
(1).
Quando dissemos que “conhecer” e “ser” são as duas
faces de uma mesma realidade, não se deve portanto tomar o termo “ser” senão no
seu sentido analógico e simbólico, pois o conhecimento vai além do Ser;
acontece aqui o mesmo que no caso em que falamos da realização do ser total,
implicando esta realização essencialmente o conhecimento total e absoluto, e
não sendo absolutamente distinto deste mesmo conhecimento, na medida em que se
trate, bem entendido, do conhecimento efetivo, e não de um simples conhecimento
teórico e representativo. E cabe aqui precisar um pouco, por outro lado, o modo
como se deve entender a indentidade metafísica do possível e do real: uma vez
que todo possível é realizado pelo conhecimento, esta identidade, tomada
no universal, constitui propriamente a
verdade em si, pois esta pode ser concebida precisamente como a perfeita
adequação do conhecimento com a Possibilidade total (2). Vemos sem dificuldade
todas as conseqüências que podemos tirar desta última observação, cujo alcance
é imensamente maior do que o de uma definição simplesmente lógica da verdade,
pois existe aí toda a diferença entre o intelecto universal e incondicionado
(3) e o entendimento humano com suas condições individuais, e também, por outro
lado, toda a diferença que separa o ponto de vista da realização daquele de uma
“teoria do conheimento”. A própria palavra “real”, habitualmente muito vaga,
até mesmo equívoca, e que o é forçosamente para os filósofos que mantém a
pretensa distinção do possível e do real, toma assim um valor metafísico, ao
ver-se reportada a este ponto de vista da ralização (4), ou, para falar de modo
mais preciso, ao tornar-se uma expressão da permanência absoluta, no Universal,
de tudo aquilo de que o ser atinge a posse efetiva pela total realização de si
mesmo (5).
O intelecto, enquanto princípio universal, poderia
ser concebido como o continente do conhecimento total, mas com a condição de
não se ver aí senão uma simples maneira de falar, pois aqui estamos
essencialmente na “não-dualidade”, e o continente e o conteúdo devem ser
absolutamente idênticos (pois um e outro devem ser igualmente infinitos, e uma
“pluralidade de infinitos”, como dissemos, é uma impossibilidade). A Possibilidade
universal, que compreende tudo, não pode ser compreendida por nada senão por si
mesma, e ela compreende a si mesma, “sem no entanto que esta compreensão exista
de qualquer forma” (6); tampouco se pode falar correlativamente do intelecto e
do conhecimento, no sentido universal, senão como falamos mais acima do
Infinito e da Possibilidade, ou seja vendo aí uma única e mesma coisa,
considerada simultaneamente sob um aspecto ativo e sob um aspecto passivo, mas
sem que haja aí nenhuma distinção real. Não devemos distinguir, no Universal,
intelecto e conhecimento, nem, por conseguinte, inteligível e cognoscível:
sendo o conhecimento verdadeiro imediato, o intelecto torna-se rigorosamente
uno com seu objeto; não é senão nos modos condicionados do conhecimento, modos
sempre indiretos e inadequados, que cabe estabelecer uma distinção, porque este
conhecimento relativo opera, não pelo intelecto em si mesmo, mas por uma
refração do intelecto nos estados do ser considerados, e, como vimmos, é uma
refração deste tipo que constitui a consciência individual; mas, direta ou
indiretamente, sempre existe participação no intelecto universal na medida em
que haja conhecimento efetivo, seja sob um modo qualquer, seja fora de qualquer
modo em particular.
Sendo o conhecimento total adequado à Possibilidade
universal, não há nada que seja incognoscível (7), ou, em outros termos, “não
existem coisas ininteligíveis, mas apenas coisas atualmente incompreensíveis”
(8), ou seja inconcebíveis, não em si e de modo absoluto, mas apenas para nós
enquanto seres condicionados, vale dizer limitados, em nossa manifestação
atual, às posibilidades de um estado determinado. Colocamos assim o que podemos
chamar de um princípio de “inteligibilidade universal”, não como é entendido de
ordinário, mas num sentido puramente metafísico, portanto além do domínio
lógico, onde este princípio, como todos os que são de ordem propriamente
universal (os únicos que merecem ser chamados de princípios), não encontrará
senão uma aplicação particular e contingente. Bem entendido, isto não postula
para nós nenhum “racionalismo”, bem ao contrário, pois a razão, essencialmente
diferente do intelecto (sem cuja garantia ela não poderia ser validada), não é
nada além de uma faculdade especificamente humana e individual; existe assim
necessariamente, não diremos um “irracional” (9), mas um “supra-racional”, e
este é, com efeito, um caráter fundamental de tudo o que é de ordem
verdadeiramente metafísica: este “supra-racional” não deixa por isso de ser
inteligível em si, mesmo não sendo atualmente compreensível para as faculdades
limitadas e relativas da individualidade humana (10).
Isto enseja ainda uma outra observação para evitar
qualquer engano: como o termo “razão”, o termo “consciência” pode ser às vezes
universalizada, por uma transposição puramente analógica, que já fizemos aliás
para dar o significado do termo sânscrito Chit
(11); mas uma tal transposição só é possível quando nos limitamos ao Ser, como
foi o caso da consideração do ternário Sachchitdânanda.
Entretanto, devemos compreender que, mesmo com esta restrição, a consciência
assim transposta não será mais entendida em seu sentido próprio, como definimos
precedentemente, e como conservamos de modo geral: neste sentido, ela não é,
repetimos, senão o modo especial de um conhecimento contingente e relativo,
como é relativo e contingente o estado de ser condicionado ao qual ele pertence
essencialmente; e, se podemos dizer que ela é uma “razão de ser” para um tal
estado, não é senão na medida em que ela é uma participação, por refração, à
natureza deste intelecto universal e transcendente que é em si, final e
eminentemente, a suprema “razão de ser” de todas as coisas, a verdadeira “razão
suficiente” metafísica que determina a si mesma em todas as ordens de
possibilidades, sem que nenhuma de suas determinações possa afetá-lo como quer
que seja. Esta concepção da “razão suficiente”, bem diferente das concepções
filosóficas ou teológicas em que se fecha o pensamento ocidental, resolve aliás
imediatamente muitas questões diante das quais este deve confessar-se
impotente, e isto ao mesmo tempo em que opera a conciliação do ponto de vista
da necessidade com o da contingência; estamos aqui, de fato, bem além da
oposição entre a necessidade e a contingência entendidas em sua acepção
ordinária (12); mas alguns esclarecimentos complementares serão úteis para
fazer compreender porque a questão não se coloca em metafísica pura.
NOTAS
1. Taittirîaka Upanishad, 2º Vallî, 1º Anuvâka, shloka
1.
2. Esta fórmula concorda com a
definição que São Tomás de Aquino dá sobre a verdade como adequatio rei et
intellectus; mas ela é de certo modo uma transpoição sua, porque deve-se ter em
conta que a doutrina escolástica encerra-se exclusivamente no Ser, enquanto que
o que dizemos aplica-se igualmente a tudo o que está além do Ser.
3. Aqui, o termo
“intelecto” está também transposto para
além do Ser, portanto com mais razão para além da Buddhi, a qual, embora de ordem universal e informal, pertence
ainda ao domínio da manifestação, e portanto não pode ser dita incondicionada.
4. Lembraremos ainda o estreito
parentesco, que nada tem de fortuito, entre as palavras “real” e “realização”.
5. É esta mesma permanência que
se exprime de outro modo, na linguagem teológica ocidental, quando se diz que
os possíveis estão eternamente no entendimento divino.
6. Risâlatul-Ahadiyah de Mohyiddin ibn Arabî (cf. O
Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. XV).
7. Rejeitamos formalmente e
absolutamente todo “agnosticiscmo”, em qualquer grau que seja; poderíamos
aliásperguntar aos “positivistas”, assim como aos partidários da famosa teoria
do “Incosgnoscível” de Herbert Spencer, o que os autoriza a afirmar que existem
coisas que não podem ser conhecidas, e esta questão provavelmente ficaria sem
resposta, tanto mais que alguns parecem, de fato, confundir simplesmente o
“desconhecido” (ou seja, o que é desconhecido para eles) e o “incognoscível”
(ver Orient et Occident, 1ª
parte, cap. I, e La Crise du Monde
moderne, pg. 98).
8.
Matgioi, La Voie Métaphysique, pg. 86).
9. O que ultrapassa a razão, de
fato, não é por isso contrário à razão, que é o sentido geralmente atribuído ao
termo “irracional”.
10. Lembremos a propósito que um
“mistério”, mesmo entendido na sua concepção teológica, não é absolutamente uma
coisa incognoscível e ininteligível, mas sim, segundo o sentido etimológico da
palavra, algo que é inexprimível, portanto incomunicável, o que é bem
diferente.
11. O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. XIV.
12. Digamos aliás que a
teologia, bem superior nisto do que a filosofia, reconhece ao menos que esta
oposição pode e deve ser ultrapassada, mesmo que sua resolução não apareça com
a evidência que ela apresenta quando vista da perspectiva metafísica. É preciso
acrescentar que é sobbretudo do ponto de vista teológico, em razão da concepção
religiosa da “criação”, que esta questão
das relações da necessidade e a contingência revestiram-se da importância que
depois guardaram filosoficamente no pensamento ocidental.
XVII
NECESSIDADE E
CONTINGÊNCIA
Toda possibilidade de manifestação, dissemos acima,
deve se manifestar pelo simples fato de ser o que é, ou seja uma possibilidade
de manifestação, de tal modo que a manifestação está necessariamente implicada
em princípio pela própria natureza de certas possibilidades. Assim, a manifestação,
que é puramente contingente enquanto tal, não deixa de ser necessária em seu
princípio, assim como, transitória em si mesma, ela possui no entanto uma raiz
absolutamente permanente na Possibilidade universal; e é isto, aliás, que faz
toda sua realidade. Se fosse de outra forma, a manifestação nãopoderia ter
senão uma existência ilusória, e poderíamos mesmo considerá-la como
rigorosamente inexistente, pois, sendo sem princípio, ela não guardaria mais do
que um caráter essencialmente “privativo”, como só pode sê-lo o de uma negação
ou de uma limitação considerada em si mesmo; e a manifestação, vista desta
forma, não seria nada mais do que o conjunto de todas as condições limitativas
possíveis. Somente, a partir do momento em que essas condições são possíveis,
elas são metafisicamente reais, e esta realidade, que não era senão negativa
quando as concebíamos como simples limitações, torna-se positiva, de certa
forma, quando as consideramos enquanto possibilidades. É portanto devido ao
fato da manifestação estar implicada na ordem das possibilidades que ela possui
sua realidade própria, sem que esta realidade possa de modo algum ser
independente dessa ordem universal, pois é aí, e somente aí, que ela possui sua
verdadeira “razão suficiente”: dizer que a manifestação é necessária em seu
princípio, não é outra coisa, no fundo, que dizer que ela está compreendida na
Possibilidade universal.
Não existe nenhuma dificuldade em conceber que a
manifestação seja assim ao mesmo tempo necssária e contingente sob pontos de vista
diferentes, desde que se tenha atenção para este ponto fundamental, que o
princípio não pode ser afetado por qualquer determinação que seja, por ser
essencialemtne independente delas, como o é a causa de seus efeitos, de sorte
que a manifestação, necessária por seu princípio, não poderia inversamente ser
necessária a ele. É assim a “irreversibilidade” ou a “irreciprocidade” da
relação que consideramos aqui que resolve toda a dificuldade normalmente
suposta para esta questão (1), dificuldade que só existe porque se perde de
vista a “irreciprocidade”; e, se a perdemos de vista, é porque, pelo fato de
estarmos atualmente colocados na manifestação, somos naturalmente levados a
atribuir a esta uma importância que, do ponto de vista universal, ela não pode
ter. Para nos fazermos melhor entender, podemos tomar aqui ainda um símbolo
espacial, e dizer que a manifestação, em sua integralidade, é verdadeiramente
nula diante do Infinito, assim como (salvo as reservas exigidas pela
imperfeição da comparação) um ponto situado no espaço é igual a zero em relação
a este espaço (2); isto não quer dizer que este ponto seja absolutamente nada
(tanto mais que ele existe necessariamente pelo fato mesmo que o espeço
existe), mas ele é nada sob o aspecto da extensão, ele é rigorosamente um zero
de extensão; e a manifestação não é nada mais, em relação ao todo universal, do
que é o ponto em relação ao espaço considerado em toda a indefinidade de sua
extensão, e ainda com a diferença de que o espaço é algo limitado por sua própria
natureza, enquanto que o Todo universal é o Infinito.
Devemos indicar aqui uma outra dificuldade, mas que
reside muito mais em sua expressão do que em sua concepção: tudo o que existe
em modo transitório na manifestação deve ser transposto em modo permanente no
manifestado; a própria manifestação adquire assim a permanência que faz toda a
sua realidade principial, mas não se trata mais da manifestação enquanto tal,
mas do conjunto das possibilidades de manifestação na medida em que não se
manifestam, apesar de implicarem a manifestação em sua própria natureza, sem o
que elas seriam outra coisa do que são. A dificuldade desta transposição ou
desta passagem do manifestado ao não manifestado e a obscuridade aparente que
dela resulta, são as que encontramos igualmente quando queremos exprimir, na
medida em que se pode, as relações do tempo, ou mais genericamente da duração
sob todos os seus modos (ou seja de toda condição de existência sucessiva) com
a eternidade; e no fundo é a mesma questão, encarada so b dois aspectos um
pouco diferentes, e dos quais o segundo é apenas mais particularizado do que o
primeiro, por referir-se apenas a uma condição determinada, dentre todas as que
comporta o manifestado. Tudo isso, repetimos, é perfeitamente concebível, mas é
preciso deixar a parte do inexprimível, como aliás em tudo o que pertence ao
domínio metafísico; quanto aos meios de realização de uma concepção efetiva, e
não simplesmente teórica, que se estenda até o próprio inexprimível, é algo de
que não podemos falar aqui, pois considerações desta ordem não cabem no quadro
do estudo a que nos propusemos presentemente.
Voltando à contingência, podemos, de modo geral, dar
a seguinte definição dela: é contingente tudo aquilo que não tem em si sua
razão suficiente; e assim vemos que toda coisa contingente é também necessária,
no sentido que ela é necessitada pela sua razão suficiente, pois, para existir,
ela deve ter uma, mas que não está nela, ao menos na medida em que a
consideramos sob a condição particular em que ela tem este caráter de
contingência, que ela não teria mais se a víssemos em seu princípio, uma vez
que então ela se identificaria com sua própria razão suficiente. Tal é o caso
da manifestação, contingente enquanto tal, porque seu princípio ou sua razão
suficiente acha-se no não-manifestado, na medida em que este comporta o que
podemos chamar de “manifestável”, ou seja as possibilidades de manifestação
enquanto possibilidades puras (e não por comportar o “não-manifestável” ou as
possibilidades de não-manifestação). Princípio e razão suficiente são assim a
mesma coisa, mas é particularmente importante considerar o princípio sob este
aspecto de razão suficiennte quando queremos compreender a noção de
contingência em seu sentido metafísico; e é preciso ainda frisar, para evitar
confusões, que a razão suficiente é exclusivamente a razão de ser última de uma
coisa (última se partirmos da consideração da coisa para remontar ao princípio,
mas primeira na ordem do encadeamento, tanto lógico como ontológico, que vai do
princípio às conseqüências), e não simplesmente sua razão de ser imediata, pois
tudo o que é, sob qualquer modo que seja, mesmo contingente, deve ter em si
mesmo su arazão de ser imediata, entendida no sentido em que dissemos
precedentemente que a consciência constitui uma razão de ser para certos
estados de existência manifestada.
Uma conseqüência muito importante disso, é que
podemos dier que todo ser traz em si mesmo seu destino, seja de modo relativo
(destino individual), se se tratar apenas de um ser considerado no interior de
um certo estado condicionado, seja de modo absoluto, se se trata do ser em sua
totalidade, “pois o termo ‘destino’ designa da verdadeira razão de ser das
coisas” (3). Apenas, o ser condicionado ou relativo não pode trazer em si senão
um destino igualmente relativo, exclusivamente afeito a suas condições
específicas de existência; se, considerando o ser deste modo, quisermos falar
de seu destino último ou absoluto, este não estará mais nele, por não ser mais
verdadeiramente o destino deste ser contingente como tal, por se referir em
realidade ao ser total. Esta observação
basta para mostrar a inutilidade de todas as discussões que se referem
ao “determinismo” (4): esta é mais uma destas questões, tão numerosas na
filosofia ocidntal moderna, que só existem porque são mal colocadas; existem
aliás muitas concepções diferentes do determinismo, e também muitas concepções
diferentes da liberdade, das quais a maior parte nada tem de metafísico; é
assim importante definir a verdadeira noção metafísica da liberdade, e é por
esta que terminaremos nosso estudo.
NOTAS
1. É esta mesma
“irreciprocidade” que exclui igualmente todo “panteísmo” e todo “imanentismo”,
como já indicamos (O Homem e seu devir
segundo o Vêdânta, cap. XXIV).
2. Trata-se aqui, bem
entendido, do ponto situado no espaço, e não do ponto principial do qual o
próprio espaço não é mais do que uma expansão ou um desenvolvimento. – Sobre as
relações entre o ponto e a extensão, ver O
Simbolismo da Cruz, cap. XVI.
3. Comentário tradicional de
Tcheng-Tsé sobre o Y King (cf. O Simbolismo da Cruz, cap. XXII).
4. Podemos dizer omesmo de boa
parte das discussões relatuivas à finalidade; é assim, notadamente, que a
distinção ente a “finalidade interna” e a “finalidade externa” não pode ser
válida senão quando se admite a suposição anti-metafísica de que um ser
individual é um ser completo e constitui um “sistema fechado”, pois, de outra
forma, o que “externo” para o indivíduo pode ser “interno” para o ser
verdadeiro, se é que a distinção implicada no termo seja ainda aplicável (ver O Simbolismo da Cruz, cap. XXIX); e é
fácil dar-se conta de que. No fundo, finalidade e destino são a mesma coisa.
XVIII
NOÇÃO METAFÍSICA
DA LIBERDADE
Para provar metafisicamente a liberdade, basta, sem
as complicações dos argumentos filosóficos ordinários, estabelecer que ela é
uma possibilidade, pois o possível e o real são metafisicamente idênticos. Para
tanto, podemos inicialmente definir a liberdade como ausência de sujeição:
definição negativa em sua forma, mas que, aqui ainda, é positiva no fundo, pois
é a sujeição que é uma limitação, ou seja uma verdadeira negação. Ora, quanto à
Possibilidade universal considerada além do Ser, ou seja como o Não-Ser, não
podemos falar de unidade, como já dissemos, porque o Não-Ser é o Zero
metafísico, mas podemos ao menos, sempre empregando a forma negativa, falar de
“não-dualidade” (adwaita) (1). Onde
não existe dualidade, necessariamente não existe nenhuma sujeição, e isto basta
para provar que a liberdade é uma possibilidade, a partir do momento em que ela
resulta imediatamente da “não-dualidade”, que é evidentemente isenta de
qualquer contradição.
Agora, podemos acrescentar que a liberdade é, não apenas
uma possibilidade, no sentido mais universal, mas também uma possibilidade de
ser ou de manifestação; basta aqui, para passarmos do Não-Ser ao Ser, passar da
“não-dualidade” à unidade: o Ser é “um” (sendo o Um o Zero afirmado), ou antes
ele é a prória Unidade metafísica, primeira afirmação, mas também, por isso mesmo,
primeira determinação (2). O que é uno é manifestamente isento de toda
sujeição, de modo que a ausência de sujeição, ou seja a liberdade, acha-se no
domínio do Ser, onde a unidade apresenta-se de certa forma como uma
especificação da “não-dualidade” principial do Não-Ser; em outros termos, a
liberdade pertence também ao Ser, o que equivale a dizer que ela é também uma
possibilidade de ser, ou, segundo o que explicamos antes, uma possibilidade de
manifestação, pois o Ser é antes de tudo o princípio da manifestação. Ademais,
dizer que esta possibilidade é essencialmente inerente ao Ser como conseqüência
imediata de sua unidade, é dizer que ela se manifestará, em um grau qualquer,
em tudo o que proceda do Ser, ou seja em todos os seres particulares, na medida
em que eles pertencem ao domínio da menifestação universal. Apenas, a partir do
momento em que existe a multiplicidade, como é o caso na ordem das existências
particulares, é evidente que não pode tratar-se mais senão de uma liberdade
relativa; e podemos considerar, a este respeito, seja a multiplicidade dos
seres particulares em si mesmos, seja a dos elementos constitutivos de cada um
deles. No que diz respeito à multiplicidade dos seres, cada um deles, nos seus
estados de manifestação, é limitado pelos outros, e esta limitaçãopode
trraduzir-se como uma restrição à liberdade; mas dizer que um ser qualquer não
é livre em nenhum grau, seria dizer que ele não é ele próprio, que ele é “os
outros”, ou que ele não tem em si msmo sua razão de ser, mesmo imediata, o que,
no fundo, equivale a dizer que ele não é de modo algum um ser verdadeiro (3).
Por outro lado, uma vez que a unidade do Ser é o princípio da liberdade, tanto
nos seres particulares como no Ser
universal, um ser será livre na medida em que participar desta unidade; em
outros termos, ele será tanto mais livre quanto mais unidade tiver em si mesmo,
quanto mais “uno” ele for (4); mas, como já dissemos, os seres particulares só
o são relativamente (5). De resto, importa lembrar, a respeito, que não é exatamente
a maior ou menor complexidade da constituição de um ser que irá fazê-lo mais ou
menos livre, mas antes o caráter desta complexidade, segundo ela seja mais ou
menos unificada efetivamente; isto resulta do que dissemos antes sobre as
relações entre a unidade e a multiplicidade (6).
A liberdade, assim considerada, é portanto uma
possibilidade que, em diversos graus, é um atributo de todos os seres,
quaisquer que sejam e seja em que estado se situem, e não apenas do homem; a
liberdade humana, a única em causa em todas as discussões filosóficas,
apresenta-se aqui como um simples caso particular, que é o que ela é realmente
(7). De resto, o que mais importa do ponto de vista metafísico, não é a
liberdade relativa dos seres manifestados, assim como os domínios particulares
e restritos em que ela pode se exercer; é a liberdade entendida em seu sentido
universal, e que reside propriamente no instante metafísico da passagem da
causa ao efeito, devendo a relação causal ser transposta analogicamente de modo
conveniente para poder ser aplicada a todas as ordens de possibilidades. Como
esta relação causal não é nem pode ser uma relação de sucessão, a efetuação
deve ser vista aqui essencialmente sob o aspecto extra-temporal, e isto tanto
mais que o ponto de vista temporal, sendo específico de um estado determinado
da existência manifestada, ou mais exatamente ainda a algumas modalidades deste
estado, não é de modo algum passível de universalização (8). A conseqüência
disto, é que este instante metafísico, que nos parece inapreensível, por não
haver nenhuma solução de continuidade entre a causa e o efeito, é na realidade
ilimitado, ultrapassando assim o Ser, como estabelecemos em primeiro lugar, e é
coextensivo à própria Possibilidade total; ele constitui aquilo a que podemos
chamar figuradamente de “estado de consciência universal” (9), participante da
“permanente atualidade” inerente à própria “causa inicial” (10).
No Não-Ser, a ausência de sujeição só pode residir no
“não-agir” (o wu-wei da tradição
extremo-oriental) (11); no Ser, ou mais
exatamente na manifestação, a liberdade efetua-se na atividade diferenciada,
que, no estado individual humano, toma a forma da ação no sentido habitual do
termo. De resto, no domínio da ação, e msmo de toda manifestação universal, a
“liberdade da indiferença” é impossível, por ser propriamente o modo de
liberdade que convém ao não-manifestado (e que, rigorosamente falando, não é de
jeito algum um modo especial) (12), ou seja ela não é a liberdade enquanto
possibilidade de ser, ou ainda a liberdade que pertence ao Ser (ou a Deus
concebido como o Ser, em suas relações com o Mundo entendido como o conjunto da
manifestação universal), e, por conseguinte, aos seres manifestados que estão
em seu domínio e participam de sua natureza e de seus atributos segundo a
medida de suas próprias possibilidades respectivas. A realização das
possibilidades de manifestação, que constituem todos os seres em todos os seus
estados manifestados e com todas as suas modificações, ações ou outras, que
pertencem a estes estados, esta realização, dizemos, não pode assim repousar
sobre uma pura indiferença (ou sobre um decreto arbitrário da Vontade divina,
seguindo a teoria cartesiana bem conhecida, que pretende aliás aplicar esta
concepção da indiferença tanto a Deus quanto ao homem) (13), mas ela é
determinada pela ordem da possibilidade universal de manifestação, que é o
próprio Ser, de sorte que o Ser determina a si mesmo, não apenas em si, mas
também em todas as suas modalidades, que são todas as possibilidades
particulares de manifestação. É apenas nestas últimas, consideradas de modo
“distintivo” e mesmo sob o aspecto da “separatividade”, que é possível haver
determinação por “outro do que si mesmo”; dito de outra forma, os seres
particulares podem ao mesmo tempo determinar-se (na medida em que cada um
possui uma certa unidade, donde uma certa liberdade, por participar do Ser) e
serem determinados (em razão da multiplicidade dos seres particulares, não
remetida à unidade na medida em que são vistos sob o ponto de vista dos estados
de existência manifestada). O Ser universal não pode ser determinado, mas ele
determina a si mesmo; quanto ao Não-Ser, ele não pode determinar-se nem ser
determinado, por estar além de toda determinação e não admitir nenhuma.
Vemos, pelo que precede, que a liberdade absoluta não pode
ser realizada senão pela completa universalização: ela será “auto-determinação”
enquanto coextensiva ao Ser, e “indeterminação” para além do Ser. Enquantoque
uma liberdade relativa pertence a todos os seres sob qualquer condição que
seja, esta liberdade absoluta não pode pertencer senão ao ser liberto das
condições da existência manifestada, individual ou mesmo supra-individual, e
que tornou-se absolutamente “um” e “uno”, no grau do Ser puro, ou “sem dualidade”,
se sua realização ultrapassar o Ser (14). É então, mas somente então, que
podemos falar do ser “que é ele mesmo sua própria lei” (15), porque este ser é
plenamente idêntico à sua razão suficiente, que é ao mesmo tempo sua origem
principial e seu destino final.
NOTAS
1. Cf. O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. XXII.
2. Ver ibid., cap. VI.
3. Podemos ainda lembrar que,
uma vez que a multiplicidade procede da unidade, na qual está implicada ou
contida em princípio, ela não pode destruir a unidade, nem tampouco aquilo que
é uma conseqüência desta unidade, como a liberdade.
4. Todo ser, para ser
verdadeiramente tal, deve possuir uma certa unidade da qual traz o princípio em
si mesmo; neste sentido, Leibnitz tem razão em afirmar: “O que não é
verdadeiramente um ser , tampouco será verdadeiramente um ser”; mas esta adaptação
da fórmula escolástica “ens et unun
convertuntur” perde nele seu alcance metafísico pela atribuição da unidade
absoluta e completa às “substâncias individuais”.
5. É aliás em razão desta relatividade
que podemos falar em graus da unidade, e também, por conseguinte em graus de
liberdade, pois só existem graus no que é relativo, e o que é absoluto não é
passível de “mais” ou de “menos” (tomados aqui em sentido analógico, e nÃo
apenas em sua acepção quantitativa).
6. É preciso distinguir entre a
complexidade que não passa de pura multiplicidade e aquela que, ao contrário, é
uma expansão da unidade (cf. Asrâr
rabbaâniyah no esoterismo islâmico: O
Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. IX, e O Simbolismo da Cruz, cap. IV); podemos dizer que, em relação às
possibilidades do Ser, a primeira refere-se à “substância” e a segunda à
“essência”. – Podemos considerar também as relações de um ser com os outros
(relações que, para este ser considerado no estado em que elas acontecem,
entram como elementos na complexidade de sua natureza, por fazerem parte de
seus atributos como outras tantas modificações secundárias de si mesmo) sob
dois aspectos aparentemente opostos, mas em realidade complementares, segundo
este ser, em suas relações, assimile os outros ou seja assimilado por eles,
constituindo esta assimilação numa “compreensão” no sentido próprio do termo. A
relação que existe entre dois seres é ao mesmo tempo uma modificação de um e de
outro; mas podemos dizer que a causa determinante desta modificação reside
naquele dos dois que age sobre o outro, ou que o assimila quando a relação é
tomada a partir do ponto de vista precedente, que é, não mais o da ação, mas o
do conhecimento na medida em que este implica identificação entre seus dois
termos.
7. Pouco importa que alguns
prefiram chamar de “espontaneidade” ao que chamamos aqui liberdade, a fim de
preservar este último t ermo à liberdade humana; este emprego de dois termos
diferentes tem o defeito de poder fazer crer que esta liberdade humana é de
outra natureza, quando trata-se apenas de uma diferença de graus, ou que ao
menos ela constitua uma espécie de “caso previlegiado”, o que é insustentável
metafisicamente.
8. A própria duração, entendida
no sentido mais geral, como condicionando toda a existência em modo sucessivo,
ou seja como compreendendo toda condição que corresponde analogicamente ao
tempo em outros estados, não poderia tampouco ser universalizada, pois, no
Universal, tudo deve ser visto em simultaneidade.
9. Devemos nos reportar ao que
dissemos acima sobre as reservas que se deve fazer quando se pretende
universalizar o sentido do termo “consciência” por transposição analógica. – A
expressão empregada aqui é, no fundo, quase equivalente à dos “aspectos do
Infinito”, que tampouco pode ser tomada literalmente.
10.
Cf. Matgioi, La Voie Métaphysique, pgs. 73-74.
11. A “Atividade do Céu” em si
mesma (na indiferenciação principial do Não-Ser) é não-agente e não-manifestada
(ver O Simbolismo da Cruz, cap.
XXIII).
12. Ela só se torna tal em sua
concepção filosófica vulgar, que é, não apenas errônea, mas verdadeiramente
absurda, porque supõe que alguma coisa poderia existir sem possuir nenhuma
razão de ser.
13. Só indicamos a tradução em
termos teológicos para facilitar a comparação que se pod estabelecer com os
pontos de vistas habituais do pensamento ocidental.
14. Ver O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, caps. XV e XVI.
15. Sobre esta expressão que
pertence mais particularmente ao esoterismo islâmico, e sobre seu equivalente svêchchhâchârî na doutrina hindu, ver O Simbolismo da Cruz, cap. IX. – Ver
também o que foi dito sobre o estado de Yogî
ou do jîvan-mukta (O Homem e seu devir segundo o Vêdânta,
caps. XXIII e XXIV).
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