quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Matgioi - A Via Racional - Parte I

APRESENTAÇÃO



Albert Puyou, conde de Pouvourville, nasceu em Nancy (França) em 1862. Participou de expedições francesas à China, aonde ocupou diversas funções militares e a administrativas. Sua prolongada permanência no Tonkin e em diversas províncias lhe permitiu penetrar no espírito chinês. Logo ele encontrou um mestre taoísta que o preparou para receber a iniciação em uma sociedade secreta chinesa, o que aconteceu logo em seguida, em outubro de 1890. Albert de Pouvourville tomou o nome de Matgioi, que significa “olho do dia”. Ele voltou ao Ocidente e dedicou-se a difundir, na medida do possível, os ensinamentos taoístas. Em suas obras A Via Metafísica e A Via Racional, ele expôs as doutrinas taoístas, tanto do ponto de vista principial como em suas aplicações diversas. Foi também autor de diversos ensaios sobre a China e sobre as colônias francesas na Ásia. Faleceu em 1939.
Assim, não é de estranhar o modo como ele se refere aos povos do Oriente, que na ocasião – a primeira edição de A Via Racional data de 1907 –  ainda se distinguiam dos ocidentais pela obstinada defesa de seu antigo modo de vida e pela conservação de seus valores tradicionais, malgrado a opressão exercida pelas potências coloniais da época. Esta condição opressiva explica também, em parte, a aversão que o autor demonstra pelas instituições políticas, religiosas e intelectuais européias da época em que o livro foi escrito.

























I
LAO TSÉ



O orgulho individual é a coisa, entre a raça amarela, mais desconhecida, e aos seus olhos, a mais incompreensível. O respeito aos ancestrais mortos aos quais se está ligado, a solidariedade entre os vivos, que são todos parcelas de um mesmo grande ser social, distanciam os chineses de qualquer procura por particularização. Assim manda o ensinamento tradicional, a que nenhum espírito escapa, e do qual todos levam a marca, tanto mais forte e clara quanto mais trabalhada, e na medida mesma em que a herança cultural torna mais sábia a pessoa. O orgulho coletivo da raça é de uma braveza louvável, mas o orgulho particular de um indivíduo é uma vaidade ridícula e repreensível. Do mesmo modo, na casta filosófica, que é como que a cabeça deste grande corpo de letrados, busca-se menos a temerária autoria de novos conceitos do que a incorruptível e pia guarda das concepções primitivas e tradicionais.
Como veremos adiante, esta disposição de espírito, obrigatória como um rito – a tal ponto que uma tendência contrária pareceria criminosa e sacrílega – faz com que todos os sistemas filosóficos, em qualquer plano da filosofia geral que se possa imaginar, saiam do primeiro sistema filosófico que foi expresso, ou seja do Yi Ching de Fo Hi e Wen Wang, que estudamos e resumimos em nosso estudo A Via Metafísica.
Mas, e antes de tudo, esta disposição de espírito faz com que todos os filósofos, todos os chefes de escola, ao invés de se colocarem como iniciadores, ao contrário de tentarem singularizar-se, declaram-se modestamente como “irmãos caçulas” dos grandes mestres do passado, e como os respeitosos continuadores dos seus ensinamentos.
Assim, em lugar de pretender apresentar uma doutrina nova, moralizando as antigas, em meio a turbulências e negações, eles declaram trazer uma adaptação adequada à época, e se defendem da menor inovação. É por isso que, conforme o espírito dos mais antigos dogmas, eles aparecem todos como encarnações intelectuais sucessivas de uma mesma doutrina, a qual, não tendo jamais variado desde o início dos Tempos, constitui natural e simplesmente a Verdade.
A modéstia desta atitude, uma tal ausência de pretensões, transporta-se na vida cotidiana e na função social dos filósofos. Em geral simples agentes de um Estado governamental e administrativo, fora do qual estabeleceram suas teorias e especulações, viveram e morreram tranquila e simplesmente, num distanciamento calculado do barulho, das honras e das tragédias; e sua existência foi tão plana, tão conforme à média da existência dos homens de sua época, tão desprovida de brilho e de circunstâncias especiais, que sua biografia cabe em dez linhas, e sua glória, imortalizada em seus escritos, esquece sua pessoa.
Mas os poucos discípulos, raros e voluntários, que estes filósofos tiveram consigo, e que foram mais ardentes e convencidos na medida em que nenhum proselitismo ou encenação os atraiu, sobrevivendo ao Mestre não se contentaram em conservar cuidadosamente uma doutrina que se tornou sagrada no próprio dia do passamento daquele que lhes ensinou; também eles obedeceram a essa modéstia pessoal e a esse respeito pelo passado nos quais se esmeraram todas as gerações.
E, por todos os meios possíveis, eles exaltaram o Mestre, que foi modesto e silencioso enquanto esteve presente, mas que, desde sua morte, tornou-se  para eles o Passado, e o melhor monumento do Passado, porque eles o ouviram e o amaram. Através dos seus cuidados, ele salta bruscamente da obscuridade ao pináculo, e sua pessoa é envolta na luz e no brilho que suas idéias merecem.
É assim que, ao lado da biografia exata e monótona, e imediatamente após, ergue-se a lenda, brilhante, dourada, maravilhosa, divina, em cuja trama fulgurante os discípulos precavidos encaixam , como pérolas negras, os símbolos ou as paráfrases dos eventos importantes da vida do Mestre – importantes, bem entendido, apenas em relação à doutrina, pois todas as demais contingências de sua vida não deixam traço.
Nenhum filósofo, nenhum grande espírito da raça escapa a este costume, que se tornou uma espécie de lei étnica, e Lao Tsé não faz exceção. É por isso que apresentamos aqui sua vida, tal como ela está escrita na Cronologia do Império, e que acompanhamos esta biografia, curta e indiferente, pela lenda que foi fabricada em torno do Mestre pela imaginação e o reconhecimento de gerações.
“Lao Tsé nasceu no 14o. dia do 7o. mês do 3o. ano do imperador Ting Wang, da dinsatia Tcheou, ou seja durante o 54o. ano do 34o. ciclo[1]. Ele era originário da vila de Khio-Jin, comuna de Lai, distrito de Khoukien ou Khouyang, reino de Tshou[2]. Seu nome de família era L; seu prenome, Eul; seu nome honorífico, Peyang; seu nome póstumo, Tan. Lao Tsé é o nome que seus discípulos lhe deram[3]. Ele ocupou o cargo de guardião dos arquivos. Ele se esforçou por viver em retiro e permanecer desconhecido. Ele serviu durante muito tempo a dinastia Tcheou; vendo-a entrar em decadência, ele demitiu-se de seu cargo, e retirou-se para a extremidade do reino, no vale do Hankouflouan, cujo chefe era um certo Inhi[4]. Lá, para ensinar Inhi, ele compôs um livro sobre a Via e a Virtude, que compreendia pouco mais de seis mil caracteres. Após isto, ele se retirou. Não se sabe nem onde nem como ele terminou seus dias. Lao Tsé era um sábio que amava a obscuridade”.
Assim fala o Sseki, cronologia oficial do Império, redigida pelo chefe dosn historiadores do imperador Wou Ti, dos Han, o célebre Sse Ma Thien (104 a.C.).
Não conhecemos mais do que cinco gerações da família de Lao Tsé. Seu filho, chamado Tsong, foi general do vice-rei de Wei; o filho de Tsong foi Tchou; o filho de Tchou foi Kong; o filho de Kong foi Hia, que o imperador Hiao Wen Ti, dos Han, chamou à corte (179 a.C.) . Hia teve um filho, Kiai, que foi ministro do vice-rei Khiang, de Kiaosi. Depois disto a descendência de Lao Tsé desaparece dos comentários.
Lao Tsé tinha setenta anos quando começou seu livro sobre o Tao; ele teve doze discípulos, a maior parte discípulos intelectuais que não o conheceram diretamente, e que viveram entre 100 e 150 anos após sua desaparição; o mais célebre dentre eles foi o filósofo Si Choei.
A extrema simplicidade desta biografia nãopode ser ultrapassada; ela foi composta três séculos e meio após a presumida morte de Lao Tsé. Ela encerra tudo o que se conhece de exato sobre a vida do filósofo. É tão fácil cercar seu nascimento, sua vida e sua morte de fenômenos extraordinários, quanto as de Buda, Moisés, Elias e tantos outros. De fato, uma lenda estabeleceu-se sobre Lao Tsé. Mas, na própria China, pede-se que não se acredite nela, considerando-a apenas como uma soma de símbolos um pouco exagerados. E a versão primitiva que demos subsiste ao lado e acima da fábula, inventada pelas necessidades psicológicas que já vimos.
É bem possível que Lao Tsé, após haver passado a porta de Hankou, tenha viajado pela Pérsia, na Bactriana, e, segundo uma tradição local bastante crível, terminado sua vida solitária nos platôs tibetanos. Mas não é útil, admitindo a possibilidade, manter esta suposição. Pois é preciso lembrar que o Tao e o Te (a Via e a Virtude), únicos livros saídos diretamente de Lao Tsé em pessoa, foram escritos antes que ele deixasse o Império, e sem que ele o tivesse jamais deixado antes.
O sistema filosófico de Lao Tsé – e é isto que importa determinar – não foi portanto inspirado nem no Budismo, nem no Lamaísmo, nem mesmo no Cristianismo, como quiseram alguns zelosos missionários, dentre eles o excelente Abel Rémusat, membro do Instituto. O ensinamento de Lao Tsé foi extraído unicamente da tradição primordial, piamente conservada pela raça amarela, e cuja expressão mais exata é o Yi Ching. Esta é a verdade. Podemos agora nos distrair um pouco com a lenda.

A lenda de Lao Tsé é obra de um certo mitólogo, chamado Ko Hong, que viveu por  volta de 350 a.C. e escreveu, com o título de Chin Tsien Tchouen, uma história dos Deuses e dos Imortais. Esta história é bastante semelhante às “vidas dos Santos” da hagiografia cristã. Eis um resumo dos prodígios com os quais Ko Hong cercou a vida oculta e obscura, de Lao Tsé: “A mãe de Lao Tsé engravidou em decorrência da emoção que ela experimentou ao ver uma estrela cadente; foi do céu que ela recebeu o sopro vital; aliás, os sábios dizem que ele nasceu do céu e da terra, e que recebeu uma alma pura emanada do céu. Sua mãe levou-o no ventre por setenta e dois anos. Ao nascer, ele possuía os cabelos brancos, e por isso foi chamado de Lao Tsé. Sua mãe concebeu-o assim, sem o concurso deum esposo, e ele sabia falar desde o instante do seu nascimento. Sua tez era branca e amarela, com belas sobrancelhas, longas orelhas, olhos bem fendidos, dentes separados e lábios espessos. Sua testa era atravessada por um grande vinco; o alto da cabeça mostrava uma saliência pronunciada; seu nariz era sustentato por uma dupla arcada óssea. Desde o moento de seu nascimento, ele foi dotado da penetração divina; a vida com que o céu o animava não era a mesma dos homens comuns.  Ele compôs novecentos e trinta livros para ensinar a viver. Ele discorreu sobre as nove ambrosias, as oito pedras maravilhosas, o vinho de ouro, o suco de jade, sobre os modos de guardar a pureza primitiva, sobre como conservar a unidade, como economisar a força, como purificar o corpo, dissipar as calamidades, domar os demônios, como triunfar sobre o mal e vencer com o poder da magia, submetendo à sua vontade os espíritos malfeitores. Ele escreveu também sobbre os talismãs. Ele viveu por mais de trezentos anos, e teve ao seu serviço, durante quase dois séculos, um discípulo de nome Siou Kia, a quem ele comunicou, como fez mais tarde ao mandarim Inhi, o segredo da imortalidade”.
O ditirambo de Ko Hong continua longamente por este estranho e às vezes contraditório tom. Seria ocioso segui-lo através destas historietas, mais adequadas à imaginação do povo e à credulidade das crianças. Apesar de algumas passagens aonde, em meio à grosseria do texto e das figuras (cf. a idade do “nascimento” de Lao Tsé com a época de publicação do Tao, e também no que é dito sobre o segredo da imortalidade), podemos perceber os arcanos metafísicos e sociais ilustrados, não parece que os amigos e sucessores de Lao Tsé tenham jamais testemunhado reconhecimento ao infeliz adulador. De resto, como se a China fosse o país aonde, apesar de tudo, o bom senso e a razão ainda predominam sobbre a ignorância e a vaidade humanas, o próprio Ko Hong termina seu apanhado maravilhoso com a seguinte declaração: “Doutores de espírito estreito[5] querem fazer Lao Tsé passar por um ser divino e extraordinário, e estimular as gerações futuras a segui-lo; mas, por isso mesmo, eles impedem que se acredite na aquisição do segredo da imortalidade pelo estudo. De fato, se Lao Tsé foi apenas um sábio que adquiriu o Tao, os homens devem fazer todos os esforços para seguir seu exemplo; mas, se dissermos que ele foi um ser extraordinário e dotado de uma essência divina, é impossível imitá-lo”.
No que acreditaremos então, quanto à pessoa de Lao Tsé? É talvez o caso de aplicarmos aqui ao chefe da doutrina taoísta o famoso princípio do Yi Ching, que faz uma distinção, clara e objetiva, entre a personalidade e a individualidade. É admissível imaginar, com todas as precauções que a sorridente indiferença dos letrados chineses mostra nestes casos, que a “personalidade” encarnada por Lao Tsé sobre esta terra foi precisamente uma destas personalidades estranhas, sobre-humanas, que vemos aparecer, no decurso da história, quando, nas voltas do Destino, a Criação parece ter necessidade de uma ajuda sobrenatural, de um empurrão inesperado no sentido de sua evolução; e, neste caso, a tese taoísta coincide tanto com a tese muçulmana quanto com a tese gnóstica dos primeiros tempos do Cristianismo[6].
Mas não estamos aqui no domínio dos sonhos da Ásia menor, nem da sentimetnalidade do Ocidente. O que distingue a tradição amarela de todos os outros sistemas que o pensamento humano recebeu ou forjou, é sua extrema simplicidade na ausência de toda e qualquer fabulação mítica, e sua perfeita homogeneidade na organização de todos os seus logicismos. Esta característica, que faz sem par a Tradição Extremo-Oriental, só se mantém na medida em que se conserva em todos os campos. E seria um bizarro contra-senso pretender elevar um de seus melhores mestres, talvez o maior de todos, aplicando a ele procedimentos de engrandecimento que ele desaprovaria tanto para sua obra quanto para a de seus Ancestrais. Desprovido e desdenhoso de qualquer espécie de maravilha – que ele deixava ironicamente aos empulhadores taosse e aos pseudo-doutores – Lao Tsé nasceu, viveu e morreu como um homem. Sua inquebrantável simplicidade, sua humildade acima de tudo, ligaram-no imperiosamente à normalidade de seu destino; e ele teria se envergonhado de atribuir a si mesmo os esplendores que só pertenceram à sua doutrina. Não pretendemos aqui que uma tal conduta seja fácil de ser seguida, nem que ela tenha sido seguida pela maior parte dos reformadores e salvadores da espécie humana. Mas é preciso deixar ao filósofo chinês o privilégio original desta atitude, reconhecendo que, com o passar dos séculos, esta obscuridade voluntária reveste-se de uma beleza mais completa e segura do que a daqueles que forçaram a credulidade geral, ornamentando-se com os adereços da lenda e da divindade.
Lao Tsé sabia que ele era um homem, e jamais quis passar por outra coisa. Mas ele sabia também do poder de transformação, iniciática e superior, que o labor intelectual produz sobre o homem, na busca ardente e contínua do conhecimento total. Ele esforçou-se por esta transformação, e a obteve; quando ele reconheceu tê-la obtido, ele desapareceu. Assim, ele pediu à ciência e à sua própria vontade as qualidades sobre-humanas que ele negou sempre ter recebido por nascimento da fantasia de Deus ou do capricho de um deus. E, para justificar o admirável princípio esotérico segundo o qual, de um plano para outro, a extrema humildade se transforma em extrema grandeza, ele atribuiu ao seu próprio esforço os dons supremos que lhe valeram seus méritos e sua virtude, ao invés de colocá-los como originais e inerentes a uma missão específica. E reencontramos aqui o pensamento, simples e encorajador, do bom mitólogo Ko Hong: o que Lao Tsé fez, qualquer homem pode tentar fazer, e o objetivo que Lao Tsé atingiu está aberto à boa vontade de todos os homens. Pois, em vez de descer à Humanidade por meios divinos, ele subiu à divindade por meios humanos. Este é um ensinamento que podemos extrair de sua vida obscura, e que podemos também tentar colocar em prática.
Dissemos, e a história oficial confirma com sua costumeira secura: quando Lao Tsé obteve o estado de conhecimento, ele desapareceu do meio de seus semelhantes, e terminou sua vida no silêncio e na solidão completa de um retiro ignorado por todos. Parece que, a partir deste momento, ele se considerou inúitil para o povo. De fato, aquele que atingiu o ápice da sabedoria não é mais exatamente um homem, para poder ser aproveitável com os outros homens. E é aqui que devemos abrir espaço para um resumo da histórica conversa entre Lao Tsé e Confúcio. Veremos que uma sabedoria mediana pode ganhar com a propoaganda e o ensinamento, que aquele que a possui adquire uma grande reputação no mundo e entre os seus governantes, mas que esta própria expansão de si mesmo é um obstáculo intransponível para o seu aperfeiçoamento interior e sua ascese definitiva; e veremos ao contrário que uma sabedoria total não se ensina nem se difunde, que ela só pode ser adquirida no isolamento e através de um trabalho pessoal; que seus adeptos permanecem voluntariamente desconhecidos, podendo assim utilizar para sua evolução própria e para a evolução consecutiva da posteridade os ardores e o tempo que eles não consagram para ofuscar as multidões.
A entrevista de Lao Tsé e Confúcio é absolutamente histórica: ela é relatad, em termos idênticos, pelos escritores chineses mais dignos de fé, da época dos dois filósofos, e, em especial, por Sse Ma Thien, o historiador do Celeste Império:
“Khong Tsé, tendo ouvido falar de Lao Tsé, quis conhecer por si mesmo quem era este homem extraordinário; ele procurou-o e interrogou-o sobre o fundo de sua doutrina. Em lugar de responder-lhe, Lao Tsé censurou Khong Tsé, dizendo-lhe que ele era demasiado conhecido em toda parte; que a conduta que ele mantinha cheirava a fastio e vaidade, e que a maior parte dos seus discípulos estava mais propensa a desenvolver o orgulho em seu coração do que fazer nascer aí o amor pela sabedoria. O sábio, disse ele, ama a obscuridade; longe de ambicionar os cargos, ele foge deles; persuadido de que, ao término da vida, o homem não deixa mais do que as boas máximas que ele ensinou àqueles que poderão retê-las e praticá-las, ele não as entrega a qualquer um; ele estuda o tempo e as circunstâncias; aquele que possui um tesouro esconde-o com cuidado, de mêdo que alguém o leve; ele cuida de não proclamar tê-lo à disposição; aquele que é verdadeiramente virtuoso não faz propoaganda de sua virtude; ele não anuncia a todos que é sábio; isto é tudo o que tenho a dizer; faça bom proveito. E ele acrescentou: eu ouvi dizer que o homem rico despede-se de seus amigos com presentes, e que o sábio despede-se com conselhos; eu não sou rico, mas acredito ser sábio, com toda humildade”.
Este remédio severo, que Confúcio aliás recebeu com uma paciência e uma gratidão que fazem honra às suas virtudes domésticas, indica profundamente a reserva quase selvagem e a austeridade dogmática em que Lao Tsé se colocou e de onde ele não sairia jamais. É preciso lembrar, para confundir os cronistas que têm a ingenuidade de fazer passar por adeptos de Lao Tsé os curandeiros, prestidigitadores e pseudo-doutores que praticam a taumaturgia pelos caminhos do Império, que Lao Tsé nunca quis ter discípulos, mas apenas alguns amigos escolhidos, e que ele condenava acima de tudo o proselitismo barulhento e a propaganda irresponsável. O ensinamento, tal como queria Lao Tsé, restrito quanto ao número dos que o recebem e quanto à porção da doutrina que lhes pode ser comunicada, apresenta características comuns com o ensinamento sagrado e oculto da Índia, do Tibet, do Egito e de todos os centros misteriosos e iniciáticos em que se conservaram cuidadosamente os raios da Grande Luz.
O fim deste homem extraordinário e glorioso deu continuidade à solidão e à dignidade de sua vida. Contemplado a partir de então – por sua ciência, sua vontade e pelos felizes resultados de sua ascese pessoal – com os maiores poderes que um espírito revestido por uma alma e colocado num corpo pode possuir aqui embaixo, ele reconheceu a inutilidade da prática egoísta destes poderes; e, para fazê-los participar, seja do interesse geral, por sua ação, seja do aumento da herança intelectual dos sábios, por sua conservação, ele deixou sua pátria natural e retirou-se, ignorado por todos e perdido para sempre, para uma dessas comunidades longínquas do Alto Tibet, que são a pátria intelectual daqueles que ultrapassaram os últimos degraus do saber. E lá, ele começou e terminou uma vida verdadeiramente sobre-humana, que ele escondeu de todos e cujo exemplo não ofereceu a ninguém, porque este exemplo não poderia ser de nenhuma utilidade aos homens.
Lá morreu ele, e ninguém conhece sua sepultura, nesses santuários aonde se confundem num emaranhado anônimo e indiferenciado, os restos humanos que foram habitados pelos mais sublimes pensamentos. Assim ele justificou e levou ao limite extremo seu amor lógico pela discrição até o desaparecimento. E, por um justo e inevitável retorno, a doutrina deixada por este sábio, em um livro de capítulos breves e misteriosos, rege, passados mais de dois mil anos, todos aqueles que, na raça amarela, possuem um pensamento dotado de reflexão; e é esta doutrina que, no momento das expansões futuras, intelectais ou materiais, governará as sociedades do amanhã na direção de um objetivo prático e melhor, e verá pender os pratos desta balança onde, junto com as necessidades das coisas e as leis contingentes da corrente das formas, acumula-se a herança da consciência e da vontade humanas.
O que representou a doutrina de Lao Tsé em relação às coisas exteriores, que destino teve seu ensinamento, qual sua influência nos negócios do Império e sobre os atos dos imperadores, eis um ponto sobre o qual devemos nos deter um pouco, dado o pouco que se conhece a respeito, ao menos no Ocidente. Os sábios da raça branca, e em especial os missionários europeus, ocuparam-se quase exclusivamente das doutrinas de Confúcio, concretas, fáceis de determinar, e cujas aplicações contínuas e fáceis concorriam a cada instante com a propaganda cristã.
O ensinamento de Lao Tsé, encerrado em algumas fórmulas gerais por seu criador, confiada por Lao Tsé a apenas dois adeptos (que por sua vez instruíram dez outros), e que continha apenas a expressão mais exata possível das verdades tradicionais e dos princípios imutáveis, não deveria ter senão uma influência oculta, pois, em função de sua própria dificuldade, o número de adeptos só poderia ser muito restrito. Mas esta influência oculta e lenta deveria tornar-se soberana e profunda, porque, negligenciando os interesses materiais e imediatos, ela endereçava-se ao que há de mais elevado no homem e, na realidade, de menos humano. É por isso que, no que concerne aos negócios políticos e à economia social, a influência da escola de Lao Tsé foi rara; mas, quando exerceu-se, ela foi enérgica e total.
Pelo simples relato da famosa entrevista que Lao Tsé teve com Confúcio, podemos ver as diferenças dos espíritos dos dois filósofos, divergência, não nos pontos primordiais, mas nos planos de aplicação das idéias, e a incontestável superioridade de Lao Tsé, à qual o próprio Confúcio rendeu humilde homenagem. Passando do domínio das idéias puras ao da prática, e saindo do espírito dos criadores frios e impecáveis para entrar na alma dos discípulos orgulhosos e apaixonados, a colocação na prática política e social dos dois sistemas, dos quais um deveria sempre permanecer acima do outro, trouxe consigo muitas dificuldades e erros, na medida em que as duas escolas se distinguiam pelo exagero de suas qualidades originais, os Confucionistas por sua verborragia e pusilanimidade (excesso de propaganda), e os Taoístas por sua energia e intransigência (excesso de isolamento). Aberto à opinião, o Confucionismo teve como primeiros prosélitos e apóstolos letrados menores, finos dissertadores, eloquentes, seguros de si mesmos e ávidos em desempenhar um papel no Estado e, na falta de melhor, em suas cidades (correspondem àquilo que no século XX se chamam no Ocidente de “intelectuais”). Estes letrados, ágeis e populares, espalharam no povo os preceitos sábios e amáveis dos quais souberam sempre tirar um proveito pessoal.
Reservado a uma minoria cuidadosamente selecionada, o Taoísmo teve como adeptos sábios prudentes, desinteressados, solitários e de pouca verve (que o Ocidente chama de “pensadores”, para distingui-los dos “intelectuais”), que, determinando – sem pregar nem recomendar – leis superiores e idéias gerais, não possuiam ambições nem temores; estes sábios levaram suas convicções aos letrados e mandarins do primeiro escalão, de onde elas chegaram até o trono imperial.
Durante muito tempo as duas doutrinas lutaram, os Taoístas esquecendo-se de que não foram feitos para a luta, os Confucionistas esquecendo-se, malgrado o ilustre exemplo do prórpio Confúcio, que foram feitos para obedecer aos Taoístas, de quem não passavam de uma emanação sobre um plano de mentalidade inferior. Resulto disto o que acontece sempre com sociedades fracas o bastante para se deixar conduzir por intelectuais e retóricos como mestres e como conselheiros predominantes, ou seja uma era de dificuldades egoístas e confusas da qual somente os pequenos letrados souberam tirar vantagem.
A eloquência paradoxal, a retórica amável, o sentimentalismo, e todos os outros meios pelos quais se concretizam a ambição e o egoísmo dos homens, em uma palavra este intelectualismo instintivo e sem bases, que já havia dado fim ao gênio e à própria existência da Grécia, foi felizmente detido na China, em sua tarefa parcelária e destrutiva. Os imperadores taoístas dos séculos II e II a.C. talvez não tenham tido razões muito elevadas para tanto: eles perceberam, sem dúvida, nas teorias desviadas do confucionismo, o gosto confesso por dividir o império em principados e estados feudatários, que deveriam ser distribuídos entre os letrados, na medida da ciência que eles tivessem mostrado e dos volumes que houvessem escrito; e viram, sem dúvida, nas doutrinas taoístas, a enérgica consagração do sistema libertário e comunista do tronco e da família chinesa, defendidos por um princípio de autoridade única, emanada da autoridade celeste, que concretisasse sobre a terra as leis gerais tradicionais da evolução dos ciclos.
Guiados por motivos que não eram evidentemente os mais nobres, estes governantes agiram em benefício da felicidade de sua raça e da conservação integral do pensamento, ao dissipar as interpretações errôneas e destruir os escritos de pretensões e intenções equívocas. Após esta explicação, é preciso entender como eles foram caluniados por seus eloquentes adversários, e como a tenacidade e a perseverante loquacidade dos letrados menores, ao longo dos vinte e dois séculos que se passaram desde então, fizeram estes soberanos taoístas passar por simples bárbaros e por inimigos do desenvolvimento intelectal da Humanidade. Eles eram simplesmente – é preciso devolver-lhes sua verdadeira fisionomia – os inimigos do despedaçamento da Doutrina e do Poder, e não toleraram, nem que inimigos tocassem o cetro, nem que aventureiros alcançassem o Conhecimento, para desfigurá-lo, dividi-lo e se apoderarem dos despojos.
Saibamos restituir a verdadeira figura do soberano Tsin Chi Hoang Ti, que os falsos discípulos e os intérpretes desviados de Confúcio chamaram de incendiário de livros e perseguidor dos letrados. Este autocrata taoísta deixou falar os que pensavam, e calou os que falavam sem pensar. Este “chefe bárbaro” tinha como primeiro ministro – que ele conservou até a morte – o célebre Li Sse, doutor e mandarim do mais alto grau. E, antes de julgar sobre as afirmações sem provas dos sucessores daqueles a quem ele perseguiu, seria bom ler na fonte os famos Editos de proscrição e incêndio.
O dito de proscrição restringiam as penas aos letrados que fomentassem desordens, e que tentassem criar, no interior do Império, governos e estados feudatários dos quais eles seriam os chefes, contra a concordância do imperador. Na realidade, de centenas de milhares de letrados de todos os graus que existiam no imenso império, precisamente quatrocentos e oitenta e sete foram executados, e eles foram presos em plena rebelião, acusados de desordens e de mortes.
O Edito de incêndio excetuava do rigor imperial todos os livros da doutrina de Lao Tsé, todos os livros da Tradição Primordial, todos os livros sagrados e dogmáticos, todos os livros que não tratavam de política, e todos os livros do próprio Confúcio, à exceção do Chou King. Foram queimados todos os comentários, todos os panfletos, todas as glosas paradoxais, todos os escritos que se perdiam em minúcias, tendenciosos e analíticos, que não passavam de simples provocações, e cuja perda só foi sentida pelos seus autores. Restou ainda muita coisa, e os amantes da quintessência puderam, rapidamente, encher vinte vezes o vazio relativo aberto neste amontoado inútil e indigesto, pelo Edito liberador de Tsin Chi Hoang Ti. Na verdade, nem um pensador foi incomodado, nem um texto foi perdido. Apenas o Império desembaraçou-se, um pouco energicamente sem dúvida, daqueles que, com a desculpa de fazerem ciência, eram, dentro do edifício intelectual e social da raça amarela, elementos de alteração, discórdia e dissociação.
O que se tornou este Taoísmo, tão cruelmente sustentado, posto e mantido no pináculo tão energicamente? Ele permaneceu virtualmente, durante dois séculos, como a doutrina imperial; depois, os editos de proscrição foram abandonados; isto foi um grande bem, pois a liberdade de escrever é quase tão cara ao homem quanto a liberdade de pensar, e, certamente, a faculdade de poder escrever com independência e impunidade valeu à China algumas obras-primas de moral e política. Mas os retóricos reapareceram e retomaram seu fácil domínio; e, como se a presença destes intelectuais improdutivos não bastasse para empurrar até a última degradação os soberanos que se deixaram levar por sua perniciosa e enfraquecedora influência, seu retorno ao poder coincidiu com a escandalosa entrada nos negócios de improdutivos físicos artificiais; e, enquanto a alma chinesa estava à mercê de aventureiros, o governo caiu em mãos dos eunucos, e a introdução concorrente, em uma raça que não estava preparada para o sentimentalismo, do Budismo – desprovido de tudo o que o Budismo tem de superior e de maravilhosamente adequado à evolução humana – precipitou no abismo o país e a dinastia. Os sábios taoístas, aos quais se juntaram os verdadeiros filósofos confucionistas, ultrajados com tal estado de coisas, fundaram sociedades secretas, que subsistem até hoje e que receberam seu batismo de sangue na morte violenta de oitenta mil adeptos de Lao Tsé.
Assim decidiram os eunucos, o imperador que eles inspiraram, e os falsos letrados que dirigiam os eunucos. Vemos que estamos longe das 487 execuções do terrível Tsin Chi Hoang Ti. A dinastia não deixou de afundar sob os esforços conjuntos do povo e dos sábios: os Tsin reinaram, e o Taoísmo fez desabrochar sua mais bela flor, a Wou Wei Kiao, ou “Sociedade do Grande Vazio”, que considerava as honras e afeições da terra como coisas vãs e indignas do homem imortal, e que reuniu uma aadmirável plêiade de estóicos.
A partir desta época, e após os tempos conturbados em que quatro dinastias paralelas reinaram sobre a China dividida em quatro reinos, os soberanos e seus conselhos compreenderam como a doutrina de Lao Tsé e a doutrina de  Confúcio, complementar da primeira, deveriam ser ensinadas. Os altos mandarins permaneceram ligados, cada um em seu particular, ao “dogma da Suprema Razão”, e renderam a Confúcio e sua doutrina as honras oficiais, públicas e numerosas, que convinham a uma ciência concreta, fácil, proveitosa a todos, popular e respeitável. E, durante toda a dinastia Thang, a doutrina e mesmo o culto exterior a Lao Tsé (a quem o imperador Kao Tsoung construiu um templo sobre a montanha do Cordeiro) foram a doutrina e o culto dos sábios e dos grandes (de 600 a 905 da era Cristã).
Esta concepção respondia perfeitamente ao princípio universal que diz que a ciência integral – ou a que supomos tal – não seja comunicada senão a um pequeno número, e que a multidão seja brindada apenas com as consequências felizes e com osbenefícios terrestres que os adeptos desta ciência possam extrair dela. Ninguém duvida que a difusão irresponsável do ensinamento interior taoísta foi inútil e mesmo perniciosa, no sentido que ela levou intelectuais despreparados – que são sempre a maioria – a sentimentos anárquicos totalmente estranhos à doutrina de Lao Tsé. Não há perigo maior do que apresentar o conhecimento sem véus: assim como o sol queima e cega os olhos fracos da humanidade, a ciência total estupefaz os espíritos medíocres; e, quando eles tentam se aproximar, eles tombam, em sua cegueira mental, nos últimos abismos, que eles tomam, em sua ingênua vaidade, pela incomensurável profundidade da Verdade. Lao Tsé percebera muito bem que o perigo é tanto maior quanto mais sintética a doutrina, e quanto mais curiosa a raça. É por isso que ele considerava seu ensinamento por demais sutil para a massa de pequenos letrados, e é por isso que ele recusava a propaganda e o apostolado. Seus sucessores não foram todos tão inspirados; mas é preciso dizer, em sua defesa, que eles foram sempre levados a um impetuoso proselitismo pela inércia dos soberanos e pelos vícios da administração imperial[7].
Assim, não devemos economizar elogios à dinastia que compreendeu como os dogmas de Lao Tsé e as idéias de Confúcio deveriam ser ensinadas paralelamente, umas a um pequeno número, outras às massas, cada qual aos seus ouvintes particulares e adequados, e como a concordância deste duplo ensinamento deveria levar simultaneamente a luz da sabedoria às altas classes do espírito, e a satisfação da felicidade às classes de nteligência mediana.

A doutrina de Lao Tsé viu sem inveja ou temor chegar ao Celeste Império sacerdotes da doutrina de Fo (Budismo indiano), a filosofia da natureza (Confucionismo materialista), o Lamaísmo primitivo (ensinamentos de Pa sse Pa)  e o culto de Tathsin (religião de Zoroastro). Estas formações, ou estas deformações diversas da Tradição única não se endereçavam ao mesmo plano intelectual do Taoísmo. Mas, se estas propagandas eram indiferentes, o mesmo não se pode dizer da desaparição da última dinastia chinesa e de sua substituição violenta por uma dinastia mongol, cujo primeiro soberano foi Kubiali, neto de Gengis Khan. Este autocrata, que foi um grande conquistador, e também um homem cheio de experiência e manipulador dos homens, comprendeu que a doutrina taoísta firmemente ancorada nas mentes dos sábios e dos mestres espirituais da raça, seria o grande obstáculo à dominação nova, e, de 1280 a 1286, dedicou-se a fazer desaparecer todas as escolas e todos os livros do Taoísmo, com exceção dos escritos pelo próprio Lao Tsé; seu cálculo mostrou-se acertado, porque assim ele obteve a submissão da raça e a rendição dos seus chefes.
O que é trazido pela força não é jamais durável, e desaparece quando esta força se esgota; o autocratismo hierático que o Lamaísmo primitivo impôs durante a dinastia mongol, não apenas na China, mas em todos os territórios comandados pelos mongóis[8], abateu a raça chinesa e levou, após uma era à qual não faltou glória, a dinastia mongol à decadência e ao esquecimento. A dinastia nacional dos Ming sucedeu-a, e logo o Taoísmo recuperou, junto ao trono e nos conselhos do Império, o lugar discreto, ignorado e todo-poderoso que lhe agradava. Durante duzentos e cinquenta anos deste período verdadeiramente nacional de sua história, a China só conheceu a prosperidade (1368-1616). E, malgrado o que dizem os missionários europeus, o Taoísmo foi o guia benfeitor e o segredo inspirador da melhor dinastia que jamais reinou sobre a terra[9]. À época da extinção dos Ming, havia no território chinês 272 bibliotecas imperiais, classificadas, bem providas e frequentadas, 90.000 letrados de primemiro grau e 13.600 mandarins letrados. Os tártaros Mandchus, vencedores sucessivos das armadas chinesas, instalaram então a dinastia Tshing, atualmente reinante, a qual, sem conservar aos discípulos de Lao Tsé sua influência preponderante, manteve ao menos suas dignidades e suas honrarias.
A introdução, durante esta dinastia, e em especial sob o reino do famoso Kanghi, do elemento propagandista cristão não mudou mais a face das coisas, do ponto de vista das doutrinas tradicionais, do que o fizeram os diversos proselitismos já enunciados. E quando, negligenciando imitar o Budismo, que soube dobrar-se às tradições, o Cristianismo tentou levantar-se contra a herança intelectual de Lao Tsé e de Confúcio, ele foi expulso, em um acordo comum entre o soberano e o povo, de tal forma que ele jamais conseguirá retornar no futuro, e que a religião cristã não será jamais, no Extremo-Oriente, senão uma curiosidade para alguns letrados indolentes, um refúgio para alguns recalcitrantes contra as leis de seu país natal, e um meio de penetração política mais ou menos hábil, segundo o valor dos diplomatas que o empreguem.
Derrubados de seu antigo poder, e reconhecendo, como seus ancestrais, que a raça amarela é a única capaz de aproveitar seu ensinamento, os discípulos de Lao Tsé, exilados da corte e dos seus cargos depois do reinado de Kiaking, colocaram todo seu ardor na criação de sociedades secretas, cujo valor, cujo papel importante e oculto, cujos desígnios futuros estudaremos adiante. É da “Razão Celeste” que nasceram todos os grandes movimentos que, mantendo a alma chinesa na Via tradicionala, mostraram-lhe seus deveres futuros. É esta Via – a Via Racional – que, depois de ter mantido, em uma imobilidade bemaventurada e então possível, a raça chinesa independente e separada das demais raças humanas pelas distâncias e pela antinomia das civilizações, é esta Via que, pelos mesmos e profundos motivos, guiará a raça na direção do progresso ativo que pede a vizinhança (impossível de evitar hoje em dia) de outras entidades etnográficas, a fim de garantir a esta raça a perpétua supremacia que lhe garantem a altura ancestral de sua doutrina, a beleza de sua moral prática e a inumerabilidade de seus filhos.

II
AS CONCORDÂNCIAS TAOÍSTAS



A doutrina de Lao Tsé é um Cristianismo primitivo, diz o orientalista Pauthier. O autor de Essai sur la philosophie des Hindous declara que a grande reforma do Brahmanismo, propagada pelo Buda na Índia, teve uma grande reverberação na China, e não foi desconhecida de Lao Tsé, que encontrou elementos seus na bibluioteca do reino de Tcheou.
O comentador Sou Tong Po, ilustre sob o nome de Sou Tsé Yeou, exilado em Yuntcheou, entre religiosos samoneus, expressou a convicção de que “não há uma só proposição de Lao Tsé que não possa concordar com a doutrina de Buda”.
Por outro lado, um missionário cristão, o Pe. Huc, representa Lao Tsé como “um precursor dos essênios, dos quais Jesus Cristo foi o revelador”, e dos gnósticos filosóficos ao estilo de Clemente de Alexandria. Lao Tsé teria sido o continuador do ensinamento do princípio “zoroastriano” que se tornou o princípio cristão na Europa, e cujo primeiro fruto foi o anacoretismo contemplativo; e este abnacoretismo, vindo da Índia e da China, teria se prolongado, igual a si mesmo e pouco a pouco ocidentalizado, na Pérsia, na Caldéia, na Ásia Menor, no sul do Egito e por toda a Europa.
Mais audacioso, Montucci declara que “muitas passagens de Lao Tsé são tão claras, que qualquer um que tenha lido este livro não poderá duvidar que o mistério da Santíssima Trindade tenha sido revelado aos chineses mais de cinco séculos antes da vinda de Jesus Cristo”.  Enfim, o Pe. Amyot acreditou ter encontrado mais ainda, ou seja os nomes dos três personagens da Santíssima Trindade. E, encobrindo tudo, Abel Rémusat, membro do Instituto, que trabalhou muito e viajou pouco, que não falava chinês mas traduziu as suas obras mais difíceis e abstrusas, reconheceu o nome de Jeová na 14a. página do Tao Te King. E ele acrescenta triunfalmente: “a palavra trigramática i-hi-wei (que foi tomada por Rémusat, sílaba por sílaba, em três frases diferentes desta página 14), é materialmente idêntica ao tetragrama que, segundo Deodoro de Sicília, os judeus atribuem a Deus como nome sagrado. Achar-se a transcrição mais exata deste nome célebre em um livro chinês é um fato bem singular. Eu o vejo como uma marca incontestável do caminho que as idéias pitagóricas ou platônicas seguiram para chegar à China”.
Assim, os Cristãos pretendem que Lao Tsé foi inspirado por Cristãos; os Budistas, por Budistas; os Gnósticos e os Essênios, pelos Terapeutas; e os Católicos, pelos judeus, por Pitágoras e por Platão. Bem entendido, a cronologia não entra nestas considerações, e a filologia oficial incomoda-se bem pouco, em suas especulações, com as datas mais precisas da história.
Não vemos, nesta pressa em despedaçar a herança intelectual de um homem, senão uma homenagem solene, universal e imprevista à inteligência deste homem; e humildemente, para estarmos o mais próximo possível da verdade, que é mais simples e menos estupefaciente, lembraremos a confissão sem artifícios do próprio Lao Tsé: “Eu não faço senão ensinar aquilo que os homens ensinaram antes de mim” (Tao, pg. 42).
Lembraremos que Lao Tsé escreveu seus preceitos no reino de Tcheou, e que foi antes de deixar a China que ele lhe deu a forma sob a qual nós os conhecemos hoje. Quanto ao resto, remetemos os amantes de sonhos às tábuas sinópticas da história universal.
Existem outros comentadores e tradutores de Lao Tsé que, não contentes em haver desfigurados seus versos com adições ocidentais, e seus próprios pensamentos com as observações de alguns retóricos e compiladores chineses (pois a China, como qualquer outro chão, produz também este tipo de sábios), pretendem que Lao Tsé inventou tudo por si mesmo. G. Pauthier, que é entretanto, de todos os europeus, aquele que até hoje mais se aproximou do espírito do Mestre e de seus livros, diz que “suas doutrinas não se ligam ao passado de seu país por nenhum laço tradicional, nenhum antecedente histórico”. Stanislas Julien vai no mesmo caminho.
Acreditamos, lendo o sábio e sobretudo intuitivo estudo que Pauthier dedicou a Lao Tsé, que ele pretendia com isto fazer ao filósofo que ele comentava, o maior dos elogios. Nisto ele enganou-se por completo. Quando dizemos a um sábio hinês que ele rompeu todos os laços tradicionais, fazemos a ele a pior das injúrias, e além disso provavelmente estamos errados; pois não existe um chinês que possa – mesmo que mereça – adquirir a glória, se ele não remontar seu ensinamento ao dos seus ancestrais; se algum escritor chinês pretender tal coisa, será entre eles considerado como um louco bizarro; ao seu redor cria-se a conspiração do silêncio; e assim nós não o conhecemos, quer estejamos na Europa, quer tentemos descobri-lo na China. O respeito pelos ancestrais e a piedade por suas idéias são as pedras angulares da filosofia e da erudição chinesas, e ninguém sonharia  em edificar um sistema sobre outras bases. Mesmo na sociologia, na política, os reformadores e os revolucionários chineses de hoje – que suspeitamos sejam pouco entusiastas da antiga imobilidade – não apresentariam como uma novidade seus projetos de reforma, pois não encontrariam nenhum simpatizante. Eles os apresentam, ao contrário, como um retorno ao antigo estado de coisas, e um “recuo” para tempos melhores passados; e, se estudarmos a história das velhas dinastias, veremos que esses revolucionários não estão errados, e que eles conhecem tão bem o passado de sua raça como a alma de seus contemporâneos.
É preciso assim convencer-se de que Lao Tsé jamais teria se tornado o educador da inteligência amarela, se ele não estivesse referido aos ancestrais, e se ele não tivesse falado a verdade quando disse que não fazia mais do que repetir o que havia sido ensinado antes dele. Aqueles que lêem seus livros reconhecem ali, sob novos véus, a Tradição primordial; e é assim que elevaram Lao Tsé às nuvens, ao lado dos primeiros transmissores desta Tradição primordial, a que ele deu continuidade.
Eis a prova moral do tradicionalismo de Lao Tsé. Existe ainda uma prova histórica. Ela reside na tranquilidade pacífica com que foi recebida sua doutrina. Quando aparece um culto novo, ou idéias novas aparecem, costumam sucitar em torno de si violentos combates entre os portadores da nova chama e os guardiães do fogo antigo. Não existe exemplo de que um ensinamento tenha sucedido a outro, seja no domínio religioso, seja no social, sem provocar choques retumbantes, que deixam traços sangrentos ao longo da história. Assim o Cristianismo e o Islamismo nasceram do sangue dos seus apóstolos, e cresceram com o sangue de suas vítimas. E, no interior das religiões, simples cismas geraram execuções e massacres.
Abramos a história da China, esta história tão exata, fria e imparcial, em que o historiador não hesita, quando acha necessário, em criticar os próprios atos do soberano que o paga para escrever os eventos de seu reinado: não encontramos nada de parecido na eclosão do Taoísmo. Nem em seu triunfo nem em seus revezes.
Todas as perseguições que ele sofreu foram da parte de invasores estrangeiros que queriam estabelecer na China uma dinastia nova e conquistadora, o que prova o quanto o ensinamento taoísta é, ao contrário, um ensinamento tradicional e nacional. Mas não houve suplícios coletivos, nem deportações em massa, templos incendiados e destruídos; o Taoísmo, depois deste posto de fronteira a cujo guarda Lao Tsé confiou seu livro antes de desaparecer para sempre, fez docemente seu caminho até o trono imperial, sem barulho, sem molestar ou contrariar quem quer que fosse, e, soberanamente, instalou-se na alma chinesa, como se ela precisasse dele precisamente nesta época, e como se ela estivesse, há muito tempo, preparada para recebe-lo.
E, na realidade, esta preparação existia: ela existia porque o ensinamento taoísta era respeitoso e consequencial à tradição; depois de muitos séculos, esta tradição era o pivô da ciência; suas decisões eram o critério das consciências; seu estudo era o arado com o qual trabalhavam incessantemente os cérebros; os preceitos curtos e misteriosos do Taoísmo foram as sementes aptas a germinar nos sulcos largos abertos, justamente porque era neles que o trabalho estava feito, ou antes porque Lao Tsé as lançara no cérebro chinês com a polpa e o gesto convenientes, ou seja envelopando-as no dogma tradicional e fazendo as reverências rituais aos Ancestrais. É por isso que a colheita foi rápida  e ampla. E podemos levar até o fim esta parábola sem medo de vê-la falhar, e acrescentamos que o solo era tão fecundo e bem preparado, que ele teve, quase ao mesmo tempo em que germinava o bom grão, forças suficientes para brotar o joio; e os curandeiros surgiram junto com os doutores, e os taumaturgos com os Sábios, e este joio floriu tanto, que até hoje é difícil impedi-lo de diminuir e poluir a qualidade da colheita verdadeira.
Mas é na própria doutrina de Lao Tsé que encontramos o modo de sua filiação intelectual à tradição; é estudando a Via e a Virtude e as Reações, que brilha a cada instante seu tradicionalismo. E, antes de penetrar no fundo da doutrina, podemos ministrar a prova de que, não apenas o sistema taoísta, mas o próprio nome Tao e seu princípio foram extraídos inteiros da melhor fonte da Tradição. Esta será a prova metafísica irrefutável que demonstrará peremptoriamente que os sinólogos do século XVIII, e mesmo os da primeira metade do sécuilo XIX, não conceberam senão devaneios teóricos, e que as descobertas científicas e filosóficas – que nos trouxeram nossa expansão colonial ao Extremo-Oriente – derrubam tudo o que se pensava saber. Temos aqui uma nova dívida de reconnhecimento para com os exploradores, os viajantes, aos colonos que, não contentes em haver descoberto, ilustrado e enriquecido esta partes do domínio asiático, aí se instalaram para estudar no local a língua, a escrita, os livros e as almas, e nos forneceram assim as bases mais sólidas para nossa instrução e nossos raciocínios. E, quando se sabe que eu, modesto trabalhador, pude constatar, depois de longos anos passados no Extremo-Oriente, a dificuldade de tarefas assim, não será espanto que eu coloque à frente de todos os sábios oficiais, Francis Garnier, Luro e Philastre, que não se contentaram em ser heróicos franceses, prudentes e pacientes, mas que souberam ao mesmo tempo, durante sua permanência entre os chineses, decifrar os arcanos de suas doutrinas e penetrar no fundo de sua inteligência.
É preciso reportarmo-nos ao que dissemos, em nosso livro precedente, sobre a concepção metafísica do Khien ou da Vontade celeste não-manifestada[10]: Khien é o primeiro hexagrama de Fo Hi; é a representação gráfica do Eterno Infinito; é a base de todo o Yi King, o rochedo primordial sobre o qual foi erigida toda a tradição das raças amarelas. Na ciência dos numeros, ele é o zero. Ele é o Ser e o Não-Ser, ou seja ele é a perfeição, que tem naturalmente o poder de gerar (princípio da atividade), mas que não gera. Não podemos conceber isto; mas, quando o poder de gerar é colocado em atividade pela Vontade do Céu, percebemos a Perfeição manifestada (perfeição passiva), e entendemos que nossa concepção mais alta da Perfeição tem como causa a Vontade do Céu. E assim, por alteração, damos ao Khien ininteligível este nome de Vontade do Céu, da qual não captamos senão os efeitos, mas através dos quais podemos perceber que há uma Causa primeira.
No mesmo livro[11], vimos também que a Vontade do Céu nos manifesta a Perfeição Khouen (princípio de passividade, ou perfeição agida pelo princípio de atividade). É esta Perfeição, dupla de personas, no sentido latino do termo, mas de essência única, na qual a Vontade ou Atividade Celeste provoca o nascimento dos seres, fora do Ser, e os precipita indefinidamente na corrente temporária e contingente das formas. A Vontade do Céu age segundo um certo mecanismo, e a atividade do céu se manifesta segundo um certo movimento (mecanismo e movimento metafísicos e ontológicos, bem entendido). Este mecanismo, atravessado pelo movimento, eis o que constitui as diretrizes divinas da Criação Universal.
Nós determinamos os órgãos deste mecanismo e os elementos deste movimento, e deduzimos daí a espiral helicoidal da evolução. Esta espiral é a absoluta condensação matemática de todas as modificações e de todas as transformações finais do Universo, ou seja, conforme as palavras de Shi Ping Weng, dos mecanismos que produzem e aonde são reabsorvidos todos os seres.
A fonte destes mecanismos, é o Tao ou a Via de Lao Tsé. Não nos basta apoiar esta afirmação peremptória nos textos tão claros e definitivos do filósofo: o Tao manifestado é a mãe do Universo... a multidão dos seres passa pela porta do Tao... o Tao é o termo, mas também o meio (o rio) onde os dez mil seres têm sua fonte... o Tao reintegra os homens no Não-Ser... a espiral, eis o movimento do Tao... o Tao criou o um; o um criou o dois; o dois criou o três; o três criou os dez mil seres. Quem segue o Tao progride, progride e progride ainda, e assim até que não aja mais; mas quando ele não age mais, ele não deixa de agir. O Tao produz; a virtude une; os seres se formam; eles tornam-se modos.
Poderíamos nos contentar com estes poucos aforismos; eles indicam claramente seu tradicionalismo e sua filiação ao Yi King.
Mas é preciso estarmos convencidos de que os filósofos da China, ao contrário dos filósofos europeus que, depois deles, acreditaram ter descoberto e aperfeiçoado Lao Tsé, sem,pre ensinaram que seu Mestre havia recebido sua doutrina da antiguidade. Confúcio disse: “Todas as coisas são devedoras do princípio Khien pela criação de sua constituição, pela aquisição da vida formal; entretanto, o Tao é a porta pela qual todas as coisas passam para receber seu nascimento”.
Sou Tseu Yeou disse: “É do Tao que todos os seres obtiveram aquilo que constitui a sua natureza”. Tsouhi, mais expressivo ainda, declara: “O sentido de Khien só pode ser esclarecido pelo celeste Tao.” E o que dá a esta afirmação um alcance definitivo, é que Tsouhi a escreveu em seu Comentário, que hoje em dia faz parte das glosas da Tradição e que está inscrito, no próprio capítulo sobre Khien, no Yi King, com a fórmula tetragramática de Wen Wang.
É absolutamente necessário reconhecer que a doutrina de Fo Hi e a doutrina de Lao Tsé são uma única emesma doutrina, malgrado as pretensões de analistas europeus insuficientes, cujos sentimentos não podem, de modo algum, prevalecer sobre as certezas dos letrados amarelos. Aonde Fo Hi expressou-se com o cuidado da síntese universal, Lao Tsé expressou-se com o cuidado do esoterismo ascético. Mas os dois sábios marcham com passo igual na mesma Via do Céu.
Acrescentemos alguns textos que, melhor ainda do que o comentário de Tsouhi, fazem parte do Yi King e  de seu ensinamento clássico: “Quando se trata do Céu, se falamos dele de um modo absoluto, é o céu que não se opõe: á a Via racional do Tao; é a atividade ou o começo de todos os seres” [12].
Os Julgamentos, ou glosas imperiais da edição oficial dos Ming, dizem: “Wem Wang esclarece o sentido do termo Khien, simplesmente por meio do imutável Tao do céu. Trata-se do céu inteiro”.
“O fim e o começo do Tao são iluminados por uma grande claridade, de modo que vemos aí seis situações (os seis traços do hexagrama Khien) apresentarem-se cada qual a seu tempo. O primeiro e o último traço são o começo e o fim do Tao. O Tao é a modificação e a transformação, devidas à atividade; ele engendra todos os seres; aquilo que o céu confere, é o destino; aquilo que os seres recebem, é a sua natureza; o Tao do céu e da terra é permanente; ele mantém a extrema Harmonia[13].
Continuar com estas citações de analogias seria pedante e difuso; as que apresentamos bastam para demonstrar peremptóriamente que a doutrina de Lao Tsé é uma emanação direta e uma aplicação profunda da Tradição primordial, voltada para um estado intelectual e social. Veremos, no decurso de nosso exame, os traços desta filiação. Saibamos então que iremos prosseguir através do estudo de textos concisos e misteriosos do chefe do Taoísmo, e que encontraremos aí, junto com o ensinamento divino dos Ancestrais, o mais belo, mas também o mais difícil método de ascese que jamais foi ofertado à Humanidade.



















III
O TAO



A obra direta deixada por Lao Tsé, que influenciou e influenciará por muito tempo ainda os espíritos  dos homens com uma força toda própria, é, materialmente, uma das menos consideráveis que existem.
Ela comporta três opúsculos, ou tratados sucintos, dos quais apenas os dois primeiros são obra direta do mestre: são eles o Tao, ou “livro da Via”; o Te, ou “livro da Virtude” (ou “da Retidão”); o terceiro, que é uma tradição oral, é o Kan Ing, ou “livro das Sanções”[14]. Estes três tratados estão redigidos na forma de fragmentos ou apoftegmas que os letrados chineses de todos os tempos sempre apreciaram. Os fragmentos sucedem-se frequentemente de modo silogístico; eles são também máximas, axiomas, provérbios ou, no caso, exclamações; eles são sempre muito curtos; os hezagramas que os compõem foram cuidadosamente escolhidos dentre aqueles que comportavam as mais consideráveis “essências de idéias”. Eles impõem-se fortemente à memória, e muitos passaram para a linguagem usual do cotidiano. É evidentemente o objetivo que tinha Lao Tsé ao empregar esta forma de redação especial.Os amantes da filologia e da controvérsia encontrarâo muito com que se satisfazer nos estudos de Pauthier, Rémusat e Stanislas Julien. Esses senhores, a partir de traduções, que não saberíamos, francamente, como elogiar, estabeleceram discussões e bibliografias muito recomendáveis. A eles enviamos nossos leitores, no que concerne a esses objetos didáticos.
No que concerne às traduções de Lao Tsé, podemos dizer que a primeira, de Pauthier, é a mais meritória, e que seu autor só não atingiu a perfeição por tentar cristianizar, contra tudo e todos, o mestre chinês. Devemos assinalar ainda uma tradução mais recente, certamente inexata do ponto de vista apenas linguístico, mas muito apropriada, por sua extensão e suas lacunas talvez propositais, para fazer penetrar as concepções de Lao Tsé no espírito dos ocidentais modernos[15].
Enfim, nós produzimos, em dois fascículos, uma tradução exata dos liovros sobre o Tao e o Te, sobre as quais não faremos nenhuma observação, senão que ela foi vista e aprovada, no Extremo-Oriente, pelos sábios que detém a herança da Ciência taoíosta, e que o filho de um deles, vindo à França especialmente com este objetivo, colaborou até o último dia com nossa tradução e com os comentários e notas que a seguem[16].
Reproduzimos aqui a tradução do Tao, seguida da doutrina, até agora inédita no Ocidente, com a qual os mestres taoístas acompanham oralmente o ensinamento do texto. Encontraremos aí toda a Via e toda ab tradição.

I.                    A via, que é uma via, não é a Via. O nome, que tem um nome, não é um Nome. Sem nome, é a origem do céu e da terra; com nome, é a mãe dos Dez Mil seres. Com a faculdade de não-sentir, chegamos perto de concebê-lo; com a faculdade de sentir, atingimos sua forma. Isto verdadeiramente constitui duas coisas. Aparecendo juntos, seu nome é fácil; para explicá-los juntos, sua origem é obscura; obscura, ela contínuamente obscurece. É a porta por onde passa a inumerabilidade dos seres.
Não podemos determinar o Tao, nem dando-lhe um nome, nem aplicando-lhe uma concepção ontelectual da Humanidade. O fato de alguém crer que tem o Tao determinado em seu espírito (na medida, ao menos, em que não se recebeu, indagou e digeriu em si a doutrina) é uma prova de que não o compreendeu, e que não é capaz de segui-lo: este é o sentido profundo da entrevista entre Lao Tsé e Confúcio relatada mais acima.
Quando o Tao não possui um nome, ou seja, quando, do ponto de vista da estase humana, ele não existe, então ele é verdadeiramente ele, ou seja a origem única e poderosa do Céu e da Terra (ou das duas perfeições: Céu, perfeição ativa, e Terra, perfeição passiva). Esta origem é única, pois o céu e a terra não estão separados pelo dom da existência; esta origem é poderosa, pois nada pode não originar-se dela; esta origem é obscura, pois nada originou-se senão dela; é preciso acrescentar que a plenipotência da origem só é tal na medida em que ela não está ainda manifestada, pois então ela é plenipotente para produzir Tudo, e no momento da Concepção da Idéia, ela produz Nada; e não poderemos dizer o mesmo quando ela tiver começado a produzir.
Ela começa a produzir quando ela tem um nome, qualquer que seja, que lhe possa convir, e ela produz Tudo; mas ela é a Mãe, ou seja que a consequência da Vontade do Céu feminilizou a Potência. A partir daí, ela É e ela não É.
No entanto, essas verdades não são compreensíveis à natureza sensível do homem; ele não é capaz de começar a concebê-las a menos que possua a faculdade de não-sentir, ou seja se ele perder a forma que lhe dá a sensibilidade; a partir daí, ele não concebe estas verdades, mas ele se torna de uma receptividade adequada à sua concepção. Ao contrário, se o homem conserva a capacidade de sentir, ele não atinge mais a possibilidade da concepção, mas ele atinge a realidade da concepção exterior, ou seja, ele compreende as formas nas quais escoam as intenções da Vontade do Céu. Isto está certo, sem dúvida, mas pelo fato mesmo de que ele eprcebe as formas, fica-lhe interditado conceber a Idéia única que essas formas múltiplas revestem.
Entretanto, a vontade do Céu e seus efeitos são uma única e mesma coisa, e nos aparecem como sendo duas coisas, porque só as vemos por reflexos[17], que são dois reflexos visíveis e inteligíveis de uma Coisa única, invisível e inconcebível. Quando estes dois reflexos aparecem juntos, o nome é fácil, pois damos um nome a cada um deles, e assim o espírito do homem se compraz na dualidade e na diversidade; mas, explicados paralelamente, sua origem se torna obscura, por ser única; e, à medida em que tentamos explicá-la, e que a cobrimos de caracteres e apreciações, ela se afasta e se torna cada vez mais obscura. Mas podemos dizer que a origem é a porta por onde passa a Universalidade daquilo que É.

II.                 Os seres do universo conhecem o bem; eles desejam fazer o bem; no momento fixado para o bem, surge o mal[18]. Os seres conhecem a probidade; eles desejam fazer a probidade, então surge a improbidade. Uma coisa e o seu contrário nascem juntos; o difícil e o fácil produzem um ao outro; o grande e o pequeno aparecem um pelo outro; o alto e o baixo determinam um ao outro; o tom e o som concordam. O antes e o depois comandam-se mutuamente. É assim que o homem perfeito não age, por não ser inferior: fazer e deter-se, esta é a sua doutrina. Os dez mil seres trabalham, e ele não os esquece; ele os produz e não os possui. Ele os desenvolve e não tira vantagens disto; eles têm méritos, mas ele não participa deles. Não, evidentemente. Tendo construído a casa, ele não habita nela.
A consciência dos seres não é determinada senão pela apreciação e a diversidade de suas ações. Os seres pensam conhecer e desejem o Bom do Bem, ao menos segundo as concepções que fazem deles. Mas, se eles provocam uma coisa, existe uma outra coisa, que é o contrário da primeira, e que eles não provocaram; esta coisa, sendo o contrário daquilo que é chamado de o Bom do Bem, é o Ruim do Mal; donde deriva que é a ação que diferencia e especializa os estados de consciência dos seres, e que é a bela ação que cria o Ruim, e a boa ação que cria o Mal. Assim, essas noções são dependentes uma da outra, determinadas uma pela outra, inexistentes uma sem a outra; equivale a dizer que na verdade elas não existem em relação ao que É, e não tomam sua aparente realidade senão dos estados de consciência, o que é ilusório do ponto de vista do Ser.
Todas as outras relatividades do Universo determinam-se assim umas às outras, e não possuem existência real, mas apenas relações artificiais, que só duram enquanto dura a ação que as criou.
Assim, a ação, porque ela determina, e devido às especializações que ela atribui às coisas que ela determina,, é algo inferior; assim, o sábio, que não é nem quer tornar-se inferior, não age. Mas esta não-ação, similarmente à da Via, não é uma inação; pois a Via, que não participa, nem dos movimentos, nem das idéias, nem dos trabalhos, nem dos méritos dos seres, produziu-os todos; vale dizer quer ela é  o mecanismo graças ao qual os seres podem se mover, pensar, trabalhar e merecer. Do mesmo modo, enquanto que os seres, graças à Via, se desenvolvem, ela não se desenvolve e permanece imutável. Ela forneceu a causa, e desinteressa-se dos objetos; os seres estão sujeitos às causas e dispensam os seus efeitos na Duração. Esta é a verdadeira distinção das Coisas. É por isso que se diz que a Via é semelhante àquele que forneceu os planos, os materiais e a energia para construir uma casa, mas que não pode habitá-la.

III.               Não exaltar os sábios, é querer que os homens não lutem; sem riqueza, e com dificuldade para enriquecer, é querer que os homens não combatam por seus ineteresses; não buscar as coisas do desejo e do sentimento, é querer que os homens tenham um coração tranquilo. Eis o que o homem perfeito ordena: coração vazio, beleza externa; fracas aparências, corpo vigoroso. É querer que os homens não saibam, nem desejem. É querer saber agir, mas não chegar a agir. Agir consiste também em não-agir. Assim, nunca se está sem agir.
Este é o meio de atenuar as consequências da ação, e o sentimento dualista provocado pela ação na consciência humana. O Mestre captou a ação e suas consequências nos três mundos: no material, é a riqueza; no sentimental, o desejo; no intelectual, o saber. Ora, a perspectiva de riqueza conduz à luta entre aqueles que não a possuem, o apetite do desejo conduz à paixão os homens que não têm o coração tranquilo, a exaltação dos sábios conduz à revolta dos que não possuem o saber.
Luta material, paixão sentimental, revolta intelectual, tais são os três deploráveis estados criados pela ação –  mesmo aquela considerada boa pela consciência – , e pela repetição da ação. Assim, se estamos em um estado humano de consciência, é preciso atenuar suas consequências: é preciso não possuir riquezas, é preciso desprezar as coisas do desejo, é preciso não exaltar os sábios. Assim, e apesar da ação, será possível conservar a paz, mantendo segredo das sempre fatais con sequências da ação. Portanto, a norma do homem perfeito e a regra de sua conduta é de possuir um coração isento de paixão e vazio de sentimentos, sob um espírito amável e sob uma inteligência vasta; é também de possuir, junto com um temperamento vigoroso e um caráter forte, o mínimo de paixões possível.
Todas as riquezas, tanto morais como materiais, permanecem assim escondidas sob a “beleza exterior”. O povo, que não as conhece, não as deseja, e assim seu coração permanece tranquilo.
Entrtetanto, que faz o homem sábio, dotado em segredo de toda a vontnade e de toda a potência? Ele aplica-se em não agir. E, querendo não agir, ele na realidade age; é por isso que sua não-ação não é uma inação, mas uma ação verdadeira. Ao mesmo tempo, ele age e não age. E ele é assim semelhante à Via, que produziu todos os seres sem participar dos seus movimentos. A vontade de permanecer não-agente, esta é a soma de todas as ações; a vontade de ser imóvel, esta é a soma de todos os moviemntos; a vontade de ser sem paixões, esta é a soma de todos os desejos. E assim, o homem superior possui, total e realmente, todas as coisas que ele não quis, na aparência e em particular.

IV.               A Via é o termo, mas também o meio. Sem dúvida, ela é sem fundo; é o rio no qual os dez mil seres possuem sua fonte. O homem superior fala manso, ele determina a sorte; ele equaliza seu esplendor; ele equaliza as trevas; ele é semelhante a um filho piedoso. Mas, eu, eu não conheço aquele único do quel ele é filho. Ele é a imagem do Ancestral do Mestre.
A Via é o termo, quando é o homem que fala dela; a Via é o meio, quando o homem a considera do ponto de vista do universo. Este fragmento é o resumo da situação da Via em relação às condições do indivíduo[19]. O homem, enquanto indivíduo lançado no círculo vital do Yin-Yang, tem a Via como fim, porque é sobre a espiral evolutiva universal que terminam todos os ciclos particulares. Mas a personalidade, separada do indivíduo, vê a Via como meio, pois é utilizando todos os pontos da espiral que ela atinge, com e por meio desta espiral, a transformação última e reintegradora. É assim que todas as personalidades, que são as flores eternas da Via, e todas as individualidades, que são as colorações passageiras e os perfumes fugidios destas flores, tem na Via sem fundo sua fonte. De tudo isto, o sábio, “que abriu a sorte”, ou seja que conhece a sucessão benéfica dos destinos do universo, fala com tranquilidade. Ele se mantém a igual distância do esplendor e das trevas, e assim ele é o filho piedoso da Via. Mas é impossível saber de quem ele é o filho espiritual. Mas ele representa os traços do Grande Ancestral, que é o Ancestral do Mestre (Lao Tsé).

V.                  Serão o céu e a terra sem beleza? Então os dez mil seres são vazios. O homem perfeito é sem beleza? Então as cem famílias são vazias. O céu e a terra são regulares; como os homens são irregulares no agir? Eles são vazios, e não sabem; eles se agitam, e agitando-se afastam-se. Eles discutem, e discutindo perdem-se. Não é assim quem retém seu pensamento em seu coração.
Se o céu e a terra não estivessem unidos (a beleza é o apelo à união), o universo não existiria (a união do Céu e da Terra é o produto por excelência da Vontade). Se o homem  perfeito não existisse, a Humanidade não teria nenhum exemplo a seguir, e ela seria inerte, como que não-existente. Mas o céu e a terra estão unidos, e o homem perfeito existe, ou seja, tudo está em ordem no universo.
Como é possível que os indivíduos que compõem a Humanidade ajam como se não tivessem exemplos sob seus olhos? Suas ações os afastam da verdade. Como é mais feliz, como está mais próximo da Via aquele que se detém e não age, e conserva dentro de si todos os pensamentos e toda a sua potência.

VI.               Os subterrâneos do espírito não morrem; ele está nas trevas profundas. Profundo e tenebroso é o Tao; o céu e a terra formam sua raiz. Pensar, pensar ainda como um filho piedoso, é o meio de triunfar. Inútil tocar.
Quando o espírito pensa verdadeiramente, no fundo de si mesmo, aquilo que ele deve pensar, ele pensa na vontade do céu e no seu meio, o Tao; e, pensando neles, ele se identifica a eles. Assim, ele é eterno, mesmo nas trevas profundas, como a própria raiz do Céu e da Terra[20]. Estas são coisas nas quais se deve pensar sempre e sem cessar, para atingir sua concepção verdadeira; é assim que o filho piedoso pensa continuamente no seu pai morto e nos ancestrais desaparecidos, embora não os possa ver, e sua invisibilidade não diminui em nada a intensidade de seu pensamento. Assim pensa o sábio; e, se ele acreditar tocar ou poder tocar no objeto de seu pensamento, é porque seu pensamento não se dirige para o objetivo, que é inatngível, da mesma forma como os espíritos ods mortos, reintegrados no mesmo objetivo.

VII.             O céu e a terra estão no infinito; o céu e a terra vivem eternamente no infinito. Certamente eles não engendraram a si próprios; é por isso que sabemos que eles são eternos. Assim os homens não podem ainda tomar como modelo o homem perfeito; porém mais tarde os homens se tornarão todos como o céu; para o homem perfeito os homens são estrangeiros, mas ele os trata afetuosamente. Ele não perde nada; ele não engana. Sozinho, ele pode adquirir.
Estando e vivendo no infinito, o céu e a terra estão fora do alcance dos homens. O ceú-terra, ou seja a Vontade original que os emitiu, não engendrou a si mesma, nem foi engendrada por outros (por ser original). Assim, ela é eterna. O Sábio que segue os desígnios desta Vontade está hoje bem acima dos homens; no futuro, não apenas todos os homens serão sábios, mas eles serão até confundidos com o céu. Esperando, o homem sábio ama os homens, dos quais no entanto ele não espera nada; ele não perde nada de sua força, porque ele não age; ele não mente, porque ele não fala. A afeição pelos seres, a contração da vontade e o silêncio, são estes os meios para se tornar um sábio.

VIII.          A água pura é superior; a água é pura? Os dez mil seres são perfeitos, mas eles não são perturbados. Aonde está a multidão dos maus, é lá que serve o método da Via. A terra é pua? Os corações são puros como um rio. Todos os homens são puros? Eles agem em pura confiança. Eles agem com pureza, retamente; eles trabalham com pureza; eles têm o costume de serem influenciados com pureza, embora eles não sejam perturbados. É por isso que não há necessidade do método.
Este trecho indica a época em que o estudo e o método da Via são necessários. Quando os homens são maus – ou seja, quando, ao contrário do preceito anterior, eles não possuem a afeição universal e diluem-se em atos vãos e palavras enganadoras – o método é necessário.
Mas, quando o coração do Sábio e quando o coração dos homens é semelhante à água pura, ou seja são límpidos e simples, então a confiança e o direito reinam; somente a influência da Via age sobre todos, sem lhes provocar emoções; pois a natureza simples está acima das emoções; a sentimentalidade e a sensibilidade humanas, únicas causas das perdas da vontade (atos e discursos vãos), desapareceram, e os homens obedecem apenas à razão. A partir daí , não há necessidade de método.

IX.               Tomar muito e guardar não se parece com o que é suficiente. Agir bruscamente, depois repousar: situação impossível de conservar. Ouro e diamantes escondidos na família: impossível conservar. Rico e vão: a riqueza se mostra sozinha ao exterior. O homem que tem mérito e cujo nome é ilustre só se dedica a tornar seu espírito superior: eis a Via.
Este é o primeiro trecho sobre a ascese moral, o preceito do desligamento das coisas exteriores, que é a consequência natural da contração interior do espírito. Não se deve guardar além do necessário; não se deve agir além da ação necessária e do repouso necessário, sem brusquidão.

X.                  Os homens carregam o corpo e o sangue como um invólucro que eles não podem abandonar. O espírito se transmite idêntico, nas crianças até as extremidades das raças; ele é, até o fim, obscuro e claro. O Céu ama todas as coisas e comanda tudo. Mas nem todos agem igual. A porta do Céu abre e fecha; então o Céu experimenta. Os homens vêem com clareza dos quatro lados, mas não distinguem bem. Aqueles que nascem, colhem os méritos dos pais. Eles querem engendrar, eles não podem. Eles trabalham e não produzem. Eles querem crescer, e não trazem nada de novo. Esta também é uma via, mas uma via inferior.
Este trecho indica o estado humano contrário ao trecho VIII, para quem foram escritos os preceitos do trecho IX. É preciso – e isto é inerente à Humanidade – que o homem carregue seu corpo e seu sangue (segundo movimento inferior do setenário humano: o movimento material) até o fim de sua modificação atual; da mesma forma, o espírito de uma raça perpetua-se hereditariamente nas crianças, com as qualidades fundamentais deste espírito. Sendo estas qualidades um dom do Céu, sejam elas obscuras ou claras, o Céu não levará isto em conta. O Céu conta apenas os esforços que fazemos para conhecê-lo, e não os resultados destes esforços.
Estes esforços não são iguais em todos os homens, e sobretudo não se exercem sobre o mesmo plano. Embora, graças ao Céu, eles possam ver a luz, não sabem ainda servir-se dela, ou seja, eles nãoa utilizam para ver os objetos – para determinar as condições da Sabedoria. Evidentemente, eles colhem os méritos de seus pais; mas, ao colher estes méritos, els herdam também sua natureza medíocre.
E assim eles agem de modo inferior. Eles compreendem o que deve ser feito, mas não chegam a fazê-lo. Permanecendo como homens, eles possuem o desejo, e apoiam-se no desejo para agir; mas eles não têm a razão, e assim não se apoiam na razão para ter sucesso. Portanto eles não produzem nada, e seu espírito não cria nada de novo para aumentar seus conhecimentos, o que é o verdadeiro preceito da Via. Não obstante, eles têm mérito, porque se esforçam. E seu trabalho é uma via para a Via; mas ele não é a própria Via.

XI.               Trinta raios reunidos formam o conjunto de uma roda; isolados, eles são inúteis;  se sobre o conjunto houver um carro, podemos nos servir dele. Tomar diretamente uma propriedade, não convém; mas se possuímos uma propriedade, podemos nos servir dela. Construir uma casa, reformar ou reparar uma casa, não convém; mas, se possuímos uma casa, podemos nos servir dela. Por isso a possessão é uma coisa má; a utilização é uma coisa conveniente.
Este capítulo tem um sentido exotérico e um esotérico; a tradução acima é o sentido exotérico; ela prega simplesmente o desinteresse e o desprezo pelas riquezas, do ponto de vista moral: o Sábio deve utilizar e não possuir; ele deve, no mundo contingente, usar o que existe, e não constituir o que não existe; pois o uso não pressupõe a propriedade, por mais tempo que passe; e assim o Sábio jamais está ligado àquilo de quê se serve, enquanto que ele poderia estar tentado a esta ligação, se a coisa lhe pertencesse.
Podemos extrair daí um ensinamento político bastante lógico, que é a condenação da propriedade particular, quando ela ultrapassa a satisfação das necessidades normais do homem. Se ninguém deve possuir, e todos podem utilizar, a propriedade torna-se coletiva, e cada cidadão privado voluntariamente do direito de possessão adquire um direito legal e geral de uso. Na prática, não se trata do socialismo de Estado, que só pode germinar nas sociedades previamente formadas no monarquismo hereditário e autocrático; mas trata-se, e a China pratica-o há mais de quatro mil anos, o comunismo, ou propriedade coletiva de raiz, geradora etnográfica da entidade social, que chamamos de comuna (ou vila), sendo que todos os membros da comuna (ou habitantes da vila) são imprescritivelmente iguais no emprego e no desfrute do bem comum.
Existe neste capítulo um sentido esotérico e metafísico profundo, do qual damos aqui a tradução; esta tradução é tão exata quanto a primeira, bastando transpor os caracteres ao plano metafísico:
Trinta raios reunidos formam um conjunto de rodas; isolados, eles são inúteis: é o vazio que os une, que faz deles uma roda da qual podemos nos servir. Uma propriedade que podemos tocar e tomar é inútil: é o ar que a envolve que faz dela um bem que podemos utilizar. Construir, reformar, reparar os materiais de uma casa, isto é inútil; é o vazio entre os materiais que faz com que uma casa possa servir: é por isso que a matéria  sua posse são más; só o que não é matéria ou posse é utilizável.
Assim, o princípio primordial é exposto novamente: o que é material é contingente; apenas o imaterial existe; o Ser apenas se manifesta, o Não-Ser é. Mas, por um corolário arriscado, o que é material só é utilizável em função do imaterial. A contingência que percebemos só é perceptível por causa do absoluto, que não podemos perceber. O Ser que compreendemos só nos é inteligível devido ao Não-Ser, que não compreendemos. A comparação taoísta, transportada para o domínio do divino, forneceria a mais irrefutável prova da “existência de Deus”. O sentido esotérico do fragmento XI do Tao não pode ser aprofundado muito além disso. Saibamos apenas que nada do que vemos, pensamos ou concebemos não é isento de uma cooperação expressa ee continua daquilo que nãopodemos nem ver, nem perceber, nem conceber, e que, por conseguinte, todos os nossos atos, mesmo os mais materiais, todos os nossos pensamentos, mesmo os mais sutis, são um involuntário e invencível reconhecimento do Grande Mistério.

XII.             As cinco cores, o homem inteligente as distingue pelo olho. Os cinco tons, o homem inteligente percebe-os com o ouvido. Os cinco sabores, o homem inteligente degusta com a boca. Rapidamente, como a corrida do rato no arrozal, tudo se espalha pelo espírito do homem inteligente. O homem inteligente trabalha com perseverança as coisas difíceis de adquirir. Assim, o homem trabalha, mas não em público; é por isso que ele faz a primeira coisa em público, e a segunda em segredo.
O Mestre indica aqui como é preciso agir para obter a ciência; enquanto que a ciência física se adquire mecanicamente, por assim dizer, pela existência ativa dos cinco sentidos, a ciência intelectual não se adquire senão por um trabalho obstinado e assíduo; enquanto que os resultados da percepção são rápidos, como a corrida do rato no arrozal, os resultados das concepções são lentos e obscuros. Da mesma forma, a primeira destas ciências pode ser obtida no meio da multitude; a outra só se obtém no isolamento.
É preciso notar também que, conforme a época, as coisas difíceis não  podem ser adquiridas a não ser depois das coisas fáceis, e por meio das próprias coisas fáceis – vale dizer, na realidade, nãopor elas mesmas, que não servem de nada, mas pelo canal intelectual que sua compreensão abriu no cérebro do homem assíduo.

XIII.          O tremor dos lábios é indício de se estar tomado pelo temor. Porque o rico e o ilustre estão inquietos, assim como eu que sou pobre? E como o tremor dos lábios do rico é um indício de seu temor? Ele treme com medo de cair. Quando ele possui, ele também é tomado de temor. De que modo o rico e o ilustre são tomados de temor, assim como eu que sou pobre? Nós vivemos uma grande inquietude, e eis porque: o céu nos fez com uma personalidade; se ele não nos tivesse feito com uma personalidade, porque estaríamos inquietos? É por isso que o homem rico deve pensar em ajudar todos os homens; convém que ele seja seu depositário; assim, ele terá a fidelidade piedosa de todos os homens; convèm que isto seja claramente dado a conhecer a todos os homens.
O Mestre sempre fornece primeiro as provas tangíveis do seu raciocínio. É assim que, para provar a diferença que existe entre o homem rico e o sábio, ele especifica que o rico está perpetuamente em temor, temor de perder suas riquezas, enquanto ele ainda as possui; e, quando ele as perde, temor de não poder viver sem elas, pois ele não aprendeu a assegurar a sua sobrevivência por si só. E esta vida, verdadeiramente insnuportável, não lhe serve de nada, pois suas preocupações só se dirigem a coisas materiais, que um dia o abandonarão.
O homem sábio, este também inquieta-se com a personalidade eterna que o Céu lhe fez, da qual não pode despir-se, mas que ele, com sua inquietação contínua, aperfeiçoa e cobre de méritos.
O Mestre tem como axioma – e a experiência universal o confirma – que a posse de riquezas é contrária à clareza de espírito, e que assim sendo o rico não pode, a menos que pratique o abandono das riquezas, obter os mesmos méritos que obtém o homem sábio e assíduo, cujas preocupações são mais altas. Não obstante, o rico pode obter outros méritos; e ele pode obtê-los, segundo o teorema inclupido no capítulo XII, através dos meios inferiores de que dispõe. Ele pode obtê-los se ajudar os homens e se se tornar seu depositário. Assim, as riquezas serão perdoadas e justificadas pelo seu objetivo; e o rico participará dos méritos intelectuais dos Sábios que tenham trabalhado para ele, se os ajudar a cumprir sem distração seu trabalho, fazendo-os participar de seus bens materiais. Existe aí uma reciprocidade que convèm reter, e cujos benefícios vão para o rico; pois, se o sábio pode dispensar as riquezas, o rico não pode dispensar os méritos dos sábios. E assim os sábios dão mais do que recebem.
Guardemos também que, do ponto de vista social, o Mestre considera os ricos como depositários diante dos outros homens, e que assim ele estende aos indivíduos e aos bens móveis a teoria comunista que rege as coletividades e a repartição dos bens da terra.

XIV.           Olhamos, e não vemos a Via: seu nome se pronuncia Ausente. Coocamos o ouvido a postos, mas não escutamos a Via: seu nome se pronuncia Sutil. Buscamos, mas não tocamos a Via: seu nome se pronuncia Vazio. Estas três coisas nãopodem se tornar claras; é porque, embora múltiplas, elas são uma só coisa. Sua parte superior não é evidente; sua parte inferior não é oculta. A Via Eterna não possui um nome que lhe convenha. Ela reintegra os seres no não-ser. Assim portanto, nãopossuir forma é a sua forma; nãopossuir exterior é seu exterior; assim, os homens sofrem continuamente buscando-a. Diante da Via, não vemos sua cabeça; atrás, não vemos seu dorso. Estudando longamente a Via, podem existir Sábios; o Sábio ensina o passado e o presente: portanto, ele conhece a Via.
O Mestre dá aqui uma definição do Tao, que participa de todas as qualidades do não-ser; no plano intelectual, ele não pode ser compreendido pela razão: é o Ausente; no plano sentimental, ele não pode ser percebido pelo amor: é o sutil; no plano físico, ele não pode ser captado pelos sentidos: é o vazio. Assim, o Tao escapa aos três planos sobre os quais a Humanidade é capaz de assimilar uma noção. É por isso que, não podendo conceber esta noção, nós ulgamos sua essência negativa. O Tao é três em um: ele é três na sua tríplice afirmação do não-ser; ele é um em sua identificação com o não-ser. E todas as coisas não podem deixar de permanecer obscuras para os homens. Em nenhuma parte a determinação da essência do Tao, e daquilo que o espírito humano pode inferir dela, está inidicada de modo mais expresso. Mas o que faz o Tao, se ele não é o não-ser? E qual é o objetivo de sua diferenciação destas duas entidades idênticas? É que o Tao reintegra os seres no não-ser. Mas lembremo-nos que o Tao não age: ele não é uma força, ele é um mecanismo. Em uma palavra, ele é agido no Tao. Lembremo-nos da definição do filósofo Shi Ping Wen, em seu comentário do Yi King: a transformação é o mecanismo que reintegra todos os seres depois da série das modificações. O Yi King contemplou assim todo o Tao, mais de dois mil anos antes que Lao Tsé lhe desse a denominação que permaneceu. O que age no Tao? A vontade do céu. Que devem fazer os seres? Conhecer o Tao e, uma vez conhecendo-o, não mais agir.
Assim é o Tao, sem forma, sem limites, sem exterior, e n o entanto ele deve reger seres que possuem formas, limites, exterior, e que assim não podem compreender, perceber e sentir senão o exterior, o limite, a forma. É por isso que a Via é difícil, e que, para conformar-se a ela, o Sábio deve violentar sua natureza, e por conseguinte sofrer... Não podemnos ver a Via, nem por diante quando caminhamos com ela, nem por trás quando retornamosa ela: portanto, se nos achamos seguros por vermos, percebermos ou compreendermos alguma coisa, é, ao contrário, a prova de que não estamos em conformidade com a Via[21].

XV.             Antigamente, os Sábios ocupavam-se em ensinar; eles eram pouco numerosos, profundos, misteriosos e penetrantes. Herméticos, não era possível compreendê-los; embora não os possamos compreender, tentemos determinar sua aparência. Eles eram circunspectos, como quem atravessa um rio gelado; prudentes, como quem tem medo dos quatro lados; indiferentes, como o estrangeiro. Quanto a nós, somos como coisas que se afogam e desaparecem, grosseiros como coisas duras, vazios como buracos. Entre nós e os Sábios, existe como que uma água revolta. O Sábio, que se recorda, detém o movimento da água, e a torna clara; o Sábio, que se recorda e que obteve a paz, consegue uma vida longa. É assim que ele observa a Via; ele não se expande, nem quer se expandir; desta forma ele se preserva, e não tem necessidade de se renovar.
Esta página, muito simples, nãoprecisa de nenhuma explicação. Ela coloca a diferença de atitude exterior que existe entre os sábios e os que não o são, mesmo os que se esforçam por imitá-los e segui-los. Lembremos que as qualidades interiores positivas do Sábio traduzem-se em qualidades exteriores negativas, e na diluição do indivíduo tangível em proveito da personalidade intangível.

XVI.           Um homem que está impedido em seu objetivo caminha do mesmo modo no sentido da declividade natural; os dez mil seres caminham e trabalham, os homens se conformam e seguem. Todas as coisas, obscuras quando juntas, retornam à sua origem. Retornar à sua origem, é estar em paz; estar em paz, é conformar-se. Conformar-se, é lembrar-se; saber lembrar-se, é tornar-se clarividente. Não saber lembrar-se conduz a agir mal inconscientemte. Saber lembrar-se, é adquirir méritos duráveis. O mérito durável faz o rei; um rei é feito durável pelo céu; o céu é durável pela Via. A Via é durável na eternidade; assim, as raças não terminam nunca.
O Mestre diz seu pensamento oculto sobre a incessante evolução; ela é necessária e natural como é necessário e natural  que o oblíquo desça pela declividade da montanha; mesmo impedido por suas limitações enquanto espécie, o homem caminha para a evolução; a universalidade das coisas, dispersas na corrente das formas, evolui: os homens seguem este movimentoe conformam-se a ele.
Conformando-se a este movimento – que é o movimento helicoidal da evolução universal – os homens retornam à sua origem. O Mestre aplica, a este retorno à origem, uma dupla série de textos silogísticos, uma sobre o plano metafísico universal, outra sobre o plano benéfico da ascese pessoal.
O retorno à origem constitui a paz, pela e na normalidade dos destinos; esta paz é conforme aos desígnios iniciais da Vontade do Céu. Mas a paz em conformidade com estes desígnios permite àquele que a desfruta de lembrar-se, e lhe dá a clarividência do passado, o conhecimento do presente a a intuição do porvir analógico.
Que vantagem pessoal conferem estes graus da escala metafísica? O conhecimento dos seres e a consciência de seu ser faz com que sejam adquiridos méritos duráveis. E estes méritos duráveis conduzem o indivíduo à realeza, o rei ao céu, o céu à Via, e a própria Via à Eternidade. É por isso que a conformidade de perspectivas que os homens têm com o Céu, conduz ao infinito.

XVII.        O Grande Chefe, os homens abaixo dele sabem que ele existe. Algumas vezes, eles o amam e pensam nele; outras eles o temem, outras o injuriam. Ter pouca confiança, é não ter confiança. Assim portanto, para falar sabiamente, e para que méritos pessoais possam ser adquiridos, é preciso que todos os homens ajam naturalmente.
Esta progressão da individualidade, que corresponde a uma regressão intelectual e moral, aplica-se tão bem à transcendência metafísica quanto à contingência social. Quando a Humanidade está unida ao Céu, ela o ama; quando se separa dele, o teme; quando se opõe a ele, injuria-o. Quando os reis não fazem sentir sua autoridade[22], eles praticam o não-agir; os cidadãos, não sentindo sua administração, o amam. Quando os reis, separados do Céu, pretendem agir com ações paralelas ao Céu, os cidadãos conhecem seupoder, e, mesmo que ele lhes seja vantajoso, o temem. Quando os reis, opostos ao Céu, e definitivamente individualizados, agem sem se preocupar com a conformidade ao Céu, os cidadãos sofrem sob seupoder, e o detestam. E assim engendra-se, apenas pela ação, uma inferioridade geral e uma desconfiança recíproca. O ensinamento da Via leva a agir naturalmente, ou seja sem motivos, mesmo louváveis, pois um motivo louvável supõe a existência de um motico contrário, que é reprovável. Não ter motivos para agir conduz o sábio a não agir, e este é o objetivo indicado pela Via.

XVIII.      Os homens que praticam a Grande Via possuem a justiça e a humanidade. Praticando a inteligência, eles possuem o respeito que é trazido pela reflexão. Os homens desunidos possuem o egoísmo. O império está perturbado e confuso? Eis aqui os oficiais Hoan[23].
Na Via, a justiça e a humanidade existem inconscientemente; mas é como se elas não existissem, pois não há ninguém que seja nem justo nem humano, e não podemos dizer que um homem é justo e humano, a menos que haja a seu lado, ao mesmo tempo, um homem que não tenha justiça nem humanidade. A justiça e a humanidade só são louvadas para converter aqueles que não as possuem; elas não existem, a não ser que a Grande Via esteja perdida.Isto necessita inteligência, e a inteligência humana pratica e respeita  a reflexão; é o que faz a perda da Via, segundo a qual é preciso agir naturalmente e sem raciocínios.
Da mesma forma, a desunião entre os homens cria os indivíduos, e os indivíduos não podem possuir senão o egoísmo. Da mesma forma, a desunião entre os reinos do Império produz a confusão, e os problemas só podem ser reprimidos pela força. Assim, de todos os modos, o homem está distante da Via.

XIX.           O espírito penetrante do Sábio possui méritos e ciência; então os homens são perfeitos de cem maneiras. O espírito penetrante possui méritos da humanidade; então os homens obedecem e têm piedade filial. O espírito penetrante possui méritos e poder; assim desaparecem os ladrões e os piratas. Eis aqui verdadeiramente três coisas: trabalharemos o bastante para compreendê-las? O Sábio as retém; ele vê o bem oculto; ele quer aprofundar ainda mais a verdade.
No domínio intelectual, assim como no sentimental e no material, o espírito do Sábio domina; num ele tem a ciência, e, comunicando-a aos hoemns, eles se tornam perfeitos. No sentimental existe a humanidade, e impregnando com ela os homens, estes se tornam maleáveis e piedosos. No material, enfim, está o poder, e, fazendo os homens sentirem-no, o mal e os bandidos desaparecem. Isto parece bom, mas é cada vez mais menos bom; pois o Sábio age nos três planos, mas pode ele prever o resultado de sua ação? Que aconteceria se os homens fossem demasiado limitados para receber sua ciência, demasiado duros para sentir sua humanidade, demasiado perversos para aceitar seu poder? E, se supomos que uma ação intelectual torna os homens sábios, que uma ação moral os torna piedosos, que uma ação material os torna tementes e honestos, é porque é possível que homens não sejam nem sábios, nem piedosos, nem honestos. Enquanto que, na realidade, se a ação não se produzisse, a alternativa não se colocaria. Não existiriam homens perfeitos, nem limitados, nem piedosos, nem bárbaros, nem honestos, nem ladrões; haveria uma Humanidade imóvel, sem ação direta ou reflexa, e seguindo sua Via. A dedução desta consequência é delicada, e por isso o Mestre se pergunta se haverá reflexão suficiente para a compreensão do fundo daquilo que ele quis expressar.

XX.             O espírito que estuda não está inquieto. Sendo todos iguais, os homens marcham pelo mesmo caminho.Os bons caminham junto com os maus. Embora caminhem juntos, eles não se confundem. Os homens são inquietos; não é possível não ser inquieto. Os dissolutos não sofrem ainda as calamidades; e esta multidão regozija-se, feliz e inconsideradamente, como se subisse ao Templo no m~es de Xuan. Eles pensam: eu sou jovem, ainda não é tempo de ser infeliz; eu pareço uma criança que não deixou de mamar. Eu digo: sim, sim, mas eu pareço com a criança que não se comporta segundo a ordem. Todos os homens possuem o supérfluo, só eu não me ligo a ele. A estes homens, de coração estúpido, os males acon tecem. Mas eles são ligeiros. Eles dizem possuir o espírito esclarecido; mas só eles são confusos. Eles dizem que seu espírito é assíduo; mas só eles são angustiados e vagos; eles são como o mar, confusos como aquilo que não tem repouso. Os homens tentam adquirirpensando: só nós somos importantes; nos é fácil sermos homens; nossa mãe é rica para nos alimentar.
Todo este trecho só contém considerações para levar os homens a desconfiar que uma mesma aparência acompanha aqueles que sabem e aqueles que, voluntariamente ou não, ignoram. A alegria fácil, agradável de se sentir, e que é permitido a todos procurar, que consiste numa vida charmosa, na contemplação das belezas naturais, na utilização das vantagens que estão ao alcance, esta alegria fácil não é mais favorável à aquisição da sabedoria do que as riquezas importantes e perigosas por sua própria importância.
Contar com a intervenção dos pais ricos para alimentar-se e prosperar, é uma prova de lascidão, inércia e impotência; contar apenas com a necessidade evolutiva do universo e com as condições mecânicas da ascese humana para progredir, é uma prova de estupidez, de insuficiência intelectual e de uma incompreensão total da Via.

XXI.           A virtude brilhante e superior busca a Via. A via fornece a abundância de todas as coisas; embora o sábo espere muito, ele ganha paciência; ele obtém paciência, pois, em seu coração, ele já possui um apoio; da mesma forma ele espera, obtém paciência, ele já possui a abundância; ele compreende e ele chama, pois em seu coração ele tem o espírito, e este espírito é fiel e direito. Em seu coração ele tem esperança; jamais ele esqueceu estes nomes. Ele instrui, dirige, ama a Humanidade. Como sabemos nós intruir e dirigir os homens? Faça-o por si mesmo e conserve  isto.
Esta página é uma daquelas, tão frequentes, em que o sentido do texto pode ser entendido em dois planos: a tradução acima refere-se ao  plano moral e sentimental, ao plano individual e humano. O Sábio obtém a paciência esperando os bens definitivos que traz a Via, porque, um após outro, ele recebe dela um apoio (material), uma abundância (sentimental), um espírito fiel e direito (intelectual). E, como ele jamais esquece o nome da Via, a consciência de si lhe fornece a esperança da Via. É neste sentido que ele dirige a humanidade por suas afeições e por seus exemplos.
Eis agora a paráfrase desta mesma página, dando aos caracteres seu sentido filosófico, ou seja transpondo-a ao plano metafísico:
As formas da Virtude, eis a única maneira de se ver a Via. A Via é a totalidade eterna e imutável: dentro dela, podemos supor pelas imagens, ela é eterna e imutável; dentro dela, podemos ver seres inumeráveis, ela é eterna e profunda; dentro dela, podemos conceber a essência, esta essência imutável e rígida. Dentro dela, existe continuidade; seu nome jamais passou. Ela dá a todos os seres nascimento, direção e aspiração. Como pode ser isto? Por ela  própria.
Assim, a Humanidade distingue na Via (na criação) as imagens físicas, os seres animados individuais, e uma essência geral eterna. As três concepções que a Humanidade pode fazer da Via correspondem aos três planos em que ela pode ser concebida, e às três situações nas quais (pela primeira interpretação do texto) o Sábio obtém a paciência. Mas, seja a essência, sejam os seres formais, sejam as imagens, estas coisas jamais passam de aparências imperfeitas. As imagens correspondem ao plano material, e são as formas da corrente das criações; os seres correspondem ao plano sentimental, e são os indivíduos que animam as formas; a essência corresponde ao plano metafísico, e ela é a personalidade totalizada dos indivíduos e liberta das formas. Na realidade, a Via não pode ser concebida senão com a Personalidade reintegrada, e, por conseguinte, destruída em benefício da Unidade. É por isso que ela está verdadeiramente a um tempo no Ser e no Não-Ser, e é por isso que ela permanece ininteligível aos homens, que não passam de parcelas indefinidamente divisíveis do Ser, e que permanecem abaixo do conceito do Não-Ser idêntico.

XXII.        Curvo, para ser intacto; reto, para ser quebrado; destruído, para ser preenchido; oculto, para ser novo. Com poucas vantagens, é conservado; com muitas vantagens, perde-se. O homem perfeito reune tudo num mesmo conjunto; ele é o modelo de todos os homens. Ele não se vê; entretanto, ele brilha. Ele não agita; entretanto, ele age. Ele não é zeloso; entretanto, ele possui méritos. Ele não é excessivo; entretanto, ele dura muito tempo. Ele não é agitado; por isso os outros não se agitam contra ele. Assim, desde longa data, o que era curco permaneceu intacto. Falar assim, é ensinar os ignorantes. O que é intacto alcança a Via.
Os seis primeiros versos desta página são aforismos transformados em provérbios populares. Aqueles que são encurvados, ou seja que vivem desconhecidos e modestos, não correm nenhum perigo; aqueles, ao contrário, que levantam a cabeça e possuem orgulho de si mesmos ou de sua situação são destruídos; assim orientaliza-se o passeio de Tarquínio em seu jardim de papoulas. Da mesma forma, aqueles que são humildes diante da Via alcançam a Via; os demais a ignoram e afastam-se dela.
Na mesma ordem de idéias, o Sábio, que não encheu seu espírito com mil noções humanas, pode ser preenchido com a noção da Via: é preciso que seu espírito seja livre para atingir esta concepção, e também, é preciso que o Sábio esconda-se modestamente, para que seu espírito esteja sempre novo e pronto para servir à sua ascese; pois, se o Sábio não se oculta, ele será empregado, em alguma das mil funções que só tem por finalidade os interesses passageiros e medíocres; e ele não terá, para ocupar-se da Via, senão uma inteligência fatigada, e um espírito ensombrecido por mil cuidados inúteis.
A conduta exterior do Sábio deve ser conforme a esses preceitos de sua vida interior. Ele deve, de fato, uma vez que ele é constrangido a viver, viver o mínimo possível, ou seja, não entrar em luta, nem com os demais, nem consigo mesmo; não entrar em luta com outros, é não se deixar notar (para deixar-lhes o lugar); não entrar em luta consigo mesmo, é não ter paixões.
Para o Sábio, sua luz, sua ação, seus méritos, seu ardor, são interiores; e ele deve mostrar aos outros um exterior que é exatamente o oposto; assim, ele não faz sombra a ninguém; e, não sendo invejado nem utilizado por ninguém, ele pode empregar todas as suas forças e todo seu espírito em conformar-se com seu destino. Assim, ele o atinge inevitavelmente. É deste modo que tudo o que escolheu ser curvado permanece inacto, e que tudo o que é intacto alcança a Via.

XXIII.      Quem fala pouco age como quer. Ele chama o vento, mas não diz de que lado. Ele chama a chuva e não avisa o dia. Ele sabe agir segundo isto: o Céu e a Terra não podem durar para sempre; não é o mesmo que acontece com os homens? É por isso que seguir a Via é estar junto (assimilar-se) com a Via. Seguir o bem, é estar junto com o bem. Seguir a perda, é estar junto com a perda. Estar junto com a Via, é ganhar a Via; estar junto com o bem, é ganhar o bem; estar junto com a perda, é ganhar a perda. Ter pouca confiança, é não ter confiança.
Este capítulo indica primeiro a vantagem material e depois a vantagem moral da ação rara e refletida. Aquele que fala muito, mesmo que seja sábio, engana-se muito. Assim, o Sábio que chama o vento de um certo lado e a chuva para um certo dia tem mais chances de errar, e, por conseguinte, é menos sábio do que o Sábio que apenas chama o vento e a chuva. Aquele que faz ações precisas é portanto inferior àquele que faz apenas ações gerais.
De resto, é exato dizer que quem faz ações gerais age segundo o Céu e a Terra; aquele que inquieta-se com os detalhes (o lado do vento, o dia da chuva) engana-se, porque não é mais guiado pelas leis gerais, e porque tem – em sua parte individual – a pretensão de comandar as relatividades. É assim justo que ele se engane, e que perca o título de sábio. Pois o Sábio não conhece as leis (imutáveis). E não existem leis para as coisas que mudam.
Aqueles que agem pouco, e de modo refletido, estão com a Via. Mas o Mestre insiste neste ponto: que basta querer seguir a Via para estar com ela, basta desejá-la para adquiri-la. Da mesma forma, basta não querer segui-la para se estar junto com a perda. Está aqui a consequência mais evidente deste princípio – que é universal e, em todo caso, extremo-oriental – que diz que a intenção vale pelo ato, ou seja que o pensamento voluntário basta para que um homem se torne melhor do que um outro.

XXIV.      Quem se coloca na ponta dos pés não fica em pé. Quem se põe de joelhos não caminha. Quem olha não vê sempre tudo claro. Quem possui não pode sempre usufruir. Quem faz reprimendas não possui sempre méritos. Quem tem o supérfluo não pode durar para sempre. Isto é falar conforme a Via. Todos os seres podem ser maus às vezes; assim onde está o que segue a Via?
Tudo o que o Mestre defende, em nome da Via, no plano intelectual e metafísico, é ao mesmo tempo ruim do ponto de vista material. Deste modo, assim como é o orgulho quem designa ao príncipe suas vítimas, também erguer-se na ponta dos pés desequilibra o homem em pé. Assim, da mesma forma que a dureza e a teimosia conduzem à cegueira e ao erro, postar-se de joelhos impede de caminhar e avançar. Aquele que olha muito gasta sua faculdade de ver; só vê quem tem os olhos fechados; aquele que possui muito não desfruta, por temer perder sua riqueza; só é feliz quem possui pouco o suficiente para poder dispensar tudo o que tem. Assim, aquele que critica uma ação medíocre tem às vezes tão poucos méritos, que em circunstâncias idênticas talvez fizesse pior. Estes são os ensinamentos da Via. Eles são o contrário dos sentimentos apaixonados dos homens. Então, podemos nos perguntar se existe um homem que possua a Via em seu coração. Vemos assim como a mais alta doutrina taoísta propõe uma prática cotidiana.


XXV.         Possuir coisas permite fazer algumas coisas; antes de tudo, o céu e a terra nasceram; ei-los unidos, ei-los profundos. A coisa, ela, aparece só[24], mas não muda. Ela está em toda parte, e não se detém. Convém que ela (a coisa) seja a origem de todos os homens. Quanto a mim, não conheço seu nome; seu caracter se escreve “Via”. Sendo imensa, seu nome se traduz como : ser grande. Ser grande traduz-se: estar em toda parte. Estar em toda parte traduz-se: atravessar. Atravessar traduz-se: retornar. Também a Via é grande; o Céu é grande; a Terra é grande; o Iperador também é grande. No meio, existem assim quatro coisas grandes, mas só o Imperador é visível. O homem obedece à Terra; a Terra obedece ao Céu; o Céu obedece à Via; a Via obedece ao seu Mestre[25].
O Mestre indica, por meio de fórmulas veladas que se tornaram provérbios, os modos mais gerais da formação organizada do Universo. Nada se faz sem nada; antes mesmo que esta constatação fosse feita, havia o Céu e a Terra, ou seja o Ativo e o Passivo, ou as duas manifestações da causa primordial. Mas, antes ainda, havia a Coisa, “ela” (o Neutro), ou seja o Ser-Não-Ser. Ninguém a conhece nem a compreende; “ela” é a origem: não se pode captar a origem de onde se saiu, antes que se saia. É por isso que o Ser-Não-Ser é ininteligível aos homens; quando queremos falar dele, escrevemos um caracter que leva o nome de “Via”.
A Via dá nascimento ao ternário das grandezas. Estas três grandezas, afirmadas e possuídas pela Via, formam o quaternário da realização (aqui a ciência dos números proclama sua unidade e sua ubiquidade). A primeira grandeza que sai da Via infinita é a positividade – a atividade –, o Céu, que “está em toda parte”, ou seja que impregna tudo com sua essência. A segunda grandeza é a negatividade – a passividade ou manifestação –, a Terra, cuja influência atravessa todas as coisas; todas as coisas são tributárias desta influência . A terceira grandeza é a criação sintética, o “Homem Universal” – o Imperador –, cuja função é de retorno, ou seja que a função do homem é a de devolver à criação, por uma contínua ascese, sua perfeição primitiva, ou de fazê-la retornar e devolvê-la   à sua origem. Do quaternário realizado destas grandezas, somente o Homem é visível, e as ações das quatro grandezas são comandadas e refletidas pela hierarquia crescente, que desemboca na Via primordial, que só obedece a si mesma.
Esta página contém em germe toda a ciência da Via metafísica do Extremo-Oriente, tal como a expusemos precedentemente (ver A Via metafísica). E vemos também que a doutrina da ascese universal, por meio do raio divino incluído no Homem, encontra-se integralmente na Gnose primitiva.

XXVI.      O pesado possui uma raiz leve. A perfeição dos cidadãos conduz conduz à derrocada dos reis. O Sábio prepara-se diariamente; ele não separa o pesado do leve. Eis, dizem, que os grandes homens são felizes, verdadeiramente os homens pensam que isto é certo; para prescrever da forma que eles entendem, os reis dizem dez mil “sim”. Mas seu coração trata com descuido todos os homens. Ser descuidado faz perderem-se os grandes; ser sacudido faz perderem-se os reis.
Vimos no Yi King, veremos na doutrina de Confúcio, e vemos aqui no pensamento profundo do mestre taoísta: malgrado a aparência de autocracia absoluta coroada por um trono no alto da hierarquia, o espírito amarelo é um espírito comunista e anti-monárquico. Veremos alhures outras marcas disto, esta é apenas a primeira. A árvore, que é pesada, possui uma pequena raiz leve invisível; no entanto, é esta que a nutre, e, sem ela, a árvore não poderia existir. Assim, é o “povinho” que alimenta os grandes e que é a razão de ser dos poderes públicos e visíveis. Os grandes tendem a negligenciar o “povinho”, esquecendo-se de que só existem por sua causa, e para ele. Isto faz os grandes perderem-se. Mas, quando o povo é sábio e perfeito, ele sabe conduzir-se e não tem necessidade de quem o guie, aconselhe ou comande. É por isso que a perfeição dos cidadãos deve levar à desaparição dos reis; é por iso também que o sábio, cauteloso, não separa jamais os reis do povo.
Certamente, podemos extrair desta página um sentido metafísico, como o fizeram muitos letrados e cortesãos. Mas é preciso ter claro que Lao Tsé, como consequência absoluta de seu sistema filosófico, buscava a felicidade dos povos em sua liberdade e auto-governo, e só oferecia esta liberdade como recompensa, e também como corolário inevitável, da perfeição que eles deveriam adquirir seguindo seus ensinamentos.

XXVII.    O homem probo age sem fazer mal, fala sem mentir, explica sem exagerar; enquanto que o homem que sabe fechar, por forte que seja, não pode abrir, e o homem que sabe atar não sabe livrar. O homem perfeito é sempre hábil em salvar os homens. Se não existem homens, ele é hábil em salvar todos os seres. Se não existem seres, sua própria habilidade o cobre de esplendor. Assim são os homens probos. Se um homem improbo for o mestre, todos os homens se tornarão improbos. Não honrar seu mestre, é não ter amor em prosperar. Os Sábios, que já são sérios e esclarecidos, desejam ser mais profundos e mais sutis.
XXVIII. Quem se conhece bem e age com clemência é o primeiro entre os homens. A quem é o primeiro de todos os homens, a virtude não falta; ela retornará em seguida sobre seus filhos. Quem se sabe brilhante e se mantém obscuro, este é o modelo de todos os homens. A quem é o modelo de todos os homens, sua virtude constante não enganará; ela retornará a ele sem fim. Quem se sabe sábio e guarda os lábios fechados é o primeiro entre todos os homens. A quem é o primeiro entre os homens, sua virtude basta em qualquer lugar: ela chegará até o final da raça. Esgotada esta extremidade, ela retornará em sualembrança. Assim age o homem perfeito; assim ele age bem e duradouramente. Estas grandes leis não são fáceis.
Estas duas páginas explicam o papel do homem perfeito neste mundo, e as vantagens que ele aufere para si e para sua raça. O papel do homem sábio é inteiro feito de solidariedade (que se traduz, no Ocidente, por “altruísmo recíproco”). É preciso notar que esta solidariedade é conforme à lei natural, e deve ser instintiva e também expressar-se principalmente através de atos negativos[26]. Pelo emprego desta solidariedade natural, de justo meio, o Homem pode salvar todos os homens, todos os seres; é a isto que tendem os sábios quando procuram progredir sem cessar. Mas, que resultadi. Mesmo pessoal, de tal renúncia à sua personalidade! A doçura do forte, a obscuridade do ilustre, o silêncio do Sábio, quando são perpétuos e voluntários, sãoa fonte da virtude mais constante e da felicidade perfeita. Virtude e felicidade estendem-se aos filhos do Sábio, à sua raça toda, remontam aos seus ancestrais, e imortalizam suas ações. E assim, virtude e felicidade unificam em uma mesma perfeição toda a raça (e toda a Humanidade), esta alcança inteira a Via e conforma-se a ela.

XXIX.      Cada um quer governar todos os homens. Quanto a mim, eu vejo que nenhum consegue: ninguém tem o meio de chegar ao espírito de todos os homens. Quem trabalha por aí, se perde; quem quer, é vencido. De fato, dentre todos os seres, uns caminham, outros seguem; uns invejam outros renunciam; uns são fortes, outros são fracos; uns se deixam conduzir, outros dirigem. Assim o homem perfeito deixa a grandeza, deixa a humanidade, deixa tudo.
Sob uma forma bastante vaga e ampla, e própria para desdobrar todos os desenvolvimentos possíveis, eis aqui a condenação da autocracia e de todos os sistemas monarquistas. Os comentadores são muito expressos em suas paráfrases, que podemos resumir assim: a sociedade é uma soma de indivíduos; estes indivíduos possuem cada qual (contrariamente aos princípios da Via) uma vontade e uma energia próprias; estas vontades e estas energias não se somam, pois elas não concordam; elas são apenas concomitantes no  tempo e no lugar. Ora, a monarquia, ou a direção de um só, é uma tentativa de totalizar estas vontades e levá-las ao mesmo objetivo; isto não apenas é impossível, como é mesmo uma coisa anormal, enquanto a sociedade for compsta de indivíduos;  a sociedade é uma série de energias individuais, e, como tal, impossível de ser dirigida por um indivíduo.
Para atingir a possibilidade da autocracia, é preciso suprimir a individualidade das energias e substituí-las por uma energia coletiva; neste dia, não haverá mais indivíduos, mas um total humano, que será a “Unidade Humana”. Apenas então, o governo de um só será posível. Mas quem será este Um? Não será um homem, porque toda a Humanidade terá então se tornado uma unidade; também não será um ser falível, porque, tendo atingido a perfeição da Unidade, a Humanidade não terá mais necessidade de ser governada pela força e o comando, e se conformará sozinha à suprema Razão. Este Um será portanto a Via, que é, por definição, o mestre que não comanda.
Assim a autocracia só se torna materialmente possível no dia em que se torna logicamente inútil. Não existe, em nenhum sistema filosófico, uma demonstração mais triunfante da vaidade do governo de um só.

XXX.         Os chefes que a Via esclarece não se utilizam dos horrores da violência dos exércitos; eles têm para si a fidelidade dos seus povos; os maus existem há muito tempo: mais tarde a balança os pesará. É verdade que existem anos cruéis; mas se os homens simplesmente forem probos, não será preciso usar violência. Verdadeiramente, eles não se salvam; verdadeiramente, eles não ferem mais; verdadeiramente, eles não ofendem mais; verdadeiramente, eles não pecam mais; verdadeiramente, eles não são violentos. Ainda que sem a Via, eles já agiam assim; mas, na aurora dos tempos, não existia uma Via para eles.
Esta página é inteiramente exotérica, e não necessita nenhuma paráfrase; ela indica a conduta dos sábios que, nos primeiros tempos, foram os condutores do povo, ou seja, não como chefes, mas como conselheiros que os povos procuravam, e assim todos solicitavam e seguiam livremente seus conselhos.
Mas é preciso guardar a frase final desta página. Os homens primitivos agiam segundo a Via sem conhecê-la, porque eram primitivos e adeptos da única lei natural, e não havia necessidade de Via para eles. Mas, a partir do dia em que eles souberam que existe uma Via, e procuraram segui-la, cada qual a seu modo, eles a perderam, pelo fato de terem-na buscado a partir de suas individualidades

XXXI.      Os chefes que a Via auxilia não publicam seus talentos.Os seres às vezes são maus; então eis a Via; não há lugar aonde ela não esteja. Os homens que são direitos adoram a esquerda; os que se servem das armas adoram a direita. Quando se possui exércitos, não se deve publicar sua força: o que não é vantajoso, não deve ser feito. A língua e a inteligência são em princípio preferíveis. As boas ações tomam a esquerda; as más ações tomam a direita. Os grandes chefes misericordiosos tomam a esquerda; os grandes chefes orgulhosos tomam a direita. Sua palavra pode levar a morte a todos os lugares. Eles matam uma grande multidão de homens, pensando que estes homens não são do seu sangue. Mas o Céu os irá ferir, porque eles levaram a morte a todos os lugares.
Aqui se faz a crítica e a indicação da sorte daqueles que empregam as armas e a violência para assegurar o poder e chegar aos seus fins. O texto é bastante claro para necessitar explicação. Os comentadores chineses extraem daí todas as consequências políticas possíveis.

XXXII.    Certamente, a Via não possui um nome.Frágeis como folhinas, os homens não ousam por si mesmos. No futuro, que os reis sejam atentos e cuidadosos em ver se, para todos os seres, foi dita a verdade. Quando o céu e a terra estão juntos e unidos, o orvalho cai com doçura. O povo não é esclarecido, mas tem desejos. A nova lei tem um nome; este nome tem um caracter. Nós a conhecemos; nós não a praticamos o bastante. Uma  face da Via permanece entre os homens. Estes fazem como o curso dos ros, que correm para o mar.
Esta página indica o resultado da união do céu e da terra: o orvalho desce, é a manifestação metafísica, a secreção e a cópula. Este dogma, que é um dos principais dos ritos tibetanos, é, no Taoísmo, uma consequência de valor secundário, como todas as contingências. Com a realização, que sintetiza o simbolismo gerador, uma face da Via desce em meio aos homens; é o reflexo da Via verdadeira, a única que os homens podem ver, e pela qual eles conhecem a existência da initeligível Via, para a qual eles são arrastados invencivelmente, como os rios que vão para o mar.

XXXIII. Quem conhece os homens é sábio; ele conhece com clareza. Da mesma forma, quem pode conhecer os homens tem a força, com a qual pode ser poderoso. Quem sabe limitar-se é rico; quem age fortemente tem a vontade. Quem não se divide dura muito; quem morre e não é esquecido, este é imortal.
Sob uma nova forma, esta página repete a mais cara lei do Mestre, que é o fundamento de seu sistema e que foi comentado na página XXIII.

XXXIV.  A Via segue ao mesmo tempo pela direita e pela esquerda; ela engendra os dez mil seres e não esquece nenhum; ela tem a justa medida dos méritos, e não marca seu nome. Ela ama e alimenta os dez mil seres; mas ela não quer comandá-los. Por hábito, os homens não querem agir assim, então eles convencionam que seu nome seja obscuro. Os dez mil seres chegam à Via, e ela não quer ser se mestre; convém então que seu nome seja grande. É por isso que o homem perfeito não age, e é grande; é por isso que ele pode realizar grandes ações.
A sorte metafísica da qual a Via se serve para atrair os homens para si, influenciá-los e lhes dispensar a alegria que corresponde à estase humana, é ofertada aos homens como um modelo ao qual eles devem conformar o modo individual, para, por meio deste, obter méritos para se aproximarem da Via. Esta é a “Liberdade” sobre o plano político (a Via ama os seres, sem querer ser seu mestre). É também, e sobretudo, a Solidariedade sobre o plano místico e divino (a Via não esquece nenhum ser e não marca seu nome). É daí que provém sua perfeição original, e o homem sábio não se torna perfeito senão imitando-a na medida em que puder faz~e-lo.

XXXV.    O homem perfeito apresenta a imagem da Via: todos os homens chegam-se a ele; eles chegam e não cessam nunca de vir. A paz reina em toda parte; de boa vontade é ouvida esta palavra agradável. Aos estrangeiros, o silêncio basta; para os outros, a Via fala por sua boca. Quem fala depressa, fala sem fruto. Olhamos a Via e não a enxergamos bem. Escutamo-la e não a ouvimos bem. Quremos imitá-la, mas não a observamos o bastante.
Esta página contém uma dupla recomendação. A primeira é a de calar-se diante de estrangeiros (aqueles que os primeiros cristãos chamavam de Gentios): veremos como esta prescrição foi severamente observada na constituição do colégio dos Sábios e de seus alunos, e na transmissão, mais ou menos restrita, da doutrina.
A segunda recomendação é este aviso de que, não importa o que façam,os, jamais atingiremos a Via. Devemos, para nos conformarmos com isto, tentar atingi-la; mas nosso estado de humanidade atual não nos permite identificarmo-nos com ela. É por isso que não devemos nos desencorajar com as imperfeições e com os insucessos, dos quais não somos os responsáveis.

XXXVI.  O homem probo vai diminuir? Certamente, a Via o faz aumentar. Estará ele fatigado? Certamente, ela lhe dará a força. Desejará ele progredir um grau? Certamente, ela lhe dará o título. Desejará ele reunir-se? Certamente, ela lhe dará a assembléia. Ela faz isto para uns poucos seres que foram esclarecidos. O fraco torna-se forte; o fatigado fica alerta. O peixe não pode sair do fundo das águas. Agora o império atinge a perfeição por si mesmo; ele governa os homens sem perscruar seus interesses.
Aqui são enumeradas rapidamente as vantagens que a Via confere àqueles marcados para conformar-se a ela naturalmente: a primeira é a melhoria; a segunda é o poder; a terceira é a sabedoria; a quarta é a desindividualização (ou a reunião de muitas parcelas numa soma). Uma vez atingido este resultado, o homem fez pela Via todo o esforço que seu estado atual lhe permite fazer. E, em retorno, assim como o peixe não pode sair do fundo dos rios, também o homem não pode deixar a Via; a partir daí, ele permanece nela naturalmente e sem esforço. Neste caso, o império atingiu seu mais alto grau de perfeição; ele governa a si próprio na coletividade dos cidadãos, sem olhar os interesses das individualidades dirigentes, cujo papel é aliás ilusório e limitado.

XXXVII.                      A Via parece não agir; no entanto, ela jamais deixa de agir. No futuro, se os reis a guardarem rigorosamente, os dez mil seres se transformarão por si mesmos. Transformados, talvez eles ainda queiram agir, mas serão preservados disto. Pois a Via não tem um nome, mas é poderosa. Que os homens aspirem à reunião, mas que não tenham desejos. Sem desejos, eis a paz. Então os homens estarão com a Razão.
Esta é a fórmula geral, que encerra o tratado do Tao, e com a qual o Mestre afirma mais uma vez a quintessência da Vontade e da Existência no Não-Ser imóvel. E, a exemplo do Não-Ser imóvel, que os homens se abstenham de desejos; assim, eles não terão paixões; eles não cometerão ações individuais para satisfazê-las; assim, eles estarão em paz e identificar-se-ão com seus destinos.

IV
O TE



O segundo livro sagrado do Taoísmo forma um todo completo com o primeiro; mas é tão distante dele como pode uma aplicação ser distante do seu princípio.
Lao Tsé fez, destes doi slivros, um tratado único, ou, como se diz na China, um único King; pois ele pensava com razão que o primeiro livro não seria útil a menos que leitor se dedicasse também ao segundo; e ele sabia que o segundo não seria inteligível e adequadamente empregado, senão depois que o primeiro houvesse sido digerido e compreendido. Foui para especufucar esta necessidade recíproca que ele reuniu os dois livros sob um mesmo título.
Mas o que é racional na China, aonde verdadeiramente a compreensão do Tao primeiro e do Te em seguida pode propiciar uma direção política geral, e mesmo uma regra para a conduta diária dos indivíduos, torna-se anormal, segundo a tradução do texto nas línguas do Ocidente, este lugar aonde os Sábios, os Iniciados e os Filósofos são vistos como inúteis fora das especulações, e como totalmente incapazes de governar. O Tao e o Te devem ser reunidos nas nações que os puderem por em prática; eles deve estar separados, como o são por suas próprias qualdiades, nos países em que são estudados com vistas apenas à ascese, pessoal ou coletiva, e onde eles se chocam com a mais completa impossibilidade de realização.
É isto, acreditamos, que não entenderam bem os primeiros tradutores de textos taoístas, Pauthier, Rémusat, Julien e, ultimamente, Alexandre Ular, que, mesmo tendo se beneficiado dos trabalhos de seus predecessores, não captaram, nem poderiam captar, a razão das distinções ou dos arranjos feitos por eles.
Como puderam notar nossos leitores de A Via Metafísica, o primeiro livro, o Tao, a “Via”, é a explicação racional dos problemas cosmogônicos e metafísicos, contidos nos textos da tradiçãoprimordial, e especificamente no Yi King: a Via – que é o Tao de Lao Tsé – é precisamente o ciclo helicoidal simbólica que a “criação” (para falarmos em linguagem ocidental) acompanha ao longo de um “dia de Brahma”; é a série de modificações do Yi King, incluindo a modificação final, a Transformação, que termina e coroa a criação. Não existe nada aí de especificamente humano, no sentido de que não existe nada que se aplique exclusivamente ao homem. É a Via, com seu movimento imutável e eterno, ao longo do qual, com um movimento relativo próprio, enrola-se as contingências (matéria, vida, pensamento, força, e, entre outras coisas, humanidades), e na qual, desde que entram, são estas contingências destruídas (enquanto formais), para se tornarem não mais do que parcelas participantes do Absoluto.
O Te de Lao Tsé é o livro da razão, segundo a qual o humano, conformado tal como o conhecemos hoje, pode compor suas idéias, seus meios, e mesmo sua conduta, a partir do momento em que conheceu o Tao e sabe para onde se dirige a vontade do Céu, e como ele pode, temporária e merecidamente, conformar-se a esta vontade, e a se preparar relativamente para receber seus efeitos.
Assim, se eu posso utilizar uma expressão algo tosca, mas decisiva, o Te é a aplicação do Tao ao composto humano sobre a Terra. O Te não possui assim nenhuma das características metafísicas do Tao; ele possui todas as características racionais de um princípio eterno e intangível, que, para os seres parciais, reduz-se às contingências, e se encerra em limites formais.
Vemos como o Te é distinto do Tao, e como não se pode chegar ao Te senão passando pelo Tao. Aqueles que, sem conhecerem o Tao, tentaram conformar-se ao Te, não produziram senão uma obra perecível e consumiram-se em vão; eles não atingiram mais do que uma aparência vazia de seu ideal. Assim, não é de estranhar que, mesmo sendo um livro de prática racional, o Te se ressinta de sua origem celeste, e esteja constantemente envolto numa atmosfera metafísica. É nisto que a razão de Lao Tsé difere da moral de Confúcio. Estes dois homens, dos quais o segundo não foi mais do que um sábio, traçaram regras de felicidade que a Humandiade posia seguir; Confúcio, a partir da observação dos homens, da psicologia analítica dos indivíduos, sobe até a felicidade. Lao Tsé, a partir das leis ininfringíveis da metafísica, desce até ela. Assim, estes dois espíritos, masmo quando se falaram, jamais se encontraram. Eles pareceriam ocupar o mesmo ponto no espaço, em relação a um plano horizontal; mas no plano vertical (esta comparação, emprestada à Geometria Descritiva, é tão justa quanto pode ser uma comparação), Confúcio estava ao pé da montanha cujo cume inacessível ele contemplava, e para o qual ele dirigia seu desejo; Lao Tsé estava sobre o cume, de onde ele baixava o olhar para a terra, para onde ele desdenhava descer, mas que ele instruía com seus conselhos divinos.
E é no próprio título do segundo livro, e em seu significado concreto, que podemos perceber sua diferença em relação ao Tao; pois Lao Tsé não era menos sutil do que profundo, sob sua aparência singela; e aqui temos uma das provas mais singulares desta sutileza. O caracter Te significa a Virtude, ou a Retidão, ou  seja a Virtude pela Lógica e pela Razão. Mas, no sentido concreto do termo, a retidão é a “linha reta”; é isto aliás que permitiu a Alexandre Ular, que não busca o sentido profundo dos caracteres, e que frequentemente mantém-se na casca do fruto oculto e desconhecido, intitular sua tradução: O Livro da Via e da Linha Reta. Compreendamos como o sentido concreto do caracter Te é o símbolo preciso do Tao “terrestrizado”.
Pedimos aos leitores que se reportem ao esquema metafísico no qual descrevemos em poucas linhas o Ciclo taoísta, e ao raciocício pelo qual nós estabelecemos: 1) que o ciclo universal era uma hélice formada por elementos definíveis, salvo um só; e 2) que, no cilindro fictício da Vontade Celeste, o ciclo vital de uma humanidade qualquer era o círculo, tangente em um ponto qualquer da corda ascendente, e perpendicular ao passo da hélice, tomado neste ponto sobre a superfície lateral do cilindro.
Dissemos como o esquema cilíndrico tornava-se cônico no infinito, e como a ponta deste cone no infinito metafísico[27] era precisamente a Vontade Celeste, e o lugar metafísico do Nirvana. A espira evolutiva sobre o cilindro – e sobre o cone, ao infinito – representa o Tao, ou a via transformadora. Projetemos o todo sobre o círculo vital humano que traçamos no interior do cilindro fictício, nas condições descritas, e que correspondem às condições metafísicas que regem a vida humana. A Vontade Celeste é projetada no centro do círculo, a espira é projetada em um diâmetro, que é o diâmetro tirado do ponto comum à hélice e à circunferência. Este diâmetro, que é a imagem da espira ascencional durante a vida, possui dois pontos sobre-humanos, o ponto que pertence à hélice do Tao, e o ponto que é a projeção da Vontade do Céu. E este diâmetro é uma linha reta. Portanto – e o símbolo gráfico afirma-o necessariamente – o homem que quer seguir os ensinamentos do Tao, deve, durante sua vida, seguir uma linha reta, ou seja, obedecer à Retidão, praticar a Virtude. Pois, conforme os ideogramas, a linha reta, a Retidão e a Virtude são traduzidas pelo mesmo caracter, que é o Te.
Se refletirmos profundamente sobre este símbolo, tão simples, tão claro, que no entanto contém o mais completo dos arcanos racionais, e se tivermos constantemente no espírito o resultado dessas reflexões, o texto do Te de Lao Tsé se esclarecerá com uma viva luz, e bastará, para compreendê-lo, e mesmo para praticá-lo (na medida em que o permitam as trepidantes contingências da raça branca), alguns comentários resumidos, que acompanharão o texto de cada página do Mestre.

I.                    Uma grande virtude não é a virtude; mas ser assim faz vir a virtude. Uma virtude medíocre não é a ausência de virtude; mas ser assim faz a virtude ir-se. Uma grande virtude não se manifesta, porque ela não quer se manifestar; uma virtude medíocre manifesta-se porque ela quer manifestar-se. Depois o homem manifesta uma grande piedade (humanidade), sem dar-se conta; depois ele manifesta uma grande equidade, e se dá conta; depois ele manifesta uma grande generosidade (solidariedade e convenções), mas ela não lhe serve mais, e alivia os outros. Perdida a Via, ele guarda a virtude; perdida a virtude, ele guarda a piedade; perdida a piedade, ele guarda a equidade; perdida a equidade, ele guarda os ritos (generosidade, solidariedade, convenções). Este, mesmo pequeno, é o começo do mal. Eis o que sabem desde muito tempo ps homens que conhecem a Via; eles souberam disto em primeiro lugar. Da mesma forma o Sábio atém-se ao Absoluto, nunca ao contingente; ele permanece no princípio, e afasta-se do efeito. Ele negligencia esta coisa e conserva aquela.
A Virtude, que é a Retidão, não é em si do domínio do homem; ele se aproxima dela indefinidamente sem atingí-la, enquanto for homem: este é seu melhor destino. Mas, se ele possui toda a Retidão que um homem é capaz de possuir, ele participa dos mesmos méritos que aqueles que, não sendo mais homens, podem e possuem a totalidade da Retidão. Ademais, esta aquisição e esta possessão são os presságios indubitáveis da conquista da Retidão, nos planos ou ciclos de revolução que a comportam essencialmente.
Da mesma forma, e inversamente (pois o que está em cima é como o que está em baixo, mas em sentido contrário), aquele que se contenta com uma retidão medíocre e não faz esforço para aumentá-la, não deixa de ter retidão; mas ele não possui o mérito de nenhuma retidão, e desce para a ausência de retidão. Aquele que não avança recua.
A Característica da Retidão é de não se manifestar e de não querer se manifestar. A simples vontade de mostrar ou de repartir sua retidão faz perder a Retidão. Ela não aparece aos olhos dos homens senão por qualidades negativas, e pela exclusão de todos os atos que não comportam retidão. É assim que a doutrina do não-agir consciente e voluntário aplica-se à conduta dos indivíduos. Como consequência imediata, a Retidão que se manifesta conscientemente, por uma série de atos refletidos, é a retidão medíocre, ou seja o começo da ausência de toda e qualquer retidão.
Fora da Retidão, o homem sábio manifesta, devido à sua sabedoria, a piedade, que é a bondade, a caridade, o altruísmo desinteressado; e ele o manifesta inconscientemente, como uma emanação mecânica e necessária de sua virtude antecedente.
Fora deste altruísmo, ele manifesta uma grande justiça; mas ele não pode ater-se a ela a menos que se dê conta daquilo que faz, pois a justiça é uma noção reflexa e comparativa; então, aqui ele quer a sua manifestação. Fora da justiça, ele manifesta a generosidade ou solidariedade; e aqui está o começo do mal, pois a manifestação é proposital, e atrai toda uma série de manifestações.
Assim, podemos classificar os diferentes estados de espírito do Sábio nesta gradação descendente: a Retidão que não se manifesta, nem quer se manifestar; a Humanidade, que se manifesta, mesmo que não a queiramos manifestar; a Justiça, que se manifesta porque queremos que se manifeste; a Solidariedade, que se manifesta, que queremos que se manifeste, e que exige, por definição, que outros a manifestem reciprocamente entre si. É por isso que, embora louvável, a Solidariedade, que é o começo das ações humanas recíprocas, é o começo do mal.
Também, para permanecer na Via – que, sobre a Terra, é a Retidão – o Sábio atém-se apenas ao princípio das ações, e desliga-se de todas as ções, e não considera senão a causa, recusando-se a considerar o efeito.

II.                 Quem guarda a retidão ganha a unidade ou perfeição. O céu, por perfeição, possui a pureza. A terra, por perfeição, possui a paz. A alma, por perfeição, posui o conhecimento sobrenatural. O vazio, por perfeição, possui a plenitud. Os dez mil seres, por perfeição, têm o nascimento (a vida). Os reis, por perfeição, têm os homens retos. Ora, tudo isto é precisamente a unidade. Se o céu não estivesse em pureza, ele temeria sua ruína. Se a terra não estivesse em paz, ela temeria seu desmoronamento. Se a alma não estivesse em conhecimento sobrenatural, ela temeria sua desaparição. Se o vazio naõ estivesse em plenitude, ele temeria sua negação. Se os dez mil seres não estivessem em vida, eles temeriam seu fim. Se os reis e os grandes não fossem retos, eles temeriam sua deposição. É por isso que os grandes vêem a prata (o que é falso) como o remédio do mal. Os príncipes têm os pequenos como ajudantes, e assim os reis agem sem hipocrisia. Certamente, é a prata que cria os ladrões: não é verdade? Aquilo que é justo não é o Justo. Quem não quer que a felicidade, igual aos diamantes, lhe caia do céu como pedras?
A Retidão dá a perfeição, que é a unidade; e é asssim que a Via racional é o meio da Via metafísica, e que a Via humana conforma-se à Via geral. Pois a Unidade, como vimos, é o começo e o fim da Via.
Mas qual é esta Retidão, que é o signo da Via racional? Esta retidão consiste precisamente em que cada coisa possui, essencial e totalmente, a qualidade que lhe convém, e preenche assim a finalidade colocada diante de si. É assim que a Retidão é obtida pelo céu quando ele possui a pureza, para a qual ele é feito; pela terra, quando ela tem a paz, em estabilidade moral e material; pela alma, quando ela possui o conhecimento sobrenatural; pelos seres, quando eles tem a vida. E assim sucessivamente: tudo isto é a unidade.
Ora, se essas qualidades da unidade (que são aspectos da Unidade em relação a todas as coisas) não preenchesse essas coisas, elas seriam destruídas devido à sua não-concordância com a Via, por sua inutilidade geral. Assim, e para falarmos metafisicamente, os seres objetivos não possuem existência senão para manifestar neles os atributos do subjetivo. Vale dizer que o Céu não foi feito senão para fazer entender a pureza; a terra, para permitir compreender a estabilidade; os seres, para fazer entender a Vida, etc., que são aspectos da Unidade. Todas estas qualidades são deuma necessidade essencial, como a própria Unidade; mas as coisas concretas em que elas se manifestam não passam de uma necessidade relativa.
Esta proposição, que é quase um axioma metafísico, ganha uma acuidade singular quando a aplicamos sobre o plano político, como sublinhou o Mestre e seus discípulos.
Os soberanos, de fato, são feitos para tornar o estado social, senão harmônico, ao menos suportável; mas, aplicando a eles o impecável raciocínio metafísico, vemos que os governantes não são necessários, senão na medida em que existam seres para se organizar em sociedade. O estado social suscita os soberanos; mas, desde o começo, parece que os reis sãofeitos para as nações, e não as nações para os reis. Uma raça permanece uma entidade de fato: o soberano desta raça é uma engrenagem organizadora e moderadora, que não tem uma necessidade essencial, mas uma necessidade secundária e temporária como sua própria obra. Cumprida a obra, o órgão se torna inútil e deve ser suprimido. Pois, mesmo se o soberano cumpre bem seu ofício, ele não deve ser conservado quando não serve para mais nada. É por isso que o Mestre diz que o que é justo não é o Justo. O Justo não é um ato para organizar e controlar a justiça; o Justo é um estado demasiado perfeito para, ao contrário, não exigir nenhuma to de justiça, assim como a existência de nenhum justiceiro.
É seguindo estes preceitos que a felicidade, que hoje é rara como um diamante, se tornará frequente como as pedras do caminho.

III.               O círculo, este é o movimento da Via; que os fracos o utilizem. Os homens e as coisas nascem. Nascendo, eles desaparecem.
No que concerne à Humanidade, a Via torna-se Retidão, e a superfície reversa evolutiva torna-se um plano: é por isso que o movimento aparente da Via, sobre a terra, é um círculo. É sobre este círculo e no seu interior que deve mover-se a fraqueza humana. Dizemos que ela é fraca, porque o movimento permanece plano, e não tem força ascensional. Deste movimento sobre um plano horizontal, a ação da Retidão cria uma linha reta.
Esta linha reta tem seu começo no nascimento e seu fim na desaparição dos seres vivos. Estes, de resto, não morrem, mas desaparecem em relação ao plano da Retidão humana.

IV.               Os verdadeiros sábios escutam a Via; a seguir, fazem o que lhes concerne. Os sábios medianos escutam a Via; eles pensam nela respeitosamente. Os últimos sábios escutam a Via; eles pensam nela amigavelmente. Mas eles não pensam o suficiente, e falam dela frequentemente para segui-la. Quem conhece a Via é semelhante a um perfume. Quem sobe pela Via o faz tão comodamente como quem desce. Quem falta à Via parece-se com um nada. A grande virtude é como um abismo. A grande pureza é como a ordem. A virtude perfeita é como se não tivesse fim. A virtude forte é como o aumento indefinido. O Sábio, simples e reto, é forte como as multidões. É um grande quadrado sem ângulos. Uma grande raiz sem fim. Uma grande imagem sem sombra. A Via brilha só por seu nome: aquele que caminha pela Via caminha para a plenipotência.
Os sábios que foram tocados e estão plenos de Retidão, ou seja que tendem com todos os seus pensamentos humanos para a Via não-humana, são de três categorias, que correspondem aos três planos do oculto. Os Iniciados assimilam-se à Via e ao seu movimento: eles são perfeitos. Os Sábios pensam contínua e respeitosamente na Via, como no Ancestral morto (e por conseguinte eternamente vivo); falta à sua perfeição acreditar em seu movimento próprio não coordenado ao da Via. Os sábios pensam com simpatia na Via, como em um amigo qualquer vivo, ou seja eles lhe dedicam a mesma afeição que a uma contingência; e eles não têm nada da perfeição, porque ignoram a natureza essencial da Via, e falam demais para que pensem o bastante, pois o silêncio é a única eloquência digna da Via e dos adeptos da Via. Quem conhece a Via é semelhante a um perfume, ou seja ao que há no mundo de mais real e menos material, pois todos sentem o perfume, mas ninguém o vê nem o toca. Quem sobre pela Via, com as qualidades do Sábio que foi comparado ao perfume, age como se descesse, pois sua não-vontade de ação o mantém imóvel entre a subida ativa e a descida ativa, e ele possui todas as facilidades que tem aquele que obedece conscientemente à natureza essencial do Céu. Quem falta à Via é parecido com um nada, pois, fora da Via, nada tem razão de ser, e a contingência que não se reporta ao movimento da Via é como um eeito sem causa. A grande virtude é como um abismo, ou seja, é insondável, mesmo para o homem que a possui. A perfeição é como se fosse sem termo, ou seja, ela é infinita; a virtude forte – a virtude humana – é como um aumento indefinido, ou seja ela aperfeiçoa-se todo dia crescentemente, mas jamais será a perfeição infinita, porque sempre se pode acrescentar-lhe algo mais.
Enfim, vemos que o Sábio, cujo valor representa o valor das multidões, perde pouco a pouco suas particularizações, quer guardando sua forma, quer perdendo as determinações da sua forma, quer recue seus limites até o infinito, como faria um quadrado sem ângulos, uma raiz sem fim, uma voz sem som, uma imagem sem sombra. Ora, aquele que recua seus limites tende a perder sua forma, portanto a confundir-se com a Via, da qual ele adquire, com sua desindividualização, a plenipotência impessoal.

V.                  A Via produz o Um. Um produz o Dois. Dois produz o Três. Três produziu os dez mil seres. Todos os seres têm o princípio Am envolvendo o princípio Duong. Na verdade, o espírito que conjuga estes dois princípios obtém o equilíbrio. Os homens que ignoram isto são isolados e sem raízes. O rei Cong experimentou isto. Os homens, diz-se, que se apropriam de alguma coisa tem ao menos uma vantagem: talvez eles conservem aquilo de que se apropriaram. O vulgar age assim. Mas nós dizemos: os violentos não tem como ganhar uma Morte Feliz. Que os pais ensinem isto aos seus filhos.
Esta página é a lei da “Criação”, ou seja a lei das modificações dos seres que fluem, por Vontade do Céu, na corrente das formas. Remetemos o leitor ao texto de A Via Metafísica, para os detalhes. Mas o sublime resumo desta página tem de especial ressaltar o princípio ternário, que, em todas as tradições da Humanidade, preside às manifestações criadoras. É preciso assim trazê-lo à luz como o melhor documento para determinar a síntese universal no que concerne à verdade cosmogônica.
Mas nós insistimos também sobre a clareza com que o princípio ternário é mantido pelo Mestre no domínio da manifestação, e não afeta o domínio puramente abstrato. As tradições e revelações ocidentais aplicam este princípio ternário à própria Essência divina e, obtendo assim um resultado ininteligivel, concluem necessariamente por aquilo a que chamam “Mistério da Trindade”, do qual não se vê a solução em parte alguma. A Tradição extremo-oriental, ao contrário, se nos apresentar um mistério, será o mistério da Unidade, prevenindo-nos de que este axioma só parece misterioso porque nosso estado humano fragmentário recusa a compreensão da única Unidade existente; e é assim que o Ser-Não-Ser, idêntico a si mesmo, nos parece nebuloso, embora o sintamos profunda e necessariamente Único. Para esclarecer esta obscuridade, que nos é pessoal, a Tradição primordial emitiu o princípio ternário, separando-o entretanto da Essência Una e Total, e nos deu este princípio ternário como um esclarecimento. Assim, e mais justamente, a Trindade não é mais um mistério, mas uma explicação. E, a partir do momento em que ela não mais nos constrange, por qualquer artifício, a aplicar esta tripartição à Unidade indivisível, ela se torna uma luz verdadeira. Vamos considerá-la como tal.
A Via, que é o mecanismo modificador e transformador, expressão da vontade do Céu (Ser-Não-Ser) produziuo Um. Um, ou a primeira manifestação, é o princípio ativo da vontade celeste, que, por abreviação, chamamos às vezes de Céu (Tien).
O Um produziu o Dois, que é o princípio passivo, mãe de todas as coisas, como diz a primeira página do Tao. Já explicamos como a simples afirmação do princípio ativo determina o princípio passivo.
O Dois produziu o Três. A união de Um e Dois consiste precisamente no Três, que é a manifestação da Vontade do Céu na série de modificações.
O Três produziu os dez mil seres; quer dizer que o fluxo dos seres na corrente das formas (ou, em linguagem ocidental, a criação) é o resultado tangível imediato do ato conceitual da união do Um com o Dois, ato que constitui o Três.
A condição das modificações é a evolução, ou seja o movimento; mas a condição de cada modificação é de ser conforme à Via, vale dizer vantajosa e racional; é por isso que o espírito, que reune racionalmente a ação dos dois princípios, chega ao equilíbrio, que é a Retidão inicial, e não refletida por uma ação.
Este é o mecanismo da criação saída da Unidade, por meio do ternário.
No que concerne à Retidão e à vida humana, convém que as vantagens conferidas ao estado humano pelo benefício da evolução, não sejam adquiridas senão graças à marcha natural das coisas, e não pelo esforço violento dos indivíduos. E o que é adquirido fora da normalidade, ou seja da aquiescência voluntária ao movimento da Via e à Retidão, não serve para nada, malgrado as aparências, ou seja que aquilo que parece vantajoso ao homem durante a sua vida, a partir de tal aquisição, perde toda a sua qualidade na passagem ao plano superior e a partir da desaparição do plano humano. É por isso que o Mestre diz: “os violentos não preparam para si uma Morte Feliz”. Este arcano da Morte Feliz será discutido mais adiante[28].
VI.               Os homens, precisamente muito doces, comandam e se tornam muito fortes. Quem comanda penetra no intercolúnio, aonde nada lhe pertence. Compreendemos assim que comandar é uma vantagem grave. Nós ensinamos sem falar, chegamos sem comandar, esta é uma grande vantagem: poucos homens são capazes disto.
É pela doçura – ou seja pelo silêncio e a não-ação, pela concentração de energia – que o homem chega a comandar a natureza e os outros homens. Assim, ele domina sem ter nenhuma das características e sem fazer nenhum dos gestos do dominador. Ora, aquele que, sem violência, chega a tal resultado, está consigo aonde quer que esteja, em sua casa ou na casa dos outros (aonde nada lhe pertence), e mesmo aonde não há casa (no intercolúnio). No plano metafísico, isto quer dizer que a vontade imaterial penetra a ação e a força materiais. Isto é, de fato, uma grande vantagem. Conforme a este princípio, o Sábio deve saber ensinar sem falar e governar sem comandar: esta é a influência do exemplo daquele que se conforma à Via silenciosa e toda-poderosa.

VII.             O renome da ciência permite aproximar-se do bem; o conhecimento da ciência permite aumentar o bem. Ganhar e perder admitem igualmente a infelicidade. É preciso, certamente, abandonar aquilo que já não se ama. Quem possui muito perderá muito. E no entanto diz-se que nunca se tem o bastante. Trabalhou-se muito, mas diz-se não haver trabalhado o bastante. Assim se vai longe e duradouramente.
VIII.          À grande cidadela humana falta uma parte da muralha; e não podemos fechar a brecha. O Sábio tem uma grande vantagem: ele não precisa implorar. Reto, há um meio de cumprir; oblíquo, é melhor se abster. A agitação triunfa sobre o frio; a imobiliadde triunfa sobre o calor. A pureza e a paz faz os homens direitos.
O texto destes dois capítulos não se manteve intacto; ele diz respeito à renúncia das qualidades da espécie qualidades que, de resto, são insuficientes e sempre apresentam  uma brecha. Mas é melhor que nos abstenhamos de comentar estas páginas, que sabemos não serem exatas, e que alguns filósofos chineses consideram inteiraamente remanejadas, contendo termos que são intraduzíveis no espírito taoísta, e que deram lugar a múltiplas interpretações e a controvérsias sem fim.

IX.               Quando os homens possuem a Via, as pegadas dos homens violentos são pouco numerosas[29]. Quando os homens não possuem a Via, retê-los provoca sua ira. Ter aspirações não é grande crime; o desvio não é grande por não se saber o bastante; o estranhamento não é grande pelo desejo de adquirir. Quem sabe ter o bastante tem o bastante.
Esta é a consequência política da Retidão: quando os homens se conformam a ela, o império conhece a paz (pois os homens violentos dedicam-se também às armas e às coisas militares); quando os homens não se conformam a ela, a doçura não tem mais lugar; a violência é exercida pelos violentos, inclusive entre eles.
O preceito que segue é muito sutil: a aspiração a sentir, a conhecer, a possuir, não é uma grande falta, ou melhor, uma grande mediocridade, pois está claro que estas aspirações são naturais aos homens que somos. Mas o que seria um demérito, seria ceder a estas aspirações por objetivos medíocres, e de nos conduzirmos como se tivéssemos cedido. É por isso que o Mestre diz que, malgrado estes desejos inatos, devemos nos declarar satisfeitos, pois, a força de nos vermos como satisfeitos, tornar-nos-emos satisfeitos realmente.

X.                  Sem sair de sua casa, o Sábio conhece todos os homens; ele sabe que eles não são felizes. Ele conhece a Via do Céu; embora distante, ele conhece as menores coisas. Assim, o Sábio não caminha, mas chega; não vê as coisas, mas sabe seus nomes; não trabalha, mas produz.
O Sábio não sai de sua casa, ou seja ele não se distrai de suas idéias, e não se derrama em sentimentos fora de seu coração. Mas ele conhece todos os homens, e, sabendo que eles agem diferentemente, sabe que eles são infelizes. Como ele conhece a Via, ele prefere estar afastado das preocupações comuns da Humanidade, e conhece até as menores dentre elas, sem no entanto participar delas. Ele pode assim aproveitar-se de sua ciência das coisas, sem ter que sofrer a influência que estas coisas teriam sobre ele, se se ocupasse delas diretamente, e fora de sua causa. Assim então ele atinge o objetivo, porque conhece as causas, sem ter de se servir dos meios mediatos usuais. Sua razão alcança a luz, sem que seu coração precise bater, e por não ter batido. Seu espírito atinge o conhecimento abstrato, sem que tenha visto o  concreto, e por não tê-lo visto. Sua inteligência produz is resultados da causa primeira, sem que ele tenha perscrutado as causas segundas, e porque ele não as prescrutou.

XI.               Quem estuda um dia cresce; quem segue a Via um dia progride. Ele progride e progride, e assim até que não aja mais. Mas, mesmo quando ele não age mais, ele não deixa de agir. Então ele protege os homens e preserva-os das calamidades; pois às vezes as calamidades estão próximas, e os homens quase não são capazes de se proteger.
Esta página, com este ar ingênuo, esconde a promessa da personalidade imortal, baseada na verdade metafísica da Via universal e da vontade do Céu. Estudar leva à Via; segguir a Via leva ao progresso, pois a Via é uma hélice ascendente; e este progreso é definido e dura indefinidamente, como a própria progressão da hélice.
Do ponto de vista geral, esta verdade se diz assim: o Sábio que segue a Via chega à não-ação; mas não agir não é ficar sem ação; pois a não-ação voluntária é uma ação; mas é uma ação concentrada, reabsorvida, e que tem o poder de todas as forças que ela não projetou fora da personalidade para serem gastas na manifestação.
Do ponto de vista da personalidade, tanto sobre-humana quanto humana, esta verdade se diz assim: o Sábio que segue a Via e que é animado por ela progride até sua morte; mas, para ele, a morte não é uma cessação do agir; após a morte a personalidade continua a agir segundo a Via, acima e paralelamente ao plano humano. E mesmo os atos desta personalidade sobre-humana não são indiferentes ou inúteis à Humanidade, que esta personalidade acabou de atravessar; as vontades de agir e de não-agir que animam a personalidade sobre-humana têm um efeito reflexo sobre os homens, a quem elas preservam beneficamente das angústias e dos desvios, dos quais somente a virtude da personalidade pode preservá-los. Assim, todos os esforços são bons para todos; e nós encntramos aqui a doutrina alexandrina e gnóstica da ascese dos submúltiplos pelas vontades, trabalhos e mesmo sofrimentos dos seres que lhes são superiores. Podemos aplicar este texto ao estado humano, no qual nossas vontades e nossos atos podem ser benéficos para os seres que são submúltiplos pessoais. Esta é a ligação entre a vida e a morte, e acima da vida e da morte, tão bem assinalada pelas doutrinas teosóficas.

XII.             Se o Sábio não tem afeições particulares, as cem famílias são suas afeições. A quem é bom, diz ele, serei bom com ele; a quem não é bom, serei bom do mesmo jeito. Esta é a verdadeira bondade. Sou sincero com quem não é sincero; e sou sincero do mesmo modo com quem não é sincero. Esta é a verdadeira sinceridade. O Sábio vive em meio aos homens e pesa as gerações na balança de seu coração. As cem famílias o guardam em seus olhos e ouvidos; ele é o pai e modelo universais.
Esta é a regra do altruísmo geral: o Sábio não conhece nem o amor nem o ódio, que são sentimentos particulares voltados para este ou aquele indivíduo; mas ele conhece o afeto desinteressado e geral por toda a espécie humana. Este afeto é uma vontade racional, não um sentimento passional. Assim também o Sábio comporta-se do mesmo modo com todos os homens, sejam quem forem; ele é bom e honesto para com todos os homens, mesmo com os maus e desonestos; ele é assim porque a Via oprdena que seja assim, para si mesmo e independentemente de outros homens; ele deve então amar, socorrer e edificar os demais, independentemente de suas virtudes ou vícios: é nisto que o altruísmo do Sábio distingue-se da caridade do ignorante, ou da mutualidade do egoísta. Assim, todos os homens se voltam para ele, olham-no e escutam-no como se ele fosse seu pai.

XIII.          Para cada criança que nasce, morrem oito. Prognosticamos dez nascimentos, não chegam a três; os homens fazem nascer as crianças; ao menor contato, elas morrem. Assim, nascem dez, restam três. Porque este mal? Porque hoje em dia os homens querem possuir demasiado, e viver, e produzir. Quem escuta assiduamente a Via pode criar e viver; marchando sobre o caminho, ele não precisa desviar-se do tigre. Quem vai para a guerra sem defesas suficientes, num piscar de olhos não sabe aonde esconder-se, morre e não pode ser salvo. Contra o Sábio, o tigre não pode usar suas garras, nem o soldado pode quebrar a ponta de sua espada. Porque? Seguindo a Via, o Sábio que está sobre a terra não pode morrer.
Bem entendido, não se trata aqui da vida e da morte humanas, materiais e animais; trata-se do homem que segue a Via e que vive utilmente, e do homem que não segue a vida e que não tem mais movimentos do que um cadáver, ou cujos movimentos são inúteis – vale dizer, não trazem para ele, por ausência de retidão, as vantagens da estase humana. Para fazer sentir quão poucos interessam-se pelo objetivo final, o Mestre diz que, de dez que estão prestes a viver, apenas três vivem com e pela Via.
Porque? Porque, ao receber a vida para seguir a Via, eles se enganaram; esqueceram-se do objetivo pelo qual eles receberam a vida, prendendo-se à vida apenas, com as vantagens (posse, produção, movimento) relativas inerentes a este dom da vida. Ora, eles perdem estas vantagens ao mesmo tempo em que perdem a vida, e vivem sem benefício. Assim eles chegam ao momento da passagem para uma outra modificação, à morte, sem estar suficientemente armados para enfrentá-la; els a temem, tentam fugir dela, não a vencem e sofrem-na sem proveito. O Sábio, ao contrário, que não se prende à vida, porque não está ligado senão nas vantagens que estão acima da vida, não teme a morte (aqui entram as comparações com as unhas do tigre e a espada do soldado). A morte não pode nada contra ele, pois ele continua a viver realmente, após a morte humana, com os objetos de seus desejos. É por isso que o Sábiomodifica-se, mas não pode morrer.
Veremos, no final do tratado, um capítulo consagrado ao povo, onde se diz, ao contrário, que devemos fazê-lo amar a vida; este é um meio de direção do povo nas mãos dos Sábios que, por seu desligamento da vida, estão acima dela.

XIV.           Aqui a Via produz; a Virtude une; os seres se formam; eles se tornam modos.Também assim, os dez mil seres veneram a Via e respeitam a Virtude, pois a Via é venerável e a Virtude é respeitável. Ninguém as fez: elas existem por si mesmas. A Via produz, une, acrescenta, concede, forma, normaliza, nutre e protege. Ela produz os seres e nãose apropria deles; ela age e não se interessa; ela é grande e não ganha nada de novo. Esta é sua profunda Retidão.
Esta é a grande fórmula do Taoísmo. Ela é a explicação direta do tetragrama de Wen Wang: uyan, heng, li, tsheng, que comentamos em A Via Metafísica, e que é a chave que abre todo o Yi King. Mais uma vez podemos ver como o Taoísmo é extraído diretamente da Tradição primordial, puro e sem misturas nem adições. A Via produz: é o princípio da atividade; é o Não-Ser querendo Ser; é o Um, a determinação positiva do Zero. A virtude une: é o princípio da passividade, perfeição igual e de determinação contrária à perfeição ativa; é o Ser fazendo-se criador; é o Dois, ação feminina da Unidade. Os seres se formam: é a origem da corrente das formas; é o criador fazendo agir sua primeira vontade; é o Três, a união do Um com o Dois. Eles se tornam modos: é o Ser tornando-se os seres na corrente das formas, nela recebendo limites; é a primeira manifestação da vontade criadora; é o Quatro, produto da união representada pelo Três.
Ora, o Um, que é oprincípio ativo masculino, saiu da Via. O  Dois, que é o princípio pasivo feminino, saiu da Retidão; o Três e o Quatro representam a união e os resultados humanos da união da Via com a Retidão sobre o plano humano. É o homem, saído da união do Céu e da Terra, proclama o Yi King e, com ele, por sua denominação, ainda hoje, a mais antiga e poderosa das sociedades secretas do universo. É preciso, sem pensar poder escrever tudo o que pode ser dito a respeito, meditar profundamente na Grande Fórmula. Ela esclarece todo o Taoísmo metafísico e toda a filosofia extremo-oriental, em todas as eras.
Podemos salientar a diferença que se deve ter nos sentimentos pela Via e pela Virtude: uma veneramos, por ser divina; a outra, respeitamos, por ser a aplicação – e como que a tradução – humana da primeira. Somente estas duas coisas nasceram por si mesmas, e não de uma união; mas, como tudo saiu da Via, tudo deve reportar-se à Via. Assim, Via produz (o princípio), une (a Retidão), acrescenta (a origem), concede (a corrente das formas), forma (os dez mil seres), normaliza (as modificações), nutre e protege (as passagens transformadoras).
A Via produz, mas, fora desta produção, os seres são independentes. A Via age, mas, fora deste ato, os ativos são responsáveis. A Via é grande, mas, fora desta grandeza, os homens são livres. E é assim que se manifesta a própria virtude da Via. Pois, a partir do momento em que ela se aplica ao homem, também a Via possui a sua Retidão, e, em virtude da sua perfeição original, conforma-se a ela.

XV.             O princípio inicial dos homens, eis o modelo de todos os homens. Quem conhece o princípio quer também conhecer as consequências: quem conhece as crianças respeita a mãe. Assim, as gerações não cessam. Fechar a porta, é tornar-se estável até a morte; abrir à assiduidade, igualar-se às circunstâncias, é não precisar de ajuda para a morte. Quem compreende o mais sutil é claro. Quem observa a bondade é mais forte. Quem aspira à brilhante Via volta-se para a sua claridade. Jamais deixar esta claridade, é a busca contínua da Via.
O princípio inicial é a Via; mas o princípio inicial humano é a Retidão; este é o modelo ao qual todos os homens devem se conformar. Aquele que conhece este princípio deseja conhecer as suas consequências; e ele prende-se a que elas sejam convenientes e meritórias, ou seja normais; aquele que conhece estas consequências respeita o princípio que as engendrou (aqui, as crianças são as consequências, e a mãe, o princípio). Esta é a condição da imortalidade para os homens.
Para um homem em particular, fechar sua porta significa prolongar sua vida, e abri-la, ao contrário, é lançar a si mesmo para a morte: é um símbolo pelo qual deve-se entender que a vontade da não-ação (e o isolamento dentre as multidões) é a condição da imortalidade; enquanto que a dispersão entre os sentimentos das massas, simbolizado pela porta aberta, disipa as forças da vida e conduz à morte inútil. Ora, aquele que vive desconhecido e refletidamente, atrás de sua porta fechada, conhece o que há de mais sutil, e assim sua conduta é clara e simples; ele observa a bondade, e no entanto é o mais forte dos homens. Ele deve isto à Via, para a qual ele se volta sem cessar; ele reveste-se do brilho da Via, e, jamais tirando os olhos desta claridade, ele a segue e a busca constantemente, e comunga um dia com sua qualidade universal.

XVI.           Instruir um homem para que siga a Via, é seguir a Via, e a Via o quer como a um filho; o povo o venera e o escuta. Mas pretender adquirir sem trabalho, deixar a terra inculta e o corpo apaixonado, ignorar os sinais, buscar vantagens contínuas, beber, comer, cantar, desejar o aumento dos seus bens, ser mau e roubar, isto não é a Via.
Seguir a Via é considerar a corrente das formas na estase humana. O composto que forma a Humanidade está submetido à Via como todos os outros que vieram antes e que virão depois. Assim a vontade do Céu fica satisfeita, primeiro, porque a forma humana manifesta-se na corrente a partir da Via, e depois, se os seres limitados por esta forma obedecem à Retidão, que é sua Via temporária no interior desta forma, e no momento da corrente em que eles se movem.
O Mestre não diz aqui o que é esta Retidão; mas ele indica claramente o que é contrário a esta Retidão, para que encontremos aqui tanto a doutrina metafísica do não-agir quanto a doutrina social do não-reger.

XVII.        Quem sabe agir fortemente não tem necessidade de ajuda; quem sabe conservar não pode perder; seus filhos e os filhos de sua raça não acabarão nunca. A virtude de quem dirige bem seu espírito é a retidão; a virtude de quem dirige bem sua família é a abundância; de quem dirige bem sua cidade, é a duração; de quem dirige bem sua província, é o brilho; de quem dirige bem os homens, a virtude é universal. Assim, considerando a mim mesmo, eu conheço o outro; considerando minha família, eu conheço as famílias; considerando minha cidade, eu conheço as cidades; considerando minha província, eu conheço as províncias; considerando os homens de minha raça, eu conheço todos os homens. Como? Pela experiência própria.
Esta página é a primeira que dá abertamente conselhos sociais, sob uma forma abstrata e filosófica; encontraremos várias delas esparsas ao longo do tratado, e redigidas com menos reserva. Pois Lao Tsé jamais foi um mestre tímido, e vai sempre até o fim de seus pensamentos.
Aqui, ele afirma que a observância contínua da Retidão traz a imortalidade. Mas esta retidão humana não possui um aspecto único, como a Via celeste: conforme a quem se aplique, e segundo suas funções e seu estatuto social, ela muda de qualidade, embora permanecendo como Retidão, ou seja a via particular que cada ser humano deve seguir. É assim que a retidão individual é e traz a doutrina; a retidão familiar é e traz a prosperidade; a retidão da comunidade é e traz a estabilidade; a retidão da raça é e traz o esplendor; e a retidão social é e traz a unidade harmoniosa e universal. Qual é o método desta generalização? É o de concluir, a partir do particular, não do geral, a todos os particulares, e de um coletivo, a todos os outros coletivos. Este método, que tem para si a experiência, não é verdadeiro a menos que os indivíduos e as coletividades possuam caminhos paralelos e motivações análogas, ou seja se eles se conformam cada qual à Retidão que lhe é própria.

XVIII.      Quando se conserva a virtude como os recém-nascidos, as víboras venenosas não podem picar, os quadrúpedes ferozes atacar: não se herdam coisas ruins. Os ossos são finos, os nervos são moles, mas existe uma beleza harmoniosa. Assim se pode ser simultaneamente poderoso e bom; a inteligência é ágil; por conseguinte, se é perfeito, sem medo, e pacífico. Conhecer a paz, eis a constância; conhecer a constância, eis a claridade. Quando o espírito comanda a alma, eis a força. Mas as coisas fortes podem morrer. Assim, isto não é o Tao; hoje em dia, isto está fora do Tao.
Esta página especifica as vantagens humanas que a Retidão normal confere. Quando o Sábio possui a Retidão como um recém-nascido, vale dizer de modo simples, natural e sem esforço, ele está acima de todos os perigos e de todas as dores; vale dizer que ele pode ser atingido por eles materialmente, mas não é afetado intelectualmente. Assim, a doçura e a fraqueza fazem ossos finos e nervos moles, o que, na luta, não vale diante de um esqueleto maciço e de músculos poderosos. Mas para quem não pretende agir, a força é inútil, e, enquanto que ossos fortes e músculos grandes são pesados, aquele que não luta possui uma beleza harmoniosa.
Nesta bbeleza harmoniosa, a inteligência é ágil; mas, como ela renunciou voluntariamente aos meios físicos da luta, o Sábio é pacífico; a paz lhe dá a constância, e esta lhe traz a clareza. Assim, sempre e em toda parte seu espírito comanda sua alma, e sua lógica comanda sua sensibilidade. Assim ele se torna imortal, pois ele não está ligado a nada que seja perecível. Ao contrário, as coisas que chamamos fortes podem diminuir de força, enfraquecer, desaparecer. E aqueles que, por qualquer de seus afetos, desaparecem, não pertencem ainda à Via.

XIX.           Quem sabe não fala. Quem fala não sabe. O Sábio fecha sua boca; ele fecha seus olhos; ele se deita para pensar ativamente; ele abre seu coração; ele reune suas luzes interiores, mesmo misturando-se aos vulgares do exterior. Assim ele se torna profundo. Ele não se preocupa nem com amigos, nem com inimogos; ele desdenha tanto as vantagens como as perdas, as honras como as desgraças. Seu exemplo faz bem a todos os homens.

Esta é a lei do isolamento intelectual. O Sábio deve conter-se. O Sábio fecha sua boca, não apenas para preservar sua ciência do contato contaminante da ignorância, mas para não perder seu próprio sopro e sua força vital. O Sábio fecha os olhos, não apenas para não dispersar inconsideradamente suas luzes, mas para não perder sua força nervosa e voluntária prendendo-a aos objetos de sua visão. Ele se recolhe, não paenas para evitar as distrações das massas exteriores, mas também para não perder, em movimentos inúteis, as forças naturais que sua ciência concentrou nele. Sopro, força pessoal, forças exteriores, ele aplica tudo isto à atividade do seu pensamento. Assim, ele reune num feixo, cujo brilho se volta para dentro, todas as suas luzes interiores; assim, iluminado por dentro, obscuro por fora, ele se mistura ao vulgo exterior, e se confunde com ele sem chocar nem espantar a ninguém. Esta é a condição da sua segurança individual. Nestas condições, ele passa, sem amigos nem inimigos, igualmente distrativos, pela massa indiferente; ele não cuida de honras e glórias; ele está acima das desgraças, da obscuridade, dos enganos. Nada o emula; nada o atinge. Este é o modelo da Retidão social.

XX.             A lealdade governa o império; o artifício comanda as armas. A ausência do mal é propícia a todos os homens. Como sabemos que é assim? Por isso: os homens se defendem do mal? As cidades estão empobrecidas e tomam armas. O império está tumultuado por causa dos chefes? As pessoas se revoltam e todas as coisas definham. Um chefe inteligente reune os homens? Existem muitos ladrões. Os homens fazem leis? Existem muitos crimes. É por isso que o Sábio diz: eu não ajo, e assim as pessoas das cidades se emendam; eu procuro o repouso, e as pessoas da cidade se retificam. Eu não faço violências, e as pessoas da cidade enriquecem. Eu não tenho ambições, e as pessoas da cidade simplificam-se.
O capítulo XX do Te está para a Retidão assim como o capítulo II do Tao está para a Via. É o dogma das relatividades criando umas às outras e não tendo uma existência essencial, que Lao Tsé faz passar do plano metafísico ao plano social. Mas o que é um sistema generalizador no primeiro – pois a negação da relatividade é uma ascese evidente no mundo metafísico – tende a se tornar um sistema nihilista no segundo, aonde as relatividades parecem se revestir de uma realidade objetiva. É por isso que o Mestre envolveu seu pensamento em “trevas exteriores”, de restos fáceis de dissipar.
A lealdade (retidão, simplicidade) governa o império, ou seja, ela mantém a paz; o artifício (engano, violência) comanda as armas, ou seja, empurra para a guerra e a desordem. Este é um apoftegma do qual toda a Humanidade está convencida, embora aqueles que a dirigem nem sempre se conformem a ele em suas condutas e aspirações. Mas do que é feita a lealdade? Do que é feito o artifício? Do que é feita a simplicidade? Do que é feita a compicação? Os ensinamentos orais do Taoísmo permitem declarar que, aqui, o Mestre entende por simplicidade a lei natural, e, por complicações, as leis que não são naturais. E é com esta luz crua, sem a menor atenuação, que ele vai esclarecer as frases seguintes: muitas defesas levam a muitas misérias, ou seja, quando as proibições humanas vêm agravar as proibições naturais, não há mais prosperidade possível. Muitos chefes, levam a muitos problemas, ou seja: quando os mestres se impõem pela força e agravam com sua autoridade as prescrições da lei natural, não há mais ordem possível. Quando os homens inteligentes se reunem, existem ladrões, ou seja: quando a habilidade dos homens substitui a simplicidade da lei natural, nada mais é possível, senão o regime da enganação. Quando os homens fazem leis, surgem muitos crimes, ou seja: quando as leis convencionais criam, fora da natureza, o bem e o mal, cívico ou social, nada mais é possível, senão o crime e a transgressão perpétuos. Esta é a pura doutrina libertária, tal como a tradição gnóstica a conservou, como Rousseau a sonhou, com Proudhon a reintegrou. Ela é de uma lógica indiscutível; e, se surgiu uma oposição violenta e apaixonada contra ela no Ocidente, isto não se deve tanto aos princípios que ela professa, mas às consequências que alguns pretenderam extrair-lhe.
Esta discussão está, sem dúvida, fora e abaixo de nossas preocupações, mesmo aqui. Mas frisemos que esta exposição brilhante e definitiva é seguida pelo conselho expresso dado ao Sábio, no qual é dito qual o uso que deve ser feito desta doutrina. O Sábio não age, e asssim os homens, submetidos apenas à ação da Retidão, emendam-se. O Sábio repousa sem comandar, e asism os homens controlam a si mesmos, e retificam-se pela via natural. O Sábio não comete nenhuma violência, e assim os homens enriquecem e melhoram. O Sábio não tem ambições, e não legisla: assim os homens, livres de todos os entraves e dificuldades, simplificam-se, fazem ações raras, simples, sempre as mesmas, e em conformidade com seu interesse e sua consciência individual (pois é pelas leis convencionais e sem generalidade quie o interesse pode tornar-se ou parecer contrário à consciência da Retidão).

XXI.           Se o Sábio ensina com circunspeção, as pessoas do povo tornam-se sinceras; se o Sábio ensina com clarividência, as pessoas do povo descobrem-se. O bem subsiste; um bem, cumprido, leva a outro; a memória permanece até o fim. Quem não é direito é enganador. Os homens direitos que chegam à Via são ensinados; aqueles que sabem aproveitar são doces; aqueles que se afastam perdem-se por muito tempo. Assim, o homem perfeito pode ensinar logo, mas não ensina senão no crepúsculo; ele ensina perpetuamente, não durante um tempo determinado; ele é reto, e não pretende endireitar. Ele é claro, e não quer ofuscar.
Esta página, mais uma das que sofreram numerosas interpolações, está sujeita, mesmo na China, a diversas interpretações. Como de resto ela não encerra nenhum preceito que diga respeito, seja à Via, seja à Retidão, obedeceremos à nossa reserva habitual e não faremos nenhum comentário.

XXII.        O governo dos homens e a ação do Céu não se parecem com a tranquilidade de uma tumba. E no entanto, quanta tranquilidade! Assim, há muito tempo, os homens a veneram. Venerar por muito tempo, é acumular a virtude; acumular a virtude, é concordar em paz. Concordar em paz, é recuar os limites; recuar os limites, é o modo de governar. Quando oimpério é amado como uma mãe, ele dura e se estende. Pois estas são razões profundas e de bela cepa; assim vive-se muito tempo observando constantemente o Tao.
O governo dos homens deve ter como modelo a ação do Céu: a ação do Céu, que é a tranquilidade por excelência, não é nada parecida com a tranquilidade de uma tumba: a tumba é a inércia material da coisa morta, o Céu é a não-ação voluntária do Ser; Lao Tsé usa todas as ocasiões para diferenciar a não-ação da inércia, e a tranquilidade da imobilidade. O governo ideal dos homens seria, assim, a tranquilidade, mas uma tranquilidade atenta; e, assim como a ação do Céu é interior e invisível, a ação do soberano deve ser a inércia no exterior (impossibilidade de ultrapassar as fronteiras) e ação no interior (cuidado com a felicidade do povo e a solidariedade entre todos os homens). É por esta aquiescência com a Retidão e por esta semelhança com a Via que os homens veneram o soberano. Este é verdadeiramente o modo de governar, não há outros. Para se identificar com a Via, o império identifica-se com a própria imensidão e duração da própria Via.
Do ponto de vista individual, e fora do plano social, acumular a virtude é concordar; concordar é reunir-se, identificar-se. Os indivíduos que se identificam recuam os limites da individualidade, e começam assim sua evolução.

XXIII.      Governar um grande império é como cozinhar um peixinho. O soberano deve servir-se do Tao para guiar os homens. Existem muitos maus e poucos bons; não é verdade que existem muitos maus e poucos bons? Os maus não amam aos outros homens: não é verdade? Em toda parte, os homens não amam uns aos outros: os maus não amam os bons, mas o Céu os reconcilia e os pacifica na virtude.
Toda esta página é de um singular simbolismo. O peixe deve ser cozinhado em fogo baixo, assim como o império deve ser governado com prudência; o peixe é imperceptível e imóvel no meio da água que ferve e o joga de um lado para outro; do mesmo modo, o soberano está só nomeio de um povo imenso, cujos movimentos o afetam e cujas opiniões o influenciam. De resto, é melhor cozinhar um peixe numa água bruscamente fervente, ou pouco a pouco, numa água tépida? É melhor governar o império com os fortes e os audaciosos, ou com os doces e os mansos? A água fria e a água fervente excluem-se; assim os fortes desdenham os mansos, e os maus odeiam os bons. É um fato, que os homens não amam uns aos outros; os doces não amam os fortes, a quem chama de violentos e maus; os fortes não amam os doces, a quem chamam de inertes e fracos. E no entanto, eles só se chamam de bons, maus, fracos ou violentos porque são homens; na realidade, eles não são nada disso. É por isso que quando o Céu os reune, por meio desta virtude (que é a Via) e os faz perder seu caráter humano, eles se pacificam e reconciliam.

XXIV.      Um grande país é como a água profunda: ele simpatiza com todos os homens. Este hábito conduz à paz, à prosperidade, à força; a paz traz a doçura. É por isso que um grande país é doce com os países pequenos, ele garante a sua  segurança ; os pequenos países são respeitosos para com os grandes, e mantém sua fidelidade; é por isso que os pequenos ligam-se aos grandes, e os grandes retém os pequenos. Um grande país reune muitos homens; um país pequeno reune, com dificuldade, oito. Os dois têm os meios de fazer o que querem. Assim a grandeza identifica-se com a doçura.
A água profunda envolve a terra, inflitra-se nos menores interstícios, fecunda-a e embeleza-a; assim um grande país deve envolver os homens com sua simpatia benfazeja. Dela, os homens recebem a paz; da paz, a prosperidade; da prosperidade, a força. Mas, embora fortaleça, este método indica que a força não deve ser utilizada; e assim este gênero de força conduz à doçura. Assim se traduz, em linguagem social, este dogma metafísico que diz que o princípio ativo causa necessariamente a presença do princípio passivo, e que, colcados em presença um do outro, eles se unem. Em conformidade com esta união, o grande país une-se aos pequenos asssegurando sua proteção, e os pequenos países unem-se ao grande assegurnado-lhe sua fidelidade. A proteção do forte e a fidelidade do fraco são de igual virtude, e equilibram-se. Existe uma vantagem recíproca; os dois ficam felizes, porque ambos fazem precisamente o que podem, e o que corresponde ao seu número[30]. Cada qual está em sua Retidão, e esta Retidão manifesta-se precisamente pela doçura, que é uma espécie de não-agir social.

XXV.         A Via é a condição de todos os homens: com ela amamos os bons, evitamos os maus. As boas palavras e a doçura podem atrair os homens. Quanto aos maus porventura existentes, para eles estabelecemos um rei e três ministros. Unidos, eles são mais fortes e rápidos do que quatro cavalos atrelados; mas eles não podem, como aquele que está tranquilo, alcançar a Via. Desde sempre, o Sábio venerou a Via; ele a encontrou sem a buscar e, com ela, curou os doentes. Assim, todos os homens agora amam a Via.
Para os homens bons, a Via, que é a condição de todos, basta por sua doçura. Para os maus, que só obedecem à força, é preciso estabelecer um rei e três ministros (quaternário positivo das relatividades criadas). Mas, por mais unidos, fortes ou perfeitos que sejam, estes quatro agentes do poder nãopodem fazer o que faz a Via, único agen te da doçura. O Sábio, que conhecia a Via, e que a encontrou sem buscá-la, conduziu outrora os maus à Via pela Via. E assim todos os homens amavam a Via única. Mas isto deixou de ser possível, desde que existe “um rei e três ministros”. Vale dizer que as instituições sociais, mesmo quando sua autoridade só se exerce no sentido da Retidão, excluem a verdadeira Via, e esta só reaparece como universal ao homem depois da desaparição das instituições sociais e dos governos.

XXVI.      Agir como se não se agisse; trabalhar como se não se trabalhasse; experimentar como se não se experimentasse; estimar grandes as pequenas coisas, e numerosas as raras; tomar o mau como virtuoso; pensar as coisas difíceis como fáceis; pensar as grandes coisas como pequenas: é assim que os homens cometem erros. Eles pensavam que tudo era fácil; eles pensavam que as maiores coisas eram pequenas. É por isso que o Sábio não age, e é grande; é por isso que muitas vezes ele se torna maior ainda; ele fala com doçura, mas o que ele diz é verdade. Certamente, as coisas difíceis lhe são fáceis. O Sábio crê que ainda existem dificuldades; mais tarde, não há mais dificuldades.
Esta página encerra uma curiosa singularidade dos ideogramas chineses, que merece uma pausa. Sabemos que a pontuação, enquanto sinais, compõe-se exclusivamente de um pequeno círculo colocado, como se fosse um “índice” algébrico,, à direita do caracter que determina o sentido completo; sabemos, por outros lado, que os caracteres, escritos da direita para a esquerda e de cima para baixo, constituem séries de colunas verticais; quando uma frase, ou melhor, quando um raciocínio começa por uma idéia condutora, o caracter que representa esta idéia condutiora é colocado na cabeça de uma das colunas, e esta coluna, no papel, começa acima das demais colunas da mesma págica, a fim de indicar tangivelmente a  supremacia da idéia que o autor quer destacar do restante do raciocínio. Mudando a pontuação, e fazendo sucessivamente subir e descer – no momento da tradução fonética – a coluna de caracteres que exprime que “os homens cometem erros”, obtemos o sentido individual ou humano, depois o sentido geral ou metafísico desta página, conforme, por meio deste duplo deslocamento, o elemento determinativo da frase “os homens cometem erros”, que se encontra no meio da página XXVI, seja aplicado à primeira ou à última parte da página. O significado que está na tradução tal como pontuada acima, é o sentido individual humano. O mestre indica que os homens que se deixam levar pelo individualismo, e que chegam a considerar como reais apenas os produtos ou as vantagens do indivíduo, perdem o benefício de sua ação, de seu trabalho e de seu sentimento; pois, ao aplicá-los a um objetivo imediato, os indivíduos, que não passam de relatividades – e que não possuem nenhum correspondente do universo metafísico, único real e único companheiro de nossa evolução – aniquilam todo seu esforçio, e permanecem como se não tivessem agido, nem trabalhado, nem experimentado. A visão próxima desses objetos esconde deles a visão distanciada das coisas gerais, e inverte, por conseguinte, o equilíbrio e justeza das noções; pois todas as qualidades da causa e da necessidade são atribuídas por eles apenas aos objetos vistos, sobre os quais eles se determinam. A partir daí, eles tomam o mau pelo virtuoso, o  difícil pelo fácil, o grande pelo pequeno, e caem num grande erro contínuo. Quanto ao Sábio, sua inação diante dos produtos do individualismo esconde a grandeza de sua ação face ao universo coletivo: e quanto menos ele pareça agir aos olhos abusados dos indivíduos, maior ele se torna; e, ao contrário deles, ele estima difíceis as coisas, mesmo as mais fáceis; ele se comporta em relação a elas como se elas fossem realmente difíceis; e assim ele rompe todos os obstáculos, e não existem mais dificuldades para ele.
Graças à inversão da pontuação e à mudança na altura da coluna mediana de caracteres, o sentido geral metafísico é precisamente o de que o Sábio, diante do sentimento errôneo dos humanos individualizados, age do modo como os h omens não agem; trabalha de um modo que os homens não trabalham, etc.; assim, os homens acham que ele faz o contrário daquilo que, na realidade, ele faz. Mas sua ação lhes escapa, assim como os motivos de sua ação, que são gerais e estão num plano supra-humano. A partir daí, o Sábio vê todas as coisas humanas sob um mesmo ângulo, as grandes como pequenas, as difíceis como fáceis; e ele considera o mau assim como considera o virtuoso. Assim, ele se comporta como o quer o Tao, no qual vimos que as relatividades engendram-se mutuamente, que uma coisa relativa não pode existir sem seu contrário, e que, por conseguinte, tanto uma coisa como outra não existem realmente. O que é verdadeiro para o material o é também para o moral: assim, o Sábio, em sua concepção metafísica, considera o mau e o virtuoso como dois humanos paralelos, cuja maldade e virtude distinguem-se uma pela outra, e que estão destinados a desaparecer juntos, ao mesmo tempo em que os motivos contingentes que os criaram, e que as consciências temporárias que os determinaram e que são afetadas por eles. Extraindo um pouco mais as consequências desta página no sentido metafísico, chegaremos ao dogma da relatividade do bem e do mal, e à qualidade ilusória do dualismo humano e da moral que lhe foi acrescida.

XXVII.    O que é tranquilo é fácil de manter; o que está em repouso é fácil de conservar; o que é fraco é fácil de romper; o que é tênue é fácil dispersar. É preciso prevenir o acontecimento antes que ele chegue; é preciso apaziguar antes que a revolta estoure. Uma árvore, que o homem derruba com dificuldade, tem uma raiz como um fio de cabelo; uma torre de nove andares começou com um punhado de terra; mil lis começam com um passo. Quem trabalha pode fracassar; quem ganha uma coisa pode perdê-la. É por isso que o Sábio não trabalha para ganhar as coisas, e portanto não pode perdê-las. Se o povo ganha, normalmente ele chegará à perda. É preciso tomar cuidado no começo e no fim das coisas; assim, não as perderemos. É por isso que o Sábio atém-se à indiferença, e não quer ganhar nem adquirir nada. Ele sabe sem estudar; ele caminha ao lado dos outros homens, mas faz seu próprio caminho só. Ele é superior aos dez mil seres, mas ele separa-se deles, e não ousa influenciá-los.
Está aqui, no plano filosófico e social, e reduzido a apoftegmas, o princípio metafísico incluído nas primeiras páginas do Yi King: “ao avançar sobre a geada, o gelo se aproxima”. Tanto nos indivíduos quanto na coletividade, ou seja em todos os compostos e conjuntos que têm um começo ou um nascimento relativo, é o começo, para o Sábio, a coisa mais importante. O que está em baixo é como o que está em cima, mas em sentido contrário; assim, o Sábio deve prestar atenção ao começo, ou seja ao princípio da Via, para conformar-se a ela, e deve também prestar atenção ao começo contingnente das coisas, a fim de que estas se conformem a ele. E esta prescrição metafísica é também social e moral. Pois, desde o seu nascimento, os dez mil seres, coisas e gentes, são fracos e tênues, e, portanto, fáceis de dirigir na direção que o Sábio decidiu. É facil arrancar a raiz de uma árvore recém-nascida, ou destruir uma torre que mal começou; é impossível derrubar uma árvore que um homem mal consegue arranhar, ou destruir uma torre de nove andares. Da masma forma, o Sábio deve tomar suas paixões no nascedouro para sufocá-las, e cativar os homens em sua primeira assembléia, a fim de os dominar. Este é o sentido das palavras do Mestre.
Mas ele insiste imediatamente sobre os meios desta dominação, individual ou coletiva: é preciso que não sejam meios de ação, mas de exemplo. É evitando adquirir desejos que o Sábio evita possuir paixões; é dando as costas aos homens que estes se voltam para ele para segui-lo, sem que seja preciso chamá-los. O Sábio permanece superior à sorte; e, mesmo quando os homens e as coisas se separam dele, perdendo-se, ele não é diminuído, porque não estava unido a eles, e nada lhes deu de si mesmo.

XXVIII. Antigamente, aqueles que conheciam a Via não queriam esclarecer o povo. Se eles deparavam-se com más ações, imediatamente eles as reprimiam. É difícil governar os homens, pois é preciso ciência. Se aqueles que comandam o império agem pela força, o império entra em revolta. Se usarmos a doçura para governar o império, o império torna-se feliz. Aquele que conhece estas duas coisas pode experimentá-las; às vezes, ele consegue experimentá-las juntas. Esta é a virtude profunda; a virtude profunda é secreta, e trespassa as intenções dos homens. Todas as coisas se voltam para ela; ela traz a felicidade harmoniosa.
Este capítulo é muito singular, pois ele pode ser entendido de duas maneiras; o primeiro sentido é bastante claro: ele aponta que é muito difícil dominar os homens sem a Via. Ora, reprimir brutalmente as más ações não é a Via; e o povo que, inconscientemente e tradicionalmente é levado à Via, revolta-se se for conduzido com brutalidade e obedece se é conduzido com doçura[31]. Mas é preciso frisar (e é a esta observação que se aplica o apoftegma do final desta página, a saber, que a virtude profunda é um mistério) que, se é verdade que a repressão brutal não é conforme à Via, os atos maus que ocasionam esta repressão estão completamente fora da Via. Em consequência, não seriam os governantes, mas os governados que teriam começado a desviar-se da Via. Isto parece contrário a todo o ensinamento de Lao Tsé, e, na realidade, La´Tsé não disse isso. Ele disse que os primeiros condutores do povo conformavam-se à Via, mas não tinham espalhado em meio ao povo o conhecmento da Via; assim, os povos obedeciam à Via sem conhecê-la. Mas, desde que eles acreditaram conhecê-la, em função das divagações de alguns chefes imprudentes, eles quiseram segui-la raciocinando; como eles a conheciam mal e não poderiam então senão conhecê-la mal, eles seguiram mal a Via. Este ensinamento está perfeitamente conforme à tradição esotérica, que diz que a ciência é adquirida pessoalmente, e não através de vulgarizações  coletivas, sempre perigosas. Do ponto de vista social, isto espantará os meios ocidentais, aonde reina a crença absoluta no benefício da instrução obrigatória.

XXIX.      Os rios e mares fazem cem abismos ao fluirem; assim também os reis; as águas só sabem descer; assim também as cem raças de reis. O homem perfeito, que quer o progresso do povo, fala baixo com ele. Ele fala diante do povo, e cada um caminha atrás dele (seguindo seus ensinamentos). Assim, quando o Sábio tem um posto elevado, o povo está feliz; quando ele tem um lugar na frente, o povo não sofre. Assim, todos os homens ficam satisfeitos e sérios. Como o Sábio não luta, ninguém encontra ocasião de lutar.
Quem alimenta o solo? A água. Quem arrasta consigo o solo e o transforma em limo fecundandor? A água. A água é assim o mestre e também o benfeitor do mundo. Mas porque ela preenche este papel? Porque ela ocupa sempre o plano mais baixo dos vales, e não pode fazer outra coisa do que descer. Se ela não descesse sempre para ocupar os pontos mais baixos, as terras não a seguiriam. O mesmo acontece com os reis e com todos os chefes, que são chamados a conduzir, reger e fazer prosperar as nações. O Sábio, que é o melhor dos condutores, abaixa-se para o povo para falar-lhe, e o povo só o segue na medida em que não sofre com sua superioridade. Ora, o povo não sofrerá com esta superioridade, se o Sábio, contentando-se com apresentá-la, não a impor. Não sofrendo, o povo não precisará lutar. Em resumo, o Mestre ensina que o povo não segue um homem com ardor e frutiferamente a menos que o reconheça digno de sua escolha, e que o escolha, também.

XXX.         Os homens acham-se grandes e semelhantes com aquilo que não diminui; se eles fossem realmente grandes, eles não diminuiriam; e no entanto eles diminuem pouco a pouco e sem cessar. Ora, nós possuímos três coisas preciosas, que guardamos ciumentamente: a primeira é o aumento da virtude; a segunda é a circunspecção; a terceira é não ousarmos nos colocar à frente dos homens. O aumento da virtude dá a força; a circunspecção dá a generosidade; não se colocar adiante dos homens permite tornar-se seu chefe. Pensar em agir, sem agir ainda, eis a força; guardar a circunspecção, eis a grandeza; guardar a humildade, eis o primeiro escalão. Na morte, este aumento prossegue, existe vantagem. Se guardarmos firmemente a virtude, o Céu protege, e traz por si mesmo uma ligeira vantagem.
Aquele que possui verdadeiramente o apanágio da grandeza não poderia jamais diminuir, pois a verdadeira grandeza não é uma qualidade, mas uma essência. Do mesmo modo, os homens, qualquer que seja sua crença a respeito, por não possuirem nada de seu além das contingências, diminuem involuntariamente, pouco a pouco, mas de modo constante. Os três dons preciosos que o Sábio retém evitam que ele sofra esta diminuição; é o crescimento da virtude, a circunspecção e a modéstia social; estas três coisas são os auxiliares graças aos quais os homens podem, sem se diminuir, percorrer o ciclo da existência humana.
Quando estas três qualidades são adquiridas pelo Sábio com o único objetivo de concorrer para sua evolução, elas lhe são vantajosas, mesmo no interior do próprio ciclo humano. Assim, ele adquire a força, a generosidade, e, como especifica a página precedente, a humilde indiferença que lhe vale o primeiro lugar em meio ao povo. E, depois de lhe terem sido úteis durante a vida, esses três bens preciosos, ajudando na passagem da individualidade presente para a individualidade superior, trazem uma vantagem verdadeiramente celeste; e esta vantagem consiste em fazer o indivíduo ingressar numa vida mais eminente, conscientemente, e com todo o benefício dos méritos adquiridos.

XXXI.      O sutil que conhece a ciência não é belicoso; o sutil que sabe dirigir não é violento; o suti que sabe tomar corretamente não luta. O sutil que emprega os homens é doce com eles. Da mesma forma, não se luta pela virtude; assim, este emprego dos homens dá a força. Eis uma ação semelhante à do Céu: era a antiga perfeição total.
Trata-se da utilização dos ensinamentos da página anterior pelo homem sutil, nos três planos: no plano metafísico, ele é paciente; no étnico, ele é pacífico; no social, ele é hábil. Assim, não lutar pela virtude assegura a força e o triunfo do sutil. O Mestre indica que está aí, no plano humano, a imagem da união de Khien e Khouen (ver os dois primeiros capítulos do Yi King), ou da perfeição certa e da perfeição primeira, aquela fecundando a esta, esta envolvendo e excitando aquela; “a doçura conduz a tudo”. Esta era a perfeição primordial.

XXXII.    Diante dos violentos, é preciso falar assim. Eu não quero ser o chefe, mas o estrangeiro; eu não ouso subir uma polegada, nem descer um pé. Assim, comandar sem parecer comandar; não disputar; ganhar sem violência. É preciso começar uma coisa sem estardalhaço e docemente; começar docemente, é o mecanismo que é nosso tesouro. Aquele que age assim á mais forte que os exércitos. Pensar muito traz o sucesso.
Aqui são postos na prática política e social os preceitos anteriores. É fácil dirigir os homens doce e naturalmente, conforme à Via; mas, quanto mais violentos são os homens, mais difícil é dirigi-los; convém assim apresentar-se a eles, não como o chefe futuro e necessário, mas como um estrangeiro, hóspede de passagem, o qual, tanto por comportamento como por cortesia, não age nas questões mais simples, como avançar ou recuar. É assim que se chega a comandar sem parecer comandar; a ação do chefe é fundamentada em suas palavras, e mais ainda em sua conduta, e não se percebe a materialidade do comando. Na realidade, como na página que falava da árvore, da torre e dos mil lis simbólicos, é preciso começar com doçura para ir até o final; é preciso começar docemente, a fim de que o ato do chefe, sua pessoa e seu objetivo final permaneçam ocultos à multidão indiferente. Este é o mecanismo que tornou poderosos Fo Hi e os Sábios tradicionais. E é assim que um só pensador é superior aos exércitos.

XXXIII. Nossas palavras são fáceis de compreender, fáceis de praticar. Os homens não as compreendem bem e não as praticam o bastante. De fato, eles dizem: “as palavras são para os grandes; a ação é para os reis; nós não compreendemos nada disto; em verdade, nós não compreendemos nada disto”. Somos poucos os que têm cosciência de si; só por isto, já somos estimados. O Sábio conhece tudo; seu coração é claro como o diamante.
Simples constatação da insuportável involução das sociedades, desde que os homens afastaram-se da Via, e não confiam senão nos poderosos, cuja força parece necessária para manter a ordem e a segurança, enquanto que estas coisas deveriam ser natural e inconscientemente trazidas pela marcha normal dos acontecimentos. O povo, ignorando daí por dianteos Sábios, vê seus chefes nos reis e nos grandes, que deveriam ser somenste a polícia e os braços dos Sábios, deixando a eles o cuidado com as ordens e os atos. Os Sábios, a partir daí os únicos conscientes de si mesmos, mantém-se à parte, e este testemunho basta à sua consciência e à sua tranquilidade.

XXXIV.  Saber e não prever; não prever (no momento em que se sabe), eis o grande prejuízo. Tentamos evitá-lo. O Sábio não experimenta o prejuízo; quando o prejuízo afeta os homens, ele os alivia.
Esta página, como já mostramos numa página precedente, permite diferentes entendimentos, conforme a disposição dos caracteres e as transposições das pausas. O Sábio deve saber – o que faz parte da ciência geral – e não deve prever – o que faz parte da aplicação política específica. Não prever e saber tarde demais (o que equivale a não saber), eis um grande prejuízo; pois se o saber preserva sem previdência e a´penas pela força natural, a imprevidência com um saber insuficiente ou tardio leva aos piores abismos. É deste desastre que o Sábio tenta preservar os homens.
A partir da transposição ideogramática, o plano social torna-se o plano metafísico, e esta página pode ser lida simplesmente assim: savber que não se sabe nada é ciência suficiente para um homem, senão para um Sábio. Sofrer com esta consciência da própria ignorância, é o primeiro degrau da perfeição.

XXXV.    Se o povo não teme a perda, então sobrevem sua perda total, e não há meio de conservar os bens materiais. Se ele tem um destino ruim, ele ´pode dizer que ele tem, apropriadamente, um destino ruim. O Sábio conhece a si mesmo, e ignora seu destino; ele ama não ser grande. Desta forma, ele deixa isso e adota aquilo.
Esta é a diferença entre o Sábio, que segue a Via porque a conhece, e o povo, que conforma-se a ela sem conhecê-la, e segundo os ensinamentos do Sábio; o Sábio não possui nada, e não teme o que quer que seja; o povo possui; ele está obrigado a possuir, e convém que continue a possuir; é preciso então que ele tema perder o que possui. Se ele não tiver este temor, terá o pior destino, pois, não podendo alcançar os móveis abstratos e não possuindo mais os móveis concretos, ele se afasta da Via.
Quanto ao Sábio, ele se conhece; este conhecimento lhe basta, porque lhe traz infinitamente mais do que o presente lhe pode oferecer; ele permanece assim indiferente ao seu destino e prefere a tranquilidade à grandeza.

XXXVI.  Aquele que tem coragem e ousa pode ferir; o que tem coragem e não ousa é incapaz. Destas duas coisas, uma pode ser vantajosa e outra prejudicial. O Céu não ama isto, que cada um o saiba perfeitamente. É por isso que o Sábio acha tudo isto difícil. Esta é a Via do Céu, que o Sábio não luta, mas triunfa; que ele não fala, mas é atendido; que não busca nada, e tudo vem até ele; que parece inerte, mas que possui um método hábil. A rede do Céu é bem grande; mas ninguém consegue passar através dela.
Saber, ousar, privar da vida, de um lado; saber, não ousar, não privar da vida, de outro lado; eis os dois métodos habituais de governo; eles correpondem, um, aos chefes violentos, que desejariam levar os homens para a Via à força, mas não podem, e os levam a outra parte; o outro, aos chefes tímidos, que não sabem conduzir os homens a  nenhuma parte. O Céu não quer nem um nem outro destes métodos, mesmo que seu emprego sucessivo seja susceptível de trazer alguma vantagem. Nessas ações, que têm móveis insuficientes, autores medíocres, meios imperfeitos, o Sábio não vê nada de simples. Pois seu método de governo é precisamente o de não executar nenhum ato de governo. E o Mestre indica que esta aparente inércia esconde o melhor método. Seguindo-o, ninguém poderá passar através das malhas da rede celeste, ou seja, cada qual acomoda-se e conforma-se com a Via, na medida em que está nela.

XXXVII.                      Se o povo não teme a morte, como dirigi-lo com este temor? Mas aqueles que comandam os homens que temem a morte, mesmo sendo cheios de circunspecção, podem levá-los à morte. Às vezes ferimos em segredo; mas somos feridos também; a morte do assassino compensa o assassinato. Esta é a compensação de uma grande falta; sim, eu digo que esta é a compensação de uma grande falta. Mas existem poucos homens que não temem fazer o mal.
O temor da morte entre o povo é o melhor método de governo; pois assim, podemos ameaçá-lo de morte, caso não siga as orientações indicadas. Este conselho dado aos soberanos é feito para engajá-los – por uma razão que todos eles possam captar, ou seja por razões de interesse – em fazer os cidadãos temerem a morte, ou seja, em tornar sua vida feliz. Quanto aos chefes cujos comandados temem a morte, suas ameaças devem ser medidas e cheias de circunspecção. E vemos que o Mestre, sem proibir expressamente a execução das ameaças, prevê a “lei de Talião” àqueles que as executarem.
A ameaça de morte não passa de uma precaução; levar à morte é um assassinato, que será vingado com a morte do assassino. Esta é a primeira aplicação da doutrina do “choque de retorno” das ações humanas, objeto do tratado Kan-ing. Cada ato traz consigo um germe do futuro, e a manifestação do ato desencadeia necessariamente uma sanção que pode produzir-se imediatamente ou muito mais tarde, mas cuja fatura acompanhará o autor da ação ao longo de sua personalidade. É quando esta conta chega em zero que se atinge o Nirvana. Teremos ocasião de comparar o dogma taoísta ao dogma hindu do karma e ao dogma cristão do pecado original.

XXXVIII.                    O povo está faminto enquanto os grandes se locupletam; sim, ele está faminto. O povo é difícil de governar quando os grandes agem; sim, ele é difícil de governar. O povo despreza a morte quando é constrangido a se revoltar por sua existência; sim, ele desdenha a morte. Ele não se interessa em viver; que os homens fiéis se interessem em viver.
O Mestre desenvolve aqui socialmente o princípio étnico estabelecido mais acima. Apenas a conduta não-conforme dos grandes pode tornar o povo infeliz; e a infelicidade do povo levá-o a desgostar da existência, a desdenhar a morte, e a passar uma vida medíocre em meio a revoltas. Os grandes carregam  assim imediatamente a pena por seu erro, porque este erro, num justo contra-golpe, os faz perder o único meio de governo que possuíam diante de homens que se afastaram da Via.
É esta página, junto com muitas outras, que justificam a doutrina comunista de Confúcio, e também a doutrina antidinástica dos Taoístas modernos. Os únicos soberanos que aderiram publicamente ao Taoísmo foram precisamente soberanos filósofos, elevados e solitários que trouxeram consigo os Sábios, não como executores de vontades que eles tiveram o cuidado de não ter, mas como os representantes da personalidade imperial, que eles descuidavam até de manifestar exteriormente. E o que há de particular nisto, é que os reinos destes mestres singulares levaram ao povo esta fidelidade sossegada e obscura, que na realidade é o supra-sumo da felicidade sobbre a terra.

XXXIX.  O homem vivo é doce e flexível; morte, é duro e rígido. As plantas vivas são doces e tenras; mortas, são duras e secas. Fortes e rígidos, os homens caminham para a morte; doces e flexíveis, eles caminham para a vida. Também, os violentos e os fortes não têm vantagens. Uma árvore é forte; mais forte é o solo debaixo dela. Assim o que está em cima torna-se doce e flexível.
Aqui não temos mais do que apoftegmas simbólicos: a rigidez cadavérica e a flexibilidade do corpo vivo são imagens para indicar de que modo a dureza inflexível é o apanágio da morte e da inércia, e que a doçura ágil é o apanágio da vida e da evolução. Portanto, os caracteres duros e inflexíveis não fazem mais do que obras de morte. No plano social, a árvore não é forte a menos que o solo de onde ela cresce a no qual ela mergulha suas raízes seja mais forte e nutriente; quer dizer que os grandes tiram todo seu poder do assentimento do povo que está abaixo deles; se eles tiverem esta verdade em seu espírito, eles se tornarão doces e flexíveis, não apenas pelo bom senso, não apenas para obedecer à Via, mas por interesse.

XL.              O homem que segue a Via é semelhante  a um arco; ele segue os que estão acima dele; ele protege os que estão abaixo. Ele possui bens em abundância, e os dá aos que não tem o bastante. Assim, o homem opulento que segue a Via guarda pouco para si, e dá àqueles a quem falta. A Via dos homens não é a mesma; aquele que a segue dá aos que tem muito e tira dos que não tem o suficiente. Aquele que, por ser rico, dá seu supérfluo ao povo, segue o Tao. Assim, o Sábio produz e não se atribui; ele faz grandes coisas e não se vangloria. Ele recusa assinar as ações de sua sabedoria.
O homem que segue a Via é como um arco. Diantne dos superiores, ele é a corda, que, ligada às duas extremidades do arco, segue seu movimento e sua direção; diante dos inferiores, ele é como o arco que dirige e protege os movimentos da corda. De resto, isto é verdade graficamente, pois o arco e a corda que o sustenta são, sobre o círculo tangencial da raça humana, as projeções verticais da vida individual e da evolução cíclica. Ora, quando tensionamos um arco, a flexão do arco dá à corda, normalmente rígida, um jogo de elasticidade, e é apenas por esta elasticidade que o arco pode cumprir sua função. Da mesma forma, é apenas quando os homens flexíveis animem com sua flexibilidade a rigidez dos homens duros, apenas quando os homens opulentos derem seu supérfluo aos homens que nada têm, que o universo se comportará segundo a Via.
A pseudo-Via que os homens seguem por hábito é precisamente o contrário: para eles, “a água vai sempre para o rio”. Mas o Sábio produz e não atribui a si próprio suas criações, e não quer que, por assinar suas obras, sejam reconhecidas as marcas de sua sabedoria.
Vemos como esta página transporta para o plano social, e inclusive para o plano da economia prática, o princípio metafísico da imobilidade refletida e da inação voluntária. Não-possuir é a forma social do não-agir. Mas é preciso frisar aqui uma das raras concordâncias, ao menos no exterior, entre o Taoísmo e o Budismo, quando se afirma que o Universo só se conformará à Via quando todos os indivíduos comungarem da mesma flexibilidade, ou seja de uma igualdade de vidas. Está aqui, no plano da lógica, o axioma sentimental: “O Universo não será salvo, se apenas um homem não for salvo”.

XLI.           Os homens devem ser fracos e doces como a água; aqueles que são duros e fortes não podem ganhar nada. Isto não é fácil de entender: o fraco triunfa sobre o forte, e o flexível sobre o rpigido. Os homens não conhecem isto e não podem se conformar com isto. Da mesma forma, o Sábio diz: aquele que parece ser o último do império é mestre de si mesmo e se torna o chefe; aquele que parece ser o último do império não se mostra e se torna o mestre dos homens. Estas palavras verdadeiras possuem um sentido oculto.
O que existe de mais fraco na aparência do que a água? E o que de mais forte, porque, sendo flexível, ela é insinuante, envolvente, e sem resistência pessoal? Ela vem depois dos rochedos mais duros e da própria terra. Os homens devem tomá-la como modelo e adquirir suas qualidades de força lenta, acariciante e irresistível. Mas, se o fraco triunfa sobre o forte, que os grandes se lembrem de que o povo fraco, de onde eles saíram e de onde tiram seu poder, pode a qualquer hora triunfar sobre eles.
O último do império torna-se seu mestre, porque, sendo desinteressado, aprendeua ser mestre de si e pode tornar-se mestre dos outros; porque, sendo perfeito, ele sobe invencivelmente ao escalão a que o conduzem seu mérito e seu esforço desinteressado, e enfim porque, sendo obscuro, ele não faz, malgrado sua perfeição, sombra a ninguém e não encontra adversários em sua ascensão, ao mesmo tempo imperceptível e inesperada.

XLII.         Os homens imaginam que parecer apaziguar um grande ressentimento e guardá-lo ainda maior em segredo, esta é a tranquilidade e a concórdia. Da mesma forma, o Sábio guarda tudo escrito em seu bolso esquerdo e não reprova nada nos homens. Que tem a virtude concentra pouco a pouco seu poder; aquele que não tem a virtude dispersa-o pouco a pouco com sua agitação. O homem que segue a Via não teme nada; nela ele está unido a todos os homens direitos.
O primeiro grau do poder sobre si mesmo é o de guardar seus sentimentos e agir como se não existissem; no plano passional, equivale a perdoar e não esquecer. Os homens, habituados a ver agir logo em seguida ou após ficar um tempo mais ou menos longo retida, conforme às paixões de outrem, consideram que este grau medíocre basta para assegurar a tranquilidade e a concórdia. Isto é completamente falso; para agir segundo a Via, é preciso que o ato não seja em nada modificado pelos atos dos outros; é preciso, assim, ou nãoos conhecer, ou esquecê-los profundamente. É que, diz o Mestre, os homens sofrem, pela Vontade do Céu, o “choque de retorno” dos seus atos; mas eles não devem, custe o que custar, serem os juízes da oportunidade de os impro ou não a outrem.
Esta retenção suprema traz em si sua recompensa; pois o homem que segue os impulsos de sua cólera, ou de qualquer outra paixão, dispersa seus esforços, e torna-se impotente durante a vida; aquele que, por uma imobilidade refletida, concentra sua potência ativa, torna-se o mestre dos eventos, jamais perdendo sua força e sua vontade. Assim, o Sábio que se conforma com esta prescrição da Via não tem nada a temer neste mundo.

XLIII.      Se eu comandasse um pequeno reino com homens direitos, eu nada tomaria de seus numerosos bens. Eu lhes ordenaria temer a morte, e não deixar seu país; eles possuiriam barcos e não iriam neles; eles possuiriam couraças e não as vestiriam. Amarrar com cordas seria a única punição dos culpados. Iguarias adocicadas eu comeria; vestiria lindas roupas; viveria num país tranquilo; todas as coisas belas eu guardaria. Que os homens guardem este preceito, e que mesmo os cães e os galos o escutem: até a velhice e a morte, que eles não se reúnam num reino.
Esta página, que é a última escrita por Lao Tsé[32], é o testamento social do fundador do Taoísmo. É sobre os preceitos que ela contém, expressos com uma clareza e um vigor sem iguais, bem raros no Extremo-Oriente, que foi construído todo o sistema político e social que as dinastias nacionais encorajaram na China, e que valeu a seus povos longos séculos de paz e felicidade. São os preceitos que formam todo o ensinamento, tanto oculto quanto público, pelo qual os adeptos do Taoísmo estabeleceram a tradição libertária quanto aos indivíduos e comunista quanto ao “tronco”, tradição que os tornou suspeitos aos olhos dos soberanos das dinastias tártaras e manchus, e fizeram deles mártires venerados pelo povo. Confúcio e os demais filósofos práticos, economistas e políticos, que vieram depois, conseguiram às vezes atenuar as consequências de um sistema tão rígido e absoluto; mas não puderam suprimi-los no amor e na observância da raça; e é duvidoso que, num futuro distante, a ascensão da raça amarela ao progresso mundial possa fazer desaparecer este efeito até aqui todo-poderoso. Seria previsível, talvez, que as outras raças, empurradas irresistivelmente para concepções melhores por um surdo mas profundo apetite por bondade, altruísmo e paz, encontrem, nestes antigos preceitos rejuvenescidos e adaptados pela experiência de uma humanidade bimilenária, as soluções de certos problemas étnicos e sociais cheios de disputas e de obscuridades.
A paráfrase desta página é quase supérflua; se ela fosse completa, ela seria muito longa; ela está inteira ao longo dos vinte e cicno séculos históricos do Celeste Império. Vamos resumi-la rapidamente: o soberano deve ser indiferente à materialidade de seu reino e aos bens dos cidadãos; os cidadãos devem viver aonde a sorte os colocou para amarem a vida, que os soberanos devem facilitar ao máximo. As armas defensivas devem existir, mas o soberano deve agir de modo a que elas permaneçam sempre inputeis. A pena de morte deve ser abolida. E, para que o soberano tenha o mínimo de poder possível, ou seja o mínimo de ocasiões ativas, e para que o governo seja uma fórmula mais do que um fato, que cada um viva e morra sem se aglomerar. Se cada família viver separadamente, não haverá necessidade de outro soberano fora o pai. E é assim que a associação dos interesses conduz à direção pela ambição, e que somente a agitação do povo criou o poder dos seus mestres. Se ele sofre mais tarde por eles, terá o direito de se lamentar por um mal cuja causa ele mesmo gerou?

XLIV.       As palavras nas quais se crê não são as boas; as boas palavras não são acreditadas. O que é bom não é mantido; mantém-se o que não é bom; a ciência não pode ser transmitida; o que se transmite não é a ciência. O Sábio não guarda nada para si, mas escreve para ensinar os homens. Ele escreve para ensinar os homens; ele já os ensinou muito. A Via do Cèu salva todos os homens e não perde nenhum. O Sábio que segue a Via age e não se agita.
Foi depois de terminar com tal clareza o livro mais misterioso, mais tradicional, e ao mesmo tempo mais revolucionário jamais escrito, que Lao Tsé atravessou, sem voltar a cabeça, a muralha que encerrava o império, e desapareceu para sempre, silenciosamente e numa sombra definitiva, do meio desta terra, na qual ele deixou uma marca indelével, e a qual lhe dedicou em retorno uma glória imperecível, um culto piedoso e uma fidelidade imortal.



















V
AS AÇÕES E REAÇÕES CONCORDANTES


O Thai-Chang-Kan-ing-pien, ou Livro Kan-ing de Thai Chang é o pultimo e mais compreensível dos textos tradicionais do Taoísmo primitivo. Malgrado Stanislas Julien e outros grandes sábios da sinologia, que estudaram a China a partir da Pont des Arts (ou seja como membros do Instituto, e não como cegos, como poderiam insinuar os irreverentes), eu sou obrigado a declarar desde já que este texto não é de Lao Tsé, ao menos não no sentido imediato de ter sido Lao Tsé quem compôs seus caracteres.
Podemos prová-lo com uma observação filológica, o que deve ser um peso sobre os espíritos ocidentais, porque a filologia é uma ciência ocidental. Fala-se e escreve-se: o livro de Thai Chang, como se fala e se escreve: o Tao de Lao Tsé, ou o Te de Lao Tsé. Ora, Thai Chang é o sobrenome de Lao Tsé, que teve muitos sobrenomes, como todos os ilustres filhos do Céu. Thai Chang é, na realidade, um sufixo qualificativo que significa exatamente “o mais Elevado”, e com o qual costuma-se designar Lao Tsé, eatamente como se designa o Deus dos cristãos chamando-o “Altíssimo”.
Mas os chineses, tradicionais e formalistas, que fizeram , para o ensino da cortesia e dos costumes, um Código de ritos mais venerado e respeitado do que qualquer outro código legislativo, civil ou penal, não atribuem a torto e a direito seus sobrenomes. E, notadamente, eles jamais chamam de Thai Chang a uma pessoa viva. Por conseguinte, o qualificativo Thai Chang, aplicado a qualquer pessoa, indica sem sombra de dúvida que ela está morta. Portanto, o fato de que o Kan-ing é de Thai Chang (ou, para sermos mais exatos, do Tai Chang Lao Tsé), indica que Lao Tsé estava morto quando o Kan-ing foi escrito em caracteres.
Lao Tsé não deixa de ser o autor direto de uma parte do Kan-ing, e o inspirador da totalidade do espírito do texto. Convém lembrar aqui a frequência, a plenipotência e a pureza intacta da tradição oral entre os povos amarelos e sobretudo entre as raças de escrita ideogramática. Uma tradição não se conserva rigidamente, se só for conservada no fundo dos pensamentos; é preciso também, e de um modo absoluto, que ela seja conservada e transmitida na forma em que o mestre a moldou. Nas línguas alfabéticas, se o ouvido não retem a ressonância das palavras a memória individual e a transmissão sucessiva deformam os textos e os alteram com o uso, inconsciente mas inevitável, de sinônimos e aproximações. Nas línguas de escrita ideográfica, não se retém a palavra, mas a idéia, e a idéia só possui um modo de transmissão. A tradição oral, mesmo após gerações, permanece assim perfeita; e assim ela é frequentemente empregada.
É portanto absolutamente certo que a porção do Kan-ing que remonta a Lao Tsé foi escrita tal como este pensou e ensinou, sem esquecimento nem alteração de espécie alguma, e é certo também que esta transcrição só foi feita após a morte de Lao Tsé; ignoramos os motivos desta espera; eles devem ter sido poderosos e lógicos, mas é preferível não levantar hipóteses sobre raciocínios e fatos que escaparam para sempre à atenção dos homens.
Mas o Kan-ing, como o confessam seus próprios escritores e comentadores primitivos, não é todo de Lao Tsé. Quase inteiro aliás, ele pertence a doutores taoístas relativamente modernos, que herdaram seu espírito ou acreditaram nele, e nos quais a multitude acreditava. E podemos crer que o ensinamento incluído no Kan-ing era tão curto, que o Mestre julgou inútil transcrevê-lo, sendo bom para a memória auditiva. Não encontramos em nenhuma parte, nas proposições do Kan-ing, a idéia precisa, cadenciada, recíproca e apoftegmática do Tao e do Te. Sobretudo não encontramos a contenção impessoal, metafísica e ascética do Mestre. E os preceitos morais que ilustram, mais ou menos adequadamente, o dogma taoísta, revelam seu modernismo e a influência das especulações, da civilização e da sociedade budistas.
Esses preceitos morais estão apoiados num certo número – um grande número, pois chegam a quatrocentas – de histórias lendárias, nos quais vemos reis e sábios sendo punidos por não terem seguido as regras do Kan-ing, e de pessoas comuns e mendigos sendo recompensados por haverem obedecido; essa literatura grosseira é indigna do Taoísmo tradicional; ela testemunha uma necessidade de chocar o público, e também de distraí-lo, que é a característica do proselitismo mais medíocre. Rémusat traduziu  dezesseis destas histórias, no que  fez bem; Julien infligiu sua tradução e infligiu ao seu público a leitura de quatrocentas histórias completas, o que é de uma consciência verdadeiramente exagerada; mas vamos desculpá-lo, lembrando que ele traduzia pelo prazer de traduzir, sem grandes cuidados com as idéias e os sistemas. Seja como for, o que importa aqui é separar, de uma vez por todas, aquilo que é de Lao Tsé no Kan-ing, daquilo que é de discípulos seus, mais ou menos distantes e mais ou menos inspirados.
A doce e louvável moral com a qual o Taoísmo moderno, desfigurando-se, foi impregnado, cumpre sem dúvida um dever de transmitir fielmente suas “ordens” do bem e do mal, pelas quais se distinguem neste mundo os fiéis e os desviados da Via. Mas nós não faremos aí nenhum comentário: seu simples enunciado basta em função de sua importância filosófica e tradicional.
Ao contrário, esclareceremos o curtíssimo texto do Mestre com longas explicações, pois havia uma razão profunda para que o Kan-ing fosse tão curto, seja na tradição oral, seja na transcrição ideográfica; é que o ensinamento taoísta nesta matéria é secreto, e do melhor tipo de segredo que existe, o tipo de segredo que aquele que possui não consegue revelar a quem não o possui, porque este não o compreenderia vindo de um outro, mas apenas ao descobrir por si mesmo, como um axioma, no diz em que for, não apenas capaz de compreendê-lo com sua ciência, mas também digno, por sua virtude, de usufruir das vantagens de sua descoberta. Levaremos assim a explicação o mais longe possível, sem cairmos, não na indiscrição, mas nas trevas incomprensíveis, satisfeitos por termos advertido o público de que estas trevas se tornarão luzes para os olhos habituados a ver sem auxílio do sol exterior, mantendo, como o Phankhouatu, as pálpebras fechadas.

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Agora, devemos declarar que, em nenhuma outra tradução do chinês para o francês, a imaginação ocidental deu tamanho curso livre à fantasia como nas diversas traduções do Kan-ing. Não quero me perder aqui, assim como para os demais textos taoístas, em discussões filológicas fastidiosas sem nenhum interesse a menos de satisfazer a insuportável vaidade de certos dissertadores e seu ardor para polêmicas azedas. No início do século XIX, a simples idéia de traduzir textos extremo-orientais era de uma coragem louvável, que basta, para a posteridade, para compensar todos os erros e desculpar todas as ignorâncias. Esta é a única declaração para a qual tenho gosto e tempo, e que reconheço dever fazer. E felicito-me hoje pelas consequências desta declaração, pela qual vemos como a expansão colonial, as viagens cômodas e o gosto pelas ciências longínquas facilitaram a tarefa dos trabalhadores do século XX.
Hoje em dia a humanidade não possui mais um magazine de celebridades variadas, no qual, conforme o caso, agrupavam-se, devidamente etiquetadas, a celebridade latina, a eslava, a muçulmana, a germânica, a finlandesa, a grega – para ficarmos apenas na Europa. Temos hoje uma celebridade branca – ou quase – uma celebridade americana, etc. Tendemos ao dia em que seremos todos um único tipo, que seráo protótipo do cérebro humano. E assim, sem compartilhá-los, compreenderemos, sem deformar, os sistemas, as idéias, as concepções abstratas vindas de celebridades que não as nossas. É uma grande vantagem que não possuíam os sábio de cem anos atrás.
Os esforços que eles fizeram para assimilar o fundo do pensamento chinês, por exemplo, foram em vão; todo o seu mérito esvaiu-se em fadigas inúteis; eles truncaram e martirizaram este pensamento homogêneo no molde do cérebro europeu, construído diferente; eles não chegaram a compreendê-lo senão depois de tê-lo desfigurado pela adição de todo tipo de elementos heterogêneos, a tal ponto que os próprios chineses, que conceberam este pensamento originalmente, são incapazes de reconhecê-lo. E este trabalho de obnubilação e de desagregação era tão mais necessário quanto mais o pensamento que se desejava assimilar fosse mais estranho e antinômico em relação ao pensamento francês.
Ora, o Kan-ing é precisamente, dentro da tese doutrinal primitiva, o antípoda daq crença ocidental no destino futuro, e parece especialmente incompreensível à parte da raça branca que estabeleceu sua religião, sua moral e todo seu estatuto de humanidade sobre a existência paralela e dualista do bem e do mal iguais entre si, e sobre as penas e recompensas que o Senhor reserva àqueles que, durante esta vida, tenham cumprido aquilo que, segundo os homens, constitui este bem ou este mal; que Deus seja assim reduzido ao papel de excutor das altas obras de suas criaturas, não deve espantar o espírito daquele que não partilha da imaginação européia; mas que Julien e seus colegas tenham tentado inserir, em suas traduções do chinês, estas teorias tirânicas e bárbaras, que jamais estiveram incluídas aí, isto surpreende mesmo quem conhece a vaidosa ignorância dos nossos sábios oficiais, e que, por ter estudado os textos chineses sob o olhar e a supervisão de mestres chineses, sabe que não pode haver nada de verdadeiro nem de semelhante em tais adaptações.
Se os sinólogos do Ocidente ignoravam quase tudo da filosofia oriental, ao menos eles deveriam, a partir da ciência filológica que os introduziram ao Instituto, respeitar o sentido e a idéia dos caracteres ideográficos, mesmo quando estas idéias lhes parecesem abstrusas. Mas estes sábios não possuíam o cuidado de uma humildade tão modesta: eles só consentiam em traduzir os textos chineses com a condição de parafraseá-los, esclarecê-los e melhorá-los, segundo sua prórpia opinião, ao menos. À força destas luzes e destes aperfeiçoamentos, a França recebeu, das mãos de muitos membros de suas Academias, uma tradução do Kan-ing, cujo contra-senso contínuo e voluntário é gritante e sintetiza-se no próprio barbarismo filosófico com o qual o próprio título do livro foi traduzido.
De fato, o Kan-ing foi traduzido e é ainda conhecido na Europa com o nome de Livro das Recompensas e das Penas; como se, em lugar de ser um resumo da mais abstrata metafísica, o Kan-ing fosse um código penal rigoroso para uso dos conselhos de guerra, ou de qualquer outro aparato da pretenssa justiça humana. Assim, o caracter Kan significaria “as recompensas” e o caracter ing siginifcaria “as penas”, significados que nem um nem outro jamais tiveram, mesmo longinquamente. Não tenho a pretensão de fazer desaparecer um erro tão grosseiro e total, mas universal, apoiado na inquebrantável autoridade de dois sábios providos de uniformes verdes e de múltiplas condecorações. Um engano consagrado por um uso tão extenso está perto de tornar-se uma verdade, e é assim que o novo continente será sempre chamado de América, mesmo que estejamos convencidos de que foi Colombo seu descobridor.
De resto, mesmo substituindo essa designação pelo título “O Livro das Sanções”, o que se faz é substituir um erro por uma meia verdade. Esta seria a tradução, apenas e imperfeita, do caracter ing; para sermos o mais verídicos possível, é preciso traduzir: O Livro das Ações e Reações Concordantes, e escrever um tratado apenas para explicar o que quer dizer este título. Vamos substituir este tratado por algumas reflexões, curtas mas substanciais.

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Ao mesmo tempo, estas reflexões constituirão o melhor comentário que podemos fazer para acompanhar o Kan-ing, não este Kan-ing aumentado em quantidade e diminuído em qualidade, pelos taosse que não puderam subtrair-se à influência da sociedade confucionista e budista, mas este Kan-ing taoísta, formulário de algumas poucas linhas curtas e obscuras, que alguns discípulos piedosos herdaram de Lao Tsé em pessoa, e que eles consignaram em ideogramas após a desparição do Mestre.
Não se espere de mim uma paráfrase, cheia de exegesees inúteis e redundantes, dos preceitos de moral pura e ingênua do Kan-ing, nem das quatrocentas histórias infantis e benévolas que suscitaram o entusiaqsmo de Stanislas Julien. Estes textos, louváveis e claros, bastam perfeitamente a si mesmos, podem ser compreendidos à primeira leitura e, de resto, não merecem reter a atenção do pesquisador por muito tempo. Saudaremos de passagem os honestos sentimentos dos comentadores do Kan-ing, e saibamos guardar nossa fidelidade e nosso longo recolhimento aos únicos ensinamentos autênticos, cujo valor metafísico, além do assentimento de sábios idôneos, consagra sua verdade e sua origem altamente qualificada.
Aas Ações e Reações Concordantes – única tradução adequada do título do último livro deixado pelo próprio Lao Tsé – contém em germe e determinam toda a doutrina taoísta sobre aquilo que chamamos no Ocidente, e em linguagem cristá, o bem e o mal, e também sobre a responsabilidade humana, e as sanções que são aplicadas a esta responsabilidade. Para maiores explicações sobre o valor desta responsabilidade e sobre o consequente valor das sanções, encaminho o leitor para A Via Metafísica, onde o tema foi tratado copiosamente. Fiquemos aqui apenas com os efeitos diretos e mediatos dos atos emitidos pela humanidade dotada desta exígua respnsabilidade.
Notemos a seguir, para nossa grande satisfação, mas para o arrepio daqueles a quem as doutrinas do concretismo oposto confortam prática e materialmente, como o dogma taoísta concorda aqui, no fundo como nos meios – e talvez até na forma – com os ensinamentos secretos do Ocidente e com a mais pura Cabala. O Maniqueísmo, que só se tornou um erro lamentável por excesso de liberdade, e por ter tentado dar amplitude e personalidade ao inimigo que deveria combater e destruir, o Maniqueísmo deu seus frutos sombrios e involuntários; parece que, graças à imperfeição e à incompreensão humanas, o homem atimgiu um objetivo oposto ao que propunha seu criador; e não é menos verdade que foi desta compreensão invertida, que infestou a própria Igreja que a excomungara, que nasceram todas as obnubilações ocidentais de uma verdade em si tão simples. Mas, fora desta seita e daqueles que a destruiram sem perceber que pertenciam a ela também, a verdadeira doutrina permaneceu no meio de grupos iniciáticos, nos colégios secretos e nas associações de sábios piedosos e modestos; e ela permaneceu mesmo no fundo deste maniqueísmo superficial, do qual a Ordem do Templo foi acusada e pelo qual ela pagou tão caro. Em todos os lugares e todas as épocas do mundo, a verdade luminosa que iremos resumir foi compreendida e cuidadosamente guardada nos cérebros mais raros e elevados, porque devia permanecer desconhecida da multidão agnóstica. Esta chama, que alegrou os olhos de tudo o que é grande no universo, foi acesa pelos taoístas; e foi Lao Tsé o primeiro que fez jorrar, para fora dos mitos prometeicos, a luz com que brilha e ilumina esta chama. Isto é incontestável para todos os espíritos que pensam imparcialmente e sem paixões; e é preciso dar aqui ao sábio chinês aquilo que lhe pertence, ou seja a prioridade no conhecimento do Arcano pelo qual toda a Humanidade age, sofre, e, conforme sua ascese, teme a morte ou a deseja.
Os atos que os homens cometem dentro dos limites de sua responsabilidade, mas com a plena consciência humana, não podem ser considerados apenas como fatos materiais que trazem uma modificação temporária a uma ordem física essencialmente passaageira em si mesma.
Tampouco eles são meramente os efeitos reflexos da vontade humana, e capazes de produzir consequências morais e de causar confusões ou melhorias nas funções sociais ou nas relações entre os indivíduos.
Eles são também – e sobretudo – emissões de energia, esforços psíquicos, deslocamentos de forças nervosas e imateriais, mudanças de equilíbrio na estática e na dinâmica do mundo visível, desvios de corrente na aura da Humanidade. Estes fenômenos de nossa segunda natureza são tão inegáveis, tão certos em suas consequências, quanto os fenômenos de variações de peso, de densidade e de massa que podemos constatar em nossa natureza imediata; mas como eles são invisíveis – pelo menos genericamente – e estão situados em um meio no qual os cinco sentidos do homem só exercem um controle fugidio e bastante excepcional, esses fenômenos, que não se mostram de forma tangível à nossa atenção, são desconhecidos das massas, e são considerados inexistentes, ou quase, pelos mesmos que suspeitaram mais veementemente de sua existência.
Ora, são estes precisamente os fenômenos mais importantes que poderiam suscitar a ação humana: são os únicos que permanecem, e que, por um jogo de movimentos recíprocos e perfeitamente coordenados, têm uma existência perpétua; apenas eles possuem resultantes em todos os planos, ecos em todos os mundos, e apenas eles trazem em si este caráter de perenidade que, no fundo, deve ter normalmente tudo o que diz, pensa e age um homem, parcela infinitesimal, mas certa, deste Tudo indizível do qual a Eternidade é apenas uma dimensão entre outras.
Esta importância capital e preponderante dos movimentos psíquicos da ação é mais facilmente determinada do que se pode imaginar: com efeito, as consequências materiais do ato humano não podem ultrapassar a matéria, nem no tempo nem na extensão; elas estão assim expressamente limitadas ao próprio plano em que o ato foi cometido; e, por conseguinte, elas são nulas fora da perspectiva humana.
Da mesma forma, as cosequ~encias morais ou lógicas do ato voluntário naão pdem ultrapassar os limites dentro dos quais se move a vontade e onde a responsabilidade do autor é conhecida. Vimos n’A Via Metafísica de que  modo o próprio status da Humanidade atual restringe entre a vida e a morte, para o indivíduo, e entre o estado pré-humano e o pós-humano, para a espécie, a liberdade e a responsabilidade e, portanto, a sanção. As consequências reflexas da vontade humana têm os mesmos limites da estase, fora da qual esta vontade não se distingue mais, ou, em todo caso, não é mais a vontade tal como a conhecemos, e que nos determina como homens. E estas duas constatações, além de serem o fruto lógico de raciocínios perfeitamente claros e sem ambiguidades ou desvios possíveis, são naturais, pois, seja no plano material, seja no plano voluntário, o homem, ao agir, só influencia coisas que estão ao seu alcance de homem, ou que possuem sentimentos dentro do domínio humano.
Mas, se considerarmos o ato como dispensador de energia, e, por conseguinte, como emissor de vibrações nervosas na atmosfera psíquica, como propulsor de uma onda no oceano fluídico que nos banha e que banha o universo, veremos imediatamente que o movimento assim produzido, exercendo-se fora do plano humano, escapa ao nosso controle, ao nosso alcance e à nossa responsabilidade (ao menos enquanto a responsabilidade limitada do estado humano). E as características típicas destes movimentos devem ser lembradas: eles não são controláveis por nós, uma vez emitidos, eles escapam sempre à nossa influência, enfim, e, embora na medida das “intervenções na corrente” esta se diminua de intensidade até se tornar imperceptível, a série de movimentos não se deixa conhecer[33].

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Mas, sem nos atermos a considerar estas características, que podemos qualificar de exteriores, veremos, no fundo, o que são estes fenômenos, ou tentemos expressar claramente o pouco que podemos conceber deles. Pois, mesmo pretendendo permanecer claro e exato, não é possível ao homem conhecer a fundo nem analisar completamente fatos que provém dele, mas que, uma fez provindos dele, escapam ao domínio de suas realidades efetivas para não mais voltar, ou, ao menos, para voltar apenas depois de terem sofrido, de parte de agentes desconhecidos para nós, profundas modifições de grau e até de natureza.
O ato humano, considerado como fonte de uma energia que irradia para fora do germe voluntário que a engendrou, afeta tudo o que possui uma natureza como a sua, ou seja, tudo o que é Humanidade e tudo o que é energia. Isto é axiomático; e mesmo, se, por testemunhos grosseiros como os de que dispõe a natureza humana, uma tal correspondência passe desapercebida, não deixa por isso de ser verdade que ela sempre existe, e que sempre a emissão, mesmo infinitesimal, de uma energia qualquer, afetará de certo modo a energia universal, assim como o menor de todos os números afetará o maior de todos ao se somar a ele. Isto é de uma necessidade matamática, assim como lógica. Mas que sabemos então da energia universal que afeta de modo tão diferente os atos humanos? Nós a conhecemos de um modo tão genérico, que os espíritos concretos e empíricos chegam a contestar até mesmo sua existência. Não vamos insitir muito nisso: as últimas descobertas científicas – as ondas energéticas do éter, a energia radioativa material e invisível – demonstraram amplamente que vivemos em um caldo de força potencial universal, e que nós somos na realidade os sujeitos graças a quem a potencialidade energética se torna energia real, sob certas condições, em cada plano. Mas, ao demonstrar a existência desta plenipotência indefinida e indefinidamente prática, a ciência, ainda inteiramente experimental, não cnsegue medir nem o valor, nem o motor, nem as condições de ação, de aplicação e de transformação. Conhecemos, hoje em dia, a exist~encia e alguns raros dados do grande problema; sua discussão e resolução ainda não estão asseguradas.
É neste mundo energético, ainda totalmente desconhecido fora da afirmação de sua existência, para onde convergem, sem se preder ou aniquilar, todas as energias parciais emitidas pelas séries das ações humanas. Que sabemos nós sobre o modo como se comportam? E dos resultados produzidos pelos seus encontros e adições? Nada ainda; mas vamos considerá-las até sua entrada neste mundo misterioros, atanor central aonde todas as forças se elaboram; e tentemos, por um raciocínio análogo, captá-las à sua saída.

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Nós agimos, seja um simples gesto, seja uma ação mais complicada, e isto pouco importa; admitamos ser possível agir com uma ação-tipo, uma “unidade de ação”, ou seja uma ação que corresponde à cifra um em todos os planos em que se manifeste.
Este ato, fora do movimento material e da impressão moral consequente, desloca energias, utiliza forças, e isto de dois modos, e sempre dos mesmos doi smodos, qualquer que seja o ato. A vontade que determinou o ato é uma emissão de força, intelectual ou espiritual, como se queira (dizemos isto para evitar discussões laterais). Uma força, a menos que seja emitida no vazio, possui resultantes de mesma natureza, mas com valores e direções diferentes. O movimento voluntário é assim projetado e inscrito no plano das idéias e na aura específica criada, devido à série de suas vontades antecedentes, pelo ser humano em questão.
Por outro lado, a energia desenvolvida sob esta vontade para cometer a ação, não se gasta nesta ação; ela utiliza-se dela apenas. Após cometida a ação, a fim temporário para o q ual esta energia foi desenvolvida, e no qual ela foi empregada, desaparece, mas a energia emitida não desaparece. Pois, se pudéssemos, como faz o aborígene australiano com seu bumerangue, chamar de volta todas as energias que exteriorizamos, não conheceríamos nenhuma fadiga, nenhuma fome, nenhuma necessidade de sono; teriámos encontrado o moto perpétuo no plano psíquico, e é bem provável que, por outro lado, tivéssemos resolvido o problema da imortalidade do indivíduo.
Se as energias emitidas pelo indivíduo não retornam a ele, uma vez que elas não têm mais um ponto de aplicação fora (seja porque falharam, seja porque atingiram e preencheram seu objetivo), e como, por outro lado, não podemos conceber nem sua perda nem sua extinção, somos obrigados a concluir que, paralelamente à energia voluntária, elas irão inscrever-se no oceano das forças fluídicas que envolvem toda coisa criada, todo limite. Assim, cada uma das energias emitidas reune-se às energias exteriores, de mesmo sentido e natureza que ela. Mas a divergência de valor e de modo dessas massas energéticas, exteriores ao homem, manifesta-se imediatamente. Com efeito, os influxos sucessivos da vontade individual, ao serem projetados para fora de seu autor, permanecem vinculados à sua marca pessoal, e constituem com ele, fora dele, um foco distinto com uma aura própria, do qual ele é verdadeiramente o criador relativo e contingente, e que o liga ao seu composto humano, e que o afeta, que vive acima dele e tanto tempo quanto ele. O limite imposto à liberdade de cada indivíduo não lhe permite uma criação exterior mais completa e mais durável; mas a liberdade idêntica do indivíduo vizinho não permite ao primeiro ingerir, mesmo que queira, na criação similar de um outro. E é assim que as emissões viluntárias de cada composto humano formam auras energéticas pessoais, tão claramente distintas umas das outras quantos os próprios compostos humanos aos quais correpondem.
Ao contrário, os influxos sucessivos da energia psíquica, partindo de um elemento do composto humano inferior àquele que constitui a marca de sua personalidade, não se mantém pessoais, desde que saem do indivíduo, e destacados do objetivo para o qual o indivíduo os guiou. Pois se as energias da vontade humana não têm equivalente fora do homem, as energias psíquicas, saídas do homem e consideradas fora dele, possuem dinamismos similares a todos os dinamismos psíquicos, cujo éter vibra indefinidamente. Elas não possuem assim nenhuma marca distintiva, e vão fundir-se naturalmente no oceano fluídico universal, ou seja, vão somar-se ao total das energias dinâmicas condensadas em torno da raça humana, desde a emissão do primeiro ato do primeiro representante desta raça.
Guardemos portanto que cada ato humano possui duas vibrações, todas as duas contingentes: uma, sempre distinta, na alma voluntária de cada indivíduo, e a outra, sempre geral, na alma psíquica universal. A firme ligação de nosso espírito a estas duas concepções vai nos permitir entrar com segurança num domínio até aqui pouco explorado.

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A aura das vontades individuais do homem é a soma das projeções exteriores de todos os seus atos refletidos; ela é como uma atmosfera envolvente que abraça proximamente cada indivíduo, adapta-se a ele, recebe a impressão de todos os seus movimentos reflexos. Esta aura não existe senão junto com uma individualidade humana – este fragmento de nossa personalidade – e para ela; ela nasce, não com o indivíduo, mas com seu primeiro ato, que não coincide necessariamente com seu nascimento; ela cresce e se alimenta continuamente ao longo da vida humana, a cada inflexão refletida do indivíduo; ela lhe é própria, e não poderia adaptar-se  a nenhum outro indivíduo da espécie; ela só vive pelas emissões sucessivas da fonte que lhe deu existência, a vontade individual e suas consequentes ações; ela não poderia assim subsistir depois da desaparição de sua origem, assim como a chama, depois que se apaga a fonte.
Mas, se a contingência original desta aura lhe confere tais limitações de tempo e espaço, ela lhe fornece também certas condições de ressonância e de retroação. A vontade do indivíduo, única geratriz desta aura particular, constitui nele a soma imaterial de seus esforços e de suas direções; ela gera nele uma criação secundária, que é sua própria e exclusiva obra, e da qual ela é direta e completamente responsável. Esta aura, com suas limitações, é a imagem própria e a exata representação das responsabilidades decorrentes da relativa independência humana. Ela veste o indivíduo com uma manta dinâmica mais ou menos densa, mais ou menos benéfica, segundo a intensidade e as direções das ações voluntárias de onde ela saiu e da qual todos os dias ela se desprende e aumenta. Sobre este plano da energia mental, ela é similar à aura nervosa que se move, segundo outras leis, em nossa atmosfera psíquica, e que as antigas imagens representam, ao redor do corpo e especialmente da cabeça, como uma nuvem envolvente e luminosa. Guardemos preciosamente esta situação: ela esclerece o mais profundo e mais repetido dos preceitos do Taoísmo.
Por outro lado, a aura psíquica universal é o lugar aonde se encontram, se penetram, se influenciam mutuamente todas as energuas fluídicas imateriais ou pseudo-imateriais (pois ninguém pode dizer aonde começa a matéria, ou mesmo se ela começa e acaba em algum ponto) [34]provindas das ações de todos os tipos emitidas por todas as fontes concebíveis (razões humanas, ações cósmicas ou mesmo químicas, movimentos animais, etc.). Esta atmosfera energética não é no entanto constituída por todas essas energias diferentes somadas; ela não é um total, nem uma entidade; ela é um lugar (ao modo dos lugares geométricos). Ela é impessoal; ela é a imagem inferior do Grande Todo energético que o Ser desdobra no ato e no movimento universais[35]. Receptáculo de todas as forças, a menor delas que aí penetrar altera as disposições e os movimentos daquelas que aí estão; e delas ela recebe, em reação e pressão, o equivalente do que ela traz em ações e impressões. Mas aqui (e o sentimos profundamente no caráter cósmico e universal do meio) a vontade humana não vale nada; a independência e a ação humanas são nulas; o valor e a responsabilidade do ato humano são iguais a zero. O fenômeno da energia cósmica prossegue rigidamente, logicamente, inevitavelmente, e aquele que, de um outro mundo ou do fundo de uma individualidade, a desencadeou, ignora não apenas as condições, mas a própria existência desta emissão, necessária, mas anônima, e não é nem seu autor nem testemunha. A coisa humana não pode emergir do domínio humano, nem revestir-se de qualidades que não sejam da natureza humana. O que está além da nossa inteligência e da nossa condição, está acima de nossa intenção e de nosso mérito. Não há como se apoiar aí, principalmente no mundo ocidental, onde a vaidade nos faz ver nosso valor e nossa responsabilidade como iguais ao valor e a vontade do próprio Infinito.

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No estudo, tão complexo e delicado, das energias deslocadas ou influenciadas pelo ato humano, chegamos a este momento em que a força misteriosa assim desenvolvida foi registrada no foco psíquico universal, no momento em que esta onda, sem se confundir nem se aniquilar, reuniu-se ao oceano que banha o universo. Como faz um corpo que cai na água, ou um rio com movimento próprio que atira-se no oceano dotado do movimento planetário das marés, esta energia provoca ondulações que se propagam em todas as direções. Mas uma ondulação que se propaga gera uma ação de repercussão, necessária a todo tipo de equilíbrio, seja material, psíquico ou intelectual. É por isso que a vibração ondulatória, após haver impressionado todo o oceano psíquico, volta ao lugar onde nasceu, com um valor e uma direção novas, sobre os quais, como humanos, não possuimos dados, nem certos, nem sequer concebíveis, pois as influências reencontradas pela ondulação sobre o oceano psíquico estão acima do domínio humano, e fazem parte de um conjunto cósmico cujos elementos vitais ignoramos.
Até aqui não temos senão elementos de raciocício e de analogia; não temos nenhum elemento de experiência ou de observação, e é preciso nos contentarmos com o que temos, para tentar explicar o que vemos: não podemos portanto tirar aqui, neste domínio aonde impera ainda a contingência, senão conclusões relativas, contingentes e de uma verdade limitada e reduzida, enquanto que, no mundo das abstrações metafísicas, podíamos extrair conclusões firmes e clarasm cujas qualidades emprestávamos da própria perfeição de seu objeto[36].
Seja como for, a energia desenvolvida pelo ato humano e levada à extremidade de sua ação (kan), evolui, por um mecanismo cósmico obrigatório e geral, ao qual nada do que existe pode subtrair-se, porque este mecanismo é a própria substância da existência; e este retorno da energia constitui imediatamente a reação cósmica (ing) da ação Humana.
Esta reação é evidentemente da mesma natureza que a ondulação de onde ela sai; ela tem as mesmas características; os movimentos cósmicos que ela desencadeia podem ser independentes do homem, de sua vontade, de seu mérito; ele os ignora; eles lhe são indiferentes, e ele lhes é indiferente. Onda impessoal do oceano universal, ela só interessa ao homem no instante e no ponto em que, retornando similar e paralelamente, ela toca novamente a aura humana de onde ela partiu. Nós só podemos estudar este momento e este ponto da reação; mas saibamos que este momento e este ponto são afetados da mesma forma e com a mesma indiferença que todos os outros pontos e todos os outros momentos do curso desta reação cósmica. E, neste ponto e neste instante, essa reação muda de natureza: ela pede seu caráter universal no mesmo lugar aonde ela o adquiriu, para revestir esta forma de ação individual, pela qual, e apenas pela qual, ela pode entrar e agir nas auras humanas. Ao perder esta característica impessoal, ela retoma as características da contingência individual, que ela havia abandonado ao deixar esta contingência, e que ela reencontra ao se reintegrar aí.
Vamos reentrar, junto com esta reação (ing) no tempo e no espaço humanos. Ela fez, durante esse período, o caminho identicamente inverso daquele que o kan havia seguido na aura humana, no momento em que ele saiu da concha energética da vontade. E assim o ing vem, em reação, afetar o indivíduo humano com uma potência proporcional ao valor da emissão primitiva do kan; mas, para afetar um composto, uma energia deve revestir-se, senão essencialmente ao menos temporariamente, das qualidades que o composto a ser tocado possa sentir e perceber, possa apreciar em sua natureza, e possa controlar com seu juízo. É por isso que, neste momento de regresso ao humano, o kan empresta as qualidades humanas com as quais ele pode apresentar-se efetivamente ao seu sujeito. Estas qualidades são da espécie material e da espécie sentimental, para que o resultado se produza sobre todo o composto humano[37].
Podemos conceber a partir daí, como uma necessidade lógica, que, durante sua influência em retorno à humanidade, o ing seja temporário e contingente, individual e afetivo. Ele atinge o homem, não nos elementos superiores, mas no composto característico da humanidade, e ele o agita tangível e materialmente. E, como já estabelecemos que, na aura humana, a responsabilidade do ato voluntário subsiste inteira e exclusiva, saberemos agora, como um corolário fatal,  que o ing se manifesta sobre o plano humano, ao longo da respnsabilidade humana, como uma sanção, mas como uma sanção de valor correspondente à responsabilidade, e no interior dos mesmos limites.
Ing, conforme o caso, manifesta-se assim como recompensa ou como pena, e esta manifestação, que lhe é esterior, não afeta senão o objerto, e permanece independente do sujeito ing, cujo reflexo é sempre parecido consigo mesmo, quaisquer que sejam as consequências para o homem. É aqui que jaz, em suma, o grande segredo da viagem de kan e do retorno de ing. Não existe, em todo este mecanismo metafísico, uma vontade divina que reenvia ao homem uma recompensa ou uma punição; existe uma potência cósmica que se espalha, é reabsorvida, e depois repercute independentemente do valor moral do ato voluntário humano[38]; e é o movimento particular da aura humana que aplica e determina como sanção os efeitos específicos desta potência. Assim, o que é humano permanece humano, afeta apenas o humano, pela correspondência lógica das ações  e reações. Parece insustentável daqui por diante afirmar que o finitopossa afetar o Infinito, e que o relativo possa determinar um estado no Absoluto; sobretudo parece monstruoso – chamemos as coisas pelo seu nome -  que o homem, capaz de desejar, mas incapaz de agir fora do plano humano, cause, por sua agitação humana, uma contrariedade ao Deus Abstrato, e que este Deus abstrato conceba a partir desta contrariedade uma satisfação ou uma cólera infinitas, geradoras de sanções eternas aplicadas a este homem temporário e à sua agitação ilusória.
Já nos manifestamos sobre esta monstruosidade; mas nunca é demais insistir, pois, pregada por sacerdotes ardentes por poder e dinheiro, ela aterrorizou milhões de seres, e deteve o impulso evolutivo de uma das mais belas raças humanas com o tolo temor da morte e as piores angústias em relação ao Além.

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Debrucemo-nos rapidamente sobre duas consequências imediatas do dogma taoísta, que trarão uma evidência absoluta a dois problemas delicados: o problema do hábito humano (responsabilidade repetida) e do hábito depois do estado humano[39] – ou de qualquer outro estado do ciclo – e o problema irritante da justiça social no mundo humano, ou mesmo no universo visível ou capaz de ser visível.
Está claro que, se quiséssemos estudar todas estas questões profundas e complexas em detalhe, seria preciso todo um volume para cada; mas nós seríamos levados a nos perder em comparações, exegeses e polêmicas, procedimentos que não têm nada a ver com nosso método. Este consiste em expor, o mais brevemente possível, aquilo que é o núcleo da Tradição primordial, e que portanto tem todas as chances de ser verdade, se é que a verdade pode ser concebida por cérebros humanos. Mas nós achamos que esta verdade se mostrará suficientemente bela por si mesma, àqueles cujos olhos merecerem sua contemplação, para que tenhamos que articular e detalhar suas perfeições maravilhosas. Deixaremos o ardor da propaganda àqueles que acham que devem ajudar uma doutrina insuficiente em si mesma a consquistar a alma dos adeptos, e sobretudo àqueles que têm um interesse pessoal em fazer prosélitos.
Portanto, quando as questões, por mais áridas que sejam, por mais controversas, mais obscuras, possam, em nossa opinião, ser respondidas com uma só palavra, ninguém deve se espantar de ver aqui escrita esta palavra, sem que ela seja seguida de nehuma outra mais.
A energia emitida por todas as ações humanas é de mesma natureza, mas a energia emitida por uma ação humana determinada é de um grau, um valor, um “fermento” específico; bem entendido, estas qualidades são particulares à aura da humanidade, aí permanecem e não podem afetar nada que esteja fora. Assim, no interior da aura humana, poderíamos, pela qualidade e pelo valor vibratório da energia, discernir qual foi o seu ato gerador. Quando, depois de haver cumprido sua viagem pela aura universal, esta energia entra, pelo choque de retorno, de volta na aura individual, ela se reveste das qualidades que ela possuía antes de sair dela; e, provida destas qualidades específicas, ela vem atingir o indivíduo, que foi sua causa mediata em função do ato gerador. E, ao atingir o indivíduo, ela o atinge nas qualidades correpondentes às suas próprias, ou seja, nas qualidades, nos sentimentos, nas paixões, nos móveis geradores do ato que desencadeou todo o movimento.
Vemos aqui a consequência. Atingido nas qualidades, nos planos que geraram uma ação, por uma energia nascida desta mesma ação, o homem é fatalmente levado a agir como agira antes; ele é solicitado a repetir a ação primitiva. E, se ele a repete, uma nova série de vibrações análogas, mas de valor aumentado pela repetição, recomeça a viagem de ida e volta que já descrevemos, e volta a atingir o indivíduo, do mesmo modo porém com mais força, e o incita, mais ardentemente ainda, a uma nova repetição. O mesmo ato torna-se cada vez mais fácil, natural, psiquicamente inevitável; ele acaba por agir sobre o inconsciente. Esta é a teoria mecânica do hábito, do hábito inveterado, e, como diz profundamente o provérbio, da segunda natureza.

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Levemos o mesmo raciocínio a um plano mais elevado. Emissor de vibrações, receptor de vibrações análogas, todas providas de qualidades humanas no interior da aura individual,, um belo dia, neste trabalho normal e perpétuo, o homem morre. Vale dizer que ele deixa o plano humano, e que sua aura humana se dissolve, na medida em que era afetada por qualidades humanas.
No plano superior aonde foi projetado pela dissociação dos elementos humanos, o novo ser que é o homem não traz consigo nada do homem anterior. Verifiquemos rapidamente esta proposição, que seria axiomática se os Ocidentais não tivessem voluntariamente deixado obnubilar seus cérebros para estas questões: os elementos do antigo composto humano, que se acham sobre o novo plano, sãoos elementos normais deste plano, e eram portanto os elementos superiores do plano humano; os elementos normais e característicos do plano humano não podem sair dele, ou não seriam característicos. Ademais, o novo plano não pode ser superior ao plano humano se não for com a condição de não possuir os elementos normais deste último. Admitindo-se isto – que não passa de bom senso – entenderemos que são os elementos característicos do humano que emitem o ato, e, por conseguinte, a energia na aura humana; pois, se a energia fosse emitida por outros elementos, ela não teria as qualidades específicas para se inscrever na aura indicidual. Portanto, tudo o que se inscreve na aura individual sai de elementos caracteristicamente humanos, e todas as qualidades que estão ligadas a ela subsistem exclusivamente nela. Assim, nem a responsabilidade, qualquer que seja seu valor, nem a sanção, qualquer que seja seu signo, seguem os elementos superiores do composto humano após a dissociação. Isto é pura matemática. O homem novo não nasce para sua existência subsequente com uma carga de méritos e deméritos.
Ao contrário, as vibrações psíquicas, impessoais e indiferentes, mas absolutamente reais, que, depois de sua passagem pela aura individual, atravessam o oceano universal, estas vibrações retornam à sua emissão de origem, como dissemos mais acima: o novo homem reencontra assim, em seu estado superior, as vibrações que ele emitiu antes, mas depuradas, despersonalizadas, como ele mesmo, e próprias apenas para incvitar nele o ardor pela Vida[40]. É o conjunto destas vibrações universais, reabsorvidas num composto digno delas, que constitui, para o ser que está nascendo em um novo estado, o potencial de sua vontade, de sua inteligência e de seus sentimentos. Esta é uma nova consequência da teoria das repetições: é o hábito, despersonalizado e transfigurado. Mas este não tem nada a ver com o hábito humano.
É este potencial que as religiões ocidentais, sempre amantes das fórmulas pejorativas, chamam de “pecado original”. Fora o ridículo odioso de pretender tornar o novo ser responsável por este potencial, ao qual ninguém pode escapar,, convém lembrar que este potencial não é nem uma virtude, nem um pecado; foi gratuitamente que os Cristãos fizeram disto um peso vergonhoso para quem nasce num mundo qualquer; e é apenas por sua exclusiva vontade, e quando ele tiver inteira posse dela, que o ser em questão poderá apor o sinal + ou – diante deste potencial energético, segundo o uso que ele fizer disto na existência nova em que ele acabou de ingressar.

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Enfim, consideremos, sob esta luz – que pode parecer nova aos nossos olhos ocidentais, mas que não é a primeira vez que brilha diante dos homens – a questão da justiça social e da justiça universal. Mas, ao contrário dos legisladores, façamo-lo com brevidade, e indicando suscintamente as fases destas evoluções particulares. Já afirmamos a impossibilidade metafísica, matemática e até moral, de uma sanção qualquer aplicada aos atos humanos para além da vida humana, e a uma outra entidade que nãoo composto humano. Portanto, se existem méritos e deméritos, se existe responsabilidade e sanção, se, em uma palavra, a reação concordante deve manifestar-se em alegria ou pena, isto acontece exclusivamente sobre o plano humano; é assim ao pé da letra que “cada ato traz em si sua recompensa ou seu castigo”[41]. É forçoso assim que seja no plano em que o ato foi cometido, que a sanção atingirá o autor do ato. Como conciliar esta proposição, daqui pra frente necessária, com a nosa convicção de que “a justiça não é deste mundo”? A resposta a esta objeção infantil é ifinitamente simples.
Se considerarmos um ato qualquer em si mesmo, independentemente de tudo o que o precedeu e de tudo o que se seguirá a ele, estaremos concebendo-o de modo diferente daquilo que ele é  na realidade, e atribuímos às suas qualidades valores absolutos. A partir daí, exigimos, no seu lugar, uma sanção igualmente absoluta e correspondente apenas a este ato. Ora, este ponto de vista é absolutamente falso. E, sem adentrarmos na lei das séries, que veremos num próximo estudo, devemos saber – e a cada instante nos lembrarmos desta verdade que percebemos confusamente – que nenhum ato éindependente da série precedente e da série subsequente, que seus elementos de causalidade e de responsabilidade possuem raízes múltiplas e longínquas; em consequência, a sanção que lhe é aplicada imediatamente é solidária, não apenas das sanções antecedentes e subsequentes, mas de todas as reações que não são sanções; se a sanção que parece aplicar-se a um ato parece justa aos nossos olhos diante dete ato isolado, ela será precisamente injusta, porque não existe ato isolado; a injustiça relativa é assim necessária; e é toda a série de injustiças sucessivas que constitui na realidade a porção humanamente apreciável da justiça universal.
Todo o problema social inclui-se nisto; e os mais famosos sonhadores e os piores retóricos da anarquia jamais conseguirão obter, no plano contingente da humanidade, a resolução geral e definitiva da totalidade de uma evolução cíclica.
Vamos sintetizar nosso raciocínio: ele aplicar-se-á também à teoria da justiça universal. A justiça social, por injusta que seja, é uma parte integrante da justiça universal, assim como a justiça individual é uma parte da justiça social. Assim, o homem é um ator do drama da justiça universal; e ele a afeta e é afetado por ela fora de sua qualidade de homem. Mas lembremo-nos de duas coisas: 1) as energias da justiça universal que afetam todos os seres fora do composto humano, não são sanções, mas apenas influências psíquicas ou cósmicas indiferentes ao estado humano e ao que se passa nele; e  2) o ciclo evolutivo é ascensional, vale dizer, qualquer que seja a soma das ações humanas, quaisquer que sejam as repercussões desttes atos no oceano universal, o ser humano sobe aperfeiçoando-se através de todas as suas dissociações, e atinge inevitavelmente a desaparição do limite, ou, precisamente, a perfeição.
Nem na justiça individual, nem na justiça social, nem na universal, o ser que flui na corrente das formas é satisfeito. Pois aonde há justiça, há também injustiça; e a idéia de justiça não se concebe senão com e pelo seu contrário e complementar. Então, por mais que o ser busque a justiça e por mais que acredite tê-la encontrado, ele não a encontrou; pois ela não estará aonde ele se acha; e ele só a alcançará quando não mais a quiser, nem mais pensar nela, porque neste exato momento, ele será, acima de todas as qualidades e de todos os limites, e que ISTO apenas é a Justiça Infinita.

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Terminaremos aqui estas considerações, que poderíamos prosseguir, até com certo interesse, por centenas de páginas e raciocínios. Mas seguiremos humildemente o exemplo dos mestres ilustes, apenas indicando o caminho da verdade, e deixando a cada um o cuidado e o mérito essencial de tentar alcançá-la. Acreditamos que, se for dada atenção suficiente aos apoftegmas que apresentaremos a seguir, será possível extrair deles todo o fruto que se pode esperar de um texto a um tempo prático e profundo. Veremos sem dificuldade, entre as ingenuidades morais já mencionadas, os símbolos metafísicos nos quais se esconde o pensamento do Mestre, e como devem ser interpretados os “obstáculos da existência” mencionados diversas vezes, e de que “existência” se trata. Não sobrecarregaremos de glosas fáceis este ensinamento, já bastante esclarecido pelo que precede. Daremos, assim, sem interrupção, o texto do Livro das Ações e Reações Concordantes, tal como Lao Tsé o concebeu, e tal como o parafrasearam os discípulos piedosos e os filósofos de todas as escolas.



[1]              Ou seja, 604 a.C.
[2]              Corresponde à província de Koueifou, vice-reinio de Honan, 34O de latitude e 0o54’ de longitude Oeste de Beijing (Pequim).
[3]              Lao Tsé: velho doutor.
[4]              Vale de Hankou, distrito de Lingpao: 30o42’ lat. e 108o18’ long.
[5]              Note-se que Ko Hong não está falando de si mesmo aqui.
[6]              Os Christos, ou “homens feitos Deus” da Gnose primitiva.
[7]              É a esta época que remonta a famosa inscrição de Siganfou, que só foi descoberta depois de mil anos (1626), na qual o zelo dos missionários cristãos quis ver uma alusão ao Cristianismo, enquanto que ela é na verdade um canto de honra a Lao Tsé.
[8]              Compreendendo a Pérsia, a Assíria e a Moscóvia, que o célebre vice-rei Argoun governava em nome de Kubilai, tendo inclusive mantido correspondência com Filipe o Belo, rei de França.
[9]              Devemos colocar nesta época (1395) a eclosão dos Taosse, seita imitadora do Taoísmo, em que taumaturgias e pseudo-milagres serviam de meio de existência a milhares de falsos sacerdotes, cuja audácia chegou a oferecer ao próprio imperador Hung Wou a “bebida da imortalidade”>
[10]             A Via Metafísica, cap. III.
[11]             A Via Metafísica, cps. III e IV.
[12]             Yi King, I, Comentário de Tsheng Tsé.
[13]             Yi King, VII,Comentário de Tcheng Tsé.
[14]             Ou melhor “das Ações e Reações concordantes”.
[15]             Le livre de la Voie et la ligne droite, trad. A. Ular, Paris, Revue blanche, 1902.
[16]             Le Tao de Laotseu, trad. Matgioi, Paris, 1894; Le Te de Laotseu, trad. Matgioi, Paris, 1895.
[17]             Aqueles que confundem estes reflexos coma Idéia única, e que os vêem como duas Idéias iguais, são precisamente aqueles que, no Ocidente, são chamados de “maniqueus”.
[18]                    O capítulo I do Tao é a origem do mundo cósmico, e o caítulo II é a origem do mundo da consciência.
[19]             Cf. A Via Metafísica, cap. VIII.
[20]             Na realidade, a Raiz é, não apenas a origem, mas a Vontade original.
[21]             É neste texto, que é a característica metafísica do Taoísmo, que Abel Rémusat atribuiu a Lao Tsé o conhecimento do nome de Jeová; o ausente, em chinês, se diz I; o sutil, se diz Hi; o vazio, Wei; I Hi Wei, IHV, Jeová. Na Restauração, estas fantasias são escritas a sério, e no ano seguinte a tão bela descoberta, Rémusat foi nomeado membro do Instituto.
[22]             O “Grande Chefe” do texto literal é tanto o Céu quanto os soberanos políticos.
[23]             Hoan é o título dado aos antigos generalíssimos, nomeados temporariamente para reprimir as revoltas, e que não eram muito estimados, devido à sua pouca ciência.
[24]             A coisa inominável, o “Neutro” anterior a toda posição de gênero.
[25]                    Devemos frisar que o “Imperador” do Taoismo é a mesma coisa que o “Homem Universal” da Cabala.
[26]             Desprovidos de violência e de manifestações; é por isso que o texto diz que quem sabe fechar não sabe abrir e que quem acorrenta não sabe libertar.
[27]             Por oposição ao infinito matemático, além do qual o cone evolui em superfícies inversas.
[28]             Ver “As despedidas do Sábio”, Apêndice II deste livro.
[29]             Os homens violentos são comparados aos cavalos, cujo caracter está no texto.
[30]             O pequeno país tem o menor número de habitantes possível: não mais do que oito, a cifra dos trigramas primitivos; nunca pode existir menos do que oito caracteres de transcrição gráfica. Oito é assim o símbolo do numeral mínimo.
[31]             Cf. os capítulos do Tao onde é demonstrado que os governantes que melhor se conformam à Via são precisamente aqueles que agem menos, e que fazem o mínimo que lhes exige seu ofício de governantes.
[32]             O último capítulo consiste numa série de apoftegmas e fórmulas gerais, formando um resumo mnemotécnico, mas sem trazer nada de novo à doutrina.
[33]             Lembremo-nos de que não temos outros termos, para falarmos das ondas psíquicas, do que aqueles que se aplicam às forças elétricas e às ondas hertzianas.
[34]             Desde que não se reserve este termo, como faziam os antigos, apenas ao que caía sob o domínio dos cinco sentidos.
[35]             Nós só mencionamos aqui o estudo de dois focos de energia e de forças; lembremo-nos que o dualismo, em qualquer grau ou forma, é estranho às concepções tadicionais do Extremo-Oriente. A tradição primordial nos mostra um terceiro oceano, ou oceano nirvânico; de todas as coisas, não existem aí nem ações nem reações; não existe influência da vontnade humana,  nem, anteriormente, movimentos cósmicos. E esta determinação essencial mostra logo porque o autor do Kan-ing não trata deste terceiro foco. Nenhum movimento do universo está refletido aí; mas o universo, à força de desejos intensos, poderá atingi-lo e fundir-se nele; e é aí que ele encontra sua plenitude, no absoluto conhecimento de si mesmo e na possessão da Energia Essencial, que é o Repouso Refletido, ou, metafisicamente, o Não-Agir, o Não-Ser consciente. É interessante, embora não seja nosso propósito aqui, verificar as concordâncias que a Tradição primordial oferece às teorias da Cabala. Reconheceremos facilmente, naquilo que foi dito, o mundo incluído na espiral da Grande Serpente, a Sepher Ietzirah, o Tesouro de Luz, etc., todas as entidades intelectuais nas quais o Extrem0-Oriente, o Oriente e o Ocidente se encontram, se interpenetram e se apoiam.
[36]             Não vamos insistir nisto. Mas que profundo objeto de reflexão, este pelo qual nós sabemos e sentimos que podemos abordar a verdade absoluta com aquilo que há em nós de eterno e divino, enquanto que sentimos e consentimos que os limites, dos quais somos feitos apesar de tudo, permanecem para nós como obstáculos à compreensão destes próprios limites. E que constatação imprevista a de que, malgrado nossa imperfeição superficial, estamos mais abertos ao absoluto do que ao relativo!
[37]             Lembremos novamente que não estamos tratando aqui dos elementos divinos do homem, que não poderiam, não dizemos nem mover-se, mas sequer contentarem-se com menos do que a comunhão com o oceano nirvânico, e que não é deste oceano que tratamos aqui, porque, como já dissemos, ele não está submetido ao fluxo do kan nem ao influxo do ing.
[38]             Pois como uma força cósmica ou o potencial metafísico poderiam influenciar a moral humana?
[39]             O karma dos Hindus, o pecado original dos Cristãos.
[40]             Por “vida” entendemos aqui o método de ser do plano superior ao qual o homem sobe depois de sua morte.
[41]             “Aqui se faz, aqui se paga” (N.T.).

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