INTRODUÇÃO
Em nosso estudo precedente sobre O Simbolismo da Cruz, expusemos, segundo
os dados fornecidos por diferentes doutrinas tradicionais, uma representação
geométrica do ser que é inteiramente baseada sobre a teoria metafísica dos
estados múltiplos. O presente volume será como que um complemento daquele, pois
as indicações que demos não foram suficientes para salientar todo o alcance
desta teoria, que deve ser considerada como fundamental; tivemos então, com
efeito, que nos limitar apenas ao que dissesse respeito diretamente ao objetivo
que tínhamos. É por isso que, deixando de lado a representação simbólica que
descrevemos, ou ao menos só a mencionando incidentalmente quando cabível,
consagraremos inteiramente este novo trabalho a um maior desenvolvimento desta
teoria, seja, e antes de mais nada, em seu próprio princípio, seja em algumas
de suas aplicações, no que concerne mais particularmente o ser encarado sob seu
aspecto humano.
No que diz respeito a este último ponto, não é inútil
lembrar desde já que o fato de nos determos em considerações desta ordem não
implica absolutamente que o estado humano ocupe um posto privilegiado dentro do
conjunto da Existência universal, ou que ele seja metafisicamente distinto, em
relação aos demais estados, pela posse de uma prerrogativa qualquer. Na
realidade, este estado humano não passa de um estado de manifestação como
qualquer outro, e dentre uma indefinidade de outros; ele se situa, em meio à
hierarquia dos graus da Existência, no lugar que lhe é assinalado por sua própria
natureza, ou seja, pelo caráter limitativo das condições que o definem, e este
lugar não lhe confere nem superioridade nem inferioridade absolutas. Se devemos
ter em vista particularmente este estado, é assim unicamente porque, sendo
aquele em que nos encontramos de fato, ele adquire para nós, mas apenas para
nós, uma importância especial; trata-se de um ponto de vista relativo e
contingente, o ponto de vista dos indivíduos que somos, em nosso presente modo
de manifestação. É por isso que, notadamente, quando falamos de estados
superiores e de estados inferiores, é sempre em relação ao estado humano tomado
como termo de comparação que operamos esta divisão hierárquica, pois não há
outro que esteja ao nosso alcance enquanto indivíduos; é preciso não esquecer
que toda expressão, sendo o revestimento de algo por uma forma, efetua-se
necessariamente em modo individual, de tal modo que, se quisermos falar de seja
lá o que for, mesmo das verdades de ordem puramente metafísica, só podemos
fazê-lo descendo a uma outra ordem, essencialmente relativa e limitada, para
traduzi-las na linguagem das individualidades humanas. É fácil compreender as
precauções e reservas que impõe a inevitável imperfeição desta linguagem, tão
inadequada àquilo que se quer expressar então: há aí uma desproporção evidente,
e podemos aliás dizer o mesmo de toda representação formal, qualquer que seja,
mesmo as representações propriamente simbólicas, incomparavelmente menos
limitadas do que a linguagem comum, e portanto mais aptas à comunicação das
verdades transcendentes – donde ser emprego constante em todo ensinamento que
possua um caráter verdadeiramente “iniciático” e tradicional[1].
É por isso que, como já assinalamos, convém, para não alterar a verdade por uma
exposição parcial, restritiva ou sistematizada, reservar sempre a parte do
inexprimível, ou seja daquilo que não poderia ser expresso por nenhuma forma, e
que, metafisicamente, é na realidade o que mais importa, podemos mesmo dizer o
essencial.
Agora, se pretendemos, sempre no que concerne à
consideração do estado humano, ligar o ponto de vista individual ao ponto de
vista metafísico, como devemos fazer quando se trata de “ciência sagrada” e não
apenas de saber “profano”, diremos o seguinte: a realização do ser total pode
cumprir-se a partir de não importa qual estado tomado como base e como ponto de
partida, em razão mesmo da equivalência de todos os modos de existência
contingentes em relação ao Absoluto; ela pode portanto cumprir-se a partir do
estado humano como de qualquer outro, e mesmo, como já dissemos, a partir de
qualquer modalidade deste estado, o que equivale a dizer que ela é notadamente
possível para o homem corporal e terrestre, pensem o que quiserem os
Ocidentais, induzidos em erro quanto à importância que se deve atribuir à “corporeidade”,
pela extraordinária insuficiência de suas concepções quanto à constituição do
ser humano[2].
Como este estado é aquele no qual nos encontramos atualmente, é daí que devemos
efetivamente partir se quisermos atingir a realização metafísica, em qualquer
grau, e esta é a razão essencial por que este caso será visto por nós mais
especificamente; como já desenvolvemos estas considerações precedentemente, não
insistiremos nelas agora, tanto mais que nossa exposição permitirá
compreendê-las melhor[3].
Por outro lado, para descartar toda confusão
possível, devemos nos lembrar desde logo que, quando falamos de estados
múltiplos do ser, trata-se, não de uma multiplicidade numérica, ou mais
genericamente quantitativa, mas antes de uma multiplicidade de ordem
“transcendental” ou verdadeiramente universal, aplicável a todos os domínios
que constituem os diferentes “mundos” ou graus da Existência, considerados
separadamente ou em seu conjunto, portanto fora e além do domínio particular do
número e mesmo da quantidade sob todos os seus modos. De fato, a quantidade, e
com mais razão o número que não é mais do que um dos seus modos, o da
quantidade descontínua, é apenas uma das condições determinantes de certos
estados, dentre os quais o nosso; ela não poderia assim ser transportada a
outros estados, e menos ainda aplicada ao conjunto dos estados, que escapa
evidentemente a uma tal determinação. É por isso que, quando falamos a este
respeito de uma multitude indefinida, devemos sempre ter o cuidado de lembrar
que a indefinidade de que se trata ultrapassa qualquer número, e também tudo
aquilo a que a quantidade pode ser mais ou menos aplicável, como a indefinidade
espacial ou temporal, que só cabe nas condições próprias do nosso mundo[4].
Uma outra observação se impõe ainda, a respeito do
emprego que fazemos da própria palavra “ser”, que, com todo rigor, não pode
mais aplicar-se quando se trata de certos estados de não-manifestação de que
falaremos, e que estão além do grau do Ser puro. Somos entretanto obrigados, em
razão da constituição mesma da linguagem humana, a conservar este termo na
falta de outro mais adequado, mas atribuindo-lhe então um valor puramente
analógico e simbólico, sem o que nos seria impossível falar de qualquer modo
que fosse sobre aquilo de que se trata; e este é um exemplo claro destas
insuficiências de linguagem a que sempre aludimos. É assim que poderemos, como
já fizemos, continuar a falar do ser total como sendo ao mesmo tempo
manifestado em alguns de seus estados e não-manifestado em outros, sem que isto
implique que, para estes últimos, devamos nos deter na consideração daquilo que
corresponde ao grau que é propriamente o do Ser[5].
Lembraremos, a propósito, que o fato de deter-se no
Ser e nada enxergar além, como se ele fosse uma espécie de princípio supremo, o
mais universal de todos, é um dos traços característicos de certas concepções
ocidentais da antiguidade e da idade média, que, apesar de conter
incontestavelmente uma parte de metafísica que já não se encontra nas
concepções modernas, permanecem incompletas sob este aspecto, além de se
apresentarem como teorias estabelecidas por elas próprias, e não com vistas a
uma realização efetiva correspondente. Não se trata de dizer, certamente, que
nunca houve nada parecido no Ocidente; aqui, falamos apenas daquilo que é mais
geralmente conhecido, e de que alguns, mesmo fazendo louváveis esforços para
reagir contra a negação moderna, exageram o valor e o alcance, sem se dar conta
de que trata-se aí de pontos de vista sobretudo exteriores, e que, nas
civilizações onde, como é o caso, uma espécie de ruptura se estabeleceu entre
duas ordens de ensinamento que se superpõem sem jamais se opor, o “exoterismo”
necessita do “esoterismo” como seu complemento necessário. A partir do momento
em que este “esoterismo” desaparece, a civilização, não se ligando mais aos
princípios superiores por nenhum laço efetivo, não tarda a perder todo caráter
tradicional, pois os elementos desta ordem que aí subsistem ainda são
comparáveis a um corpo abandonado pelo espírito, e, por conseguinte, impotentes
daí para diante para constituir qualquer coisa mais do que uma sorte de
formalismo vazio; é isto, exatamente, que aconteceu com o mundo ocidental
moderno[6].
Com estas poucas explicações, pensamos poder entrar
em nosso objeto, sem mais preliminares que as considerações que já fizemos em
outras ocasiões nos dispensam em grande parte. Não nos é possível, com efeito,
voltar indefinidamente sobre o que já dissemos em outras obras, o que seria
ainda tempo perdido; e, se certas repetições são inevitáveis, devemos nos
esforçar para reduzi-las ao estritamente necessário para a compreensão do que
nos propomos expor agora, para não ter que enviar o leitor, cada vez, a tal ou
qual parte de nosso trabalhos, onde ele poderá encontrar indicações
complementares ou desenvolvimentos mais amplos sobre as questões que tivermos
que rever. O que dificulta a exposição, é que todas essas questões são mais ou
menos ligadas umas às outras, e que se deve mostrar estas ligações sempre que
possível, mas evitando-se toda e qualquer aparência de “sistematização”, vale
dizer de limitação incompatível com a própria natureza da doutrina metafísica,
que ao contrário deve abrir, a quem for capaz de compreender e de “assentir”, possibilidades
de concepção não apenas indefinidas, mas, podemos dizê-lo sem abusar da
linguagem, realmente infinitas como a própria Verdade total.
I
O INFINITO E A
POSSIBILIDADE
Para a boa compreensão da doutrina da multiplicidade
dos estados do ser, é necessário remontar, antes de qualquer consideração, à
noção mais primordial de todas, a do Infinito metafísico, encarado em suas
relações com a Possibilidade universal. O Infinito é, segundo o significado
etimológico do termo que o designa, aquilo que não tem limites; e, para guardar
a este termo seu sentido próprio,
é preciso reservar seu emprego rigorosamente àquilo
que não tem absolutamente nenhum limite, excluindo-se tudo o que apenas está
subtraído a certas limitações particulares, ao mesmo tempo em que permanece
submetido a outras limitações em virtude de sua própria natureza, à qual estas
são inerentes, como o são, do ponto de vista lógico (que apenas traduz a seu
modo o ponto de vista que podemos chamar de “ontológico”), os elementos que
intervém na própria definição daquilo de que se trata. Neste último caso estão,
notadamente, como já indicamos muitas vezes, o número, o espaço, o tempo, mesmo
nas concepções mais gerais e mais abrangentes que se possa ter deles, e que
ultrapassam de muito as noções que se tem normalmente[7];
tudo isto não passa, na realidade, do domínio do indefinido. É este indefinido
a que alguns, quando se trata da ordem quantitativa como nos exemplos acima,
dão abusivamente o nome de “infinito matemático”, como se a adjunção de um
epíteto ou de uma qualificação determinante à palavra “infinito” não implicasse
por si só uma contradição pura e simples[8].
De fato, este indefinido, que procede do finito, de que ele não é mais do que
uma extensão ou um prolongamento, e que por conseguinte é sempre redutível ao
finito, não tem nenhuma medida comum com o verdadeiro Infinito, assim como a
individualidade humana (ou qualquer outra), mesmo com a totalidade dos
prolongamentos indefinidos de que ela é susceptível, não possui medida comum com
o ser total[9].
Esta formação do indefinido a partir do finito, de que temos um claro exemplo
na produção da série dos números, só é possível, com efeito, com a condição de
que o finito contenha potencialmente este indefinido, e, mesmo quando seus
limites sejam recuados até que os percamos de vista, ou seja até que eles
escapem aos nossos meios normais de medição, nem por isso eles serão
suprimidos; é evidente, em razão da própria natureza da relação causal, que o
“mais” não pode proceder do “menos”, nem o Infinito do finito.
Nem poderia ser de outro modo a partir do momento em
que se trata, como nos casos mencionados, de certas ordens de possibilidades
particulares, que são manifestamente limitadas pela coexistência com outras
ordens de possibilidades, em virtude de sua própria natureza, que faz com que
elas sejam possibilidades determinadas, e não todas as possibilidades sem
nenhuma restrição. Se não fosse assim, esta coexistência com uma indefinidade
de outras possibilidades, não compreendidas nela (sendo ainda cada uma passível
de um desenvolvimento indefinido) seria uma impossibilidade, ou seja um absurdo
no sentido lógico do termo[10].
O Infinito, ao contrário, para ser verdadeiramente tal, não pode admitir
nenhuma restrição, o que pressupõe que ele seja absolutamente incondicionado e
indeterminado, pois qualquer determinação, qualquer que seja, é forçosamente
uma limitação, pelo fato mesmo de que ela deixa algo fora de si, a saber todas
as outras determinações igualmente possíveis. A limitação apresenta aliás um
caráter de verdadeira negação: colocar um limite equivale a negar, para o que
está encerrado nele, tudo o que este limite exclui; por conseguinte, a negação
de um limite é propriamente a negação de uma negação, ou seja, tanto lógica
quanto matematicamente, uma afirmação, de modo que a negação de todo limite
equivale em realidade à afirmação total e absoluta. O que não tem limites, é
aquilo de que não se pode negar nada, portanto o que contém tudo, aquilo fora
de que não há nada; e esta ideia de Infinito, que é assim a mais afirmativa de
todas, por compreender ou abarcar todas as afirmações particulares, quaisquer
que possam ser, só se exprime por um termo de forma negativa em razão mesmo de
sua indeterminação absoluta. Na linguagem, com efeito, toda afirmação direta é
forçosamente uma afirmação particular e determinada, a afirmação de algo,
enquanto que a afirmação total e absoluta não é nenhuma afirmação particular à
exclusão das outras, por implicá-las todas igualmente; e é fácil de perceber
assim a relação estreita que isto apresenta com a Possibilidade universal, que
compreende do mesmo modo todas as possibilidades particulares[11].
A ideia de Infinito, tal como expusemos aqui[12],
do ponto de vista puramente metafísico, não é nem discutível nem contestável de
modo algum, pois ela não encerra em si nenhuma contradição, pelo fato mesmo de
que ela não tem nada de negativo; ademais ela é necessária, no sentido lógico
da palavra[13],
pois é a negação que seria contraditória[14].
De fato, se encararmos o “Todo” no sentido universal e absoluto, é evidente que
ele não pode ser limitado de nenhuma maneira, pois ele só poderia sê-lo por
alguma coisa que lhe fosse exterior, e, se houvesse qualquer coisa que lhe
fosse exterior, ele já não seria o “Todo”. Convém frisar, de resto, que o
“Todo”, neste sentido, não deve de forma alguma ser assimilado a um todo
particular e determinado, vale dizer a um conjunto composto de partes que
estariam em alguma relação definida consigo; ele é propriamente falando “sem
partes”, porque, como estas partes devem ser necessariamente relativas e
finitas, elas não podem ter com ele nenhuma medida comum, nem consequentemente
nenhuma relação, o que equivale a dizer que elas não existem para ele[15];
e isto basta para mostrar que não se deve tentar formar dele nenhuma concepção
particular[16].
O que dissemos do Todo universal, em sua
indeterminação mais absoluta, aplica-se ainda quando o encaramos sob o ponto de
vista da Possibilidade; e, a bem dizer, não se trata aí de uma determinação, ou
ao menos trata-se de um mínimo de determinação necessária para torná-lo
atualmente concebível, e sobretudo exprimível num certo grau. Como já indicamos[17],
uma limitação da Possibilidade total é, no sentido próprio do termo, uma
impossibilidade, pois, como ela deve compreender a Possibilidade para limitá-la,
ela não poderia estar compreendida nela, e aquilo que está fora do possível não
é outra coisa que o impossível; mas uma impossibilidade, não sendo senão uma
negação pura e simples, um verdadeiro nada, não pode evidentemente limitar seja
lá o que for, donde resulta imediatamente que a Possibilidade universal é
necessariamente ilimitada. É preciso cuidado, aliás, porque isto não é
aplicável senão à Possibilidade universal e total, que é assim aquilo que
podemos chamar de um aspecto do Infinito, do qual ela não é distinta de nenhum
modo e em nenhuma medida; não pode existir nada que esteja fora do Infinito,
porque isto seria uma limitação, e então não se trataria mais do Infinito. A
concepção de uma “pluralidade de infinitos” é um absurdo, pois eles limitar-se-iam
reciprocamente, de sorte que, na realidade, nenhum deles seria infinito[18];
portanto, quando dizemos que a Possibilidade universal é infinita e ilimitada,
é preciso entender com isto que ela não é outra coisa que o próprio Infinito,
encarado sob um certo aspecto, na medida em que se pode dizer que existam
aspectos do Infinito. Como o Infinito é verdadeiramente “sem partes”, não se
pode tampouco, com todo rigor, falar de uma multiplicidade de aspectos
existindo real e “distintivamente” nele; somos nós que, a bem dizer, concebemos
o Infinito sob tal ou tal aspecto, porque não nos é possível agir de outro
modo, e, mesmo se nossa concepção não fosse essencialmente limitada (como ela
é, na medida em que estamos num estado individual), ela deveria forçosamente
limitar-se para se tornar exprimível, porque ela precisaria disto para
revestir-se de uma forma determinada. Apenas, o que importa, é que
compreendamos bem de onde provém a limitação e ao que ela se refere, a fim de
não atribui-la a outra coisa do que à nossa própria imperfeição, ou antes à dos
instrumentos interiores e exteriores de que dispomos atualmente enquanto seres
individuais, que como tais não possuímos efetivamente mais do que uma
existência definida e condicionada, e não transportarmos esta imperfeição,
puramente contingente e transitória (como as condições às quais ela se refere e
das quais ela resulta), para o domínio ilimitado da Possibilidade universal.
Acrescentemos ainda uma última observação: se
falamos correlativamente do Infinito e da Possibilidade, não é para estabelecer
entre estes dois termos uma distinção que não poderia existir realmente; é que
o Infinito é então visto mais particularmente sob seu aspecto ativo, enquanto
que a Possibilidade o é sob seu aspecto passivo[19];
mas, seja ele visto como ativo ou como passivo, trata-se sempre do Infinito,
que não pode ser afetado por estes pontos de vista contingentes, e as
determinações, seja qual for o princípio pela qual as efetuamos, só existem
aqui em relação à nossa concepção. Trata-se aí, em suma, da mesma coisa que
chamamos, segundo a terminologia da doutrina extremo-oriental, a “perfeição
ativa” (Khien) e a “perfeição
passiva” (Khouen), sendo a Perfeição,
no sentido absoluto, idêntica ao Infinito entendido em toda sua indeterminação;
e, como já dissemos, isto é análogo, embora em outro grau e de um ponto de
vista mais universal, àquilo que são, no Ser, a “essência” e a “substância”[20]
(14). Deve ficar bem entendido, desde logo, que o Ser não encerra toda a
Possibilidade, e que, consequentemente, ele não pode de jeito nenhum ser
identificado com o Infinito; é por isso que dissemos que o ponto de vista em
que nos colocamos aqui é mais universal do que aquele em que só focamos o Ser;
indicamos isto apenas para evitar confusões, porque iremos, na sequência, nos
explicar mais amplamente sobre o ponto.
II
POSSÍVEIS E
COMPOSSÍVEIS
A Possibilidade universal, dissemos, é ilimitada, e
só pode ser ilimitada; pretender concebê-la de outro modo equivale portanto a
condenar-se, na realidade, a não concebê-la de modo algum. É o que faz com que
todos os sistemas filosóficos do Ocidente moderno sejam igualmente impotentes
do ponto de vista metafísico, vale dizer universal, e isto enquanto sistemas,
como já observamos em outras ocasiões; eles não passam, como tais, de
concepções restritas e fechadas, que podem, para alguns de seus elementos,
possuir um certo valor num domínio relativo, mas que se tornam perigosas e
falsas a partir do momento em que, tomadas em seu conjunto, pretendem algo de
mais e tentam se fazer passar por uma expressão da realidade total. Sem dúvida,
é sempre legítimo encarar particularmente, se julgarmos a propósito, certas
ordens de realidade à exclusão das outras, e é isto, em suma, o que faz uma
ciência qualquer; mas o que não é legítimo, é afirmar que esteja aí toda a
Possibilidade e negar tudo o que ultrapassa a medida de sua própria compreensão
individual, mais ou menos estreitamente limitada[21].
Está aí no entanto, em maior ou menor grau, o caráter essencial desta forma
sistemática que parece inerente a toda a filosofia ocidental moderna; e é uma
das razões pelas quais este pensamento filosófico, no sentido comum do termo,
não tem e não pode ter nada em comum com as doutrinas de ordem puramente
metafísica[22].
Dentre os filósofos que, em razão desta tendência
sistemática e verdadeiramente “antimetafísica”, foram forçados a limitar de um
modo ou de outro a Possibilidade universal, alguns, como Leibnitz (que no
entanto é um cuja perspectiva é menos estreita sob muitos aspectos),
pretenderam fazer a respeito a distinção entre “possíveis” e “compossíveis”;
mas é evidente que esta distinção, na medida em que seja validamente aplicável,
não pode servir a este fim ilusório. De fato, os compossíveis não passam de
possíveis compatíveis entre si, vale dizer aqueles cuja reunião dentro de um
mesmo conjunto complexo não introduz no interior deste conjunto nenhuma
contradição; por conseguinte, a “compossibilidade” é sempre essencialmente
relativa ao conjunto de que se trata. É claro, aliás, que este conjunto pode
ser tanto o dos caracteres que constituem todos os atributos de um objeto
particular, ou de um ser individual, quanto algo de mais geral e mais
abrangente, como o conjunto de todas as possibilidades submetidas a certas
condições comuns e que formam por isto uma certa ordem definida, um dos
domínios compreendidos na Existência universal; mas em todos os casos, é
preciso sempre que se trate de um conjunto determinado, sem o que a distinção
não mais se aplicará. Assim, para tomarmos um exemplo de ordem particular e
extremamente simples, um “quadrado redondo” é uma impossibilidade, porque a
reunião dos dois possíveis “quadrado” e “redondo” em uma mesma figura implica
contradição; mas estes dois possíveis não deixam por isto de ser igualmente
realizáveis e, do mesmo modo, a existência de uma figura quadrada evidentemente
não impede a existência simultânea, ao seu lado e no mesmo espaço, de uma
figura redonda, bem como de qualquer outra figura geometricamente concebível[23].
Isto parece muito evidente para que seja preciso insistir; mas este exemplo, em
razão de sua própria simplicidade, tem a vantagem de ajudar a compreender, por
analogia, o que se reporta a casos mais complexos, como o de que iremos falar
agora.
Se, em lugar de um objeto ou de um ser particular,
considerarmos o que podemos chamar de um mundo, segundo o sentido que já demos
ao termo, ou seja todo o domínio formado por um certo conjunto de compossíveis
que se realizam na manifestação, estes compossíveis deverão ser todos os
possíveis que satisfaçam a certas condições, as quais caracterizarão e
definirão precisamente o mundo de que se trata, constituindo um dos graus da
Existência universal. Os outros possíveis, que não são determinados pelas
mesmas condições, e que, por conseguinte, não podem fazer parte do mesmo mundo,
não deixam evidentemente de serem realizáveis por isto, mas, bem entendido,
cada qual segundo o modo que convém à sua natureza. Em outros termos, todo
possível tem sua existência própria como tal[24],
e os possíveis cuja natureza implica uma realização, no sentido em que se
entende vulgarmente, ou seja uma existência em um modo qualquer de manifestação[25],
não podem perder este caráter que lhes é inerente e tornarem-se irrealizáveis
pelo fato de que outros possíveis sejam atualmente realizados. Podemos ainda
dizer que toda possibilidade que seja uma possibilidade de manifestação deve
necessariamente manifestar-se por isso mesmo, e que, inversamente, toda
possibilidade que não deva se manifestar é uma possibilidade de
não-manifestação; sob esta forma, parece uma questão de simples definição, e no
entanto a afirmação precedente não comporta nada diferente desta verdade
axiomática, que não é absolutamente discutível. Se for perguntado por que nem
toda possibilidade deve se manifestar, ou seja porque existem ao mesmo tempo
possibilidades de manifestação e possibilidades de não-manifestação, bastará
responder que o domínio da manifestação, sendo limitado pelo fato mesmo de que
ele é um conjunto de mundos ou de estados condicionados (de resto em multitude
indefinida), não pode esgotar a Possibilidade universal em sua totalidade; ele
deixa fora de si todo o incondicionado, ou seja precisamente aquilo que,
metafisicamente, mais importa. Quanto a perguntar por que tal possibilidade não
deve se manifestar como tal outra, isto equivale a perguntar por que ela é o
que ela é e não o que outra é; é exatamente a mesma coisa que perguntar por que
tal ser é ele mesmo e não outro, o que seria certamente uma questão desprovida
de sentido. O que é preciso compreender, a respeito, é que uma possibilidade de
manifestação não tem, enquanto tal, nenhuma superioridade sobre uma
possibilidade de não-manifestação; ela não é fruto de uma espécie de “escolha”
ou de “preferência[26]”,
ela é apenas de outra natureza.
Agora, se for objetado, a respeito dos compossíveis,
que, segundo a expressão de Leibnitz, “não existe senão um mundo”, das duas
uma: ou esta afirmação é uma pura tautologia, ou ela não tem nenhum sentido. De
fato, se por “mundo” entendermos aqui o Universo total, ou mesmo, limitando-nos
às possibilidades de manifestação, o domínio completo de todas estas
possibilidades, vale dizer a Existência universal, o que se enuncia é bem
evidente, embora o modo com que se exprima seja bastante impróprio; mas, se não
entendermos por esse termo senão um certo conjunto de compossíveis, como se faz
normalmente, e como fizemos nós mesmos, é tão absurdo dizer que sua existência
impede a coexistência de outros mundos como seria, retomando nosso exemplo
precedente, dizer que a existência de uma figura redonda impede a coexistência
de uma figura quadrada, ou triangular, ou de qualquer outro tipo. Tudo o que se
pode dizer, é que, como as características de um objeto determinado excluem
deste objeto a presença de outras características com as quais elas estariam em
contradição, as condições pelas quais é definido um mundo determinado excluem
deste mundo os possíveis cuja natureza não implique uma realização submetida a
estas mesmas condições; estes possíveis estarão assim fora dos limites do mundo
considerado, mas não estarão por isto excluídos da Possibilidade, porque
trata-se de possíveis por hipótese, e nem mesmo, em casos mais restritos, da
Existência no sentido próprio do termo, ou seja entendida como compreendendo
todo o domínio da manifestação universal. Existem no Universo modos de
existência múltiplos, e cada possível tem aquele que convém à sua natureza
própria; quanto a dizer, como se faz às vezes (e precisamente referindo-se à
concepção de Leibnitz), de uma espécie de “luta pela existência” entre os
possíveis, eis uma concepção que nada tem de metafísico, e este ensaio de
transposição daquilo que não passa de uma hipótese biológica (em conexão com as
modernas teorias “evolucionistas”) é mesmo totalmente ininteligível.
A distinção do possível e do real, sobre a qual
muitos filósofos tanto insistiram, não tem portanto nenhum valor metafísico:
todo possível é real à sua maneira, e segundo o modo que comporta sua natureza[27];
de outra forma, existiriam possíveis que não seriam nada, e dizer que um
possível é nada é uma contradição pura e simples; é impossível, e apenas o
impossível pode ser, como já dissemos, um puro nada. Negar que hajam
possibilidades de não-manifestação, é pretender limitar a Possibilidade
universal; por outro lado, negar que, dentre as possibilidades de manifestação,
existam diferentes ordens, é pretender limitá-la ainda mais estreitamente.
Antes de avançarmos mais, lembraremos que, em vez de
considerar o conjunto das condições que determinam um mundo, como fizemos,
poderemos também, do mesmo ponto de vista, considerar isoladamente uma de suas
condições: por exemplo, dentre as condições do mundo corporal, o espaço,
considerado como o continente das possibilidades espaciais[28].
É evidente que, por definição, somente as possibilidades espaciais podem
realizar-se no espaço, mas não é menos evidente que isto não impede as
possibilidades não-espaciais de se realizarem igualmente (e aqui, limitando-nos
à consideração das possibilidades de manifestação, “realizar-se” deve ser
tomado como sinônimo de “manifestar-se”), fora desta condição particular de
existência que é o espaço. No entanto, se o espaço fosse infinito como querem
alguns, não haveria lugar no Universo para nenhuma possibilidade não-espacial,
e, logicamente, o próprio pensamento, para tomarmos o exemplo mais comum e mais
conhecido, não poderia então ser admitido à existência senão com a condição de
ser concebido como extenso, concepção que até a psicologia “profana” reconhece
como falsa sem nenhuma hesitação; mas, longe de ser infinito, o espaço não
passa de um dos modos possíveis da manifestação, a qual não é absolutamente
infinita, mesmo na integralidade de sua extensão, com a indefinidade de modos
que ela comporta, dos quais cada um por sua vez é igualmente indefinido[29].
Observações similares poderiam aplicar-se a não importa qual outra condição
particular de existência; e o que é verdade para cada uma destas condições
tomadas à parte o é também para o conjunto de uma variedade delas, cuja reunião
ou combinação determina um mundo. É claro, aliás, que é preciso que as
diferentes condições assim reunidas sejam compatíveis entre si, e sua
compatibilidade implica evidentemente a dos possíveis que elas compreendem
respectivamente, com a restrição que os possíveis que estão submetidos ao
conjunto das condições consideradas podem não constituir senão uma parte
daqueles que estão compreendidos em cada uma das mesmas condições encaradas
isoladamente das outras, donde resulta que estas condições, em sua
integralidade, comportarão, além de sua parte em comum, prolongamentos em
diversos sentidos, pertencentes ainda ao mesmo grau da Existência universal.
Estes prolongamentos, de extensão indefinida, correspondem, na ordem geral e
cósmica, àquilo que são, para um ser particular, os prolongamentos de um de
seus estados, por exemplo os de um estado individual considerado integralmente,
para além de uma dada modalidade definida deste mesmo estado, tal como a
modalidade corporal em nossa individualidade humana[30].
III
O SER E O NÃO
SER
No que precede, indicamos a distinção entre as
possibilidades de manifestação e as possibilidades de não-manifestação, estando
umas e outras igualmente compreendidas, e com igual peso, dentro da
Possibilidade total. Esta distinção impõe-se a nós antes de qualquer outra
distinção mais específica, como a dos diferentes modos da manifestação
universal, ou seja a distinção das diferentes ordens de possibilidades que esta
comporta, repartidas segundo as condições particulares às quais elas estão
respectivamente submetidas, e que constituem a multitude indefinida dos mundos
e dos graus da Existência.
Isto posto, se definimos o Ser, no sentido
universal, como o princípio da manifestação, e ao mesmo tempo como
compreendendo em si mesmo o conjunto de todas as possibilidades de
manifestação, devemos dizer que o Ser não é infinito, porque ele não coincide
com a Possibilidade total; e isto tanto mais que o Ser, enquanto princípio da
manifestação, compreende com efeito todas as possibilidades de manifestação,
mas apenas na medida em que elas se manifestam. Fora do Ser está portanto todo
o resto, ou seja todas as possibilidades de não-manifestação, e mais todas as
possibilidades de manifestação enquanto permanecem em estado não-manifestado; e
o próprio Ser acha-se aí incluído, pois, não pertencendo à manifestação (por
ser seu princípio), ele é também não-manifestado. Para designar aquilo que está
fora e além do Ser, somos obrigados, na falta de outro termo, a chamar de
Não-Ser; e esta expressão negativa (que para nós não é em nenhum grau sinônimo
de “nada” como ela aparece na linguagem de certos filósofos), além de ser
diretamente inspirada na terminologia da doutrina metafísica extremo-oriental,
é suficientemente justificada pela necessidade de se empregar uma denominação
qualquer para que se possa falar dela, atendendo ainda à observação que já
fizemos, de que as ideias mais universais, por serem as mais indeterminadas, só
podem ser expressas, na medida em que podem ser expressas, por termos em forma
negativa, assim como vimos com relação ao Infinito. Podemos dizer também que o
Não-Ser, no sentido que indicamos, é mais do que o Ser, ou, se se preferir, ele
é superior ao Ser, se entendermos por isto que aquilo que ele compreende está além
da extensão do Ser, e que ele contém em princípio o próprio Ser. E, a partir do
momento em que opomos o Não-Ser ao Ser, ou que os distinguimos simplesmente,
nem um nem outro pode ser infinito, porque, deste ponto de vista, eles
limitam-se mutuamente de certa forma; a infinitude não pertence senão ao
conjunto do Ser e do Não-Ser, porque este conjunto é idêntico à Possibilidade
universal.
Podemos ainda exprimir as coisas deste modo: a
Possibilidade universal contém necessariamente a totalidade das possibilidades,
e podemos dizer que o Ser e o Não-Ser são dois de seus aspectos: o Ser, na
medida em que ela manifesta as possibilidades (ou mais exatamente algumas
delas); o Não-Ser, na medida em que não as manifesta. O Ser contém assim todo o
manifestado; o Não-Ser contém todo o não-manifestado, incluindo o próprio Ser;
mas a Possibilidade universal contém simultaneamente o Ser e o Não-Ser.
Acrescentemos que por não-manifestado compreendemos aquilo que podemos chamar
de não-manifestável, ou seja as possibilidades de não-manifestação, e o
manifestável, ou seja as possibilidades de manifestação na medida em que não se
manifestam, enquanto a manifestação compreende o conjunto destas mesmas
possibilidades na medida em que elas se manifestam[31].
No que concerne às relações do Ser com o Não-Ser, é
essencial frisar que o estado de manifestação é sempre transitório e
condicionado, e que, mesmo para as possibilidades que comportam a manifestação,
o estado de não-manifestação é o único absolutamente permanente e incondicionado[32].
Acrescentemos a propósito que nada do que é manifestado pode “perder-se”,
segundo uma expressão muito utilizada, senão pela passagem ao não-manifestado;
e, bem entendido, esta passagem mesma (que, quando se trata da manifestação
individual, é propriamente a “transformação” no sentido etimológico do termo,
ou seja a passagem além da forma) só constitui uma “perda” do ponto de vista
específico da manifestação, pois, no estado de não-manifestação, todas as
coisas, ao contrário, subsistem eternamente em princípio, independentemente de
todas as condições particulares e limitativas que caracterizam tal ou tal modo
da existência manifestada. Apenas, para se poder dizer com justeza que “nada se
perde”, mesmo com a restrição relativa ao não-manifestado, é preciso considerar
todo o conjunto da manifestação universal, e não apenas tal ou tal de seus estados à exclusão dos outros,
pois, em razão da continuidade de todos os seus estados entre si, sempre pode
haver passagem de um a outro, sem que esta passagem contínua, que não é uma
mudança de modo (que implica numa mudança correspondente nas condições de
existência), nos faça absolutamente sair do domínio da manifestação[33].
Quanto às possibilidades de não-manifestação, elas
pertencem essencialmente ao Não-Ser, e, por sua própria natureza, elas não
podem entrar no domínio do Ser, contrariamente ao que acontece com as
possibilidades de manifestação; mas, como dissemos acima, isto não implica
nenhuma superioridade de umas sobre as outras, pois umas e outras são apenas modos
de realidades diferentes e conformes às suas naturezas respectivas; e a própria
distinção do Ser e do Não-Ser é, sobretudo, puramente contingente, pois ela só
pode ser feita a partir do ponto de vista da manifestação, a qual é
essencialmente contingente. Isto, de resto, não diminui em nada a importância
que esta distinção tem para nós, dado que, em nosso estado atual, não nos é
possível colocarmo-nos em um ponto de vista diferente daquele, que é também o
nosso, na medida em que pertencemos, como seres condicionados e individuais, ao
domínio da manifestação, e que não podemos ultrapassá-la senão libertando-nos
inteiramente, pela realização metafísica, das condições limitativas da
existência individual.
Como exemplo de uma possibilidade de não-manifestação,
podemos citar o vazio, pois uma tal possibilidade é concebível, ao menos
negativamente, ou seja pela exclusão de certas determinações: o vazio implica a
exclusão, não apenas de todo atributo corporal ou material, não apenas, de modo
mais geral, de toda qualidade formal, mas ainda de tudo o que se refere a um
modo qualquer da manifestação. É portanto um contrassenso pretender que possa
haver o vazio naquilo compreendido na manifestação universal, em qualquer
estado que seja[34],
porque o vazio pertence essencialmente ao domínio da não-manifestação; não é
possível dar a este termo outra acepção inteligível. Devemos, a este respeito,
limitar-nos a esta simples indicação, pois não podemos tratar aqui da questão
do vazio com todos os desenvolvimentos que ela comporta, e que nos afastariam
de nosso objeto; como é sobretudo a respeito do espaço que ela acarreta às
vezes graves confusões[35],
as considerações que se referem a ele encontrarão melhor lugar no estudo que
nos propomos a consagrar especialmente às condições da existência corporal[36].
Do ponto de vista em que nos colocamos presentemente devemos simplesmente
acrescentar que o vazio, qualquer que seja o modo como o encaramos, não é o
Não-Ser, mas apenas o que podemos chamar de um de seus aspectos, ou seja uma
das possibilidades que ele encerra e que são diferentes das possibilidades
compreendidas no Ser e que estão fora dele, mesmo encarado em sua totalidade, o
que mostra ainda que o Ser não é infinito. De resto, quando dizemos que uma
dada possibilidade constitui um aspecto do Não-Ser, é preciso atenção para não
considerá-la de modo distintivo, porque este modo aplica-se exclusivamente à
manifestação; e isto explica porque, mesmo se pudermos conceber efetivamente
esta possibilidade que é o vazio, ou qualquer outra da mesma ordem, jamais
podemos dar-lhes senão uma expressão inteiramente negativa: esta observação,
bastante genérica para tudo o que se refere ao Não-Ser, justifica ainda mais o
emprego que fazemos deste termo[37].
Considerações semelhantes poderiam então aplicar-se
a quaisquer outras possibilidades de não-manifestação; poderíamos tomar outro
exemplo, como o silêncio, mas a aplicação seria muito fácil para que seja
preciso insistir. Limitar-nos-emos portanto, a propósito, a observar o
seguinte: como o Não-Ser, ou o não-manifestado, compreende ou envolve o Ser, ou
o princípio da manifestação, o silêncio comporta em si mesmo o princípio da
palavra; em outros termos, assim como a Unidade (o Ser) não passa do Zero
metafísico (o Não-Ser) afirmado, a palavra não é senão o silêncio expressado;
mas, inversamente, o Zero metafísico, apesar de ser a Unidade não-afirmada, é
também algo de mais (e mesmo infinitamente mais), e também o silêncio, que é um
aspecto deste Zero no sentido que precisamos, não é apenas a palavra
não-expressada, pois é preciso deixar subsistir nele também o que é
inexprimível, ou seja não susceptível de manifestação (pois quem diz expressão
diz manifestação, e inclusive manifestação formal), portanto de determinação em
modo distintivo[38].
A relação assim estabelecida entre o silêncio (não-manifestado) e a palavra
(manifestada) mostra como é possível conceber possibilidades de
não-manifestação que correspondem, por transposição analógica, a certas
possibilidades de manifestação[39],
sem pretender aliás, aqui também, introduzir no Não-Ser uma distinção efetiva
que não poderia aí encontrar-se, porque a existência em modo distintivo (que é
a existência no sentido próprio do termo) é essencialmente inerente às
condições da manifestação (sendo que “modo distintivo” aqui não será, em todos
os casos, sinônimo de “modo individual”, pois este implica especificamente a
distinção formal)[40].
V
FUNDAMENTOS DA
TEORIA
DOS ESTADOS
MÚLTIPLOS
Aquilo que precede contém, em toda sua
universalidade, o fundamento da teoria dos estados múltiplos: se considerarmos
um ser qualquer em sua totalidade, ele deverá comportar, ao menos virtualmente,
estados de manifestação e de não-manifestação, pois é apenas neste sentido que
se pode falar realmente de “totalidade”; de outro modo, estaremos apenas diante
de algo incompleto e fragmentário, que não pode constituir verdadeiramente o
ser total[41].
Somente a não-manifestação, como já dissemos, possui o caráter de permanência
absoluta; é dela, portanto, que a manifestação, em sua condição transitória,
tira toda sua realidade; e vemos assim que o Não-Ser, longe de ser o “nada”,
será exatamente o contrário, se é que o “nada” possa ter um contrário, o que
suporia para ele ainda um certo grau de “positividade”, enquanto que ele não
passa da “negatividade” absoluta, ou seja a pura impossibilidade[42].
Assim, resulta daí serem essencialmente os estados
de não-manifestação os que asseguram ao ser sua permanência e sua identidade;
e, fora destes estados, vale dizer se tomarmos apenas o ser dentro da manifestação,
sem relacioná-lo ao seu princípio não-manifestado, esta permanência e esta
identidade não podem ser senão ilusórias, pois o domínio da manifestação é
propriamente o domínio do transitório e do múltiplo, comportando modificações
contínuas e indefinidas. A partir disto, será fácil compreender o que se deve
pensar, do ponto de vista metafísico, da pretensa unidade do “eu”, ou seja do
ser individual, que é tão indispensável à psicologia ocidental e “profana”: de
um lado, trata-se de uma unidade fragmentária, porque ela só se refere a uma
porção do ser, a um de seus estados tomados isolada e arbitrariamente dentre
uma indefinidade de outros (e mesmo este estado está longe de ser visto em sua
integralidade); e, por outro lado, esta unidade, por só considerar o estado
específico ao qual se refere, é ainda tão relativa quanto possível, pois este
próprio estado compõe-se de uma indefinidade de modificações diversas, e possui
tanto menos realidade quanto mais se abstraia seu princípio transcendente (o
“Si” ou a personalidade), o único que poderia lhe dar verdadeiramente esta
realidade, mantendo a identidade do ser em modo permanente através de todas as
suas modificações.
Os estados de não-manifestação são do domínio do
Não-Ser, e os estados de manifestação são do domínio do Ser, visto em sua
integralidade; podemos dizer também que estes últimos correspondem aos
diferentes graus da Existência, sendo estes graus os diferentes modos, em
multiplicidade indefinida, da manifestação universal. Para estabelecermos aqui
uma distinção clara entre o Ser e a Existência, deveremos, como já dissemos,
considerar o Ser como sendo propriamente o princípio da manifestação: a
Existência universal será então a manifestação integral do conjunto das
possibilidades que o Ser comporta, e que são de resto todas as possibilidades
de manifestação, o que implica o desenvolvimento efetivo destas possibilidades
em modo condicionado. Assim, o Ser abarca a Existência, e ele é metafisicamente
mais do que esta, por ser o seu princípio; a Existência portanto não é idêntica
ao Ser, pois este corresponde a um grau menor de determinação, e, por
conseguinte, um grau maior de universalidade[43].
Embora a Existência seja essencialmente única, e
isto porque o Ser em si mesmo é um e uno, ela não deixa de compreender uma
multiplicidade indefinida de modos de manifestação, porque ela os compreende a
todos igualmente pelo fato mesmo de serem todos igualmente possíveis, e esta
possibilidade implica que cada um deve realizar-se segundo as condições que lhe
são próprias. Como já dissemos ao falarmos desta “unicidade da Existência” (em
árabe Wahadatul-wujûd) segundo os
dados do esoterismo islâmico[44],
resulta daí que a Existência, em sua própria “unicidade”, comporta uma
indefinidade de graus, correspondentes a todos os modos da manifestação
universal (que no fundo é a mesma coisa que a Existência); e esta
multiplicidade indefinida dos graus da Existência implica correlativamente,
para um ser qualquer considerado dentro do domínio inteiro desta Existência,
uma multiplicidade igualmente indefinida de estados de manifestação possíveis,
dos quais cada um deve se realizar em um grau determinado da Existência
universal. Um estado de um ser é assim o desenvolvimento de uma possibilidade
específica compreendida em um dado grau, sendo este grau definido pelas
condições às quais está submetida a possibilidade em questão, na medida em que
ela é vista como realizando-se dentro do
domínio da manifestação[45].
Assim, cada estado de manifestação de um ser
corresponde a um grau da Existência, e este estado comporta também diversas
modalidades, segundo as diferentes combinações de condições de que é
susceptível um mesmo modo geral de manifestação; enfim, cada modalidade
compreende ela mesma uma série indefinida de modificações secundárias e
elementares. Por exemplo, se considerarmos o ser neste estado específico que é
a individualidade humana, a parte corporal desta individualidade não é mais do
que uma modalidade, e esta modalidade é determinada, não exatamente por uma
condição particular de existência, mas por um conjunto de condições que
delimitam suas possibilidades, sendo estas condições aquelas cuja reunião
define o mundo sensível ou corporal[46].
Como já indicamos[47],
cada uma destas condições, considerada isoladamente das outras, pode estender-se
para além do domínio desta modalidade, e, seja por sua própria extensão, seja
por sua combinação com condições diferentes, constituir então os domínios de
outras modalidades, fazendo parte da mesma individualidade integral. Por outro
lado, cada modalidade deve ser vista como sendo susceptível de desenvolver-se
no decurso de um dado ciclo de manifestação, e, para a modalidade corporal em
particular, as modificações secundárias que este desenvolvimento comporta serão
todos os momentos de sua existência (considerada sob o aspecto da sucessão
temporal), ou, o que é o mesmo, todos os atos e todos os gestos, quaisquer que
sejam, que ela cumprirá ao longo desta existência[48].
É quase supérfluo insistir sobre o pouco lugar
ocupado pelo “eu” individual na totalidade do ser[49],
pois, mesmo em toda a extensão que ele pode adquirir quando visto em sua
totalidade (e não apenas em uma modalidade em particular como a modalidade
corporal), ele não constitui mais do que um estado como os outros, e no meio de
uma indefinidade de outros, e isto mesmo que nos limitemos a considerar os
estados de manifestação; e além disso, estes mesmos são os que, do ponto de
vista metafísico, menos importam no ser total, pelas razões que já expusemos
acima[50].
Dentre os estados de manifestação, existem alguns, além da individualidade
humana, que podem igualmente ser estados individuais (ou seja formais),
enquanto que outros são estados não-individuais (ou informais), sendo a
natureza de cada qual determinada (assim como seu lugar no conjunto
hierarquicamente organizado do ser) pelas condições que lhe são próprias,
porque trata-se sempre de estados condicionados, pelo fato mesmo que são
manifestados. Quanto aos estados de não-manifestação, é evidente que, por não
serem submetidos à forma, assim como a nenhuma outra condição de um modo
qualquer de existência manifestada, eles são essencialmente extra-individuais;
podemos dizer que eles constituem o que existe de verdadeiramente universal em
cada ser, aquilo pelo que todo ser se liga, em tudo aquilo que ele é, ao seu
princípio metafísico e transcendente, ligação sem a qual ele não teria mais do
que uma existência inteiramente contingente e puramente ilusória no fundo.
V
RELAÇÕES ENTRE A
UNIDADE E A
MULTIPLICIDADE
No domínio do Não-Ser, não pode ser questão de uma
multiplicidade de estados, pois este é essencialmente o domínio do
indiferenciado e mesmo do incondicionado: o incondicionado não pode estar
submetido às determinações do uno e do múltiplo, e o indiferenciado não pode
existir em modo distintivo. Se entretanto falamos de estados de
não-manifestação, não é para estabelecer nesta expressão uma espécie de
simetria com os estados de manifestação, que seria injustificada e artificial;
mas somos forçados a introduzir aí a distinção de certa forma, sem o que não
teríamos como tratar do assunto; apenas, devemos nos dar conta de que esta
distinção não existe em si, que somos nós que lhe damos sua existência
totalmente relativa, e que só assim podemos considerar o que chamamos de aspectos
do Não-Ser, embora lembrando tudo o que esta expressão tem de imprópria e
inadequada. No Não-Ser, não existe multiplicidade, e, com todo o rigor,
tampouco existe unidade, pois o Não-Ser é o Zero metafísico, a quem somos
obrigados a dar um nome para podermos falar dele, e que é logicamente anterior
à unidade; é por isso que a doutrina hindu fala a respeito apenas de
“não-dualidade” (adwaita), o que, de
resto, deve ainda ser relacionado com o que dissemos mais acima sobre o emprego
de termos de forma negativa.
É essencial frisar, a propósito, que o Zero
metafísico não tem relação com o zero matemático, que não passa do signo do que
podemos chamar de um nada quantitativo, tanto quanto o Infinito verdadeiro tem
com o simples indefinido, ou seja com a quantidade indefinidamente crescente ou
indefinidamente decrescente[51];
e esta ausência de relações, se podemos nos expressar assim, é exatamente da
mesma ordem em um e outro caso, com a reserva, no entanto, que o Zero
metafísico não passa de um aspecto do Infinito; ao menos, podemos considerá-lo
assim na medida em que ele contém em princípio a unidade, e em decorrência todo
o resto. Com efeito, a unidade primordial não é outra coisa senão o Zero
afirmado, ou , em outros termos, o Ser universal, que é esta unidade, não é
senão o Não-Ser afirmado, na medida em que é possível uma tal afirmação, que é
já uma primeira determinação, pois ela é a mais universal de todas as
afirmações definidas, portanto condicionadas; e esta primeira determinação,
prévia a qualquer manifestação e a qualquer particularização (incluindo aí a
polarização entre “essência” e “substância”, que é a primeira dualidade e, como
tal, o ponto de partida de toda a multiplicidade), contém em princípio todas as
outras determinações ou afirmações distintivas (correspondentes a todas as
possibilidades de manifestação), o que equivale a dizer que a unidade, a partir
do momento em que é afirmada, contém em princípio a multiplicidade, ou que ela
própria é o princípio imediato desta multiplicidade[52].
Muito se perguntou, e em vão, como a multiplicidade
poderia sair da unidade, sem que se tenha percebido que a questão, colocada
desta maneira, não comporta nenhuma solução, pelo simples fato de estar mal
colocada e não corresponder, sob esta forma, a nenhuma realidade; de fato, a
multiplicidade não sai da unidade, assim como a unidade não sai do Zero
metafísico, ou que tampouco qualquer coisa sai do Todo universal, ou que
qualquer possibilidade possa se achar fora do Infinito ou da Possibilidade
total[53].
A multiplicidade está compreendida na unidade primordial, e ela não deixa de
estar aí compreendida devido ao seu desenvolvimento em modo manifestado; esta
multiplicidade é aquela das possibilidades de manifestação, ela não pode ser
concebida de outro modo senão deste, pois é a manifestação que implica a
existência distintiva; e, por outro lado, uma vez que se trata de
possibilidades, é preciso que elas existam do modo que está implicado em sua
natureza. Assim, o princípio da manifestação universal, apesar de ser um, e sendo
inclusive a própria unidade em si, contém necessariamente a multiplicidade; e
esta, em todos os seus desenvolvimentos indefinidos, e cumprindo-se
indefinidamente segundo uma indefinidade de direções[54],
procede inteiramente da unidade primordial, na qual ela permanece sempre
compreendida, e esta unidade primordial não pode ser afetada nem modificada
pela existência nela desta multiplicidade, pois ela não poderia cessar de ser
ela mesma por um efeito da sua natureza, e é precisamente na medida em que ela é
a unidade que ela implica essencialmente as possibilidades múltiplas de que se
trata. É assim na própria unidade que a multiplicidade existe, e ela não afeta
a unidade porque ela não tem senão uma existência inteiramente contingente em
relação a esta; podemos mesmo dizer que esta existência, na medida em que não
for reportada à unidade como o fizemos, é puramente ilusória; somente a
unidade, por ser seu princípio, lhe fornece toda a realidade de que ela é
susceptível; e a própria unidade, por seu turno, não é um princípio absoluto e
bastando-se a si mesmo, mas tira toda a sua realidade do Zero metafísico.
O Ser, não sendo mais do que a primeira afirmação, a
determinação mais primordial, não é o princípio supremo de todas as coisas; ele
não passa, repetimos, do princípio da manifestação, e vemos com isto como o
ponto de vista metafísico é restringido por aqueles que pretendem reduzir a
metafísica à simples “ontologia”; abstrair assim o Não-Ser, equivale
propriamente a excluir tudo o que há de mais verdadeiro e puramente metafísico.
Dito isto de passagem, concluiremos aqui o que diz respeito ao ponto que
estamos tratando: o Ser é um e uno em si mesmo, e, por conseguinte, a
Existência universal – que é a manifestação integral das suas possibilidades –
é única em sua essência e em sua natureza íntima; mas nem a unidade do Ser, nem
a “unicidade” da Existência, excluem a multiplicidade dos modos da
manifestação, donde advém a indefinidade dos graus da Existência, na ordem
geral e cósmica, e a indefinidade dos estados do ser, na ordem das existências
particulares[55].
Portanto, a consideração dos estados múltiplos não está absolutamente em
contradição com a unidade do Ser, tanto quanto com a “unicidade” da Existência
que está fundamentada nesta unidade, pois nem uma nem outra são afetadas no que
quer que seja pela multiplicidade; e resulta daí que, em todo o domínio do Ser,
a constatação da multiplicidade, longe de contradizer a afirmação da unidade ou
de se opor a ela de qualquer modo, nela encontra o único fundamento válido que
lhe possa ser dado, tanto lógica quanto metafisicamente.
VI
CONSIDERAÇÕES
ANALÓGICAS TIRADAS DO ESTUDO
DO ESTADO DE
SONHO
Deixaremos agora o ponto de vista metafísico no qual
nos colocamos no capítulo precedente para encarar a questão das relações entre
a unidade e a multiplicidade, pois poderemos talvez fazer compreender melhor a
natureza destas relações através de algumas considerações analógicas, dadas
aqui a título de exemplo, ou antes de “ilustração”, se podemos falar assim[56],
e que mostrarão em que sentido podemos dizer que a existência da multiplicidade
é ilusória diante da unidade, apesar de possuir tanta realidade quanto pode
comportar a sua natureza. Tomaremos estas considerações, de um caráter mais
particular, do estudo do estado de sonho, que é uma das modalidades de
manifestação do ser humano, correspondente à parte sutil (ou seja não-corpórea)
de sua individualidade, e no qual este ser produz um mundo que procede
inteiramente de si mesmo, e cujos objetos consistem exclusivamente em
concepções mentais (por oposição às percepções sensoriais do estado de
vigília), ou seja em combinações de ideias revestidas de formas sutis, sendo
que estas formas dependem substancialmente da forma sutil do próprio indivíduo,
de quem os objetos ideais do sonho não passam em suma de modificações
acidentais e secundárias[57].
O homem, no estado de sonho, situa-se assim num
mundo inteiramente imaginado por ele[58],
onde todos os elementos são por conseguinte tirados de si mesmo, de sua própria
individualidade mais ou menos extensa (em suas modalidades extracorpóreas),
como outras tantas “formas ilusórias” (mâyâvi-rûpa)[59],
e isto mesmo que ele não possua atualmente a consciência clara e distinta.
Qualquer que seja o ponto de partida interior ou exterior (podendo ser muito
diferentes conforme o caso), que dá ao sonho uma certa direção, os eventos que
aí se desenrolam não podem resultar senão de uma combinação de elementos
contidos, ao menos potencialmente e susceptíveis de um certo gênero de
realização, na compreensão integral do indivíduo; e, se estes elementos, que
são modificações do indivíduo, são em multitude indefinida, a variedade de tais
combinações possíveis será igualmente indefinida. O sonho, com efeito, deve ser
visto como um modo de realização para possibilidades que, apesar de pertencerem
ao domínio da individualidade humana, não são susceptíveis, por qualquer razão,
de se realizar em modo corporal; tais são, por exemplo, as formas de seres
pertencentes ao mesmo mundo mas diferentes do homem, formas que este possui
virtualmente em si devido à posição central que ele ocupa neste mundo[60].
Estas formas não podem evidentemente ser realizadas pelo homem a não ser no
estado sutil, e o sonho é o meio mais comum, podemos dizer o mais normal, de
todos os que ele dispõe para identificar-se com outros seres, como indica este
texto taoísta: “Outrora, relata Tchouang-Tsé, numa noite, eu fui uma borboleta,
revoluteando contente com sua sorte; então eu acordei, sendo Tchouang-Tsé. Que
sou eu, na realidade? Uma borboleta que sonha ser Tchouang-Tsé, ou Tchouang-Tsé
que imagina ser uma borboleta? No meu caso, existem dois indivíduos reais?
Houve a transformação real de um indivíduo em outro? Nem uma coisa, nem outra:
existem apenas duas modificações irreais do ser único, da norma universal, na
qual todos os seres em todos os estados são um.[61]”.
Se o indivíduo que sonha toma ao mesmo tempo, no
decurso deste sonho, uma parte ativa nos eventos que aí se desenrolam como
resultado de sua faculdade imaginativa, ou seja se ele desempenha um papel
determinado na modalidade extracorpórea de seu ser que corresponde atualmente
ao estado de sua consciência claramente manifestada (ou ao que podemos chamar a
zona central desta consciência), não podemos deixar de admitir que, simultaneamente,
todos os outros papéis são aí igualmente “agidos” por ele, seja em outras
modalidades, seja no mínimo em diferentes modificações secundárias da mesma
modalidade, pertencente também à sua consciência individual, senão em seu
estado atual, restrito, de manifestação enquanto consciência, ao menos em
alguma de suas possibilidades de manifestação, as quais, em seu conjunto,
abarcam um campo indefinidamente mais extenso. Todos esses papéis aparecem
naturalmente como secundários em relação àquele que é o principal para o
indivíduo, vale dizer aquele em que sua consciência atual está diretamente
interessada, e, pelo fato de que todos os elementos do sonho não existem senão
por ele, podemos dizer que eles não são reais a não ser na medida em que eles
participam de sua própria existência: é ele próprio que os realiza como
modificações de si mesmo, e sem deixar por isso de ser ele mesmo, independente
destas modificações que em nada afetam aquilo que constitui a essência própria
de sua individualidade. Ademais, se o indivíduo tem consciência de estar
sonhando, ou seja de que todos os eventos que se desenrolam neste estado não
tem verdadeiramente outra realidade do que a que ele lhes empresta, ele
tampouco será afetado por isto mesmo sendo ator ao mesmo tempo em que é espectador,
e precisamente porque ele não cessará de ser espectador para se tornar ator,
pois a concepção e a realização não estarão mais separadas para sua consciência
individual, que chegou a um grau de consciência suficiente para abarcar
sinteticamente todas as modificações atuais da individualidade. Se acontecer de
outro modo, as mesmas modificações poderão ainda realizar-se, mas, como a
consciência não relaciona mais diretamente esta realização à concepção de que
ela é fruto, o indivíduo é levado a atribuir aos eventos uma realidade exterior
a si mesmo, e, na medida em que a atribui efetivamente, submete-se a uma ilusão
cuja causa está em si, ilusão esta que consiste em separar a multiplicidade
destes eventos daquilo que é seu princípio imediato, ou seja de sua própria
unidade individual[62].
Este é um exemplo muito claro de uma multiplicidade
existindo numa unidade sem que esta seja afetada; ainda que a unidade de que se
trata, a unidade do indivíduo, seja bastante relativa, ela não deixa de
desempenhar, em relação a esta multiplicidade, um papel análogo ao da unidade
verdadeira e primordial em relação à manifestação universal. De resto,
poderíamos ter tomado um outro exemplo, e mesmo considerar deste modo a
percepção no estado de vigília[63];
mas o caso que escolhemos tem a vantagem de não dar lugar a nenhuma
contestação, devido às condições que são específicas do estado de sonho, no
qual o homem acha-se isolado de todas as coisas exteriores, ou supostamente
exteriores[64],
que constituem o mundo sensível. O que faz a realidade deste mundo do sonho, é
unicamente a consciência individual encarada em todo seu desenvolvimento, em
todas as possibilidades de manifestação que ela compreende; e, de resto, esta
mesma consciência, vista assim em seu conjunto, compreende este mundo do sonho
do mesmo modo que todos os outros elementos da manifestação individual,
pertencentes a qualquer das modalidades que estão contidas na extensão integral
da possibilidade individual.
Agora, convém lembrar que, se quisermos considerar analogamente
a manifestação universal, poderemos dizer apenas que, assim como a consciência
individual cria a realidade deste mundo particular que é constituído por todas
as suas modalidades possíveis, existe também alguma coisa que faz a realidade
do Universo manifestado, mas sem que se possa legitimamente considerar esta
“alguma coisa” como o equivalente de uma faculdade individual ou de uma
condição específica de existência, o que seria uma concepção eminentemente
antropomórfica e antimetafísica. É assim alguma coisa que, por conseguinte, não
é nem a consciência nem o pensamento, mas da qual, ao contrário, a consciência
e o pensamento não passam de modos particulares de manifestação; e, se existe
uma indefinidade de tais modos possíveis, que podem ser vistos como outros
tantos atributos, diretos ou indiretos, do Ser universal (análogos em certa
medida ao que são para o indivíduo os papéis desempenhados no sonho por suas
modalidades ou modificações múltiplas, e pelos quais ele não é aliás afetado em
sua natureza íntima), não há nenhuma razão para pretender reduzir todos estes
atributos a um ou alguns dentre eles – ou melhor, só pode haver uma razão, que
é esta tendência sistemática que já denunciamos como sendo incompatível com a
universalidade da metafísica. Estes atributos, quaisquer que sejam, são apenas
aspectos diferentes desse princípio único que faz a realidade de toda a
manifestação por ser o próprio Ser, e sua diversidade só existe do ponto de
vista da manifestação diferenciada, não do ponto de vista de seu princípio ou
do Ser em si, que é a unidade primordial e verdadeira. Isto é verdade inclusive
para a distinção mais universal que se possa fazer no Ser, a da “essência” e da
“substância”, que são como que os dois polos de toda a manifestação; com mais
razão será também verdade para os aspectos mais particulares, portanto mais
contingentes e de importância mais secundária[65];
seja lá qual for o valor que eles possam ter aos olhos do indivíduo, quando
este os encara de seu ponto de vista particular, eles não são, propriamente
falando, mais do que simples “acidentes” no Universo.
VII
AS
POSSIBILIDADES
DA CONSCIÊNCIA
INDIVIDUAL
O que dissemos do estado de sonho nos leva agora a
falar um pouco, de modo geral, das possibilidades que o ser humano comporta
dentro dos limites da sua individualidade, e, mais particularmente, das
possibilidades deste estado individual visto sob o aspecto da consciência, que
constitui uma de suas características principais. Bem entendido, não é do ponto
de vista psicológico que iremos nos colocar aqui, embora este ponto de vista
possa ser definido precisamente pela consciência considerada como uma
característica inerente a certas categorias de fenômenos que se produzem no ser
humano, ou, se se preferir um modo de expressão mais figurado, como o
“continente” destes mesmos fenômenos[66].
O psicólogo, de resto, não tem que se preocupar em buscar o que pode ser no
fundo a natureza dessa consciência, assim como o geômetra não pesquisa a
natureza do espaço, que ele aceita como um dado incontestável, considerando-o
simplesmente como o continente de todas as formas que ele estuda. Em outros
termos, a psicologia não tem que se ocupar senão daquilo a que podemos chamar
de “consciência fenomênica”, vale dizer a consciência considerada exclusivamente
em suas relações com os fenômenos, e sem se perguntar se ela é ou não a
expressão de algo de outra ordem, algo que, por definição mesma, não está mais
afeito ao domínio psicológico[67].
Para nós a consciência é coisa bem diferente do que
para o psicólogo: ela não constitui um estado de ser específico, e tampouco é a
única característica distintiva do estado individual humano; mesmo no estudo
deste estado, ou mais precisamente de suas modalidades extracorpóreas, não nos
é possível admitir que tudo remeta a um ponto de vista mais ou menos similar ao
da psicologia. A consciência seria antes uma condição da existência em alguns
estados, mas não estritamente no sentido em que falamos, por exemplo, das
condições da existência corporal; poderíamos dizer, de forma mais exata, embora
possa parecer estranho à primeira vista, que ela é uma “razão de ser” para os
estados de que se trata, pois ela é manifestamente aquilo através de que o ser
individual participa da Inteligência universal (Buddhi na doutrina hindu)[68];
mas, naturalmente, é à faculdade mental individual (manas) que ela é inerente sob sua forma determinada (como ahankâra)[69],
e, por conseguinte, em outros estados, a mesma participação do ser na
Inteligência universal pode traduzir-se de modo inteiramente diferente. A
consciência, da qual não pretendemos dar aqui uma definição completa, o que
aliás seria pouco útil[70],
é assim algo de específico, seja do estado humano, seja de outros estados
individuais mais ou menos análogos a este; portanto, ela não é absolutamente um
princípio universal, e, se entretanto ela constitui uma parte integrante e um
elemento necessário da Existência universal, é exatamente com o mesmo peso que
todas as condições próprias a não importa quais estados de ser, sem que ela
possua a respeito o menor privilégio, assim como os estados aos quais ela se
refere não possuem em relação aos outros estados[71].
Apesar dessas restrições essenciais, a consciência,
no estado individual humano, não deixa de ser, como este próprio estado,
susceptível de uma extensão indefinida; e, mesmo no homem comum, ou seja
naquele que não desenvolveu especialmente suas modalidades extracorpóreas, ela
estende-se efetivamente muito mais do que se supõe ordinariamente. Admite-se em
geral, é verdade, que a consciência atualmente clara e distinta não é toda a
consciência, que ela não passa de uma porção mais ou menos considerável sua, e
que aquilo que ela deixa fora de si pode ultrapassá-la em muito, tanto em
extensão quanto em complexidade; mas, se os psicólogos reconhecem a existência
de uma “subconsciência” (chegando mesmo a abusar dela como um meio de
explicação bastante cômodo e colocando nela tudo aquilo que eles não sabem
aonde classificar dentre os fenômenos que eles estudam), eles sempre se esquecem
de considerar correlativamente uma “supraconsciência[72]”,
como se a consciência não pudesse prolongar-se para cima tanto quanto para
baixo, se é que estas noções de “para cima” e “para baixo” tenham aqui algum
sentido – e é provável que elas devam ter um, no mínimo, para o ponto de vista
particular dos psicólogos. Notemos de resto que “subconsciência” e
“supraconsciência” não passam na realidade, tanto uma como outra, de simples
prolongamentos da consciência, que não nos fazem sair de seu domínio integral,
e que, consequentemente, não podem de modo algum ser assimilados ao “inconsciente”,
ou seja àquilo que está fora da consciência, mas devem ao contrário ser
compreendidos dentro da noção completa da consciência individual.
Nessas condições, a consciência individual é
suficiente para dar conta de tudo o que, do ponto de vista mental, se passa no
domínio da individualidade, sem que seja preciso apelar para a hipótese bizarra
de uma “pluralidade de consciências”, que alguns chegaram a estender no sentido
de um “polipsiquismo” literal. É verdade que a “unidade do eu”, tal como vista
normalmente, é também ilusória; mas, se é assim, é justamente porque a
pluralidade e a complexidade existem no próprio seio da consciência, que se
prolonga em modalidades das quais algumas podem ser muito longínquas e bastante
obscuras, como as que constituem aquilo que se pode chamar de “consciência
orgânica[73]”,
e como ainda a maior parte daquelas que se manifestam no estado de sonho.
Por outro lado, a extensão indefinida da consciência
torna completamente inúteis certas teorias estranhas que surgiram em nossa
época, e cuja impossibilidade metafísica basta aliás para refutar plenamente.
Não estamos falando aqui apenas das hipóteses mais ou menos
“reencarnacionistas”, nem de todas aquelas que lhe são comparáveis, por
implicarem igualmente numa limitação da Possibilidade universal, e sobre as
quais já tivemos ocasião de nos explicar com todos os desenvolvimentos
necessários[74];
temos mais especificamente em vista a hipótese “transformista”, que, de resto,
tem hoje perdido muito da imerecida consideração que ela adquiriu durante um
certo tempo[75].
Para precisar este ponto sem nos estendermos além da conta, lembraremos que a
pretensa lei do “paralelismo entre a ontogenia e a filogenia”, que é um dos
principais postulados do “transformismo”, supõe, antes de mais nada, que haja realmente uma “filogenia” ou
“filiação da espécie”, o que não é um fato, mas uma hipótese totalmente
gratuita; o único fato que pode ser
constatado, é a realização de algumas formas orgânicas pelo indivíduo no
decurso de seu desenvolvimento embrionário, e, a partir do momento em que ele
realiza estas formas deste modo, não há mais necessidade de que ele as tenha
realizado antes em supostas “existências sucessivas”, nem tampouco será
necessário que a espécie à qual ele pertença as tenha realizado para ele num
desenvolvimento no qual, enquanto indivíduo, ele não pode tomar nenhuma parte.
De resto, pondo de parte as considerações embriológicas, a concepção dos
estados múltiplos nos permite considerar todos esses estados como existindo
simultaneamente num mesmo ser, e não como só podendo ser percorridos
sucessivamente no decurso de uma “descendência” que passaria, não apenas de um
ser para outro, mas inclusive de uma espécie para outra[76].
A unidade da espécie é, num certo sentido, mais verdadeira e mais essencial do
que a do indivíduo[77],
o que opõe-se à realidade de uma tal “descendência”; ao contrário, o ser que,
como indivíduo, pertence a uma espécie determinada, não deixa por isso de ser,
ao mesmo tempo, independente desta espécie em seus estados extra-individuais,
podendo mesmo, e sem ir tão longe, possuir ligações estabelecidas com outras
espécies através de simples prolongamentos da individualidade. Por exemplo,
como dissemos acima, o homem que reveste uma dada forma em sonhos, faz com que
esta forma seja uma modalidade secundária de sua própria individualidade, e,
por conseguinte, ele a realiza efetivamente segundo o único modo no qual esta
realização lhe é possível. Existem também, deste mesmo ponto de vista, outros
prolongamentos individuais de ordem muito diferente, e que apresentam um
caráter mais orgânico; mas isto nos levaria muito longe, e indicamo-lo apenas
de passagem[78].
De resto, no que tange a uma refutação mais completa e mais detalhada das
teorias “transformistas”, esta deve ser relacionada sobretudo com o estudo da
natureza da espécie e de suas condições de existência, estudo que não podemos
empreender presentemente; mas o que é essencial frisar, é que a simultaneidade
dos estados múltiplos basta para provar a inutilidade de tais hipóteses, que
são perfeitamente insustentáveis desde que as encaramos do ponto de vista
metafísico, e cujo erro de princípio carrega necessariamente a falsidade de
fato.
Insistimos especialmente na simultaneidade dos
estados de ser, pois, mesmo para as modificações individuais que se realizam em
modo sucessivo na ordem da manifestação, se não fossem concebidas como
simultâneas em princípio, sua existência não poderia ser senão puramente ilusória.
Não apenas o “fluir das formas” no manifestado, desde que conservemos seu
caráter relativo, é plenamente compatível com a “permanente atualidade” de
todas as coisas no não-manifestado, como também, se não houvesse nenhum
princípio de mudança, a própria mudança, como já explicamos em outras ocasiões,
seria desprovida de qualquer tipo de realidade.
VIII
O MENTAL,
ELEMENTO
CARACTERÍSTICO
DA
INDIVIDUALIDADE HUMANA
Dissemos que a consciência, entendida em seu sentido
mais geral, não é algo que possa ser visto como rigorosamente próprio do ser
humano enquanto tal, como susceptível de caracterizá-lo à exclusão de todos os
outros seres; e existem com efeito, mesmo no domínio da manifestação corporal
(que não representa mais do que uma porção restrita do grau de Existência em
que se situa o ser humano), e desta parte da manifestação corporal que nos
rodeia imediatamente e que constitui a existência terrestre, uma multitude de seres que não pertencem
à espécie humana, mas que entretanto apresentam muita similaridade com esta,
sob muitos aspectos, para que não nos seja permitido supô-los desprovidos de
consciência, mesmo tomada simplesmente no sentido psicológico vulgar. Este é,
em maior ou menor grau, o caso de todas as espécies animais, que aliás testemunham
manifestamente a posse de uma consciência; é preciso toda a cegueira que pode
causar o espírito de sistema para criar uma teoria tão contrária às evidências
como a teoria cartesiana dos “animais-máquina”. Talvez seja preciso ir ainda
além, e, para os outros reinos orgânicos, senão para todos os seres do mundo
corporal, considerar a possibilidade de outras formas de consciência, que
aparece como estando ligada especificamente à condição vital; mas isto não
importa no momento para aquilo que nos propomos estabelecer.
No entanto, existe certamente uma forma da
consciência, dentre todas aquelas de que ela pode revestir-se, que é
propriamente humana, e esta forma determinada (ahankâra ou “consciência do eu”) é aquela que é inerente à
faculdade que nós chamamos de “mental”, ou seja precisamente a este “sentido
interno” que é designado em sânscrito pelo nome de manas, e que constitui verdadeiramente a característica da
individualidade humana[79].
Esta faculdade é algo realmente específico, que, como já explicamos em outras
ocasiões, deve ser cuidadosamente distinguida do intelecto puro, pois este, ao
contrário, em razão de sua universalidade, deve ser visto como existente em
todos os seres e em todos os estados, quaisquer que possam ser as modalidades
através das quais sua existência será manifestada; e não se deve ver no “mental” outra coisa do
que aquilo que ele é verdadeiramente, ou seja, para empregar a linguagem dos
lógicos, uma “diferença específica” pura e simples, sem que sua posse possa
acarretar por si só, para o homem, nenhuma superioridade sobre os outros seres.
De fato, não pode ser questão de superioridade ou de inferioridade, para um ser
considerado em relação aos outros, senão naquilo que há de comum entre eles e
que implica uma diferença, não de natureza, mas apenas de grau, enquanto que o
“mental” é precisamente o que existe de específico no homem, aquilo que ele não
tem em comum com os demais seres não-humanos, portanto aquilo em relação a que
ele não pode de modo algum ser comparado a estes. O ser humano poderá sem
dúvida, numa certa medida, ser visto como superior ou inferior a outros seres
em tal ou tal ponto (superioridade ou inferioridade totalmente relativas, bem
entendido); mas a consideração do “mental”, a partir do momento em que ele se apresenta
como uma “diferença” na definição do ser humano, não poderá jamais fornecer
nenhum termo de comparação.
Para exprimir ainda a coisa em outros termos,
podemos retomar simplesmente a definição aristotélica e escolástica do homem
como “animal racional”: se o definimos assim, e se ao mesmo tempo vemos a
razão, ou melhor a “racionalidade”, como sendo propriamente o que os lógicos da
idade média chamavam differentia animalis,
é evidente que a presença desta não pode constituir mais do que um simples caráter
distintivo. De fato, esta diferença só se aplica dentro do gênero animal, para caracterizar a espécie
humana distinguindo-a essencialmente de todas as outras espécies do mesmo
gênero; mas ela não se aplica aos seres que não pertençam a este gênero, de
sorte que tais seres (como os anjos por exemplo) não podem de modo algum ser
chamados de “racionais”, e esta distinção sinaliza apenas que sua natureza é
diferente da do homem, sem implicar para eles nenhuma inferioridade em relação
a este[80].
Por outro lado, deve ficar bem entendido que a definição que fornecemos não se
aplica ao homem senão enquanto ser individual, pois é somente como tal que ele
pode ser visto como pertencente ao gênero animal[81];
e é de fato como ser individual que o homem é caracterizado pela razão, ou
melhor pelo “mental”, fazendo caber neste termo mais amplo a razão propriamente
dita, que é um dos seus aspectos, e sem dúvida o principal.
Quando dizemos, falando do “mental”, ou da razão,
ou, o que é quase o mesmo, do pensamento em seu modo humano, que se trata de
faculdades individuais, é preciso entender por isto, não as faculdades que
seriam próprias a um indivíduo à exclusão dos demais, ou que seriam radical e
essencialmente diferentes em cada indivíduo (o que seria aliás a mesma coisa no
fundo, pois não se poderia dizer então serem as mesmas faculdades, de modo que
tratar-se-ia apenas de uma assimilação puramente verbal), mas de faculdades que
pertencem aos indivíduos enquanto tais, e que não teriam mais nenhuma razão de
ser se quiséssemos considerá-las fora de um dado estado individual e das
considerações específicas que definem a existência deste estado. É neste
sentido que a razão, por exemplo, é propriamente uma faculdade individual
humana, pois, se é verdade que ela é no fundo, em sua essência, comum a todos
os homens (sem o que ela não poderia evidentemente servir para definir a
natureza humana), e que ela não difere de um indivíduo para outro senão em sua
aplicação e em suas modalidades secundárias, ela não deixa de pertencer aos
homens enquanto indivíduos, e somente enquanto indivíduos, pois ela é
justamente característica da individualidade humana; e é preciso tomar cuidado
para lembrar-se que é apenas por uma transposição puramente analógica que se
pode legitimamente considerar de algum modo sua correspondência no universal.
Portanto, e insistimos nisto para afastar toda confusão possível (confusão que
as concepções “racionalistas” do Ocidente moderno tornam muito mais fácil), se
tomamos o termo “razão” ao mesmo tempo num sentido universal e num sentido
individual, devemos sempre ter o cuidado de frisar que este duplo emprego de um
mesmo termo (que de resto seria, com todo rigor, preferível evitar) não passa
da indicação de uma simples analogia, que exprime a refração de um princípio
universal (que não é outra coisa do que Buddhi)
na ordem mental humana[82].
É apenas em virtude desta analogia, que não é de modo algum uma identificação,
que podemos num certo sentido, e com a reserva precedente, chamar também de
“razão” àquilo que, no universal, corresponde, por uma transposição
conveniente, à razão humana, ou, em outros termos, aquilo de que esta é a
expressão, como tradução e manifestação, em modo individualizado[83].
De resto, os princípios fundamentais do conhecimento, mesmo quando vistos como
a expressão de uma certa “razão universal”, entendida no sentido do Logos platônico e alexandrino, nem por
isso deixam de ultrapassar, além de toda medida assinalável, o domínio
particular da razão individual, que é exclusivamente uma faculdade de
conhecimento distintivo e discursivo[84],
e à qual eles se impõem como dados de ordem transcendente que condicionam
necessariamente toda atividade mental. Isto é evidente, de resto, a partir do
momento em que lembramos que estes princípios não pressupõem nenhuma existência
particular, mas são ao contrário pressupostos logicamente como premissas, no
mínimo implícitas, de toda afirmação verdadeira de ordem contingente. Podemos
mesmo dizer que, em razão de sua universalidade, estes princípios, que dominam
toda lógica possível, têm ao mesmo tempo, ou melhor antes de tudo, um alcance
que se estende pra além do domínio da lógica, pois esta, ao menos na sua
acepção habitual e filosófica[85],
não é nem pode ser mais do que uma aplicação, por sinal mais ou menos consciente,
de princípios universais às condições específicas do entendimento humano
individualizado[86].
Estas poucas explicações, embora distanciando-se um
pouco do objeto principal de nosso estudo, nos pareceram necessárias para fazer
compreender em que sentido dizemos que o “mental” é uma faculdade ou uma
propriedade do indivíduo enquanto tal, e que esta propriedade representa o
elemento essencialmente característico do estado humano. É por isso que, aliás,
quando nos ocorre falar em “faculdades”, damos a este termo uma acepção
bastante vaga e indeterminada; ele é assim susceptível de uma aplicação mais
geral, em casos nos quais não haveria nenhuma vantagem em substituí-lo por
outro termo mais específico por ser mais claramente definido.
Quanto à distinção essencial do “mental” para com o
intelecto puro, lembraremos apenas o seguinte: o intelecto, na passagem do
universal para o individual, produz a consciência, mas esta, por ser de ordem
individual, não é absolutamente idêntica ao próprio princípio intelectual, embora
proceda dele imediatamente como resultado da intersecção deste princípio com o
domínio específico de certas condições de existência, pelas quais se define a
individualidade considerada[87].
Por outro lado, é à faculdade mental, unida diretamente à consciência, que
pertence propriamente o pensamento individual, que é de ordem formal (onde,
segundo o que foi dito, compreendemos a razão, assim como a memória e a
imaginação), e que não é absolutamente inerente ao intelecto transcendente
(Buddhi), cujos atributos são essencialmente informais[88].
Isto mostra claramente até que ponto esta faculdade mental é na realidade algo
de restrito e especializado, mesmo sendo susceptível de desenvolver
possibilidades indefinidas; ela é portanto ao mesmo tempo muito menos e muito mais do que
gostariam as concepções demasiado simplificadas, diríamos mesmo “simplistas”,
que circulam entre os psicólogos ocidentais[89].
IX
A HIERARQUIA
DAS FACULDADES
INDIVIDUAIS
A distinção profunda do intelecto e do mental
consiste essencialmente, como dissemos, em que o primeiro é de ordem universal,
enquanto que o segundo é de ordem puramente individual; por conseguinte, eles
não podem aplicar-se nem ao mesmo domínio nem aos mesmos objetos, e é preciso
inclusive, a este respeito, distinguir também a ideia informal do pensamento
formal, que não passa de uma expressão mental sua, vale dizer sua tradução em
modo individual. A atividade do ser, nestas duas ordens diversas que são a
intelectual e a mental, pode, mesmo exercendo-se de forma simultânea, chegar a
dissociar-se a ponto de torná-las completamente independentes uma da outra
quanto às suas manifestações respectivas; mas não podemos mais do que assinalar
isto de passagem sem insistir no assunto, cujo desenvolvimento nos levaria
inevitavelmente a deixar o ponto de vista estritamente teórico em que
pretendemos permanecer para o momento.
Por outro lado, o princípio psíquico que caracteriza
a individualidade humana é de natureza dupla: além do elemento mental
propriamente dito, ele compreende igualmente o elemento sentimental ou emotivo,
que, evidentemente, pertence também ao domínio da consciência individual, mas
que está ainda mais afastado do intelecto, e ao mesmo tempo mais estreitamente
dependente das condições orgânicas, portanto mais próximo do mundo corporal ou
sensível. Esta nova distinção, embora estabelecida no interior daquilo que é
propriamente individual, sendo por conseguinte menos fundamental do que a
precedente, é no entanto mais profunda do
que se poderia crer à primeira vista; e muitos erros e enganos da
filosofia moderna ocidental, particularmente sob sua forma psicológica[90],
provém de que, apesar das aparências, ela é ainda mais ignorada do que a
distinção entre o intelecto e a mente, ou que no mínimo sua real dimensão é
desconsiderada. Ademais, a distinção, e poderíamos mesmo dizer a separação
destas faculdades, mostra que existe uma multiplicidade de estados, ou mais
exatamente de modalidades, dentro do próprio indivíduo, embora este, em seu
conjunto, não constitua mais do que um único estado do ser total; a analogia da
parte com o todo se reencontra aqui como em toda parte[91].
Podemos assim falar de uma hierarquia dos estados do ser total; apenas, as
faculdades do indivíduo, se são indefinidas em sua extensão possível, são em
número definido, e o simples fato de as subdividirmos mais ou menos, por uma
dissociação levada mais ou menos longe, não lhes acrescenta evidentemente
nenhuma nova potencialidade, enquanto que, como já dissemos, os estados do ser
são verdadeiramente em multitude indefinida, e isto por sua própria natureza,
que é (para os estados manifestados) a de corresponder a todos os graus da
Existência universal. Podemos dizer que, na ordem individual, a distinção não
se opera senão por divisão, e que, na ordem extra-individual, ela opera-se ao
contrário por multiplicação; aqui, como em todos os casos, a analogia aplica-se
em sentido inverso[92].
Não temos a intenção de entrar aqui no estudo
particular e detalhado das diferentes faculdades individuais e de suas funções
ou atribuições respectivas; este estudo teria forçosamente um caráter mais
psicológico, ao menos na medida em que se permaneça na teoria destas
faculdades, as quais basta aliás nomear para que seus objetos próprios fiquem
claramente definidos por isso mesmo, com a condição, bem entendido, de ficar
nas generalidades, que é o que nos importa atualmente. Como as análises mais ou
menos sutis não são do território da metafísica, sendo de resto tanto mais vãs
quanto mais sutis, nós as deixamos aos filósofos que se comprazem com elas; por
outro lado, nossa intenção presente não é a de tratar completamente a questão
da constituição do ser humano, que já expusemos em outra obra[93],
o que nos dispensa de maiores desenvolvimentos sobre estes pontos de importância
secundária em relação ao tema que nos ocupa presentemente.
Em suma, se julgamos a propósito dizer algumas
palavras sobre a hierarquia das faculdades individuais, é apenas porque isto
nos permite fazer uma ideia melhor do que podem vir a ser os estados múltiplos,
fornecendo uma espécie de imagem reduzida deles, compreendida dentro dos
limites da possibilidade individual humana. Esta imagem não pode ser exata, na
sua medida, a não ser que se leve em conta as reservas que formulamos no que
diz respeito à aplicação da analogia; por outro lado, como ela será tanto
melhor quanto menos restrita for, convém acrescentar, juntamente com a noção
geral da hierarquia das faculdades, a consideração dos diversos prolongamentos
da individualidade de que tivemos ocasião de falar precedentemente. De resto,
estes prolongamentos, que são de diferentes ordens, podem entrar igualmente nas
subdivisões da hierarquia geral; existem mesmo alguns que, por serem de certo
modo de natureza orgânica, ligam-se simplesmente à ordem corporal, mas com a
condição de vermos até nesta ordem algo de psíquico num certo grau, por estar
esta manifestação corpórea como que envolvida e ao mesmo tempo penetrada pela
manifestação sutil, na qual ela tem seu princípio imediato. Não cabe, na verdade,
separar a ordem corporal das outras ordens individuais (ou seja das outras
modalidades pertencentes ao mesmo estado individual visto na integralidade de
sua extensão) mais profundamente do que estas
devem ser separadas entre si, porque todas se situam no mesmo nível no
conjunto da Existência universal, e por conseguinte na totalidade dos estados
do ser; mas, enquanto que as outras distinções foram negligenciadas e
esquecidas, esta tomou uma importância exagerada em razão do dualismo
“espírito-matéria” cuja concepção prevaleceu, por causas variadas, nas
tendências filosóficas de todo o Ocidente moderno[94].
[1] Lembraremos
incidentalmente, a propósito, que o fato de o ponto de vista filosófico jamais
utilizar-se do simbolismo basta para mostrar o caráter absolutamente “profano”
e exterior deste ponto de vista e do modo de pensamento que lhe corresponde.
[2] Ver O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap.
XXIII.
[3] Ver O Simbolismo da Cruz, caps. XVI a XVIII.
[4] Ver ibid. cap. XV.
[5] Ver ibid., cap. I.
[6] Ver Orient et Occident e La Crise du Monde moderne.
[7] É
preciso notar que dizemos “gerais” e não “universais”, porque trata-se aqui de
condições que são especiais a certos estados de existência, e nada mais; isto
deve bastar para fazer compreender que não pode ser questão de infinitude em
tal caso, sendo estas condições evidentemente limitadas, como os próprios
estados aos quais elas se aplicam e que elas contribuem para definir.
[8] Se
nos acontece às vezes de dizer “Infinito metafísico”, precisamente para marcar
de modo mais explícito que não se trata do pretenso “infinito matemático” ou de
outras “contrafações do Infinito”, se podemos nos exprimir assim, uma tal
expressão não cai absolutamente na objeção que formulamos, porque a ordem
metafísica é verdadeiramente ilimitada, de modo que não há nela nenhuma
determinação, mas ao contrário a afirmação daquilo que ultrapassa toda
determinação, enquanto que quem diz “matemático” restringe por isso mesmo a
concepção a um domínio específico e limitado, o da quantidade.
[9] Ver O Simbolismo da Cruz, caps. XXVI e XXX.
[10] O
absurdo, no sentido lógico e matemático, é aquilo que implica contradição; ele
se confunde assim com o impossível, pois é a ausência de contradição interna
que, tanto lógica quanto ontologicamente, define a possibilidade.
[11] Sobre
o emprego de termos em forma negativa, mas cujo significado é essencialmente
positivo, ver Introduction gènèrale à
l’étude des doctrines hindoues, 2ª parte, cap. VIII; e O Homem e seu devir segundo o Vêdânta,
cap. XV.
[12] Não
dizemos defini-lo, pois seria evidentemente contraditório pretender dar uma
definição do Infinito; e já mostramos que o ponto de vista metafísico, em razão
de seu caráter universal e ilimitado, tampouco é susceptível de ser definido (Introduction gènèrale à l’étude des
doctrines hindoues, 2ª parte, cap. V).
[13] É
preciso distinguir esta necessidade lógica, que é a impossibilidade de que uma
coisa não seja ou que ela seja outra coisa do que aquilo que ela é, e isto
independentemente de qualquer condição particular, da necessidade dita
“física”, ou necessidade de fato, que é simplesmente a impossibilidade para as
coisas ou os seres de não se conformarem às leis do mundo ao qual pertencem, e
que, por consequência, está subordinada às condições pelas quais este mundo
está definido e só vale no interior deste domínio particular.
[14] Alguns
filósofos, argumentando com justa razão contra o pretenso “infinito
matemático”, e tendo mostrado todas as contradições que implica esta ideia (e
que desaparecem quando se dá conta de que não se trata senão do indefinido)
acreditaram provar com isto, ao mesmo tempo, a impossibilidade do Infinito
metafísico; tudo o que eles provaram, na verdade, é que ignoravam completamente
aquilo de que se trata no segundo caso.
[15] Em
outros termos, o finito, mesmo susceptível de uma extensão indefinida, é sempre
rigorosamente nulo diante do Infinito; por conseguinte, nenhuma coisa nem
nenhum ser pode ser considerado como “uma parte do Infinito”, o que é uma das
concepções errôneas próprias ao “panteísmo”, pois a própria palavra “parte”
supõe a existência de uma relação definida com o todo.
[16] O
que é preciso evitar acima de tudo, é conceber o Todo universal ao modo de uma
soma aritmética, obtida pela adição de suas partes tomadas uma a uma e
sucessivamente. Aliás, mesmo quando se trata de um todo particular, existem
dois casos a distinguir: um todo verdadeiro é logicamente anterior às suas
partes e é independente delas; um todo concebido como logicamente posterior às
suas partes, de que ele é a soma, não constitui na realidade senão aquilo que
os escolásticos chamavam de um ens
rationis, cuja existência, enquanto “todo”, está subordinada à condição de
ser efetivamente pensada como tal; o primeiro tem em si mesmo um princípio de
unidade real, superior à multiplicidade de suas partes, enquanto que o segundo
não tem outra unidade do que aquela que lhe atribuímos pelo pensamento.
[17] O Simbolismo da Cruz, cap. XV.
[18] Ver ibid., Cap. XXIV.
[19] É
Brahma e sua Shakti na doutrina hindu (ver O
Homem e seu devir segundo o Vêdânta, caps. V e X)
[20] Ver O Simbolismo da Cruz, cap. XXIV.
[21] Cabe
lembrar que todo sistema filosófico apresenta-se como sendo essencialmente a
obra de um indivíduo, contrariamente ao que acontece com as doutrinas
metafísicas, diante das quais as individualidades não contam.
[22] Ver
Introduction génerale à l’étude des
doctrines hindoues, 2ª parte, cap. VIII; O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. I; O Simbolismo da Cruz, caps. I e XV.
[23] Da
mesma forma, para tomarmos um exemplo mais abrangente, as diversas geometrias
euclidianas e não-euclidianas não se aplicam evidentemente ao mesmo espaço; mas
isto não poderia impedir as diferentes modalidades de espaço às quais elas
correspondem de coexistir na integralidade da possibilidade espacial, na qual
cada uma deve realizar-se a seu modo, segundo o que explicamos a respeito da
identidade efetiva entre o possível e o real.
[24] Deve
ficar claro que não tomamos aqui a palavra “existência” em seu sentido rigoroso
e conforme à sua derivação etimológica, pois este só é aplicável estritamente
ao ser condicionado e contingente, ou seja em suma à manifestação; só
utilizamos este termo, como também às vezes o próprio termo “ser”, de modo
puramente analógico e simbólico, porque ele nos ajuda em certa medida a
explicar aquilo de que se trata, embora, na realidade, ele seja extremamente
inadequado (ver O Simbolismo da Cruz,
caps. I e II).
[25] Agora
trata-se da “existência” no sentido próprio e rigoroso do termo.
[26] Uma
tal ideia é metafisicamente injustificável, e ela só pode provir de uma
intrusão do ponto de vista “moral” num domínio aonde ela não tem o que fazer;
da mesma forma, o “princípio do melhor” ao qual Leibnitz apela nesta ocasião, é
propriamente antimetafísico, como já explicamos (O Simbolismo da Cruz, cap. II).
[27] O
que queremos dizer com isto, é que, metafisicamente, não cabe ver o real como
constituindo uma ordem diferente do possível; mas é preciso dar-se conta de que
este termo “real” é por si mesmo muito vago, senão equívoco, ao menos no uso
que se faz dele na linguagem comum e mesmo na maior parte dos filósofos; só o
utilizamos aqui pela necessidade de descartar a distinção ordinária do possível
e do real; mais adiante voltaremos para lhe dar um significado mais preciso.
[28] É
importante notar que a condição espacial não basta, sozinha, para definir um
corpo enquanto tal; todo corpo é necessariamente extenso, ou seja submetido ao
espaço (donde resulta notadamente sua divisibilidade indefinida, que mostra o
absurdo da concepção atomista), mas, contrariamente ao que pretendia Descartes
e outros partidários de uma física (mecanicista), a extensão não constitui
absolutamente toda a natureza ou a essência dos corpos.
[29] Ver O Simbolismo da Cruz, cap. XXX.
[30] Ver
ibid., cap. XI; cf. O Homem e seu devir segundo o Vêdânta,
caps. II, XII e XIII.
[31] Cf. O Homem e seu devir segundo o Vêdânta,
cap. XV.
[32] Deve
ficar claro que, quando dizemos “transitório”, não temos em vista exclusivamente,
nem mesmo principalmente, a sucessão temporal, pois esta só se aplica a um modo
particular de manifestação.
[33] Sobre
a continuidade dos estados do ser, ver O
Simbolismo da Cruz, caps. XV e XIX. – O que foi dito deve mostrar que os
pretensos princípios da “conservação da matéria” e da “conservação da energia”,
qualquer que seja a forma como se os exprima, não passam na realidade de
simples leis físicas relativas e aproximativas e que, mesmo no interior do
domínio especial a que se aplicam, só podem ser verdadeiras sob certas
condições restritivas, sendo que estas condições subsistiriam ainda, mutatis mutandis, se quiséssemos
estender estas leis, transpondo convenientemente seus termos, a todo o domínio
da manifestação. Os físicos são aliás obrigados a reconhecer que só se trata aí
de “casos limite”, no sentido em que estas leis só podem ser aplicadas com todo
o rigor dentro dos chamados “sistemas fechados”, ou seja a algo que, de fato,
não existe e nem pode existir, por ser impossível realizar e mesmo conceber, no
interior da manifestação, um conjunto que seja completamente isolado de todo o
resto, sem comunicação nem troca de espécie alguma com o que está ao seu redor;
uma tal solução de continuidade seria uma verdadeira lacuna na manifestação,
pois este conjunto estaria em relação com o resto como se ele não existisse.
[34] Isto é
o que notadamente pretendem os atomistas.
[35] A
concepção de um “espaço vazio” é contraditória, o que, diga-se de passagem,
constitui uma prova suficiente da realidade do elemento etéreo (Akâsha), contrariamente à teoria das
diversas escolas que, na Índia como na Grécia, não admitiam mais do que quatro
elementos corporais.
[36] A
respeito do vazio e de suas relações com a extensão, ver também O Simbolismo da Cruz, cap. IV.
[37] Cf. Tao Te King, Cap. XIV.
[38] É
o inexprimível (e não o incompreensível como se crê de ordinário) que era
designado primitivamente pelo termo “mistério”, pois, em grego, musthrion deriva de muein, que significa “calar-se”, “ser silencioso”. À mesma raiz
verbal MU (donde o latim mutus, “mudo”) liga-se também o termo umQos, “mito”, que, antes de ser desviado até
não designar mais do que um relato fantasista, significava aquilo que, por não
poder ser expresso diretamente, só podia ser sugerido por uma representação
simbólica, fosse ela verbal ou figurativa.
[39] Podemos
encarar da mesma forma as trevas, num sentido superior, como aquilo que está
para além da manifestação luminosa, enquanto que, no seu sentido inferior e
mais habitual, elas são simplesmente, dentro do manifestado, a ausência ou a
privação da luz, ou seja qualquer coisa de puramente negativo; a cor negra
possui aliás, no simbolismo, utilizações que se referem efetivamente a este
duplo significado.
[40] Lembramos
que as duas possibilidades de não-manifestação aqui consideradas correspondem
ao “Abismo” (BhQos) e ao “Silêncio” (Sigh) de certas escolas do Gnosticismo
alexandrino, que são de fato aspectos do Não-Ser.
[41] Como
indicamos no início, se quisermos falar no ser total, é preciso, embora este
termo não seja mais propriamente aplicável, chamá-lo ainda analogamente “um
ser”, na falta de outro termo mais adequado à disposição.
[42] O
“nada” não se opõe portanto ao Ser, contrariamente ao que se diz vulgarmente; é
à Possibilidade que ele se oporia, se ele pudesse entrar como um termo real
numa oposição qualquer; mas não é isto que acontece, pois não há nada que possa
opor-se à Possibilidade, o que é fácil de entender, uma vez que a Possibilidade
é realmente idêntica ao Infinito.
[43] Lembraremos
ainda que “existir”, na acepção etimológica do termo (latim ex-stare), significa propriamente ser
dependente e condicionado; é portanto, em suma, não ter em si seu próprio
princípio e sua própria razão suficiente, o que é bem o caso da manifestação,
assim como explicaremos mais adiante ao definirmos a contingência de forma mais
precisa.
[44] O Simbolismo da Cruz, cap. I.
[45] Esta
restrição é necessária porque, em sua essência não-manifestada, esta mesma
essência não pode evidentemente estar submetida a tais condições.
[46] É
o que a doutrina hindu designa como o domínio da manifestação grosseira; dá-se
às vezes o nome de “mundo físico”, mas esta expressão é equívoca, e, se ela
pode justificar-se pelo sentido moderno do termo “físico”, que só se aplica de
fato apenas às qualidades sensíveis, achamos melhor manter sempre seu sentido
antigo e etimológico (de fusis,
“natureza”); a partir do momento em que se a entende assim, a manifestação
sutil não é menos “física” do que a manifestação grosseira, pois a “natureza”,
ou seja propriamente o domínio do “devir”, é na realidade idêntica à
manifestação universal inteira.
[47] O Simbolismo da Cruz, cap. XI.
[50] Poderíamos
então dizer que o “eu”, com todos os prolongamentos de que é susceptível, tem
muito menos importância da que lhe atribuem os psicólogos e os filósofos
ocidentais modernos, mesmo tendo possibilidades indefinidamente mais extensas
do que eles acreditam ou podem supor (ver O
Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. II, e também o que diremos mais
adiante sobre as possibilidades da consciência individual).
[51] Estes
dois casos de indefinidamente crescente e indefinidamente decrescente são o que
corresponde na realidade àquilo que Pascal chamou tão impropriamente de “os
dois infinitos” (ver O Simbolismo da Cruz,
cap. XXIX); convém insistir que nenhum dos dois nos fazem absolutamente sair do
domínio quantitativo.
[52] Lembramos
ainda, pois nunca é demais insistir, que a unidade de que se trata é a unidade
metafísica ou “transcendental”, que se aplica ao Ser universal como um atributo
“co-extensivo” a este, para empregarmos a linguagem dos lógicos (embora a noção
de “extensão” e a de “compreensão” que lhe é correlata não sejam mais
propriamente aplicáveis além das “categorias” ou dos gêneros mais gerais, ou
seja quando se passa do geral ao universal), e que, como tal, difere essencialmente
da unidade matemática ou numérica, que só se aplica ao domínio quantitativo; e
o mesmo ocorre com a multiplicidade, segundo a observação que já fizemos em
muitas ocasiões. Existe apenas analogia, e não identidade nem sequer
similaridade, entre as noções metafísicas de que falamos e as noções
matemáticas correspondentes; a designação de umas e outras por termos comuns
não exprime na realidade nada além do que esta analogia.
[53] É
por isso que pensamos que se deve, na medida do possível, evitar um termo tal
como o de “emanação”, que evoca uma ideia ou antes uma imagem falsa, a de uma
“saída” fora do Princípio.
[54] Está
claro que o termo “direções”, emprestado à consideração das possibilidades
espaciais, deve ser entendido aqui simbolicamente, pois, no sentido literal,
ele só se aplicaria a uma parte ínfima das possibilidades de manifestação; o
sentido que lhe damos aqui está em conformidade com tudo o que expusemos em O Simbolismo da Cruz.
[55] Não
dizemos “individuais”, pois dentro do que se trata estão compreendidos também
os estados de manifestação informal, que são supra-individuais.
[56] De
fato, não há exemplo possível, no sentido estrito do termo, no que concerne às
verdades metafísicas, pois estas são universais por essência e não são
susceptíveis de nenhuma particularização, enquanto que todo exemplo é
forçosamente de ordem particular, num grau ou noutro.
[57] Ver O Homem e seu devir segundo o Vêdânta,
cap. XII.
[58] O
termo “imaginado” deve ser entendido aqui no seu sentido mais exato, pois é
exatamente de uma formação de imagens que se trata essencialmente no sonho.
[59] Ver O Homem e seu devir segundo o Vêdânta,
cap. X.
[60] Ver O Simbolismo da Cruz, cap. II.
[62] As
mesmas observações cabem, igualmente, no caso da alucinação, no qual o erro não
consiste, como se diz vulgarmente, em atribuir uma realidade ao objeto
percebido, pois seria evidentemente impossível perceber qualquer coisa que não
existisse de modo algum,, mas em atribuir-lhe um modo de realidade diverso
daquele que é realmente o seu; trata-se em suma de uma confusão entre a ordem
da manifestação sutil e a da manifestação corpórea.
[63] Leibnitz
definiu a percepção como “a expressão da multiplicidade na unidade” (multorum in uno expressio), o que é
justo, mas com a condição de fazer as reservas que já indicamos sobre a unidade
que se deve atribuir à “substância individual” (cf. O Simbolismo da Cruz, cap. III).
[64] Por
esta restrição, não pretendemos negar a exterioridade dos objetos sensíveis,
que é uma conseqüência de sua espacialidade; queremos apenas indicar que não
fazemos intervir aqui a questão do grau de realidade que é preciso assinalar a
esta exterioridade.
[65] Aludimos
aqui, notadamente, à distinção do “espírito” e da “matéria”, tal como a coloca,
depois de Descartes, toda a filosofia ocidental, que chegou a pretender colocar
toda a realidade, seja nos dois termos desta distinção, seja apenas em um ou
outro desses termos, acima dos quais ela é incapaz de se elevar (Ver Introduction générale à l’étude des
doctrines hindoues, 2ª parte, cap. VIII).
[66] A
relação entre o continente e o conteúdo, tomada em seu sentido literal, é uma
relação espacial; mas aqui ela deve ser entendida em modo figurado, pois aquilo
de que se trata não possui extensão nem está localizado no espaço.
[67] Resulta
daí que a psicologia, seja o que for que pretendam alguns, tem exatamente o
mesmo caráter de relatividade que qualquer outra ciência particular e
contingente, e que ela não tem tampouco relações com a metafísica; não se deve
esquecer que ela é uma ciência moderna e “profana”, sem ligação com qualquer
conhecimento tradicional.
[68] Ver O Homem e seu devir segundo o Vêdânta,
cap. VII.
[69] Ibid., cap. VIII.
[70] Acontece,
de fato, que, para coisas das quais cada um tem por si mesmo uma noção
suficientemente clara, como é o caso, a definição acaba se tornando mais
complexa e obscura do que a coisa em si.
[71] Sobre
esta equivalência de todos os estados do ponto de vista do ser total, ver O Simbolismo da Cruz, cap. XXVII.
[72] Alguns
psicólogos empregam este termo de “supraconsciência”, mas eles não entendem por
isto nada além da consciência normal clara e distinta, por oposição à
“subconsciência”; nestas condições, trata-se de um neologismo perfeitamente
inútil. Ao contrário, o que entendemos aqui por “supraconsciência” é verdadeiramente
o simétrico da “subconsciência”, em relação à consciência comum, e assim este
termo não faz duplo emprego com nenhum outro.
[73] Ver O Homem e seu devir segundo o Vêdânta,
cap. XVIII.
[74] O Erro Espírita, 2ª parte,
cap. VI; cf. O Simbolismo da Cruz, cap.
XV.
[75] O
sucesso desta teoria foi aliás devido em boa parte a razões que nada tem
de “científicas”, mas que provém
diretamente de seu caráter antitradicional; pelas mesmas razões, podemos prever
que, mesmo depois que nenhum biólogo sério acredite mais nela, ela ainda
sobreviverá por muito tempo nos manuais escolares e nas obras de vulgarização.
[76] Deve
ficar bem entendido que a impossibilidade de mudança de espécie não se plica
senão às espécies verdadeiras, que nem sempre coincidem com o que é designado como
tal nas classificações dos zoólogos e dos botânicos, pois este podem tomar por
espécies diferentes o que não passa de raças ou variedades de uma mesma
espécie.
[77] Esta
afirmação pode parecer muito paradoxal à primeira vista, mas ela se justifica
quando consideramos o caso dos vegetais ou de alguns animais ditos inferiores,
tais como os pólipos e os vermes, quando é quase impossível reconhecer se
estamos na presença de um ou de muitos indivíduos e determinar em que medida
estes indivíduos são realmente distintos uns dos outros, enquanto que os
limites da espécie, ao contrário, aparecem sempre claramente.
[78] Cf. O Erro Espírita, 2ª parte,
cap. VIII.
[79] Ver
O Homem e seu devir segundo o Vêdânta,
cap. VIII. Empregamos o termo “mental” de preferência a qualquer outro, porque
sua raiz é a mesma do sânscrito manas,
que se reencontra no latim mens, no
inglês mind, etc.; de resto, as
numerosas aproximações linguísticas possíveis em torno desta raiz MAN ou MEN, e os diversos significados das palavras que ela forma mostram
que se trata de um elemento que é visto como essencialmente característico do
ser humano, pois sua designação serve muitas vezes para nomear a ele próprio, o
que implica que este ser é suficientemente definido pela presença do elemento
em questão (cf. ibid., cap. I).
[80] Veremos
mais adiante que os estados “angélicos” são propriamente os estados
supra-individuais da manifestação, ou seja aqueles que pertencem ao domínio da
manifestação informal.
[81] Lembramos
que a espécie é essencialmente da ordem da manifestação individual, que ela é
estritamente imanente a um certo grau definido da Existência universal, e que,
por consequência, o ser só está ligado a ela no estado correspondente a este
grau.
[82] Na
ordem cósmica, a refração correspondente do mesmo princípio tem sua expressão
no Manu da tradição hindu (ver Introduction générale à l’étude des
doctrines hindoues, 3ª parte, cap. V e O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. IV).
[83] Segundo
os filósofos escolásticos, uma transposição deste gênero deve ser efetuada toda
vez que se passa dos atributos dos seres criados para os atributos divinos, de
tal modo que é apenas analogicamente que os mesmos termos podem ser aplicados a
uns e outros, e simplesmente para indicar que está em Deus o princípio de todas
as qualidades que se encontram no homem ou em qualquer outro ser, com a
condição, bem entendido, que se trate de qualidades realmente positivas, e não
daquelas que, por serem o resultado de uma privação ou de uma limitação, não
tem mais do que uma existência puramente negativa quaisquer que possam ser as
aparências, e são assim desprovidas de princípio.
[84] O
conhecimento discursivo, opondo-se ao conhecimento intuitivo, é no fundo
sinônimo de conhecimento indireto e mediato; trata-se assim de um conhecimento
inteiramente relativo, e de certo modo por reflexo ou por participação; em
razão de seu caráter de exterioridade, que deixa subsistir a dualidade entre
sujeito e objeto, ele não poderia encontrar em si mesmo a garantia de sua
veracidade, mas ele deve recebê-la de princípios que o ultrapassem e que são da
ordem do conhecimento intuitivo, vale dizer puramente intelectual.
[85] Fazemos
esta restrição porque a lógica, nas civilizações orientais como as da Índia e
da China, apresenta um caráter diferente, que faz dela um “ponto de vista” (darshana) da doutrina total e uma
verdadeira “ciência tradicional” (ver Introduction
générale à l’étude des doctrines hindoues, 3ª parte, cap. IX).
[86] Cf. O Simbolismo da Cruz, cap. XVII.
[87] Esta
intersecção é, segundo o que já expusemos, a do “Raio Celeste” com seu plano de
reflexão (ibid., Caps. XXIV).
[88] Ver O Homem e seu devir segundo o Vêdânta,
caps. VII e VIII)
[89] É o que
já indicamos mais acima a respeito das possibilidades do “eu” e de seu lugar no
ser total.
[90] Empregamos
aqui esta expressão propositadamente, porque alguns, ao invés de colocar a
psicologia em seu lugar legítimo de ciência especializada, pretendem fazer dela
o ponto de partida e o fundamento de toda uma pseudo-metafísica, que, bem
entendido, não tem valor algum.
[91] Ver O Simbolismo da Cruz, caps. II e III.
[92] Ver ibid., caps. II e XXIX.
[93] O Homem e seu devir segundo o Vêdânta.
[94] Ver
Introduction générale à l’étude des
doctrines hindoues, 2ª parte, cap. VIII e O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. V. Como já indicamos,
devemos remontar até Descartes para chegarmos à origem e à responsabilidade
pelo dualismo, embora devamos reconhecer que suas concepções deveram seu
sucesso ao fato de serem a expressão sistematizada de tendências
pré-existentes, as mesmas que viriam depois a caracterizar o espírito moderno
(cf. La Crise du Monde moderne, cap.
V).
Grato.
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