quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Réné Guénon - Os Estados Múltiplos do Ser - Parte I



INTRODUÇÃO



Em nosso estudo precedente sobre O Simbolismo da Cruz, expusemos, segundo os dados fornecidos por diferentes doutrinas tradicionais, uma representação geométrica do ser que é inteiramente baseada sobre a teoria metafísica dos estados múltiplos. O presente volume será como que um complemento daquele, pois as indicações que demos não foram suficientes para salientar todo o alcance desta teoria, que deve ser considerada como fundamental; tivemos então, com efeito, que nos limitar apenas ao que dissesse respeito diretamente ao objetivo que tínhamos. É por isso que, deixando de lado a representação simbólica que descrevemos, ou ao menos só a mencionando incidentalmente quando cabível, consagraremos inteiramente este novo trabalho a um maior desenvolvimento desta teoria, seja, e antes de mais nada, em seu próprio princípio, seja em algumas de suas aplicações, no que concerne mais particularmente o ser encarado sob seu aspecto humano.
No que diz respeito a este último ponto, não é inútil lembrar desde já que o fato de nos determos em considerações desta ordem não implica absolutamente que o estado humano ocupe um posto privilegiado dentro do conjunto da Existência universal, ou que ele seja metafisicamente distinto, em relação aos demais estados, pela posse de uma prerrogativa qualquer. Na realidade, este estado humano não passa de um estado de manifestação como qualquer outro, e dentre uma indefinidade de outros; ele se situa, em meio à hierarquia dos graus da Existência, no lugar que lhe é assinalado por sua própria natureza, ou seja, pelo caráter limitativo das condições que o definem, e este lugar não lhe confere nem superioridade nem inferioridade absolutas. Se devemos ter em vista particularmente este estado, é assim unicamente porque, sendo aquele em que nos encontramos de fato, ele adquire para nós, mas apenas para nós, uma importância especial; trata-se de um ponto de vista relativo e contingente, o ponto de vista dos indivíduos que somos, em nosso presente modo de manifestação. É por isso que, notadamente, quando falamos de estados superiores e de estados inferiores, é sempre em relação ao estado humano tomado como termo de comparação que operamos esta divisão hierárquica, pois não há outro que esteja ao nosso alcance enquanto indivíduos; é preciso não esquecer que toda expressão, sendo o revestimento de algo por uma forma, efetua-se necessariamente em modo individual, de tal modo que, se quisermos falar de seja lá o que for, mesmo das verdades de ordem puramente metafísica, só podemos fazê-lo descendo a uma outra ordem, essencialmente relativa e limitada, para traduzi-las na linguagem das individualidades humanas. É fácil compreender as precauções e reservas que impõe a inevitável imperfeição desta linguagem, tão inadequada àquilo que se quer expressar então: há aí uma desproporção evidente, e podemos aliás dizer o mesmo de toda representação formal, qualquer que seja, mesmo as representações propriamente simbólicas, incomparavelmente menos limitadas do que a linguagem comum, e portanto mais aptas à comunicação das verdades transcendentes – donde ser emprego constante em todo ensinamento que possua um caráter verdadeiramente “iniciático” e tradicional[1]. É por isso que, como já assinalamos, convém, para não alterar a verdade por uma exposição parcial, restritiva ou sistematizada, reservar sempre a parte do inexprimível, ou seja daquilo que não poderia ser expresso por nenhuma forma, e que, metafisicamente, é na realidade o que mais importa, podemos mesmo dizer o essencial.

Agora, se pretendemos, sempre no que concerne à consideração do estado humano, ligar o ponto de vista individual ao ponto de vista metafísico, como devemos fazer quando se trata de “ciência sagrada” e não apenas de saber “profano”, diremos o seguinte: a realização do ser total pode cumprir-se a partir de não importa qual estado tomado como base e como ponto de partida, em razão mesmo da equivalência de todos os modos de existência contingentes em relação ao Absoluto; ela pode portanto cumprir-se a partir do estado humano como de qualquer outro, e mesmo, como já dissemos, a partir de qualquer modalidade deste estado, o que equivale a dizer que ela é notadamente possível para o homem corporal e terrestre, pensem o que quiserem os Ocidentais, induzidos em erro quanto à importância que se deve atribuir à “corporeidade”, pela extraordinária insuficiência de suas concepções quanto à constituição do ser humano[2]. Como este estado é aquele no qual nos encontramos atualmente, é daí que devemos efetivamente partir se quisermos atingir a realização metafísica, em qualquer grau, e esta é a razão essencial por que este caso será visto por nós mais especificamente; como já desenvolvemos estas considerações precedentemente, não insistiremos nelas agora, tanto mais que nossa exposição permitirá compreendê-las melhor[3].

Por outro lado, para descartar toda confusão possível, devemos nos lembrar desde logo que, quando falamos de estados múltiplos do ser, trata-se, não de uma multiplicidade numérica, ou mais genericamente quantitativa, mas antes de uma multiplicidade de ordem “transcendental” ou verdadeiramente universal, aplicável a todos os domínios que constituem os diferentes “mundos” ou graus da Existência, considerados separadamente ou em seu conjunto, portanto fora e além do domínio particular do número e mesmo da quantidade sob todos os seus modos. De fato, a quantidade, e com mais razão o número que não é mais do que um dos seus modos, o da quantidade descontínua, é apenas uma das condições determinantes de certos estados, dentre os quais o nosso; ela não poderia assim ser transportada a outros estados, e menos ainda aplicada ao conjunto dos estados, que escapa evidentemente a uma tal determinação. É por isso que, quando falamos a este respeito de uma multitude indefinida, devemos sempre ter o cuidado de lembrar que a indefinidade de que se trata ultrapassa qualquer número, e também tudo aquilo a que a quantidade pode ser mais ou menos aplicável, como a indefinidade espacial ou temporal, que só cabe nas condições próprias do nosso mundo[4].

Uma outra observação se impõe ainda, a respeito do emprego que fazemos da própria palavra “ser”, que, com todo rigor, não pode mais aplicar-se quando se trata de certos estados de não-manifestação de que falaremos, e que estão além do grau do Ser puro. Somos entretanto obrigados, em razão da constituição mesma da linguagem humana, a conservar este termo na falta de outro mais adequado, mas atribuindo-lhe então um valor puramente analógico e simbólico, sem o que nos seria impossível falar de qualquer modo que fosse sobre aquilo de que se trata; e este é um exemplo claro destas insuficiências de linguagem a que sempre aludimos. É assim que poderemos, como já fizemos, continuar a falar do ser total como sendo ao mesmo tempo manifestado em alguns de seus estados e não-manifestado em outros, sem que isto implique que, para estes últimos, devamos nos deter na consideração daquilo que corresponde ao grau que é propriamente o do Ser[5].

Lembraremos, a propósito, que o fato de deter-se no Ser e nada enxergar além, como se ele fosse uma espécie de princípio supremo, o mais universal de todos, é um dos traços característicos de certas concepções ocidentais da antiguidade e da idade média, que, apesar de conter incontestavelmente uma parte de metafísica que já não se encontra nas concepções modernas, permanecem incompletas sob este aspecto, além de se apresentarem como teorias estabelecidas por elas próprias, e não com vistas a uma realização efetiva correspondente. Não se trata de dizer, certamente, que nunca houve nada parecido no Ocidente; aqui, falamos apenas daquilo que é mais geralmente conhecido, e de que alguns, mesmo fazendo louváveis esforços para reagir contra a negação moderna, exageram o valor e o alcance, sem se dar conta de que trata-se aí de pontos de vista sobretudo exteriores, e que, nas civilizações onde, como é o caso, uma espécie de ruptura se estabeleceu entre duas ordens de ensinamento que se superpõem sem jamais se opor, o “exoterismo” necessita do “esoterismo” como seu complemento necessário. A partir do momento em que este “esoterismo” desaparece, a civilização, não se ligando mais aos princípios superiores por nenhum laço efetivo, não tarda a perder todo caráter tradicional, pois os elementos desta ordem que aí subsistem ainda são comparáveis a um corpo abandonado pelo espírito, e, por conseguinte, impotentes daí para diante para constituir qualquer coisa mais do que uma sorte de formalismo vazio; é isto, exatamente, que aconteceu com o mundo ocidental moderno[6].

Com estas poucas explicações, pensamos poder entrar em nosso objeto, sem mais preliminares que as considerações que já fizemos em outras ocasiões nos dispensam em grande parte. Não nos é possível, com efeito, voltar indefinidamente sobre o que já dissemos em outras obras, o que seria ainda tempo perdido; e, se certas repetições são inevitáveis, devemos nos esforçar para reduzi-las ao estritamente necessário para a compreensão do que nos propomos expor agora, para não ter que enviar o leitor, cada vez, a tal ou qual parte de nosso trabalhos, onde ele poderá encontrar indicações complementares ou desenvolvimentos mais amplos sobre as questões que tivermos que rever. O que dificulta a exposição, é que todas essas questões são mais ou menos ligadas umas às outras, e que se deve mostrar estas ligações sempre que possível, mas evitando-se toda e qualquer aparência de “sistematização”, vale dizer de limitação incompatível com a própria natureza da doutrina metafísica, que ao contrário deve abrir, a quem for capaz de compreender e de “assentir”, possibilidades de concepção não apenas indefinidas, mas, podemos dizê-lo sem abusar da linguagem, realmente infinitas como a própria Verdade total.





I
O INFINITO E A POSSIBILIDADE


Para a boa compreensão da doutrina da multiplicidade dos estados do ser, é necessário remontar, antes de qualquer consideração, à noção mais primordial de todas, a do Infinito metafísico, encarado em suas relações com a Possibilidade universal. O Infinito é, segundo o significado etimológico do termo que o designa, aquilo que não tem limites; e, para guardar a este termo seu sentido próprio,
é preciso reservar seu emprego rigorosamente àquilo que não tem absolutamente nenhum limite, excluindo-se tudo o que apenas está subtraído a certas limitações particulares, ao mesmo tempo em que permanece submetido a outras limitações em virtude de sua própria natureza, à qual estas são inerentes, como o são, do ponto de vista lógico (que apenas traduz a seu modo o ponto de vista que podemos chamar de “ontológico”), os elementos que intervém na própria definição daquilo de que se trata. Neste último caso estão, notadamente, como já indicamos muitas vezes, o número, o espaço, o tempo, mesmo nas concepções mais gerais e mais abrangentes que se possa ter deles, e que ultrapassam de muito as noções que se tem normalmente[7]; tudo isto não passa, na realidade, do domínio do indefinido. É este indefinido a que alguns, quando se trata da ordem quantitativa como nos exemplos acima, dão abusivamente o nome de “infinito matemático”, como se a adjunção de um epíteto ou de uma qualificação determinante à palavra “infinito” não implicasse por si só uma contradição pura e simples[8]. De fato, este indefinido, que procede do finito, de que ele não é mais do que uma extensão ou um prolongamento, e que por conseguinte é sempre redutível ao finito, não tem nenhuma medida comum com o verdadeiro Infinito, assim como a individualidade humana (ou qualquer outra), mesmo com a totalidade dos prolongamentos indefinidos de que ela é susceptível, não possui medida comum com o ser total[9]. Esta formação do indefinido a partir do finito, de que temos um claro exemplo na produção da série dos números, só é possível, com efeito, com a condição de que o finito contenha potencialmente este indefinido, e, mesmo quando seus limites sejam recuados até que os percamos de vista, ou seja até que eles escapem aos nossos meios normais de medição, nem por isso eles serão suprimidos; é evidente, em razão da própria natureza da relação causal, que o “mais” não pode proceder do “menos”, nem o Infinito do finito.

Nem poderia ser de outro modo a partir do momento em que se trata, como nos casos mencionados, de certas ordens de possibilidades particulares, que são manifestamente limitadas pela coexistência com outras ordens de possibilidades, em virtude de sua própria natureza, que faz com que elas sejam possibilidades determinadas, e não todas as possibilidades sem nenhuma restrição. Se não fosse assim, esta coexistência com uma indefinidade de outras possibilidades, não compreendidas nela (sendo ainda cada uma passível de um desenvolvimento indefinido) seria uma impossibilidade, ou seja um absurdo no sentido lógico do termo[10]. O Infinito, ao contrário, para ser verdadeiramente tal, não pode admitir nenhuma restrição, o que pressupõe que ele seja absolutamente incondicionado e indeterminado, pois qualquer determinação, qualquer que seja, é forçosamente uma limitação, pelo fato mesmo de que ela deixa algo fora de si, a saber todas as outras determinações igualmente possíveis. A limitação apresenta aliás um caráter de verdadeira negação: colocar um limite equivale a negar, para o que está encerrado nele, tudo o que este limite exclui; por conseguinte, a negação de um limite é propriamente a negação de uma negação, ou seja, tanto lógica quanto matematicamente, uma afirmação, de modo que a negação de todo limite equivale em realidade à afirmação total e absoluta. O que não tem limites, é aquilo de que não se pode negar nada, portanto o que contém tudo, aquilo fora de que não há nada; e esta ideia de Infinito, que é assim a mais afirmativa de todas, por compreender ou abarcar todas as afirmações particulares, quaisquer que possam ser, só se exprime por um termo de forma negativa em razão mesmo de sua indeterminação absoluta. Na linguagem, com efeito, toda afirmação direta é forçosamente uma afirmação particular e determinada, a afirmação de algo, enquanto que a afirmação total e absoluta não é nenhuma afirmação particular à exclusão das outras, por implicá-las todas igualmente; e é fácil de perceber assim a relação estreita que isto apresenta com a Possibilidade universal, que compreende do mesmo modo todas as possibilidades particulares[11].

A ideia de Infinito, tal como expusemos aqui[12], do ponto de vista puramente metafísico, não é nem discutível nem contestável de modo algum, pois ela não encerra em si nenhuma contradição, pelo fato mesmo de que ela não tem nada de negativo; ademais ela é necessária, no sentido lógico da palavra[13], pois é a negação que seria contraditória[14]. De fato, se encararmos o “Todo” no sentido universal e absoluto, é evidente que ele não pode ser limitado de nenhuma maneira, pois ele só poderia sê-lo por alguma coisa que lhe fosse exterior, e, se houvesse qualquer coisa que lhe fosse exterior, ele já não seria o “Todo”. Convém frisar, de resto, que o “Todo”, neste sentido, não deve de forma alguma ser assimilado a um todo particular e determinado, vale dizer a um conjunto composto de partes que estariam em alguma relação definida consigo; ele é propriamente falando “sem partes”, porque, como estas partes devem ser necessariamente relativas e finitas, elas não podem ter com ele nenhuma medida comum, nem consequentemente nenhuma relação, o que equivale a dizer que elas não existem para ele[15]; e isto basta para mostrar que não se deve tentar formar dele nenhuma concepção particular[16].

O que dissemos do Todo universal, em sua indeterminação mais absoluta, aplica-se ainda quando o encaramos sob o ponto de vista da Possibilidade; e, a bem dizer, não se trata aí de uma determinação, ou ao menos trata-se de um mínimo de determinação necessária para torná-lo atualmente concebível, e sobretudo exprimível num certo grau. Como já indicamos[17], uma limitação da Possibilidade total é, no sentido próprio do termo, uma impossibilidade, pois, como ela deve compreender a Possibilidade para limitá-la, ela não poderia estar compreendida nela, e aquilo que está fora do possível não é outra coisa que o impossível; mas uma impossibilidade, não sendo senão uma negação pura e simples, um verdadeiro nada, não pode evidentemente limitar seja lá o que for, donde resulta imediatamente que a Possibilidade universal é necessariamente ilimitada. É preciso cuidado, aliás, porque isto não é aplicável senão à Possibilidade universal e total, que é assim aquilo que podemos chamar de um aspecto do Infinito, do qual ela não é distinta de nenhum modo e em nenhuma medida; não pode existir nada que esteja fora do Infinito, porque isto seria uma limitação, e então não se trataria mais do Infinito. A concepção de uma “pluralidade de infinitos” é um absurdo, pois eles limitar-se-iam reciprocamente, de sorte que, na realidade, nenhum deles seria infinito[18]; portanto, quando dizemos que a Possibilidade universal é infinita e ilimitada, é preciso entender com isto que ela não é outra coisa que o próprio Infinito, encarado sob um certo aspecto, na medida em que se pode dizer que existam aspectos do Infinito. Como o Infinito é verdadeiramente “sem partes”, não se pode tampouco, com todo rigor, falar de uma multiplicidade de aspectos existindo real e “distintivamente” nele; somos nós que, a bem dizer, concebemos o Infinito sob tal ou tal aspecto, porque não nos é possível agir de outro modo, e, mesmo se nossa concepção não fosse essencialmente limitada (como ela é, na medida em que estamos num estado individual), ela deveria forçosamente limitar-se para se tornar exprimível, porque ela precisaria disto para revestir-se de uma forma determinada. Apenas, o que importa, é que compreendamos bem de onde provém a limitação e ao que ela se refere, a fim de não atribui-la a outra coisa do que à nossa própria imperfeição, ou antes à dos instrumentos interiores e exteriores de que dispomos atualmente enquanto seres individuais, que como tais não possuímos efetivamente mais do que uma existência definida e condicionada, e não transportarmos esta imperfeição, puramente contingente e transitória (como as condições às quais ela se refere e das quais ela resulta), para o domínio ilimitado da Possibilidade universal.

Acrescentemos ainda uma última observação: se falamos correlativamente do Infinito e da Possibilidade, não é para estabelecer entre estes dois termos uma distinção que não poderia existir realmente; é que o Infinito é então visto mais particularmente sob seu aspecto ativo, enquanto que a Possibilidade o é sob seu aspecto passivo[19]; mas, seja ele visto como ativo ou como passivo, trata-se sempre do Infinito, que não pode ser afetado por estes pontos de vista contingentes, e as determinações, seja qual for o princípio pela qual as efetuamos, só existem aqui em relação à nossa concepção. Trata-se aí, em suma, da mesma coisa que chamamos, segundo a terminologia da doutrina extremo-oriental, a “perfeição ativa” (Khien) e a “perfeição passiva” (Khouen), sendo a Perfeição, no sentido absoluto, idêntica ao Infinito entendido em toda sua indeterminação; e, como já dissemos, isto é análogo, embora em outro grau e de um ponto de vista mais universal, àquilo que são, no Ser, a “essência” e a “substância”[20] (14). Deve ficar bem entendido, desde logo, que o Ser não encerra toda a Possibilidade, e que, consequentemente, ele não pode de jeito nenhum ser identificado com o Infinito; é por isso que dissemos que o ponto de vista em que nos colocamos aqui é mais universal do que aquele em que só focamos o Ser; indicamos isto apenas para evitar confusões, porque iremos, na sequência, nos explicar mais amplamente sobre o ponto.






















II
POSSÍVEIS E COMPOSSÍVEIS


A Possibilidade universal, dissemos, é ilimitada, e só pode ser ilimitada; pretender concebê-la de outro modo equivale portanto a condenar-se, na realidade, a não concebê-la de modo algum. É o que faz com que todos os sistemas filosóficos do Ocidente moderno sejam igualmente impotentes do ponto de vista metafísico, vale dizer universal, e isto enquanto sistemas, como já observamos em outras ocasiões; eles não passam, como tais, de concepções restritas e fechadas, que podem, para alguns de seus elementos, possuir um certo valor num domínio relativo, mas que se tornam perigosas e falsas a partir do momento em que, tomadas em seu conjunto, pretendem algo de mais e tentam se fazer passar por uma expressão da realidade total. Sem dúvida, é sempre legítimo encarar particularmente, se julgarmos a propósito, certas ordens de realidade à exclusão das outras, e é isto, em suma, o que faz uma ciência qualquer; mas o que não é legítimo, é afirmar que esteja aí toda a Possibilidade e negar tudo o que ultrapassa a medida de sua própria compreensão individual, mais ou menos estreitamente limitada[21]. Está aí no entanto, em maior ou menor grau, o caráter essencial desta forma sistemática que parece inerente a toda a filosofia ocidental moderna; e é uma das razões pelas quais este pensamento filosófico, no sentido comum do termo, não tem e não pode ter nada em comum com as doutrinas de ordem puramente metafísica[22].

Dentre os filósofos que, em razão desta tendência sistemática e verdadeiramente “antimetafísica”, foram forçados a limitar de um modo ou de outro a Possibilidade universal, alguns, como Leibnitz (que no entanto é um cuja perspectiva é menos estreita sob muitos aspectos), pretenderam fazer a respeito a distinção entre “possíveis” e “compossíveis”; mas é evidente que esta distinção, na medida em que seja validamente aplicável, não pode servir a este fim ilusório. De fato, os compossíveis não passam de possíveis compatíveis entre si, vale dizer aqueles cuja reunião dentro de um mesmo conjunto complexo não introduz no interior deste conjunto nenhuma contradição; por conseguinte, a “compossibilidade” é sempre essencialmente relativa ao conjunto de que se trata. É claro, aliás, que este conjunto pode ser tanto o dos caracteres que constituem todos os atributos de um objeto particular, ou de um ser individual, quanto algo de mais geral e mais abrangente, como o conjunto de todas as possibilidades submetidas a certas condições comuns e que formam por isto uma certa ordem definida, um dos domínios compreendidos na Existência universal; mas em todos os casos, é preciso sempre que se trate de um conjunto determinado, sem o que a distinção não mais se aplicará. Assim, para tomarmos um exemplo de ordem particular e extremamente simples, um “quadrado redondo” é uma impossibilidade, porque a reunião dos dois possíveis “quadrado” e “redondo” em uma mesma figura implica contradição; mas estes dois possíveis não deixam por isto de ser igualmente realizáveis e, do mesmo modo, a existência de uma figura quadrada evidentemente não impede a existência simultânea, ao seu lado e no mesmo espaço, de uma figura redonda, bem como de qualquer outra figura geometricamente concebível[23]. Isto parece muito evidente para que seja preciso insistir; mas este exemplo, em razão de sua própria simplicidade, tem a vantagem de ajudar a compreender, por analogia, o que se reporta a casos mais complexos, como o de que iremos falar agora.

Se, em lugar de um objeto ou de um ser particular, considerarmos o que podemos chamar de um mundo, segundo o sentido que já demos ao termo, ou seja todo o domínio formado por um certo conjunto de compossíveis que se realizam na manifestação, estes compossíveis deverão ser todos os possíveis que satisfaçam a certas condições, as quais caracterizarão e definirão precisamente o mundo de que se trata, constituindo um dos graus da Existência universal. Os outros possíveis, que não são determinados pelas mesmas condições, e que, por conseguinte, não podem fazer parte do mesmo mundo, não deixam evidentemente de serem realizáveis por isto, mas, bem entendido, cada qual segundo o modo que convém à sua natureza. Em outros termos, todo possível tem sua existência própria como tal[24], e os possíveis cuja natureza implica uma realização, no sentido em que se entende vulgarmente, ou seja uma existência em um modo qualquer de manifestação[25], não podem perder este caráter que lhes é inerente e tornarem-se irrealizáveis pelo fato de que outros possíveis sejam atualmente realizados. Podemos ainda dizer que toda possibilidade que seja uma possibilidade de manifestação deve necessariamente manifestar-se por isso mesmo, e que, inversamente, toda possibilidade que não deva se manifestar é uma possibilidade de não-manifestação; sob esta forma, parece uma questão de simples definição, e no entanto a afirmação precedente não comporta nada diferente desta verdade axiomática, que não é absolutamente discutível. Se for perguntado por que nem toda possibilidade deve se manifestar, ou seja porque existem ao mesmo tempo possibilidades de manifestação e possibilidades de não-manifestação, bastará responder que o domínio da manifestação, sendo limitado pelo fato mesmo de que ele é um conjunto de mundos ou de estados condicionados (de resto em multitude indefinida), não pode esgotar a Possibilidade universal em sua totalidade; ele deixa fora de si todo o incondicionado, ou seja precisamente aquilo que, metafisicamente, mais importa. Quanto a perguntar por que tal possibilidade não deve se manifestar como tal outra, isto equivale a perguntar por que ela é o que ela é e não o que outra é; é exatamente a mesma coisa que perguntar por que tal ser é ele mesmo e não outro, o que seria certamente uma questão desprovida de sentido. O que é preciso compreender, a respeito, é que uma possibilidade de manifestação não tem, enquanto tal, nenhuma superioridade sobre uma possibilidade de não-manifestação; ela não é fruto de uma espécie de “escolha” ou de “preferência[26]”, ela é apenas de outra natureza.

Agora, se for objetado, a respeito dos compossíveis, que, segundo a expressão de Leibnitz, “não existe senão um mundo”, das duas uma: ou esta afirmação é uma pura tautologia, ou ela não tem nenhum sentido. De fato, se por “mundo” entendermos aqui o Universo total, ou mesmo, limitando-nos às possibilidades de manifestação, o domínio completo de todas estas possibilidades, vale dizer a Existência universal, o que se enuncia é bem evidente, embora o modo com que se exprima seja bastante impróprio; mas, se não entendermos por esse termo senão um certo conjunto de compossíveis, como se faz normalmente, e como fizemos nós mesmos, é tão absurdo dizer que sua existência impede a coexistência de outros mundos como seria, retomando nosso exemplo precedente, dizer que a existência de uma figura redonda impede a coexistência de uma figura quadrada, ou triangular, ou de qualquer outro tipo. Tudo o que se pode dizer, é que, como as características de um objeto determinado excluem deste objeto a presença de outras características com as quais elas estariam em contradição, as condições pelas quais é definido um mundo determinado excluem deste mundo os possíveis cuja natureza não implique uma realização submetida a estas mesmas condições; estes possíveis estarão assim fora dos limites do mundo considerado, mas não estarão por isto excluídos da Possibilidade, porque trata-se de possíveis por hipótese, e nem mesmo, em casos mais restritos, da Existência no sentido próprio do termo, ou seja entendida como compreendendo todo o domínio da manifestação universal. Existem no Universo modos de existência múltiplos, e cada possível tem aquele que convém à sua natureza própria; quanto a dizer, como se faz às vezes (e precisamente referindo-se à concepção de Leibnitz), de uma espécie de “luta pela existência” entre os possíveis, eis uma concepção que nada tem de metafísico, e este ensaio de transposição daquilo que não passa de uma hipótese biológica (em conexão com as modernas teorias “evolucionistas”) é mesmo totalmente ininteligível.

A distinção do possível e do real, sobre a qual muitos filósofos tanto insistiram, não tem portanto nenhum valor metafísico: todo possível é real à sua maneira, e segundo o modo que comporta sua natureza[27]; de outra forma, existiriam possíveis que não seriam nada, e dizer que um possível é nada é uma contradição pura e simples; é impossível, e apenas o impossível pode ser, como já dissemos, um puro nada. Negar que hajam possibilidades de não-manifestação, é pretender limitar a Possibilidade universal; por outro lado, negar que, dentre as possibilidades de manifestação, existam diferentes ordens, é pretender limitá-la ainda mais estreitamente.

Antes de avançarmos mais, lembraremos que, em vez de considerar o conjunto das condições que determinam um mundo, como fizemos, poderemos também, do mesmo ponto de vista, considerar isoladamente uma de suas condições: por exemplo, dentre as condições do mundo corporal, o espaço, considerado como o continente das possibilidades espaciais[28]. É evidente que, por definição, somente as possibilidades espaciais podem realizar-se no espaço, mas não é menos evidente que isto não impede as possibilidades não-espaciais de se realizarem igualmente (e aqui, limitando-nos à consideração das possibilidades de manifestação, “realizar-se” deve ser tomado como sinônimo de “manifestar-se”), fora desta condição particular de existência que é o espaço. No entanto, se o espaço fosse infinito como querem alguns, não haveria lugar no Universo para nenhuma possibilidade não-espacial, e, logicamente, o próprio pensamento, para tomarmos o exemplo mais comum e mais conhecido, não poderia então ser admitido à existência senão com a condição de ser concebido como extenso, concepção que até a psicologia “profana” reconhece como falsa sem nenhuma hesitação; mas, longe de ser infinito, o espaço não passa de um dos modos possíveis da manifestação, a qual não é absolutamente infinita, mesmo na integralidade de sua extensão, com a indefinidade de modos que ela comporta, dos quais cada um por sua vez é igualmente indefinido[29]. Observações similares poderiam aplicar-se a não importa qual outra condição particular de existência; e o que é verdade para cada uma destas condições tomadas à parte o é também para o conjunto de uma variedade delas, cuja reunião ou combinação determina um mundo. É claro, aliás, que é preciso que as diferentes condições assim reunidas sejam compatíveis entre si, e sua compatibilidade implica evidentemente a dos possíveis que elas compreendem respectivamente, com a restrição que os possíveis que estão submetidos ao conjunto das condições consideradas podem não constituir senão uma parte daqueles que estão compreendidos em cada uma das mesmas condições encaradas isoladamente das outras, donde resulta que estas condições, em sua integralidade, comportarão, além de sua parte em comum, prolongamentos em diversos sentidos, pertencentes ainda ao mesmo grau da Existência universal. Estes prolongamentos, de extensão indefinida, correspondem, na ordem geral e cósmica, àquilo que são, para um ser particular, os prolongamentos de um de seus estados, por exemplo os de um estado individual considerado integralmente, para além de uma dada modalidade definida deste mesmo estado, tal como a modalidade corporal em nossa individualidade humana[30].










III
O SER E O NÃO SER


No que precede, indicamos a distinção entre as possibilidades de manifestação e as possibilidades de não-manifestação, estando umas e outras igualmente compreendidas, e com igual peso, dentro da Possibilidade total. Esta distinção impõe-se a nós antes de qualquer outra distinção mais específica, como a dos diferentes modos da manifestação universal, ou seja a distinção das diferentes ordens de possibilidades que esta comporta, repartidas segundo as condições particulares às quais elas estão respectivamente submetidas, e que constituem a multitude indefinida dos mundos e dos graus da Existência.

Isto posto, se definimos o Ser, no sentido universal, como o princípio da manifestação, e ao mesmo tempo como compreendendo em si mesmo o conjunto de todas as possibilidades de manifestação, devemos dizer que o Ser não é infinito, porque ele não coincide com a Possibilidade total; e isto tanto mais que o Ser, enquanto princípio da manifestação, compreende com efeito todas as possibilidades de manifestação, mas apenas na medida em que elas se manifestam. Fora do Ser está portanto todo o resto, ou seja todas as possibilidades de não-manifestação, e mais todas as possibilidades de manifestação enquanto permanecem em estado não-manifestado; e o próprio Ser acha-se aí incluído, pois, não pertencendo à manifestação (por ser seu princípio), ele é também não-manifestado. Para designar aquilo que está fora e além do Ser, somos obrigados, na falta de outro termo, a chamar de Não-Ser; e esta expressão negativa (que para nós não é em nenhum grau sinônimo de “nada” como ela aparece na linguagem de certos filósofos), além de ser diretamente inspirada na terminologia da doutrina metafísica extremo-oriental, é suficientemente justificada pela necessidade de se empregar uma denominação qualquer para que se possa falar dela, atendendo ainda à observação que já fizemos, de que as ideias mais universais, por serem as mais indeterminadas, só podem ser expressas, na medida em que podem ser expressas, por termos em forma negativa, assim como vimos com relação ao Infinito. Podemos dizer também que o Não-Ser, no sentido que indicamos, é mais do que o Ser, ou, se se preferir, ele é superior ao Ser, se entendermos por isto que aquilo que ele compreende está além da extensão do Ser, e que ele contém em princípio o próprio Ser. E, a partir do momento em que opomos o Não-Ser ao Ser, ou que os distinguimos simplesmente, nem um nem outro pode ser infinito, porque, deste ponto de vista, eles limitam-se mutuamente de certa forma; a infinitude não pertence senão ao conjunto do Ser e do Não-Ser, porque este conjunto é idêntico à Possibilidade universal.

Podemos ainda exprimir as coisas deste modo: a Possibilidade universal contém necessariamente a totalidade das possibilidades, e podemos dizer que o Ser e o Não-Ser são dois de seus aspectos: o Ser, na medida em que ela manifesta as possibilidades (ou mais exatamente algumas delas); o Não-Ser, na medida em que não as manifesta. O Ser contém assim todo o manifestado; o Não-Ser contém todo o não-manifestado, incluindo o próprio Ser; mas a Possibilidade universal contém simultaneamente o Ser e o Não-Ser. Acrescentemos que por não-manifestado compreendemos aquilo que podemos chamar de não-manifestável, ou seja as possibilidades de não-manifestação, e o manifestável, ou seja as possibilidades de manifestação na medida em que não se manifestam, enquanto a manifestação compreende o conjunto destas mesmas possibilidades na medida em que elas se manifestam[31].

No que concerne às relações do Ser com o Não-Ser, é essencial frisar que o estado de manifestação é sempre transitório e condicionado, e que, mesmo para as possibilidades que comportam a manifestação, o estado de não-manifestação é o único absolutamente permanente e incondicionado[32]. Acrescentemos a propósito que nada do que é manifestado pode “perder-se”, segundo uma expressão muito utilizada, senão pela passagem ao não-manifestado; e, bem entendido, esta passagem mesma (que, quando se trata da manifestação individual, é propriamente a “transformação” no sentido etimológico do termo, ou seja a passagem além da forma) só constitui uma “perda” do ponto de vista específico da manifestação, pois, no estado de não-manifestação, todas as coisas, ao contrário, subsistem eternamente em princípio, independentemente de todas as condições particulares e limitativas que caracterizam tal ou tal modo da existência manifestada. Apenas, para se poder dizer com justeza que “nada se perde”, mesmo com a restrição relativa ao não-manifestado, é preciso considerar todo o conjunto da manifestação universal, e não apenas tal ou  tal de seus estados à exclusão dos outros, pois, em razão da continuidade de todos os seus estados entre si, sempre pode haver passagem de um a outro, sem que esta passagem contínua, que não é uma mudança de modo (que implica numa mudança correspondente nas condições de existência), nos faça absolutamente sair do domínio da manifestação[33].

Quanto às possibilidades de não-manifestação, elas pertencem essencialmente ao Não-Ser, e, por sua própria natureza, elas não podem entrar no domínio do Ser, contrariamente ao que acontece com as possibilidades de manifestação; mas, como dissemos acima, isto não implica nenhuma superioridade de umas sobre as outras, pois umas e outras são apenas modos de realidades diferentes e conformes às suas naturezas respectivas; e a própria distinção do Ser e do Não-Ser é, sobretudo, puramente contingente, pois ela só pode ser feita a partir do ponto de vista da manifestação, a qual é essencialmente contingente. Isto, de resto, não diminui em nada a importância que esta distinção tem para nós, dado que, em nosso estado atual, não nos é possível colocarmo-nos em um ponto de vista diferente daquele, que é também o nosso, na medida em que pertencemos, como seres condicionados e individuais, ao domínio da manifestação, e que não podemos ultrapassá-la senão libertando-nos inteiramente, pela realização metafísica, das condições limitativas da existência individual.

Como exemplo de uma possibilidade de não-manifestação, podemos citar o vazio, pois uma tal possibilidade é concebível, ao menos negativamente, ou seja pela exclusão de certas determinações: o vazio implica a exclusão, não apenas de todo atributo corporal ou material, não apenas, de modo mais geral, de toda qualidade formal, mas ainda de tudo o que se refere a um modo qualquer da manifestação. É portanto um contrassenso pretender que possa haver o vazio naquilo compreendido na manifestação universal, em qualquer estado que seja[34], porque o vazio pertence essencialmente ao domínio da não-manifestação; não é possível dar a este termo outra acepção inteligível. Devemos, a este respeito, limitar-nos a esta simples indicação, pois não podemos tratar aqui da questão do vazio com todos os desenvolvimentos que ela comporta, e que nos afastariam de nosso objeto; como é sobretudo a respeito do espaço que ela acarreta às vezes graves confusões[35], as considerações que se referem a ele encontrarão melhor lugar no estudo que nos propomos a consagrar especialmente às condições da existência corporal[36]. Do ponto de vista em que nos colocamos presentemente devemos simplesmente acrescentar que o vazio, qualquer que seja o modo como o encaramos, não é o Não-Ser, mas apenas o que podemos chamar de um de seus aspectos, ou seja uma das possibilidades que ele encerra e que são diferentes das possibilidades compreendidas no Ser e que estão fora dele, mesmo encarado em sua totalidade, o que mostra ainda que o Ser não é infinito. De resto, quando dizemos que uma dada possibilidade constitui um aspecto do Não-Ser, é preciso atenção para não considerá-la de modo distintivo, porque este modo aplica-se exclusivamente à manifestação; e isto explica porque, mesmo se pudermos conceber efetivamente esta possibilidade que é o vazio, ou qualquer outra da mesma ordem, jamais podemos dar-lhes senão uma expressão inteiramente negativa: esta observação, bastante genérica para tudo o que se refere ao Não-Ser, justifica ainda mais o emprego que fazemos deste termo[37].

Considerações semelhantes poderiam então aplicar-se a quaisquer outras possibilidades de não-manifestação; poderíamos tomar outro exemplo, como o silêncio, mas a aplicação seria muito fácil para que seja preciso insistir. Limitar-nos-emos portanto, a propósito, a observar o seguinte: como o Não-Ser, ou o não-manifestado, compreende ou envolve o Ser, ou o princípio da manifestação, o silêncio comporta em si mesmo o princípio da palavra; em outros termos, assim como a Unidade (o Ser) não passa do Zero metafísico (o Não-Ser) afirmado, a palavra não é senão o silêncio expressado; mas, inversamente, o Zero metafísico, apesar de ser a Unidade não-afirmada, é também algo de mais (e mesmo infinitamente mais), e também o silêncio, que é um aspecto deste Zero no sentido que precisamos, não é apenas a palavra não-expressada, pois é preciso deixar subsistir nele também o que é inexprimível, ou seja não susceptível de manifestação (pois quem diz expressão diz manifestação, e inclusive manifestação formal), portanto de determinação em modo distintivo[38]. A relação assim estabelecida entre o silêncio (não-manifestado) e a palavra (manifestada) mostra como é possível conceber possibilidades de não-manifestação que correspondem, por transposição analógica, a certas possibilidades de manifestação[39], sem pretender aliás, aqui também, introduzir no Não-Ser uma distinção efetiva que não poderia aí encontrar-se, porque a existência em modo distintivo (que é a existência no sentido próprio do termo) é essencialmente inerente às condições da manifestação (sendo que “modo distintivo” aqui não será, em todos os casos, sinônimo de “modo individual”, pois este implica especificamente a distinção formal)[40].


V
FUNDAMENTOS DA TEORIA
DOS ESTADOS MÚLTIPLOS


Aquilo que precede contém, em toda sua universalidade, o fundamento da teoria dos estados múltiplos: se considerarmos um ser qualquer em sua totalidade, ele deverá comportar, ao menos virtualmente, estados de manifestação e de não-manifestação, pois é apenas neste sentido que se pode falar realmente de “totalidade”; de outro modo, estaremos apenas diante de algo incompleto e fragmentário, que não pode constituir verdadeiramente o ser total[41]. Somente a não-manifestação, como já dissemos, possui o caráter de permanência absoluta; é dela, portanto, que a manifestação, em sua condição transitória, tira toda sua realidade; e vemos assim que o Não-Ser, longe de ser o “nada”, será exatamente o contrário, se é que o “nada” possa ter um contrário, o que suporia para ele ainda um certo grau de “positividade”, enquanto que ele não passa da “negatividade” absoluta, ou seja a pura impossibilidade[42].

Assim, resulta daí serem essencialmente os estados de não-manifestação os que asseguram ao ser sua permanência e sua identidade; e, fora destes estados, vale dizer se tomarmos apenas o ser dentro da manifestação, sem relacioná-lo ao seu princípio não-manifestado, esta permanência e esta identidade não podem ser senão ilusórias, pois o domínio da manifestação é propriamente o domínio do transitório e do múltiplo, comportando modificações contínuas e indefinidas. A partir disto, será fácil compreender o que se deve pensar, do ponto de vista metafísico, da pretensa unidade do “eu”, ou seja do ser individual, que é tão indispensável à psicologia ocidental e “profana”: de um lado, trata-se de uma unidade fragmentária, porque ela só se refere a uma porção do ser, a um de seus estados tomados isolada e arbitrariamente dentre uma indefinidade de outros (e mesmo este estado está longe de ser visto em sua integralidade); e, por outro lado, esta unidade, por só considerar o estado específico ao qual se refere, é ainda tão relativa quanto possível, pois este próprio estado compõe-se de uma indefinidade de modificações diversas, e possui tanto menos realidade quanto mais se abstraia seu princípio transcendente (o “Si” ou a personalidade), o único que poderia lhe dar verdadeiramente esta realidade, mantendo a identidade do ser em modo permanente através de todas as suas modificações.

Os estados de não-manifestação são do domínio do Não-Ser, e os estados de manifestação são do domínio do Ser, visto em sua integralidade; podemos dizer também que estes últimos correspondem aos diferentes graus da Existência, sendo estes graus os diferentes modos, em multiplicidade indefinida, da manifestação universal. Para estabelecermos aqui uma distinção clara entre o Ser e a Existência, deveremos, como já dissemos, considerar o Ser como sendo propriamente o princípio da manifestação: a Existência universal será então a manifestação integral do conjunto das possibilidades que o Ser comporta, e que são de resto todas as possibilidades de manifestação, o que implica o desenvolvimento efetivo destas possibilidades em modo condicionado. Assim, o Ser abarca a Existência, e ele é metafisicamente mais do que esta, por ser o seu princípio; a Existência portanto não é idêntica ao Ser, pois este corresponde a um grau menor de determinação, e, por conseguinte, um grau maior de universalidade[43].

Embora a Existência seja essencialmente única, e isto porque o Ser em si mesmo é um e uno, ela não deixa de compreender uma multiplicidade indefinida de modos de manifestação, porque ela os compreende a todos igualmente pelo fato mesmo de serem todos igualmente possíveis, e esta possibilidade implica que cada um deve realizar-se segundo as condições que lhe são próprias. Como já dissemos ao falarmos desta “unicidade da Existência” (em árabe Wahadatul-wujûd) segundo os dados do esoterismo islâmico[44], resulta daí que a Existência, em sua própria “unicidade”, comporta uma indefinidade de graus, correspondentes a todos os modos da manifestação universal (que no fundo é a mesma coisa que a Existência); e esta multiplicidade indefinida dos graus da Existência implica correlativamente, para um ser qualquer considerado dentro do domínio inteiro desta Existência, uma multiplicidade igualmente indefinida de estados de manifestação possíveis, dos quais cada um deve se realizar em um grau determinado da Existência universal. Um estado de um ser é assim o desenvolvimento de uma possibilidade específica compreendida em um dado grau, sendo este grau definido pelas condições às quais está submetida a possibilidade em questão, na medida em que ela é vista como realizando-se dentro do  domínio da manifestação[45].

Assim, cada estado de manifestação de um ser corresponde a um grau da Existência, e este estado comporta também diversas modalidades, segundo as diferentes combinações de condições de que é susceptível um mesmo modo geral de manifestação; enfim, cada modalidade compreende ela mesma uma série indefinida de modificações secundárias e elementares. Por exemplo, se considerarmos o ser neste estado específico que é a individualidade humana, a parte corporal desta individualidade não é mais do que uma modalidade, e esta modalidade é determinada, não exatamente por uma condição particular de existência, mas por um conjunto de condições que delimitam suas possibilidades, sendo estas condições aquelas cuja reunião define o mundo sensível ou corporal[46]. Como já indicamos[47], cada uma destas condições, considerada isoladamente das outras, pode estender-se para além do domínio desta modalidade, e, seja por sua própria extensão, seja por sua combinação com condições diferentes, constituir então os domínios de outras modalidades, fazendo parte da mesma individualidade integral. Por outro lado, cada modalidade deve ser vista como sendo susceptível de desenvolver-se no decurso de um dado ciclo de manifestação, e, para a modalidade corporal em particular, as modificações secundárias que este desenvolvimento comporta serão todos os momentos de sua existência (considerada sob o aspecto da sucessão temporal), ou, o que é o mesmo, todos os atos e todos os gestos, quaisquer que sejam, que ela cumprirá ao longo desta existência[48].

É quase supérfluo insistir sobre o pouco lugar ocupado pelo “eu” individual na totalidade do ser[49], pois, mesmo em toda a extensão que ele pode adquirir quando visto em sua totalidade (e não apenas em uma modalidade em particular como a modalidade corporal), ele não constitui mais do que um estado como os outros, e no meio de uma indefinidade de outros, e isto mesmo que nos limitemos a considerar os estados de manifestação; e além disso, estes mesmos são os que, do ponto de vista metafísico, menos importam no ser total, pelas razões que já expusemos acima[50]. Dentre os estados de manifestação, existem alguns, além da individualidade humana, que podem igualmente ser estados individuais (ou seja formais), enquanto que outros são estados não-individuais (ou informais), sendo a natureza de cada qual determinada (assim como seu lugar no conjunto hierarquicamente organizado do ser) pelas condições que lhe são próprias, porque trata-se sempre de estados condicionados, pelo fato mesmo que são manifestados. Quanto aos estados de não-manifestação, é evidente que, por não serem submetidos à forma, assim como a nenhuma outra condição de um modo qualquer de existência manifestada, eles são essencialmente extra-individuais; podemos dizer que eles constituem o que existe de verdadeiramente universal em cada ser, aquilo pelo que todo ser se liga, em tudo aquilo que ele é, ao seu princípio metafísico e transcendente, ligação sem a qual ele não teria mais do que uma existência inteiramente contingente e puramente ilusória no fundo.












V
RELAÇÕES ENTRE A
UNIDADE E A MULTIPLICIDADE


No domínio do Não-Ser, não pode ser questão de uma multiplicidade de estados, pois este é essencialmente o domínio do indiferenciado e mesmo do incondicionado: o incondicionado não pode estar submetido às determinações do uno e do múltiplo, e o indiferenciado não pode existir em modo distintivo. Se entretanto falamos de estados de não-manifestação, não é para estabelecer nesta expressão uma espécie de simetria com os estados de manifestação, que seria injustificada e artificial; mas somos forçados a introduzir aí a distinção de certa forma, sem o que não teríamos como tratar do assunto; apenas, devemos nos dar conta de que esta distinção não existe em si, que somos nós que lhe damos sua existência totalmente relativa, e que só assim podemos considerar o que chamamos de aspectos do Não-Ser, embora lembrando tudo o que esta expressão tem de imprópria e inadequada. No Não-Ser, não existe multiplicidade, e, com todo o rigor, tampouco existe unidade, pois o Não-Ser é o Zero metafísico, a quem somos obrigados a dar um nome para podermos falar dele, e que é logicamente anterior à unidade; é por isso que a doutrina hindu fala a respeito apenas de “não-dualidade” (adwaita), o que, de resto, deve ainda ser relacionado com o que dissemos mais acima sobre o emprego de termos de forma negativa.
É essencial frisar, a propósito, que o Zero metafísico não tem relação com o zero matemático, que não passa do signo do que podemos chamar de um nada quantitativo, tanto quanto o Infinito verdadeiro tem com o simples indefinido, ou seja com a quantidade indefinidamente crescente ou indefinidamente decrescente[51]; e esta ausência de relações, se podemos nos expressar assim, é exatamente da mesma ordem em um e outro caso, com a reserva, no entanto, que o Zero metafísico não passa de um aspecto do Infinito; ao menos, podemos considerá-lo assim na medida em que ele contém em princípio a unidade, e em decorrência todo o resto. Com efeito, a unidade primordial não é outra coisa senão o Zero afirmado, ou , em outros termos, o Ser universal, que é esta unidade, não é senão o Não-Ser afirmado, na medida em que é possível uma tal afirmação, que é já uma primeira determinação, pois ela é a mais universal de todas as afirmações definidas, portanto condicionadas; e esta primeira determinação, prévia a qualquer manifestação e a qualquer particularização (incluindo aí a polarização entre “essência” e “substância”, que é a primeira dualidade e, como tal, o ponto de partida de toda a multiplicidade), contém em princípio todas as outras determinações ou afirmações distintivas (correspondentes a todas as possibilidades de manifestação), o que equivale a dizer que a unidade, a partir do momento em que é afirmada, contém em princípio a multiplicidade, ou que ela própria é o princípio imediato desta multiplicidade[52].

Muito se perguntou, e em vão, como a multiplicidade poderia sair da unidade, sem que se tenha percebido que a questão, colocada desta maneira, não comporta nenhuma solução, pelo simples fato de estar mal colocada e não corresponder, sob esta forma, a nenhuma realidade; de fato, a multiplicidade não sai da unidade, assim como a unidade não sai do Zero metafísico, ou que tampouco qualquer coisa sai do Todo universal, ou que qualquer possibilidade possa se achar fora do Infinito ou da Possibilidade total[53]. A multiplicidade está compreendida na unidade primordial, e ela não deixa de estar aí compreendida devido ao seu desenvolvimento em modo manifestado; esta multiplicidade é aquela das possibilidades de manifestação, ela não pode ser concebida de outro modo senão deste, pois é a manifestação que implica a existência distintiva; e, por outro lado, uma vez que se trata de possibilidades, é preciso que elas existam do modo que está implicado em sua natureza. Assim, o princípio da manifestação universal, apesar de ser um, e sendo inclusive a própria unidade em si, contém necessariamente a multiplicidade; e esta, em todos os seus desenvolvimentos indefinidos, e cumprindo-se indefinidamente segundo uma indefinidade de direções[54], procede inteiramente da unidade primordial, na qual ela permanece sempre compreendida, e esta unidade primordial não pode ser afetada nem modificada pela existência nela desta multiplicidade, pois ela não poderia cessar de ser ela mesma por um efeito da sua natureza, e é precisamente na medida em que ela é a unidade que ela implica essencialmente as possibilidades múltiplas de que se trata. É assim na própria unidade que a multiplicidade existe, e ela não afeta a unidade porque ela não tem senão uma existência inteiramente contingente em relação a esta; podemos mesmo dizer que esta existência, na medida em que não for reportada à unidade como o fizemos, é puramente ilusória; somente a unidade, por ser seu princípio, lhe fornece toda a realidade de que ela é susceptível; e a própria unidade, por seu turno, não é um princípio absoluto e bastando-se a si mesmo, mas tira toda a sua realidade do Zero metafísico.

O Ser, não sendo mais do que a primeira afirmação, a determinação mais primordial, não é o princípio supremo de todas as coisas; ele não passa, repetimos, do princípio da manifestação, e vemos com isto como o ponto de vista metafísico é restringido por aqueles que pretendem reduzir a metafísica à simples “ontologia”; abstrair assim o Não-Ser, equivale propriamente a excluir tudo o que há de mais verdadeiro e puramente metafísico. Dito isto de passagem, concluiremos aqui o que diz respeito ao ponto que estamos tratando: o Ser é um e uno em si mesmo, e, por conseguinte, a Existência universal – que é a manifestação integral das suas possibilidades – é única em sua essência e em sua natureza íntima; mas nem a unidade do Ser, nem a “unicidade” da Existência, excluem a multiplicidade dos modos da manifestação, donde advém a indefinidade dos graus da Existência, na ordem geral e cósmica, e a indefinidade dos estados do ser, na ordem das existências particulares[55]. Portanto, a consideração dos estados múltiplos não está absolutamente em contradição com a unidade do Ser, tanto quanto com a “unicidade” da Existência que está fundamentada nesta unidade, pois nem uma nem outra são afetadas no que quer que seja pela multiplicidade; e resulta daí que, em todo o domínio do Ser, a constatação da multiplicidade, longe de contradizer a afirmação da unidade ou de se opor a ela de qualquer modo, nela encontra o único fundamento válido que lhe possa ser dado, tanto lógica quanto metafisicamente.










VI
CONSIDERAÇÕES ANALÓGICAS TIRADAS DO ESTUDO
DO ESTADO DE SONHO


Deixaremos agora o ponto de vista metafísico no qual nos colocamos no capítulo precedente para encarar a questão das relações entre a unidade e a multiplicidade, pois poderemos talvez fazer compreender melhor a natureza destas relações através de algumas considerações analógicas, dadas aqui a título de exemplo, ou antes de “ilustração”, se podemos falar assim[56], e que mostrarão em que sentido podemos dizer que a existência da multiplicidade é ilusória diante da unidade, apesar de possuir tanta realidade quanto pode comportar a sua natureza. Tomaremos estas considerações, de um caráter mais particular, do estudo do estado de sonho, que é uma das modalidades de manifestação do ser humano, correspondente à parte sutil (ou seja não-corpórea) de sua individualidade, e no qual este ser produz um mundo que procede inteiramente de si mesmo, e cujos objetos consistem exclusivamente em concepções mentais (por oposição às percepções sensoriais do estado de vigília), ou seja em combinações de ideias revestidas de formas sutis, sendo que estas formas dependem substancialmente da forma sutil do próprio indivíduo, de quem os objetos ideais do sonho não passam em suma de modificações acidentais e secundárias[57].

O homem, no estado de sonho, situa-se assim num mundo inteiramente imaginado por ele[58], onde todos os elementos são por conseguinte tirados de si mesmo, de sua própria individualidade mais ou menos extensa (em suas modalidades extracorpóreas), como outras tantas “formas ilusórias” (mâyâvi-rûpa)[59], e isto mesmo que ele não possua atualmente a consciência clara e distinta. Qualquer que seja o ponto de partida interior ou exterior (podendo ser muito diferentes conforme o caso), que dá ao sonho uma certa direção, os eventos que aí se desenrolam não podem resultar senão de uma combinação de elementos contidos, ao menos potencialmente e susceptíveis de um certo gênero de realização, na compreensão integral do indivíduo; e, se estes elementos, que são modificações do indivíduo, são em multitude indefinida, a variedade de tais combinações possíveis será igualmente indefinida. O sonho, com efeito, deve ser visto como um modo de realização para possibilidades que, apesar de pertencerem ao domínio da individualidade humana, não são susceptíveis, por qualquer razão, de se realizar em modo corporal; tais são, por exemplo, as formas de seres pertencentes ao mesmo mundo mas diferentes do homem, formas que este possui virtualmente em si devido à posição central que ele ocupa neste mundo[60]. Estas formas não podem evidentemente ser realizadas pelo homem a não ser no estado sutil, e o sonho é o meio mais comum, podemos dizer o mais normal, de todos os que ele dispõe para identificar-se com outros seres, como indica este texto taoísta: “Outrora, relata Tchouang-Tsé, numa noite, eu fui uma borboleta, revoluteando contente com sua sorte; então eu acordei, sendo Tchouang-Tsé. Que sou eu, na realidade? Uma borboleta que sonha ser Tchouang-Tsé, ou Tchouang-Tsé que imagina ser uma borboleta? No meu caso, existem dois indivíduos reais? Houve a transformação real de um indivíduo em outro? Nem uma coisa, nem outra: existem apenas duas modificações irreais do ser único, da norma universal, na qual todos os seres em todos os estados são um.[61]”.

Se o indivíduo que sonha toma ao mesmo tempo, no decurso deste sonho, uma parte ativa nos eventos que aí se desenrolam como resultado de sua faculdade imaginativa, ou seja se ele desempenha um papel determinado na modalidade extracorpórea de seu ser que corresponde atualmente ao estado de sua consciência claramente manifestada (ou ao que podemos chamar a zona central desta consciência), não podemos deixar de admitir que, simultaneamente, todos os outros papéis são aí igualmente “agidos” por ele, seja em outras modalidades, seja no mínimo em diferentes modificações secundárias da mesma modalidade, pertencente também à sua consciência individual, senão em seu estado atual, restrito, de manifestação enquanto consciência, ao menos em alguma de suas possibilidades de manifestação, as quais, em seu conjunto, abarcam um campo indefinidamente mais extenso. Todos esses papéis aparecem naturalmente como secundários em relação àquele que é o principal para o indivíduo, vale dizer aquele em que sua consciência atual está diretamente interessada, e, pelo fato de que todos os elementos do sonho não existem senão por ele, podemos dizer que eles não são reais a não ser na medida em que eles participam de sua própria existência: é ele próprio que os realiza como modificações de si mesmo, e sem deixar por isso de ser ele mesmo, independente destas modificações que em nada afetam aquilo que constitui a essência própria de sua individualidade. Ademais, se o indivíduo tem consciência de estar sonhando, ou seja de que todos os eventos que se desenrolam neste estado não tem verdadeiramente outra realidade do que a que ele lhes empresta, ele tampouco será afetado por isto mesmo sendo ator ao mesmo tempo em que é espectador, e precisamente porque ele não cessará de ser espectador para se tornar ator, pois a concepção e a realização não estarão mais separadas para sua consciência individual, que chegou a um grau de consciência suficiente para abarcar sinteticamente todas as modificações atuais da individualidade. Se acontecer de outro modo, as mesmas modificações poderão ainda realizar-se, mas, como a consciência não relaciona mais diretamente esta realização à concepção de que ela é fruto, o indivíduo é levado a atribuir aos eventos uma realidade exterior a si mesmo, e, na medida em que a atribui efetivamente, submete-se a uma ilusão cuja causa está em si, ilusão esta que consiste em separar a multiplicidade destes eventos daquilo que é seu princípio imediato, ou seja de sua própria unidade individual[62].

Este é um exemplo muito claro de uma multiplicidade existindo numa unidade sem que esta seja afetada; ainda que a unidade de que se trata, a unidade do indivíduo, seja bastante relativa, ela não deixa de desempenhar, em relação a esta multiplicidade, um papel análogo ao da unidade verdadeira e primordial em relação à manifestação universal. De resto, poderíamos ter tomado um outro exemplo, e mesmo considerar deste modo a percepção no estado de vigília[63]; mas o caso que escolhemos tem a vantagem de não dar lugar a nenhuma contestação, devido às condições que são específicas do estado de sonho, no qual o homem acha-se isolado de todas as coisas exteriores, ou supostamente exteriores[64], que constituem o mundo sensível. O que faz a realidade deste mundo do sonho, é unicamente a consciência individual encarada em todo seu desenvolvimento, em todas as possibilidades de manifestação que ela compreende; e, de resto, esta mesma consciência, vista assim em seu conjunto, compreende este mundo do sonho do mesmo modo que todos os outros elementos da manifestação individual, pertencentes a qualquer das modalidades que estão contidas na extensão integral da possibilidade individual.

Agora, convém lembrar que, se quisermos considerar analogamente a manifestação universal, poderemos dizer apenas que, assim como a consciência individual cria a realidade deste mundo particular que é constituído por todas as suas modalidades possíveis, existe também alguma coisa que faz a realidade do Universo manifestado, mas sem que se possa legitimamente considerar esta “alguma coisa” como o equivalente de uma faculdade individual ou de uma condição específica de existência, o que seria uma concepção eminentemente antropomórfica e antimetafísica. É assim alguma coisa que, por conseguinte, não é nem a consciência nem o pensamento, mas da qual, ao contrário, a consciência e o pensamento não passam de modos particulares de manifestação; e, se existe uma indefinidade de tais modos possíveis, que podem ser vistos como outros tantos atributos, diretos ou indiretos, do Ser universal (análogos em certa medida ao que são para o indivíduo os papéis desempenhados no sonho por suas modalidades ou modificações múltiplas, e pelos quais ele não é aliás afetado em sua natureza íntima), não há nenhuma razão para pretender reduzir todos estes atributos a um ou alguns dentre eles – ou melhor, só pode haver uma razão, que é esta tendência sistemática que já denunciamos como sendo incompatível com a universalidade da metafísica. Estes atributos, quaisquer que sejam, são apenas aspectos diferentes desse princípio único que faz a realidade de toda a manifestação por ser o próprio Ser, e sua diversidade só existe do ponto de vista da manifestação diferenciada, não do ponto de vista de seu princípio ou do Ser em si, que é a unidade primordial e verdadeira. Isto é verdade inclusive para a distinção mais universal que se possa fazer no Ser, a da “essência” e da “substância”, que são como que os dois polos de toda a manifestação; com mais razão será também verdade para os aspectos mais particulares, portanto mais contingentes e de importância mais secundária[65]; seja lá qual for o valor que eles possam ter aos olhos do indivíduo, quando este os encara de seu ponto de vista particular, eles não são, propriamente falando, mais do que simples “acidentes” no Universo.






















VII
AS POSSIBILIDADES
DA CONSCIÊNCIA INDIVIDUAL


O que dissemos do estado de sonho nos leva agora a falar um pouco, de modo geral, das possibilidades que o ser humano comporta dentro dos limites da sua individualidade, e, mais particularmente, das possibilidades deste estado individual visto sob o aspecto da consciência, que constitui uma de suas características principais. Bem entendido, não é do ponto de vista psicológico que iremos nos colocar aqui, embora este ponto de vista possa ser definido precisamente pela consciência considerada como uma característica inerente a certas categorias de fenômenos que se produzem no ser humano, ou, se se preferir um modo de expressão mais figurado, como o “continente” destes mesmos fenômenos[66]. O psicólogo, de resto, não tem que se preocupar em buscar o que pode ser no fundo a natureza dessa consciência, assim como o geômetra não pesquisa a natureza do espaço, que ele aceita como um dado incontestável, considerando-o simplesmente como o continente de todas as formas que ele estuda. Em outros termos, a psicologia não tem que se ocupar senão daquilo a que podemos chamar de “consciência fenomênica”, vale dizer a consciência considerada exclusivamente em suas relações com os fenômenos, e sem se perguntar se ela é ou não a expressão de algo de outra ordem, algo que, por definição mesma, não está mais afeito ao domínio psicológico[67].

Para nós a consciência é coisa bem diferente do que para o psicólogo: ela não constitui um estado de ser específico, e tampouco é a única característica distintiva do estado individual humano; mesmo no estudo deste estado, ou mais precisamente de suas modalidades extracorpóreas, não nos é possível admitir que tudo remeta a um ponto de vista mais ou menos similar ao da psicologia. A consciência seria antes uma condição da existência em alguns estados, mas não estritamente no sentido em que falamos, por exemplo, das condições da existência corporal; poderíamos dizer, de forma mais exata, embora possa parecer estranho à primeira vista, que ela é uma “razão de ser” para os estados de que se trata, pois ela é manifestamente aquilo através de que o ser individual participa da Inteligência universal (Buddhi na doutrina hindu)[68]; mas, naturalmente, é à faculdade mental individual (manas) que ela é inerente sob sua forma determinada (como ahankâra)[69], e, por conseguinte, em outros estados, a mesma participação do ser na Inteligência universal pode traduzir-se de modo inteiramente diferente. A consciência, da qual não pretendemos dar aqui uma definição completa, o que aliás seria pouco útil[70], é assim algo de específico, seja do estado humano, seja de outros estados individuais mais ou menos análogos a este; portanto, ela não é absolutamente um princípio universal, e, se entretanto ela constitui uma parte integrante e um elemento necessário da Existência universal, é exatamente com o mesmo peso que todas as condições próprias a não importa quais estados de ser, sem que ela possua a respeito o menor privilégio, assim como os estados aos quais ela se refere não possuem em relação aos outros estados[71].

Apesar dessas restrições essenciais, a consciência, no estado individual humano, não deixa de ser, como este próprio estado, susceptível de uma extensão indefinida; e, mesmo no homem comum, ou seja naquele que não desenvolveu especialmente suas modalidades extracorpóreas, ela estende-se efetivamente muito mais do que se supõe ordinariamente. Admite-se em geral, é verdade, que a consciência atualmente clara e distinta não é toda a consciência, que ela não passa de uma porção mais ou menos considerável sua, e que aquilo que ela deixa fora de si pode ultrapassá-la em muito, tanto em extensão quanto em complexidade; mas, se os psicólogos reconhecem a existência de uma “subconsciência” (chegando mesmo a abusar dela como um meio de explicação bastante cômodo e colocando nela tudo aquilo que eles não sabem aonde classificar dentre os fenômenos que eles estudam), eles sempre se esquecem de considerar correlativamente uma “supraconsciência[72]”, como se a consciência não pudesse prolongar-se para cima tanto quanto para baixo, se é que estas noções de “para cima” e “para baixo” tenham aqui algum sentido – e é provável que elas devam ter um, no mínimo, para o ponto de vista particular dos psicólogos. Notemos de resto que “subconsciência” e “supraconsciência” não passam na realidade, tanto uma como outra, de simples prolongamentos da consciência, que não nos fazem sair de seu domínio integral, e que, consequentemente, não podem de modo algum ser assimilados ao “inconsciente”, ou seja àquilo que está fora da consciência, mas devem ao contrário ser compreendidos dentro da noção completa da consciência individual.

Nessas condições, a consciência individual é suficiente para dar conta de tudo o que, do ponto de vista mental, se passa no domínio da individualidade, sem que seja preciso apelar para a hipótese bizarra de uma “pluralidade de consciências”, que alguns chegaram a estender no sentido de um “polipsiquismo” literal. É verdade que a “unidade do eu”, tal como vista normalmente, é também ilusória; mas, se é assim, é justamente porque a pluralidade e a complexidade existem no próprio seio da consciência, que se prolonga em modalidades das quais algumas podem ser muito longínquas e bastante obscuras, como as que constituem aquilo que se pode chamar de “consciência orgânica[73]”, e como ainda a maior parte daquelas que se manifestam no estado de sonho.

Por outro lado, a extensão indefinida da consciência torna completamente inúteis certas teorias estranhas que surgiram em nossa época, e cuja impossibilidade metafísica basta aliás para refutar plenamente. Não estamos falando aqui apenas das hipóteses mais ou menos “reencarnacionistas”, nem de todas aquelas que lhe são comparáveis, por implicarem igualmente numa limitação da Possibilidade universal, e sobre as quais já tivemos ocasião de nos explicar com todos os desenvolvimentos necessários[74]; temos mais especificamente em vista a hipótese “transformista”, que, de resto, tem hoje perdido muito da imerecida consideração que ela adquiriu durante um certo tempo[75]. Para precisar este ponto sem nos estendermos além da conta, lembraremos que a pretensa lei do “paralelismo entre a ontogenia e a filogenia”, que é um dos principais postulados do “transformismo”, supõe, antes de mais nada,  que haja realmente uma “filogenia” ou “filiação da espécie”, o que não é um fato, mas uma hipótese totalmente gratuita; o único  fato que pode ser constatado, é a realização de algumas formas orgânicas pelo indivíduo no decurso de seu desenvolvimento embrionário, e, a partir do momento em que ele realiza estas formas deste modo, não há mais necessidade de que ele as tenha realizado antes em supostas “existências sucessivas”, nem tampouco será necessário que a espécie à qual ele pertença as tenha realizado para ele num desenvolvimento no qual, enquanto indivíduo, ele não pode tomar nenhuma parte. De resto, pondo de parte as considerações embriológicas, a concepção dos estados múltiplos nos permite considerar todos esses estados como existindo simultaneamente num mesmo ser, e não como só podendo ser percorridos sucessivamente no decurso de uma “descendência” que passaria, não apenas de um ser para outro, mas inclusive de uma espécie para outra[76]. A unidade da espécie é, num certo sentido, mais verdadeira e mais essencial do que a do indivíduo[77], o que opõe-se à realidade de uma tal “descendência”; ao contrário, o ser que, como indivíduo, pertence a uma espécie determinada, não deixa por isso de ser, ao mesmo tempo, independente desta espécie em seus estados extra-individuais, podendo mesmo, e sem ir tão longe, possuir ligações estabelecidas com outras espécies através de simples prolongamentos da individualidade. Por exemplo, como dissemos acima, o homem que reveste uma dada forma em sonhos, faz com que esta forma seja uma modalidade secundária de sua própria individualidade, e, por conseguinte, ele a realiza efetivamente segundo o único modo no qual esta realização lhe é possível. Existem também, deste mesmo ponto de vista, outros prolongamentos individuais de ordem muito diferente, e que apresentam um caráter mais orgânico; mas isto nos levaria muito longe, e indicamo-lo apenas de passagem[78]. De resto, no que tange a uma refutação mais completa e mais detalhada das teorias “transformistas”, esta deve ser relacionada sobretudo com o estudo da natureza da espécie e de suas condições de existência, estudo que não podemos empreender presentemente; mas o que é essencial frisar, é que a simultaneidade dos estados múltiplos basta para provar a inutilidade de tais hipóteses, que são perfeitamente insustentáveis desde que as encaramos do ponto de vista metafísico, e cujo erro de princípio carrega necessariamente a falsidade de fato.

Insistimos especialmente na simultaneidade dos estados de ser, pois, mesmo para as modificações individuais que se realizam em modo sucessivo na ordem da manifestação, se não fossem concebidas como simultâneas em princípio, sua existência não poderia ser senão puramente ilusória. Não apenas o “fluir das formas” no manifestado, desde que conservemos seu caráter relativo, é plenamente compatível com a “permanente atualidade” de todas as coisas no não-manifestado, como também, se não houvesse nenhum princípio de mudança, a própria mudança, como já explicamos em outras ocasiões, seria desprovida de qualquer tipo de realidade.






VIII
O MENTAL,
ELEMENTO CARACTERÍSTICO
DA INDIVIDUALIDADE HUMANA


Dissemos que a consciência, entendida em seu sentido mais geral, não é algo que possa ser visto como rigorosamente próprio do ser humano enquanto tal, como susceptível de caracterizá-lo à exclusão de todos os outros seres; e existem com efeito, mesmo no domínio da manifestação corporal (que não representa mais do que uma porção restrita do grau de Existência em que se situa o ser humano), e desta parte da manifestação corporal que nos rodeia imediatamente e que constitui a existência  terrestre, uma multitude de seres que não pertencem à espécie humana, mas que entretanto apresentam muita similaridade com esta, sob muitos aspectos, para que não nos seja permitido supô-los desprovidos de consciência, mesmo tomada simplesmente no sentido psicológico vulgar. Este é, em maior ou menor grau, o caso de todas as espécies animais, que aliás testemunham manifestamente a posse de uma consciência; é preciso toda a cegueira que pode causar o espírito de sistema para criar uma teoria tão contrária às evidências como a teoria cartesiana dos “animais-máquina”. Talvez seja preciso ir ainda além, e, para os outros reinos orgânicos, senão para todos os seres do mundo corporal, considerar a possibilidade de outras formas de consciência, que aparece como estando ligada especificamente à condição vital; mas isto não importa no momento para aquilo que nos propomos estabelecer.

No entanto, existe certamente uma forma da consciência, dentre todas aquelas de que ela pode revestir-se, que é propriamente humana, e esta forma determinada (ahankâra ou “consciência do eu”) é aquela que é inerente à faculdade que nós chamamos de “mental”, ou seja precisamente a este “sentido interno” que é designado em sânscrito pelo nome de manas, e que constitui verdadeiramente a característica da individualidade humana[79]. Esta faculdade é algo realmente específico, que, como já explicamos em outras ocasiões, deve ser cuidadosamente distinguida do intelecto puro, pois este, ao contrário, em razão de sua universalidade, deve ser visto como existente em todos os seres e em todos os estados, quaisquer que possam ser as modalidades através das quais sua existência será manifestada;  e não se deve ver no “mental” outra coisa do que aquilo que ele é verdadeiramente, ou seja, para empregar a linguagem dos lógicos, uma “diferença específica” pura e simples, sem que sua posse possa acarretar por si só, para o homem, nenhuma superioridade sobre os outros seres. De fato, não pode ser questão de superioridade ou de inferioridade, para um ser considerado em relação aos outros, senão naquilo que há de comum entre eles e que implica uma diferença, não de natureza, mas apenas de grau, enquanto que o “mental” é precisamente o que existe de específico no homem, aquilo que ele não tem em comum com os demais seres não-humanos, portanto aquilo em relação a que ele não pode de modo algum ser comparado a estes. O ser humano poderá sem dúvida, numa certa medida, ser visto como superior ou inferior a outros seres em tal ou tal ponto (superioridade ou inferioridade totalmente relativas, bem entendido); mas a consideração do “mental”, a partir do momento em que ele se apresenta como uma “diferença” na definição do ser humano, não poderá jamais fornecer nenhum termo de comparação.

Para exprimir ainda a coisa em outros termos, podemos retomar simplesmente a definição aristotélica e escolástica do homem como “animal racional”: se o definimos assim, e se ao mesmo tempo vemos a razão, ou melhor a “racionalidade”, como sendo propriamente o que os lógicos da idade média chamavam differentia animalis, é evidente que a presença desta não pode constituir mais do que um simples caráter distintivo. De fato, esta diferença só se aplica dentro do  gênero animal, para caracterizar a espécie humana distinguindo-a essencialmente de todas as outras espécies do mesmo gênero; mas ela não se aplica aos seres que não pertençam a este gênero, de sorte que tais seres (como os anjos por exemplo) não podem de modo algum ser chamados de “racionais”, e esta distinção sinaliza apenas que sua natureza é diferente da do homem, sem implicar para eles nenhuma inferioridade em relação a este[80]. Por outro lado, deve ficar bem entendido que a definição que fornecemos não se aplica ao homem senão enquanto ser individual, pois é somente como tal que ele pode ser visto como pertencente ao gênero animal[81]; e é de fato como ser individual que o homem é caracterizado pela razão, ou melhor pelo “mental”, fazendo caber neste termo mais amplo a razão propriamente dita, que é um dos seus aspectos, e sem dúvida o principal.

Quando dizemos, falando do “mental”, ou da razão, ou, o que é quase o mesmo, do pensamento em seu modo humano, que se trata de faculdades individuais, é preciso entender por isto, não as faculdades que seriam próprias a um indivíduo à exclusão dos demais, ou que seriam radical e essencialmente diferentes em cada indivíduo (o que seria aliás a mesma coisa no fundo, pois não se poderia dizer então serem as mesmas faculdades, de modo que tratar-se-ia apenas de uma assimilação puramente verbal), mas de faculdades que pertencem aos indivíduos enquanto tais, e que não teriam mais nenhuma razão de ser se quiséssemos considerá-las fora de um dado estado individual e das considerações específicas que definem a existência deste estado. É neste sentido que a razão, por exemplo, é propriamente uma faculdade individual humana, pois, se é verdade que ela é no fundo, em sua essência, comum a todos os homens (sem o que ela não poderia evidentemente servir para definir a natureza humana), e que ela não difere de um indivíduo para outro senão em sua aplicação e em suas modalidades secundárias, ela não deixa de pertencer aos homens enquanto indivíduos, e somente enquanto indivíduos, pois ela é justamente característica da individualidade humana; e é preciso tomar cuidado para lembrar-se que é apenas por uma transposição puramente analógica que se pode legitimamente considerar de algum modo sua correspondência no universal. Portanto, e insistimos nisto para afastar toda confusão possível (confusão que as concepções “racionalistas” do Ocidente moderno tornam muito mais fácil), se tomamos o termo “razão” ao mesmo tempo num sentido universal e num sentido individual, devemos sempre ter o cuidado de frisar que este duplo emprego de um mesmo termo (que de resto seria, com todo rigor, preferível evitar) não passa da indicação de uma simples analogia, que exprime a refração de um princípio universal (que não é outra coisa do que Buddhi) na ordem mental humana[82]. É apenas em virtude desta analogia, que não é de modo algum uma identificação, que podemos num certo sentido, e com a reserva precedente, chamar também de “razão” àquilo que, no universal, corresponde, por uma transposição conveniente, à razão humana, ou, em outros termos, aquilo de que esta é a expressão, como tradução e manifestação, em modo individualizado[83]. De resto, os princípios fundamentais do conhecimento, mesmo quando vistos como a expressão de uma certa “razão universal”, entendida no sentido do Logos platônico e alexandrino, nem por isso deixam de ultrapassar, além de toda medida assinalável, o domínio particular da razão individual, que é exclusivamente uma faculdade de conhecimento distintivo e discursivo[84], e à qual eles se impõem como dados de ordem transcendente que condicionam necessariamente toda atividade mental. Isto é evidente, de resto, a partir do momento em que lembramos que estes princípios não pressupõem nenhuma existência particular, mas são ao contrário pressupostos logicamente como premissas, no mínimo implícitas, de toda afirmação verdadeira de ordem contingente. Podemos mesmo dizer que, em razão de sua universalidade, estes princípios, que dominam toda lógica possível, têm ao mesmo tempo, ou melhor antes de tudo, um alcance que se estende pra além do domínio da lógica, pois esta, ao menos na sua acepção habitual e filosófica[85], não é nem pode ser mais do que uma aplicação, por sinal mais ou menos consciente, de princípios universais às condições específicas do entendimento humano individualizado[86].

Estas poucas explicações, embora distanciando-se um pouco do objeto principal de nosso estudo, nos pareceram necessárias para fazer compreender em que sentido dizemos que o “mental” é uma faculdade ou uma propriedade do indivíduo enquanto tal, e que esta propriedade representa o elemento essencialmente característico do estado humano. É por isso que, aliás, quando nos ocorre falar em “faculdades”, damos a este termo uma acepção bastante vaga e indeterminada; ele é assim susceptível de uma aplicação mais geral, em casos nos quais não haveria nenhuma vantagem em substituí-lo por outro termo mais específico por ser mais claramente definido.

Quanto à distinção essencial do “mental” para com o intelecto puro, lembraremos apenas o seguinte: o intelecto, na passagem do universal para o individual, produz a consciência, mas esta, por ser de ordem individual, não é absolutamente idêntica ao próprio princípio intelectual, embora proceda dele imediatamente como resultado da intersecção deste princípio com o domínio específico de certas condições de existência, pelas quais se define a individualidade considerada[87]. Por outro lado, é à faculdade mental, unida diretamente à consciência, que pertence propriamente o pensamento individual, que é de ordem formal (onde, segundo o que foi dito, compreendemos a razão, assim como a memória e a imaginação), e que não é absolutamente inerente ao intelecto transcendente (Buddhi), cujos atributos são essencialmente informais[88]. Isto mostra claramente até que ponto esta faculdade mental é na realidade algo de restrito e especializado, mesmo sendo susceptível de desenvolver possibilidades indefinidas; ela é portanto ao mesmo  tempo muito menos e muito mais do que gostariam as concepções demasiado simplificadas, diríamos mesmo “simplistas”, que circulam entre os psicólogos ocidentais[89].
























IX
A HIERARQUIA
DAS FACULDADES INDIVIDUAIS


A distinção profunda do intelecto e do mental consiste essencialmente, como dissemos, em que o primeiro é de ordem universal, enquanto que o segundo é de ordem puramente individual; por conseguinte, eles não podem aplicar-se nem ao mesmo domínio nem aos mesmos objetos, e é preciso inclusive, a este respeito, distinguir também a ideia informal do pensamento formal, que não passa de uma expressão mental sua, vale dizer sua tradução em modo individual. A atividade do ser, nestas duas ordens diversas que são a intelectual e a mental, pode, mesmo exercendo-se de forma simultânea, chegar a dissociar-se a ponto de torná-las completamente independentes uma da outra quanto às suas manifestações respectivas; mas não podemos mais do que assinalar isto de passagem sem insistir no assunto, cujo desenvolvimento nos levaria inevitavelmente a deixar o ponto de vista estritamente teórico em que pretendemos permanecer para o momento.

Por outro lado, o princípio psíquico que caracteriza a individualidade humana é de natureza dupla: além do elemento mental propriamente dito, ele compreende igualmente o elemento sentimental ou emotivo, que, evidentemente, pertence também ao domínio da consciência individual, mas que está ainda mais afastado do intelecto, e ao mesmo tempo mais estreitamente dependente das condições orgânicas, portanto mais próximo do mundo corporal ou sensível. Esta nova distinção, embora estabelecida no interior daquilo que é propriamente individual, sendo por conseguinte menos fundamental do que a precedente, é no entanto mais profunda do  que se poderia crer à primeira vista; e muitos erros e enganos da filosofia moderna ocidental, particularmente sob sua forma psicológica[90], provém de que, apesar das aparências, ela é ainda mais ignorada do que a distinção entre o intelecto e a mente, ou que no mínimo sua real dimensão é desconsiderada. Ademais, a distinção, e poderíamos mesmo dizer a separação destas faculdades, mostra que existe uma multiplicidade de estados, ou mais exatamente de modalidades, dentro do próprio indivíduo, embora este, em seu conjunto, não constitua mais do que um único estado do ser total; a analogia da parte com o todo se reencontra aqui como em toda parte[91]. Podemos assim falar de uma hierarquia dos estados do ser total; apenas, as faculdades do indivíduo, se são indefinidas em sua extensão possível, são em número definido, e o simples fato de as subdividirmos mais ou menos, por uma dissociação levada mais ou menos longe, não lhes acrescenta evidentemente nenhuma nova potencialidade, enquanto que, como já dissemos, os estados do ser são verdadeiramente em multitude indefinida, e isto por sua própria natureza, que é (para os estados manifestados) a de corresponder a todos os graus da Existência universal. Podemos dizer que, na ordem individual, a distinção não se opera senão por divisão, e que, na ordem extra-individual, ela opera-se ao contrário por multiplicação; aqui, como em todos os casos, a analogia aplica-se em sentido inverso[92].

Não temos a intenção de entrar aqui no estudo particular e detalhado das diferentes faculdades individuais e de suas funções ou atribuições respectivas; este estudo teria forçosamente um caráter mais psicológico, ao menos na medida em que se permaneça na teoria destas faculdades, as quais basta aliás nomear para que seus objetos próprios fiquem claramente definidos por isso mesmo, com a condição, bem entendido, de ficar nas generalidades, que é o que nos importa atualmente. Como as análises mais ou menos sutis não são do território da metafísica, sendo de resto tanto mais vãs quanto mais sutis, nós as deixamos aos filósofos que se comprazem com elas; por outro lado, nossa intenção presente não é a de tratar completamente a questão da constituição do ser humano, que já expusemos em outra obra[93], o que nos dispensa de maiores desenvolvimentos sobre estes pontos de importância secundária em relação ao tema que nos ocupa presentemente.

Em suma, se julgamos a propósito dizer algumas palavras sobre a hierarquia das faculdades individuais, é apenas porque isto nos permite fazer uma ideia melhor do que podem vir a ser os estados múltiplos, fornecendo uma espécie de imagem reduzida deles, compreendida dentro dos limites da possibilidade individual humana. Esta imagem não pode ser exata, na sua medida, a não ser que se leve em conta as reservas que formulamos no que diz respeito à aplicação da analogia; por outro lado, como ela será tanto melhor quanto menos restrita for, convém acrescentar, juntamente com a noção geral da hierarquia das faculdades, a consideração dos diversos prolongamentos da individualidade de que tivemos ocasião de falar precedentemente. De resto, estes prolongamentos, que são de diferentes ordens, podem entrar igualmente nas subdivisões da hierarquia geral; existem mesmo alguns que, por serem de certo modo de natureza orgânica, ligam-se simplesmente à ordem corporal, mas com a condição de vermos até nesta ordem algo de psíquico num certo grau, por estar esta manifestação corpórea como que envolvida e ao mesmo tempo penetrada pela manifestação sutil, na qual ela tem seu princípio imediato. Não cabe, na verdade, separar a ordem corporal das outras ordens individuais (ou seja das outras modalidades pertencentes ao mesmo estado individual visto na integralidade de sua extensão) mais profundamente do que estas  devem ser separadas entre si, porque todas se situam no mesmo nível no conjunto da Existência universal, e por conseguinte na totalidade dos estados do ser; mas, enquanto que as outras distinções foram negligenciadas e esquecidas, esta tomou uma importância exagerada em razão do dualismo “espírito-matéria” cuja concepção prevaleceu, por causas variadas, nas tendências filosóficas de todo o Ocidente moderno[94].





[1] Lembraremos incidentalmente, a propósito, que o fato de o ponto de vista filosófico jamais utilizar-se do simbolismo basta para mostrar o caráter absolutamente “profano” e exterior deste ponto de vista e do modo de pensamento que lhe corresponde.

[2] Ver O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. XXIII.
[3] Ver O Simbolismo da Cruz, caps. XVI a XVIII.
[4] Ver ibid. cap. XV.
[5] Ver ibid., cap. I.
[6] Ver Orient et Occident e La Crise du Monde moderne.
[7] É preciso notar que dizemos “gerais” e não “universais”, porque trata-se aqui de condições que são especiais a certos estados de existência, e nada mais; isto deve bastar para fazer compreender que não pode ser questão de infinitude em tal caso, sendo estas condições evidentemente limitadas, como os próprios estados aos quais elas se aplicam e que elas contribuem para definir.
[8] Se nos acontece às vezes de dizer “Infinito metafísico”, precisamente para marcar de modo mais explícito que não se trata do pretenso “infinito matemático” ou de outras “contrafações do Infinito”, se podemos nos exprimir assim, uma tal expressão não cai absolutamente na objeção que formulamos, porque a ordem metafísica é verdadeiramente ilimitada, de modo que não há nela nenhuma determinação, mas ao contrário a afirmação daquilo que ultrapassa toda determinação, enquanto que quem diz “matemático” restringe por isso mesmo a concepção a um domínio específico e limitado, o da quantidade.
[9] Ver O Simbolismo da Cruz, caps. XXVI e XXX.
[10] O absurdo, no sentido lógico e matemático, é aquilo que implica contradição; ele se confunde assim com o impossível, pois é a ausência de contradição interna que, tanto lógica quanto ontologicamente, define a possibilidade.
[11] Sobre o emprego de termos em forma negativa, mas cujo significado é essencialmente positivo, ver Introduction gènèrale à l’étude des doctrines hindoues, 2ª parte, cap. VIII; e O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. XV.
[12] Não dizemos defini-lo, pois seria evidentemente contraditório pretender dar uma definição do Infinito; e já mostramos que o ponto de vista metafísico, em razão de seu caráter universal e ilimitado, tampouco é susceptível de ser definido (Introduction gènèrale à l’étude des doctrines hindoues, 2ª parte, cap. V).
[13] É preciso distinguir esta necessidade lógica, que é a impossibilidade de que uma coisa não seja ou que ela seja outra coisa do que aquilo que ela é, e isto independentemente de qualquer condição particular, da necessidade dita “física”, ou necessidade de fato, que é simplesmente a impossibilidade para as coisas ou os seres de não se conformarem às leis do mundo ao qual pertencem, e que, por consequência, está subordinada às condições pelas quais este mundo está definido e só vale no interior deste domínio particular.
[14] Alguns filósofos, argumentando com justa razão contra o pretenso “infinito matemático”, e tendo mostrado todas as contradições que implica esta ideia (e que desaparecem quando se dá conta de que não se trata senão do indefinido) acreditaram provar com isto, ao mesmo tempo, a impossibilidade do Infinito metafísico; tudo o que eles provaram, na verdade, é que ignoravam completamente aquilo de que se trata no segundo caso.
[15] Em outros termos, o finito, mesmo susceptível de uma extensão indefinida, é sempre rigorosamente nulo diante do Infinito; por conseguinte, nenhuma coisa nem nenhum ser pode ser considerado como “uma parte do Infinito”, o que é uma das concepções errôneas próprias ao “panteísmo”, pois a própria palavra “parte” supõe a existência de uma relação definida com o todo.
[16] O que é preciso evitar acima de tudo, é conceber o Todo universal ao modo de uma soma aritmética, obtida pela adição de suas partes tomadas uma a uma e sucessivamente. Aliás, mesmo quando se trata de um todo particular, existem dois casos a distinguir: um todo verdadeiro é logicamente anterior às suas partes e é independente delas; um todo concebido como logicamente posterior às suas partes, de que ele é a soma, não constitui na realidade senão aquilo que os escolásticos chamavam de um ens rationis, cuja existência, enquanto “todo”, está subordinada à condição de ser efetivamente pensada como tal; o primeiro tem em si mesmo um princípio de unidade real, superior à multiplicidade de suas partes, enquanto que o segundo não tem outra unidade do que aquela que lhe atribuímos pelo pensamento.
[17] O Simbolismo da Cruz, cap. XV.
[18] Ver ibid., Cap. XXIV.
[19] É Brahma e sua Shakti na doutrina hindu (ver O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, caps. V e X)
[20] Ver O Simbolismo da Cruz, cap. XXIV.
[21] Cabe lembrar que todo sistema filosófico apresenta-se como sendo essencialmente a obra de um indivíduo, contrariamente ao que acontece com as doutrinas metafísicas, diante das quais as individualidades não contam.
[22] Ver Introduction génerale à l’étude des doctrines hindoues, 2ª parte, cap. VIII; O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. I; O Simbolismo da Cruz, caps. I e XV.
[23] Da mesma forma, para tomarmos um exemplo mais abrangente, as diversas geometrias euclidianas e não-euclidianas não se aplicam evidentemente ao mesmo espaço; mas isto não poderia impedir as diferentes modalidades de espaço às quais elas correspondem de coexistir na integralidade da possibilidade espacial, na qual cada uma deve realizar-se a seu modo, segundo o que explicamos a respeito da identidade efetiva entre o possível e o real.
[24] Deve ficar claro que não tomamos aqui a palavra “existência” em seu sentido rigoroso e conforme à sua derivação etimológica, pois este só é aplicável estritamente ao ser condicionado e contingente, ou seja em suma à manifestação; só utilizamos este termo, como também às vezes o próprio termo “ser”, de modo puramente analógico e simbólico, porque ele nos ajuda em certa medida a explicar aquilo de que se trata, embora, na realidade, ele seja extremamente inadequado (ver O Simbolismo da Cruz, caps. I e II).
[25] Agora trata-se da “existência” no sentido próprio e rigoroso do termo.
[26] Uma tal ideia é metafisicamente injustificável, e ela só pode provir de uma intrusão do ponto de vista “moral” num domínio aonde ela não tem o que fazer; da mesma forma, o “princípio do melhor” ao qual Leibnitz apela nesta ocasião, é propriamente antimetafísico, como já explicamos (O Simbolismo da Cruz, cap. II).
[27] O que queremos dizer com isto, é que, metafisicamente, não cabe ver o real como constituindo uma ordem diferente do possível; mas é preciso dar-se conta de que este termo “real” é por si mesmo muito vago, senão equívoco, ao menos no uso que se faz dele na linguagem comum e mesmo na maior parte dos filósofos; só o utilizamos aqui pela necessidade de descartar a distinção ordinária do possível e do real; mais adiante voltaremos para lhe dar um significado mais preciso.
[28] É importante notar que a condição espacial não basta, sozinha, para definir um corpo enquanto tal; todo corpo é necessariamente extenso, ou seja submetido ao espaço (donde resulta notadamente sua divisibilidade indefinida, que mostra o absurdo da concepção atomista), mas, contrariamente ao que pretendia Descartes e outros partidários de uma física (mecanicista), a extensão não constitui absolutamente toda a natureza ou a essência dos corpos.
[29] Ver O Simbolismo da Cruz, cap. XXX.
[30] Ver ibid., cap. XI; cf. O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, caps. II, XII e XIII.
[31] Cf. O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. XV.
[32] Deve ficar claro que, quando dizemos “transitório”, não temos em vista exclusivamente, nem mesmo principalmente, a sucessão temporal, pois esta só se aplica a um modo particular de manifestação.
[33] Sobre a continuidade dos estados do ser, ver O Simbolismo da Cruz, caps. XV e XIX. – O que foi dito deve mostrar que os pretensos princípios da “conservação da matéria” e da “conservação da energia”, qualquer que seja a forma como se os exprima, não passam na realidade de simples leis físicas relativas e aproximativas e que, mesmo no interior do domínio especial a que se aplicam, só podem ser verdadeiras sob certas condições restritivas, sendo que estas condições subsistiriam ainda, mutatis mutandis, se quiséssemos estender estas leis, transpondo convenientemente seus termos, a todo o domínio da manifestação. Os físicos são aliás obrigados a reconhecer que só se trata aí de “casos limite”, no sentido em que estas leis só podem ser aplicadas com todo o rigor dentro dos chamados “sistemas fechados”, ou seja a algo que, de fato, não existe e nem pode existir, por ser impossível realizar e mesmo conceber, no interior da manifestação, um conjunto que seja completamente isolado de todo o resto, sem comunicação nem troca de espécie alguma com o que está ao seu redor; uma tal solução de continuidade seria uma verdadeira lacuna na manifestação, pois este conjunto estaria em relação com o resto como se ele não existisse.
[34] Isto é o que notadamente pretendem os atomistas.
[35] A concepção de um “espaço vazio” é contraditória, o que, diga-se de passagem, constitui uma prova suficiente da realidade do elemento etéreo (Akâsha), contrariamente à teoria das diversas escolas que, na Índia como na Grécia, não admitiam mais do que quatro elementos corporais.
[36] A respeito do vazio e de suas relações com a extensão, ver também O Simbolismo da Cruz, cap. IV.
[37] Cf. Tao Te King, Cap. XIV.
[38] É o inexprimível (e não o incompreensível como se crê de ordinário) que era designado primitivamente pelo termo “mistério”, pois, em grego, musthrion deriva de muein, que significa “calar-se”, “ser silencioso”. À mesma raiz verbal MU (donde o latim mutus, “mudo”) liga-se também o termo umQos, “mito”, que, antes de ser desviado até não designar mais do que um relato fantasista, significava aquilo que, por não poder ser expresso diretamente, só podia ser sugerido por uma representação simbólica, fosse ela verbal ou figurativa.
[39] Podemos encarar da mesma forma as trevas, num sentido superior, como aquilo que está para além da manifestação luminosa, enquanto que, no seu sentido inferior e mais habitual, elas são simplesmente, dentro do manifestado, a ausência ou a privação da luz, ou seja qualquer coisa de puramente negativo; a cor negra possui aliás, no simbolismo, utilizações que se referem efetivamente a este duplo significado.
[40] Lembramos que as duas possibilidades de não-manifestação aqui consideradas correspondem ao “Abismo” (BhQos) e ao “Silêncio” (Sigh) de certas escolas do Gnosticismo alexandrino, que são de fato aspectos do Não-Ser.
[41] Como indicamos no início, se quisermos falar no ser total, é preciso, embora este termo não seja mais propriamente aplicável, chamá-lo ainda analogamente “um ser”, na falta de outro termo mais adequado à disposição.
[42] O “nada” não se opõe portanto ao Ser, contrariamente ao que se diz vulgarmente; é à Possibilidade que ele se oporia, se ele pudesse entrar como um termo real numa oposição qualquer; mas não é isto que acontece, pois não há nada que possa opor-se à Possibilidade, o que é fácil de entender, uma vez que a Possibilidade é realmente idêntica ao Infinito.
[43] Lembraremos ainda que “existir”, na acepção etimológica do termo (latim ex-stare), significa propriamente ser dependente e condicionado; é portanto, em suma, não ter em si seu próprio princípio e sua própria razão suficiente, o que é bem o caso da manifestação, assim como explicaremos mais adiante ao definirmos a contingência de forma mais precisa.
[44] O Simbolismo da Cruz, cap. I.
[45] Esta restrição é necessária porque, em sua essência não-manifestada, esta mesma essência não pode evidentemente estar submetida a tais condições.
[46] É o que a doutrina hindu designa como o domínio da manifestação grosseira; dá-se às vezes o nome de “mundo físico”, mas esta expressão é equívoca, e, se ela pode justificar-se pelo sentido moderno do termo “físico”, que só se aplica de fato apenas às qualidades sensíveis, achamos melhor manter sempre seu sentido antigo e etimológico (de fusis, “natureza”); a partir do momento em que se a entende assim, a manifestação sutil não é menos “física” do que a manifestação grosseira, pois a “natureza”, ou seja propriamente o domínio do “devir”, é na realidade idêntica à manifestação universal inteira.
[47] O Simbolismo da Cruz, cap. XI.
[48] Ibid., cap. XII.
[49] Ibid., Cap. XXVII.
[50] Poderíamos então dizer que o “eu”, com todos os prolongamentos de que é susceptível, tem muito menos importância da que lhe atribuem os psicólogos e os filósofos ocidentais modernos, mesmo tendo possibilidades indefinidamente mais extensas do que eles acreditam ou podem supor (ver O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. II, e também o que diremos mais adiante sobre as possibilidades da consciência individual).
[51] Estes dois casos de indefinidamente crescente e indefinidamente decrescente são o que corresponde na realidade àquilo que Pascal chamou tão impropriamente de “os dois infinitos” (ver O Simbolismo da Cruz, cap. XXIX); convém insistir que nenhum dos dois nos fazem absolutamente sair do domínio quantitativo.
[52] Lembramos ainda, pois nunca é demais insistir, que a unidade de que se trata é a unidade metafísica ou “transcendental”, que se aplica ao Ser universal como um atributo “co-extensivo” a este, para empregarmos a linguagem dos lógicos (embora a noção de “extensão” e a de “compreensão” que lhe é correlata não sejam mais propriamente aplicáveis além das “categorias” ou dos gêneros mais gerais, ou seja quando se passa do geral ao universal), e que, como tal, difere essencialmente da unidade matemática ou numérica, que só se aplica ao domínio quantitativo; e o mesmo ocorre com a multiplicidade, segundo a observação que já fizemos em muitas ocasiões. Existe apenas analogia, e não identidade nem sequer similaridade, entre as noções metafísicas de que falamos e as noções matemáticas correspondentes; a designação de umas e outras por termos comuns não exprime na realidade nada além do que esta analogia.
[53] É por isso que pensamos que se deve, na medida do possível, evitar um termo tal como o de “emanação”, que evoca uma ideia ou antes uma imagem falsa, a de uma “saída” fora do Princípio.
[54] Está claro que o termo “direções”, emprestado à consideração das possibilidades espaciais, deve ser entendido aqui simbolicamente, pois, no sentido literal, ele só se aplicaria a uma parte ínfima das possibilidades de manifestação; o sentido que lhe damos aqui está em conformidade com tudo o que expusemos em O Simbolismo da Cruz.
[55] Não dizemos “individuais”, pois dentro do que se trata estão compreendidos também os estados de manifestação informal, que são supra-individuais.
[56] De fato, não há exemplo possível, no sentido estrito do termo, no que concerne às verdades metafísicas, pois estas são universais por essência e não são susceptíveis de nenhuma particularização, enquanto que todo exemplo é forçosamente de ordem particular, num grau ou noutro.
[57] Ver O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. XII.
[58] O termo “imaginado” deve ser entendido aqui no seu sentido mais exato, pois é exatamente de uma formação de imagens que se trata essencialmente no sonho.
[59] Ver O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. X.
[60] Ver O Simbolismo da Cruz, cap. II.
[61] Tchouang-Tsé, cap. II.
[62] As mesmas observações cabem, igualmente, no caso da alucinação, no qual o erro não consiste, como se diz vulgarmente, em atribuir uma realidade ao objeto percebido, pois seria evidentemente impossível perceber qualquer coisa que não existisse de modo algum,, mas em atribuir-lhe um modo de realidade diverso daquele que é realmente o seu; trata-se em suma de uma confusão entre a ordem da manifestação sutil e a da manifestação corpórea.
[63] Leibnitz definiu a percepção como “a expressão da multiplicidade na unidade” (multorum in uno expressio), o que é justo, mas com a condição de fazer as reservas que já indicamos sobre a unidade que se deve atribuir à “substância individual” (cf. O Simbolismo da Cruz, cap. III).
[64] Por esta restrição, não pretendemos negar a exterioridade dos objetos sensíveis, que é uma conseqüência de sua espacialidade; queremos apenas indicar que não fazemos intervir aqui a questão do grau de realidade que é preciso assinalar a esta exterioridade.
[65] Aludimos aqui, notadamente, à distinção do “espírito” e da “matéria”, tal como a coloca, depois de Descartes, toda a filosofia ocidental, que chegou a pretender colocar toda a realidade, seja nos dois termos desta distinção, seja apenas em um ou outro desses termos, acima dos quais ela é incapaz de se elevar (Ver Introduction générale à l’étude des doctrines hindoues, 2ª parte, cap. VIII).
[66] A relação entre o continente e o conteúdo, tomada em seu sentido literal, é uma relação espacial; mas aqui ela deve ser entendida em modo figurado, pois aquilo de que se trata não possui extensão nem está localizado no espaço.
[67] Resulta daí que a psicologia, seja o que for que pretendam alguns, tem exatamente o mesmo caráter de relatividade que qualquer outra ciência particular e contingente, e que ela não tem tampouco relações com a metafísica; não se deve esquecer que ela é uma ciência moderna e “profana”, sem ligação com qualquer conhecimento tradicional.
[68] Ver O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. VII.
[69] Ibid., cap. VIII.
[70] Acontece, de fato, que, para coisas das quais cada um tem por si mesmo uma noção suficientemente clara, como é o caso, a definição acaba se tornando mais complexa e obscura do que a coisa em si.
[71] Sobre esta equivalência de todos os estados do ponto de vista do ser total, ver O Simbolismo da Cruz, cap. XXVII.
[72] Alguns psicólogos empregam este termo de “supraconsciência”, mas eles não entendem por isto nada além da consciência normal clara e distinta, por oposição à “subconsciência”; nestas condições, trata-se de um neologismo perfeitamente inútil. Ao contrário, o que entendemos aqui por “supraconsciência” é verdadeiramente o simétrico da “subconsciência”, em relação à consciência comum, e assim este termo não faz duplo emprego com nenhum outro.
[73] Ver O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. XVIII.
[74] O Erro Espírita, 2ª parte, cap. VI; cf. O Simbolismo da Cruz, cap. XV.
[75] O sucesso desta teoria foi aliás devido em boa parte a razões que nada tem de  “científicas”, mas que provém diretamente de seu caráter antitradicional; pelas mesmas razões, podemos prever que, mesmo depois que nenhum biólogo sério acredite mais nela, ela ainda sobreviverá por muito tempo nos manuais escolares e nas obras de vulgarização.
[76] Deve ficar bem entendido que a impossibilidade de mudança de espécie não se plica senão às espécies verdadeiras, que nem sempre coincidem com o que é designado como tal nas classificações dos zoólogos e dos botânicos, pois este podem tomar por espécies diferentes o que não passa de raças ou variedades de uma mesma espécie.
[77] Esta afirmação pode parecer muito paradoxal à primeira vista, mas ela se justifica quando consideramos o caso dos vegetais ou de alguns animais ditos inferiores, tais como os pólipos e os vermes, quando é quase impossível reconhecer se estamos na presença de um ou de muitos indivíduos e determinar em que medida estes indivíduos são realmente distintos uns dos outros, enquanto que os limites da espécie, ao contrário, aparecem sempre claramente.
[78] Cf. O Erro Espírita, 2ª parte, cap. VIII.
[79] Ver O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. VIII. Empregamos o termo “mental” de preferência a qualquer outro, porque sua raiz é a mesma do sânscrito manas, que se reencontra no latim mens, no inglês mind, etc.; de resto, as numerosas aproximações linguísticas possíveis em torno desta raiz MAN ou MEN, e os diversos significados das palavras que ela forma mostram que se trata de um elemento que é visto como essencialmente característico do ser humano, pois sua designação serve muitas vezes para nomear a ele próprio, o que implica que este ser é suficientemente definido pela presença do elemento em questão (cf. ibid., cap. I).
[80] Veremos mais adiante que os estados “angélicos” são propriamente os estados supra-individuais da manifestação, ou seja aqueles que pertencem ao domínio da manifestação informal.
[81] Lembramos que a espécie é essencialmente da ordem da manifestação individual, que ela é estritamente imanente a um certo grau definido da Existência universal, e que, por consequência, o ser só está ligado a ela no estado correspondente a este grau.
[82] Na ordem cósmica, a refração correspondente do mesmo princípio tem sua expressão no Manu da tradição hindu (ver Introduction générale à l’étude des doctrines hindoues, 3ª parte, cap. V e O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. IV).
[83] Segundo os filósofos escolásticos, uma transposição deste gênero deve ser efetuada toda vez que se passa dos atributos dos seres criados para os atributos divinos, de tal modo que é apenas analogicamente que os mesmos termos podem ser aplicados a uns e outros, e simplesmente para indicar que está em Deus o princípio de todas as qualidades que se encontram no homem ou em qualquer outro ser, com a condição, bem entendido, que se trate de qualidades realmente positivas, e não daquelas que, por serem o resultado de uma privação ou de uma limitação, não tem mais do que uma existência puramente negativa quaisquer que possam ser as aparências, e são assim desprovidas de princípio.
[84] O conhecimento discursivo, opondo-se ao conhecimento intuitivo, é no fundo sinônimo de conhecimento indireto e mediato; trata-se assim de um conhecimento inteiramente relativo, e de certo modo por reflexo ou por participação; em razão de seu caráter de exterioridade, que deixa subsistir a dualidade entre sujeito e objeto, ele não poderia encontrar em si mesmo a garantia de sua veracidade, mas ele deve recebê-la de princípios que o ultrapassem e que são da ordem do conhecimento intuitivo, vale dizer puramente intelectual.
[85] Fazemos esta restrição porque a lógica, nas civilizações orientais como as da Índia e da China, apresenta um caráter diferente, que faz dela um “ponto de vista” (darshana) da doutrina total e uma verdadeira “ciência tradicional” (ver Introduction générale à l’étude des doctrines hindoues, 3ª parte, cap. IX).
[86] Cf. O Simbolismo da Cruz, cap. XVII.
[87] Esta intersecção é, segundo o que já expusemos, a do “Raio Celeste” com seu plano de reflexão (ibid., Caps. XXIV).
[88] Ver O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, caps. VII e VIII)
[89] É o que já indicamos mais acima a respeito das possibilidades do “eu” e de seu lugar no ser total.
[90] Empregamos aqui esta expressão propositadamente, porque alguns, ao invés de colocar a psicologia em seu lugar legítimo de ciência especializada, pretendem fazer dela o ponto de partida e o fundamento de toda uma pseudo-metafísica, que, bem entendido, não tem valor algum.
[91] Ver O Simbolismo da Cruz, caps. II e III.
[92] Ver ibid., caps. II e XXIX.
[93] O Homem e seu devir segundo o Vêdânta.
[94] Ver Introduction générale à l’étude des doctrines hindoues, 2ª parte, cap. VIII e O Homem e seu devir segundo o Vêdânta, cap. V. Como já indicamos, devemos remontar até Descartes para chegarmos à origem e à responsabilidade pelo dualismo, embora devamos reconhecer que suas concepções deveram seu sucesso ao fato de serem a expressão sistematizada de tendências pré-existentes, as mesmas que viriam depois a caracterizar o espírito moderno (cf. La Crise du Monde moderne, cap. V).

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