sábado, 16 de fevereiro de 2019

René Guénon - Silêncio e solidão




(Este é o único estudo que René Guénon dedica integralmente à Tradição Indoamericana, ainda que ao largo de sua obra se faça uma constante menção a esta tradição de origem pré-colombiana, em particular aos povos da Mesoamérica, ou América Central - publicado originalmente em Études Traditionelles, em março de 1949, constituiu o cap. V de Mélanges, coleção póstuma de diversos artigos publicada por Gallimard, 1976, não traduzido ainda para o português)

***

Entre os índios da América do Norte, e em todas as tribos sem exceção, existe, além dos ritos de distinto gênero que têm um caráter coletivo, a prática de uma adoração solitária e silenciosa, que é considerada como sendo a mais profunda e de caráter mais elevado[1]. Os ritos coletivos, com efeito, têm sempre, em um grau ou outro, algo de relativamente exterior; dizemos em um grau ou outro, porque, a respeito disto, é necessário naturalmente, nela como em qualquer outra tradição, estabelecer uma diferença entre os ritos que poderiam qualificar-se de exotéricos, ou seja, aqueles em que todos participam indistintamente, e os ritos iniciáticos. Ademais, longe de excluir estes ritos ou opô-los de alguma maneira, a adoração de que se trata somente lhes superpõe como sendo, em certo modo, de uma outra ordem; e inclusive há que dar-se inteiro lugar para pensar que, para ser inteiramente eficaz e produzir resultados efetivos, deve pressupor a iniciação como uma condição necessária[2].

A propósito desta adoração, se falou, em ocasiões, de “súplica”, mas isto é evidentemente inexato, porque não há nela nenhuma petição, de qualquer natureza que esta pudesse ser; as súplicas que geralmente se formulam em cantos rituais não podem dirigir-se para outra parte além das diversas manifestações divinas[3], e vamos ver que é de outra coisa que aqui se trata na realidade. Certamente seria muito mais justo falar de “encantação”, tomando este termo no sentido que definimos em outro lugar[4]; poderia igualmente dizer-se que é uma “invocação”, entendendo-a em um sentido exatamente comparável ao do dhikr na tradição islâmica, mas afirmando que se trata essencialmente de uma invocação silenciosa e completamente interior[5]. Eis aqui o que a respeito dela escreve Ch. Eastman[6]: “A adoração ante o Grande Mistério era silenciosa, solitária, sem complicação interior; era silenciosa porque todo discurso é necessariamente débil e imperfeito; assim pois as almas de nossos ancestrais alcançavam a Deus em uma adoração sem palavras; era solitária porque pensavam que Deus está mais perto de nós na solidão, e os sacerdotes não estavam ali para servir de intermediários entre o homem e o Criador[7]”. Não pode, com efeito, haver intermediários em caso semelhante, posto que esta adoração tende a estabelecer uma comunicação direta com o Princípio supremo, que é designado aqui como o “Grande Mistério”.

Não somente não é senão no e pelo silêncio que se pode obter esta comunicação, já que o “Grande Mistério” está mais além de toda forma e toda expressão, como ainda o próprio silêncio “é o Grande Mistério”; como se deve entender exatamente esta afirmação? Primeiro, pode recordar-se a propósito que o verdadeiro “mistério” é essencial e verdadeiramente inexprimível, que não pode evidentemente ser representado mais do que pelo silêncio[8]; porém, ademais, sendo o “Grande Mistério” o não manifestado, o próprio silêncio, que é propriamente um estado de não manifestação, é por isso mesmo como que uma participação ou uma conformidade com a natureza do Princípio supremo. Por outro lado, o silêncio, referido ao Princípio, é, poderia dizer-se, o Verbo não proferido; é por ele que “o silêncio sagrado é a voz do Grande Espírito”, na medida em que este é identificado com o próprio Princípio[9]; e esta voz, que corresponde à modalidade principial do som, que a tradição hindu designa como para ou não manifestada[10], é a resposta ao chamado do ser em adoração: chamado e resposta são igualmente silenciosos, constituem respectivamente uma aspiração e uma iluminação puramente interiores.

Para que isto seja assim, é necessário por outro lado que o silêncio seja na realidade algo mais que a simples ausência de qualquer palavra ou discurso, ainda que estes sejam formulados unicamente de maneira inteiramente mental; com efeito, este silêncio é essencialmente, para os índios, “o perfeito equilíbrio entre as três partes do ser”, ou seja, daquilo que, na terminologia ocidental, pode designar-se como o espírito, a alma e o corpo, pois todo ser inteiro, em todos os elementos em que lhe constituem, há de participar na adoração para que possa obter-se um resultado plenamente válido. A necessidade desta condição de equilíbrio é fácil de compreender, pois o equilíbrio é, na manifestação mesma, como a imagem ou o reflexo da indistinção principial do não manifestado, indistinção que está dessa maneira, bem representada pelo silêncio, de sorte que de nenhum modo há motivo para surpreender-se da assimilação que assim se estabelece entre este e o equilíbrio[11].

Quanto à solidão, convém antes de tudo observar que sua associação com o silêncio é de certa maneira normal e até necessária, e que, inclusive em presença de outros seres, aquele que faz em si o silêncio perfeito forçosamente se “ilha” deles por isto mesmo; por outro lado, silêncio e solidão também se encontram implicados um e outra igualmente no significado do termo sânscrito mauna, que é sem dúvida, na tradição hindu, o que se aplica mais exatamente a um estado como aquele de que falamos presentemente[12]. A multiplicidade, sendo inerente à manifestação, e acentuando-se tanto mais, pode-se dizer, quanto mais se desce a graus inferiores desta, distancia-se pois necessariamente do não manifestado; por isso o ser que quer colocar-se em comunicação com o Princípio deve antes de tudo fazer a unidade nele próprio, tanto quanto lhe é possível, mediante a harmonização e o equilíbrio de todos seus elementos, e deve também, ao mesmo tempo, “ilhar-se” de toda multiplicidade exterior a ele. A unificação assim realizada, inclusive se ainda não é mais do que relativa na maior parte dos casos, não deixa de ser, segundo a medida das possibilidades atuais do ser, um certo conformar-se à “não dualidade” do Princípio; adquirindo o “ilhamento” em seu limite superior, o sentido do termo sânscrito kaivalya, que, ao expressar ao mesmo tempo as ideias de perfeição e totalidade, chega, quando possui toda a plenitude de seu significado, a designar o estado absoluto e incondicionado, o do ser que alcançou a Liberação final.

Em um grau muito menos elevado que este, e que inclusive não pertence ainda senão às fases preliminares da realização, pode observar-se isto: ali onde necessariamente há dispersão, a solidão, na medida em que se opõe à multiplicidade e coincide com uma certa unidade, é essencialmente concentração; e já se sabe que importância dão efetivamente à concentração todas as doutrinas tradicionais sem exceção, enquanto meio e condição indispensável de qualquer realização. Parece-nos pouco útil insistir mais sobre este último ponto, mas há outra consequência sobre a qual ainda temos que chamar mais particularmente a atenção, já ao terminar: é que o método do qual se trata, por opor-se a toda dispersão das potências do ser, exclui o desenvolvimento separado e mais ou menos desordenado de tais ou quais de seus elementos, e em particular o dos elementos psíquicos cultivados de certo modo por eles mesmos, desenvolvimento que é sempre contrário à harmonia e ao equilíbrio do conjunto. Para os índios, segundo o Sr. Paul Coze, “parece que, para desenvolver o orenda[13], intermediário entre o material e o espiritual, é necessário antes de tudo dominar a matéria e tender ao divino”; isto em suma equivale a dizer que eles não consideram legítimo abordar o domínio psíquico mais do que “por alto”, não se obtendo resultados dessa ordem senão de uma maneira inteiramente acessória e “por acréscimo”, o que com efeito é o único meio de evitar seus perigos; e, acrescentaremos, isto se encontra seguramente tão longe quanto é possível da vulgar “magia” que em demasia e sem critério se lhes atribuiu, e que é inclusive tudo o que acreditaram ver os observadores profanos e superficiais, sem dúvida porque eles mesmos não tinham a menor noção do que pode ser a verdadeira espiritualidade.



[1] As informações que aqui utilizamos são tomadas principalmente da obra do Sr. Paul Coze L’Oiseau Tonnerre, de onde igualmente extraímos nossas citações. Este autor dá prova de uma notável simpatia com respeito aos índios e sua tradição; a única ressalva que haveria lugar de se fazer, é que parece fortemente influenciado pelas concepções “metapsiquistas”, o que afeta visivelmente algumas de suas interpretações e em especial entranha às vezes certa confusão entre o psíquico e o espiritual; mas esta consideração não tem, por outro lado, que intervir na questão da qual nos ocupamos aqui.
[2] Não é preciso dizer que, aqui como sempre, entendemos a palavra iniciação exclusivamente em seu verdadeiro sentido, e não naquele em que abusivamente empregam este termo os etnólogos quando designam os ritos de agregação à tribo; haveria que ter-se bastante cuidado de distinguir estas duas coisas, que de fato existem, uma e outra, entre os índios.
[3] Estas manifestações divinas parecem estar, na tradição dos índios, repartidas mais habitualmente segundo uma divisão quaternária, conforme um simbolismo cosmológico que se aplica à vez aos dois pontos de vista macrocósmico e microcósmico.
[4] Ver Aperçus sur L’Initiation, cap. XXIV.
[5] Não carece de interesse a observação, a propósito disto, que certas turuq islâmicas, em particular a dos Naqshabendiyah, praticam assim mesmo um dhikr silencioso.
[6] Ch. Eastman, citado pelo Sr. Paul Coze, é um Sioux por origem, que, apesar de uma educação “branca”, parece haver conservado bem a consciência de sua própria tradição; temos por demais razões para pensar que um caso assim se encontra na realidade longe de ser tão excepcional quanto alguém pudesse crer quando se atêm a certas aparências inteiramente interiores.
[7] O último termo, cujo emprego sem dúvida se deve aqui unicamente aos hábitos da linguagem europeia, não é certamente exato se se quiser ir ao fundo das coisas, já que, na realidade, o “Deus Criador” não pode encontrar-se senão entre os aspectos manifestados do Divino.
[8] Ver Aperçus sur L’Initiation, cap. XVII.
[9] Fazemos esta restrição porque, em alguns casos, a expressão “Grande Espírito”, ou o que aqui se traduz, aparece também como sendo somente a designação particular de uma das manifestações divinas.
[10] Cf. Aperçus sur L’Initiation, cap. XLVII.
[11] Necessita-se apenas recordar que a indistinção principial de que se trata aqui nada tem em comum com o que também pode designar-se com o mesmo termo, porém tomado em um sentido inferior; queremos dizer, a pura potencialidade indiferenciada da matéria prima.
[12] Cf. L’Homme et son devenir selon le Vêdânta, 3a. Edição, cap. XXIII.
[13] Este termo orenda pertence propriamente à língua dos iroqueses, entretanto nas obras europeias se tomou por costume, por maior simplicidade, de empregá-lo uniformemente em lugar de todos os demais termos de igual significado que se encontram entre os diferentes povos índios; o que ele designa é o conjunto de todas as diferentes modalidades da força psíquica e vital; por conseguinte é quase exatamente o equivalente ao prâna da tradição hindu e do Chi da tradição extremo oriental.

sábado, 26 de dezembro de 2015

Mohyiddin Ibn Arabi - Viagem ao Mestre do Poder


APRESENTAÇÃO

A Viagem ao Mestre do Poder, que é bastante conhecido em árabe sob o título Risalat-ul-anwar fima yumnah sahib al-khlwa min al-asrar (“Tratado sobre as luzes dos segredos contados àquele que empreende o retiro”) de Muhiyddin Ibn ul-‘Arabi (1165-1240) foi originalmente publicado em Konya, na Turquia. Existem atualmente cerca de setenta cópias do manuscrito nas bibliotecas do mundo, sob diferentes títulos tais como “O livro da viagem para a realidade” ou “O livro do retiro”. Foram feitas duas edições publicadas em árabe: a do Cairo, em 1914, e a de Hiderabad, em 1948. Esta é a primeira tradução do texto no Ocidente.
Não existe nenhuma edição crítica da Viagem ao Mestre do Poder. Eu consultei também as edições impressas do texto da cópia parcial do manuscrito, datada do século XVII e que pertence à Coleção Garret da Universidade de Princeton. Entretanto, a tradução segue em boa parte uma terceira versão impressa que acompanha o comentário.
A propósito deste comentário, al-Isfar ‘an risalat-ul-anear fima yatajalla li ahl il-dhikr min al-asrar (“Revelação do Tratado sobre os segredos revelados ao povo do Dhikr”), de Abd al-Karim al-Jili (1365-1408), dispomos de muito poucas informações. Ele não é datado; as fontes bibliográficas não fazem referência senão a dois manuscritos. Ele existe também sob o título de Sharh ul-khalwt il-mutlag (“Explicação do retiro absoluto”). A única versão que pude encontrar foi publicada em árabe em Damasco em 1929. Os fragmentos publicados aqui representam igualmente a primeira tradução ocidental do comentário.
A Viagem ao Mestre do Poder de Ibn ‘Arabi foi escrita, como o demonstra o texto, em resposta às questões de um amigo cujo nome não é mencionado e que era também um santo e um mestre sufi. Embora tenha sido autor de numerosos volumes, Ibn ‘Arabi afirmava não ter escrito nada que não obedecesse a uma ordem divina. Nesta carta, ele trata das condições, das experiências e dos resultados da aniquilação em Deus.
A Viagem ao Mestre do Poder da khalwa, o retiro espiritual, prática sufi avançada e perigosa que visa alcançar a presença de Deus por meio de uma renúncia total ao mundo. A khalwa não é de modo algum uma técnica que pode ser aplicada por qualquer um. Ibn ‘Arabi declara explicitamente que em razão das fantasias criadas pela imaginação, não se pode tentá-la sem estar sob a supervisão de um sheikh, ou de alguém que tenha adquirido o controle sobre si mesmo. Além disso, ele indica que perseguir as experiências da khalwa sem estar perfeitamente em dia com todos os deveres e práticas do Islã é um convite à autodestruição. Enfim, cada etapa da ascensão que ele descreve é uma tentação, e sucumbir a ela traz a calamidade e a perdição. Apenas aquele cujo desejo de Deus é irresistível e que não se satisfaz com nada mais está a salvo em tais circunstâncias.
A prática da khalwa foi iniciada pelo Profeta Maomé (que a paz e a bênção de Allah estejam com ele), que tinha o costume de retirar-se para uma gruta no monte Hira para se dedicar à contemplação. A ascensão espiritual que escala todos os graus da existência e leva à presença de Deus, tal como a descreve Ibn ‘Arabi, possui igualmente um precedente profético. Em sua grande viagem noturna e sua ascensão, Maomé foi transportado – em um instante que valia 70.000 anos – de Meca a Jerusalém e daí através dos céus, à Presença do Deus Amado, e daí retornou.
Segundo uma tradição, Abu-Jahl, um dos maiores inimigos e perseguidores do Profeta, ouviu falar deste episódio e foi ver Maomé. O Profeta o recebeu.
-       Levante um pé do chão, disse Abu-Jahl.
O Profeta obedeceu.
-       Agora levante o outro.
-       Não posso, respondeu o Profeta.
-       E como pode você, se é incapaz de levantar os dois pés do chão, afirmar que foi até o sétimo céu na noite passada?
-       Ah, mas eu não disse que fui, respondeu o Profeta. Eu disse que fui transportado.
Conforme observa Abd al-Karim al-Jili em seu comentário, o dom desta ascensão, embora atribuído sem nenhuma preparação prévia aos profetas, deve ser merecido. Seu preço é a perfeição das artes interiores e exteriores do Islã, ou seja a submissão a Deus. Sem o conhecimento adquirido graças à Lei sagrada e à batalha interior com o ego, não pode haver nenhuma contemplação, conforme escreve Ibn ‘Arabi:
“A revelação corresponde à extensão e à forma do conhecimento. O conhecimento d’Ele, que vem d’Ele, que você adquire no momento de sua luta e de seu treinamento, você o realizará na contemplação. Mas o que você contemplará d’Ele terá a forma do conhecimento que você tiver adquirido até então. Você não avançará nada senão pela transferência do seu conhecimento (‘ilm) para a visão (ayn); e a forma é uma.”
A Viagem ao Mestre do Poder, no espaço de uma carta breve e extremamente condensada, toca em diversos temas que só em outras obras de Ibn ‘Arabi foram desenvolvidos completamente. Abd al-Karim al-Jili observa isto claramente em seu comentário, e esclarece outras declarações igualmente obscuras, por seu conhecimento e sua familiaridade profunda com a obra de Ibn ‘Arabi.. Os comentários que ele produziu sobre algumas passagens mais difíceis foram anexadas sob a forma de notas.
Chegaram a nós numerosas histórias em que aparece Ibn ‘Arabi., muitas das quais relatadas na introdução. Ao contrário, sabemos bem pouco sobre al-Jili. Este homem tão respeitado, que morreu entre 1408 e 1417, era também um sheikh, descendente do grande santo Abdul-Qadir Jilani. Ele foi o principal sistematizador e um dos maiores intérpretes da obra de Ibn ‘Arabi. Seu livro, al-Insan al-kamil (“O homem Universal”), que explica os ensinamentos de Ibn ‘Arabi quanto à estrutura da realidade e da perfeição humana , é considerado como uma obra prima da literatura sufi.
Já se disse que o objeto do sufismo é a produção de santos. No Islã, os santos são chamados awliya, os “amigos de Deus”.  O Corão descreve seu estado: “Os amigos de Allah – nenhum medo cai sobre eles, e eles não se afligem[1]”.  Os awliya são aqueles nos quais não subsiste mais nenhum traço de existência falsa. Deus os guarda em uma submissão perfeita, de tal modo que suas ações são Suas ações. Um hadith qudsi diz: “Nada me é mais agradável, dentre os meios que meu servidor tem para se aproximar de mim, do que o culto ao qual eu o submeti; e meu servidor não cessa de se aproximar de mim com devoções voluntárias contínuas até que eu o ame; e quando eu o amo eu me torno o ouvido com o qual ele escuta, o olho com o qual ele vê, a mão com a qual ele segura  e o pé com o qual ele caminha.” Graças aos santos, cuja vida testemunha este estado, a humanidade pode compreender a obra para a qual ela foi criada, e reconhecer que o verdadeiro ser humano é o representante de Deus. Por uma promessa divina, o mundo não se verá desprovido deles até o final dos tempos.
Gostaria de mencionar a assistência que me foi dada pelo professor Roy Parviz Mottahedeh da universidade de Princeton e pelo senhor Simon Bryquer de Nova Iorque pela revisão do manuscrito. Glória a Allah pela generosidade do al-Hajj Sheikh Muzafferuddin Ozak Effendi al-Jerrahi al-Halveti de Istambul, cujas palavras oferecem uma edificante introdução ao textp de Ibn ‘Arabi, e pelo apoio inestimável do al-Hajj Sheikh Tosun Bekir Bayrak Effendi al-Jerrahi al-Haveti de Nova Iorque. Quero dedicar esta tradução a meus pais.
Todos os erros contidos neste livro são meus; a Deus pertencem os elogios. Possa o leitor encontrar proveito na sua leitura.

Rabia Terri Harris
INTRODUÇÃO


Este tratado, que encerra mistérios divinos, é um guia edificante para aqueles que buscam a verdade e a visão. Aqueles que desejam ser íntimos de Deus, que deambulam pelos jardins à procura dos botões de rosa do saber, devem ler este livro e aprender a ser. Pelo fato de que o autor desta obra é Ibn 'Arabi, quem quer que folheie estas páginas conversará com ele.
A influência espiritual milagrosa deste santo, no oriente e no ocidente, é impressionante. Ele ensinou o tawhid, a Unidade, à humanidade, e continuará a esclarecê-la até o dia do Juízo Final. Seus ensinamentos sobre as maravilhas da Criação e seu conhecimento miraculoso – expressos em obras como al-Futuhat al-Makkiyya (“As revelações [ou as conquistas espirituais] de Meca”), Fuçuç al-Hikam (“As gemas da sabedoria dos Profetas”) e em mais de 500 obras – testemunham sua importância.
Ele possuía tanto inimigos como partidários fervorosos, pessoas de visão religiosa e estreita, que ficavam ofuscados como morcegos pela luz do santo. Alguns se tornavam inimigos de quem sequer conheciam, que não podiam conhecer nem compreender. Mesmo os que o denominaram aç-sheikh al-akbar (“o maior dos Mestres”) estavam entre os que não o compreendiam. Alguns dentre eles chegaram a detestá-lo. Mas o santo não se contentou em perdoar essas pessoas fracas; ele declarou que intercederia por elas no dia do Juízo, pois era preciso apiedar-se delas por aquilo que elas não não haviam podido compreender. Do mesmo modo como o ourives conhece o valor do ouro, o sábio  conhece o valor do saber e o homem perfeito e onisciente perdoa aos ignorantes sua indigência. Esta compaixão é uma prova suficiente da perfeição do santo.
Um dia, um dos adversários de Ibn 'Arabi caiu doente. O sheikh foi visitá-lo. Ele bateu à porta e pediu à esposa do doente que anunciasse que desejava apresentar-lhe seus votos de melhora. A mulher foi levar o recado e voltou para dizer-lhe que seu marido não desejava vê-lo. O sheikh não tinha nada a fazer naquela casa, informou ela. O lugar que lhe convinha era a igreja. O sheikh agradeceu à senhora e declarou que um homem bom como seu esposo certamente não o enviaria a um lugar ruim, e que assim ele se conformaria com sua sugestão. Então, após haver feito uma oração pela saúde e bem estar do doente, o sheikh dirigiu-se à igreja.
Lá chegando, ele descalçou suas sandálias, entrou com humilde cortesia, e dirigiu-se lentamente e sem ruído até um canto, onde sentou-se. O padre estava começando um sermão que Ibn 'Arabi escutou com a maior atenção. No decurso do sermão, o sheikh teve o sentimento de que o padre estava caluniando Jesus atribuindo-lhe a afirmação de ser Filho de Deus. O sheikh levantou-se e emitiu cortesmente uma objeção a esta declaração. “Ó venerável padre, começou ele, o santo Jesus não disse isto. Ao contrário, ele anunciou a boa nova da chegada do Profeta Ahmad (Maomé, a paz e a bênção estejam com ele).”
O padre negou que Jesus houvesse dito isto. O debate prolongou-se indefinidamente. Para terminar o sheikh, indicando a imagem de Jesus sobre a parede da igreja, disse ao padre que interrogasse o próprio Jesus. Ele responderia e decidiria de uma vez por todas. O padre protestou com veemência, argumentando que uma imagem não poderia responder. “Esta imagem pode falar, insistiu o sheikh, pois Deus, que fez Jesus falar quando ainda era um bebê nos braços da Virgem Maria, é também capaz de fazer falar a uma imagem.” A congregação que acompanhava o debate animou-se ouvindo isto. O padre foi constrangido a voltar-se para a imagem de Jesus e dirigir-se a ela: “Ó Filho de Deus! Mostre-nos o caminho da verdade. Diga-nos qual de nós dois está certo.” Pela vontade de Deus, a imagem falou e respondeu: “Eu não sou filho de Deus, eu sou seu mensageiro, e depois de mim virá o último dos profetas, o santo Ahmad; eu o anunciei, e repito esta boa nova agora.”
Diante deste milagre, toda a congregação aceitou o Islã e, com Ibn 'Arabi à frente, partiu para a mesquita. Quando eles passavam diante da casa do doente, ele foi visto, com os olhos esbugalhados de estupefação, espiando pela janela este curioso espetáculo. O santo deteve-se, bendisse e agradeceu ao homem que o havia insultado, dizendo-lhe que ele ainda merecia ser louvado pela salvação de todas aquelas pessoas.
Poucas pessoas entenderam o santo enquanto ele era vivo. Um dia ele subiu a montanha perto de Damasco, onde ele pregava, e disse: “Povo de Damasco, o deus que vocês adoram está aos meus pés.”
Ouvindo estas palavras, eles o aprisionaram e prepararam-se para matá-lo. De fato, segundo uma tradição, logo após este incidente ele foi martirizado. Segundo uma outra tradição, um sheikh desta época, Abul-Hasan, convenceu-o a suavizar suas palavras e salvou-o da morte com o seguinte diálogo:
-         Como pode você ter pretendido aprisionar alguém, disse ele a Ibn 'Arabi, graças a quem o mundo dos anjos chegou ao mundo mortal?
-         Minhas palavras foram pronunciadas, respondeu o sheikh, na embriaguez do estado que você descreveu.
E no entanto as palavras e as obras de Ibn 'Arabi provocaram uma reação tão violenta em seu tempo, que após sua morte seu túmulo foi destruído sem deixar traço.
Uma de suas declarações mais enigmáticas foi: “Quando o S penetrar em SH (as letras sin e shin do alfabeto árabe) o túmulo de Muhyiddin será descoberto.” Quando o nono sultão otomano, Selim II, conquistou Damasco em 1516, ele soube desta declaração pela boca de um erudito contemporâneo  chamado Zembilli Ali Efendi, que a interpretou como sendo uma profecia, que significava: “Quando Selim (culo nome começa pela letra sin) entrar na cidade de Sham (nome árabe de Damasco, que começa pela letra shin), ele descobrirá o túmulo de Ibn 'Arabi. Graças aos teólogos da cidade, o sultão Selim descobriu o local aonde o santo havia declarado: “o deus que vocês adoram está aos meus pés” e o mandou escavar. Primeiro ele descobriu um tesouro em peças de ouro, que revelava o que o santo havia querido dizer. E nas proximidades, ele encontrou o túmulo deste. Com o tesouro, o sultão fez construir um magnífico mausoléu, que é ao mesmo tempo uma mesquita, no mesmo lugar da tumba. Ele existe ainda hoje em Damasco, num lugar chamado Salihiyya, nas encostas do monte Qasiyun.
Muhibbudin al-Tabari*[2] atribui a seguinte história à sua mãe:
“Muhiyddin Ibn 'Arabi estava se preparando para pronunciar um sermão na Kaaba, sobre o significado da própria Kaaba. Em meu foro interior, eu no estava de acordo com seu ensinamento. Nesta mesma noite eu vi o sheikh em sonhos. Neste sonho, Fakhruddin al-Razi, um dos maiores teólogos da época, vinha em Peregrinação com grande pompa e aparato, e caminhava ao redor da Kaaba. Seus olhos pousaram sobre um homem humilde em trajes de peregrino que ali se achava tranqüilamente sentado. Ele disse para si mesmo: “Que insolência a deste homem, que não se levanta em presença de um grande homem como eu!” Um pouco mais tarde, ele foi pregar na Grande Mesquita de Meca. Toda a população da cidade santa estava reunida para ouvir as palavras do célebre erudito que era autor da mais importante interpretação do Corão. Fakhruddin al-Razi subiu lentamente até seu posto de orador e começou: “Ó grande congregação de muçulmanos...” e nada mais saiu de sua boca. Parecia que todo o conteúdo de seu espírito havia evaporado. Ele começou a transpirar de tão embaraçado. Ele desculpou-se, dizendo que não se sentia bem, e deixou a cátedra sem uma palavra. Quando ele chegou à sua casa, ele protestou e rezou, dizendo: “Ó Senhor, que fiz eu para que me punisse assim, colocando em tal embaraço?” Nesta mesma noite foi-lhe mostrado em sonhos o homem a quem ele havia censurado por não se colocar em pé na sua presença. Era Muhiyddin Ibn 'Arabi. Durante muitos dias ele o buscou. Quando havia perdido toda esperança de encontrá-lo, bateram à sua porta, e Ibn 'Arabi estava lá, em pé, diante dele. Ele pediu perdão, e seu saber lhe foi restituído.”
Em época recente produziu-se o caso de um outro erudito, Ibrahim Haleri, imã da Mesquita Fatih de Istambul, homem extremamente ortodoxo que se opunha aos ensinamentos religiosos de Ibn 'Arabi. Um dia, durante uma discussão apaixonada com pessoas que defendiam o sheikh, ele bateu o pé, dizendo: “Se eu estivesse lá, ter-lhe-ia aberto a cabeça assim!” Ao fazer isto, ele tropeçou num enorme buraco[3]. A ferida não se curou jamais, e acabou provocando sua morte.
Segundo uma tradição oral, um dia em Damasco Ibn 'Arabi viu um belo jovem judeu. Enquanto o observava, o jovem veio até ele e o chamou de “pai”. A partir deste dia o jovem não o deixou mais. Seu pai procurou-o, encontrou-o com o sheikh, e quis levá-lo consigo. O jovem não o reconheceu e afirmou que o sheikh era seu pai. Este, estupefato, disse ao sheikh que ele poderia apresentar centenas de testemunhas para provar que o rapaz era seu filho. O sheikh respondeu: “O rapaz diz que é meu filho, então sou seu pai.” O pai foi aos tribunais para reclamar seu filho, a apresentou sua centena de testemunhas. Quando o juiz perguntou ao sheikh se o menino era dele, o sheikh exigiu que esta pergunta fosse feita ao menino. Este declarou que o sheikh era seu pai. Então o sheikh perguntou às testemunhas se este menino judeu havia estudado o Corão. “Como uma criança judia poderia ter aprendido o Corão?”, responderam eles. O juiz pediu ao jovem que recitasse o Corão, o que ele fez com grande desenvoltura. Então o sheikh perguntou às testemunhas se o rapaz conhecia as tradições do Profeta Maomé. Eles responderam: “Como um menino judeu poderia conhecer tal ciência, que não corresponde ao seu modo de vida?” O juiz interrogou minuciosamente o menino a respeito das tradições proféticas. O jovem respondeu a cada uma das suas questões corretamente e de maneira completa. Os judeus que assistiram a este milagre aceitaram o Islã.
A história a seguir está incluída no final das “Revelações de Meca”: na atmosfera ortodoxa de uma escola de direito canônico, um professor ensinava a raiz da palavra que significa “herético” (zindiq) Alguns estudantes maliciosos se perguntavam se isto não viria da palavra zenuddin, que quer dizer “mulher religiosa” Um outro estudante disse: “Zindiq é alguém como Muhiyddin Ibn 'Arabi, não é, Mestre?” O professor respondeu brevemente: “Sim.”
Era o Ramadã, o mês do jejum, e o professor havia convidado os estudantes à sua casa para quebrarem juntos o jejum. Sentados, enquanto aguardavam o começo da refeição, os mesmos estudantes maliciosos brincaram com o Mestre: “Se você não puder nos revelar o nome do homem mais santo de nossa época , não quebraremos o jejum com sua comida.” O professor respondeu que o maior sheikh de todos os tempos era Muhiyddin Ibn 'Arabi. Os estudantes protestaram, dizendo que um pouco mais cedo, na escola, quando eles deram Ibn 'Arabi como exemplo de herético, ele aprovara. E agora ele afirmava que o sheikh era o maior santo de todos os da sua época! O professor respondeu, com um leve sorriso nos lábios: “Na escola estávamos entre pessoas da ortodoxia, eruditos, legistas; aqui, estamos entre pessoas do amor.”

Sheikh Muzzafer Ozak al-Jerrahi


ESBOÇO BIOGRÁFICO


O pai de Ibn 'Arabi, Ali Ibn Muhammad Ibn 'Arabi, partiu para Bagdá numa idade avançada. Seu desejo mais caro era o de deixar um filho depois de si quando ele morresse. Ele foi ver o grande sheikh Muhiyddin Abdul Qadir Jilani e pediu-lhe que rezasse a Deus para que lhe concedesse o dom de um filho. O sheikh retirou-se e entrou em profunda contemplação. Quando voltou, ele informou  Ali Ibn Muhammad: “Eu contemplei o mundo dos segredos e me foi revelado que você não terá nenhum descendente, portanto não se esgote tentando.”
Embora desencorajado, o ancião não queria desistir. Ele suplicou e insistiu: “Ó santo, Deus certamente escutará sua preces. Eu lhe peço que intervenha por mim nesta quastão.”
O sheikh  Abdul Qadir Jilani  retirou-se mais uma vez e caiu em profunda contemplação. Depois de algum tempo ele voltou e disse que, embora  Ali Ibn Muhammad não estivesse destinado a ter descendente, ele próprio estava destinado a ter um filho. O ancião gostaria de ter o futuro filho do santo?
Seu visitante aceitou com alegria. Os dois homens colocaram-se de costas um para o outro e entrelaçaram os braços.  Ali Ibn Muhammad contou mais tarde:
“Quando me vi costas contra costas com o santo  Abdul Qadir Jilani, senti uma coisa quente descer pelo meu pescoço até os rins. Algum tempo depois chegou-me um filho, a quem eu chamei de Muhiyddin, conforme  Abdul Qadir Jilani me havia ordenado.”
O nome completo de Muhiyddin Ibn ‘Arabi era Abu-Bakr Muhammad Ibn ‘Ali Ibn Muhhamad al-Hatimi al-Ta’i al-Andalusi. Ele recebeu diversos títulos: aç-sheikh al-akbar, o maior dos Mestres; khatim al-awliya’al-Muhaqmmadi, o Selo dos Santos de Maomé; aç-sheikh al-a’zam, o mestre exaltado; qutb al-‘arifin, o Eixo do verdadeiro saber; umam ul-munahiyuddin, o chefe religioso dos convertidos; rahbar ul-‘alam, o Guia do mundo; e outros ainda. Em seus ensinamentos, Ibn Jawziya comentou: “Ibn ‘Arabi era versado em alquimia, e conhecia os segredos do maior dos Nomes de Deus, que se oculta no Corão.” O sheikh Sa’duddin Hamawi* disse: “Muhiyddin é um oceano de saber que não tem margens.”
Muhiyddin Ibn ‘Arabi nasceu na cidade de Múrcia na então província muçulmana de Andaluzia, na Espanha, numa segunda-feira, dia 17 do mês santo do Ramadan do ano 560 da Hégira (28 de julho de 1165). Seu pai era um sufi muito renomado e respeitado. Na sua primeira infância, ele foi reconhecido e educado por duas santas, Yasmin de Marchena e Fátima de Córdoba. Com a idade de oito anos, Ibn ‘Arabi e sua família instalaram-se em Sevilha, onde ele estudou com Abu-Muhammad e Ibn Bashkuwal, dois dos maiores teólogos e eruditos em matéria de tradições proféticas da época. Quando Ibn ‘Arabi tinha dezenove anos, um amigo de seu pai, o célebre filósofo místico Ibn Rushd (que conhecemos no Ocidente como Averroes) expressou o desejo de encontrá-lo. Emocionado pelo intenso poder que sentiu ao trocar não mais do que poucas palavras com o jovem, o erudito falou a seu pai em termos que Ibn ‘Arabi recorda da seguinte maneira:
“Ele agradeceu a Deus por ter podido encontrar alguém que havia entrado em retiro espiritual em estado de ignorância e saído dele como jamais se vira antes. Ele disse: “Trata-se de um caso cuja possibilidade eu afirmei, sem nunca ter encontrado ninguém que o tivesse experimentado. Glória seja dada a Deus por eu ter vivido numa época em que existe um mestre com tamanha experiência, um dos que abrem os ferrolhos de Suas portas. Glória seja dada a Deus que me concedeu o dom de ver um deles em pessoa.”
Como foi o rumor daquilo que “Deus havia revelado ao jovem em seu retiro espiritual” que atraiu a atenção de Ibn Rushd, ficamos sabendo que Ibn ‘Arabi teve sua primeira experiência sobre o objeto deste livro, a ascensão mística na khalwa, quando não tinha sequer vinte anos. Entretanto, ele não escreveu a Viagem ao Mestre do Poder senão mais de vinte anos depois.
Em 1201, com a idade de trinta e seis anos, Ibn ‘Arabi cumpriu sua Peregrinação a Meca. Nestya época ele orava a Deus para que lhe revelasse tudo o que estava reservado aos mundos material e espiritual. Deus, aceitando este pedido, abriu-lhe o mundo dos seus segredos. A este respeito, Ibn ‘Arabi declararia mais tarde: “Eu sei o nome e a genealogia de cada qutb que virá até o dia do Juízo. Mas como opor-se ao que está escrito carrega consigo a destruição certa, por compaixão com as futuras gerações eu decidi dissimular este conhecimento.”
Após sua peregrinação, Ibn ‘Arabi viajou ao Egito, Iraque, Damasco, deteve-se em Konya, na Turquia, aonde ele encontrou Sadruddin Qunyawi, um jovem erudito sufi, cuja mãe desposou. O jovem Sadruddin tornou-se um de seus discípulos mais próximos, a quem ele enriqueceu com um grande conhecimento material e espiritual. A Viagem ao Mestre do Poder, publicada em Konya pelo autor três anos após sua peregrinação, provavelmente está endereçada a este sábio homem.
No ano de 1223, Ibn ‘Arabi retornou a Damasco, aonde encontrou, visível e invisivelmente, numerosos outros mestres sufis. Lá ele passou o resto de sua vida; acredita-se que tenha falecido em 1240.
Ibn ‘Arabi menciona três encontros com Khidr, o guia secreto dos sufis. Ele relata seu primeiro encontro da seguinte maneira:
“Eu estava no início de minha educação. Meu sheikh, Abul-Hassan, distribuía seu conhecimento a qualquer um. Durante todo um dia eu não parei de expressar meu desacordo com isto. Quando odeixei e voltei para casa, encontrei um ser de grande beleza que me fez um sinal e disse: “O que seu mestre falou é certo – aceite-o.” Eu corri ao meu sheikh e contei-lhe o que havia acontecido. Ele me disse que havia rezado a fim de que Khidr fosse ao meu encontro e confirmasse seu ensinamento. Ouvindo isto, eu decidi de uma vez por todas jamais entrar novamente em desacordo com ele.”
De seu segundo encontro, ele diz:
“Eu me encontrava no porto da Tunísia a bordo de um navio. Uma noite não pude conciliar o sono e subi à ponte para dar um passeio. Eu contemplava uma magnífica lua cheia, quando de repente vi um grande homem de barbas brancas vir em minha direção, caminhando sobre a água ao lado do barco. Fiquei estupefato. Ele chegou até onde eu estava e colocou seu pé direito sobre seu pé esquerdo, à guisa de saudação. Vi que seus pés não estavam molhados. Ele saudou-me, disse algumas palavras e seguiu em direção à cidade de Benares, que se achava sobre uma colina próxima. Para meu grande espanto ele percorria quatro quilômetros a cada passada. De longe eu o escutava a recitar o dhikr com sua bela voz. No dia seguinte fui à cidade, onde encontrei um velho sheikh que me perguntou como havia sido meu serão com Khidr, e sobre quê havíamos conversado.”
O terceiro encontro de Ibn ‘Arabi com Khidr, segundo uma tradição, teve lugar numa pequena mesquita espanhola, às margens do Atlântico, onde Ibn ‘Arabi fazia suas orações do meio-dia. Uma pessoa que o acompanhava negava a existência de milagres. Havia mais alguns viajantes na mesquita. Subitamente ele viu a mesma pessoa que havia encontrado antes na Tunísia. O grande homem de barbas brancas pegou seu tapete de orações de palha no nicho, elevou-se a quatro metros de altura no ar, e fez suas preces nesta posição. Mais tarde ele voltou para dizer a Ibn ‘Arabi que havia feito isto como demonstração em vista do céptico que havia contestado a existência de milagres.
Quando Ibn ‘Arabi atingiu uma ponto acima do nível do sheikh Abul-Hassam al-Uryani, ele escreveu uma carta ao seu professor, dizendo: “Volte-se para mim de todo seu coração e pergunte-me o que quiser, e eu me voltarei para você de todo meu coração e lhe responderei.”
Ao cabo de certo tempo, ele recebeu uma carta de seu professor, que dizia:
“Eu sonhei que todos os santos estavam reunidos em círculo com dois homens no centro. Um deles era Abul-Hassan Ibn Siban. Eu não podia ver o rosto do segundo, Depois ouvi uma voz que dizia que o outro homem no centro era andaluz, e que um deles seria o qutb de nosso tempo. Um verso do Corão foi cantado, os dois homens prosternaram-se, e a voz disse: “Aquele que primeiro levantar a cabeça será o qutb.” O andaluz levantou a cabeça primeiro. Eu fiz à voz uma pergunta sem letras nem palavras. A voz respondeu soprando em minha direção. Este sopro continha a resposta a todas as minhas questões. Todos os santos reunidos em círculo, e inclusive eu, entramos em êxtase sob o efeito deste sopro. Eu então vi o rosto do andaluz no centro do círculo. Era você, ó Muhiyddin Ibn ‘Arabi.”

Tosun Bayrak al-Jerrahi

VIAGEM AO MESTRE DO PODER


EM NOME DE DEUS,
O CLEMENTE E MISERICORDIOSO





Glória a Deus, Dispensador e Criador da Razão, Ordenador e Instituidor da Transmissão. A Ele pertencem a graça e o poder; dele emanam o poder e a força. Não existe outro Deus senão Ele, Senhor do Trono gigantesco. E que a paz e a bênção de Deus estejam com aquele sobre quem estão estabelecidos os sinais da conduta, aquele que Ele enviou com a luz com qual Ele guia – ou perde – a quem Ele deseja; e que eles estejam com sua nobre família e seus companheiros puros, até o dia do Juízo.
Responderei à sua pergunta, ó nobre amigo e companheiro íntimo, a respeito da Viagem ao Mestre do poder (seja Ele exaltado), da chegada à Sua presença e do retorno, graças a Ele, para a Sua criação, sem separação. É claro que não existe outra coisa na existência senão Deus Altíssimo, seus atributos e suas ações. Tudo é Ele, d’Ele e para Ele. Se ele pudesse ser oculto e separado do mundo pelo espaço de um piscar de olhos, o mundo desapareceria no mesmo instante; ele só permanece porque Ele o preserva e guarda. Entretanto, Sua aparição em Sua luz é tão intensa que ele subjuga nossas percepções, de tal modo que chamamos à Sua manifestação um véu.
Descreverei em primeiro lugar (que Allah lhe conceda o sucesso) a natureza da viagem que leva a Ele, depois como devemos proceder quando chegarmos e nos apresentarmos diante d’Ele, e o que Ele dirá quando tomarmos lugar no tapete de Sua visão. Depois a natureza do retorno à presença (hadra) de Sua ações: com Ele e para Ele. E descreverei a aniquilação n’Ele, que é um estado que precede ao estado de retorno[4].
Saiba, ó nobre irmão, que embora os caminhos sejam numerosos, apenas um é o caminho da verdade. Aqueles que buscam este caminho diferem entre si. Embora não haja senão um caminho que conduza à verdade, o aspecto que ele apresenta varia segundo as diferentes condições daqueles que o procuram: conforme o equilíbrio ou o desequilíbrio de sua constituição, a persistência ou a ausência de motivação, a força ou a fraqueza de sua natureza espiritual, a retidão ou o desvio de sua aspiração, a salubridade ou a indisposição de sua relação quanto ao objetivo. Alguns possuem todas as características favoráveis, enquanto outros só possuem algumas. Assim vemos que a constituição, por exemplo, pode ser um entrave para um, ainda que sua luta espiritual seja nobre e boa. E este princípio aplica-se a todos os casos.
Antes de mais nada devo explicar o que são as matrizes dos Reinos, e o que implicam aqui estes reinos[5]. Reinos (mawatin) é o termo que designa os planos do momento durante o qual as coisas vêm à existência e onde a experiência se produz verdadeiramente. É indispensável que você saiba o que a verdade espera de você em cada Reino, a fim de que você chegue a ele sem hesitação nem resistência.
Os Reinos, embora numerosos, derivam todos de seis Reinos principais[6]. O primeiro Reino é a existência antes da existência, quando nos foi colocada a questão: “Não sou Eu teu Senhor?” Nossa existência física nos fez deixar este Reino[7]. O segundo é o mundo em que estamos presentemente[8]. O terceiro é o Intervalo que atravessamos depois da pequena e da grande morte[9]. O quarto Reino é a Ressurreição sobre a terra que desperta e o retorno à condição original[10]. O quinto Reino é o Jardim e o Fogo[11]. O sexto Reino é a duna de areia ao redor do Jardim[12]. E em cada um desses Reinos existem lugares que são Reinos no interior de Reinos, e apreendê-los todos ultrapassa o poder humano[13].
Na nossa situação, não temos necessidade mais do que da explicação do Reino deste mundo, que é o lugar da responsabilidade, da prova e do trabalho.
Saiba que depois que Deus criou os seres humanos e os fez surgir do nada, eles não cessaram de viajar. Eles não têm nenhum direito de repousar de sua viagem a não ser no Jardim do Fogo, e cada Jardim e cada Fogo estão na medida de cada pessoa. Todo ser racional deve saber que a viagem está  fundamentada no trabalho e nas dificuldades da vida, sobre a aflição e as provas, e a aceitação de perigos e medos aterrorizantes. É impossível ao viajante achar um conforto em sua viagem, uma segurança ou uma alegria intactas. Pois as águas têm sabores diferentes e os tempos variam, e o caráter das pessoas em cada lugar que nos detemos difere do caráter daquelas da etapa seguinte. O viajante deve aprender em cada situação aquilo que é útil. Ele é o companheiro de todos pelo espaço de uma noite ou de uma hora, depois ele se vai. Como alguém nesta situação poderia esperar facilidades?
Não frisamos isto como uma resposta àqueles que se ligam ao conforto neste mundo, que lutam para adquiri-lo e consagram suas forças em ajuntar as pedrinhas deste mundo: não invejamos aqueles que se engajam nesta atividade desprezível, nem lhes damos nossa atenção. Mas nós o oferecemos como conselho a qualquer um que deseje atingir a felicidade da contemplação e conhecê-la em outra parte que não no Reino que lhe é próprio, e alcançar o estado de fana', a aniquilação, para conhecê-la em outro lugar que não o seu, e a todo aquele que aspira fundir-se no Real por meio da obliteração dos mundos[14].
Entre nós, os mestres desprezam esta [ambição], pois isto faz perder tempo e faltar ao seu nível [verdadeiro], e associa o Reino ao que não lhe é pertinente[15]. Pois o mundo é a prisão do rei, não sua morada; e quem quer que procure o rei em sua prisão, sem tê-la deixado inteiramente, viola a lei da justa conduta (adab), e algo de essencial lhe escapa. Pois o tempo de fana’ na verdade é o tempo da renúncia a uma estação mais alta do que aquela que é alcançada.
A revelação corresponde à extensão e à forma do conhecimento. Quanto ao conhecimento d’Ele, que você obtém graças a Ele no momento da sua luta e do seu treinamento, você terá consciência deste ulteriormente na contemplação. Mas o que você contemplará d’Ele terá a forma dom conhecimento que você tiver adquirido até então. Você não avançará nada a não ser pela transferência do saber (‘ilm) à visão (‘ayn); e a forma é uma.
[Na contemplação] você obtém aquilo que você deveria ter deixado em seu Reino próprio, e que é a Morada do Outro Mundo na qual não existe o trabalho. Será melhor para você que, no momento de sua contemplação, você se veja engajado exteriormente a trabalhar e, ao mesmo tempo, interiormente recebendo o conhecimento de Deus. Você acrescentará então a virtude e a beleza de sua natureza espiritual, que busca seu Senhor no conhecimento recebido dele pelas obras e pela piedade, bem como as das sua natureza pessoal, que busca o paraíso. Pois a natureza humana sutil é ressuscitada sob a forma do conhecimento, e os corpos são ressuscitados sob a forma de suas obras, seja em beleza, seja em pesandez.
Será assim até seu último suspiro, quando você será separado do mundo da obrigação e do Reino dos caminhos ascendentes e do desenvolvimento progressivo. E só neste momento você recolherá o fruto que você semeou.
Se você entendeu isto, então saiba (que Deus nos conceda o sucesso, a nós dois) que se você deseja entrar na presença da Verdade e receber d’Ele sem intermediário, e se você deseja ser íntimo d’Ele, isto não acontecerá enquanto seu coração reconhecer alguma supremacia que não a d’Ele. Pois você pertence a quem exerce autoridade sobre você; quanto a isto, não há dúvida. E o isolamento se tornará inevitável para você, e você preferirá o retiro (khalwa)[16] à sociedade humana, pois a extensão da distância que o separa da criação é a extensão da distância que o aproxima de Deus – exterior e interiormente.
Seu primeiro dever é o de buscar o conhecimento que regula suas abluções e suas orações, o jejum e a reverência. Você não precisa ir mais longe. Este é o primeiro portal da viagem; depois vem o trabalho; depois a vigilância moral; depois o ascetismo; depois a confiança. E no primeiro estado da confiança, você encontrará quatro milagres. São os sinais e as provas de que você atingiu o primeiro degrau da confiança. Estes sinais consistem em atravessar a terra, caminhar sobre as águas, atravessar os ares e ser alimentado pelo universo. E é a realidade sobre a qual abre-se esta porta. Depois disto, as estações, os estados, os milagres e as revelações chegarão a você continuamente até sua morte.
E pelo amor de Deus, não tente o retiro antes de saber em que etapa você se encontra, e de conhecer sua força no que toca ao poder da imaginação. Pois se sua imaginação o governa, nenhuma via o levará ao retiro, a menos que você se deixe guiar pela mão do sheikh que sabe pesar cada coisa e permanecer acordado. Se você domina sua imaginação, então pode tentar o retiro sem medo.
A disciplina é necessária antes de qualquer retiro. A disciplina espiritual (riyada) supõe o treinamento do caráter, o abandono da irresponsabilidade e a permanência na humilhação. Pois se uma pessoa começa antes de haver adquirido a disciplina, ela não se tornará nunca um homem, salvo raras exceções.
Quando você renunciar ao mundo, guarde-se daqueles que vêm lhe ver e que se aproximam, pois quem se distancia do mundo não lhe abre mais a porta. Claro, o objeto do isolamento é o de afastar-se das pessoas e de sua sociedade, e o objeto deste distanciamento não é o de abandonar sua companhia física, mas antes o de não permitir que nem seu coração nem seu ouvido sejam receptáculos das palavras vãs que elas trazem. Seu coração não se libertará das divagações do mundo, senão afastando-se dele. E quem quer que se “retire” em sua casa e abra sua porta aos que o visitam, buscando e estimando o poder, será expulso da porta de Deus Altíssimo; e para alguém como este a destruição está mais próxima do que o laço de sua sandália. Pelo amor de Deus, pelo amor de Deus, proteja-se da falsidade do ego nesta etapa, pois a maior parte dos que aí se encontram é destruída por causa dele. E feche sua porta ao mundo; e assim a porta de sua moradia ficará apenas entre você e os seus.
E consagre-se ao dhikr, à lembrança de Deus, qualquer que seja a forma de dhikr que você escolher. A mais alta é o Nome supremo; é quando você diz “Allah, Allah”, e nada além de “Allah”.
Proteja-se de uma imaginação corrompida que o distrai de sua concentração. Tenha cuidado com sua alimentação. É melhor que sua alimentação seja nutritiva mas desprovida de gordura animal[17]. Desconfie da saciedade e de uma fome excessivas. Preserve o equilíbrio de sua constituição, pois uma secura excessiva leva a uma imaginação corrompida e a longas divagações.
Se ocorrer uma influência que altere a constituição[18] – e que seja desejável – distinga entre as influências angélica e demoníaca observando o que permanece em você quando elas cessam. Vale dizer, se a influência é angélica, ela é seguida de bem estar e felicidade. Você não terá consciência de nenhuma dor, não sofrerá nenhuma alteração de forma[19] e a influência deixará detrás de si o conhecimento. Mas se ela é demoníaca, ela terá como efeito a desorientação física, a dor e a desordem, a confusão e a baixeza; e ela deixa atrás de si o desvio. Proteja-se, e não cesse de repetir o dhikr em seu coração, até que Deus expulse dele a influência demoníaca[20]. É isto que requer a situação.
Procure formular bem sua intenção. Ao iniciar o retiro, você concordou com que nada do que existe é comparável a Deus. E a cada forma que aparecer em seu retiro e lhe disser: “Eu sou Deus”, responda: “Deus é maior do que isto! Você é graças a Deus.” Lembre-se da forma daquilo que você viu. Depois desvie sua atenção dela e consagre-se sem parar ao dhikr.
Isto é um compromisso. O segundo é que você não buscará d'Ele, quando de seu retiro, nada além d'Ele, e que você não colocará seu himma, a força de intenção de seu coração, em nada senão n'Ele. E se tudo o que contém o universo lhe for colocado aos pés, receba-o gentilmente – mas não pare por aí. Persista em sua busca, pois Ele o está colocando à prova. Se você ficar com o que lhe é oferecido, Ele lhe escapará. Mas se você chegar a ele, nada lhe escapará.
Se você sabe disto, saiba que Deus o coloca à prova por meio daquilo que ele coloca diante de você. Ele lhe revela primeiro seu poder sobre a ordem material, como veremos mais adiante. É o desvendamento do mundo sensorial que estava escondido, a fim de que as paredes e as sombras não escondam de você o que as pessoas fazem nas suas casas. No entanto, se Deus lhe informar um segredo da vida de alguém, você tem a obrigação de preservá-lo e de impedir sua divulgação. Pois se você tivesse que divulgar e dizer: “Este é um fornicador, aquele um bêbado, o outro um assassino, aquele um ladrão”, você seria o maior dos pecadores e Satã estaria verdadeiramente em você. Aja portanto conforme o Nome divino aç-Sattar, Aquele que coloca o véu. E se esta pessoa vier a encontrá-lo, advirta-a em segredo sobre sua conduta e aconselhe-a a humilhar-se diante de Deus e não transgrida os limites divinos. Desvie-se o mais possível deste tipo de percepção de consagre-se ao dhikr.
Explicaremos agora [como vemos] a diferença entre a percepção sensorial e a percepção imaginária sutil. Isto quer dizer que, quando você vê a forma de uma pessoa ou uma ação criada, se você fechar os olhos e a percepção continuar em você, ela provém da sua imaginação; mas se ela lhe for ocultada, é porque a consciência que você tem dela está ligada ao lugar em que você a viu. Se se tratar de uma percepção do segundo tipo, ao se desviar dela e consagrar-se ao dhikr, você passará do nível sensorial ao nível imaginário.
É aí que descerão sobre você idéias abstratas inteligíveis sob formas sensoriais. Esta descida é difícil, porque ninguém sabe o que essas formas significam a não ser um profeta, ou alguém a quem Deus escolheu de entre os justos. Portanto, não se preocupe com isso. Se lhe oferecerem bebida, prefira a água. Se não houver água no que lhe for oferecido, escolha o leite. E se os dois lhe forem apresentados, misture a água e o leite. Isto também se aplica ao mel: beba-o. Desconfie do vinho a menos que ele tenha sido misturado com água da chuva. Evite bebe-lo de outra forma, mesmo que ele tenha sido misturado com água de riachos ou nascentes[21]. Consagre-se ao dhikr até que o mundo da imaginação seja sobrepujado e que o mundo dos significados abstratos livres de toda matéria lhe seja revelado.
Consagre-se ao dhikr, à rememoração, até que Aquele a quem você lembra se manifeste a você e que o fato de você chamá-lo à sua memória desapareça diante da lembrança verdadeira. Entretanto, este desfalecimento [trazido pelo dhikr] é a essência não só da contemplação, mas também do sono. O modo de distingui-los é que a contemplação deixa marcas e é seguida pela felicidade  enquanto que o sono não deixa rastros e é seguido, ao acordar, pelo remorso e a imploração.
Então Deus Todo-Poderoso o colocará à prova colocando à sua frente os graus do reino. Isto lhe será indicado como uma obrigação.
Primeiro você descobrirá os segredos do mundo mineral. Você conhecerá os segredos de cada pedra e sua propriedades específicas, nefastas e benéficas. Se você se encantar com este mundo, ele o prenderá com seus enganos, e você ficará exilado longe de Deus. Ele o despojará de tudo ao que você se agarra, e você estará perdido. Mas se você se consagrar unicamente ao dhikr, e se refugiar junto Àquele de quem você se lembra, então ele o protegerá e lhe revelará o mundo vegetal. Cada ramo de erva lhe descreverá suas propriedades nefastas e benéficas. Que seu julgamento permaneça imutável. A partir do momento em que o mundo mineral lhe foi desvendado, seu alimento aumentou o calor e a umidade, e a partir do momento em  que o mundo vegetal lhe foi desvendado, que ele seja o fator de equilíbrio entre o calor e a umidade.
E se você não se detiver aí, Ele lhe revelará o mundo animal. Os animais o saudarão e lhe farão conhecer suas propriedades nefastas e benéficas. Cada espécie o fará conhecer sua proclamação de majestade e de louvor. Preste atenção nisto: se você tomar consciência de que todos os mundos estão engajados neste mesmo dhikr ao qual você de dedica e se consagra, sua percepção é imaginária, e não real. É seu próprio estado que é evocado em tudo o que existe. Mas se você descobrir neles a variedade de seu próprio dhikr, trata-se de uma percepção verdadeira. Esta ascensão é a ascensão da dissolução da ordem da natureza, e o estado de contração (qabd) o acompanhará ao longo desses mundos[22].
Depois disso, Ele revelará a infusão do mundo da força vital nas vidas, e que o que influencia este processo varia segundo a predisposição de cada um, e como as expressões [da fé] se acham incluídas nesta infusão[23].
E se você não se detiver aí, Ele lhe revelará os “sinais da superfície”[24]. Você será advertido por sinais terrificantes e conhecerá muitos tipos de estados. Você verá distintamente o mecanismo das transformações: como o denso se torna sutil, como o sutil se torna denso. E se você não se detiver aí, a luz das fagulhas e das centelhas se tornará visível, e você deverá cobrir-se para se proteger delas. Não tenha medo, e persevere no dhikr, pois se você perseverar no dhikr, o desastre não o alcançará.
Se você não se detiver aí, Ele lhe mostrará a luz das estrelas móveis[25] e a forma da ordem universal[26]. E você verá diretamente a adab, a conduta conveniente, para ingressar na Presença divina e a adab para deixar Sua Presença a fim de retornar à criação; e a contemplação perpétua pelos diferentes aspectos dos Nomes divinos (al-asma’ al-ilahiyya), o “Manifesto” e o “Oculto”; e a perfeição da qual poucos tomam consciência. Porque tudo o que sai do aspecto do Manifesto entra no aspecto do Oculto. A essência é uma. Nada se perde.
E depois disso, você saberá o que quer dizer receber o conhecimento divino de Deus Altíssimo, e como nos devemos preparar para recebe-lo. Saiba então a conduta que convém para receber e para dar, as da contração e da expansão; e como proteger o coração, que é o ponto de chegada dos diferentes estados, das chamas da destruição; e saiba que todos os caminhos são círculos. Não existem linhas retas. Mas esta carta é demasiado curta para abordar estes assuntos.
E se você não se detiver aí, Ele lhe revelará os graus das ciências especulativas, das idéias integrais, e a forma das questões complexas que mergulham a inteligência na confusão. Ele revelará a diferença entre suposição e saber, o nascimento das possibilidades entre o mundo dos espíritos e o mundo físico[27], a causa desta gênese, a infusão do Mistério divino no domínio de seu Cuidado cheio de amor[28], a razão do abandono do mundo pelo esforço ou de outro modo – e outras questões do gênero que requereriam longas explicações.
E se você ainda não se deteve, Ele lhe revelará o mundo da formação, do ornamento e da beleza, sobre quê deve o intelecto meditar entre as formas santas, o sopro vital da beleza das formas e da harmonia, e o transbordamento da ternura, da doçura e da misericórdia com tudo o que as caracterizam. Deste nível vem a inspiração dos poetas, enquanto que do precedente vem a inspiração dos pregadores.
E se você não se detiver, Ele lhe revelará os graus do gutb. Tudo o que você viu antes veio do mundo da mão esquerda, e não do mundo da mão direita. E é o lugar do coração. Se Ele tornar este mundo manifesto aos seus olhos, você conhecerá o reflexo, o infinito dos infinitos e a eternidade das eternidades, a ordem das existências e o modo como o ser se acha aí infundido. Você receberá sabedorias divinas, o poder de preservá-las e a integridade para transmiti-las aos sábios, e lhe será dado o poder dos símbolos e uma visão do todo, e autoridade sobre o véu e o descerramento.
E se você não se detiver aí, Ele lhe revelará o mundo da febre, da raiva e do zelo quanto à verdade e ao erro; o fundamento das aparências diferentes que se produzem no mundo, a variação das formas, a discórdia e a angústia. E se você não se detiver aí, Ele lhe revelará o mundo do ciúme e o descerramento da verdade diante da mais perfeita das faces; as opiniões justificadas, as escolas verdadeiras e as tradições reveladas; e você verá com todo conhecimento de causa que Deus Altíssimo as dotou, dentre todos os santos conhecimentos, com a beleza mais sublime. E não há nada que pertença a uma etapa que Ele lhe revelar, que não chegue a você com reverência e exaltação; seu grau na Presença divina aparecerá claramente a você, e [cada um] o amará em sua essência[29].
E se você não se detiver, Ele lhe revelará o mundo da dignidade, da serenidade e da firmeza; a astúcia (makr), os enigmas e os segredos, e outras coisas do gênero. E se você não se detiver aí, Ele lhe revelará o mundo da confusão, da impotência, da incapacidade e dos tesouros do trabalho; e este é o céu supremo[30].
E se você não se detiver lá, Ele lhe revelará os Jardins: os graus dos caminhos que chegam até eles, a maneira como se articulam, e como eles se comparam uns aos outros pelos prazeres que oferecem.. E você estará parado sobre o caminho reto e será transportado até a borda do Inferno, e do alto você verá os caminhos que descem para ali, a maneira como eles se articulam, e como eles se comparam uns aos outros por sua aspereza. Ele lhe revelará as obras que correspondem a esses dois lugares. E se você não se detiver, Ele lhe revelará um dos santuários onde os espíritos são absorvidos na Visão divina. Nela eles são embriagados e desviados. O poder do êxtase os conquistou, e seu estado é um sinal para você.
E se você não se detiver neste sinal, uma luz se revelará, na qual você não verá nada senão seu próprio reflexo. Nesta luz você será tomado de um grande enlevo e de transportes de amor, e nela você encontrará uma felicidade divina que até então lhe era desconhecida. Tudo o que você viu antes lhe parecerá pequeno, e você balançará como uma lâmpada[31].
E se você não se detiver aí, Ele lhe revelará a forma original dos filhos de Adão. E os véus se erguerão. E os véus descerão[32]. E eles lançarão um louvor particular que você reconhecerá ao ouvir[33], e você não sucumbirá. Você verá sua forma no meio deles, e é ela que lhe permitirá identificar o momento em que você se encontra.
E se você não se detiver aí, Ele lhe revelará o Trono de misericórdia (sarir al-rahmaniyya). Tudo se encontra aí. Se você observar, você encontrará aí a totalidade de tudo o que você conhece, e mais ainda: não restará nenhum mundo, nenhuma essência, que você não reconheça. Procure-se: se for conveniente, você encontrará seu destino, o lugar onde você se encontra e o limite de seu grau, o Nome divino de seu Senhor e onde residem sua parte de gnose e de santidade – a forma da sua unicidade.
E se você não se detiver, Ele lhe revelará a Pena, o primeiro Intelecto, o mestre e professor de todas as coisas. Você examinará seu traço e conhecerá a mensagem que ele traz e testemunhará sua inversão, a recepção  e a particularização dos vastos [conhecimentos] que fluem do anjo al-Nuni[34].
E se você não se detiver, Ele revelará aquele que faz a Pena se mover, a mão direita da verdade[35].
E se você não se detiver, você será desenraizado[36], depois retirado[37], depois apagado, depois esmagado[38], depois abolido.
Quando os efeitos do desenraizamento e do que segue forem terminados, você será afirmado[39], depois tornado presente, depois feito capaz de permanecer, depois reunido, depois assinalado. E os trajes de honra que [seu estado] requer lhe serão conferidos, e eles são numerosos.
Depois você retomará seu caminho e examinará tudo o quer você viu sob formas diferentes até seu retorno ao mundo dos seus sentidos terrestres e limitados. Ou [você se agarrará solidamente] lá onde você esteve ausente; e o destino daquele que busca depende da rota que ele seguiu.
Dentre [os que terminam esta viagem] estão aqueles a quem foi confiada Sua Palavra, e aqueles a quem Sua Palavra não foi confiada. E todos aqueles a quem uma Palavra foi confiada, seja Ela qual for, se tornam herdeiros do profeta desta linguagem[40]. É isto que querem dizer os que seguem esta via quando dizem que alguém é Moisés ou Abrahão ou Enoch. Dentre eles encontram-se alguns a quem foram confiadas duas, três ou quatro Palavras, ou mesmo mais. Aquele que foi tornado perfeito vê ser-lhe confiada a totalidade das Palavras, e ele procede especificamente de Maomé.
Agora que ele chegou ao seu destino, enquanto ele não empreender seu retorno, o buscador será chamado “aquele que se detém” (al-waqif). Dentre aqueles que se detém estão os que são absorvidos por este estado, como Abu-‘Iqal e outros. Deus os guarda em Si e nele eles serão ressuscitados[41]. A classificação waqif inclui também aqueles que são reenviados (mardudun). Estes são mais perfeitos do que os que são absorvidos (mustahlikun), embora estejam todos na mesma posição. Se [um buscador] se vê absorvido numa posição superior àquela da qual retorna [um outro buscador], então não se diz que aquele que retorna é superior. A condição que permite estabelecer uma comparação é a semelhança mútua entre eles. Se esta condição existe, aquele que retorna vive, depois de ter descido da posição daquele quem foi absorvido, de tal sorte que ele atinge o grau do outro, e o ultrapassa ao se aproximar, ao descer e também no desenvolvimento e na recepção do saber.
Quanto àqueles que retornam, distinguimos entre eles dois tipos de homens. Existe aquele que retorna só; ele é o que desce, de que falamos. Este tipo de homem é o gnóstico, ‘arif, entre nós. Ele retorna para o aperfeiçoamento de si por um outro caminho do que o que havia tomado. Dentre eles está também aquele que é reenviado à Criação com a linguagem do chefe e do guia. Ele herdou seu saber, ele é o ‘alim.
Os que convocam e os herdeiros não estão todos na mesma posição, mas a posição de sua convocação os reúne, e alguns ultrapassam os outros em grau. Assim, disse o Deus Altíssimo: “Nós fizemos de tal modo que alguns destes mensageiros excedem os outros” (Corão, II, 253). Dentre os herdeiros acham-se convocadores que exprimem as Palavras de Moisés, de Jesus, de Sem, de Noé, de Isaac, de Ismael, de Adão, de Enoch, de Abrahão, de José e de Aarão, e de outros ainda; são os sufis. Eles são os adeptos dos estados, comparados com os mestres que contamos entre nós[42]. Dentre [os herdeiros], encontramos também convocadores que exprimem a Palavra de Maomé (que a paz e a bênção estejam sobre ele); são os Malamiyya, os adeptos da permanência e da realidade.
E quando eles convocam a Criação diante do Deus Altíssimo, dentre eles se encontra aquele que os chama da porta de fana’ na realidade da servidão, Ubudiyya[43]. [É feita uma alusão a este fana’] quando Ele (seja Ele exaltado) diz: “Eu o criei antes quando você era nada” (Corão, IXX, 9). E entre eles acha-se aquele que chama da porta da atenção à servidão, que é humildade e indigência, e que é requerida pela etapa da servidão. E dentre eles está aquele que chama da porta da atenção à natureza misericordiosa; e o que chama da porta da atenção à natureza conquistadora; e o que chama da porta da atenção à natureza divina, que é a quarta porta e a mais sublime[44].
Saiba que a profecia e a santidade participam de três coisas: uma, o conhecimento sem tê-lo adquirido; duas, a ação levada a cabo pelo himma, a intenção do coração, sobre aquilo que temos o costume de crer realizável somente pelo corpo, ou sobre o que é irrealizável mesmo pelo corpo; terceiro, a visão das imagens no mundo sensorial. Os dois diferem unicamente no modo como se dirigem às pessoas, pois o discurso do santo é diferente do discurso do profeta[45].
Não pense que a ascensão do santo é igual à do profeta. Isto não acontece, porque a ascensão requer ações específicas. Se os santos e os profetas tomassem parte das mesmas coisas em virtude de uma ascensão idêntica, os santos seriam idênticos aos profetas, o que não é o nosso caso[46]. Embora as duas classes tenham um ponto em comum – as etapas da tomada de consciência divina – a ascensão dos profetas é feita pela própria luz fundamental, enquanto que a ascensão dos santos se faz por meio daquilo que esta luz concede providencialmente[47]. Embora, por exemplo, eles [um santo e um profeta] possam ambos estar na etapa da Confiança, esta etapa não apresentará o mesmo aspecto para os dois. A superioridade não está na tomada de consciência, mas no aspecto de que ela se reveste. Os aspectos da confiança dependem de quem exerce esta confiança, e o caso permanece o mesmo em cada estado e em cada etapa de fana' e de baga', a união e a separação, a harmonia e a discórdia, e assim por diante.
E saiba que cada santo de Deus Altíssimo recebe o que recebe pela mediação espiritual do profeta cuja Via sagrada ele segue, e é nesta etapa que ele se dedica à contemplação. Mas existem os que sabem disto, e os que ignoram e dizem: “Deus me disse”; mas isso não passa da natureza espiritual [de seu profeta]. E existem segredos próprios à Sua sutileza, mas estas páginas, que visam apenas a fornecer uma breve introdução, são demasiado breves para tratarmos deste assunto agora.
Dentre os santos da comunidade de Maomé – o Reunidor dos estados dos profetas, a paz e a bênção estejam sobre ele – pode estar um herdeiro do estado de Moisés, mas ele recebe sua herança da luz de Maomé, não da luz de Moisés. Seus estado procede de Maomé, assim como o estado de Moisés procedia de Maomé. Às vezes um santo, ao aproximar-se a morte, parece prestar atenção a Moisés ou Jesus. As pessoas comuns e as que não detêm o conhecimento imaginam que ele se tornou judeu ou cristão, porque ele menciona estes profetas no momento de morrer, mas [de fato esta alusão] decorre da tomada de consciência poderosa que caracteriza esta etapa. Entretanto o qutb pertence diretamente ao coração de Maomé. E nós encontramos homens que pertenciam ao coração de Jesus – dentre os quais está o primeiro sheikh que você conheceu – e homens que pertenciam ao coração de Moisés, outros que pertenciam ao coração de Abrahão, e outros [pertencimentos similares] ainda . E isto permanece um segredo para todos menos para os nossos amigos.
Saiba que o Profeta – a paz e a bênção estejam sobre ele – é quem deu a todos os profetas e mensageiros a posição que eles ocupam no Mundo dos Espíritos, até que ele seja enviado a um corpo[48]. Nós o seguimos, [herdando assim sua conduta direta no mundo temporal]. Os profetas que deram testemunho dele, ou que descerão depois dele[49], juntam-se a nós, e os santos dos profetas que precederam [seu nascimento físico] recebem igualmente [sua herança espiritual] de Maomé. Assim, os santos de Maomé dividem com os profetas uma herança direta que vem dele. Por causa disso é dito no hadith: “Aqueles desta comunidade que têm o conhecimento são como os profetas de Israel.” E o Deus Altíssimo disse a respeito: “a fim de que vocês sejam os testemunhos do povo” (Corão, XXII, 78); e Ele disse, a respeito dos Mensageiros: “Neste dia suscitaremos em cada comunidade um testemunho que se levantará dentre eles e contra eles” (Corão, XVI, 89). Assim somos todos, os profetas e nós, os testemunhos de seus sucessores. Da mesma forma, no retiro, consagre o himma à herança total de Maomé.
Saiba que o sábio verdadeiro, longânimo e perfeito, é aquele que trata cada condição e cada momento da maneira apropriada, e não os mistura. É o estado de Maomé – a paz e a bênção estejam sobre ele – pois ele estava a dois tiros de flecha ou menos de seu Senhor; e então ele se levantou dentre sua gente e falou disso aos que estavam presentes; os politeístas não creram nele, pois ele não trazia nenhum traço [de sua ascensão], e sua aparência era a mesma que a deles. Isto foi impossível até para Moisés que, ao se deparar  com a marca [da Revelação divina], teve de cobrir o rosto.
Todo buscador conhecerá inevitavelmente o impacto dos estados, e a fusão dos mundos entre si, mas o desenvolvimento, a partir desta etapa, para a etapa da sabedoria divina que aparece nos princípios exteriores habituais é para ele uma obrigação. A transcendência da ordem habitual se tornará o seu segredo, de tal modo que os eventos que ultrapassam o ordinário o acompanharão naturalmente. A transcendência da ordem habitual tornar-se-á seu segredo, de tal modo que eventos que ultrapassam o comum o acompanharão naturalmente. Ele não cessará de dizer a cada sopro: “Senhor, aumente meu saber enquanto a esfera celeste se move graças ao Teu sopro”[50], e deve esforçar-se por fazê-lo de tal modo que este momento seja Seu sopro. Quando o influxo do Momento se manifestar, ele o receberá. Que ele evite apaixonar-se [pelo influxo do Momento], mas que ele se lembre dele, pois isto lhe será necessário se ele for ensinar. A maior parte dos sheikhs perdem seu papel de professores apenas por terem negligenciados isto que mencionamos, e de que eles se abstêm totalmente.
O Momento[51] se prolonga ou se retrai conforme a presença daquele que toma parte nele. Existem aqueles cujo Momento é uma hora, um dia, uma semana, um mês ou um ano, ou a quem ele não chegue senão uma vez na vida. E no seio da humanidade existe também não conheça nenhum Momento. Pois aquele que volta sua atenção para o sopro tem as horas em seu poder, e tudo o que está além disto; e aquele cujo Momento é a presença das horas perde a noção do sopro; assim, aquele cujo Momento são os dias perde as horas; e aquele cujo Momento são as semanas perde os dias; e aquele cujo Momento são os anos perde os meses; e aquele cujo momento é a existência perde os anos; e que não possua um Momento não terá existência e perderá sua vida após a morte. Ele não poderá prolongar seu himma animal.  A elevação pessoal indica quão estreito é o Momento e quão pequeno é o saber.
Quem não possui um Momento está privado dele, mas apenas enquanto estiver doente, enquanto for governado pela sua natureza animal. Pois é impossível que a porta do mundo invisível e de seus segredos permaneça aberta agora que o coração os deseja ardentemente[52]. No que concerne à porta do conhecimento contemplativo de Deus, ela não se abre enquanto o coração ainda esteja voltado para o que quer que seja pertencente ao mundo, seja o visível ou o invisível.
E saiba que a propósito destas coisas [que nos foram] confiadas [por Deus – os deveres da Lei sagrada]: se uma pessoa as busca e as coloca em marca, sem visar (himma) nenhuma empresa superior, senão apenas [com a esperança de atingir] o Paraíso – ela é o fiel, o companheiro da água e o nicho de oração. Ao contrário, se sua intenção está voltada para o que está além da adoração sem que esteja preparada, nada lhe será revelado e sua intenção não lhe trará proveito algum. Ao contrário, esta pessoa parece-se com um doente. Suas forças e suas possibilidades estão acabadas, e com elas a vontade, himma, e a capacidade de agir são seriamente prejudicadas. Como poderá ele alcançar aquilo que busca seu himma? A preparação para a Perfeição, por meio do himma e muitas outras coisas ainda[53], é necessária.
E se ele alcançar a essência da realidade, e que sua intenção seja dissolvida – e a realização daquilo que está além não tem limite – aquele que chegou ao objetivo dirá: “Isto não convém senão desta maneira, e é apenas no interesse do espanto que suscita erguer os véus.” Pois pelo conhecimento que emana da contemplação ele acaba por voltar-se para aquilo que está além de cada aparência: a Verdade além das aparências. Pois Aquele que é aparente, embora não seja senão um em Sua essência, é infinito em Seus aspectos. Eles são Seu rastro em nós[54].
E no entanto aquele que sabe conhece uma sede eterna, o desejo e o respeito aderem a ele para sempre. É para que isto se reproduza que os trabalhadores trabalham, e para que isto se reproduza que os pretendentes se enfrentam.
E que a bênção de Deus esteja com nosso Mestre Maomé, sobre sua família e seus companheiros; e a paz. E louvado seja Deus, Senhor dos Mundos.



GLOSSÁRIO



Abu-'Iqal al-Maghribi – Sufi que viveu no final do século XI, e que viveu quatro anos em Meca sem comer nem beber, em estado de ghayba, perdido para o mundo.
Abu-Yaziz Bistami – Abu-Yaziz ibn 'Isa al-Bistami (m. 848  ou 874 A.D.), grande sufi célebre por seu êxtase e sua viagem mística pela realidade. Neto de um zoroastriano, quando lhe perguntaram: “Como você encontrou a sabedoria?”, ele respondeu: “Pela fome e a pobreza. Ele meditou durante trinta anos, e foi um dos que memorizaram o Corão. Um dia ele levou seu filho para ver um santo muito conhecido na época. Ele o viu vomitar em direção à Kaaba. Ele tomou seu filho e partiu imediatamente, dizendo: “Como ser discípulo de um homem que não obedece ao adab do Profeta (a paz e a bênção estejam com ele)?” Ele dizia não poder exprimirem palavras a maior dificuldade que ela havia encontrado no caminho espiritual, mas a mais fácil de que ele se lembrava foi quando, num dia em que nafs recusava-se a orar, ele o havia punido não bebendo água durante um ano. O sheikh Musa ibn'Isa recebeu de seu pai que Hazrat Bistami disse: “Se você ver um homem sentado com as pernas cruzadas no ar, mas perceber que ele não se conforma totalmente à Lei sagrada, não creia nele.”
adab – a etiqueta, a conduta; no sufismo, o modo de ação justo, a cortesia espiritual da Via.
ahadiyya – a unidade indivisível de Allah, conhecida apenas por Ele e daqueles que não são outros do que Ele.
'alim – o sábio; no uso geral, todo homem erudito, em especial um teólogo. Aqui, para Ibn'Arabi, um mestre a quem Allah assinalou a tarefa de ensinar e guiar, conforme a tradição profética: “Aqueles que sabem são os herdeiros dos profetas.”
'arif – gnóstico, aquele a quem o Ser divino tornou-se familiar. Aqui, para Ibn'Arabi, sobretudo aquele que não tem responsabilidades para com a Criação, mas apenas para com o Criador.
Asma'ilahiyya – os Nomes divinos, tais como os menciona o Corão (XX, 8): “Seus Nomes são os mais belos.” Os Nomes divinos dividem-se em Nomes de Essência, que exprimem a pura transcendência. E os Nomes de Atributos, que exprimem as qualidades e as ações divinas. No singular: ism ilahi.
'ayn – o olho, mas também o ego, como por exemplo na expressão 'ayn al-yaqin, o olho da certeza, que representa o conhecimento visto, mas também a verdadeira realidade do conhecimento.
baga' – a instalação de todos os bons atributos no homem; a existência eterna. (ver fana')
Baga' – marca o início da viagem para Deus.
Barzaqh – intervalo; todo estado intermediário entre dois estados de existência, particularmente o mundo das formas sutis que existe entre os mundos físico e supra-formal.
dhikr – rememoração, menção; lembrança de Allah pela invocação dos Seus Nomes.
fana' – a desaparição total dos maus atributos do homem, a aniquilação; como diz o Corão (LV, 26-27): “Tudo o que se acha sobre a terra desaparece; a face de teu Senhor permanece na sua majestade e dignidade.” Fana' é o fim da viajem para Deus.
Fuçuç al-hikam - “As gemas da sabedoria dos profetas”, livro no qual Ibn'Arabi discute as palavras proféticas, as variedade únicas de perfeição realizadas em cada um dos 27 profetas principais.
Al-Futuhat al-Makkiyya - “Livro das conquistas espirituais de Meca” (assim chamado porque o anjo de inspiração apareceu a ele pela primeira vez em Meca para anunciar-lhe sua obra) é o livro mais conseqüente de Ibn'Arabi, e compõe-se de 560 capítulos. É uma compilação de ensinamentos e observações sobre uma grande quantidade de assuntos.
ghayba – a ausência; o estado em que se é inconsciente do mundo. A ausência do mundo pressupõe a presença diante de alguma outra coisa.
hadith – narrativa, relato; relação dos atos e das palavras do Profeta (que a paz esteja com ele) transmitida por fontes dignas de fé. O Profeta disse a respeito do hadith: “O olhar fiel com a luz (nur) de Allah.” “Os crentes olham com uma conhecimento ('ilm) e uma percepção (basira) concedidas especialmente a eles.” No caso, nur significa 'ilm e basira. Uma “tradição” sobre o Profeta não se torna um hadith a menos que se o considere com 'ilm e basira, dons que Allah concede ao fiel.
hadith qudsi – relato sagrado; uma palavra divina não corânica revelada por intermédio do Profeta (que a paz esteja com ele).
hadra – presença; um dos modos ou níveis da Presença divina. Existem cinco hadarat principais, relacionados a seguir:
hadrat ul-ghayb il-mutlaq – a não-manifestação absoluta, refletida nas essências eternas fixas.
hadrat ul-ghayb il-mudaf – a não-manifestação relativa, refletida no universo dos espíritos.
hadrat ul-mithal – a manifestação relativa, refletida nas formas sutis.
hadrat ul-mushahadat il-mutlaqa – a manifestação absoluta, refletida no mundo físico.
hadrat ul-jami'a – a presença da totalidade, refletida no Homem perfeito.
hafira – o começo; o estado original. Ver Corão, LXXIX, 10: “Eles dizem: seremos nós verdadeiramente reenviados ao estado original?”
haqq – a Verdade, o Real; a realidade divina distinta da Criação.
himma – resolução, determinação, ardor; para Ibn'Arabi, a vontade espiritual, o poder concentrado da intenção do coração.
huwiyya – do pronome huwa, “Ele”: a identidade divina inefável; atributo ou descrição do Deus transcendente em Si mesmo.
Ibn Jawziya – Shamsuddin Muhammad ibn Abu-Bakr al-Jawziya (1295-1356 A.D.), teólogo e discípulo de Ibn Taymiyya, pregador e escritor fundamentalista.
Ibn Rushd – Abud Walid Muhammad ibn Ahmad ibn Rushd (1126-1198 A.D.), também conhecido como Averroés, o maior filósofo árabe da Espanha, notável por seus comentários sobre Platão e Aristóteles e suas análises perceptivas. Ele foi acusado de heresia pelos teólogos de sua época.
'ilm – o conhecimento, o saber. 'Ilm é uma luz que emana da lâmpada da profecia dentro do coração do servidor, por meio da qual ele encontra o caminho para Deus, para a obra de Deus e para as ordens de Deus.'Ilm é a característica específica do ser humano que não está referenciada nem pela compreensão dada pelos sentidos nem pela razão. O intelecto é aquilo que opera uma discriminação entre o bem e o mal. O intelecto que distingue o bom do mal neste mundo pertence tanto aos crentes como aos não-crentes. O intelecto que distingue o bem do mal no mundo do porvir pertence apenas aos crentes. 'Ilm é específico dos crentes; 'ilm e o verdadeiro intelecto são necessários um ao outro. O conhecimento da certeza ('ilm al'yaqin) é ouvir dizer que o fogo existe; a visão da certeza ('ayn al-yaqin) é vê-lo por si mesmo. Mas a realidade da certeza (haqq al-yaqin) é ser o fogo.
istihlak – a absorção; para Ibn'Arabi, o estado em que se é consumido ou apagado pela presença divina ao ponto que toda consciência da multiplicidade e do mundo relativo é destruída.
ithbat – a afirmação; aqui, a afirmação daquilo que Deus ordenou.
khala' – o vazio; segundo Ibn'Arabi, o estado do universo antes de sua criação, e origem do  termo khalwa.
khalq jadid – a criação renovada. Ver Corão, L, 14: “Eles têm a ilusão de uma nova criação.” Para Ibn'Arabi, a destruição e a recriação instante por instante do mundo que é a manifestação infinita de Allah.
khalwa – o retiro; o ato da renúncia total inspirada pelo desejo da presença divina. Aquele que empreende o khalwa, como um morto, abandona todos os negócios religiosos e profanos exteriores, o que é o primeiro passo para o abandono de sua própria existência. No isolamento total ele repete continuamente o nome de Deus. Perguntaram a um homem se ele era sacerdote. Ele respondeu: “Eu sou o guarda dos cachorros, eu vigio para que eles não mordam as pessoas, que assim podem viver em paz e segurança. Eu tranquei os cachorros de meu nafs, e eu os guardo.”
lawa'ih – a aparência, o aspecto, os sinais exteriores. Quando um estado (hal) não é contínuo, é chamado de lawa'ih ou bada'ih – ou seja, um estado isolado. O estado de claridade que aparece ocasionalmente entre noviços é lawa'ih. Um poeta disse: “Ó raio brilhante, que parte do céu iluminas agora?”
lawa'ih lawiyya – os “sinais de superfície” ou “aparências exteriores da Tabuinha”. Esta expressão de Ibn'Arabi é obscura. Jili a identifica com lawa'ih hliyya. O termo deriva talvez de al-lawh al-mahfuz, a Tabuinha Guardada na qual estão escritos todos os destinos, idêntica ao Trono de Misericórdia (sarir al-rahmaniyya). No texto, porém, a Tabuinha é revelada num nível muito superior ao dos “sinais de superfície”.
mahq – a obliteração; estado imutável no qual a pessoa não consegue sequer ver a si mesma. É o estado que vem acima de mahw, pois no estado de mahw ainda restam traços, enquanto que no estado de mahq já não resta mais nada. Jili declara que é a manifestação do vice-reinado de Deus e que sua perfeição não é deste mundo.
mahq al-mahq – a obliteração da obliteração; a dissimulação do vice-reinado que Allah destina ao ser humano verdadeiro. Jili diz que mahq al-mahq poderia ser aquele se que torna perfeito neste mundo.
mahw – a eliminação dos hábitos pessoais (dos atributos habituais); corresponde a ithbat, ação que deriva das necessidades do culto. Mahw significa a eliminação dos erros do ser visível, da inconsciência do coração, e da tendência a considerar em sua alma outra coisa além de Allah. Mahw é aquilo que Deus, por sua vontade, esconde e elimina; ithbat é o que Ele revela e torna existente. Quem abandona seus hábitos, que são o produto das ações pessoais, e os substitui pelos maravilhosos atributos dos estados, dos dons e dos retornos concedidos pela adoração de Allah, possui então as qualidades de mahw e ithbat.
makr – o complô, a armadilha, o truque, a astúcia, a habilidade; a habilidade de Allah é a bênção que segue a transgressão da Lei, a continuação de um estado malgrado a violação de adab, e a aparição de milagres sem esforço espiritual.
malmiyya ou malamatiyya – sufis cuja disciplina consiste em carregar a vergonha, aceitar a culpabilidade do mundo mesmo mantendo-se secretamente inocentes. Ibn'Arabi aplica este termo ao grau máximo do sufismo, que encarna o segredo de Maomé (a paz esteja com ele). No singular: malami ou malamati.
maqam – uma etapa ou nível de desenvolvimento espiritual.
mardudun – os que são reenviados; termo de Ibn'Arabi que designa os que, após haver conseguido a presença de Allah, são por Ele reenviados à Sua criação. Eles são considerados superiores aos que permanecem na contemplação exclusiva (mustahlikun). Singular: mardud.
Mawatin – os Reinos; termo de Ibn'Arabi que designa o domínio último ou “pária” de toda experiência criada. Eles sãos eis: a pré-Criação, este mundo, o mundo sutil, a Ressurreição, o Inferno/Paraíso, e o lugar da Visão divina “fora do Paraíso”. Singular: mawtin.
Muhibbuddin al-Tabari – Muhibbuddin Abul'Abbas Ahmad ibn' Abdullah al-Tabari (1218-1295 A.D.), jurista e tradicionalista de Meca, autor de uma série bem conhecida de hadith e de outras 216 obras que sobreviveram.
Muhyiddin 'Abdul-Qadir Jilani – Muhyiddin Abou-Muhammad 'Abdul-Qadir ibn Abu-Salih al Jilani Zengi Dost (1077-1166 A.D.), santo de prestígio e graça espiritual imensos. Inúmeras histórias e lendas o cercam. Ele recebeu primeiramente uma educação de jurista, depois foi feito sufi pelas mãos do sheikh 'Abul-Khayr Muhammad ibn Muslim al-Dabbas, que, ao que se diz, o levou ao sufismo com apenas um golpe de vista. O sheikh 'Abdul-Qadir Jilani começou a pregar em público em Bagdá em 1127. Logo ele ficou conhecido como o orador mais eloqüente, e pregava para enormes platéias. Ele respondia a questões que lhe chegavam de todas as partes do mundo e praticava um alto grau de caridade. Seu status espiritual era tamanho que ele declarou um dia: “Meu pé está colocado sobre o pescoço de cada santo”. Numerosos professores das mais altas dignidades, desde sua época, o reconheceram como mestre.
mustahlikun – expressão de Ibn'Arabi para qualificar aqueles que se perdem na contemplação da Unidade divina excluindo Sua manifestação na multiplicidade (ver istihlak). Seu estado não é tão elevado quanto o daqueles que apreenderam os dois aspectos (ver mardudun). Singular: mustahlik.
an-nafas ar-rahmani – o Sopro misericordioso; a Piedade divina que “expira” a existência do mundo.
nafs – a personalidade, o ego, os desejos. Diz-se que não pode haver aproximação a Deus senão por Deus, e que não existe outro véu entre o Servidor e seu Mestre do que seu nafs. O sufismo reconhece sete etapas de refinamento do nafs.
al-Nuni – aquele que tem a forma da letra nun; nome de um anjo, personificação do Primeiro Intelecto em seu aspecto passivo enquanto receptáculo de todo conhecimento.
qabd – contração, fechamento. No sufismo, diminuição do ego pelo retiro da personalidade de superfície para o interior. Enquanto etapa, descreve o sufi que passou além de khawf (o temor de Allah) e raja' (a esperança). Neste nível khawf se torna qabd; raja' se torna bast, expansão. Khawf e raja' pertencem ao porvir, enquanto qabd é o medo do presente e bast a esperança do presente.
al-Qalam – a Pena, ou Pluma, título da sétima Surata. É o termo corânico para designar a consciência divina ativa, compreensiva e primordial. A expressão filosófica paralela, utilizada por Ibn'Arabi, é Primeiro Intelecto.
qutb – eixo ou pivô: a estação mais alta na hierarquia sufi dos santos. O qutb é diretamente responsável pelo bom estado do mundo inteiro. Diz-se que o qutb é o sucessor espiritual de Maomé.
al-Rabb – Nome divino, o Senhor. O termo árabe implica idéia daquele que cuida, que orienta o desenvolvimento de algo. Ibn'Arabi diz que este Nome governa a Nuvem, entidade primordial na qual se forma todas as condições.
ar-Rahman – Nome divino, o Misericordioso, A misericórdia indicada por este nome é a compaixão que envolve o universo em sua totalidade, e por maio da qual este universo foi criado. Ibn'Arabi declara que este Nome governa o Trono da Misericórdia. (ver sarir ar-rahmaniyya)
riyada – educação do caráter pela ascese.
Sa'duddin Hamawi – Sa'duddin Muhammad ibn al-Mu'ayad al-Hamawi (1191 ou 1198 a 1252 ou 1260 A.D.) era um dos doze herdeiros do grande sheikh Najmuddin Kubra, e um célebre sufi de sua época. Sadruddin Qunyawi, discípulo de Ibn'Arabi, assistiu às suas reuniões quando era adolescente. O sheikh Hamawi era conhecido como compositor de poesia mística e de textos sufis. Numerosos milagres lhe são atribuídos. Diz-se que certa vez sua alma deixou o corpo por treze dias.
sarir ar-rahmaniyya – o Trono da Misericórdia, também chamado de Tabuinha Guardada, é a Alma do Universo. Ele engloba todos os destinos e todo o saber.
aç-Sattar – Nome divino, Aquele que coloca o véu (que cobre os pecados humanos).
shahwa – desejo ardente, apetite natural.
sheikh – mestre, guia espiritual; literalmente “ancião”. Título do professor de sufismo.
sura – forma física, sutil ou abstrata.
taklif – obrigação que tem o ser humano de escolher o serviço de Deus. Ibn'Arabi o define como um princípio constitutivo deste mundo.
tawali' – estrelas ascendentes. No curso do desenvolvimento, elas sucedem a lawa'ih. Os tawali' são os sinais anunciadores dos Nomes que iluminam o servidor e embelezam seu caráter. São as luzes do tawhid que ultrapassam todas as luzes inferiores.
tawhid – a declaração da Unidade de Deus expressa na afirmação La ilaha ila 'llah: “Não há outro deus senão Deus.”
ubudiyya – a qualidade do servidor, que, diz-se, torna-se perfeito em Maomé (que a paz esteja com ele).
Uqlat al-mustawfiz – obra de Ibn'Arabi citada por Jili. Trata do Homem perfeito e dos graus do ser, e foi escrito quando Ibn'Arabi tinha cerca de vinte anos, antes de sua peregrinação a Meca.
waqif – aquele que se detém. Ibn 'Arabi utiliza este termo em referência ao buscador no momento em que ele atinge seu objetivo, seja se ele permanecer em contemplação (ver mustahlikum), seja se ele retornar ao mundo (ver mardudun).
waqt – o Momento; em sufismo, duração de um episódio de existência realmente consciente, de rememoração de Allah.
watan – pátria, da mesma raiz de mawatin, Reino.




[1]                “Não é, acaso, certo que os diletos de Deus jamais serão presas do temor, nem se atribularão?”  (Corão, X, 62).

[2]              Este sinal * indica referência no Glossário.
[3]              A mesquita Fatih tem um chão de pedras, não de pranchas de madeira.
[4]              “Um estado que precede o estado de retorno”: porque a absorção (istihlak) é um fana’ [extinção] no qual não se experimenta as múltiplas manifestações da Essência ou a diversidade de suas descidas na Presença dos Nomes. Este estado de experiência da multiplicidade é uma das características de baga após fana’, e é a causa da manifestação, do conhecimento bem-amado pelo qual Ele criou o mundo.
[5]              “O conhecimento das matrizes dos Reinos.”:  de um ponto de vista geral, não em detalhe. Não podemos compreender [os reinos] antes de sabermos de onde viemos, onde estamos e para onde vamos. Saberemos então de maneira geral o que cada um deles requer em sua essência própria ou a partir de uma referência de um outro Reino, ou as duas coisas. Desta maneira podemos nos preparar para nos conduzirmos como convém em função do Reino em que estamos, e em função do Reino para o qual seremos transportados segundo o modo como nos comportamos neste. E eu observarei que estes reinos implicam “aqui”, ou seja, no Reino onde nos encontramos presentemente, não está dito aquilo que eles implicam no absoluto. Você não encontrará [sua natureza absoluta] senão quando for transportado para lá, assim, é inútil discuti-lo. Aquele que busca deve empreender o que mais importa; ele deve respeitar cada Reino concedendo-lhe o que lhe é devido, Pois quando aquele que procura é transportado para fora de um Reino, se aquilo que ele devia alcançar lhe escapou, ele não o cumprirá jamais. Isto terminará num eterno fracasso. [Como diz o hadith:] “Uma das belezas do Islã é um homem que abandona aquilo que não lhe diz respeito”, e: “O tempo é uma lâmina afiada: se você não o corta, ele o cortará.” [E como é dito:] “O sufi é o filho de seu momento” e “o presente não volta.”
                E saiba que o mundo desaparece a cada instante na não-existência pela acachapante vitória da Unidade (ahadiyya) sobre a multiplicidade. E um mundo igual é produzido ]a cada instante] pela autoridade do amor essencial. Pois a existência do mundo é o instante de sua não-existência. Assim o Manifestado impõe sua manifestação sobre a primeira coisa oculta, e o mundo é produzido. Depois o que é escondido impõe seu estado de dissimulação sobre a primeira manifestação, e o mundo desaparece. Depois a autoridade retorna ao Manifestado – e assim por diante, até o infinito. É o que se chama uma “criação renovada” (khalq qadid). O prolongamento imaginário que parece resultar deste fluxo de similaridades é o Tempo; e o movimento é a sua medida. Tudo o que é “outro que Deus” é temporal. E se é impossível que a duração [real] de um evento exceda um instante, então tudo o que sobrevem é “filho de seu momento”, e nada além disso. O evento é necessário ao instante, e o instante é necessário ao evento. Ou melhor: o momento determina essencialmente o evento, que não pode ser separado dele. Assim o momento é o lugar do evento, ou o reino (watan). Os momentos são infinitos; portanto os reinos são igualmente infinitos.
                E saiba que a renovação das similaridades [representada pelo Tempo] se desenvolve de tal maneira que uma coisa desaparece e outra igual a sucede – o Branco se torna não-existência, e produz-se outro Branco; se ele desaparecesse e fosse sucedido pelo seu oposto – se o Branco desaparecesse e se produzisse o negro – isto alteraria a ordem das coisas.
                E se os lugares das similaridades são os seus instantes, os lugares dos instantes serão a forma na qual as similaridades são renovadas. Os Reinos universais, em relação com a totalidade dos reinos, parecem-se com a matriz composta destas formas, e por esta razão o sheikh disse: “Reinos é o termo que designa os planos do momento durante o qual as coisas vêm à existência e onde a experiência se produz verdadeiramente”; ou seja, procedendo da não-existência para a existência por meio de uma criação renovada. Esses planos inferiores são o lugar onde situa-se o evento quando ele se produz. Entenda bem, isto é importante.
                “É indispensável”, ó estudante, depois que você adquiriu o conhecimento dos Reinos, “que você saiba o que a verdade espera de você em cada Reino” no qual você se encontra “a fim de que você chegue aí” mais depressa e o produza da melhor maneira, “sem hesitação”, ou seja, sem se engajar em nenhuma atividade que o impeça de chegar lá, pois isto levaria à sua destruição, “nem resistência”, aquela que você encontra em si mesmo devido à dificuldade daquilo que Deus lhe pede – pois isto levaria à acídia e ao fracasso.
[6]              “Os Reinos” a respeito do qual lhe prometemos dar informações, “embora numerosos” do ponto de vista de sua particularidade e de sua enumeração que ultrapassa o entendimento humano, “derivam todos de seis.”
[7]              “O primeiro Reino” é aquele em que nos foi perguntado: “Não sou eu teu Senhor?” É o Reino no qual você estava antes de sua existência física, sob a forma de um átomo em meio a uma multidão de espíritos. E você soube que Deus quer que você O encontre neste Reino quando Ele lhe fez saber que ele concebeu sua singularidade por pura bondade e generosidade. Assim você é incitado a cumprir imediatamente [o que se espera de você neste lugar], sem hesitar, porque Ele o quer e exige diretamente. A autoridade de Sua Vontade é irresistível, em particular quando a exigência se manifesta diretamente, sem a intervenção de intermediários.
                O que lhe foi pedido neste Reino é a confirmação de Sua supremacia. Ele disse (seja Ele exaltado): “E quando teu Senhor tomou os filhos de Adão de entre as manifestações de átomos e os chamou a prestar testemunho contra si mesmos: “Não sou Eu teu Senhor?”, eles responderam “Sim.” Este é um segredo sutil conhecido daqueles que têm familiaridade coma  realidade do dever e da responsabilidade.
                Depois, quando você desceu deste pináculo do mundo dos espíritos para ganhar as profundezas do mundo dos corpos, você esqueceu este Mundo e o que lhe aconteceu. E se você se voltar para Deus, se você o buscar, você lembrará [se Deus permitir] de sua afirmação quanto à Sua supremacia. E você dirá, nestas circunstâncias, o que o Selo dos Santos de Maomé, o sheikh Ibn ‘Arabi (que Deus o tenha em seus favores) disse num poema: Diante do Teu reino eu levei o testemunho antes de nossa existência / naquilo que o olho via num punhado de átomos, / testemunho particular cuja essência compreendo agora. / No momento do testemunho não houve nenhuma falsidade, / o caminho que segui, segui com alegria e simplicidade. /Eu não era um cativo mentido em reclusão.
                O sheikh aludiu à sua separação deste Reino por seu comentário “Nossa existência física nos fez deixar este Reino.”
[8]                “O mundo em que estamos presentemente” [o segundo Reino] estende-se, segundo o sheikh, da superfície côncava da esfera das Moradas Celestes até a superfície da terra.
[9]                O “Intervalo” (al-barzakh), o terceiro Reino, é a barreira entre este mundo e o seguinte. O sheikh (que Deus o tenha em seus favores) disse: “Saiba que o Intervalo é uma expressão que designa aquilo que separa duas coisas, como a linha que divide a sombra do sol, e, assim como Ele disse – seja Ele exaltado – a respeito da mistura dos dois mares: “Entre eles existe uma barreira (barzakh) que eles não podem ultrapassar” (Corão, LV, 20). “Eles não podem ultrapassar” significa que eles não podem se misturar [completamente] um com o outro devido à barreira que os separa. Ela não é perceptível à vista. E quando a percebemos subitamente a barreira já não existe. E quando a barreira separa o conhecido do desconhecido, o não-existente do existente, o negado do afirmado, o racional do irracional, ela é chamada de Intervalo, e este Intervalo é a imaginação. Pois se você a percebe – se você é racional – você sabe que sua visão captou uma coisa que existe, mesmo sabendo sem sombra de dúvida que não se trata de uma “coisa” de maneira completa e fundamental. E o que é isto cuja natureza é afirmada e negada simultaneamente? A imaginação não é nem existência nem não-existência, ela não é conhecida nem desconhecida, nem negada nem afirmada. E o ser humano viaja para esta realidade durante o sono e depois de sua morte, e vê qualidades descritivas como formas existentes, disto não há dúvida. E o ser intuitivo vê em seu estado de vigília aquilo que o adormecido vê no sono e o defunto vê após a morte.
[10]             “O quarto Reino é a Ressurreição”, e a reunião dos homens “na terra que desperta” (ver Corão, LXXIX, 124). Trata-se da superfície da terra, e diz-se que ela desperta porque ela reune os estados de vigília e de sono. O sheikh disse:  “Saiba, irmão, que quando os homens se levantarem de seus túmulos e o Deus Altíssimo decidir que a terra se torne outra terra, então a terra se estenderá com a permissão de Deus e um ponto se formará acima das trevas. Toda a criação estará aí. Então Deus transformará a terra como melhor Lhe aprouver, em uma outra terra chamada “despertar”; esta é uma terra que está apenas no conhecimento de Deus; ninguém dorme sobre sua superfície. Deus glorioso e exaltado a estenderá como uma pele. Nesta expansão Ele reforçará a fraqueza do que havia antes, estendendo-a de vinte e uma parte para noventa e nove: Ele a estenderá como uma pele. E não se encontrará nela irregularidade nem desvio.”
                “E o retorno à condição original”: esta condição original (hafira) designa em seu sentido etimológico o modo como um homem chega. Diz-se: “tal homem retornou à sua condição original”, quando ele parte da mesma maneira como veio. E o significado de: “Eu sou daqueles que retornam à condição original” é que nós retornamos à vida após a morte.
[11]             “O quinto Reino é o Jardim” e se situa entre a concavidade da esfera sem estrelas e a convexidade da esfera das Moradas Celestes, e “o Fogo”, que se estende da concavidade da esfera das Moradas Celestes até o centro da terra. Pois os sete céus e os elementos mudarão de forma, depois da divisão e do julgamento, e tomarão a forma do Inferno.
[12]             “O sexto Reino é a Duna de Areia” (ver Corão, LXXIII, 14). É uma colina de musgo branco onde estão as criaturas no momento da visão de Deus Glorioso e Exaltado. Ela está “ao redor do Jardim” porque ela se encontra no Jardim do Éden que é a praça forte e a cidadela exterior dos outros Jardins. A maioria dos homens não entrarão na Presença e nas Qualidades do Rei sem terem antes visitado este lugar.
[13]             “Em cada um destes Reinos existem lugares que são Reinos no interior de Reinos, e apreendê-los todos ultrapassa o poder humano. Em nossa situação não temos mais necessidade do que da explicação do Reino deste mundo, que é lugar da responsabilidade, da prova” – ou seja quando se é posto à prova – “e do trabalho” que necessita da bênção [divina] nos Reinos que se seguem. Pois dentre todos os Reinos não existe nenhum que seja o lugar da obrigação [especificamente da obrigação de escolher o serviço de Deus (taklif)], com exceção deste. Isto faz transparecer o sentido [do provérbio]: “o momento não prolonga sua recompensa.” E se você disser que a responsabilidade moral das crianças e dos loucos será certamente engajada no Reino da Ressurreição, e que nosso mundo atual é a raiz dos outros Reinos, de tal maneira que os Reinos do Intervalo, da Ressurreição, do Jardim e do Fogo, e da Duna de Areia são graus que pertencem à manifestação deste Reino profano, você poderá deduzir daí que todos esses Reinos dependem especificamente da obrigação. Mas compreenda que não é este o caso. Pois você verá que a obrigação, se você a considerar, é uma realidade [constitutiva] do Reino do mundo presente.. Entretanto, ainda que ele aparecesse na Ressurreição, ele não aparece nela porque é essencial que seja assim. A Ressurreição, diferentemente do Reino do mundo presente, não requer fundamentalmente a obrigação. Ela necessita a expiação e a repartição – nada além disso. Do mesmo modo, se [o mundo atual] torna a obrigação necessária em razão de sua estrutura essencial, ele poderia também requerer a repartição passando por outra coisa que não sua estrutura essencial, assim como a Ressurreição adquire a obrigação a partir de outra coisa que não sua essência. E o sheikh não fala disto sobre as matrizes dos Reinos, mas afirma que não nos é absolutamente necessário descrever sequer o menor dentre eles, com exceção do mundo presente.
[14]             “Fundir-se no Real por meio da obliteração (*) dos mundos.” Trata-se de uma inversão de frase técnica. O sheikh disse que a “obliteração” (maqh) é a sua chegada à existência, ao mundo, por Seu intermédio, na qualidade de vice-regente e embaixador que Ele lhe concedeu, de tal modo que o mundo está submetido à sua autoridade. E a “obliteração da obliteração” (maqh al-maqh) é sua aparição sob Seu véu. Na “obliteração da obliteração” você coloca um véu sobre Ele, de modo que as pessoas o consideram como uma criação desprovida de direito [de governar]. Pois eles não podem saber que Deus o enviou como um véu diante d’Ele até que eles voltem para Ele seus olhos. Assim, a “obliteração da obliteração” forma um contraste com a “obliteração”; não é um desenvolvimento exagerado da obliteração. Isto se parece mais com a “não-existência da não-existência”. É verdade que o servidor, no momento em que se afasta da presença de Deus para ganha r a Criação, é dotado de meios de ação para cumprir seu papel de governante em meio ao povo. Eles não têm consciência disto, embora já tenham, ouvido falar de certos governantes, designados pelo nome de Mensageiros (que a paz e as bênçãos de Deus os acompanhem) que Deus enviou um dia para que agissem como vice-regentes sobre a terra, a fim de dar a conhecer Seu julgamento. Deus dissimulou esta capacidade entre os herdeiros dos profetas, que não obstante são vice-regentes mesmo quando não o sabem. E saiba que entre as pessoas de Deus, a “obliteração da obliteração” se dá neste mundo, e a “obliteração” se dá no seguinte. E apenas os mais eleitos dentre estes são bem sucedidos no que diz respeito à obliteração da obliteração; ela é destinada aos intelectos esclarecidos. Os eleitos obtém sucesso no que concerne à obliteração; ela é destinada às almas iluminadas. Que Deus nos integre à obliteração de Sua obliteração, e que Sua justiça seja atribuída exclusivamente a Ele.
                (*) Obliterar: fazer desaparecer pouco a pouco, apagar insensivelmente deixando vestígios. (N.T.)
[15]             “Entre nós, os mestres desprezam esta ambição.” Nós não preconizamos a contemplação, o fana’ e a absorção no Real no meio da obliteração deste mundo. De fato, “os mestres entre nós” – os santos – “desprezam esta ambição”. A palavra de Deus – seja Ele exaltado – vai na mesma direção: “O Messias jamais negou ser um servidor de Deus” (Corão, IV, 172). “Porque é perda de tempo”, um tempo que deveríamos passar lutando, observando a religião, adquirindo a ciência divina da piedade; e porque isto significa “faltar ao seu nível [verdadeiro]” na visão e na obliteração do mundo do porvir.
                Pois a visão de Deus no mundo do porvir corresponde à medida do conhecimento de Deus que se adquire aqui. Assim, este mundo é feito para adquirir o conhecimento com esforço. O seguinte é o domínio da facilidade e da contemplação. Durante o tempo que você dedica à contemplação neste mundo você perde um conhecimento que, se tivesse sido adquirido, seria acrescentado à sua contemplação no próximo. Assim, a contemplação neste mundo, que leva à ausência de aquisição deste conhecimento, carrega consigo uma perda do nível contemplativo no mundo a seguir, pois a contemplação corresponde à medida do saber. Você só contemplou neste mundo depois de ter um certo conhecimento, e só contemplou a forma do seu conhecimento. Este conhecimento que formou a base da sua contemplação foi adquirido perseguindo um conhecimento superior. Se você tivesse atingido o conhecimento superior, sua contemplação se aprofundaria na mesma medida. Se a contemplação lhe escapa neste mundo porque você persegue o conhecimento, ela não lhe escapará no próximo mundo; mas se o conhecimento lhe escapa neste mundo porque você cobiça a contemplação – pois se trata de um fana’ que não é acompanhado de consciência – a contemplação lhe escapará no mundo por vir. É uma perda de nível visual.
                No que concerne esta perda em relação à obliteração: saiba que a manifestação da qualidade de embaixador e de vice-regente não convém, salvo no mundo por vir, onde não existe obrigação nem petrificação das categorias do ser. No mundo a seguir é o homem [reproduzindo a descrição corânica da ação criadora de Deus] que diz a uma coisa “seja”, e ela é. Assim foi contado que Deus enviou às pessoas do Jardim uma mensagem contendo as seguintes palavras [e o conhecimento de Deus é sempre superior]: “Carta do Eterno ao Eterno. Eu digo a uma coisa “seja”, e ela é, e Eu lhe farei dizer a uma coisa “seja”, e ela será” – e jamais acontecerá que digam a uma coisa “seja” e ela não venha a ser. É a essência da manifestação da vice-regência, e este mundo não lhe convém. Pois este mundo é a casa do trabalho e da responsabilidade e o grau em que a vice-regência aparece aqui, é o grau em que ela se perdeu no mundo a seguir. Como diz o Deus Altíssimo: “Você esgotou suas bênçãos na vida deste mundo” (Corão XL, 20). Entretanto isto só acontece quando a manifestação da vice-regência neste mundo não provém da Ordem divina. Quando ela decorre desta Ordem divina – como é o caso dos Mensageiros – eles não a desprezam.
[16]               O sheikh disse: “Saiba (que Deus nos traga o sucesso, a nós dois) que a raiz de khalwa acha-se na Lei sagrada: “Quem quer que se lembre de Mim em si mesmo, dele lembrarei em Mim mesmo. E quem quer que se lembre de Mim  numa assembléia, dele lembrarei numa assembléia ainda maior” (hadith qudsi). A raiz de khalwa é al-khala, o vazio no qual o mundo existia [antes da criação].
[17]             “É melhor que sua alimentação seja nutritiva”, a fim de que a constituição não perca seu equilíbrio em função de uma secura excessiva, “mas desprovida de gordura animal” porque a gordura animal reforça a animalidade, e seus princípios podem dominar os princípios espirituais.
[18]             “Se ocorrer uma influência que altere a constituição”, como as dores que tomaram o Mensageiro de Deus quando Gabriel lhe apareceu e que [o Corão] desceu em seu coração puro. Este estado era característico da presença [de Gabriel]. Como a [natureza angélica] não é compatível com [a natureza humana], era muito sofrido para o Profeta; sua constituição era posta à prova, e sua fronte transpirava.
[19]             “...não sofrerá nenhuma alteração de forma”. Se o influxo tiver sua origem no nível das essências abstratas e chegar até o mundo das imagens, você não sofrerá nenhuma alteração de forma ao ficar sob sua influência.
[20]               “...até que Deus expulse dele a influência demoníaca”. Pois Deus é o companheiro daquele que o chama, e o diabo afasta-se de Deus Altíssimo; assim, jamais encontramos a Deus e ao diabo em mútua companhia.
[21]             “Se lhe oferecerem bebida” durante esta revelação, “prefira a água”, pois esta é a forma que adquire o conhecimento absoluto. “Se não houver água no que lhe for oferecido, escolha o leite”, símbolo da religião pura e original, como o fez o Mensageiro (que a paz e as bênçãos estejam com ele) quando subiu aos Céus [e lhe foi proposta uma escolha similar]; pois o leite é a forma que adquire o conhecimento das Vias sagradas. “E se os dois lhe forem apresentados, misture a água e o leite”, pois esta é a forma que adquire a relação entre o resto dos conhecimentos e o conhecimento legal, sagrado e ordenado, ou seja a relação que existe entre cada um deles e ele, e sua relação para com cada. “Isto também se aplica ao mel: beba-o”, pois esta é a forma do conhecimento filosófico admissível e dos sistemas santificados que foram estabelecidos pelos filósofos e os sacerdotes com o objetivo de agradar a Deus. “Desconfie do vinho” não misturado. Ele o fará perder-se – pois esta é a forma que adquire o conhecimento dos estados – “a menos que ele tenha sido misturado com água da chuva”, que é a forma da qual se reveste o conhecimento concedido [por Deus] e que o guiará pelo bom caminho. Os estados, quando desprovidos do saber divinamente concedido que não contém nenhum erro, desviam aqueles que os abordam. “Mesmo que ele tenha sido misturado com água de riachos ou nascentes”, que é a forma do conhecimento natural, “evite bebe-lo”, porque ele conduz à heresia, à apostasia e à corrupção das opiniões. E se ele for misturado com água de poço, que é a forma do conhecimento intelectual, dá-se o mesmo. Pois quando os estados se tornam confusos pela reflexão, o erro aumenta e a justiça diminui. Beba a água pura dos riachos e das fontes, e também quando ela for misturada com água de chuva ou leite, mas não a beba quando for misturada com água de poço ou mel. E não beba água de poço a menos que ela esteja misturada com água de chuva ou leite.
[22]             “Esta ascensão é a ascensão da dissolução”, pois as origens materiais se dissolvem nela, como indicou o sheikh. E sua desintegração não está em relação senão com a consciência daquele que busca, assim como seu encadeamento só existe em relação com esta consciência. Certamente você conhecerá a realidade deste fato. Esta dissolução não passa da dissolução “da ordem” dos elementos do mundo exterior. Você sabe que “o estado de contração (qabd) o acompanhará” na descoberta e no exame “desses mundos” porque você se encontra na ascensão da dissolução na qual sua essência se desvanece; e isto requer a contração, sem nenhuma dúvida.
[23]             “...a infusão do mundo da força vital”, como a vida que surgia das mãos de Jesus – que a paz esteja com ele – nas criaturas que recebera, a vida graças a ele, como por exemplo o morto que ele levantou de entre os mortos e os pássaros de argila aos quais ele deu vida. Os efeitos produzidos por esta força vital em cada criatura morta corresponderam à estrutura preexistente desta. Por exemplo, se a essência era a de um pássaro, um pássaro ganhava a vida, e se a essência fosse de um homem, uma homem ganhava a vida, e a força vital permanecia uma e mesma realidade [independente de ser pássaro, homem ou qualquer outra forma trazida à vida]. Os efeitos diferem segundo as diversas estruturas preexistentes que foram expostas a ela. “E como as expressões [da fé] se acham incluídas nesta infusão”, como, por exemplo, quando Ele declara (seja Ele exaltado): “quando você modelou na argila a aparência de um pássaro, com Minha permissão, e curou o que nascera cego e o leproso, com Minha permissão, e quando você levantou os mortos, com Minha permissão” (Corão, V, 110), e quando Ele declara: “Eu assoprei nele e ele se tornou um pássaro, pela graça de Allah; eu curei aquele que havia nascido cego e o leproso, e eu levantei os mortos, pela graça de Allah” (Corão, III, 49).
[24]               “Sinais da superfície”. Eu não conheço o significado dos “sinais de superfície” (al-lawa’ih al-lawhiyya), mas temos conhecimentos dos “sinais de estado”. Saiba que o sheikh, que Deus o tenha em seus favores, disse: “Os sinais (lawa’ih) significam, para as pessoas de Deus, a elevação de um estado ao estado que começa a se mostrar à sua sensibilidade interior. Para nós, isto se refere às luzes essenciais – a glória transcendente vista segundo uma perspectiva de afirmação, mais do que de negação – e às luzes dos Nomes divinos que aparecem quando contemplamos seus efeitos. Tudo isto se torna visível ao olho cuja avidez não mais o limita.” É assim que você distinguirá estas luzes.
                No que se refere à elevação de um estado a um outro estado, não se volta a um estado após have-lo abandonado em proveito de um estado superior. O objeto [de um estado] é a influência divina e o conhecimento de Deus que ele traz. [Os estados em si] são etapas, e não dons de graça específica. Eles podem se apresentar de diversas maneiras, mas quem os experimenta não deve louvá-los a menos que eles aumentem seu conhecimento de Deus [o que não é necessariamente o caso].
[25]               “A luz das estrelas móveis.”  O sheikh disse: “As estrelas móveis (tawali) é uma expressão técnica empregada para designar as luzes da declaração da unidade (tawhid) que nasce no coração dos gnósticos, e que extingue todas as outras luzes” – ou seja as luzes das provas especulativas, e não as das provas proféticas e revelatórias. E elas extinguem também as luzes da intuição. É o tawhid que Deus espera de seu fiel. A parte de reflexão especulativa que isto supõe reduz-se à declaração de unidade de grau; Sua existência enquanto objeto de um culto particular, de tal modo que nenhum outro fora Ele possa ser adorado. A este propósito, diz ele, a evidência é clara.
[26]               “A forma da ordem universal.”  É uma expressão que faz referência à aparição de Deus sob a forma da Criação. E você saberá que a existência compõe-se em sua essência de haqq, a verdade, e de khalq, a Criação; mas você não alcançará isto antes de haver franqueado a luz das estrelas móveis.
[27]               “Os graus das ciências especulativas” correspondentes à realidade, Você poderá discernir quais são os superiores e quais os inferiores, qual precede e qual segue. E Ele lhe revelará a realidade das “idéias integrais” sem que você possa se enganar, “e a forma das questões complexas que mergulham a inteligência na confusão” de tal modo que aqueles que as consideram perdem o equilíbrio de sua constituição, “e a diferença entre suposição e saber” – e são poucos os que, possuindo o conhecimento, sabem disto. A maior parte dos observadores não fazem diferença entre as duas coisas na maioria dos casos. E “o nascimento das possibilidades entre o mundo dos espíritos e o mundo físico”, assim como Jesus veio ao mundo entre Maria e Gabriel – a paz esteja com eles – e a alma entre o espírito e o corpo; e a causa desta concepção.
[28]               “A infusão do Mistério divino no domínio de seu Cuidado cheio de amor.” Trata-se da unidade da Essência no mundo dos Nomes, da unidade do Intelecto no mundo dos espíritos, e da unidade dos Trono no mundo dos corpos. Esta unidade é a essência da misericórdia. A unidade penetra a atenção das pessoas de Deus até que ela se espalhe em sua essência, seus atributos e seus atos, assim como ela se espalha na Essência divina, no Intelecto e no Trono, este caráter aparece entre eles do rei à formiguinha. Entre as pessoas que conhecem o infortúnio é o contrário que se produz.
                Mas se você é capaz de me acompanhar, diga: “Não existe infortúnio. Pois o mistério divino se espalha através de todo o mundo, e assim não existe infortúnio. Tudo aquilo em que Deus está envolvido é do domínio de Seu cuidado cheio de amor, porque isto faz parte do campo do Real. Tudo o que está em Seu campo está próximo d’Ele, e o que está próximo de Deus é bom e preservado; o infortúnio é mau e não há nada de mau n’Ele. Portanto, compreenda! Eu lhe trouxe um mar de realidades e de conhecimentos. SE você chegar a esta profundidade e colher suas pérolas, você será o mestre do seu momento. E Deus, seja ele exaltado, é o Guia. Não existe outro Mestre além d’Ele.
[29]             “ E não há nada que pertença a uma etapa”, uma etapa já mencionada ou qualquer outra, “que Ele lhe revelar” entre os céus, os elementos e as criaturas vivas, “que não chegue a você com reverência e exaltação; seu grau na Presença divina aparecerá claramente a você, e [cada um] o amará em sua essência.” É uma prova enviada a você pelo Deus Altíssimo, a fim de conhecer a profundidade de sua concentração e a sinceridade de sua busca, e seu abandono de tudo que não seja Ele. Se você apossar-se das coisas preciosas que Ele lhe revela e se detiver nelas, você será expulso de Sua porta e estará perdido. Mas se você perseverar na Sua busca e se desviar de tudo o que não é Ele e chegar à Sua santa Presença, você triunfou, você é vitorioso, e adquiriu a autoridade, por Sua ordem, sobre tudo o que foi apresentado diante de você.
[30]               “O mundo da confusão.” Ele fez um mundo de “confusão e impotência” porque a luz da natureza indizível do ser de Deus (huwiyya) o engloba, e ninguém pode vê-lo nem percebe-lo através da intensidade da sua luz. E a contemplação da natureza do ser herda a vida, como não se pode negar.
[31]             “E você balançará como uma lâmpada” ao sopro da brisa. Saiba – que Deus lhe conceda Sua misericórdia – que este lugar é uma etapa que exige a mais extrema coragem por parte daquele que busca a verdade. Pois se ele chegar aí e esta singularidade se manifestar a ele, e se esta luz de que falou o sheikh erguer-se sobre ele, ele acreditará ter chegado na Presença da Unidade (ahadiyya) e ter triunfado na revelação essencial. Isto é resultado da felicidade divina que ele encontrará nesta etapa, e do fato de que toda outra realidade diferente da sua estará ausente. Portanto, ó Buscador que anda pelos caminhos, se você chegar a esta revelação, não se ligue a ela, e não a deseje malgrado a felicidade e o enlevo que ela lhe causar.
[32]             “E os véus se erguerão. E os véus descerão” sobre “as formas dos filhos de Adão.” É porque quando o primeiro de nós [Adão] desobedeceu ao Deus Altíssimo, sua forma foi alterada. Um véu proveniente do Nome aç-Sattar, Aquele que coloca o véu, desceu entre [a forma alterada de Adão] e todas as outras formas, de modo a que estas não ficaram sabendo o que aconteceu ao homem nem conheceram a alteração que lhe foi marcada pela sua transgressão. Quando ele se arrependeu, sua forma voltou ao que era antes. Então o véu foi erguido e as outras formas viram Adão em seu estado original. Isto graças à misericórdia e à generosidade de Deus...
[33]             “Um louvor particular que você reconhecerá ao ouvir”: “Exaltado seja Aquele que revela o belo e esconde o feio.”
[34]             “E se você não se detiver”, ou seja, no Trono do Misericordioso, “Ele lhe revelará (...) o primeiro Intelecto”, que é o primeiro professor, e a primeira existência do mundo do registro e da inscrição. É o diretor e a origem de todas as coisas por permissão e ordem de Deus Altíssimo. É portanto o “mestre de todas as coisas”, sendo que “todas as coisas” significa o Trono, a Alma e o Universo. Pois o Intelecto transmite à alma tudo o que recebeu de Deus Altíssimo. Quando o Trono é chamado de “Tabuinha”, o Intelecto é a Pena (al-qalam) que escreve sobre ela; quando é chamado Alma, o Intelecto é seu mestre Assim, o Intelecto é seu “professor”. “Você examinará seu traço” através das realidades do mundo e da realidade de sua posição, e conhecerá “a mensagem que ela traz, e testemunhará sua inversão” no sentido de que foi uma Pena que escreveu sobre uma Tabuinha. Pois, quando você escreve com uma pena, ela é invertida. E você testemunha “a recepção” dos vastos conhecimentos [como quando a pena é enchida de tinta] e a “particularização dos vastos [conhecimentos]” sobre a Tabuinha “que fluem do anjo al-Nuni.” No que tange a aprender Sua linguagem, eles são como elementos governantes e governados de uma construção genitiva. Saiba que o sheikh escreveu em seu livro ‘Uglat al-mustawfiz que não existe nenhum mediador entre o Intelecto e o Criador – glória lhe seja dada – embora se diga que entre eles se acha um anjo chamado al-Nuni [como a letra nun, a letra abreviada que abre a septuagésima surata do Corão, intitulada “A Pena”], que compreende o conhecimento universal e é comparado a um tinteiro, enquanto o Intelecto é a pena e a Alma a tabuinha. Isto não é correto. O Intelecto, no que concerne a compreensão do conhecimento em sua essência, é chamado al-Nuni; e o fato de ativar os detalhes deste conhecimento escrevendo-os sobre a Tabuinha é chamado de Pena.
[35]               “E se você não se detiver”, ou seja, neste Mestre de todas as coisas que é a Pena superior, “Ele lhe revelará aquele que faz mover” esta Pena. É a “mão direita da verdade”, que representa os atributos de Sua Beleza, pois eles são necessários para que o mundo exista. É por isso que eles ativam a Pena. Então compreenda: se Deus quiser, você será guiado corretamente. E se você não se detiver aí Ele lhe revelará os Anjos enlevados criados a partir da Nuvem. E se você não se detiver aí, Ele lhe revelará a Nuvem na qual nosso Mestre existia antes de haver criado o mundo (*) e a Palavra, a mensagem do Sublime, antes que Ele nos introduzisse em Sua realidade. O sheikh, que Deus Altíssimo lhe conceda seus favores, disse:
                “A Nuvem é a sede do nome “o Senhor” (ar-Rabb) assim como o Trono é a sede do nome “o Misericordioso” (ar-Rahman). A Nuvem é a primeira das coisas. Nela aparecem as condições do espaço e o grau d’Aquele que não entra nem no lugar nem no grau. É dela que foi manifestado o patamar inferior [de todas as existências possíveis], de tal modo que ela recebe as essências abstratas da encarnação (al-ma’ani al-jismaniyya) dos mundos sensorial e imaginário. Trata-se de um existente exaltado cuja essência abstrata é a Verdade; é a verdade pela qual todas as coisa foram criadas, e que não é outra senão Deus Altíssimo. É a entidade na qual as formas originais de todos os seres foram fixadas de maneira imutável. Ela recebe a realidade das possibilidades e a condição do lugar e do nível, e o nome de “o Lugar”. E da terra até esta Nuvem não existe nenhum Nome representando Deus Altíssimo fora os Nomes de ação. No mundo inteiro, inteligível e perceptível, não existe nenhum traço de outra coisa.”
                E saiba que se você não se detiver na Nuvem, Ele lhe revelará o Sopro do Misericordioso(an-nafas ar-rahmani). É a origem da Nuvem.
                E se você não se detiver aí, Ele lhe revelará o lado dos Nomes de Transcendência. Depois os Nomes de ação se desfarão. Você adquirirá o conhecimento da negação, e será honrado acima da totalidade do mundo. E você saberá que grau lhe é necessário.
                (*) Perguntaram ao Profeta: “Onde estava Deus antes da Criação do mundo?” Ele respondeu: “Numa nuvem. Não havia espaço nem acima nem abaixo.” (N.T.)
[36]             “E se você não se detiver”, você será elevado à unicidade essencial e “apagado” neste lugar. O sheikh disse:
                “Este apagamento (mahw) é para os eleitos – que Deus lhes conceda suas bênçãos – o apagamento do caracteres habituais, o desenraizamento dos vícios, e de tudo o que o Real vela e nega. Ele – seja exaltado! - disse: “Deus extirpa e e estabelece o que Ele escolheu” (Corão, XIII, 39). Por conseguinte, ele estabeleceu o apagamento. Entre os legistas, o termo correspondente é “ab-rogação”(*). Trata-se de uma ab-rogação divina. Deus Altíssimo eleva [aquele que Ele escolheu] e o apaga quando se produz uma determinação na existência e no ser positivos. Em si, isso significa o fim do intervalo emprestado à sua existência, e a passagem além da fronteira que continua “até um tempo fixado” (Corão, VI, 2). Pois Ele disse: “Tudo dura até um tempo fixado e permanece estabelecido até um momento determinado” (Corão, XX, 129). Em seguida Ele elimina este fim, mas não sua forma essencial ('ayn), pois foi dito “durar até um tempo fixado” [e as formas essenciais não tem sua existência no tempo]. E quando chega o tempo fixado, sua “continuidade” (ou “fluxo”) cessa, mas sua forma original permanece.”
                (*) Ab-rogar = revogar, anular. (N.T.)
[37]             “Depois retirado”. O sheikh disse:
                “A ausência (ghayba) é para as pessoas a ausência de coração no conhecimento daquilo que se passa no mundo, pois sua atenção se concentra naquilo que as impressiona. Quando não e trata de mais do que isto, não passa da ausência numa manifestação divina. Não é correto que a ausência se deva a uma coisa criada que suscita emoção; [deveria ser antes] porque estamos [verdadeiramente] ocupados, ausentes das condições deste mundo. E é nisto que o Grupo [das pessoas da verdade] se distingue dos outros, po0rque a ausência [em si mesma] existe virtualmente em todos os grupos. A ausência que caracteriza este grupo é devida à concentração imposta pela verdade, e se acontece na dependência da manifestação, de modo que no que lhes concerne [a ausência] é nobre e louvável. E as pessoas e o Deus Altíssimo conhecem graus diferentes de ausência, embora sejam todos devidos a uma concentração imposta pela verdade. A ausência dos gnósticos é a ausência com a verdade, da verdade;  a ausência das outras pessoas de Deus Altíssimo é ausência com a verdade, da Criação. A ausência dos maiores dentre aqueles que conhecem a Deus é ausência com a Criação, da Criação, porque eles tomaram consciência de que não existe outra existência senão Deus, que dá forma à determinações possíveis das formas originais imutáveis.”
[38]                            “Depois esmagado”. É uma expressão que designa a desaparição das estruturas da sua realidade, operada pelo poder dominante da revelação da Unicidade essencial.
[39]             “Você será afirmado.” O sheikh, que Deus lhe conceda suas bênçãos, disse:
                “A afirmação [ou a fixidez: ithbat] é a ordem predestinada do mundo em sua totalidade. Assim, qualquer um que procure a ab-rogação da ordem habitual certamente viola o adab, a regra da boa conduta, e se mostra ignorante. O que alguns chamam de deslocamento do hábito é em si um hábito, pois o constante deslocamento do hábito é um hábito.  Da mesma forma, o costume não é obliterado se não for em sua afirmação. Mas [para que seja o caso], aquele que empreende esta afirmação deve estar em contato com o Real, e isto deve ser para salvaguardar este contato, que ele estabelece os princípios relativos aos costumes. Pois seu Amigo os instituiu por amizade e consentimento. Como ser Seu amigo, entreter uma relação com Ele, e ao mesmo tempo decidir – malgrado Ele – eliminar aquilo que a Sabedoria achou bom afirmar? Sobretudo pelo fato de que quem toma parte nesta etapa sabe certamente que Deus se mostra “sábio e onisciente” naquilo que ele estabelece e suscita. Portanto ele deverá afirmar aquilo que seu Amigo afirma. Se ele não o fizer, e buscar a obliteração [daquilo que Deus afirmou], trata-se de um polemista. Quem polemiza com você não é seu amigo, e você não é amigo dele. Esta pessoa está próxima da intransigência. Mas o amigo da afirmação está perpetuamente em relação com a Verdade, de sorte que ele afirma os princípios relativos aos costumes e Lhe dá testemunho afirmando-os. Ele não está estabelecido firmemente em sua [amizade] se ele procura a ab-rogação, [mesmo momentânea] das leis e não sua obliteração.”
[40]               Cada Profeta manifesta um aspecto particular do discurso divino, e “fala” na “linguagem” deste aspecto, representando uma Palavra. Os santos que realizam esta relação perfeita são assim os herdeiros dos profetas que os primeiros manifestaram. O Profeta Maomé, enquanto Selo do Cumprimento dos profetas, contém em si a totalidade destas palavras proféticas. (N.T.)
[41]             “Agora que ele chegou ao seu destino”, é mantido solidamente lá aonde sua busca terminou, ele é chamado “aquele que se detém” – o capturado, o consumido, e ele vê ser-lhe atribuída a metade da perfeição, “a vinda sem retorno”, “enquanto ele não empreender seu retorno”. Quando ele retorna, a perfeição da perfeição lhe é atribuída. “Aqueles que se detêm” designa os que chegaram ao destino para o qual dirigiram-no suas predisposições. Pois não existe fim que não esteja relacionado ao seu princípio. A existência de uma finalidade absoluta é inimaginável; de outro modo a realidade seria invertida.
                “Aqueles que são absorvidos neste estado”, que é o fim de seu caminho, “como por exemplo Abu-'Igal” al Maghribi, dentre os grandes que alcançaram o objetivo, “e outros”, como Abu-Yazid Bistami, ao chegar entre os buscadores da Presença, foi honrado com o manto de vice-regente e embaixador, e a quem foi dito: “Saia para a Minha criação tomando a Minha forma, e quem quer que o veja, Me vê...”; “nele”, representando este estado  em que eles são absorvidos, “Deus os guarda em si e eles são ressuscitados” porque uma pessoa morre como ela viveu, e é ressuscitada tal como morreu.
[42]               “Eles são os adeptos dos estados, comparados com os mestres que contamos entre nós”, que são adeptos das estações.
[43]               “Ubudiyya”. Saiba que Ubudiyya, a servidão, é a característica essencial do servidor. É a essência da pobreza, portanto da possibilidade. Ubudiyya é a atenção dada integralmente à contemplação que convém ao servidor, sua observância contínua em cada estado, revelação, divulgação, contemplação, e etapa. E o serviço é aquele decorrente das exigências da servidão. O fana’ na ubudiyya é a não-existência da contemplação considerada [da posição] da suserania, e uma concentração igual sobre todos os aspectos [do Real que se apresentam].
[44]               “A mais sublime” porque ela engloba [todas] as portas... e convoca para a totalidade dos Nomes.
[45]             “Os dois diferem unicamente no modo como se dirigem às pessoas, pois o discurso do santo é diferente do discurso do profeta.”  O santo se dirige a todos os que estão atrás dele e  o seguem. O profeta se dirige a todos os que estão adiante, em razão de uma autoridade fundamental, e não porque eles o seguem. O santo se exprime mantendo-se atrás do véu de seu profeta, enquanto que  o profeta se exprime sem véu, ou seja sem mediação de um outro profeta.
[46]             “...o que não é o nosso caso” porque aquele que segue, na medida em que segue, jamais atinge a posição daquele que o precede. E não há santo senão na medida em que segue, pois a santidade é a essência do ato de seguir.
[47]             “A ascensão dos profetas é feita pela própria luz fundamental”, ou seja pelo conhecimento divinamente revelado. “Fundamental”, porque ele se espalha sobre eles dese a origem e não ulteriormente, e somente os profetas sobrem por esta luz. “Enquanto que a ascensão dos santos se faz por meio daquilo que esta luz concede providencialmente” a uma predisposição à santidade, “por esta luz” que se derrama sobre todo aquele que se colocar sob ela. Um grau de santidade não possui a luz fundamental senão na medida atribuída à sua forma original. A predisposição à santidade não é outra coisa senão isto. A capacidade dos santos cresce com o esforço humano. Assim o santo não sobe a não ser pela força desta luz fundamental que lhe é concedida na medida do seu mérito. Esta ascensão se faz pela luz, porque a ascensão da Verdade é escura aos olhos dos gnósticos. Esta luz é o conhecimento revelado por meio do qual Ele os esclarece. Ela é dada aos profetas sem preparação. Assim, a qualidade de profeta não pode ser conquistada. O sheikh disse, é assim que ele pensa. E ela é dada aos santos unicamente porque eles a mereceram, pelas obras que eles receberam do profeta. As obras do espírito não tomam parte nesta preparação, pois a santidade é conquistada pelas obras da Lei sagrada, e não pelas da reflexão.
[48]               “Saiba que Maomé”, por ser [como é dito no célebre hadith] profeta enquanto Adão ainda se encontrava entre a água e a argila, “é quem deu a todos os profetas e mensageiros” sua ciência, suas Vias sagradas e suas “estações” e estados “no Mundo dos Espíritos” porque ele é o guardião dos segredos divinos. Pois seu espírito é o primeiro Intelecto, tesoureiro do Divino e princípio do mundo do registro e da inscrição, a realidade da primeira determinação que está na origem de todas as determinações. Assim, conforme o Nome “o Oculto”, por sua realidade e seu espírito ele é o dispensador de tudo o que é dado. Segundo o Nome “o Manifesto” todos aqueles que distribuem seus dons são seus embaixadores e seus discípulos. Eles recebem dele em Nome do Oculto, e regem este mundo em Nome do Manifesto. E assim sua dominação não cessará “até que ele seja enviado a um corpo”, o corpo físico, às [raças] “negras e vermelhas” [ou seja toda a humanidade].
[49]             “...os profetas que deram testemunho dele” na época de sua aparição na carne, como Khidr, que a paz esteja com ele, que segundo o sheikh é um dos profetas, e que encontrou o Mensageiro, no mundo material, dele recebendo os dons, e que o seguiu. Esta expressão não faz referência a nada que a tradição sagrada contradiga [o que significa que não pode haver aí uma retomada em questão da dignidade de Maomé enquanto último dos profetas], pois isto não seria correto nem segundo o ensinamento transmitido nem segundo a intuição. “Ou que descerão” do céu “depois dele” ou seja depois de Maomé Trata-se de Jesus, que a paz esteja com ele, que descerá no final dos tempos, governará pela nossa Lei, sacrificará o porco, destruirá as cuzes, e chamará os homens à comunidade de Maomé, a paz e a bênção estejam com ele. Ele é o Selo da Santidade geral.
[50]             “Eventos que ultrapassam o comum o acompanharão naturalmente.” Ele possuirá a plena consciência de todos os estados na medida em que eles venham a existir. Isto é necessário para “o exato equilíbrio dos pratos da balança” (Corão LV, 9) e para a não-existência de “pequenos pesos e medidas.”
                “Ele não cessará de dizer a cada sopro...” os sopros do Misericordioso, cujo objeto é uma criação renovada; ou interpretando de outro modo, a cada sopro humano – o que é a interpretação mais evidente.
                “Enquanto a esfera celeste se move-se graças ao Teu sopro.” O sheikh disse: “Então você conhecerá o ensinamento sufi segundo o qual a esfera celeste opera sua revolução por meio do sopor do mundo, o mundo que é respirado. Isto quer dizer que a causa de sua revolução é a existência deste sopro; por meio desta revolução, Deus renova o sopro.”
[51]             “O Momento” (waqt) é uma expressão que designa o seu estado no tempo. Este estado não está ligado nem ao passado nem ao futuro. Trata-se de um existente entre dois inexistentes. Se seu Momento é a fonte do seu estado, você é filho do seu Momento, e o seu Momento determinará aquilo que você é, porque ele existe e você não, você é ilusório e ele é positivo. Se seu Momento é obediência, e a contemplação que acolhe a servidão qualquer que seja o estado, então você será contado entre os que permanecerão. Caso contrário, você estará no número dos que serão efêmeros. No primeiro caso seu Momento será a proximidade, no segundo uma distância; porém, de um modo ou de outro, o Momento lhe dispensará inevitavelmente sua experiência. Se seu Momento for a proximidade, sua experiência virá da Presença da proximidade; se seu Momento for a distância, sua experiência irá derivar  da Presença da distância. E quem quer que se lamente sobre seu passado e preencha o momento presente com seu passado, está entre os que serão tornados distantes. Pois ele deixa escorregar por entre os dedos aquilo que o momento exige, absorvendo-se no que não volta mais. É a essência da não-existência. E quem se preocupa com o futuro está na mesma situação.
[52]             “Agora que o coração os deseja ardentemente”, porque o desejo obsedante (shahwa), como disse o sheikh, é um desejo natural limitado. Por conseguinte este desejo não está ligado a nada se não for pela inclinação ou por um impulso natural. Se alguém descobre em si uma inclinação que não é devida a um impulso natural – como por exemplo um pendor para os significados abstratos, as altas essências espirituais, a perfeição, a visão e o conhecimento de Deus – ele não precisa descartar esta inclinação. Mas se sua inclinação o dirige para as coisas pelo prazer que lhe trazem suas imaginações mentirosas, então [esta mesma inclinação] está ligada ao desejo obsedante. Trata-se [de uma atração] baseada na forma. Pois a imaginação, quando faz corpo com o que não  tem forma – e isto decorre da ação da natureza – simplesmente cessa.
                O sheikh disse: “A vontade é um atributo espiritual divino e natural... Se a inclinação está ligada ao imaterial sem imaginação (...) trata-se de uma inclinação da vontade, não de um desejo natural. Pois o desejo obsedante não tem efeito sobre as entidades independentes da matéria, mas a vontade está ligada a todo objeto em relação com a alma e o intelecto, quer  este objeto desperte [o apetite] quer não. O desejo obsedante está ligado apenas à alma que obtém um prazer particular.”
[53]             “Himma e muitas outras coisas ainda” - um culto externo, que é a perfeição do seu exterior.
[54]             “E se” aquele que busca estiver dotado da preparação que descrevemos, e “alcançar a essência da realidade” - a essência da realização na forma - “e sua atenção for dissolvida” - ou seja, sua vontade dissolvida na de Deus – ele saberá que sua vontade é um ramo que deriva da vontade de Deus. Deus Altíssimo disse: “E tu não desejarás outra coisa do que aquilo que Deus deseja” (Corão, LXVI, 33). Se Deus não quisesse que o buscador da verdade chegasse a Ele, o buscador jamais chegaria. Existem mais passagens no Corão do q ue podemos citar aqui, mas entre elas está esta: “Ele se voltará para eles a fim de que eles se voltem para Ele” (Corão, IX, 118), e esta outra: “Ele os ama tanto quanto eles lhe devotam este amor” (Corão, V, 54). Pois a realidade é a negação dos vestígios dos seus atributos pelos atributos d'Ele, que age através de você, em você, por você, e que você não é. “E não existe criatura viva senão aquelas que Ele ergueu pela mecha de sua cabeça” (Corão, XI 56) A dissolução do himma é a essência da realização do ser humano em sua forma [vale dizer, na sua verdadeira forma humana por essência], porque seus atributos tornam-se neste momento a essência dos atributos divinos. Assim, entenda bem.
                E saiba que a viagem para Deus é limitada, porque ela pressupõe atravessar a distância ilusória [que separa o homem de Deus] e que é a essência do mundo. E quanto à viagem em Deus, que é conhecimento d'Ele em Seus atributos, esta é infinita; porque Seus atributos – seja Ele exaltado – não têm fim. É por isso que a viagem para Deus tem um fim, “e a viagem para aquilo que está além não tem limite”.
                Aquele que chegou declara pela voz “daquele que chegou”, aquele em quem alguns aspectos de Deus – Seus Nomes – foram revelados, “não convém” que Deus exista no limite de sua essência “senão desta maneira” -  senão como se tornou aquele que atingiu o objetivo. Pois [em todos os outros casos] isto O limitaria. Enquanto que Ele – glórias Lhe sejam dadas – não conhece condição nem limite. Ou segundo uma outra interpretação da frase: “Não é necessário” que o que chegou tenha chegado como ele veio a se tornar aí, mas que isto tenha acontecido “no interesse do espanto que suscita erguer os véus”. E todas as coisas são as faces de Deus, que compõem Sua forma essencial. E “pelo conhecimento que suscita a contemplação ele se volta para fazer face ao que se encontra além de cada aparência”, ou seja para o que está além daquilo que lhe apareceu segundo suas possibilidades; pois o conhecimento tem uma vastidão incompatível com estreitezas de qualquer tipo, [não pode ser confinada nos limites daquele que o busca, mas o transforma]. Do mesmo modo como Ele se manifesta ao Seu servidor pela revelação, esta prepara o servidor para uma outra revelação; e assim prossegue até o infinito. Do mesmo modo, a própria saciedade é inimaginável no amor perfeito do Real, e a limitação e o fim são inconcebíveis para aquele que recebe a revelação. O sheikh disse a respeito: “É como se a experiência daquele que é consciente penetrasse em seu coração graças Àquele cujo ser é infinito, impondo-lhe uma finitude para que a manifestação seja assim tornada possível naquele” que está “além das aparências. Pois Aquele que é aparente, embora não seja senão um em Sua essência, é infinito em Seus aspectos. Eles são Seu rastro em nós”. Seus atributos jamais são finitos, salvo em nós. Assim nos Lhe damos os atributos, e Ele nos dá o ser. E se a viagem para o que se situa além não  tem limite, é porque cada contemplação nos coloca face a face com uma contemplação ainda mais elevada. E isto não tem fim.
                “É para que isto se reproduza que os trabalhadores trabalham, e para que isto se reproduza que os pretendentes se enfrentam.”