sábado, 16 de fevereiro de 2019

René Guénon - Silêncio e solidão




(Este é o único estudo que René Guénon dedica integralmente à Tradição Indoamericana, ainda que ao largo de sua obra se faça uma constante menção a esta tradição de origem pré-colombiana, em particular aos povos da Mesoamérica, ou América Central - publicado originalmente em Études Traditionelles, em março de 1949, constituiu o cap. V de Mélanges, coleção póstuma de diversos artigos publicada por Gallimard, 1976, não traduzido ainda para o português)

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Entre os índios da América do Norte, e em todas as tribos sem exceção, existe, além dos ritos de distinto gênero que têm um caráter coletivo, a prática de uma adoração solitária e silenciosa, que é considerada como sendo a mais profunda e de caráter mais elevado[1]. Os ritos coletivos, com efeito, têm sempre, em um grau ou outro, algo de relativamente exterior; dizemos em um grau ou outro, porque, a respeito disto, é necessário naturalmente, nela como em qualquer outra tradição, estabelecer uma diferença entre os ritos que poderiam qualificar-se de exotéricos, ou seja, aqueles em que todos participam indistintamente, e os ritos iniciáticos. Ademais, longe de excluir estes ritos ou opô-los de alguma maneira, a adoração de que se trata somente lhes superpõe como sendo, em certo modo, de uma outra ordem; e inclusive há que dar-se inteiro lugar para pensar que, para ser inteiramente eficaz e produzir resultados efetivos, deve pressupor a iniciação como uma condição necessária[2].

A propósito desta adoração, se falou, em ocasiões, de “súplica”, mas isto é evidentemente inexato, porque não há nela nenhuma petição, de qualquer natureza que esta pudesse ser; as súplicas que geralmente se formulam em cantos rituais não podem dirigir-se para outra parte além das diversas manifestações divinas[3], e vamos ver que é de outra coisa que aqui se trata na realidade. Certamente seria muito mais justo falar de “encantação”, tomando este termo no sentido que definimos em outro lugar[4]; poderia igualmente dizer-se que é uma “invocação”, entendendo-a em um sentido exatamente comparável ao do dhikr na tradição islâmica, mas afirmando que se trata essencialmente de uma invocação silenciosa e completamente interior[5]. Eis aqui o que a respeito dela escreve Ch. Eastman[6]: “A adoração ante o Grande Mistério era silenciosa, solitária, sem complicação interior; era silenciosa porque todo discurso é necessariamente débil e imperfeito; assim pois as almas de nossos ancestrais alcançavam a Deus em uma adoração sem palavras; era solitária porque pensavam que Deus está mais perto de nós na solidão, e os sacerdotes não estavam ali para servir de intermediários entre o homem e o Criador[7]”. Não pode, com efeito, haver intermediários em caso semelhante, posto que esta adoração tende a estabelecer uma comunicação direta com o Princípio supremo, que é designado aqui como o “Grande Mistério”.

Não somente não é senão no e pelo silêncio que se pode obter esta comunicação, já que o “Grande Mistério” está mais além de toda forma e toda expressão, como ainda o próprio silêncio “é o Grande Mistério”; como se deve entender exatamente esta afirmação? Primeiro, pode recordar-se a propósito que o verdadeiro “mistério” é essencial e verdadeiramente inexprimível, que não pode evidentemente ser representado mais do que pelo silêncio[8]; porém, ademais, sendo o “Grande Mistério” o não manifestado, o próprio silêncio, que é propriamente um estado de não manifestação, é por isso mesmo como que uma participação ou uma conformidade com a natureza do Princípio supremo. Por outro lado, o silêncio, referido ao Princípio, é, poderia dizer-se, o Verbo não proferido; é por ele que “o silêncio sagrado é a voz do Grande Espírito”, na medida em que este é identificado com o próprio Princípio[9]; e esta voz, que corresponde à modalidade principial do som, que a tradição hindu designa como para ou não manifestada[10], é a resposta ao chamado do ser em adoração: chamado e resposta são igualmente silenciosos, constituem respectivamente uma aspiração e uma iluminação puramente interiores.

Para que isto seja assim, é necessário por outro lado que o silêncio seja na realidade algo mais que a simples ausência de qualquer palavra ou discurso, ainda que estes sejam formulados unicamente de maneira inteiramente mental; com efeito, este silêncio é essencialmente, para os índios, “o perfeito equilíbrio entre as três partes do ser”, ou seja, daquilo que, na terminologia ocidental, pode designar-se como o espírito, a alma e o corpo, pois todo ser inteiro, em todos os elementos em que lhe constituem, há de participar na adoração para que possa obter-se um resultado plenamente válido. A necessidade desta condição de equilíbrio é fácil de compreender, pois o equilíbrio é, na manifestação mesma, como a imagem ou o reflexo da indistinção principial do não manifestado, indistinção que está dessa maneira, bem representada pelo silêncio, de sorte que de nenhum modo há motivo para surpreender-se da assimilação que assim se estabelece entre este e o equilíbrio[11].

Quanto à solidão, convém antes de tudo observar que sua associação com o silêncio é de certa maneira normal e até necessária, e que, inclusive em presença de outros seres, aquele que faz em si o silêncio perfeito forçosamente se “ilha” deles por isto mesmo; por outro lado, silêncio e solidão também se encontram implicados um e outra igualmente no significado do termo sânscrito mauna, que é sem dúvida, na tradição hindu, o que se aplica mais exatamente a um estado como aquele de que falamos presentemente[12]. A multiplicidade, sendo inerente à manifestação, e acentuando-se tanto mais, pode-se dizer, quanto mais se desce a graus inferiores desta, distancia-se pois necessariamente do não manifestado; por isso o ser que quer colocar-se em comunicação com o Princípio deve antes de tudo fazer a unidade nele próprio, tanto quanto lhe é possível, mediante a harmonização e o equilíbrio de todos seus elementos, e deve também, ao mesmo tempo, “ilhar-se” de toda multiplicidade exterior a ele. A unificação assim realizada, inclusive se ainda não é mais do que relativa na maior parte dos casos, não deixa de ser, segundo a medida das possibilidades atuais do ser, um certo conformar-se à “não dualidade” do Princípio; adquirindo o “ilhamento” em seu limite superior, o sentido do termo sânscrito kaivalya, que, ao expressar ao mesmo tempo as ideias de perfeição e totalidade, chega, quando possui toda a plenitude de seu significado, a designar o estado absoluto e incondicionado, o do ser que alcançou a Liberação final.

Em um grau muito menos elevado que este, e que inclusive não pertence ainda senão às fases preliminares da realização, pode observar-se isto: ali onde necessariamente há dispersão, a solidão, na medida em que se opõe à multiplicidade e coincide com uma certa unidade, é essencialmente concentração; e já se sabe que importância dão efetivamente à concentração todas as doutrinas tradicionais sem exceção, enquanto meio e condição indispensável de qualquer realização. Parece-nos pouco útil insistir mais sobre este último ponto, mas há outra consequência sobre a qual ainda temos que chamar mais particularmente a atenção, já ao terminar: é que o método do qual se trata, por opor-se a toda dispersão das potências do ser, exclui o desenvolvimento separado e mais ou menos desordenado de tais ou quais de seus elementos, e em particular o dos elementos psíquicos cultivados de certo modo por eles mesmos, desenvolvimento que é sempre contrário à harmonia e ao equilíbrio do conjunto. Para os índios, segundo o Sr. Paul Coze, “parece que, para desenvolver o orenda[13], intermediário entre o material e o espiritual, é necessário antes de tudo dominar a matéria e tender ao divino”; isto em suma equivale a dizer que eles não consideram legítimo abordar o domínio psíquico mais do que “por alto”, não se obtendo resultados dessa ordem senão de uma maneira inteiramente acessória e “por acréscimo”, o que com efeito é o único meio de evitar seus perigos; e, acrescentaremos, isto se encontra seguramente tão longe quanto é possível da vulgar “magia” que em demasia e sem critério se lhes atribuiu, e que é inclusive tudo o que acreditaram ver os observadores profanos e superficiais, sem dúvida porque eles mesmos não tinham a menor noção do que pode ser a verdadeira espiritualidade.



[1] As informações que aqui utilizamos são tomadas principalmente da obra do Sr. Paul Coze L’Oiseau Tonnerre, de onde igualmente extraímos nossas citações. Este autor dá prova de uma notável simpatia com respeito aos índios e sua tradição; a única ressalva que haveria lugar de se fazer, é que parece fortemente influenciado pelas concepções “metapsiquistas”, o que afeta visivelmente algumas de suas interpretações e em especial entranha às vezes certa confusão entre o psíquico e o espiritual; mas esta consideração não tem, por outro lado, que intervir na questão da qual nos ocupamos aqui.
[2] Não é preciso dizer que, aqui como sempre, entendemos a palavra iniciação exclusivamente em seu verdadeiro sentido, e não naquele em que abusivamente empregam este termo os etnólogos quando designam os ritos de agregação à tribo; haveria que ter-se bastante cuidado de distinguir estas duas coisas, que de fato existem, uma e outra, entre os índios.
[3] Estas manifestações divinas parecem estar, na tradição dos índios, repartidas mais habitualmente segundo uma divisão quaternária, conforme um simbolismo cosmológico que se aplica à vez aos dois pontos de vista macrocósmico e microcósmico.
[4] Ver Aperçus sur L’Initiation, cap. XXIV.
[5] Não carece de interesse a observação, a propósito disto, que certas turuq islâmicas, em particular a dos Naqshabendiyah, praticam assim mesmo um dhikr silencioso.
[6] Ch. Eastman, citado pelo Sr. Paul Coze, é um Sioux por origem, que, apesar de uma educação “branca”, parece haver conservado bem a consciência de sua própria tradição; temos por demais razões para pensar que um caso assim se encontra na realidade longe de ser tão excepcional quanto alguém pudesse crer quando se atêm a certas aparências inteiramente interiores.
[7] O último termo, cujo emprego sem dúvida se deve aqui unicamente aos hábitos da linguagem europeia, não é certamente exato se se quiser ir ao fundo das coisas, já que, na realidade, o “Deus Criador” não pode encontrar-se senão entre os aspectos manifestados do Divino.
[8] Ver Aperçus sur L’Initiation, cap. XVII.
[9] Fazemos esta restrição porque, em alguns casos, a expressão “Grande Espírito”, ou o que aqui se traduz, aparece também como sendo somente a designação particular de uma das manifestações divinas.
[10] Cf. Aperçus sur L’Initiation, cap. XLVII.
[11] Necessita-se apenas recordar que a indistinção principial de que se trata aqui nada tem em comum com o que também pode designar-se com o mesmo termo, porém tomado em um sentido inferior; queremos dizer, a pura potencialidade indiferenciada da matéria prima.
[12] Cf. L’Homme et son devenir selon le Vêdânta, 3a. Edição, cap. XXIII.
[13] Este termo orenda pertence propriamente à língua dos iroqueses, entretanto nas obras europeias se tomou por costume, por maior simplicidade, de empregá-lo uniformemente em lugar de todos os demais termos de igual significado que se encontram entre os diferentes povos índios; o que ele designa é o conjunto de todas as diferentes modalidades da força psíquica e vital; por conseguinte é quase exatamente o equivalente ao prâna da tradição hindu e do Chi da tradição extremo oriental.