quinta-feira, 1 de outubro de 2015

René Guénon - O Simbolismo da Cruz - Parte I


INTRODUÇÃO


No início de L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, apresentamos aquela obra como constituindo o começo de uma série de estudos nos quais poderíamos, conforme o caso, seja expor diretamente certos aspectos das doutrinas metafísicas do Oriente, seja adaptar estas mesmas doutrinas do modo que nos parecesse mais inteligível e proveitoso, embora sempre permanecendo fiel ao seu espírito. É esta série de estudos que retomamos aqui, após have-la interrompido momentaneamente em razão de outros trabalhos necessários a certas considerações oportunas, nos quais descemos antes de tudo ao domínio das aplicações contingentes; mas, mesmo nestes casos, jamais perdemos de vista os princípios metafísicos, que são o único fundamento de todo verdadeiro ensinamento tradicional.

 

Em L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, mostramos como um ser tal como o homem é encarado por uma doutrina tradicional e de ordem puramente metafísica, sempre nos mantendo, tão estritamente quanto possível, dentro da rigorosa exposição e da interpretação exata da própria doutrina, ou ao menos só saindo daí para assinalar, quando a ocasião permitia, as suas concordâncias com outras formas tradicionais. De fato, jamais pretendemos permanecer fechados exclusivamente em uma forma determinada, o que aliás seria bem difícil quando se tem consciência da unidade essencial que se dissimula sob a diversidade das formas mais ou menos exteriores, que são como que vestimentas diferentes de uma só e mesma verdade. Se, de modo geral, tomamos como ponto de vista central aquele das doutrinas hindus, por razões já explicadas (1), isto não nos impediria de recorrer, quando cabível, aos modos de expressão de outras tradições, desde que se tratassem de tradições verdadeiras, regulares e ortodoxas, entendendo estes termos no sentido que já definimos em outras ocasiões (2). É isto, em particular, que faremos aqui, de forma mais livre do que na obra precedente, porque trata-se, não mais da exposição de um certo ramo doutrinal, tal como ele existe numa dada civilização, mas da explicação de um símbolo que é precisamente daqueles que são comuns a quase todas as tradições, o que é para nós a indicação de que ele se liga diretamente à grande Tradição primordial.

 

É preciso, a este respeito, insistir um pouco sobre um ponto que é particularmente importante para dissipar muitas confusões, infelizmente freqüentes em nossa época: trata-se da diferença capital que existe entre “síntese” e “sincretismo”. O sincretismo consiste em juntar desde fora elementos mais ou menos disparatados e que, vistos deste modo, não poderiam nunca ser unificados; não passa, no fundo, de uma espécie de ecletismo, com tudo o que este comporta sempre de fragmentário e de incoerente. Trata-se de algo puramente exterior e superficial; os elementos, tomados de todos os lados e reunidos assim artificialmente não possuem senão o caráter de empréstimos, incapazes de se integrar efetivamente numa doutrina digna deste nome. A síntese, ao contrário, efetua-se essencialmente desde dentro; queremos com isto dizer que ela consiste propriamente em encarar as coisas na unidade de seu princípio, em ver como elas derivam e dependem deste princípio, e em reuni-las assim, ou antes em tomar consciência de sua união real, em virtude de uma ligação interior, inerente àquilo que há de mais profundo em sua natureza. Para aplicar isso ao que nos ocupa no momento, podemos dizer que haverá sincretismo todas as vezes em que se limite a emprestar elementos de diferentes formas tradicionais, para soldá-los de certa forma exteriormente uns aos outros, sem saber que, no fundo, não há mais do que uma doutrina única da qual estas formas não passam de expressões diversas, adaptações a condições mentais particulares, em relação com circunstâncias determinadas de tempo e lugar. Em semelhante caso, nada válido pode resultar deste conjunto; para usarmos uma comparação facilmente compreensível, termos, ao invés de um conjunto organizado, uma maçaroca informe de partes inutilizáveis, porque falta aí aquilo que poderia dar uma unidade análoga à de um ser vivo ou de um edifício harmonioso; e é próprio do sincretismo, em razão mesmo de sua exterioridade, ser incapaz de realizar uma tal unidade. Ao contrário, haverá síntese quando se parta da própria unidade, sem perde-la de vista através da multiplicidade de suas manifestações, o que implica que se tenha alcançado, para além das formas, a consciência da verdade principial que se reveste delas para se exprimir e se comunicar na medida do possível. Assim, poderemos nos servir de uma ou outra destas formas, conforme a ocasião, exatamente do modo como podemos, para traduzir um mesmo pensamento, empregar linguagens diferentes  conforme as circunstâncias, a fim de se fazer compreender por diferentes interlocutores; é isso, por sinal, que certas tradições designam simbolicamente como o “dom das línguas”. As concordâncias entre todas as formas tradicionais representam, podemos dizer, “sinonimias” reais; é assim que nós as encaramos e, do mesmo modo como a explicação de certas coisas pode ser mais fácil em tal língua do que em outra,, uma destas formas poderá servir melhor que as outras à exposição de certas verdades e torná-las mais facilmente inteligíveis. É portanto perfeitamente legítimo utilizar, em cada caso, a forma que parecer mais adaptada ao que se pretende; não há nenhum inconveniente de passar de uma a outra, com a condição de se conhecer sua equivalência, o que só pode ocorrer partindo de seu princípio comum. Assim, não haverá sincretismo; este, de resto, não passa de um ponto de vista “profano”, incompatível com a noção mesma de “ciência sagrada” à qual estes estudos se referem exclusivamente.

 

A cruz, dissemos, é um símbolo que, sob formas diversas, se encontra quase em toda parte, e isto desde épocas muito recuadas; ele está portanto longe de pertencer exclusivamente ao Cristianismo, como querem alguns. É preciso mesmo dizer que o Cristianismo, ao menos sob seu aspecto exterior e geralmente conhecido, parece ter perdido um pouco de vista o caráter simbólico da cruz, para ver nela não mais do que o signo de um fato histórico; na realidade, estes dois pontos de vista não se excluem, e mesmo o segundo não é mais do que uma conseqüência do primeiro; mas este modo de ver as coisas é a tal ponto estranho para a maioria dos nossos contemporâneos que devemos nos deter um pouco aqui para evitar qualquer mal-entendido. De fato, existe uma tendência a se pensar que a admissão de um sentido simbólico carrega em si a rejeição do sentido literal ou histórico; esta opinião resulta da ignorância da lei de correspondência que é o fundamento mesmo de todo o simbolismo, e em virtude de que cada coisa, procedendo essencialmente de um princípio metafísico do qual ela tira toda a sua realidade, traduz ou exprime este princípio ao seu modo e segundo sua ordem de existência, de tal maneira que, de uma ordem à outra, todas as coisas se encadeiam e se correspondem para concorrer à harmonia universal e total que é, dentro da multiplicidade da manifestação, como que um reflexo da própria unidade principial. É por isso que as leis de um domínio inferior podem sempre ser tomadas para simbolizar as realidade de uma ordem superior, onde elas tem sua razão profunda, que é a um só tempo seu princípio e seu fim; e podemos lembrar aqui, o erro das modernas interpretações “naturalistas” das antigas doutrinas tradicionais, que invertem pura e simplesmente a hierarquia das relações entre as diferentes ordens de realidades. Assim, os símbolos ou os mitos jamais tiveram por função, como quer uma teoria muito popular hoje em dia, a de representar os movimentos dos astros; mas a verdade é que encontramos freqüentemente figuras inspiradas nestes e destinadas a exprimir analogamente coisas bastante diferentes, porque as leis destes movimentos traduzem fisicamente princípios metafísicos dos quais eles dependem. O que dizemos a respeito dos fenômenos astronômicos, podemos dizer igualmente de todos os demais gêneros de fenômenos naturais: estes fenômenos, pelo fato mesmo de derivarem de princípios superiores e transcendentes, são na verdade símbolos deles; e é evidente que isto em nada afeta a realidade própria que estes fenômenos enquanto tais possuem dentro da ordem de existência à qual pertencem; pelo contrário, é nisto mesmo que se fundamenta esta realidade, pois, se separadas de sua dependência em relação aos princípios, todas as coisas não são mais que um puro nada. Com os fatos históricos dá-se o mesmo: também eles conformam-se necessariamente à lei de correspondência de que falamos e, por  isso mesmo, traduzem ao seu modo as realidades superiores, da qual eles são de certa forma a expressão humana; e acrescentaremos aqui que é isso que os torna interessantes do nosso ponto de vista, inteiramente diferente, como se vê, daquele em que se colocam os historiadores “profanos” (3). Este caráter simbólico, embora comum a todos os fatos históricos, deve ser particularmente mais claro quando se referem àquilo que chamamos a “história sagrada”; e é o que encontramos, de modo evidente, em todas as circunstâncias da vida do Cristo. Se ficou entendido o exposto, ver-se-á de imediato que não só não há aí razão para negar estes eventos, tratando-os como “mitos” puros e simples, mas ao contrário, estes eventos só poderiam ter sido como foram, e não poderiam ser diferentes; como seria possível atribuir um caráter sagrado àquilo que seria completamente desprovido de todo significado transcendente? Em particular, se o Cristo morreu sobre a cruz, foi em função do valor simbólico que a cruz possui em si e que sempre foi reconhecido por todas as tradições; é assim que, sem diminuir em nada seu significado histórico, podemos vê-la como derivada deste próprio valor simbólico.


Uma outra conseqüência da lei de correspondência é a pluralidade de sentidos incluídos em cada símbolo: uma coisa qualquer, de fato, pode ser considerada como representando não apenas os princípios metafísicos, mas também as realidades de todas as ordens que lhe são superiores, mesmo que ainda contingentes, porque estas realidades das quais ela depende também mais ou menos diretamente desempenham em relação a ela o papel de “causas segundas”; e o efeito sempre pode ser tomado como símbolo da causa, em qualquer grau que seja, porque tudo o que ele é não passa da expressão de alguma coisa que é inerente à natureza desta causa. Estes sentidos simbólicos múltiplos e hierarquicamente superpostos não se excluem mutuamente, assim como não excluem o sentido literal; ao contrário, eles são perfeitamente concordantes entre si, porque eles exprimem na verdade as aplicações de um mesmo princípio a ordens diversas; e assim eles se corroboram e se completam integrando-se na harmonia da síntese total. É isto aliás que faz do simbolismo uma linguagem bem menos limitada do que a linguagem comum, e o que o torna apto à expressão e à comunicação de certas verdades; é por isso que ele abre possibilidades de concepção verdadeiramente ilimitadas;  é por isso que ele constitui a linguagem iniciática por excelência, o veículo indispensável a todo ensinamento tradicional.

A cruz possui assim, como todo símbolo, múltiplos sentidos; mas nossa intenção não é de desenvolver todos igualmente aqui, e alguns apenas indicaremos brevemente. O que temos essencialmente em vista, de fato, é o sentido metafísico, que é aliás o primeiro e o mais importante, por ser propriamente o sentido principial; todos os demais não passam de aplicações contingentes e mais ou menos secundárias; e, se contemplarmos alguma destas aplicações, será sempre, no fundo, para ligá-las à ordem metafísica, pois é isto o que, do nosso ponto de vista, as torna válidas e legítimas, conforme à concepção, hoje completamente esquecida do mundo moderno, das “ciências tradicionais”.

 













NOTAS


1.      Orient et Occident, 2ª ed., pgs. 203-207.
2.      Introduction Générale à l’Étude des Doctrines Hindoues, 3ª parte, cap. III; L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, 3ª ed., cap. I.
3.      “A própria verdade histórica não é sólida se não derivar do Princípio” (Tchoang-Tseu, cap. XXV)

 

 

 

 

 




I

A MULTIPLICIDADE DE ESTADOS DO SER


Um ser qualquer, seja ele o ser humano ou outro, pode evidentemente ser visto a partir de muitos pontos de vista diferentes, diríamos mesmo de uma indefinidade de pontos de vista, de importância bastante desigual, mas todos igualmente legítimos dentro de seus respectivos domínios, com a condição de que nenhum deles pretenda ultrapassar seus limites próprios, e menos ainda tornar-se exclusivo e chegar à negação dos outros. Se é verdade que isto é assim, e se consequentemente não podemos recusar a nenhum destes pontos de vista, mesmo ao mais secundário e contingente dentre eles, o lugar que lhe pertence pelo simples fato de ele corresponde a alguma possibilidade, não é menos evidente, por outro lado, que, do ponto de vista metafísico, o único que nos interessa aqui, a consideração de um ser sob seu aspecto individual é necessariamente insuficiente, pois quem diz metafísica diz universal. Nenhuma doutrina que se limite à consideração dos seres individuais poderia merecer o nome de metafísica, qualquer que possa ser seu interesse sob outros aspectos; uma tal doutrina poderá sempre ser chamada de “física”, no sentido original do termo, pois ela se atém exclusivamente ao domínio da “natureza”, ou seja da manifestação, e ainda assim com a restrição de enfocar apenas a manifestação formal, ou mesmo mais especificamente um dos estados que a constituem.

Longe de ser em si mesmo uma unidade absoluta e completa, como querem a maior parte dos filósofos ocidentais – e os modernos sem exceção – o indivíduo não passa na verdade de uma unidade relativa e fragmentária. Ele não é um todo fechado e auto-suficiente, um “sistema fechado” como a “mônada” de Leibnitz; e a noção de “substância individual”, entendida neste sentido, e à qual os filósofos atribuem grande importância, não tem nenhum alcance metafísico; no fundo, não é outra coisa que a noção lógica do “sujeito”, e, se ela pode ser de grande utilidade sob este prisma, ela não pode ser legitimamente transportada para além dos limites deste ponto de vista especial. O indivíduo, mesmo visto em toda a extensão de que é susceptível, não é um ser total, mas apenas um estado particular de manifestação de um ser, estado esse submetido a certas condições especiais e determinadas de existência, e que ocupa um dado lugar dentro da série indefinida de estados do ser total. É a presença da forma dentre as condições de existência que caracteriza um estado como individual; é claro, de resto, que esta forma não deve ser concebida necessariamente como espacial, pois ela só o é no mundo corpóreo, sendo o espaço precisamente uma das condições que definem este mundo como tal (1).

Devemos relembrar aqui, ao menos sumariamente, a distinção fundamental do “Si” e do “eu”, ou da “personalidade” e da “individualidade”, sobre que já demos anteriormente todas as explicações necessárias (2). O “Si”, dissemos, é o princípio transcendente e permanente do qual o ser manifestado, o ser humano por exemplo, não é mais do que uma modificação transitória e contingente, modificação que não pode de modo algum afetar o princípio. Imutável em sua natureza própria, ele desenvolve suas possibilidades em todos as modalidades de realização, em multitude indefinida, que são para o ser total outros tantos estados diferentes, dos quais cada qual possui suas condições de existência limitativas e determinantes, e dos quais apenas um constitui a porção, ou melhor a determinação particular deste ser que é o “eu” ou a individualidade humana. De resto, este desenvolvimento só é tal, a bem dizer, quando o vemos do lado da manifestação, fora da qual tudo deve estar necessariamente em perfeita simultaneidade no “eterno presente”; e é porisso que a “permanente atualidade” do “Si” não é afetada. O “Si” é assim o princípio pelo qual existem, cada qual dentro de seu próprio domínio, que podemos chamar um grau de existência, todos os estados do ser; e isto deve entender-se, não apenas dos estados manifestados, individuais como o estado humano ou supra-individuais - em outros termos, formais ou informais – mas também, embora o termo “existir” se torne então impróprio, dos estados não-manifestados, compreendendo todas as possibilidades que, por sua própria natureza, não são susceptíveis de nenhuma manifestação, e mais as próprias possibilidades de manifestação em modo principial; mas este “Si” propriamente dito não tem nem pode ter, na unidade total e indivisível de sua natureza íntima, nenhum princípio que lhe seja exterior.

Dissemos que o termo “existir” não pode aplicar-se com propriedade ao não-manifestado, vale dizer ao estado principial; de fato, tomado em seu sentido estritamente etimológico (do latim ex-stare), este termo indica o ser dependente em relação a um princípio outro que não ele, ou, em outros termos, aquele que não possui em si sua razão suficiente, ou seja o ser contingente, que é a mesma coisa que o ser manifestado (3). Quando falarmos da Existência, iremos entende-la como a manifestação universal, com todos os estados ou graus que ela comporta, que podem cada qual ser designados igualmente como “mundos”, e que são em multitude indefinida; mas este termo não convém mais ao grau do Ser puro, princípio de toda manifestação e ele próprio não-manifestado, nem, com mais razão ainda, àquilo que está para além do próprio Ser.

Podemos coloca em princípio, antes de qualquer coisa, que a Existência, vista universalmente segundo a definição que lhe demos, é única em sua natureza íntima, como o Ser é um em si-mesmo, e em razão precisamente desta unidade, porque a Existência universal não é outra coisa que a manifestação integral do Ser, ou, para falar mais exatamente, a realização, em modo manifestado, de todas as possibilidades que o Ser comporta e contém principialmente em sua própria unidade. Por outro lado, tanto quanto a unidade do Ser sobre a qual está fundamentada, esta “unicidade” da Existência, se podemos usar um termo que pode parecer um neologismo (4), não exclui a multiplicidade de modos da manifestação nem é por eles afetada, pois ela compreende igualmente todos estes modos pelo fato mesmo de serem eles igualmente possíveis, sendo que esta possibilidade implica em que cada um deva realizar-se segundo as condições que lhe são próprias. Resulta daí que a Existência, em sua “unicidade”, comporta, como já indicamos, uma indefinidade de graus, que correspondem a todos os modos da manifestação universal; e esta multiplicidade indefinida dos graus da Existência implica correlativamente, para um ser qualquer visto na sua totalidade, uma multiplicidade igualmente indefinida de graus possíveis, dos quais cada um deve realizar-se em um grau determinado da Existência.

Esta multiplicidade de estados do ser, que é uma verdade metafísica fundamental, é verdadeira quando nos limitamos a considerar os estados de manifestação, como fizemos até agora e como faremos sempre que se trate apenas da Existência; ela é então verdadeira a fortiori se considerarmos ao mesmo tempo os estados de manifestação e os estados de não-manifestação, cujo conjunto constitui o ser total, visto então, não apenas dentro do domínio restrito da Existência, mesmo tomado na integralidade de sua extensão, mas dentro do domínio ilimitado da Possibilidade universal. Deve compreender-se, com efeito, que a Existência não encera todas as possibilidades de manifestação, e ainda com a restrição de que estas possibilidades só são concebidas na medida em que se manifestem efetivamente, pois, na medida em que não se manifestarem, permanecendo em princípio, manter-se-ão no grau do Ser. Consequentemente, a Existência está longe de ser toda a Possibilidade, concebida como verdadeiramente universal e total, fora e além de todas as limitações, compreendendo-se aí mesmo esta primeira limitação que constitui a determinação mais primordial de todas, ou seja a afirmação do Ser puro (5).

Quando se trata dos estados de não-manifestação de um ser, é preciso ainda distinguir o grau do Ser daquilo que lhe está além; neste último caso, o  termo “ser” não pode mais ser aplicado em seu sentido próprio; mas somos obrigados, em função das constituição da linguagem, a faze-lo na falta de um termo mais adequado, mas atribuindo-lhe apenas um valor puramente analógico e simbólico, sem o que nos seria impossível expressar as idéias de que se trata. Assim é que poderemos continuar a falar do ser total como sendo ao mesmo tempo manifestado em certos estados e não-manifestado em outros, sem que isto implique em que, para estes últimos, devamos nos restringir à consideração daquilo que corresponde ao grau do Ser (6).

Os estados de não-manifestação são essencialmente extra-individuais e, assim como o “Si” principial do qual não podem ser separados, eles não podem de modo algum ser individualizados; quanto aos estados de manifestação, alguns são individuais, enquanto que outros são não-individuais, diferença que corresponde, segundo indicamos, à distinção da manifestação formal e da manifestação informal. Se considerarmos em particular o caso do  homem, sua individualidade atual, que constitui propriamente falando o estado humano, não passa de um estado de manifestação em meio a uma indefinidade de outros, que devem ser concebidos todos como igualmente possíveis e, porisso mesmo, como existindo ao menos virtualmente, senão efetivamente realizados para o ser que enfocamos, sob um aspecto relativo e parcial, neste estado individual humano.














NOTAS


1.      Ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. II e X.
2.      Ibid., cap. II.
3.      Resulta daí que, rigorosamente falando, a expressão vulgar “existência de Deus” é um contra-senso, quer se entenda por “Deus” o Ser, como se faz usualmente, quer se entenda o Princípio Supremo que está para além do Ser.
4.      Este termo é o que permite traduzir mais exatamente a expressão árabe equivalente Wahdatul-wujûd. – Sobre a distinção que se deve fazer entre a “unicidade” da Existência, a “unidade” do Ser e a “não-dualidade” do Princípio Supremo, ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. VI.
5.      Os filósofos, para edificar seus sistemas, pretendem sempre, conscientemente ou não, impor alguma limitação à Possibilidade universal, o que é contraditório, mas que é exigido pela própria constituição de um sistema como tal; seria curioso fazer a história das diferentes teorias filosóficas modernas, que são as que apresentam em maior grau este caráter sistemático, colocando-se do ponto de vista das supostas limitações da Possibilidade universal.
6.      Sobre o estado que corresponde ao grau do Ser e o estado incondicionado que esta além do Ser, ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XIV e XV, 3ª Ed.



II

O HOMEM UNIVERSAL


A realização efetiva dos estados múltiplos do ser refere-se à concepção daquilo que as diferentes doutrinas tradicionais, e notadamente  o esoterismo islâmico, chamam de “Homem Universal” (1); esta concepção estabelece a analogia constitutiva entre a manifestação universal e sua modalidade individual humana, ou, na linguagem do hermetismo ocidental, entre o “macrocosmo” e o “microcosmo” (2). Esta concepção pode aliás ser vista em diferentes graus e com extensões variadas, mas a analogia permanece a mesma em todos os casos (3): assim, ela pode restringir-se à humanidade em si, encarada seja em sua natureza específica, seja mesmo na sua organização social, pois é sobre esta analogia que repousa essencialmente, entre outras aplicações, a instituição das castas (4). Em outro grau, mais extenso, a mesma noção pode abarcar o domínio de existência correspondente a todo o conjunto de um estado do ser determinado, qualquer que seja ele (5); mas este significado, sobretudo se se trata do estado humano (mesmo tomado no desenvolvimento integral de todas as suas possibilidades), ou de qualquer outro estado individual, é ainda “cosmológico”, e o que devemos essencialmente fazer aqui é uma transposição metafísica da noção de homem individual, que deve efetuar-se no domínio extra-individual e supra-individual. Neste sentido, a concepção de “Homem Universal” irá se aplicar antes de mais nada ao conjunto dos estados de manifestação; mas podemos torná-la ainda mais universal, na plenitude do termo, estendendo-a igualmente aos estados de não-manifestação, portanto à realização completa e perfeita do ser total, entendido no sentido superior que já indicamos, e sempre com a ressalva de que o termo “ser” só poderá ser tomado então com um significado puramente analógico.

É essencial frisar aqui que toda transposição metafísica deste gênero deve ser vista como a expressão de uma analogia no sentido próprio da palavra; e lembraremos, para maior precisão, que toda verdadeira analogia deve ser aplicada em sentido inverso: é isto que representa o símbolo bem conhecido do “selo de Salomão”, formado pela união de dois triângulos opostos (6). Assim, por exemplo, do mesmo modo como a imagem num espelho é invertida em relação ao objeto, aquilo que é primeiro e maior na ordem principial é, ao menos aparentemente, o último e o menor na ordem da manifestação (7). Para fazermos uma comparação no campo da matemática, é assim que o ponto geométrico é quantitativamente nulo e não ocupa nenhum espaço, embora seja o princípio pelo qual se produz todo o espaço, que é o desenvolvimento ou a expansão de suas próprias virtualidades. É assim também que a unidade aritmética é o menor dos números se a colocamos diante da sua multiplicidade, mas é o maior em princípio, porque contém a todos virtualmente e produz toda a sua série pela simples repetição indefinida de si-mesma.

Existe portanto analogia, mas não similitude, entre o homem individual, ser relativo e incompleto, tomado aqui como o tipo de um certo modo de existência (ou mesmo de toda a existência condicionada), e o ser total, incondicionado e transcendente em relação a todos os modos particulares e determinados da existência, inclusive em relação à Existência pura e simples, e que chamamos simbolicamente de “Homem Universal”. Devido a esta analogia, podemos dizer que, se o “Homem Universal” é o princípio de toda a manifestação, o homem individual deverá ser, na sua própria ordem, sua resultante e seu resultado - e é poroso que todas as tradições concordam em considerá-lo como formado pela síntese de todos os elementos e de todos os reinos da natureza (8). Desta forma, a analogia se mostra exata; mas para justificá-la completamente, e com ela a própria designação do “Homem Universal”, seria preciso expor considerações sobre o papel cosmológico do ser humano, que nos levariam muito longe do presente estudo. Diremos, no momento, apenas que o ser humano tem, no seu domínio da existência individual, um papel que podemos chamar de “central” em relação a todos os outros seres que se situam no mesmo domínio; este papel faz do homem a expressão mais completa do estado individual em questão, cujas possibilidades se integram por assim dizer nele (ao menos sob um certo aspecto, e com a condição de tomá-lo, não apenas na sua modalidade corporal, mas no conjunto de todas as suas modalidades, na extensão indefinida de que são susceptíveis) (9). Aí residem as razões mais profundas da nossa analogia; e é esta situação em particular que permite transpor a noção de homem, mais do que de qualquer outro ser que viva no mesmo estado, para transformá-la na concepção tradicional do “Homem Universal” (10).

Acrescentaremos ainda uma observação que é das mais importantes: é que o “Homem Universal” só existe virtualmente, e de certa forma negativamente, como se fosse um arquétipo ideal, até que a realização efetiva do ser total lhe dê uma existência atual e positiva; e isto vale para qualquer ser, considerado como efetuando ou devendo efetuar esta realização (11). Diremos ainda,  que este modo de falar que apresenta como sucessivo o que é em si essencialmente simultâneo, só é válido quando nos colocamos do ponto de vista particular de um estado de manifestação do ser, tomado como ponto de partida da realização. Por outro lado, é evidente que expressões como “existência negativa” ou “existência positiva”, não devem ser tomadas ao pé da letra, mesmo porque aí a própria noção de “existência” só se aplica numa certa medida e até um certo ponto; mas as imperfeições inerentes à linguagem, pelo fato de que ela está ligada às condições do estado humano (e mais particularmente da sua modalidade corporal e terrestre), obrigam às vezes ao emprego, com todo o cuidado, de “imagens verbais” deste tipo, sem o que seria impossível expressar as verdades metafísicas em línguas tão pouco adaptadas para isto como o são as línguas ocidentais.

















NOTAS


(1)    “Homem Universal” (em árabe El-Insânul-Kâmil) é o Adam Qadmôn da Cabala hebraica e o “Imperador” (Wang) da tradição extremo-oriental (Tao Te King, XXV). - No esoterismo islâmico existe um grande número de tratados de vários autores sobre El-Insânul-Kâmil; os mais importantes são os de Mohyiddin ibn Arabi e de Abdul-Karim El-Jîlî.
(2)    Já  explicamos em outra parte como entendemos estes termos (L’Homme et son devenir selon le Vêdânta, cap. II e IV). - Estes termos, de origem grega,  tem seus exatos equivalentes em árabe (El-Kawnul-kebir e El-Kawnuç-çeghir).
(3)    Podemos dizer o mesmo da teoria dos ciclos, que é outra expressão dos estados de existência; todo ciclo secundário reproduz a seu modo, em menor escala, as fases correspondentes do ciclo maior a que está subordinado.
(4)    Cf. Purusha-Shûkta do Rig-Vêda, X, 90
(5)    A este respeito, e a propósito do Vaishwânara da tradição hindu, ver L’Homme et son devenir selon le Vêdânta, cap. XII.
(6)    Ver ibid., cap. I e III.
(7)    Mostramos que isto se acha claramente expresso tanto nos textos dos Upanishads como nos Evangelhos.
(8)    Assinalemos notadamente, a este respeito, a tradição islâmica relativa à criação dos anjos e do homem. – Não é preciso dizer que o significado real destas tradições não tem nada em comum com qualquer concepção “transformista”, ou mesmo simplesmente “evolucionista”, no sentido mais geral desta palavra, nem com nenhuma das fantasias modernas inspiradas mais ou menos diretamente de tais concepções antitradicionais.
(9)    A realização da individualidade humana integral corresponde ao “estado primordial”, de que já falamos muitas vezes, e que é chamado de “estado edêmico” na tradição judaico-cristã.
(10)           Lembraremos, para evitar qualquer equívoco, que sempre tomamos o termo “transformação” em seu sentido estritamente etimológico, que é o de “passagem além da forma”, portanto para além de tudo o que pertence à ordem das existências individuais.
(11)           Em um certo sentido, estes dois estados negativo e positivo do “Homem Universal” correspondem respectivamente, na linguagem da tradição judaico-cristã, ao estado anterior à “queda” e ao estado consecutivo à “redenção”; trata-se, segundo este ponto de vista, dos dois Adão de que fala São Paulo (1ª Epístola aos Coríntios, XV), o que mostra ao mesmo tempo a relação entre o “Homem Universal” e o Logos (cf. Autorité Spirituelle et Pouvoir Temporel, 2ª ed., pg. 98).













III

O SIMBOLISMO METAFÍSICO DA CRUZ


A maior parte das doutrinas tradicionais simboliza a realização do “Homem Universal” por um signo que é sempre o mesmo e que se liga diretamente à Tradição primordial: é o signo da cruz, que representa claramente o modo como esta união é atingida pela comunhão perfeita entre a totalidade dos estados do ser, harmônica e conformemente hierarquizados, num desabrochar integral nos dois sentidos da “amplitude” e da “exaltação”. De fato, este duplo desabrochar do ser pode ser visto como efetuando-se, de um lado, horizontalmente, ou seja em um certo nível ou grau de existência determinado, e de outro lado, verticalmente, ou seja na superposição hierárquica de todos os seres. Assim, o sentido horizontal representa a “amplitude” ou a extensão integral da individualidade tomada como base para a realização; esta extensão consiste no desenvolvimento indefinido de um conjunto de possibilidades submetidas a certas condições específicas de manifestação; no caso do ser humano, esta extensão não é, por sinal, limitada à parte corporal da individualidade, mas ela compreende todas as modalidades desta, sendo o estado corporal apenas uma destas modalidades. O sentido vertical representa a hierarquia, ainda mais indefinida, dos estados múltiplos, dos quais cada qual, visto também na sua integralidade, é um conjunto de possibilidades, relacionadas a outros tantos “mundos” ou graus, todos compreendidos na síntese total do “Homem Universal” (2). Na representação da cruz, a expansão horizontal corresponde à indefinidade das modalidades possíveis de um só estado do ser considerado integralmente, e a superposição vertical à série indefinida de estados do ser total.

É claro que o estado cujo desenvolvimento é representado pela linha horizontal pode ser qualquer estado; de fato, ele será o estado no qual o ser que pretende realizar o “Homem Universal” se ache atualmente manifestado, e este estado será para ele o ponto de partida e o suporte, ou a base, para esta realização. Qualquer estado poderá fornecer a um ser esta base; se consideramos especificamente o estado humano, é porque este nos concerne diretamente, de modo que iremos tratar do caso dos seres que partem deste estado para efetuar a realização; mas, do ponto de vista metafísico, este caso não constitui, de modo algum, um caso privilegiado.

A totalização efetiva do ser, que está além de toda condição, é a mesma coisa que a doutrina hindu chama de “Libertação” (Moksha), ou que o esoterismo islâmico chama de “Identidade Suprema” (3). No Islã ensina-se que o “Homem Universal”, representado pelo conjunto “Adão-Eva”, tem o mesmo número que Allah, o que é bem uma expressão da “Identidade Suprema” (4).  É preciso fazer aqui uma observação importante: pode-se objetar que a designação “Adão-Eva”, embora susceptível de transposição, só se aplica em sentido próprio ao estado humano primordial; o que acontece é que a “Identidade Suprema”, embora só seja realizada efetivamente na totalização dos estados múltiplos, já se acha realizada virtualmente no estado “edêmico”, na integração do estado humano ligado ao seu centro original, que é o ponto de comunicação direta com os outros estados (5).

De resto, podemos dizer que a integração do estado humano, ou de qualquer outro estado, representa, na sua ordem e grau, a própria totalização do ser; isto ficará mais claro pelo simbolismo geométrico que iremos explicar. Isto acontece porque podemos encontrar em todas as coisas, e notadamente no homem individual (e mais particularmente ainda no homem corporal), a correspondência e a figuração do “Homem Universal”; cada parte do Universo, seja um mundo ou um ser particular, é sempre e em toda parte análogo ao todo.  Leibnitz tinha razão em admitir que a “substância individual” (com as reservas que já fizemos) deve conter em si-mesma uma representação integral do Universo, o que é uma aplicação correta da analogia entre o “macrocosmo” e o “microcosmo” (6); mas ao limitar-se à consideração da “substância individual”, vendo-a como um ser completo e fechado sem nenhuma comunicação com algo que o ultrapasse, ele não pôde passar da “amplitude” à “exaltação”, privando a sua teoria de um verdadeiro alcance metafísico (7).

Para voltarmos ao simbolismo da cruz, diremos que ela tem vários sentidos, mais ou menos secundários e contingentes, além do significado metafísico e principial que expusemos; e é natural que seja assim, dada a pluralidade de sentidos que cabem em qualquer símbolo. Antes de desenvolvermos a representação geométrica do ser e de seus estados múltiplos, tal como ela é sintetizada no signo da cruz, e de nos aprofundarmos neste símbolo, vamos falar um pouco destes outros sentidos; embora esta considerações não sejam propriamente o objeto de nosso estudo, tudo de certo modo é ligado, e às vezes mais estreitamente do que supomos, em virtude da lei de correspondência que é o fundamento de todo simbolismo.

NOTAS


(1) Estes termos são da linguagem do esoterismo islâmico, que é bem preciso sobre este ponto. - No mundo ocidental, o símbolo da “Rosa-Cruz” teve exatamente o mesmo sentido, antes que a incompreensão moderna deturpasse seu sentido; o significado da roda será explicado mais adiante.
(2) “A partir do momento em que o homem, no “grau universal”, se exalta na direção do sublime, a partir do momento em que surgem nele os outros graus (estados não-humanos), em perfeito desabrochar, ele é o “Homem Universal”. A exaltação e a amplidão atingiram sua plenitude no Profeta (que é assim idêntico ao “Homem Universal”)” (Epístola sobre a Manifestação do Profeta, pelo Sheikh Mohammed ibn Fadlallah El-Hindi). - Isto permite entender as palavras ditas a cerca de vinte anos por um alto representante do Islam: “Se os cristãos tem o sinal da cruz, os muçulmanos tem a doutrina”. Acrescentemos que, na ordem esotérica, a relação do “Homem Universal” com o Verbo e com o Profeta não deixa haver, no fundo da doutrina, nenhuma divergência entre Cristianismo e Islam, entendidos no seu verdadeiro significado. - Parece que o conceito de Vohu-Mana, entre os antigos Persas, também corresponda ao do “Homem Universal”.
(3) Ver a respeito os últimos capítulos de L’Homme et son devenir selon le Vêdânta.
(4) Este número, que é 66, é dado pela soma dos valores numéricos das letras que formam os nomes Adam wa Hawâ. Segundo o Gênesis, o homem, “criado macho e fêmea” (ou seja num estado andrógino) “é a imagem de Deus”; e, segundo a tradição islâmica, Allah ordenou aos anjos adorar o homem (Corão, II, 34; XVII, 61; XVIII, 50). O estado andrógino original é o estado humano completo, no qual os complementares se equilibram, ao invés de se opor. Acrescentemos que, na tradição hindu, uma expressão deste estado está contido simbolicamente na palavra Hamsa, onde os dois pólos complementares do ser são relacionados com as duas fases da respiração, que representam as fases da manifestação universal.
(5) Os dois estágios da realização da “Identidade Suprema” correspondem à distinção entre a “imortalidade efetiva” e a “imortalidade virtual” (ver L’Homme et son devenir selon le Vêdânta, cap. XVIII, 3a. ed.).
(6) Já assinalamos que Leibnitz, ao contrário dos filósofos modernos, possuía alguns dados tradicionais, embora elementares e incompletos, e que parece aliás não tê-los entendido muito bem.
(7) Outra falha na concepção de Leibnitz foi a introdução do ponto de vista moral nas considerações de ordem universal, pelo “princípio do melhor”, no qual ele via a “razão suficiente” de toda a existência. Digamos ainda que a distinção que ele estabelece entre o possível e o real, não possui valor metafísico, pois tudo o que é possível é porisso mesmo real à sua maneira.


IV

AS DIREÇÕES DO ESPAÇO


Alguns escritores ocidentais, com pretensões mais ou menos iniciáticas, quiseram dar à cruz um significado exclusivamente astronômico, dizendo que ela é “um símbolo da junção crucial que a eclíptica forma com o equador”, e também “uma imagem dos equinócios, a partir do momento em que o sol, em seu curso anual, cobre sucessivamente estes dois pontos” (1). A bem dizer, se isto ocorre, é porque, como já indicamos, os fenômenos astronômicos podem, de um ponto de vista mais elevado, ser considerados como símbolos, e assim podemos encontrar neles, como  em muitas outras coisas, esta figuração do “Homem Universal”, a que aludimos no capítulo precedente; mas, se estes fenômenos são símbolos, é evidente que eles não são a coisa simbolizada, e que o fato de encará-los assim constitui uma inversão das relações normais entre as diversas ordens de realidades (2). Quando encontramos a figura da cruz nos fenômenos astronômicos ou outros, ela tem exatamente o mesmo valor simbólico que possui uma cruz que traçarmos nós mesmos (3); isto prova apenas que o verdadeiro simbolismo, longe de ter sido inventado artificialmente pelo homem, encontra-se na própria natureza, ou, melhor dizendo, a natureza inteira não é senão um símbolo das realidades transcendentes.

Mesmo restabelecendo assim a sua interpretação correta, as duas fases citadas contém cada qual um erro: com efeito, por um lado, a eclíptica e o equador não formam uma cruz, pois seus dois planos não se cortam em ângulo reto; por outro, os dois pontos equinociais são evidentemente unidos por uma só linha reta, de modo que, aqui, a cruz aparece menos ainda. O que se deve considerar em realidade é, por uma parte, o plano do equador e o eixo que, unido os dois pólos, é perpendicular a esse plano; são, por outra, as duas linhas que juntam respectivamente os dois pontos solsticiais e os dois equinociais; teremos assim o que podemos chamar, no primeiro caso, a cruz vertical e, no segundo, a cruz horizontal. O conjunto dessas duas cruzes, que tem o mesmo centro, forma a cruz de três dimensões, cujos braços estão orientados segundo as seis direções do espaço (4); estas correspondem aos seis pontos cardeais que, com o próprio centro, formam o septenário.

Já tivemos ocasião de assinalar a importância atribuída pelas doutrinas orientais a estas sete regiões do espaço, assim como sua correspondência com certos períodos cíclicos (5); será útil reproduzir aqui um texto que encontramos então e que mostra que a mesma coisa se encontra também nas tradições ocidentais: “Clemente de Alexandria diz que de Deus, ‘Coração do Universo’, partem as extensões indefinidas que se dirigem, uma para o alto, outra para baixo, essa para a direita, aquela para a esquerda, uma para frente, outra para trás; dirigindo seu olhar para estas seis extensões como para um número sempre igual, ele termina o mundo; ele é o começo e o fim (o alfa e o ômega); nele terminam as seis fases do tempo, e é dele que eles recebem sua extensão indefinida; este é o segredo do número sete” (6).

Este simbolismo é também o da Qabbalah hebraica, que fala do “Santo Palácio”, ou “Palácio Interior” como situado no centro das seis direções do espaço. As três letras do Nome divino Jehovah (7), por sua sêxtupla permutação segundo as seis direções, indicam a imanência de Deus no seio do Mundo, ou seja a manifestação do Logos no centro de todas as coisas, no ponto primordial do qual as extensões indefinidas são a expansão ou o desenvolvimento: “Ele formou do Thohu (vazio) alguma coisa e fez daquilo que nada era aquilo que é. Ele talhou grandes colunas de éter impalpável (8). Ele refletiu, e a Palavra (Memra) produziu todos os objetos e todas as coisas pelo seu Nome Um” (9). Este ponto primordial de onde é proferida a Palavra divina não se desenvolve somente no espaço como dissemos, mas também no tempo; ele é o “Centro do Mundo” sob todos os aspectos, ou seja, ele é ao mesmo tempo o centro do espaço e o centro do tempo. Isto, bem entendido, tomado no sentido literal só concerne ao nosso mundo, o único em que as condições de existência podem ser expressas diretamente em linguagem humana; somente o mundo sensível está submetido ao tempo e ao espaço; mas, como se trata em realidade do Centro de todos os mundos, podemos passar à ordem supra-sensível efetuando uma transposição analógica na qual o espaço e o tempo guardam não mais que um significado puramente simbólico.

Vimos que as seis fases do tempo, para Clemente de Alexandria, correspondem respectivamente às seis direções do espaço: são, como dissemos, seis períodos cíclicos, subdivisões de um outro período mais geral, e às vezes representados como seis milênios. O Zohar, assim como o Talmud, divide a duração do mundo em períodos milenares. “O mundo subsistirá durante seis mil anos aos quais aludem as seis primeiras palavras do Gênese” (10); e esses seis milênios são análogos aos seis “dias” da criação (11). O sétimo milênio, como o sétimo “dia”, é o Sabbath, ou seja a fase de retorno ao Princípio, que corresponde naturalmente ao centro, considerado como a sétima região do espaço. Existe aí uma espécie de cronologia simbólica, que não deve evidentemente ser tomada ao pé da letra, assim como as que encontramos em outras tradições: Josephus (12) observa que seis mil anos formam dez “grandes anos”, sendo o “grande ano” correspondente a seis séculos (é o Naros caldeu); mas, em outras ocasiões, aquilo que se designa por esta mesma expressão é um período bem mais longo, de dez ou doze mil anos entre os Gregos e os Persas. Isto, aliás, não tem importância aqui, onde não se trata de calcular a duração real do nosso mundo, o que exigiriam um estudo aprofundado da teoria hindu dos Manvantaras; como não é a isto que nos propomos presentemente, basta tomar estas divisões com seus valores simbólicos. Diremos apenas que pode tratar-se de seis fases indefinidas, portanto de duração indeterminada, mais uma sétima que corresponde ao término de todas as coisas e ao seu restabelecimento no estado primeiro (13).

Voltemos à doutrina cosmogônica da Qabbalah, tal como está exposta no Sepher Ietsirah: “Trata-se, diz Vulliaud, do desenvolvimento a partir do Pensamento até a modificação do Som (a Voz), do impenetrável ao compreensível. Estamos em presença de uma exposição simbólica do mistério que tem por objeto a gênese universal e que se liga ao mistério da unidade. Em outras passagens, trata-se do “ponto” que se desenvolve por linhas em todos os sentidos (14), e que só se torna compreensível através do “Palácio Interior”. Trata-se do impalpável éter (Avir), onde se produz a concentração, de onde emana a luz (Aor)” (15). O ponto é efetivamente o símbolo da unidade; ele é o  princípio da extensão, que só existe pela sua irradiação (sendo que o “vazio” anterior é uma pura virtualidade), mas ele só se torna compreensível situando-se a si mesmo nesta extensão, da qual ele se torna então o centro, como explicaremos melhor adiante. A emanação da luz, que dá realidade à extensão, “fazendo do vazio alguma coisa e daquilo que não era isto que é”, é uma expansão que sucede à concentração; são as duas fases de aspiração e de expiração de que tanto se fala na doutrina hindu, e das quais a segunda corresponde à produção do mundo manifestado; e cabe notar aqui a analogia que existe também, a este respeito, com o movimento do coração e a circulação do sangue no ser vivo. Mas, prossigamos: “A luz (Aor) jorra do mistério do éter (Avir). O ponto escondido foi manifestado, ou seja a letra iod” (16). Esta letra representa hieroglificamente o Princípio, e diz-se que dela são formadas todas as outras letras do alfabeto hebraico, formação que, segundo o Sepher Ietsirah, simboliza a do mundo manifestado (17). Diz-se também que o ponto primordial incompreensível, que é o Um não-manifestado, forma três que representam o Começo, o Meio e o Fim (18), e que estes três pontos reunidos constituem a letra iod, que é assim o Um manifestado (ou mais exatamente afirmado enquanto princípio da manifestação universal), ou, para falar em linguagem teológica, Deus tornando-se “Centro do Mundo” através do seu Verbo. “Quando este iod foi produzido, diz o Sepher Ietsirah, o que restou desse mistério ou de Avir (o éter) escondido foi Aor (a luz)”; e, de fato, se tirarmos o iod da palavra Avir, resta Aor.

Vulliaud cita, a respeito, o comentário de Moïse de Léon: “Após lembrar que o Santo, bendito seja, incognoscível, só pode alcançado a partir de seus atributos (middoth) pelos quais Ele criou os mundos (19), comecemos pela exegese da primeira palavra da Thorah: Bereshit (20). Autores antigos nos ensinaram, relativamente a este mistério, que ele está escondido no grau supremo, o éter puro e impalpável. Este grau é a soma total de todos os espelhos posteriores (exteriores em relação ao próprio grau) (21). Eles procedem dele pelo mistério do ponto que é, ele próprio, um grau oculto que emana do éter puro e misterioso (22). O primeiro grau, absolutamente oculto (ou seja não-manifestado), não pode ser alcançado (23). Da mesma forma, o mistério do ponto supremo, embora profundamente escondido (24), pode ser alcançado no mistério do Palácio Interior. O mistério da Coroa suprema (Kether, a primeira das dez Sephiroth) corresponde ao do puro e inalcançável éter (Avir). Ele é a causa de todas as causas e a origem de todas as origens. É dentro deste mistério, origem invisível de todas as coisas, que o “ponto” oculto de onde tudo procede nasce. É por isso que está dito no Sepher Ietsirah: “Antes do Um, o que se pode contar?” O que quer dizer: antes desse ponto, o que se pode contar ou compreender (25)? Antes desse ponto não havia nada, exceto Ain, ou seja o mistério do éter puro e impalpável, assim chamado (por uma simples negação) devido a ser impossível de se compreender (26). O começo compreensível da existência acha-se no mistério do “ponto” supremo (27). E porque esse ponto é o “começo” de todas as coisas, ele é chamado “Pensamento” (Mahasheba) (28). O mistério do Pensamento criador corresponde ao “ponto” oculto. É no Palácio Interior que o mistério unido ao “ponto” oculto pode ser compreendido, pois o puro e inalcançável éter permanece sempre misterioso. O “ponto” é o éter tornado palpável (pela “concentração”, que é o ponto de partida de toda diferenciação) no mistério do Palácio Interior ou Santo dos Santos (29). Tudo, sem exceção, foi primeiramente concebido pelo Pensamento (30). E se alguém disser: “Veja! Há algo de novo no mundo!”, faça-o calar-se, pois isto já foi anteriormente concebido pelo Pensamento (31). Do “ponto” escondido emana o Santo Palácio interior (pelas linhas que saem desse ponto segundo as seis direções do espaço). É o Santo dos Santos, o qüinquagésimo ano (alusão ao Jubileu, que representa o retorno ao estado primordial) (32), também chamado a Voz que emana do Pensamento (33). Todos os seres e todas as causas emanam então da força do “ponto” superior. Eis o que existe, relativo ao mistério das três Sephiroth supremas” (34). Quisemos transcrever esta passagem completa, malgrado sua extensão, porque, além do seu interesse intrínseco, ela tem uma relação direta com o objeto de nosso estudo.

O simbolismo das direções do espaço será aplicado a tudo o que iremos tratar a seguir, seja do ponto de vista “macrocósmico”, como no que foi dito, seja do ponto de vista “microcósmico”. A cruz de três dimensões constitui, segundo a linguagem geométrica, um “sistema de coordenadas”, ao qual todo o espaço pode ser reportado; e o espaço aqui simbolizará o conjunto de todas as possibilidades, seja de um ser particular, seja da Existência universal. Este sistema é formado de três eixos, um vertical e os dois outros horizontais, que são três diâmetros retangulares de uma esfera com raio indefinido, e que, mesmo independentemente de qualquer consideração astronômica, podem ser vistos como orientados para os seis pontos cardinais: no texto que citamos, de Clemente de Alexandria, o alto e o baixo correspondem respectivamente ao Zênite e ao Nadir, a direita e a esquerda ao Sul e ao Norte, adiante e atrás ao Leste e ao Oeste; isto poderia justificar-se pelas indicações concordantes que se encontram em quase todas as tradições. Podemos dizer também que o eixo vertical é o eixo polar, ou seja a linha fixa que une os dois pólos e ao redor da qual todas as coisas cumprem a sua rotação; é portanto o eixo principal, enquanto que os dois outros eixos horizontais são secundários e relativos. Desses dois eixos horizontais, um, o eixo Norte-Sul, pode ser chamado também de eixo solsticial, e o outro, o eixo Leste-Oeste, pode ser chamado eixo equinocial, o que nos remete ao ponto de vista astronômico, em virtude de uma certa correspondência dos pontos cardeais comas fases do ciclo anual, mas cuja exposição completa nos levaria muito longe e não tem muita importância aqui, mas que encontrará seu lugar em outro estudo (35).























NOTAS


(1)    Essas citações são tiradas, como exemplo característico, de um autor maçônico bem conhecido, J.-M. Ragon (Rituel du grade de Rose-Croix, pgs. 25-28)
(2)    Convém lembrar aqui que é esta interpretação astronômica, insuficiente em si mesma e falsa quando se pretende exclusiva, que deu origem à famosa teoria do “mito solar”, inventada em fins do século XVIII por Dupuis e Volney, depois reproduzida por Max Müller e hoje em dia pelos principais representantes da auto-denominada “ciência das religiões”, que consideramos impossível de ser levada a sério.
(3)    Lembremos aliás, que o símbolo mantém sempre seu valor próprio, mesmo quando traçado sem intenção consciente, como acontece quando certos símbolos incompreendidos são conservados simplesmente como ornamentação.
(4)    Não se deve confundir “direções” com “dimensões” do espaço; existem seis direções, mas apenas três dimensões, cada qual comportando duas direções diametralmente opostas. É assim que a cruz de que falamos possui seis braços, mas é formada por apenas três retas, cada qual perpendicular às outras duas; cada braço é, segundo a linguagem geométrica, uma “semi-reta” dirigida em um certo sentido a partir do centro.
(5)    Le Roi du Monde, cap. VII.
(6)    P. Vulliaud, La Kabbale juive, tomo I, pgs. 215-216.
(7)    Este Nome é formado por quatro letras, iod he vau he, mas apenas três são diferentes, pois o he é repetido duas vezes.
(8)    Trata-se das “colunas” da árvore sefirótica: coluna do meio, da direita e da esquerda; voltaremos a isso mais tarde. É essencial notar, por outro lado, que o “éter” tratado aqui não deve ser entendido apenas como o primeiro elemento do mundo corporal, mas também num sentido superior obtido por transposição analógica, como acontece também com o Akâsha da doutrina hindu (ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. III).
(9)    Sepher Ietsirah, IV, 5.
(10)           Siphra di-Tseniutha: Zohar, II, 176 b.
(11)           Lembremos aqui a palavra bíblica: “Mil anos são como um dia aos olhos do Senhor”.
(12)           Antiquités judaïques, I, 4.
(13)           Este último milênio é sem dúvida assimilável ao “reino de mil anos” que é citado no Apocalipse.
(14)           Essas linhas são representadas como os “cabelos de Shiva” na tradição hindu.
(15)           La Kabbale juive, tomo I, pg. 217.
(16)           Ibid., tomo I, pg.217.
(17)           A “formação” (Ietsirah) deve ser entendida propriamente como a produção da manifestação a partir do estado sutil; a manifestação no estado grosseiro é chamada Asiah, enquanto que a manifestação informal chama-se Beriah. Já assinalamos esta exata correspondência dos mundos vistos pela Qabbalah com o Tribhuvana da doutrina hindu (L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta ,cap,V)
(18)           Esses três pontos podem, sob este aspecto, ser assimilados aos três elementos do monossílabo Aum, (Om) no simbolismo hindu, e também com o antigo simbolismo cristão (ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta , cap. XVI, 3ª ed., e Le Roi du Monde, cap. IV).
(19)           Encontramos aqui o equivalente da distinção que a doutrina hindu faz entre Brahma “não-qualificado” (nirguna) e Brahma “qualificado” (saguna), ou seja entre o “Supremo” e o “Não Supremo”, sendo este último Ishwara (ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, caps. I e X). – Middah significa literalmente “medida” (cf. o sânscrito mâtrâ).
(20)           Sabemos que é com esta palavra que se inicia o Gênese: “in Principio”.
(21)           Vemos que esse grau é o mesmo que o “grau universal” do esoterismo islâmico, no qual se totalizam sinteticamente todos os graus, ou seja todos os estados da Existência. A mesma doutrina utiliza a comparação do espelho e outras similares: é assim que, segundo uma expressão que já citamos, (L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. X), a Unidade, considerada como contendo em si todos os aspectos da Divindade (Asrâr Rabbaniyah ou mistérios dominicais), vale dizer todos os atributos divinos, expressos pelos nomes çifâtiyah (ver  Le Roi du Monde, cap. III), “é do Absoluto (o “Santo” ininteligível fora de Seus atributos) a superfície reverberante com inumeráveis facetas que magnifica toda criatura que aí se olha diretamente”; não é preciso dizer que é destes Asrâr Rabbaniyah que se trata aqui.
(22)           O grau representado pelo ponto, que corresponde à Unidade, é o do Ser puro (Ishwara na doutrina hindu).
(23)           Podemos, a propósito, lembrar o que ensina a doutrina hindu a respeito do que está para além do Ser, ou seja o estado incondicionado de Atmâ (ver  , cap. XV, 3ª ed., onde indicamos ensinamentos concordantes de outras tradições.
(24)           O Ser é ainda não-manifestado, mas ele é o princípio de toda manifestação.
(25)           A unidade é, de fato, o primeiro de todos os números; antes dela, não há nada que possa ser contado; e a numeração aqui é tomada como símbolo do conhecimento distintivo.
(26)           É o Zero metafísico, ou o “Não Ser” da tradição extremo-oriental, simbolizado pelo “vazio” (cf. Tao Te King, XI); já explicamos em outra parte porque as expressões de forma negativa são as únicas que ainda podem ser aplicadas para além do Ser (L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XV, 3ª ed.)
(27)           Ou seja no Ser, que é o princípio da Existência, a qual é a mesma coisa que a manifestação universal, assim como a unidade é o princípio e o começo de todos os números.
(28)           Porque todas as coisas devem ser concebidas pelo pensamento antes de serem realizadas exteriormente; isto deve se entender analogamente por uma transposição da ordem humana à ordem cósmica.
(29)           O “Santo dos Santos” era representado pela parte mais interior do Templo de Jerusalém, que era o Tabernáculo (mishkan) onde se manifestava a Shekinah, ou seja a “presença divina”.
(30)           É o Verbo enquanto Intelecto divino, que é, segundo uma expressão teológica cristã, o “lugar dos possíveis”.
(31)           É a “permanente atualidade” de todas as coisas no “eterno presente”.
(32)           Ver Le Roi du Monde, cap. III; lembraremos que 50=72 + 1. A palavra kol, “tudo”, em hebraico e árabe, tem como valor numérico 50. Cf. também as “cinqüenta portas da Inteligência”.
(33)           É ainda o Verbo, mas enquanto Palavra divina; ele é em primeiro lugar Pensamento no interior (ou seja em si mesmo), depois Palavra no exterior (ou seja em relação à Existência universal), sendo a Palavra a manifestação do Pensamento; e a primeira palavra proferida foi o Iehi Aor (Fiat Lux) do Gênese.
(34)           Citado em La Kabbale Juive, tomo I, pgs. 405-406.
(35)           Podemos notar ainda, a título de concordância, a alusão que São Paulo faz ao simbolismo das direções ou das dimensões do espaço, quando fala da “largura, do comprimento, da altura e da profundidade do amor de Cristo” (Epístola aos Efésios, III, 18). Aqui, apenas quatro termos são enunciados, ao invés de seis: os dois primeiros correspondem respectivamente aos dois eixos horizontais, cada um tomado em sua totalidade; os dois últimos correspondem às duas metades superior e inferior do eixo vertical. A razão desta distinção, no que concerne às duas metades do eixo vertical, é que elas se reportam a dois gunas distintos, e mesmo opostos em um certo sentido; ao contrário, os dois eixos horizontais inteiros se referem a um só e mesmo guna, como veremos no capítulo seguinte.


V

TEORIA HINDU DOS TRÊS GUNAS


Antes de avançarmos mais, devemos lembrar algumas coisas a respeito da teoria hindu dos três gunas (1); nossa intenção não é a de expor essa teoria completamente, com todas as suas aplicações, mas apenas apresentar aqui algumas considerações pertinentes ao assunto que vimos tratando. Estes três gunas são qualidades ou atributos essenciais, constitutivos e primordiais dos seres, vistos em seus diferentes estados de manifestação (2); não se trata de estados, mas de condições gerais às quais os seres estão submetidos, e pelas quais acham-se ligados de certa forma (3), e das quais eles participam segundo proporções indefinidamente variadas, em virtude de que repartem-se hierarquicamente dentro do conjunto dos “três Mundos” (Tribhuvana), vale dizer de todos os graus da Existência universal.

Os três gunas são: sattwa, a conformidade à essência pura do Ser (Sat), que é idêntico à luz do Conhecimento (Jnâna), simbolizada pela luminosidade das esferas celestes que representam os estados superiores do ser; rajas, o impulso que provoca a expansão do ser em um estado determinado, ou seja o desenvolvimento daquelas possibilidades suas que se situam num certo nível da Existência; enfim, tamas, a obscuridade, assimilada à ignorância (avidyâ), raiz tenebrosa do ser considerado em seus estados inferiores. Isto é verdadeiro para todos os estados manifestados do ser, quaisquer que sejam, mas se pode também, naturalmente, considerar estas qualidades ou tendências mais particularmente em relação ao estado humano: sattwa, tendência ascendente, refere-se sempre aos estados superiores, relativamente ao estado particular tomado como base ou ponto de partida desta repartição hierárquica, e tamas, tendência descendente, aos estados inferiores em relação ao mesmo estado; quanto a rajas, este se refere ao próprio estado, considerado como ocupando uma situação intermediária entre os estados superiores e os inferiores, portanto definido por uma tendência que não é nem ascendente nem descendente, mas horizontal; e, no presente caso, este estado é o “mundo do homem” (mânava-loka), ou seja o domínio ou o grau ocupado pelo estado individual humano dentro da Existência universal. Podemos ver assim sem dificuldade a relação disto com o simbolismo da cruz, seja esse simbolismo visto do ponto de vista puramente metafísico ou do ponto de vista cosmológico, ou que sua aplicação se faça na ordem “macrocósmica” ou na ordem “microcósmica”. Em todos os casos, podemos dizer que rajas corresponde a toda a linha horizontal, ou melhor, se considerarmos a cruz de três dimensões, ao conjunto das duas linhas que definem o plano horizontal; tamas corresponde à parte inferior da linha vertical, aquela localizada sob o plano horizontal, e sattwa à parte superior, acima do plano em questão, o qual divide assim a esfera indefinida de que já falamos em dois hemisférios, um superior e outro inferior.

Em um texto dos Vedas, os três gunas são apresentados como convertendo-se um no outro, procedendo segundo uma ordem ascendente: “Tudo era tamas (na origem da manifestação considerada como saindo da indiferenciação primordial de Prakriti). Ele (ou seja, o Supremo Brahma) ordenou uma mudança, e tamas tomou as cores (vale dizer, a natureza) (4) de rajas (intermediário entre a obscuridade e a luminosidade); e rajas, tendo recebido uma nova ordem, revestiu-se da natureza de sattwa.” Se considerarmos a cruz de três dimensões como traçada a partir do centro de uma esfera, a conversão de tamas em rajas pode ser representada como descrevendo a metade inferior desta esfera, de um polo ao equador, e a de rajas em sattwa como descrevendo a metade superior desta esfera, do equador ao outro polo. O plano do equador, suposto horizontal, representa então, como dissemos, o domínio da expansão de rajas, enquanto tamas e sattwa tendem respectivamente para os dois pólos, extremidades do eixo vertical (5). Enfim,  o ponto de onde é ordenada a conversão de tamas em rajas e de rajas em sattwa, é o próprio centro da esfera, como podemos ver reportando-nos às observações do capítulo anterior (6); mais adiante teremos ocasião de explicar melhor (7).

Isto é igualmente aplicável, seja ao conjunto dos graus da Existência universal, seja ao dos estados de um ser qualquer; existe sempre uma perfeita correspondência entre os dois casos, pois cada estado de um ser se desenvolve, com toda a extensão de que é susceptível (e que é indefinida) em um grau determinado da Existência. Por outro lado, podemos fazer certas aplicações mais particulares, notadamente na ordem cosmológica, à esfera dos elementos; mas, como a teoria dos elementos não entra no quadro do presente estudo, é preferível reservar tudo o que lhe concerne para uma outra ocasião, em que nos propomos a tratar das condições da existência corporal.





NOTAS


(1)   Ver Introduction Générale à l’Ètude des Doctrines Hindoues, pg. 244 e L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. IV.
(2)   Os três gunas são de fato inerentes a Prakriti, que é a “raiz” (mûla) da manifestação universal; eles se acham em perfeito equilíbrio na indiferenciação primordial, e toda manifestação constitui uma ruptura desse equilíbrio.
(3)   Em sua acepção comum e literal, a palavra guna significa “corda”; da mesma forma, os termos bandha e pâsha, que significam propriamente “laço”, aplicam-se a todas as condições particulares e limitativas da existência (upâdhis) que definem mais particularmente tal ou tal estado ou modo da manifestação. É preciso dizer no entanto que a denominação de guna aplica-se mais exatamente à corda de um arco; ela exprime portanto, sob um certo aspecto ao menos, a idéia de “tensão” em diversos graus, donde, por analogia, a de “qualificação”; mas talvez a idéia seja menos a de “tensão” do que a de “tendência”, que lhe é aparentada como o indicam as próprias palavras, e que responde mais exatamente à definição dos três gunas.
(4)   A palavra varna, que significa propriamente “cor”, e por generalização “qualidade”, é empregada analogamente para designar a natureza ou a essência de um princípio ou de um ser; daí deriva também seu uso no sentido de “casta”, porque a instituição das castas, vista em sua razão profunda, traduz essencialmente a diversidade das naturezas próprias aos diferentes indivíduos humanos (ver Introduction Générale à l’Ètude des Doctrines Hindoues, 3ª parte, cap. VI). De resto, no que concerne aos três gunas, eles são efetivamente representados por cores simbólicas: tamas pelo preto, rajas pelo vermelho, sattwa pelo branco (Chândogya Upanishad, 6º Prapâthaka, 3º Khanda, shruti 1; cf. Autorité Spirituelle et Pouvoir Temporel, 2ª ed., pg. 53).
(5)   Este simbolismo parece esclarecer e justificar a imagem da “corda de arco” que se acha implicada no significado do termo guna.
(6)   É a este papel do Princípio, no mundo e em cada ser, que se refere a expressão “ordenador interno” (antar-yâmî): ele dirige todas as coisas do interior, residindo no ponto mais interior de todos, que é o centro (ver  L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta cap. XIV, 3ª ed.).
(7)    Sobre este mesmo texto considerado como dando um esquema da organização dos “três mundos”, em correspondência com os três gunas, ver L’Esotérisme de Dante, cap. VI.



















VI

 A UNIÃO DOS COMPLEMENTARES


Devemos agora, ao menos sumariamente, verificar um outro aspecto do simbolismo da cruz, que é talvez o mais conhecido, embora possa parecer, à primeira vista pelo menos, não ter uma relação muito direta com o que vimos até aqui: trata-se de encarar a cruz considerando-a como símbolo da união dos complementares.. Podemos a este respeito, nos contentarmos em encarar a cruz sob sua forma em duas dimensões, como é o mais comum acontecer; mas basta, para voltarmos à cruz de três dimensões, lembrar que a linha horizontal única pode ser tomada como a projeção do plano horizontal inteiro sobre o plano suposto vertical no qual a figura é traçada. Isto posto, podemos ver a linha vertical como representando o princípio ativo e a linha horizontal como o princípio passivo; estes dois princípios são também designados respectivamente, por analogia com a ordem humana, como masculino e feminino; se os tomarmos em seu sentido mais amplo, vale dizer em relação a todo o conjunto da manifestação universal, eles serão aqueles que aos quais a tradição hindu nomeia como Purusha e Prakriti (1). Não se trata de retomarmos ou desenvolvermos aqui as considerações a que dão margem as relações entre esses dois princípios, mas apenas de mostrar que, apesar das aparências, existe uma certa ligação entre este significado da cruz e aquele a que chamamos seu significado metafísico.

Diremos então, e voltaremos adiante de modo mais explícito, que esta ligação resulta da relação que existe, no simbolismo metafísico da cruz, entre o eixo vertical e o plano horizontal. Deve ficar claro que termos tais  como ativo e passivo, ou seus equivalentes, só fazem sentido um em relação ao outro, pois a complementaridade é essencialmente uma correlação entre dois termos. Isto posto, é evidente que uma complementaridade como a de ativo e passivo pode ser encarada em graus diversos, de tal modo que um termo pode desempenhar um papel ativo ou passivo segundo aquilo em relação a que ele desempenha este papel; mas, em todos os casos, poderemos sempre dizer que, numa tal relação, o termo ativo é, em sua ordem, o análogo de Purusha, e o termo passivo o análogo de Prakriti. Ora, veremos no que segue que o eixo vertical, que religa todos os estados do ser atravessando-os por seus respectivos centros, é o lugar de manifestação daquilo que a tradição extremo-oriental chama “Atividade do Céu”, que é precisamente a atividade “não-agente” de Purusha, pela qual são determinadas em Prakriti as produções que correspondem a todas as possibilidades de manifestação. Quanto ao plano horizontal, veremos que ele constitui um “plano de reflexão”, representado simbolicamente como a “superfície das águas”; e sabemos que as “Águas” são, em todas as tradições, um símbolo de Prakriti ou da “passividade universal” (2); a bem dizer, como este plano representa um certo grau da Existência (e poderíamos igualmente encarar qualquer dos planos horizontais que correspondem à multitude indefinida dos estados de manifestação), ele não se identifica propriamente a Prakriti, mas apenas a algo que é já determinado por um certo conjunto de condições especiais de existência (as quais definem um mundo), e que desempenha o papel de Prakriti, num sentido relativo, em um certo nível dentro do conjunto da manifestação universal.

Devemos também precisar um outro ponto, que se relaciona diretamente à consideração do “Homem Universal”: falamos dele anteriormente como constituído pelo conjunto “Adão-Eva”, e dissemos que a dupla Purusha-Prakriti, seja em relação a toda a manifestação, seja mais particularmente em relação a um estado do ser determinado, pode ser vista como equivalente do “Homem Universal” (3). Sob este ponto de vista, a união dos complementares deverá então ser considerada como constituindo o “Andrógino” primordial de que falam todas as tradições; sem nos estendermos sobre esta questão, podemos dizer que o que se deve entender por isto é que, na totalização do ser, os complementares devem se encontrar em equilíbrio perfeito, sem nenhuma predominância de um sobre o outro. Deve-se notar, por outro lado que a este “Andrógino” é em geral atribuída simbolicamente a forma esférica (4), que é a menos diferenciada de todas, por estender-se igualmente em todas as direções, e que os Pitagóricos viam como a forma mais perfeita e como a figura da totalidade universal (5). Para dar assim a idéia de totalidade, a esfera deve aliás, como já dissemos, ser indefinida, como o são os eixos que formam a cruz, e que são três diâmetros retangulares dessa esfera; em outros termos, a esfera, sendo constituída pela irradiação de seu centro, não se fecha jamais, pois a irradiação se dá indefinidamente, preenchendo todo o espaço por uma série de ondas concêntricas, cada qual reproduzindo as duas fases de concentração e de expansão da vibração inicial (6). Essas duas fases são elas mesmas uma das expressões da complementaridade (7); se, saindo das condições especiais que são inerentes à manifestação (em modo sucessivo), as vemos em simultaneidade, elas equilibram-se mutuamente, de modo que a sua reunião eqüivale à imutabilidade principial, assim como a soma dos desequilíbrios parciais pelos quais se realiza toda a manifestação constitui sempre e invariavelmente o equilíbrio total.

Enfim, uma observação que tem também sua importância é a seguinte: dissemos que os termos de ativo e passivo, por expressar apenas uma relação, podem ser aplicados em diferentes graus; resulta daí que, se considerarmos a cruz de três dimensões, na qual o eixo vertical e o plano horizontal encontram-se nessa relação de ativo e passivo, poderemos ainda encarar a mesma relação entre os dois eixos horizontais, ou entre o que eles representarão respectivamente. Nesse caso, para conservar a correspondência simbólica estabelecida no começo, podemos, embora ambos os eixos sejam horizontais em realidade, dizer que um deles, aquele que desempenha o papel ativo, é relativamente vertical em relação ao outro. É assim que, por exemplo, se virmos os dois eixos como sendo respectivamente o eixo solsticial e o eixo equinocial, como dissemos anteriormente em conformidade como simbolismo do ciclo anual, poderemos dizer que o eixo solsticial é relativamente vertical em relação ao eixo equinocial, de tal maneira que, no plano horizontal, ele desempenha analogamente o papel de eixo polar (eixo Norte-Sul), sendo então do eixo equinocial o papel de eixo equatorial (eixo Leste-Oeste) (8). A cruz horizontal reproduz assim, em seu plano, relações análogas Às que são expressas pela cruz vertical; e, para voltarmos aqui ao simbolismo metafísico, podemos dizer ainda que a integração do estado humano, representado pela cruz horizontal e, dentro da ordem de existência à qual ela se refere, como que uma imagem da totalização mesma do ser, representada pela cruz vertical (9).



NOTAS


1.      Ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. IV.
2.      Ver ibid. cap. V.
3.      Ibid., cap. IV.
4.      Conhecemos a respeito o discurso que Platão, no Banquete, coloca na boca de Aristófanes, e do qual a maior parte dos comentaristas modernos desconhece o valor simbólico, entretanto evidente. Encontramos algo similar em um certo aspecto do simbolismo do yin-yang extremo-oriental, de que trataremos mais adiante.
5.      Dentre todas as linhas de igual comprimento, a circunferência é a que abarca a superfície máxima; da mesma forma, dentre os corpos de igual superfície, a esfera é o que contém o maior volume; está aí, do ponto de vista puramente matemático, a razão pela qual estas figuras eram consideradas como as mais perfeitas. Leibnitz inspirou-se nessa idéia na sua concepção do “melhor dos mundos”, que ele definiu como sendo, dentre a multitude indefinida de todos os mundos possíveis, aquele que encerra o máximo de ser ou de realidade positiva; mas a aplicação que ele faz disto, como já indicamos, não tem um alcance metafísico verdadeiro.
6.      Esta forma esférica  luminosa, indefinida e não fechada, com suas alternativas de concentração e de expansão (sucessivas do ponto de vista da manifestação, mas em realidade simultâneas no “eterno presente”) é, no esoterismo islâmico, a forma de Rûh muhammadiyah; é esta forma total do “Homem Universal” que Deus ordenou aos anjos que adorassem, como foi dito antes; e a percepção desta mesma forma está implicada num dos graus da iniciação islâmica.
7.      Indicamos mais acima que isto, na tradição hindu, é expresso pelo simbolismo da palavra Hamsa. Encontramos também, em certos textos tântricos, a palavra aha simbolizando a união de Shiva e Shakti, representados respectivamente pela primeira e pela última letra do alfabeto sânscrito (assim como, na partícula hebraica, eth, o aleph e o thau representam a “essência” e a “substância” de um ser).
8.      Esta observação aplica-se notadamente ao simbolismo da swastika, de que trataremos mais adiante.
9.      A respeito da complementaridade, assinalaremos ainda que, no simbolismo do alfabeto árabe, as duas primeiras letras, alif e ba, são consideradas como respectivamente ativa ou masculina e como passiva ou feminina; sendo a forma da primeira vertical e a da segunda horizontal, sua reunião forma a cruz. Por outro lado, os valores numéricos dessas letras é respectivamente 1 e 2, o que concorda com o simbolismo aritmético pitagórico, segundo o qu al a “mônada” é masculina e a “díade” é feminina; a mesma concordância encontra-se em outras tradições, como por exemplo na tradição extremo-oriental, onde, nas figuras dos koua ou “trigramas” de Fo-Hi, o yang, princípio masculino, é representado por um traço contínuo, e o yin, princípio feminino, por um traço quebrado (ou melhor interrompido ao  meio); esses símbolos, chamados de “as duas determinações”, evocam respectivamente as idéias de unidade e de dualidade; é claro que tudo isto tem um sentido diferente do que um simples sistema de “numeração”, que Leibnitz imaginou encontrar aí (ver Orient et Occident, 2ª ed., pgs. 64-70). De um modo geral, segundo o I Ching, os números ímpares correspondem ao yang  e os pares ao yin; parece que a idéia pitagórica do par e do impar encontra-se também naquilo que Platão chama de o “mesmo” e o “outro”, correspondendo respectivamente à unidade e à dualidade, vistas aliás exclusivamente no mundo  manifestado.  -  Na numeração chinesa, a cruz representa o número 10 (como a cifra romana X, só que em outra posição); podemos ver aí uma alusão ‘a relação que existe entre o denário e o quaternário: 1+2+3+4=10, relação que era figurada pela Tetraktys pitagórica. De fato, na correspondência das figuras geométricas com os números, a cruz representa naturalmente o quaternário; mais precisamente, ela o representa sob seu aspecto dinâmico, enquanto que o quadrado o representa sob seu aspecto estático; a relação entre esses dois aspectos é expressa pelo problema hermético da “quadratura do círculo”, ou, segundo o simbolismo geométrico de três dimensões, por uma relação entre a esfera e o cubo a que aludimos a respeito das figuras do “Paraíso terrestre” e da “Jerusalém celeste” (Le Roi du Monde, cap. XI). Enfim, notaremos ainda a este respeito que, no número 10, as duas cifras 1 e 0 correspondem também respectivamente ao ativo e ao passivo, representados pelo centro e pela circunferência segundo um outro simbolismo, que podemos ligar ao da cruz lembrando que o centro é o ponto de cruzamento do eixo vertical com o plano horizontal, no qual situa-se a circunferência, que representará a sua expansão neste plano por uma das ondas concêntricas pelas quais ela se efetua; o círculo com o ponto central, figura do denário, é ao mesmo tempo o símbolo da perfeição cíclica, ou seja da realização integral das possibilidades implicadas num estado de existência.
















VII

 A RESOLUÇÃO DAS OPOSIÇÕES


No capítulo precedente, falamos de complementares, não de contrários; é preciso não confundir essas duas noções, como se faz muitas vezes, para não tomar a complementaridade como uma oposição. O que pode dar lugar a certas confusões a este respeito, é que Às vezes as mesmas coisas aparecem como  contrárias ou como complementares conforme o modo como as encaramos; nesse caso, podemos sempre dizer que a oposição corresponde ao ponto de vista mais exterior e mais superficial, enquanto que a complementaridade, na qual esta oposição se acha de certa forma já conciliada e resolvida, corresponde a um ponto de vista mais elevado ou mais profundo, como já explicamos em outra parte (1). A unidade principial exige de fato que não hajam oposições irredutíveis (2); portanto, se é verdade que a oposição entre dois termos existe realmente nas aparências e possui uma realidade relativa em um certo nível de existência, esta oposição deve desaparecer automaticamente como  tal e resolver-se harmoniosamente, por síntese ou integração, ao passar para um nível superior. Pretender que não seja assim, seria querer introduzir o desequilíbrio até na própria ordem principial, enquanto que, como já dissemos, todos os desequilíbrios que constituem os elementos da manifestação vistos “distintivamente” concorrem necessariamente ao equilíbrio total, que nada pode afetar ou destruir. A própria complementaridade, que é ainda uma dualidade, deve, a um certo grau, desaparecer diante da unidade, pois seus dois termos irão se equilibrar e neutralizar até fundirem-se indissoluvelmente na indiferenciação primordial.

A figura da cruz pode ajudar a compreender a diferença que existe entre complementaridade e oposição: vimos que a vertical e a horizontal podem ser vistas como representando dois termos complementares; mas, evidentemente, não podemos dizer que haja oposição entre o sentido vertical e o sentido horizontal. O que representa claramente a oposição, dentro da mesma figura, são as direções contrárias, a partir do centro, das duas semi-retas que são as duas metades de um mesmo eixo, qualquer que seja ele; a oposição pode ser vista igualmente tanto no sentido vertical quanto no horizontal. Teremos assim, na cruz vertical de duas dimensões, dois pares de termos opostos formando um quaternário; o mesmo acontecerá para a cruz horizontal, da qual um dos eixos pode ser considerado como relativamente vertical em relação ao outro, como indicamos no capítulo precedente. Se reunirmos as duas figuras na cruz de três dimensões, teremos três pares de termos opostos, como já vimos a respeito das direções do espaço e dos pontos cardeais. Cabe lembrar que uma das oposições quaternárias mais conhecidas, a dos elementos e das qualidades sensíveis que lhes correspondem, deve ser disposta segundo a cruz horizontal; nesse caso, de fato, trata-se exclusivamente da constituição do mundo corporal, que se situa inteiro dentro de um mesmo grau da Existência e só representa uma porção restrita dela. O mesmo acontece quando encaramos apenas os quatro pontos cardeais, que são os do mundo terrestre, representado simbolicamente pelo plano horizontal, enquanto que o Zênite e o Nadir, opostos segundo o eixo vertical, correspondem à orientação para os mundos respectivamente superiores e inferiores em relação a este mesmo mundo terrestre. Vimos que a mesma coisa ocorre na dupla oposição dos solstícios e dos equinócios, o que se compreende facilmente, pois o eixo vertical, que permanece fixo e imóvel enquanto todas as coisas giram ao seu redor, é evidentemente independente das vicissitudes cíclicas, que ele rege por assim dizer pela sua própria imobilidade, imagem sensível da imutabilidade principial (3). Se só considerarmos a cruz horizontal, o eixo vertical é representado pelo próprio ponto central, que é onde ele encontra o plano horizontal; assim, todo plano horizontal, simbolizando um estado ou grau qualquer da Existência, tem neste ponto que pode ser chamado seu centro (por ser ele ao origem do sistema de coordenadas ao qual todo o plano pode ser referido) esta mesma imagem de imutabilidade. Se aplicarmos isto, por exemplo, à teoria dos elementos do mundo corporal, o centro corresponderá ao quinto elemento, o éter (4), que é na realidade o primeiro de todos segundo a ordem de produção, aquele do qual os outros procedem por diferenciações sucessivas, e que reúne em si todas as qualidades opostas, características dos outros elementos, em um estado de indiferenciação e de equilíbrio perfeitos, correspondendo em sua ordem à não-manifestação principial (5).

O centro da cruz é portanto o ponto onde se conciliam e se resolvem todas as oposições; nesse ponto se estabelece a síntese de todos os termos contrários, que, na verdade, só são contrários do ponto de vista exterior e particular do conhecimento em modo distintivo. Este ponto central corresponde ao que o esoterismo islâmico designa como a “estação divina”, que é “aquela que reúne os contrastes e as antinomias” (El-maqâmul-ilahî, huwa maqân ijtimâ ed-diddaîn) (6); é o que a tradição extremo-oriental, por seu lado, chama de “Invariável Meio” (Tchoung-young), que é o lugar do equilíbrio perfeito, representado como o centro da “roda cósmica” (7), e que é também, ao mesmo tempo, o ponto onde se reflete diretamente a “Atividade do Céu” (8). Este centro dirige todas as coisas por sua “atividade não-agente” (wei wu-wei) que, embora não-manifestada, ou melhor por ser não-manifestada, é na verdade a plenitude da atividade, por ser a atividade do Princípio do qual derivam todas as atividades particulares; é o que Lao Tsé exprime nestes termos: “O Princípio é sempre não-agente, e no entanto tudo é feito por ele” (9).

O sábio perfeito, segundo a doutrina taoísta, é aquele que chegou ao ponto central e que nele permanece em união indissolúvel com o Princípio, participando de sua imutabilidade e imitando sua “atividade não-agente”: “Aquele que chegou ao máximo do vazio, diz ainda Lao Tsé, esse será fixado solidamente no repouso... Voltar à raiz (ou seja ao Princípio, ao mesmo tempo origem primeira e fim último de todos os seres) (10), é entrar mo estado de repouso” (11). O “vazio” de que se trata aqui, é o desligamento completo em relação a todas as coisas manifestadas, transitórias e contingentes (12), desligamento pelo qual o ser escapa às vicissitudes da “corrente das formas”, à alternância dos estados de “vida” e de “morte”, de “condensação” e de “dissipação” (13), passando da circunferência da “roda cósmica” para seu centro, que é designado como “o vazio (não-manifestado) que une os raios e faz deles uma roda” (14). “A paz no vazio, diz Lie Tsé, é um estado indefinido: não se a toma, nem se a outorga; chega-se a ela” (15). Esta “paz no vazio” é a “Grande Paz” do esoterismo islâmico (16), chamado em árabe Es-Sakînah, designação que a identifica à Shekinah hebraica, ou seja à “presença divina” no centro do ser, representado simbolicamente como o coração em todas as tradições (17); e esta “presença divina” está de fato implicada pela união com o Princípio, que não pode efetivamente operar-se senão no centro mesmo do ser. “Ao que permanece no não-manifestado, todos os seres se manifestam... Unido ao Princípio, ele está em harmonia, por ele, com todos os seres. Unido ao Princípio, ele conhece tudo pelas razões gerais superiores, e não se utiliza mais, por conseguinte, de seus diversos sentidos, para conhecer em particular e em detalhe. A verdadeira razão das coisas é invisível, impalpável, indefinível, indeterminável. Apenas o espírito restabelecido no estado de simplicidade perfeita pode atingi-la na contemplação profunda” (18).

Colocado no centro da “roda cósmica”, o sábio perfeito a move invisivelmente (19), apenas com a sua presença, sem participar de seu movimento, e sem ter que se preocupar em exercer uma ação qualquer: “O ideal, é a indiferença (o desligamento) do homem transcendental, que deixa girar a roda cósmica” (20). Este desligamento absoluto o torna mestre de todas as coisas, porque, tendo ultrapassado todas as oposições que são inerentes à multiplicidade, nada pode afetá-lo: “Ele atinge a impassibilidade perfeita; a vida e a morte lhe são igualmente indiferentes, a destruição do universo (manifestado) não lhe causaria nenhuma emoção (21). À custa de investigar, ele atingiu a verdade imutável, o conhecimento do Princípio universal único. Ele deixa evoluírem todos os seres segundo seus destinos, ele se mantém no centro imóvel de todos os destinos (22)... O sinal exterior deste estado interior é a imperturbabilidade; não a do bravo que ataca sozinho, por amor à glória, um exército armado em batalha; mas a do espírito que, superior ao céu, à terra e a todos os seres (23) habita em um corpo ao qual não se apega (24), que não liga para as imagens que os sentidos fornecem, que conhece tudo pelo conhecimento global em sua unidade imóvel (25). Este espírito, absolutamente independente, é mestre dos homens; se ele os quisesse convocar em massa, no dia acordado todos acorreriam; mas ele não quer ser servido” (26).

No ponto central, todas as distinções inerentes aos pontos de vista exteriores são ultrapassadas; todas as oposições desapareceram e foram resolvidas em um perfeito equilíbrio. “No estado primordial, estas oposições não existem. Todas são derivadas da diversificação dos seres (inerente à manifestação e contingente como ela), e de seus contatos causados pela revolução universal (27). Elas cessariam, se a diversidade e o movimento cessassem. Elas cessam instantaneamente de afetar o ser que reduziu seu eu distintivo e seu movimento particular a quase nada (28). Este ser não entra mais em conflito com nenhum ser, porque ele está estabelecido no infinito,  sumido no infinito (29). Ele chegou e se mantém no ponto de partida das transformações, ponto neutro onde não existem conflitos. Pela concentração de sua natureza, pela alimentação de seu espírito vital, pela reunião de todas as suas potências, ele uniu-se ao princípio de todas as gêneses. Estando sua natureza inteira (totalizada sinteticamente na unidade principial), estando seu espírito vital intacto, nenhum ser lhe poderá imputar nada” (30).

Este ponto central e primordial é idêntico ao “Santo Palácio” da Qabbalah hebraica; em si mesmo, ele não pode ser situado, pois ele é absolutamente independente do espaço, o qual é um resultado de sua expansão ou de seu desenvolvimento indefinido em todos os sentidos, procedendo, assim, inteiramente de si: “Transportemo-nos em espírito para além deste mundo de dimensões e de localizações, e não haverá mais lugar aonde situar o Princípio” (31). Mas, sendo o espaço realizado, o ponto primordial, embora permanecendo sempre essencialmente “não-localizado” (pois ele não poderia ser afetado ou modificado por seja lá o que for), torna-se o centro desse espaço (ou seja, transportando o simbolismo, o centro de toda a manifestação universal), como já indicamos; é dele que partem as seis direções que, opondo-se duas a duas, representam todos os contrários, e é para ele que elas retornam, pelo movimento alternativo de expansão e concentração que constitui, como já foi dito, as duas fases complementares de toda manifestação. É a segunda dessas fases, o movimento de retorno à origem, que marca a via que segue o sábio para chegar à união com o Princípio: a “concentração de sua natureza”, a “reunião de todas as suas potências”, no texto citado, o indicam com toda a clareza: e a “simplicidade” corresponde à unidade “sem dimensões” do ponto primordial. “O homem absolutamente simples reflete por sua simplicidade todos os seres..., de tal modo que nada se opõe a ele nas seis regiões do espaço, nada lhe é hostil, mesmo o fogo e a água não o ferem” (32). De fato, ele se mantém no centro, de onde as seis direções partem por irradiação, e para onde elas voltam, no movimento de retorno, neutralizando-se duas a duas, de forma que, neste ponto único, sua tríplice oposição cessa inteiramente, e nada do que resulte daí ou aí se localize poderá atingir o ser que permanece na unidade imutável. Como ele não se opõe a nada, nada se opõe a ele, pois a oposição é necessariamente uma relação recíproca, que exige dois termos em presença, e que, em conseqüência, é incompatível com a unidade principial; e a hostilidade, que não passa de uma manifestação exterior da oposição, não pode existir diante de um ser que está fora e além de qualquer oposição. O fogo e a água, que são o protótipo dos contrários no “mundo elementar”, não podem feri-lo, pois, a bem dizer, eles já não existem para ele enquanto contrários, havendo reingressado, equilibrando-se e neutralizando-se um ao outro pela reunião de suas qualidades aparentemente opostas, mas realmente complementares (33), na indiferenciação do éter primordial.

Para aquele que se mantém no centro, tudo está unificado, pois ele vê tudo na unidade do Princípio; todos os pontos de vista particulares (ou “particularistas”) e analíticos, que se fundamentam sobre distinções contingentes, e de onde nascem todas as divergências das opiniões individuais, desapareceram para ele, reabsorvidos na síntese total do conhecimento transcendente, adequado à verdade uma e imutável. “Seu ponto de vista é tal que isto ou aquilo, sim e não, aparecem ainda como não-distintos. Este ponto é o pivô da norma; é o centro imóvel de uma circunferência sobre cujo contorno giram todas as contingências, as distinções e as individualidades; daí só se vê um infinito, que não é nem isto nem aquilo, nem sim nem não. Ver a tudo na unidade primordial ainda não-diferenciada, ou de uma distância tal que tudo se funde em um, eis aí a verdadeira inteligência” (34). O “pivô da norma”, é o que quase todas as tradições chamam de “Polo” (35), ou seja o ponto fixo ao redor do qual se cumprem todas as revoluções do mundo, segundo a norma ou a lei que rege toda a manifestação, e que é ela mesma uma emanação direta do centro, vale dizer a expressão da “Vontade do Céu” dentro da ordem cósmica.








NOTAS


1.      La Crise du Monde moderne, pgs. 43-44, 2ª ed.
2.      Consequentemente, todo “dualismo”, seja de ordem teológica, como o que se atribui aos Maniqueus, ou de ordem filosófica, como o de Descartes, é uma concepção radicalmente falsa.
3.      É o “motor imóvel” de Aristóteles, a respeito do qual já fizemos alusão.
4.      É a “quintessência” (quinta essentia) dos alquimistas, às vezes representada, no centro da cruz dos elementos, por uma figura como a estrela de cinco pontas ou a flor de cinco pétalas. Diz-se também que o éter possui uma “quíntupla natureza”,  o que deve ser entendido como o éter em si-mesmo e como principio dos outros quatro elementos.
5.      É a razão pela qual a designação do éter é susceptível de dar lugar às transposições analógicas que já assinalamos; ele é então tomado simbolicamente como uma designação do próprio estado principial.
6.      Atinge-se esta “estação”, ou este grau de realização efetiva do ser, através de El-fanâ, ou seja pela “extinção” do “eu” no retorno ao “estado primordial”; esta “extinção” possui uma analogia, mesmo quanto ao sentido literal do termo que a designa, com o Nirvana da doutrina hindu. Para além de El-fanâ, existe ainda Fanâ el-fanâi, a “extinção da extinção” que corresponde ao Parinirvâna (ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XIII, 3ª ed.). Num certo sentido, a passagem de um destes graus para o outro relaciona-se com a identificação do centro de um estado do ser com o do ser total, como explicaremos mais adiante.
7.      Ver Le Roi du Monde, caps. I e IV, e L’Esotérisme de Dante, 3ª ed., pg. 62.
8.      O Confucionismo desenvolve a aplicação do “Invariável Meio” à ordem social, enquanto que o significado puramente metafísico é dado pelo Taoísmo.
9.      Tao Te King, XXXVII.
10.  A palavra Tao, literalmente “Via”, que designa o Princípio, é representada por um caracter ideográfico que reúne os signos da cabeça e dos pés, o que eqüivale ao símbolo do alfa e do ômega nas tradições ocidentais.
11.  Tao Te King, XVI.
12.  Este desligamento é idêntico a El-fanâ; poderíamos reportá-lo também àquilo que ensina o Bhagavad-Gîtâ sobre a indiferença em relação aos frutos da ação, pela qual o ser escapa ao encadeamento indefinido das conseqüências dessa ação: é a “ação sem desejo” (nishkâma karma), enquanto que a “ação com desejo” (sakâma karma) é a ação cumprida tendo em vista estes frutos.
13.  Aristóteles, num sentido semelhante, fala em “geração” e “corrupção”.
14.  Tao Te King, XI. – A forma mais simples da roda é o círculo dividido em quatro partes iguais pela cruz; além dessa roda de quatro raios, as formas mais comuns no simbolismo de todos os povos são as rodas de seis e oito raios; naturalmente, cada um destes números agrega ao significado geral da roda uma nuance particular. A figura octogonal dos oito koua ou  “trigramas de Fo-Hi, que é um dos símbolos fundamentais da tradição extremo-oriental, eqüivale sob certos aspectos à roda de oito raios, assim como ao lotus de oito pétalas. Nas antigas tradições da América central, o símbolo do mundo é sempre dado pelo círculo dentro do qual está inscrita uma cruz.
15.  Lie Tsé, cap. I. – Os textos de Lie Tsé e Tchouang Tsé citados correspondem à tradução de Leon Wieger.
16.  É também a Pax profunda da tradição rosacruz.
17.  Ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XIII, 3ª ed., e Le Roi du Monde, cap. III. – Diz-se que Allah “faz descer a Paz nos corações dos Fiéis” (Huwa elladjî anzala es-Sakînata fî qulûbil-Mûminîn); e a Qabbalah hebraica ensina exatamente a mesma coisa: “A Shekinah tem esse nome, diz o hebraista Louis Cappel, porque ela habita (shakan) no coração dos fiéis, e esta habitação foi simbolizada pelo Tabernáculo (mishkan) onde Deus reside” (Critica Sacra, pg. 311, Ed. Amsterdã, 1689; citado por P. Vulliaud, La Kabbale Juive, t. I, pg. 493). Não é preciso dizer que a “descida” da “Paz” no coração efetua-se segundo o eixo vertical; é a manifestação da “Atividade do Céu”. – Ver também, por outro lado, o ensinamento da doutrina hindu sobre a morada de Brahma, simbolizado pelo éter, no coração, ou seja no centro vital do ser humano (L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. III).
18.  Vemos aqui a diferença que separa o conhecimento  transcendente do sábio do saber comum ou “profano”; as alusões à “simplicidade”, expressão da unificação de todas as potências do ser, e vista como característica do “estado primordial”, são freqüentes no Taoísmo. Da mesma forma, na doutrina hindu, o estado de “infância” (bâlya), entendido no sentido espiritual, é considerado como uma condição prévia para a aquisição do conhecimento por excelência (ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XXIII). – Podemos lembrar a propósito as palavras similares do Evangelho: “Aquele que não receber o Reino dos Céus como uma criança, nele não entrará” (Lucas, XVIII, 17); “Enquanto houvestes escondido estas coisas dos sábios e dos prudentes, vós as revelastes aos simples e aos pequenos” (Mateus, XI, 25; Lucas, X, 21). O ponto central, pelo qual se estabelece a comunicação com os estados superiores ou “celestes”, é a “porta estreita” do simbolismo evangélico; os “ricos” que não podem passar por ela são os seres ligados à multiplicidade, e que, por conseqüência, são incapazes de se elevar do conhecimento distintivo ao conhecimento unificado. A “pobreza espiritual”, que é o desligamento em relação à manifestação, aparece aqui como um símbolo eqüivalente ao da “infância”: “Bem-aventurados os pobres de espírito, pois deles será o Reino dos Céus” (Mateus, V, 2). Esta “pobreza” (em árabe, El-faqru) desempenha um papel importante no esoterismo islâmico; além do que já dissemos, ela implica ainda na dependência completa do ser, em tudo o que ele é, diante do Princípio, “fora do qual não há nada, absolutamente nada que exista” (Mohyiddin ibn Arabi, Risâlatul-Ahadiyah).
19.  É a mesma idéia que se expressa, na tradição hindu, pelo termo Chakravartî, literalmente “aquele que faz girar a roda” (Ver Le Roi du Monde, cap. II e L’Esotérisme de Dante, 3ª ed., pg. 55).
20.  Tchoang Tsé, cap. I. – Cf. Le Roi du Monde, cap. IX.
21.  Apesar da aparente similaridade de certas expressões, esta “impassibilidade” é bem diferente daquela dos Estóicos, que era de ordem puramente “moral”, e que, aliás, parece nunca ter sido mais do que uma concepção teórica.
22.  Segundo o comentário tradicional de Tcheng Tsé sobre o I Ching, “o termo ‘destino’ designa a verdadeira razão de ser das coisas”; o “centro de todos os destinos” é assim o Princípio na medida em que todos os seres tem nele sua razão suficiente.
23.  O Princípio ou o “Centro”, de fato, está antes de toda distinção, inclusive aquela entre “Céu” (Tien) e “Terra” (Ti) que representa a primeira dualidade, sendo estes dois termos os eqüivalentes respectivos de Purusha e Prakriti.
24.  É o estado de jîvan-mukta (Ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XXIII).
25.  Cf. a condição de Prâjna na doutrina hindu (ibid., cap. XIV)
26.  Tchoang Tsé, cap. V. – A independência daquele que, liberto de todas as coisas contingentes, chegou ao conhecimento da verdade imutável, é igualmente afirmada no  Evangelho: “Conhecereis a Verdade e ela vos libertará” (São João, VIII, 32); e podemos também, por outro lado, fazer uma aproximação entre esta e uma outra palavra evangélica: “Buscai primeiro o Reino de Deus e sua justiça, e todo o resto vos será dado em acréscimo” (Mateus, VII, 33; Lucas, XII, 31). É preciso lembrar aqui a relação estrita que existe entre a idéia de justiça e as de equilíbrio e harmonia; e já indicamos também a relação que une a justiça e a paz (Le Roi du Monde, caps. I e VI; Autorité Spirituelle et Pouvoir Temporel, cap. VIII).
27.  Vale dizer a rotação da “roda cósmica” ao redor do seu eixo.
28.  Esta redução do “eu distinto”, que finalmente desaparece reabsorvendo-se em um ponto único, é a mesma coisa que o “vazio” de que se tratou anteriormente; é também El-fanâ no esoterismo islâmico. De resto, é evidente que, segundo o simbolismo da roda, o “movimento” de um ser é tanto mais reduzido quanto mais perto do centro ele estiver.
29.  A primeira destas duas expressões refere-se à “personalidade” e a segunda à “individualidade”.
30.  Tchoang Tsé, cap. XIX. – A última frase refere-se ainda às condições do “estado primordial”: é o que a tradição judaico-cristã designa como a imortalidade do homem antes da “queda”, imortalidade recuperada por aquele que, voltando ao “Cento do Mundo”, alimenta-se da “Árvore da Vida”.
31.  Id., cap. XXII.
32.  Lie Tsé, cap. II.
33.  O fogo e a água, vistos não mais sob o aspecto da oposição, mas da complementaridade, são uma das expressões dos dois princípios ativo e passivo no domínio da manifestação corporal ou sensível; as considerações que se reportam a este ponto de vista foram especialmente desenvolvidas pelo hermetismo.
34.  Tchouang Tsé, cap. II.
35.  Estudamos este simbolismo em particular em Le Roi du Monde. – Na tradição extremo-oriental, a “Grande Unidade” (Tai-I) é representada como residindo na estrela polar, que é chamada Tien-Ki, literalmente “cimo do céu”.
36.  A “Retidão” (Te), cujo nome evoca a idéia de linha reta e mais particularmente de “Eixo do Mundo”, é, na doutrina de Lao Tsé, o que se pode chamar de uma “especificação” da “Via” (Tao) em relação a um ser ou um estado determinado: é a direção que esse ser deve seguir para que sua existência seja de acordo com a “Via”, ou, em outros termos, em conformidade com o Princípio (direção tomada no sentido ascendente, enquanto que, no sentido descendente, essa mesma direção é aquela segundo a qual se exerce a “Atividade do Céu”). – Podemos aproximar isto daquilo que já indicamos (Le Roi du Monde, cap. VIII) a respeito da orientação ritual, de que trataremos mais adiante.
























VIII

 A GUERRA E A PAZ


Aquilo que foi dito sobre a “paz” que reside no ponto central nos leva, embora isto possa parecer uma digressão, a falar um pouco de outro simbolismo, o da guerra, ao qual já fizemos alusão em outras ocasiões (1). Esse simbolismo encontra-se notadamente no Bhagavad-Gîtâ: a batalha que é representada neste livro representa a ação, de um modo bastante geral, sob uma forma que é aliás apropriada à natureza e à função dos Kshatriyas aos quais ele é especialmente destinado (2). O campo de batalha (kshêtra) é o domínio da ação, no qual o indivíduo desenvolve as suas possibilidades, e que é figurado pelo plano horizontal no simbolismo geométrico; trata-se aqui do estado humano, mas a mesma representação poderia ser aplicada a qualquer outro estado da manifestação, igualmente submetido, senão à ação propriamente dita, pelo menos à mudança e à multiplicidade. Esta concepção não se encontra somente na doutrina hindu, mas também na doutrina islâmica, pois este é exatamente o sentido real da “guerra santa” (jihâd); a aplicação social e exterior é secundária, e o que o demonstra bem é que ela se constitui apenas na “pequena guerra santa” (El-jihâdul-açghar), enquanto que a “grande guerra santa” (El-jihâdul-akbar) é de ordem puramente interior e espiritual (3).

Podemos dizer que a razão de ser essencial da guerra, sob qualquer ponto de vista e em qualquer domínio no qual se a encare, é fazer cessar a desordem e restabelecer a ordem; é, em outros termos, a unificação de uma multiplicidade, através dos meios que pertencem à própria multiplicidade; é com essa finalidade, e apenas essa, que a guerra pode ser considerada legítima. Por outro lado, a desordem é, em um sentido, inerente a toda manifestação tomada em si mesma, pois a manifestação, fora de seu princípio, portanto enquanto multiplicidade não unificada, não passa de uma série indefinida de rupturas do equilíbrio. A guerra, entendida como a definimos, e não limitada a seu sentido exclusivamente humano, representa assim o processo cósmico de reintegração da manifestado na unidade principial; e é porisso que, do ponto de vista da manifestação, esta reintegração aparece como uma destruição, como podemos constatar por certos aspectos do simbolismo de Shiva na doutrina hindu.

Se é dito que a própria guerra é ainda uma desordem, isto é verdade sob um certo aspecto, e é também necessariamente assim pelo fato mesmo de que a guerra acontece no mundo da manifestação e da multiplicidade; mas é uma desordem que é destinada a compensar uma outra desordem e, segundo o ensinamento da tradição extremo-oriental que mencionamos precedentemente, é a soma mesma de todas as desordens, ou de todos os desequilíbrios, que constitui a ordem total. A ordem aliás só aparece quando nos elevamos acima da multiplicidade, deixando de considerar cada coisa isoladamente e “distintamente” para encarar todas as coisas na unidade. Este é o ponto de vista da realidade, pois a multiplicidade, fora do princípio único, só possui uma existência ilusória; mas essa ilusão, com a desordem que lhe é inerente, subsiste para todo ser na medida em que ele não chegou, de modo plenamente efetivo (e não, bem entendido, como uma simples concepção teórica), ao ponto de vista da “unicidade da Existência” (Wahdatul-wujûd) em todos os modos e em todos os graus da manifestação universal.

Segundo o que acabamos de dizer, a finalidade da guerra é o estabelecimento da paz, pois a paz, mesmo no sentido mais comum, não é outra coisa do que a ordem, o equilíbrio e a harmonia, termos quase sinônimos e que designam, sob aspectos diversos, o reflexo da unidade na multiplicidade, a partir do momento em que esta é reportada ao seu princípio. De fato, a multiplicidade, então, não chega a ser verdadeiramente destruída, mas ela é “transformada”; e, quando todas as coisas são conduzidas à unidade, esta aparece em todas elas, que então, longe de cessar de existir, adquirem ao contrário, com isto, a plenitude da realidade. É assim que se unem indivisivelmente os dois pontos de vista complementares da “unidade na multiplicidade e da multiplicidade na unidade” (El-wahdatu fîl-kuthrati wal-kuthratu fîl-wahdati), no ponto central de toda a manifestação, que é o “lugar divino”, ou a “estação divina” (El-maqâmul-ilahî) de que se tratou anteriormente. Para aquele que chegou a este ponto, como dissemos, não existem mais contrários, e portanto não há mais desordem; é o próprio lugar da ordem, do equilíbrio, da harmonia e da paz, enquanto que fora daí, e para aquele que para aí se dirige sem haver no entanto alcançado, é o estado de guerra tal como o definimos, pois as oposições, nas quais reside a desordem, não foram ainda superadas definitivamente.

Mas no seu sentido exterior e social, a guerra legítima, dirigida contra aqueles que perturbam a ordem e tendo como objetivo levá-los a ela, constitui essencialmente uma função de “justiça”, ou seja em suma uma função equilibrante (4), quaisquer que possam ser as aparências secundárias e transitórias; mas esta não é mais do que a “pequena guerra santa”, que é apenas uma imagem da outra, a “grande guerra santa”. Podemos aplicar aqui o que já dissemos várias vezes, e ainda no início do presente estudo, quanto ao valor simbólico dos fatos históricos, que podem ser considerados como representativos, segundo seu modo, das realidades de ordem superior.

A “grande guerra santa”, é a luta do homem contra os inimigos que ele traz em si mesmo, ou seja contra todos os elementos que, nele, são contrários à ordem e à unidade. Não se trata, de resto, de negar esses elementos que, como tudo o que existe, tem também sua razão de ser e seu lugar no conjunto; trata-se antes, como já dissemos, de “transformá-los”, remetendo-os à unidade e nela os reabsorvendo. O homem deve antes de tudo tender constantemente a realizar a unidade em si mesmo, em tudo o que o constitui, segundo todas as modalidades da sua manifestação humana: unidade de pensamento, unidade de ação e, o que talvez seja o mais difícil, unidade entre pensamento e ação. Convém aliás lembrar que, no que concerne à ação, o que vale essencialmente é a intenção (nyyah), pois é apenas ela que depende inteiramente do próprio homem, sem  ser afetada ou modificada pelas contingências exteriores, como acontece com os resultados da ação. A unidade na intenção e a tendência constante para o centro invariável e imutável (5) são representadas simbolicamente pela orientação ritual (qiblah), pois os centros espirituais terrestres são como que as imagens visíveis do verdadeiro centro único de toda a manifestação que, de resto, possui seu reflexo direto em todos os mundos, no ponto central de cada um deles, e também em todos os seres, onde este ponto central é designado figurativamente como o coração, em razão de sua correspondência efetiva com este no organismo corporal.
Para aquele que chegou a realizar perfeitamente a unidade em si mesma, tendo cessado toda a oposição, cessa também, porisso mesmo, o estado de guerra, pois já não existe senão a ordem absoluta, segundo o ponto de vista total que está além de todos os pontos de vista particulares.  A um tal ser nada mais pode perturbar, pois ele não tem mais inimigos, nem em si, nem fora de si; a unidade, efetuada desde dentro, está também e simultaneamente fora dele, ou melhor, já não há mais dentro nem fora, sendo esta apenas mais uma das oposições que desapareceram aos seus olhos (6). Estabelecido definitivamente no centro de todas as coisas, ele é “sua própria lei” (7), pois sua vontade é uma com o Querer universal (a “Vontade do Céu” da tradição extremo-oriental, que se manifesta no ponto mesmo onde reside este ser); ele obteve a “Grande Paz”, que é verdadeiramente a “Presença Divina” (Es-Sakînah, a imanência da Divindade neste ponto que é o “Centro do Mundo”); identificando-se, por sua própria unificação, com a própria unidade principial, ele vê a unidade em todas as coisas e todas as coisas na unidade, na absoluta simultaneidade do “eterno presente”.












NOTAS


1.      Le Roi du Monde, cap. X; Autorité Spirituelle et Pouvoir Temporel, caps. III e VIII.
2.      Krishna e Arjuna, que representam o “Si” e o “eu”, ou a “personalidade” e a “individualidade”, Atmâ incondicionado e Jîvâtmâ, estão sobre o mesmo carro, que é o “veículo” do ser encarado em seu estado de manifestação; e, enquanto Arjuna combate, Krishna conduz o carro sem combater, ou seja sem engajar-se na ação. Outros símbolos que possuem o mesmo significado se acham em muitos textos dos Upanishads: os “dois pássaros que residem na mesma árvore” (Mundaka Upanishad, 3º mundaka, 1º khanda, shruti 1; Shwêtâshwatara Upanishad, 4º adhyâya, shruti 6), e também os “dois que entraram na caverna” (Katha Upanishad, 1º adhyâya, 3º vallî, shruti 1); a “caverna” não é outra coisa que a cavidade do coração, que representa precisamente o lugar de união do individual com o Universal, ou do “eu” com o “Si”  (ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. III). – El-Hallâj diz no mesmo sentido: “Nós somos dois espíritos juntos num só corpo” (nahnu ruhâni halalnâ badana).
3.      Isto apoia-se num hadîth do Profeta que, retornando de uma expedição, disse essas palavras: “Nós voltamos da pequena guerra santa para a grande guerra santa” (rajanâ min el-jihâdil-açghar ilâ el-jihâdil-akbar).
4.      Ver Le Roi du Monde, cap. VI.
5.      Ver o que dissemos a respeito da “intenção reta” e da “boa vontade” (Le Roi du Monde, caps. III e VIII).
6.      Este olhar é, segundo a tradição hindu, aquele do terceiro olho de Shiva, que representa o “sentido da eternidade”, e cuja posse efetiva está essencialmente implicada na restauração do “estado primordial” (ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. XX, 3ª ed. e Le Roi du Monde, caps. V e VII).
7.      Está expressão vem do esoterismo islâmico; no mesmo sentido, a doutrina hindu fala do ser que chegou a este estado como swêchchhâchârî, ou seja, como “cumprindo sua própria vontade”.
























IX

 A ÁRVORE DO MEIO


Um outro aspecto do simbolismo da cruz é aquele que a identifica com o que as diversas tradições designam como a “Árvore do Meio”, ou outro termo equivalente; vimos em outra parte que esta árvore é um dos numerosos símbolos do “Eixo do Mundo” (1). É portanto a linha vertical da cruz, figura deste eixo, que se deve considerar principalmente então: ela constitui o tronco da árvore, enquanto que a linha horizontal (ou as duas linhas horizontais, para a cruz de três dimensões) forma os galhos. Essa árvore ergue-se no centro do mundo, ou antes de um mundo, ou seja do domínio em cujo interior de desenvolve um estado de existência, tal como o estado humano. No simbolismo bíblico, em particular, é a “Árvore da Vida”, que está plantada no meio do “Paraíso Terrestre”, que representa o centro de nosso mundo, conforme já explicamos em outras ocasiões (2). Embora não seja nossa intenção nos estendermos aqui a respeito de todas as questões relativas ao simbolismo da árvore , e que demandariam um estudo especial, existem a propósito alguns pontos que é útil explicarmos aqui.

No Paraíso terrestre não havia apenas a “Árvore da Vida”; há uma outra que desempenha um papel não menos importante e que é até mais conhecida: é a “Árvore da Ciência do Bem e do Mal” (3). As relações que existem entre estas duas árvores são muito misteriosas: o relato bíblico, imediatamente após haver designado a “Árvore da Vida” como estando “no meio do jardim”, menciona a “Árvore da Ciência do Bem e do Mal” (4); mais adiante, é dito que esta última ficava igualmente “no meio do jardim” (5); e enfim, Adão, após haver provado o fruto da “Árvore da Ciência”, não teria mais que “estender sua mão” para alcançar também o fruto da “Árvore da Vida” (6). Na segunda dessas três passagens, a proibição feita por Deus refere-se unicamente à “árvore que está no meio do jardim”, e que não tem nenhuma outra identificação; mas, reportando-nos à outra passagem em que esta proibição é mencionada (7), vemos que se trata evidentemente da “Árvore da Ciência do Bem e do Mal”. É sem dúvida em razão da ligação que esta proximidade estabelece entre as duas árvores, que elas são tão ligadas no simbolismo, a tal ponto que algumas árvores emblemáticas apresentam traços que evocam uma e/ou outra; mas é preciso explicar em que essa ligação consiste realmente.

A natureza da “Árvore da Ciência do Bem e do Mal” pode, como seu nome indica, caracterizar-se pela dualidade, pois encontramos nesta designação dois termos que são, não complementares, mas verdadeiramente opostos, e dos quais podemos dizer que toda a razão de ser reside nesta oposição, pois, quando esta é ultrapassada, não se pode mais falar em bem nem em mal; o mesmo já não acontece com a “Árvore da Vida”, cuja função enquanto “Eixo do Mundo” implica, ao contrário, essencialmente a unidade. Portanto, quando encontramos numa árvore emblemática uma imagem da dualidade, devemos ver aí uma alusão à “Árvore da Ciência”, ainda que, sob outros aspectos, o símbolo considerado seja incontestavelmente uma imagem da “Árvore da Vida”. É o que acontece, por exemplo, com a “árvore sefirótica” da Qabbalah hebraica, que é expressamente designada  como “Árvore da Vida”, e na qual entretanto a “coluna da direita” e a “coluna da esquerda” formam a figura da dualidade; mas entre as duas está a “coluna do meio”, onde se equilibram as duas tendências opostas, e onde se reencontra assim a unidade verdadeira da “Árvore da Vida” (8).

A natureza dual da “Árvore da Ciência” só aparece a Adão no momento mesmo da “queda”, pois é só então que ele se torna “conhecedor do bem e do mal” (9). É então também que ele se encontra distanciado do centro que é o lugar da unidade primeira, à qual corresponde a “Árvore da Vida”; e é precisamente “para guardar o caminho da Árvore da Vida” que os Querubins (os “tetramorfos” que sintetizam em si o quaternário das potências elementares) armados da espada flamejante são colocados na entrada do Éden (10). O centro tornou-se inacessível para o homem decaído, que perdeu o “sentido da eternidade”, que é também o “sentido da unidade” (11); voltar ao centro, pela restauração do “estado primordial”, e atingir a “Árvore da Vida”, é recuperar este “sentido da eternidade”.

Por outro lado, sabemos que a própria cruz do Cristo identifica-se simbolicamente à “Árvore da Vida” (lignum vitae), o que se compreende com facilidade; mas, segundo uma “lenda da Cruz” em voga durante a idade média, ela teria sido feita da madeira da “Árvore da Ciência”, de maneira que esta, após ter sido o instrumento da “queda”, teria se tornado o da “redenção”. O que se expressa aqui é a conexão das duas idéias da “queda” e da “redenção”, que são de certo modo inversas uma da outra, e existe aí uma alusão ao restabelecimento da ordem primordial (12); neste novo papel, a  “Árvore da Ciência” assimila-se de alguma forma à “Árvore da Vida”, e a dualidade reintegra-se efetivamente na unidade (13).

Isto faz lembrar igualmente a “serpente de bronze” erguida por Moisés no deserto (14), e que sabemos ser também um símbolo da “redenção”, de modo que a base sobre a qual ela é colocada eqüivale à cruz e relaciona-se do mesmo modo à “Árvore da Vida” (15). Entretanto, a serpente é mais comumente associada à “Árvore da Ciência”; mas é porque então ela é vista sob seu aspecto maléfico, e já observamos antes que, como muitos outros símbolos, ela possui dois significados opostos (16). Não se deve confundir a serpente que representa a vida com aquela que representa a morte, a serpente que é um símbolo do Cristo com a que é um símbolo de Satã (mesmo quando elas estão tão estreitamente unidas como na figuração da “anfisbena” ou serpente de duas cabeças); e podemos dizer que a relação dos dois aspectos contrários não deixa de ter uma certa similitude com os papéis que desempenham respectivamente a “Árvore da Vida” e a “Árvore da Ciência”(17).

Vimos que uma árvore que apresenta uma forma ternária, como a “árvore sefirótica”, pode sintetizar em si, de certa forma, as naturezas da “Árvore da Vida” e da “Árvore da Ciência”, como se estas estivesse reunidas numa só, sendo o ternário decomponível em unidade e dualidade, de que ele representa a soma (18). Em lugar de uma árvore única, podemos ter também, com o mesmo significado, um conjunto de três árvores unidas pelas raízes, sendo a do meio a “Árvore da Vida” e as duas outras correspondendo à dualidade da “Árvore da Ciência”(17). Encontramos algo comparável na figuração da cruz do Cristo entre duas outras cruzes, as do bom e do mau ladrão: estes estão colocados respectivamente à direita e à esquerda do Cristo crucificado, como os eleitos e os danados estarão à direita e à esquerda do Cristo triunfante no “Juízo Final”; e, ao mesmo tempo em que representam evidentemente o bem e o mal, eles correspondem também, em relação ao Cristo, a “Misericórdia” e o “Rigor”, atributos característicos das duas colunas laterais da “árvore sefirótica”. A cruz do Cristo ocupa sempre o lugar central que pertence propriamente à “Árvore da Vida “; e, quando ela é colocada entre o sol e a lua como vemos na maior parte das antigas ilustrações, o mesmo acontece: ela é então, verdadeiramente, o “Eixo do Mundo”.

No simbolismo chinês, existe uma árvore cujos galhos são anastomizados de modo a que suas extremidades juntam-se duas a duas para figurar a síntese dos contrários ou a resolução da dualidade na unidade; encontramos assim uma árvore única, mas cujos ramos dividem-se e voltam a se juntar (20). É o processo da manifestação universal: tudo parte da unidade e retorna à unidade; no intervalo produz-se a dualidade, divisão ou diferenciação de onde resulta a fase de existência manifestada; as idéias de unidade e de dualidade são assim reunidas como nas outras representações de que falamos (21). Existem também representações de duas árvores distintas e unidas por um só galho (é o que se denomina “árvore ligada”); neste caso, um pequeno ramo sai do galho comum, o que indica claramente que se trata de dois princípios complementares e do produto de sua união; e este produto pode ser ainda a manifestação universal, nascida da união entre o “Céu” e a “Terra”, que são os equivalentes de Purusha e Prakriti na tradição extremo-oriental, ou ainda da ação e reação recíprocas do yang e do yin, elementos masculino e feminino dos quais procedem e participam todos os seres, e cuja reunião em perfeito equilíbrio constitui (ou reconstitui) o “Andrógino” primordial de que tratamos antes (22).

Voltemos entretanto à representação do “Paraíso Terrestre”: de seu centro, vale dizer do pé da “Árvore da Vida”, partem quatro rios que se dirigem aos quatro pontos cardeais, traçando assim a cruz horizontal sobre a própria superfície do mundo terrestre, vale dizer sobre o plano que corresponde ao domínio do estado humano. Estes quatro rios, que podemos relacionar ao quaternário dos elementos (23), e que saem de uma fonte única que corresponde ao éter primordial (24), dividem em quatro partes, que podem ser relacionadas às quatro fases de um desenvolvimento cíclico (25), o recinto circular do “Paraíso Terrestre”, o qual não é outra coisa que o corte horizontal da forma esférica universal de que já tratamos (26).

A “Árvore da Vida” se acha no centro da “Jerusalém Celeste”, o que se explica facilmente quando se conhece a relação ente este e o “Paraíso Terrestre” (27): trata-se da reintegração de todas as coisas no “estado primordial”, em virtude da correspondência entre o fim do ciclo e seu começo, segundo o que explicaremos a seguir. É interessante marcar que esta árvore, segundo o simbolismo apocalíptico, traz então doze frutos (28), que são, como já dissemos (29), assimiláveis aos doze Adityas da tradição hindu, que são doze formas do sol que devem aparecer todas simultaneamente no final do ciclo, reabsorvendo-se então na unidade essencial de sua natureza comum, pois eles não passam de manifestações diversas de uma essência única e indivisível, Aditi, que corresponde à essência una da própria “Árvore da Vida”, enquanto que Diti corresponde à essência dual da “Árvore da Ciência do Bem e do Mal” (30). De resto, em diferentes tradições, a imagem do sol é ligada à da árvores, como se o sol fosse o fruto da “Árvore do Mundo”; ele deixa sua árvore no início do ciclo e a ela retorna no final (31). Nos ideogramas chineses, o caracter que designa o por do sol o representa repousando sobre sua árvore no fim do dia (que é análogo ao fim do ciclo); a obscuridade é representada por um caracter que figura o sol caído ao pé da árvore. Na Índia, encontramos a árvore tripla que porta três sóis, imagem da Trimûrti, assim como a árvore que traz doze sóis como seus frutos, que são os doze Adityas; na China, encontramos igualmente a árvore com doze sóis, em relação com os doze signos do Zodíaco ou com os doze meses do ano como os Adityas, e às vezes também com dez, número da perfeição cíclica como na doutrina pitagórica (32). De modo geral, os diferentes sóis correspondem às diferentes fases de um ciclo (33); eles partem da unidade no início deste e retornam no final, que coincide com o começo de um outro ciclo, em razão da continuidade de todos os modos da Existência universal.













NOTAS


1.      Le Roi du Monde, cap. II; sobre a “Árvore do Mundo” e suas diferentes formas, ver também L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. VIII. – No esoterismo islâmico existe um tratado de Mohyiddin ibn Arabi chamado “A Árvore do Mundo”  (Shajaratl-Kawn).
2.      Le Roi du Monde, caps. V e IX; Autorité Spirituelle et Pouvoir Temporel, Caps. V e VIII.
3.      Sobre o simbolismo vegetal em relação com o “Paraíso Terrestre”, ver L’Esotérisme de Dante, cap. IX.
4.      Gênese, II, 9.
5.      Ibid., III, 3.
6.      Ibid., III, 22.
7.      Ibid., II, 17
8.      Sobre a “árvore sefirótica”, ver Le Roi du Monde, cap. III. – Da mesma forma, no simbolismo medieval, a “árvore dos vivos e dos mortos” possui dois lados cujos frutos representam respectivamente as boas e as más obras, aparentando-se à “Árvore da Ciência do Bem e do Mal”; e ao mesmo tempo, se tronco, que é o próprio Cristo, identifica-se com a “Árvore da Vida”.
9.      Gênese, III, 22. – A partir do momento em que “seus olhos se abriram”, Adão e Eva cobriram-se com folhas de figueira (ibid., III, 7); isto faz lembrar o fato de que, na tradição hindu, a “Árvore do Mundo” é representada pela figueira, e também do papel que esta mesma árvore desempenha no Evangelho.
10.  Ibid., III, 24.
11.  Cf. Le Roi du Monde, cap. V.
12.  Este simbolismo aproxima-se do que São Paulo diz dos dois Adão (I Cor., XV), a que já nos referimos. A figuração do crânio de Adão ao pé da cruz, em relação com a lenda segundo a qual ele teria sido enterrado no Gólgota (cujo nome significa “crânio”), é outra expressão simbólica da mesma relação.
13.  Cabe lembrar que a cruz, sob sua forma comum, encontra-se nos hieróglifos egípcios com o sentido de “salvação” (por exemplo no nome de Ptolomeu Soter). Este signo é claramente distinto da “cruz ansada” (ankh), que, por seu lado, exprime a idéia de  “vida”, e que foi aliás empregada freqüentemente como símbolo pelos Cristãos dos primeiros séculos. Podemos nos perguntar se o primeiro destes dois hieróglifos não teria uma certa relação com a figuração da “Árvore da Vida”, o que religaria uma à outra estas duas formas diferentes da cruz, pois seu significado seria assim em parte idêntico; e, em todo caso, existe entre as duas idéias de “vida” e de “salvação” uma conexão evidente.
14.  Números, XXI.
15.  bastão de Esculápio tem um significado similar; no caduceu de Hermes, temos duas serpentes em oposição, correspondendo ao duplo significado deste símbolo.
16.  Le Roi du Monde, cap.III.
17.  A serpente enrolada ao redor da árvore (ou ao redor do bastão) é um símbolo que se encontra na maior parte das tradições; veremos adiante qual é seu significado do ponto de vista da representação geométrica do ser e de seus estados.
18.  Em uma passagem do Astrée de Honoré d’Urfé, fala-se de uma árvore com três troncos, segundo uma tradição que parece ser de origem druídica.
19.  Esta identificação da cruz com o “Eixo do Mundo” acha-se enunciada expressamente a divisa dos Chartreux: “Stat Crux dum volvitur orbis”. – Cf. o símbolo do “globo do Mundo”, onde a cruz sobre o polo faz igualmente o papel de eixo (ver L’Esotérisme de Dante, cap. VIII).
20.  Estas duas formas se acham notadamente nos baixos-relevos da época Han.
21.  A árvore de que se trata tem folhas trilobadas ligadas a dois ramos ao mesmo tempo, e, ao seu redor, flores em forma de cálice; pássaros voam ao redor ou estão pousados na árvore. – Sobre a relação entre o simbolismo dos pássaros e o da árvore em diferentes tradições, ver L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta, cap. III, onde destacamos a respeito diversos textos dos Upanishads e a parábola evangélica do grão de cevada; podemos acrescentar, entre os Escandinavos, os dois corvos mensageiros de Odin repousando sobre o freixo Ygdrasil, que é uma das formas da “Árvore do Mundo”. No simbolismo da idade média, encontramos igualmente dois pássaros sobre a árvore Peridexion, ao pé de que está um dragão; e o nome desta árvore é uma corruptela de Paradision, e pode parecer estranho que tenha sido assim deformado, como se se houvesse deixado de compreende-lo em um dado momento.
22.  Em lugar da “árvore ligada”, encontramos às vezes dois rochedos unidos do mesmo modo; existe de resto uma relação entre a árvore e o rochedo, equivalente da montanha, enquanto símbolos do “Eixo do Mundo”; e, de modo mais geral ainda, existe uma aproximação constante da pedra e da árvore na maioria das tradições.
23.  A Qabbalah faz corresponder a estes quatro rios as quatro letras que formam a palavra PaRDeS.
24.  Esta fonte é, segundo a tradição dos “Fiéis do Amor”, a “fonte da juventude” (fons juventutis), sempre representada como situando-se ao pé de uma árvore; suas águas são assimiladas à “bebida da imortalidade” (amrita, na tradição hindu); as relações da “Árvore da Vida” com o Soma védico e o Haoma do masdeísmo são aliás evidentes (cf. Le Roi du Monde, caps. IV e VI). Lembremos também, a propósito, o “orvalho de luz” que, segundo a Qabbalah hebraica, emana da “Árvore da Vida”, e pelo qual deve operar-se a ressurreição dos mortos (ver ibid. cap. III); o orvalho desempenha ainda um papel importante no simbolismo hermético. Nas tradições extremo-orientais, menciona-se a “árvore do orvalho doce”, situada sobre o monte Kouenlun, que é muitas vezes tomado como equivalente do Mêru e de outras “montanhas sagradas” (a “montanha polar”, que é, como a árvore, um símbolo do “Eixo do Mundo”). – Segundo a mesma tradição dos “Fiéis do Amor” (ver Luigi Valli, Il Linguaggio Secreto di Dante e dei Fedeli d’Amore) esta fonte é também a “fonte do ensinamento”, o que se refere à conservação da Tradição primordial no centro espiritual do mundo; encontramos aqui, entre o “estado primordial” e a “Tradição primordial”, a ligação que já assinalamos a respeito do simbolismo do “Santo Graal”, visto sob o duplo aspecto da copa e do livro (Le Roi du Monde, cap. V). Lembremos ainda a representação, no simbolismo cristão, do cordeiro sobre o livro selado com sete selos, sobre a montanha de onde descem os quatro rios (ver ibid., cap. IX); veremos adiante a relação que existe entre o símbolo da “Árvore da Vida” e o do “Livro a Vida”. – Um outro simbolismo que pode trazer aproximações interessantes acha-se entre certos povos da América central que, na “interseção de dois diâmetros retangulares traçados dentro de um círculo, colocam o cacto sagrado, peyotl ou hicouri, simbolizando a “copa da imortalidade”, que assim se encontra no centro de uma esfera cavada no centro do mundo” (A. Routhier, La Plante qui Fait les Yeux Emerveillés. Le Peyotl, Paris, 1927, pg. 154). Cf. também, em correspondência com os quatro rios, as quatro copas sacrificiais dos Rhibus no Veda.
25.  Ver L’Esotérisme de Dante, cap. VIII, onde, a propósito da figura do “ancião de Creta”, que representa as quatro idades da humanidade, indicamos a existência de uma relação analógica entre os quatro rios dos Infernos e os do Paraíso terrestre.
26.  Ver Le Roi du Monde, cap. XI.
27.  Ver ainda ibid., cap. XI. – A figura da “Jerusalém celeste” é, não mais circular, mas quadrada, pois o  equilíbrio final foi atingido para o ciclo considerado.
28.  Os frutos da “Árvore da Vida” são os “pomos de ouro” do jardim das Hespérides; o “velo de ouro” dos Argonautas, igualmente colocado sobre uma árvore e guardado por uma serpente ou um dragão, é um outro símbolo da imortalidade que o homem deve reconquistar.
29.  Ver Le Roi du Monde, caps. IV e XI.
30.  Os Dêvas, assimilados aos Adityas, são considerados como saídos de Aditi (a “indivisibilidade”); de Diti (a “divisão”) saem dos Daityas ou os Asuras. – Aditi é também, num certo sentido, a “Natureza primordial”, chamada em árabe El-Fitrah.
31.  Isto tem uma relação com o que indicamos sobre a transferência de certas designações das constelações polares para as constelações zodiacais ou inversamente (Le Roi du Monde, cap. X). – O sol pode, de certo modo, ser chamado “filho do Polo”; daí a anterioridade do simbolismo “polar” em relação ao simbolismo “solar”.
32.  Cf., na doutrina hindu, os dez Avatâras manifestando-se durante o curso de um Manvantara.
33.  Entre os povos da América central, as quatro idades nas quais se divide o grande período cíclico são consideradas como regidas por quatro sóis diferentes, cujas designações são tiradas de sua correspondência com os quatro elementos.













X

 A SWASTIKA


Uma das formas mais marcantes da cruz horizontal, ou seja da cruz traçada sobre o plano que representa um certo estado de existência, é a figura da swastika, que parece ligar-se diretamente à Tradição primordial, pois a encontramos nos países mais diversos e mais distantes uns dos outros, e isto desde as épocas mais recuadas; longe de ser um símbolo exclusivamente oriental, como se crê às vezes, ela é um dos que encontra-se mais disseminado, indo do Extremo-Oriente ao Extremo-Ocidente, pois ela existe até mesmo entre certos povos indígenas da América (1). É verdade que, na época atual, ela conservou-se sobretudo na Índia e na Ásia central e oriental, e apenas nestas regiões ainda se conhece seu significado; entretanto, mesmo na Europa, ela não desapareceu inteiramente (2). Na antigüidade, encontramos este signo, em particular, entre os Celtas e na Grécia pré-helênica (3); e, ainda no Ocidente, ela foi antigamente um dos emblemas do Cristo, tendo permanecido em uso até o fim da idade média (4).

Dissemos em outro estudo que a swastika é essencialmente o “signo do Polo” (5); se a compararmos com a figura da cruz inscrita numa circunferência, veremos que se trata, no fundo, de dois símbolos eqüivalentes sob certos aspectos; mas a rotação ao redor do centro fixo, ao invés de ser representada pelo traçado da circunferência, é apenas indicada na swastika pelas linhas acrescentadas às extremidades dos braços da cruz, e que formam ângulos retos com estes; estas linhas são as tangentes à circunferência, que marcam a direção do movimento nos pontos correspondentes. Como a circunferência representa o mundo manifestado, o fato de que ela está por assim dizer subentendida indica claramente que a swastika não é uma imagem do mundo, mas antes da ação do Princípio em relação ao mundo.

Se relacionarmos a swastika com a rotação de uma esfera tal como a esfera celeste ao redor de seu eixo, devemos considerá-la como traçada sobre o plano equatorial, e então o ponto central será, como explicamos, a projeção do eixo sobre este plano que lhe é perpendicular. Quanto ao sentido de rotação indicado pela figura, sua importância é secundária e não afeta o significado geral do símbolo; de fato, encontramos uma ou outra das duas formas indicando uma rotação da direita para a esquerda e da esquerda para a direita (6), e isto sem que se deva sempre ver aí uma intenção de estabelecer entre elas uma distinção qualquer. É verdade que, em certos países e em determinadas épocas, pode se produzir, em relação à tradição ortodoxa, cismas cujos partidários tenham voluntariamente dado à figura uma orientação contrária à que estivesse em uso no meio do qual eles se separavam, para afirmar seu antagonismo através de uma manifestação exterior, mas isto não diz respeito ao significado essencial, que permanece o mesmo em todos os casos. De resto, encontra-se às vezes as duas formas associadas: podemos vê-las então como representando uma mesma rotação vista de um ou outro dos Pólos; isto se liga ao simbolismo bastante complexo dos dois hemisférios, que não poderemos abordar aqui (7).

Não podemos aqui desenvolver todas as considerações a que dá lugar o simbolismo da swastika, e que aliás não se prendem ao objeto do presente estudo; mas, em razão de sua importância do ponto de vista tradicional, não poderíamos deixar de mencionar esta forma especial da cruz; acreditamos necessário ao menos fornecer estas poucas indicações, e nos deteremos aqui para não entrarmos em longas digressões.


















NOTAS


1.      Tivemos recentemente uma informação que parece indicar que as tradições da América antiga não se perderam tanto quanto se pensa: o autor do artigo onde a encontramos parece aliás não se ter dado conta do seu alcance; eis sua reprodução literal: “Em 1925, uma grande parte dos índios Cuna se sublevaram, mataram os agentes do Panamá que habitavam seu território, e fundaram a República independente de Tulé, cuja bandeira é uma swastika sobre fundo laranja com a borda vermelha. Esta república continua existindo ainda hoje” (Les Indiens de l’Isthme de Panama, por G. Grandidier – Journal des Débats, 22 de Janeiro de 1929). Frisaremos sobretudo a associação da swastika com o nome Tulé ou Tula, que é uma das mais antigas denominações do centro espiritual supremo, aplicado também a alguns centros subordinados (ver Le Roi du Monde, cap. X).
2.      Na Lituânia e na Courlândia, as pessoas ainda traçam este signo em suas casas; sem dúvida, não se conhece mais o seu sentido, tomando-o como uma espécie de talismã protetor; mas o mais curioso é que lhe dão o nome sânscrito de swastika. Parece aliás que o lituano é, de todas as línguas européias, a que mais semelhanças tem com o sânscrito. – Nós deixamos inteiramente de lado, não é preciso dize-lo, o uso totalmente artificial e mesmo antitradicional da swastika pelos “racistas” alemães que, sob a denominação fantasista e algo ridícula de hakenkreuz ou  cruz “à crochets”, fizeram dela, arbitrariamente, um signo do anti-semitismo, sob pretexto de que este signo pertenceria à autodenominada “raça ariana”, enquanto que, ao contrário, trata-se de um signo realmente universal. – Assinalemos a este propósito que a denominação de “cruz gamada”, que é freqüentemente dada à swastika devido à semelhança da forma de seus braços com a letra grega gamma, é igualmente errônea; na verdade, os signos que eram chamados antigamente gammadia eram bem diferentes, embora possam ter se achado mais ou menos associados à swastika nos primeiros tempos do Cristianismo. Um destes signos, chamado também de “cruz do Verbo”, é formado por quatro gammas cujos ângulos são voltados para o centro; a parte interior da figura, que tem a forma crucial, representa o Cristo, e os quatro gammas angulares os quatro Evangelistas; esta figura corresponde assim à representação bem conhecida do Cristo no meio dos quatro animais. Encontramos uma outra disposição  onde uma cruz central é cercada por quatro gammas dispostos em quadrado (com os ângulos voltados para fora e não para dentro); o significado desta figura é o mesmo que o da precedente. Acrescentemos que estes signos colocam o simbolismo do esquadro (cuja forma é também a de um gamma) em relação direta com o da cruz.
3.      Existem diversas  variantes da swastika, notadamente uma forma com os braços curvos (que tem a aparência de dois S cruzados), e outras formas que indicam relações com diversos símbolos cujo significado não podemos desenvolver aqui; a mais importante destas formas é a swastika chamada “clavígera”, porque seus braços são formados por chaves (ver La Grande Triade, cap. VI). Por outro lado, certas figuras que só guardaram um significado decorativo, como a chamada “grega”, são originariamente derivadas da swastika.
4.      Ver Le Roi du Monde, cap. I.
5.      Ibid., cap. II. – Como já indicamos as interpretações fantasistas dos autores Ocidentais modernos, não retornaremos a elas aqui.
6.      A palavra swastika é, em sânscrito, a única que serve para designar em todos os casos o símbolo em questão; o termo sauvastika, que alguns quiseram aplicar a uma das duas formas para distingui-la da outra (que seria assim a verdadeira swastika), não passa de um adjetivo derivado de swastika e que indica aquilo que se refere ao símbolo ou aos seus significados. – Quanto à palavra swastika, ela é derivada de su asti, fórmula de “benção” que tem seu eqüivalente no ki-tôb hebraico da Gênese. No que concerne este último, o fato de que ele se acha repetido ao final do enunciado de cada um dos “dias” da Criação é marcante se levarmos em conta esta aproximação: ela parece assim indicar que estes “dias” são assimiláveis a outras tantas rotações da swastika, ou, em outros termos,  a revoluções completas da “roda do Mundo”, revoluções das quais resulta a sucessão de “noites e dias” que são enunciados em seguida (cf. também La Grande Triade, cap. V).

7.      Existe a este respeito uma relação entre o símbolo da swastika e o da dupla espiral, muito importante igualmente, e que, por outro lado, é estreitamente aparentado do yin-yang extremo-oriental de que trataremos mais adiante.

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