quarta-feira, 21 de outubro de 2015

René Guénon - O Erro Espírita - Parte 2

RENÉ GUÉNON

O ERRO ESPÍRITA








SEGUNDA PARTE

 Exame das teorias espíritas


I
DIVERSIDADE
DAS ESCOLAS ESPÍRITAS


Antes de abordar o exame das teorias espíritas, devemos lembrar que estas teorias variam consideravelmente segundo as escolas; o que constitui o espiritismo em geral, é apenas a hipótese da comunicação com os mortos e de sua manifestação por meios de ordem sensível. Quanto ao resto, podem haver e existem de fato divergências, mesmo sobre pontos tão importantes como a reencarnação, admitida por uns e rejeitada por outros; e a constatação dessas divergências é já razão para duvidar seriamente do valor das pretensas revelações espíritas. De fato, o que faz o caráter especial do espiritismo, é que aquilo que ele apresenta como sua doutrina está inteiramente baseado nos ensinamentos dos “espíritos”; existe aí uma contrafação da “revelação”, no sentido religioso, que não é inútil sublinhar, tanto mais que os espíritas pretendem que tenha sido a revelações da mesma ordem que as religiões devem suas origens, assimilando os fundadores a um conjunto de médiuns muito potentes, visionários e taumaturgos. Os milagres, com efeito, são reduzidos por eles à proporção dos fenômenos que se produzem nas suas sessões, as profecias à das “mensagens” que eles recebem (1), e as proezas dos seus “médiuns curadores”, notadamente, são postas em paralelo com as curas reportadas nos Evangelhos (2); estas pessoas parecem fazer de tudo para “naturalizar o sobrenatural”. Temos o exemplo de uma pseudo-religião, o Antonismo, fundada na Bélgica por um “curador”, antigo chefe de um grupo espírita, cujos ensinamentos, piedosamente recolhidos por seus discípulos, não encerram mais do que uma espécie de moral protestante expressa num jargão quase incompreensível; podemos dizer quase o mesmo de certas seitas norte-americanas como a “Christian Science”, que mesmo não sendo espíritas, são ao menos “neo-espiritualistas”. Digamos também de passagem, já que se apresenta a ocasião, que os espíritas gostam de interpretar o Evangelho a seu modo, seguindo o exemplo do Protestantismo, cuja influência sobre todos estes movimentos é inegável: e assim eles imaginam encontrar mesmo argumentos em favor da reencarnação. De resto, se certos ocultistas se dizem cristãos, eles o são tanto quanto os protestantes liberais, porque isto não implica que eles reconheçam a divindade do Cristo, que para eles não passa de um “espírito superior”: tal é a atitude dos espíritas franceses da escola de Allan Kardec (existe mesmo uma fração que se denomina “cristã-kardecista”), e também daqueles que aderem ao “neo-cristianismo” imaginado pelo artista de “vaudeville” Albin Valabrègue, que por sinal era israelita. Conhecemos ocultistas que, em lugar de se dizerem cristãos como todo mudo, preferem qualificar-se como “crísticos”, a fim de marcar com isto que eles não pretendem aderir a nenhuma Igreja constituída; os espíritas deveriam também encontrar uma palavra própria para evitar quaisquer equívocos, pois eles estão com certeza muito mais distantes do cristianismo real do que os ocultistas a que fizemos alusão.

Mas voltemos aos ensinamentos dos “espíritos” e às suas inumeráveis contradições: mesmo admitindo que estes “espíritos” sejam aquilo por que se fazem passar, que interesse pode haver em escutar o que eles dizem se eles não concordam entre si, e se, malgrado sua mudança de condição, eles não sabem muito mais do que os vivos? Sabemos a resposta dos espíritas, que existem “espíritos inferiores” e “espíritos superiores”, e que só estes últimos são dignos de fé, enquanto que os outros, longe de poder “esclarecer” os vivos, tem muitas vezes necessidade de serem “esclarecidos” por eles, sem contar os “espíritos farsantes” aos quais se deve uma quantidade de “comunicações” triviais e mesmo obscenas, e que é preciso afastar pura e simplesmente; mas como distinguir estas diversas qualidades de “espíritos”? Os espíritas imaginam estar em contato com um “espírito superior” quando eles recebem uma “comunicação” na qual eles encontram um caráter “elevado”, seja por ter um aspecto de pregação, seja por conter divagações vagamente filosóficas; mas, infelizmente, as pessoas neutras não vêem aí mais do que um tecido de bobagens, e se, como ocorre muitas vezes, esta “comunicação” vem assinada por um grande homem, ela tende a fazer pensar que este fez o contrário de “progredir” após sua morte, o que coloca em cheque o evolucionismo espírita. Por outro lado, estas “comunicações” são as que encerram os ensinamentos propriamente ditos; como existem ensinamentos contraditórios, eles não podem todos igualmente emanar dos “espíritos superiores”, de modo que o tom sério que eles afetam não é garantia suficiente; mas qual outro critério se pode usar? Cada grupo fica naturalmente admirado diante das “comunicações” que obtém, mas desconfia das recebidas por outros, sobretudo quando se trata de grupos entre os quais haja uma certa rivalidade; de fato, cada um deles possui seu médium titular, e os médiuns demonstram um incrível ciúme em relação aos seus confrades, pretendendo monopolizar certos “espíritos”, contestando a autenticidade das “comunicações” dos outros, e os grupos os seguem nessa atitude; e aí incluem-se todos os meios em que se prega a própria “fraternidade universal”! Quando há contradições nos ensinamentos, tudo o que uns atribuem aos “espíritos superiores”, os outros olham como obra dos “espíritos inferiores”, e reciprocamente, como na disputa entre encarnacionistas e anti-encarnacionistas; cada um apela para o testemunho dos seus “guias” ou dos seus “controles” (2), ou seja dos “espíritos” em que têm confiança, aos quais, bem entendido, apressam-se em confirmar na idéia de sua própria “superioridade” e da “inferioridade” de seus contraditores. Nestas condições, e na medida em que os espíritas estão tão longe de se entender sobre a qualidade de seus “espíritos”, como confiar nas suas qualidades de discernimento? E, mesmo se não discutirmos a proveniência dos seus ensinamentos, podem estes ter mais valor do que as opiniões dos vivos, uma vez que estas opiniões, mesmo errôneas, persistem após a morte, como parece, e só desaparecem ou são corrigidas com uma enorme lentidão? É assim que se explica, por exemplo, que, enquanto a maioria das “comunicações”, sobretudo na França, são de um “deísmo” que cheira ao fim do século XVIII, existem algumas que são francamente atéias, e existem outras até materialistas, o que é menos paradoxal do que parece, dadas as concepções espíritas da vida futura. De resto, “comunicações” deste gênero podem também encontrar partidários em qualquer meio; Jules Lermina, o “velho empregado” da Lanterne, não aceitava a qualificação de “espírita materialista”? Diante de todas essas incoerências, seria mais prudente, da parte dos espíritas, reconhecer que a sua doutrina não é absolutamente estável, que ela é susceptível de “evoluir” como os próprios “espíritos”; e talvez, com sua mentalidade especial, eles não estariam distantes de ver aí uma marca de superioridade. Eles declaram, de fato, “remeterem-se à razão e ao progresso da ciência, reservando-se o direito de modificar suas crenças à medida em que o progresso e a experiência demonstrem a necessidade” (3); não é possível ser mais moderno e mais “progressista”. Os espíritas pensam provavelmente, como Papus, que “esta idéia de evolução progressiva põe fim a todas as concepções mais ou menos profundas das teologias sobre o Céu e o Inferno” (4); estas pobres pessoas não suspeitam que, entusiasmando-se por esta idéia, elas estão simplesmente iludidas pela mais ingênua de todas as ilusões.

Nas condições que acabamos de descrever, é concebível que o espiritismo seja um pouco anárquico e não possua uma organização bem definida; entretanto ele formou, em diversos países, algumas associações extensas, onde diversos grupos espíritas, ou ao menos a maioria deles, unem-se sem renunciar à sua autonomia; trata-se aí mais de um acordo do que de uma direção efetiva. Tais são as “Federações”, como existem notadamente na Bélgica e em muitos estados da América do Sul; na França, foi fundada em 1919 uma “União Espírita”, cujas pretensões são maiores, pois à sua frente colocou-se um “Comitê de direção do espiritismo”, mas não sabemos até que ponto esta direção é seguida, e, em todo caso, é certo que há dissidentes (6). No seio mesmo da escola kardecista, o acordo não é absolutamente perfeito: alguns, como Léon Denis, declaram ater-se ao kardecismo puro; outros, como Gabriel Delanne, pretendem dar ao movimento espírita tendências mais “científicas”. Alguns espíritas chegam a sustentar que “o espiritismo-religião deve ceder o lugar ao espiritismo-ciência” (7); mas, no fundo, o espiritismo, com qualquer forma que se revista, e quaisquer que sejam suas pretensões “científicas”, não poderá jamais ser outra coisa do que uma pseudo-religião. Podemos reproduzir, como particularmente significativas a este respeito, as questões que foram colocadas e discutidas, em 1913, no Congresso espírita internacional de Genebra: “Que papel o espiritismo poderá reivindicar na evolução religiosa da humanidade? É o espiritismo uma religião científica universal? Qual a relação entre o espiritismo e as outras religiões que existem atualmente? O espiritismo pode ser assimilado a um culto?” A declaração que citamos não provém de uma escola kardecista; ela foi tirada do jornal de uma seita denominada “Fraternismo”, que professa teoria muito particulares, e que adquiriu um desenvolvimento considerável, sobretudo nos meios operários do Norte da França; voltaremos a falar disso mais adiante, assim como de outras seitas do mesmo gênero, que não estão dentre as menos perigosas.

Na América do Norte, a ligação entre todos os agrupamentos é sobretudo constituído por vastas reuniões ao ar livre chamadas de camp-meetings, que acontecem a intervalos mais ou menos regulares, e nos quais se ouvem por muitos dias os discursos e as exortações dos chefes do movimento e dos médiuns “inspirados”; é completamente diferente dos Congressos europeus. É de resto em seu país de origem, como é natural, que o espiritismo deu nascimento ao maior número de associações e do caráter mais variado; em nenhuma parte, ele foi colocado tão abertamente como religião, do que em algumas dessas associações. De fato, existem espíritas que não recuam diante de fundar “Igrejas”, com uma organização em tudo semelhante à das inumeráveis seitas protestantes deste mesmo país: tal é, por exemplo, a “Igreja do Verdadeiro Espiritismo”, fundada sob a inspiração do “espírito” do Ver. Samuel Watson, um antigo pastor metodista que converteu-se ao modern spiritualism. Outros preferem a forma dessas sociedades secretas ou semi-secretas que são tidas em grande conta nos Estados Unidos, e que se enfeitam com os títulos mais pomposos, mais impressionantes para os “profanos”; um Americano poderá impor-se àqueles que não sabem do que se trata, apresentando-se como membro da “Antiga Ordem de Melquisedeque”, também chamada de “Fraternidade de Jesus” (8), ou de alguma “Ordem dos Magos” (existem muitas com este nome); e o espanto será geral quando se descobrir estar diante de um simples espírita. Organizações deste tipo podem nem ser especificamente espíritas, mas contar com um grande número de espíritas entre seus membros; de resto, dentre as múltiplas formas do neo-espiritualismo, existem algumas que não passam de um espiritismo mais ou menos aperfeiçoado. Chega a tal ponto que podemos nos perguntar se a aparência ocultista e as pretensões esotéricas de tal ou qual agrupamento não são uma máscara tomada por alguns espíritas que quiseram isolar-se da massa e operar uma espécie de seleção relativa; e, se os espíritas em geral repudiam o esoterismo, a presença de alguns deles nos meios propriamente ocultistas prova que podem existir muitas transições e acomodações; a conduta dessas pessoas não está sempre rigorosamente de acordo com seus princípios, se é que princípios elas tem. É sobretudo entre os espíritas anglo-saxões que encontramos coisas do gênero que mencionamos: já falamos em outra parte de uma sociedade inglesa auto-denominada rosicruciana, chamada “Ordem do Orvalho e da Luz”, que foi acusada pelas concorrentes de praticar a “magia negra” (9); o que há de certo, é que ela não tinha nenhuma relação com a antiga Rosa-Cruz de onde ela pretendia tirar seu nome, que a maior parte de seus membros eram espíritas, e que, nela se praticava mais o espiritismo do que qualquer outra coisa. “Seus guias, podemos de fato ler numa carta publicada por um órgão teosofista, são elementares: Francisco o monge, M. Sheldon, e Abdallah bem Yusuf, este último antigo adepto árabe; eles sacrificam cabras; eles tentaram formar um círculo para obter informações de forma proibida. Existem entre eles astrólogos e seguidores cegos de Hiram Butler” (10). Este último personagem havia fundado em Boston uma “Fraternidade Esotérica”, que se propunha como objetivo “o estudo e o desenvolvimento do verdadeiro sentido interno da inspiração divina, e a interpretação de todas as Escrituras”; as numerosas obras que ela publicou não contém nada de sério. Entretanto, neste exemplo não se pode dizer que se trate de uma escola espírita propriamente falando; mas podemos supor, ou bem que o espiritismo infiltrou-se numa organização pré-existente, ou que o que existe aí é só um disfarce destinado a iludir por meio do nome usurpado; em todo caso, se não se tratasse de espiritismo, ela deveria pelo menos demonstrar ser outra coisa. Se citamos este caso, foi para melhor mostrar todas as formas que um movimento como esse pode tomar; e, a este propósito, lembraremos ainda a influência que o espiritismo exerceu sobre o ocultismo e o teosofismo, malgrado o antagonismo aparente em que ele se achou diante destas escolas mais recentes, cujos fundadores e chefes, tendo sido primeiramente espíritas em sua maior parte, mantiveram sempre alguma coisa de suas antigas idéias.



NOTAS


1.      Num livro intitulado Spirite et Chrétien, Alexandre Bellemare chegou a escrever o seguinte: “Nós reduzimos os profetas da antiga lei ao nível dos médiuns; nós rebaixamos o que foi indevidamente elevado; nós retificamos um sentido desnaturado. E ainda, se nos fosse necessário fazer uma escolha, daríamos preferência ao que escrevem diariamente os médiuns atuais ao invés do que escreveram os médiuns do Antigo Testamento”.
2.      Ver Léon Denis, Christianisme et Spiritisme, pgs. 89-91; Dans l’Invisible, pgs. 423-439.
3.      O primeiro termo é dos espíritas franceses, o segundo dos espíritas anglo-saxões.
4.      Dr. Gibier, Le Spiritisme, pg. 141. – Cf. Léon Denis, Christianisme et Spiritisme, pg. 282.
5.      Traité méthodique de Science occulte, pg. 360.
6.      No Congresso espírita havido em Bruxelas em Janeiro de 1910, formou-se um projeto mais ambicioso ainda, o de uma “Federação Espírita Universal”; parece que isto não teve seqüência, embora haja então se constituído um “Escritório Internacional do Espiritismo”, sob a presidência do cavaleiro Le Clément de Saint-Marcq.
7.      Le Fraterniste, 19 de Dezembro de 1913.
8.      Esta Ordem, sob cujos auspícios funciona a “Associação dos Camp-Meetings de Sion-Hill”, no Arkansas, é dirigida por um “Supremo Templo”, que se reúne anualmente nesta mesma localidade, e que é composta por delegados “escolhidos pelos Reinos de Luz” (sic).





II
A INFLUÊNCIA DO MEIO


Embora as teorias espíritas sejam tiradas das “comunicações” dos pretensos “espíritos”, elas estão sempre em estreita relação com as idéias em curso no meio em que são elaboradas; esta constatação apóia fortemente a tese que expusemos, segundo a qual a principal fonte real destas “comunicações” encontra-se no “subconsciente” do médium e dos assistentes. Lembramos que pode ainda formar-se uma espécie de combinação dos diversos “subconscientes” em presença, de modo a dar a ilusão de uma “entidade coletiva”; dizemos ilusão, porque somente os ocultistas, com sua mania de ver em toda parte “seres vivos” (e eles reprovam o suposto antropomorfismo das religiões!), podem ser levados pelas aparências até crer que se trata aí de um ser verdadeiro. Seja como for, a formação desta “entidade coletiva”, para conservarmos este modo de falar, explica o fato, observado por todos os espíritas, d que as “comunicações” são tanto mais claras e coerentes na medida em que as sessões são mais regulares e com os mesmos assistentes; inclusive eles insistem nestas condições, mesmo sem conhecer a razão, e freqüentemente hesitam em admitir novos membros em grupos já constituídos, preferindo levá-los a formar novos grupos; de resto, uma reunião muito numerosa se prestaria mal ao estabelecimento de laços sólidos e duráveis entre seus membros. A influência dos assistentes pode ir muito longe e manifestar-se de outras maneiras além das “comunicações”, se acreditarmos no espírita russo Aksakoff, segundo o qual o aspecto das “materializações” se modifica cada vez que novos assistentes são introduzidos nas sessões em que elas se produzem, embora estas “materializações” continuem a se apresentar sob a mesma identidade; naturalmente, este fato é explicado por ele pelos empréstimos que os “espíritos materializados” fazem aos “perispíritos” dos vivos, mas quanto a nós, não podemos ver aí senão a realização de uma “imagem composta” para a qual cada um fornece alguns traços, operando-se assim uma fusão entre os produtos dos diversos “subconscientes” individuais.

Bem entendido, não excluímos a possibilidade de ação de forças estrangeiras; mas, de modo geral, quaisquer que sejam estas influências, quando elas intervém, elas devem estar em conformidade com as tendências dos agrupamentos onde elas se manifestam. De fato, é preciso que elas sejam atraídas por certas afinidades; os espíritas, ignorando as leis segundo as quais agem estas influências, são forçados a acolher o que se apresenta sem poder determiná-las à sua vontade. Por outro lado, dissemos que as “influências errantes” não podem ser vistas como propriamente conscientes por si mesmas; é com a ajuda dos “subconscientes” humanos que elas formam uma consciência temporária, de sorte que, do ponto de vista das manifestações inteligentes, o resultado aqui é exatamente o mesmo que quando só há a ação das forças exteriorizadas dos assistentes. A única exceção que cabe fazer diz respeito à consciência reflexa que pode permanecer inerente aos elementos psíquicos que pertenceram a seres humanos e que estejam atualmente em vias de desagregação; mas as respostas que provém desta fonte tem geralmente um caráter fragmentário e incoerente, de modo que os próprios espíritas não lhes dão atenção; e no entanto é aí que está o que provém realmente dos mortos, embora o “espírito” deste, ou seu ser real, não participe em nada disto.

Cabe ainda observar outra coisa, cuja ação pode ser muito importante: trata-se dos elementos emprestados, não mais aos assistentes imediatos, nas ao ambiente geral. A existência de tendências ou correntes mentais cuja força é predominante numa dada época e país é bastante conhecida, ao menos vagamente, para que se compreenda o que queremos dizer. Estas correntes agem mais ou menos sobre todo mundo, mas sua influência é particularmente forte sobre os indivíduos que podemos chamar “sensitivos”, e, entre os médiuns, esta qualidade é levada ao seu grau mais alto. Por outro lado, entre os indivíduos normais, é principalmente no domínio do “subconsciente” que se exerce esta influência; ela se afirmará mais claramente quando o conteúdo deste “subconsciente” apareça exteriormente, como acontece nas sessões espíritas, e devemos reportar a esta origem muitas das inacreditáveis banalidades que brotam das “comunicações”. Podem mesmo acontecer, nesta ordem, manifestações que parecem apresentar mais interesse: existem idéias das quais se diz vulgarmente que “estão no ar” e sabemos que certas descobertas científicas foram feitas simultaneamente por pessoas que trabalhavam independentemente umas das outras; se tais resultados jamais foram obtidos pelos médiuns, é porque, mesmo quando eles recebem uma idéia deste gênero, eles serão incapazes de tirar partido dela, e tudo o que farão será expressá-la sob uma forma mais ou menos ridícula, às vezes quase incompreensível, mas que causará a admiração dos ignorantes dentre os quais o espiritismo recruta a imensa maioria dos seus aderentes. Eis como se explicam as “comunicações” com ares científicos ou filosóficos, que os espíritas apresentam como prova da verdade da sua doutrina, uma vez que o médium, sendo bastante pouco inteligente ou iletrado, lhes parece evidentemente incapaz de ter inventado tais coisas; e acrescentamos que, em muitos casos, estas “comunicações” são simplesmente o reflexo de leituras quaisquer, talvez incompreendidas, e que não são forçosamente do próprio médium. As idéias ou as tendências mentais de que falamos agem um pouco ao modo das “influências errantes”, e mesmo esta denominação é tão abarcante que tudo caberia nela, como uma classe especial destas influências: elas não estão forçosamente incorporadas ao “subconsciente” dos indivíduos, elas podem também permanecer no estado de correntes mais ou menos indeterminadas (mas que não tem nada das correntes “fluídicas” dos ocultistas), e manifestar-se nas sessões espíritas. De fato, nessas sessões, não é somente o médium, é todo o grupo que se coloca em estado de passividade, ou, se se preferir, de “receptividade”; é o que lhes permite atrair as “influências errantes” em geral, pois lhes seria impossível captá-las exercendo sobre elas uma ação positiva como faz o mágico. Esta passividade, com todas as conseqüências que ela encerra, é o maior de todos os perigos do espiritismo; é preciso acrescentar a ela, sob este aspecto, o desequilíbrio e a dissociação parcial que essas práticas provocam nos elementos constitutivos do ser humano, e que, mesmo entre os que não são médiuns, não devem ser negligenciados: a fadiga demonstrada por simples assistentes após uma sessão prova-o suficientemente, e a longo prazo os efeitos podem ser funestos.

 Existe um outro ponto que demandaria uma atenção especial: existem organizações que são o contrário dos grupos espíritas, no sentido em que elas se aplicam a provocar e manter, de modo consciente e voluntário, certas correntes mentais. Se consideramos de um lado uma tal organização, e de outro um grupo espírita, já se vê o que poderá se produzir: uma emitirá uma corrente, a outra irá recebê-la; teremos assim um pólo positivo e um pólo negativo entre os quais se estabelecerá uma espécie de “telégrafo psíquico”, sobretudo se a organização em vista for capaz, não apenas de produzir a corrente, mas também de dirigi-la. Uma explicação deste gênero é aliás aplicável aos casos de “telepatia”; mas, nestes, a comunicação se estabelece entre dois indivíduos, e não entre duas coletividades, e ademais ela é no mais das vezes acidental e momentânea, não tendo sido intencional de uma parte nem de outra. Vemos que isto está ligado ao que dissemos das origens do espiritismo e do papel que pode ter sido aí desempenhado por homens vivos, sem que estes pareçam ter tomado nisto a menor parte: um movimento como aquele era eminentemente apropriado para servir à propagação de certas idéias, cuja proveniência poderia permanecer inteiramente ignorada por aqueles mesmos que dele participaram; mas o inconveniente era que o instrumento assim criado podia também achar-se à mercê de quaisquer outras influências, talvez até mesmo opostas às que inicialmente foram postas em ação. Não podemos insistir nisso agora, nem expor uma teoria mais completa sobre os centros de emissão mental a que fazemos alusão; embora difícil, talvez o façamos em outra ocasião. Só acrescentaremos uma palavra a respeito, a fim de evitar falsas interpretações: quando se trata de explicar a “telepatia”, os psiquistas apelam para algo que se parece aproximadamente às “ondas hertzianas”; existe aí, de fato, uma analogia que pode ajudar, senão a compreender as coisas, ao menos para representá-las numa certa medida; mas, se ultrapassarmos os limites dentro dos quais a analogia é válida, não teremos mais do que uma imagem quase tão grosseira quanto a dos “fluídos”, malgrado sua aparência mais “científica”; na realidade, a natureza das forças de que se trata é essencialmente diferente daquela das forças físicas.

Mas voltamos à influência do meio considerado no caso mais geral: que esta influência tenha agido sobre os próprios espíritas, ou que ela ganhe corpo especificamente por ocasião das sessões, é a ela que se deve relacionar a maior parte das variações que sofrem as teorias do espiritismo. É assim que os “espíritos” são “poligâmicos” entre os Mórmons, e que, em outros meios norte-americanos, eles são “neo-maltusianos”; e é certo que a atitude de diversas facções diante da reencarnação explica-se de modo semelhante. De fato, já vimos como esta idéia de reencarnação encontrou na França um meio especialmente preparado para recebê-la e desenvolvê-la. Ao contrário, se os espíritas anglo-saxões a rejeitaram, foi devido, no dizer de alguns, às suas concepções “bíblicas”. A bem dizer, este motivo não aparece como absolutamente suficiente em si mesmo, porque os espíritas franceses invocam o testemunho dos Evangelhos em favor de reencarnação: e, no meio protestante sobretudo, as interpretações mais fantasistas podem ter livre curso. Apenas, se os “espíritos” ingleses e norte-americanos declararam que a reencarnação estava em desacordo com a Bíblia (que aliás nem toca neste assunto, pela boa razão de que se trata de uma idéia exclusivamente moderna), é porque este era o pensamento daqueles que os interrogaram; caso contrário, eles teriam expressado qualquer outra opinião, e não teriam o embaraço de buscar textos em seu apoio, coisa que os reencarnacionistas fazem efetivamente. Mas ainda há mais: parece que, na América do Norte particularmente, a reencarnação é rejeitada porque a possibilidade que o seu espírito venha a reencarnar-se num negro causa choque e pavor aos brancos (1)! Se os “espíritos” norte-americanos colocaram este motivo, não é apenas porque, como dizem os espíritas franceses, eles não eram totalmente “despidos” de seus preconceitos terrestres; é porque eles não eram mais do que o reflexo da mentalidade daqueles que recebiam suas “mensagens”, ou seja a mentalidade vulgar dos norte-americanos; e a importância dada às considerações desta ordem mostra, por sua vez, a que ponto pode chegar este ridículo sentimentalismo que é comum a todos os espíritas. Se existem hoje em dia espíritas anglo-saxões que admitem a reencarnação, é sob influência das idéias teosofistas; o espiritismo nunca fez outra coisa do que seguir as correntes mentais, ele nunca poderia ter lhes dado nascimento, em razão dessa atitude de passividade que já assinalamos. De resto as tendências mais gerais do espiritismo são aquelas do próprio espírito moderno, como por exemplo a crença no progresso e na evolução; todo o resto vem de correntes mais particulares, agindo em meios menos extensos, mas sobretudo, na maior parte do tempo, em meios que podemos ver como “medianos” sob o aspecto da inteligência e da instrução. Deste ponto de vista, cabe lembrar o papel desempenhado pelas concepções que popularizam as obras de vulgarização científica; muitos espíritas pertencem à classe a quem são dirigidas estas obras, e, se existem alguns cujo nível é ainda inferior, as mesmas idéias lhes chegam por intermédio dos outros, ou mesmo eles as captam simplesmente dentro do ambiente. Quanto às idéias de alcança mais elevado, como eles não são intensificadas por uma tal expansão, elas não chegam jamais a se refletir nas “comunicações” espíritas, do que devemos nos felicitar, pois o “espelho psíquico” que é o médium só iria deformá-las, e isto sem proveito para ninguém, porque os espíritas são perfeitamente incapazes de apreciar qualquer coisa que ultrapasse suas concepções correntes.

Quando uma escola espírita chega a constituir algo que se pareça com uma doutrina e a fixar algumas grandes linhas, as variações no interior desta escola só alcançam pontos secundários, continuando, dentro destes limites, a seguir as mesmas leis. Pode entretanto acontecer que as “comunicações” persistam então em traduzir uma mentalidade que é antes a da época em que a escola foi estabelecida, porque esta mentalidade permaneceu nos seus aderentes, embora ela já não corresponda mais inteiramente ao ambiente. É o que aconteceu com o kardecismo, que sempre manteve alguns traços daqueles meios socialistas de 1848 nos quais ele nasceu; mas é preciso dizer também que o espírito que animava aqueles meios não desapareceu inteiramente, mesmo fora do espiritismo, tendo sobrevivido, sob diversas formas, em todas as variedades de “humanitarismo” que se desenvolveram desde então; mas o kardecismo permaneceu mais próximo das antigas formas, enquanto que outras etapas deste desenvolvimento foram de certo modo “cristalizadas” nos movimentos “neo-espiritualistas” de data mais recente. De resto, as tendências democráticas são inerentes ao espiritismo em geral, e mesmo, de modo menos acentuado, a todo o “neo-espiritualismo”; isto acontece porque o espiritismo, refletindo fielmente o espírito moderno nisto como em muitas outras coisas, é e só pode ser um produto da mentalidade democrática; é, como foi dito muito justamente, “a religião do democrata, a heresia em que teria de desembocar, em religião, a democracia” (2). Quanto às outras escolas “neo-espiritualistas”, elas são também criações especificamente modernas, influenciadas aliás, de perto ou de longe, pelo próprio espiritismo; mas aquelas que admitem uma pseudo-iniciação (por ilusória que seja), e por conseguinte uma certa hierarquia, são menos coerentes do que o espiritismo, pois existe aí, quer se queira quer não, alguma coisa que é claramente contrária ao espírito democrático. Sob este aspecto, mas numa ordem de idéias um pouco diferente, haveria muita coisa curiosa para lembrar em certas atitudes contraditórias, como a dos ramos da Maçonaria atual (sobretudo na França e nos países latinos), que, apesar de apregoarem as pretensões mais caricatamente democráticas, conservam cuidadosamente a antiga hierarquia, sem se aperceber da incompatibilidade; e é precisamente esta consciência da contradição que deve chamar a atenção daqueles que pretendam estudar os caracteres da mentalidade contemporânea; mas esta inconsciência não aparece em nenhum lugar com tanta veemência como no espiritismo e entre todos os que tem alguma afinidade com ele.

Sob certos pontos de vista, a observação do que se passa nos meios espíritas pode fornecer, pelas razões que expusemos, indicações muito claras sobre as tendências que predominam num dado momento, por exemplo no domínio da política. Assim, os espíritas franceses permaneceram por muito tempo, em sua maioria, ligados às concepções socialistas fortemente tingidas de internacionalismo; mas, alguns anos antes da guerra, uma mudança se produziu: a orientação geral foi então a de um radicalismo com tendências patrióticas acentuadas; apenas o anticlericalismo nunca muda. Hoje, o internacionalismo ressurgiu sob diversas formas: é naturalmente em meios como estes que idéias como a da “Sociedade das Nações” suscitam maior entusiasmo; e, naturalmente, entre os operários que foram cooptados pelo espiritismo, este tornou-se socialista, mas de um socialismo à nova moda, bem diferente da de 1848, que era o que se podia chamar de um socialismo “pequeno burguês”. Enfim, sabemos que se pratica o espiritismo em certos meios comunistas (3), e estamos persuadidos de que todos os “espíritos” devem aí pregar o bolchevismo; sem isto, aliás, eles não teriam lá nenhum crédito.

Ao considerarmos as “comunicações” como fizemos, não temos em vista senão aquelas que são obtidas sem fraudes, pois as outras não tem evidentemente nenhum interesse; a maior parte dos espíritas são certamente de boa fé, e somente os médiuns profissionais podem ser suspeitos a priori, mesmo quando eles dão provas de suas faculdades. De resto, as tendências reais dos meios espíritas se mostram melhor nos pequenos grupos privados do que nas sessões dos médiuns de renome; e ainda é preciso saber distinguir entre as tendências gerais e as que são próprias a tal ou tal grupo. Estas últimas traduzem-se especialmente na escolha dos nomes sob os quais se apresentam os “espíritos”, sobretudo os que são os “guias” titulares do grupo; sabemos que são geralmente personagens ilustres, o que faz imaginar que estes manifestam-se muito mais do que os outros e que eles adquiriram uma espécie de ubiqüidade (faremos uma observação semelhante a respeito da reencarnação), além de terem as faculdades intelectuais que possuíam sobre a terra absurdamente diminuídas. Em um grupo onde a religiosidade era a nota dominante, os guias eram Bossuet e Pio IX; em outros onde se cultua a literatura são os grandes escritores, dentre os quais encontramos freqüentemente Victor Hugo, sem dúvida porque ele foi espírita também. Apenas, existe esta curiosidade: por Victor Hugo, não importa quem ou não importa o que exprimia-se em versos de uma perfeita correção, o que concorda com nossa explicação; dizemos não importa o que, porque ele às vezes recebia “comunicações” de entidades fantasistas, como a “sombra do sepulcro” (basta reportar-se às suas obras para descobrir sua proveniência) (4); mas, dentre o comum dos espíritas, Victor Hugo esqueceu até as regras mais elementares da prosódia, quando aqueles que o interrogam as ignoram por sua vez. Existem entretanto casos menos desfavoráveis: um antigo militar (existem muitos entre os espíritas), que ficou conhecido por suas experiências de “fotografia do pensamento” cujos resultados são no mínimo contestáveis, está firmemente convencido de que sua filha é inspirada por Victor Hugo; esta pessoa possui realmente uma capacidade de versificação pouco comum, e ela chegou mesmo a adquirir uma certa notoriedade, o que não prova nada certamente, a menos que se admita como certos espíritas que todas as predisposições naturais sejam devidas a uma influência dos “espíritos”, e que aqueles que demonstram certos talentos desde a sua juventude sejam todos médiuns sem o saber; outros espíritas, ao contrário, vêem nos mesmos fatos um argumento em favor da reencarnação. Mas voltemos às assinaturas das “comunicações”, e citemos o que diz um psiquista pouco suspeito de parcialidade, o Dr. L. Moutin: “Um homem de ciência não ficará satisfeito e estará longe de aprovar as comunicações idiotas de Alexandre o Grande, de César, do Cristo, da Virgem Maria, de São Vicente de Paula, de Napoleão I, de Victor Hugo, etc., que dizem ser verdadeiras toda uma trupe de médiuns. O abuso dos grandes nomes é detestável, e ele faz nascer o ceticismo. Já demonstramos a estes médiuns que eles se enganam, ao colocar aos supostos espíritos presentes questões que eles deveriam conhecer, mas que os médiuns ignoram. Assim por exemplo, Napoleão I não se lembra de Waterloo; São Vicente de Paula já não sabe uma palavra de latim; Dante não compreende o italiano; Lamartine e Alfred de Musset são incapazes de compor dois versos. Mesmo pegando em flagrante delito de ignorância estes espíritos e apontando a verdade a estes médiuns, acham que abalamos suas convicções? Não, porque o espírito-guia sustentou que estávamos de má-fé e que tentávamos impedir uma grande missão de cumprir-se, missão entregue a seu médium. Nós conhecemos muitos destes grandes missionários que terminaram sua missão em casas especiais!” (5). Papus, por sua vez, diz o seguinte: “Quando São João, a Virgem Maria ou Jesus Cristo vem se comunicar, procurem na platéia um católico fervoroso, pois é de seu cérebro e de nenhum outro lugar que saiu a idéia diretriz. Da mesma forma, quando, como eu já vi, é d’Artagnan que se apresenta, não é preciso dizer que está presente um fã de Alexandre Dumas”. Nisto, só temos duas correções a fazer: em primeiro lugar, é preciso substituir “cérebro” por “subconsciente” (estes “neo-espiritualistas” às vezes falam como puros materialistas); em segundo lugar, como os “católicos fervorosos” são muito raros  nos grupos espíritas, enquanto que as “comunicações” do Cristo ou dos santos são ao contrário freqüentes, seria preciso falar apenas em influência de idéias católicas, subsistindo em estado “inconsciente” entre aqueles mesmos que se consideram “libertos”; esta nuance é muito importante. Papus prossegue nestes termos: “Quando Victor Hugo produz versos de pé quebrado ou transmite conselhos culinários, quando Mme. De Girardin vem declarar seu amor póstumo a um médium norte-americano (6), existem noventa por cento de chances de se tratar de um erro de interpretação. O ponto de partida da idéia impulsionadora deve ser procurado bem perto.” (7). Diremos mais claramente: neste e em todos os outros casos sem exceção, existe sempre um erro de interpretação dos espíritas; mas estes casos são talvez aqueles em que se pode descobrir mais facilmente a verdadeira origem das “comunicações”, por pouco que se pesquise as leituras, os gostos e as preocupações habituais dos assistentes. Bem entendido, as “comunicações” mais extraordinárias pelo conteúdo ou pela suposta procedência não são as que os espíritas acolhem com menos respeito e pressa; estas pessoas estão completamente cegas por suas idéias pré-concebidas, e sua credulidade parece não ter limites, enquanto que sua inteligência e seu discernimento os tem bastante fechados; falamos apenas da massa, porque existem graus na cegueira. O fato de aceitar as teorias espíritas pode ser uma prova de burrice ou apenas de ignorância; os que estão no primeiro caso são incuráveis e podemos apenas lamentá-los; quanto aos que estão no segundo caso, a coisa é diferente, e podemos tentar fazê-los compreender o erro, a menos que ele esteja tão enraizado que haja produzido neles uma deformação mental irremediável.



 NOTAS


1.      Dr. Gibier, Le Spiritisme, pgs. 138-139.
2.      Les Lettres, Dezembro de 1921, pgs. 913-914.
3.      O próprio Lenin declarou-se espírita numa conversa com uma professora parisiense que havia tido problemas com a justiça; é difícil saber se esta profissão de fé foi sincera, ou se foi uma ato de polidez diante de uma espírita fervorosa; em todo caso, já há bastante tempo o espiritismo cresce furiosamente na Rússia, em todas as classes sociais.
4.      Assinalemos a propósito que o “Espírito da Verdade” (denominação retirada do Evangelho) figura entre os signatários do manifesto que serve de preâmbulo ao Livro dos Espíritos (o prefácio do Evangelho segundo o Espiritismo traz esta mesma assinatura), e também que Victor Henequin, um dos primeiros espíritas franceses (que por sinal morreu louco) era inspirado pela “alma da terra”, que o persuadiu de que ele havia sido elevado ao posto de “sub-deus” do planeta (ver Eugène Nus, Choses de l’autre monde, pg. 139); como podem os espíritas, que atribuem tudo aos “desencarnados”, explicar estas bizarrices?
5.      Le Magnétisme humain, l’Hypnotisme et le Spiritualisme moderne, pgs. 370-371.
6.      Trata-se de Henry Lacroix, de que falaremos mais adiante.
7.      Traité méthodique de Science occulte, pg. 847; cf. ibid., pg. 341. – Eis ainda um outro exemplo citado por Dunglas Home, e que pode ser contado entre os mais extravagantes: “Nas notas de uma sessão havida em Nápoles, dentre os espíritos que se apresentaram diante de três pessoas, estavam Margherita Pusterla, Denys de Siracusa, Cleópatra, Ricardo Coração-de-Leão, Alladim, Belcadel, Guerrazzi, Manin e Vico; depois Abraão, Melquisedeque, Jacó, Moisés, David, Senaquerib, Eliseu, Joaquim, Judite, Jael, Samuel, Daniel, Maria Madalena, São Paulo, São Pedro e São João, sem contar outros, porque nestas notas assegura-se que todos os espíritos da Bíblia estiveram presentes, uns após outros, apresentando-se diante do Nazareno, precedido por São João Batista” (Les Lumières et les Ombres du Spiritualisme, pgs. 168-169).



 III
IMORTALIDADE E SOBREVIVÊNCIA


Entre outras pretensões injustificadas, os espíritas tem ainda a de fornecer a “prova científica” ou a “demonstração experimental da imortalidade da alma”(1); esta afirmação implica um certo número de equívocos, que convém dissipar antes mesmo de discutir a hipótese fundamental da comunicação com os mortos. Antes de mais nada, há um equívoco a respeito da palavra “imortalidade”, pois este termo não tem o mesmo sentido para todo o mundo: o que os Ocidentais chamam assim não é a mesma coisa que os Orientais designam por termos que entretanto podem parecer equivalentes, e que o são muitas vezes se nos ativermos apenas ao ponto de vista filológico. Assim, a palavra sânscrita amrita traduz-se de fato literalmente por “imortalidade”, mas ele aplica-se exclusivamente a um estado que é superior a toda mudança, pois a idéia de “morte” aqui é entendida como qualquer mudança. Os Ocidentais, ao contrário, tem o hábito de chamar de morte tão somente o fim da existência terrestre, e de resto eles quase não concebem outras mudanças análogas, pois parece que este mundo é para eles a metade do Universo, enquanto que para os Orientais ele não representa mais do que uma porção infinitesimal; falamos aqui dos Ocidentais modernos, pois a influência do dualismo cartesiano teve um grande papel neste modo tão restrito de ver o Universo. É preciso insistir nisto, tanto mais que estas coisas em geral são ignoradas, e, por outro lado, estas considerações facilitarão grandemente a refutação mesma da teoria espírita: do ponto de vista da metafísica pura, que é o ponto de vista oriental, não existem na realidade dois mundos, este e “o outro”, correlativos e por assim dizer simétricos e paralelos; existe uma série indefinida e hierarquizada de mundos, ou seja de estados de existência (e não lugares), dentro da qual este não passa de um elemento que não tem nem mais nem  menos importância ou de valor do que não importa qual outro, e que está simplesmente no lugar que deve ocupar no conjunto, na mesma condição do que qualquer outro. Por conseguinte, a imortalidade, no sentido que indicamos, não pode ser atingida “no outro mundo” como pensam os Ocidentais, mas apenas além de todos os mundos, ou seja de todos os estados condicionados; notadamente, ela está fora do tempo e do espaço, bem como de todas as condições análogas a estes; sendo absolutamente independente do tempo e de qualquer outro modo possível da duração, ela identifica-se com a própria eternidade. Isto não quer dizer que a imortalidade tal como a concebem os Ocidentais não tenha também um significado real, mas que é bem outro: ela não é em suma senão um prolongamento indefinido da vida, em condições transpostas e modificadas, mas que permanecem sempre comparáveis àquelas da existência terrestre; o fato mesmo de que se trata de uma “vida” o prova suficientemente, e convém lembrar que esta idéia de “vida” é uma daquelas das quais os Ocidentais se libertam com maior dificuldade, mesmo quando eles não professam sobre isto o respeito supersticioso que caracteriza certos filósofos contemporâneos; devemos acrescentar que eles também não escapam facilmente ao tempo e ao espaço, e, se isto não acontece, não há metafísica possível. A imortalidade, no sentido ocidental, não está fora do tempo, segundo a concepção comum, e, mesmo dentro de uma concepção menos “simplista”, ela não está fora de uma certa duração; é uma duração indefinida, que pode ser chamada apropriadamente de “perpetuidade”, mas que não tem nenhuma relação com a eternidade, assim como o indefinido, que procede do finito por desenvolvimento, não tem nada a ver com o Infinito. Esta concepção corresponde efetivamente a uma certa ordem de possibilidades; mas a tradição oriental, que se recusa a confundi-la com a imortalidade verdadeira, chama-a pelo nome de “longevidade”; no fundo, não é senão de que são susceptíveis as possibilidades de ordem humana. Podemos percebê-lo claramente quando nos perguntamos o que é o imortal em um e em outro caso: no sentido metafísico e oriental, é a personalidade transcendente; no sentido filosófico-teológico ocidental, é a individualidade humana. Não podemos desenvolver aqui a distinção fundamental entre a personalidade e a individualidade; mas, conhecendo bem o estado de espírito de certas pessoas, diremos expressamente que é inútil procurar uma oposição entre estas duas concepções de que falamos, pois, sendo de ordens completamente diferentes, elas não se excluem assim como não se confundem. No Universo há lugar para todas as possibilidades, com a condição que cada uma ocupe o seu posto verdadeiro; infelizmente, o mesmo não acontece com os sistemas dos filósofos, mas esta é uma contingência da qual é difícil se desembaraçar.

Quando se trata de “provar experimentalmente a imortalidade”, está claro que não pode tratar-se da imortalidade metafísica: esta, por definição, está além de toda experimentação possível; de resto, os espíritas não tem dela nenhuma idéia, de modo que só cabe discutir sua pretensão colocando-nos do ponto de vista da imortalidade entendida no sentido ocidental. Mesmo deste ponto de vista, a “demonstração experimental” de que eles falam aparece como uma impossibilidade, bastando refletir um instante; não insistiremos sobre o emprego abusivo que é feito da palavra “demonstração”: a experiência é incapaz de “demonstrar” propriamente qualquer coisa, no sentido rigoroso do termo, tal como é empregado nas matemáticas por exemplo; mas passemos por cima disto, e frisemos apenas que é uma estranha ilusão, própria ao espírito moderno, que consiste em fazer intervir a ciência, e especialmente a ciência experimental, em assuntos nos quais ela não tem o que fazer, acreditando que sua competência pode estender-se a tudo. Os modernos, embriagados pelo desenvolvimento que eles chegaram a dar a este domínio tão particular, e aplicando-se tão exclusivamente a ela que não conseguem ver mais nada fora, desconhecem os limites dentro dos quais a experimentação é válida, e além dos quais ela não pode fornecer nenhum resultado válido; falamos aqui da experimentação no seu sentido mais geral, sem nenhuma restrição, e, bem entendido, estes limites serão tanto mais estreitos na medida em que tomarmos as modalidades pouco numerosas que constituem os métodos reconhecidos e utilizados pelo comum dos sábios. Precisamente, dentro do caso que nos ocupa, existe um desconhecimento dos limites da experimentação; encontraremos um outro exemplo a propósito das pretensas provas da reencarnação, exemplo mais chocante ainda, ou de aparência mais singular, e que dará condição para completarmos estas considerações colocando-nos de um ponto de vista um pouco diferente.

A experiência só se coloca sobre fatos particulares e determinados, num ponto definido do espaço e num momento definido do tempo; ao menos, assim são todos os fenômenos que podem ser objeto de uma constatação experimental dita “científica” (que é como o entendem os espíritas). Isto é reconhecido por todos, mas as pessoas se enganam facilmente sobre a natureza e o alcance das generalizações às quais a experimentação pode legitimamente dar lugar (e que aliás a ultrapassam consideravelmente): estas generalizações só podem aplicar-se sobre classes ou conjuntos de fatos, dos quais cada um, tomado à parte, é tão particular e tão determinado quanto aquele a partir do qual fizeram-se as constatações cujos resultados são assim generalizados, de sorte que estes conjuntos só são indefinidos numericamente, enquanto conjuntos, não quanto aos seus elementos. O que queremos dizer é o seguinte: nunca estamos autorizados a concluir que aquilo que constatamos em um certo ponto da superfície terrestre deva produzir-se semelhantemente em qualquer outro lugar do espaço, nem que um fenômeno que foi observado durante uma duração extremamente limitada seja susceptível de prolongar-se indefinidamente; naturalmente, não estamos aqui saindo do tempo e do espaço, nem considerando outra coisa que os fenômenos, ou seja as aparências ou manifestações exteriores. É preciso saber distinguir entre a experiência e sua interpretação; os espíritas, assim como os psiquistas, constatam certos fenômenos, e não vamos discutir a descrição que fazem deles; é a interpretação dos espíritas, quanto à causa real destes fenômenos, que é radicalmente falsa. Mas admitamos por um instante que esta interpretação seja correta, e que aquilo que se manifesta seja realmente um ser humano “desencarnado”; segue-se daí que este ser seja imortal, ou seja, que sua existência póstuma tenha uma duração de fato indefinida? Vemos que existe aí uma extensão ilegítima da experiência, que consiste em atribuir indefinidade temporal a um fato constatado por um tempo definido; e, mesmo aceitando a hipótese espírita, bastaria isto para reduzir sua importância e seu interesse a proporções muito modestas. A atitude dos espíritas que imaginam que suas experiências provam a imortalidade não é mais lógica do que a de um homem que, não tendo nunca visto morrer alguém, afirmasse que as pessoas deveriam continuar a existir indefinidamente nas mesmas condições, apenas por ter constatado esta existência durante um certo intervalo; e isto, repetimos, sem prejulgar sobre a verdade ou a falsidade do próprio espiritismo, porque nossa comparação, para ser justa, supõe implicitamente sua validade.

Existem entretanto espíritas que perceberam mais ou menos claramente esta ilusão, e que, para fazer desaparecer este sofisma inconsciente, renunciaram a falar de imortalidade para falar apenas de “sobrevida” ou “sobrevivência”; eles escapam assim devemos reconhecer, às nossas objeções. Devemos dizer que estes espíritas, em geral, estão tão persuadidos como todos os outros sobre a imortalidade, e acreditam tanto quanto eles na perpetuidade da “sobrevivência”; mas esta crença aí tem o mesmo caráter que entre os não-espíritas, e não difere sensivelmente do que pode ter a crença, por exemplo, para os adeptos de uma religião qualquer, salvo que, para apoiá-la, acrescenta-se o testemunho dos “espíritos”; mas as afirmações destes estão sujeitas a cautela, pois, mesmo aos olhos dos espíritas, elas podem muitas vezes ser o resultado das idéias que eles tinham sobre a terra: se um espírita “imortalista” explica deste modo as comunicações que negam a imortalidade (pois os há), em virtude de qual princípio se deverá atribuir mais autoridade àqueles que a afirmam? No fundo, é simplesmente porque estes últimos estão de acordo com suas próprias convicções; mas ainda é preciso que estas convicções tenham uma outra base, que elas sejam estabelecidas independentemente de sua experiência, portanto fundadas sobre razões que já não são mais aquelas próprias ao espiritismo. Em todo caso, basta constatar que alguns espíritas sentem a necessidade de renunciar à pretensão de provar “cientificamente” a imortalidade; já é um ponto a favor, e mesmo um ponto importante para determinar exatamente o alcance da hipótese espírita.

A atitude que definimos por último é a dos filósofos contemporâneos com tendências mais ou menos marcadas pelo espiritismo; a única diferença, é que estes filósofos colocam no condicional aquilo que os espíritas afirmam categoricamente; em outros termos, enquanto uns contentam-se em falar da possibilidade de provar experimentalmente a sobrevivência, outros consideram a coisa já provada. Bergson, imediatamente antes de escrever a frase que reproduzimos mais acima, e na qual ele encara precisamente esta possibilidade, reconhece que “a imortalidade em si não poderia ser provada experimentalmente”; sua posição é portanto clara a este respeito; e, no tocante à sobrevivência, ele é cauteloso o bastante para falar apenas em “probabilidade”,  talvez porque ele se dê conta, até um certo ponto, de que a experiência não fornece certezas verdadeiras. Apenas, reduzindo assim o valor da prova experimental, ele considera que “isto seria já qualquer coisa”, que “seria mesmo muito”; aos olhos de um metafísico, ao contrário, e mesmo sem colocar tantas restrições, seria muito pouco, para não dizer que seria absolutamente desprezível. De fato, a imortalidade no sentido ocidental já é alo bastante relativo, e como tal não se refere ao domínio da metafísica pura; que dizer de uma simples sobrevivência? Mesmo fora de qualquer consideração metafísica, não vemos que possa haver, para o homem, um interesse capital em saber, de modo mais ou menos provável ou mesmo certo, que ele pode contar com uma sobrevivência “por um tempo x”; pode isto ter mais interesse do que saber mais ou menos exatamente quanto durará sua vida terrestre, da qual só se pode apresentar um prolongamento indeterminado? Vemos como isto se distancia do ponto de vista religioso, que não levaria em conta uma sobrevivência que não fosse assegurada pela perpetuidade; e, dentro do apelo que o espiritismo faz à experiência nesta ordem de coisas, podemos ver, dadas as conseqüências que daí resultam, uma das razões (e que não é a única) pelas quais ele não será jamais senão uma pseudo-religião.

Ainda temos a assinalar um outro lado da questão: para os espíritas, qualquer que seja o fundamento de sua crença na imortalidade, tudo o que sobrevive no homem é imortal; o que sobrevive, lembremos, é o conjunto formado pelo “espírito” propriamente dito e pelo “perispírito” que lhe é inseparável. Para os ocultistas, o que sobrevive é igualmente o conjunto do “espírito” e do “corpo astral”; mas, neste conjunto, apenas o “espírito” é imortal, e o “corpo astral” é perecível (2); e no entanto espíritas e ocultistas pretendem basear suas afirmações sobre a experiência, que mostraria assim a uns a dissolução do “organismo invisível” do homem, enquanto outros nada encontrariam de semelhante. Segundo a teoria ocultista, haveria uma “segunda morte”, que estaria para o “plano astral” assim como a morte no sentido ordinário está para o “plano físico”; e os ocultistas são ainda forçados a reconhecer que os fenômenos psíquicos não poderiam provar a sobrevivência além do “plano astral”. Estas divergências mostrariam a pouca solidez das pretensas provas experimentais, ao menos no que diz respeito à imortalidade, se ainda houvesse necessidade depois das outras razões que demos, e que aliás são a nossos olhos mais decisivas, porque elas estabelecem sua completa inutilidade; apesar de tudo, é interessante constatar que, colocando-se duas escolas de experimentação diante da mesma hipótese, aquilo que é imortal para uma não o é para a outra. É preciso acrescentar, por outro lado, que a questão fica mais complicada, tanto para os espíritas como para os ocultistas, pela introdução da hipótese da reencarnação: a “sobrevivência”, cujas condições são descritas de modo diferente por diferentes escolas, só representa naturalmente o período intermediário entre duas vidas terrestres sucessivas, pois, a cada nova “encarnação”, as coisas devem evidentemente se achar no mesmo estado que na precedente. Trata-se então sempre de uma “sobrevivência” provisória, e, definitivamente, a questão permanece: não se pode dizer, com efeito, que esta alternância regular de existências terrestres e ultra-terrestres deva prosseguir indefinidamente; as diferentes escolas poderão discutir a respeito, mas não será a experiência que irá solucionar. Assim, a questão recua, mas não se resolve, e a mesma dúvida subsiste sempre com relação ao destino final do ser humano; ao menos, é o que deveria reconhecer um reencarnacionista que quisesse permanecer coerente consigo mesmo, pois sua teoria é ainda mais incapaz do que as outras para trazer alguma solução, sobretudo se pretender manter-se sobre o terreno da experiência; existem também os que pretendem haver encontrado provas experimentais da reencarnação, mas este é um assunto que examinaremos mais adiante.

O que se deve guardar, é que aquilo que os espíritas dizem da “sobrevida” ou da “sobrevivência”, aplica-se essencialmente, para eles, ao intervalo compreendido entre duas “encarnações”; esta é a condição dos “espíritos” cujas manifestações eles acreditam observar; é o que eles chamam de “errância”, ou ainda da vida “no espaço”, como se não fosse também no espaço que se desenrola a existência terrestre! Um termo como este de “sobrevida” é muito apropriado para designar sua concepção, pois ela é literalmente a de uma vida continuada, e em condições tão próximas quanto possível da vida terrestre.  Não existe, entre eles, esta transposição que permite a outros conceber a “vida futura” e mesmo perpétua de um modo que corresponda a alguma possibilidade, qualquer que seja o lugar desta possibilidade dentro da ordem total; ao contrário, a “sobrevida”, tal como eles a representam, não passa de uma impossibilidade, porque, ao transportar tais e quais as condições de um estado para outro, ela implica um conjunto de elementos incompatíveis entre si. Esta suposição impossível é aliás absolutamente necessária ao espiritismo, porque, sem ela, as comunicações com os mortos não seriam nem mesmo concebíveis; para poder se manifestar como se supõe que o façam, é preciso que os “desencarnados” estejam muito próximos dos vivos sob todos os aspectos, e que a existência de uns se pareça singularmente com a de outros. Esta similitude  é levada a um grau inacreditável, e que mostra que as descrições desta “sobrevida” não passam de um simples reflexo das idéias terrestres, um produto da imaginação “subconsciente” dos próprios espíritas; vamos nos deter um pouco agora sobre este lado do espiritismo, que não é dos menos ridículos.


  
NOTAS


1.      Uma obra de Gabriel Delanne tem por  título: L’Ame est Immortelle: Démonstration expérimentale.
2.      Papus, Traité méthodique de Science occulte, pg. 371.
IV
AS REPRESENTAÇÕES DA SOBREVIDA


Conta-se que certos selvagens representam a existência póstuma sobre o modelo exato da vida terrestre: o morto continuaria a cumprir as mesmas ações, a caçar, pescar, guerrear, em uma palavra, a dedicar-se a todas as suas ocupações habituais, sem esquecer de comer e beber; e nunca deixamos de lembrar como tais concepções são ingênuas e grosseiras. A bem dizer, é sempre bom desconfiar um pouco daquilo que se reporta sobre os selvagens, e isto por muitas razões: em primeiro lugar, os relatos dos viajantes, única fonte em todas estas histórias, são muitas vezes fantasistas; além disso, mesmo aqueles que acreditam reportar fielmente o que viram e ouviram, podem não haver entendido nada, e, sem se aperceber, substituído os fatos por suas interpretações pessoais; enfim, existem sábios, ou que assim se querem, que vêm superpor a tudo isto sua própria interpretação, resultado de idéias pré-concebidas; o que se obtém desta última elaboração, não é mais o que pensam os selvagens, mas o que eles deveriam pensar, conforme tal teoria “antropológica” ou “sociológica”. Na realidade, as coisas são menos simples, ou, se se preferir, elas são complicadas de outro modo, porque os selvagens, assim como os civilizados, tem suas próprias maneiras de pensar, e que são inacessíveis aos homens de uma outra raça; e, com os selvagens, tem-se muito poucos recursos para compreendê-los e assegurar compreendê-los bem, porque, em geral, eles não sabem explicar o que pensam. Quanto à asserção que reportamos, pretende-se apoiá-la sobre alguns fatos que nada provam, como os objetos que são depositados junto aos mortos, as oferendas de alimentos que se fazem nos túmulos; ritos semelhantes existiram e existem hoje entre povos que nada tem de selvagens, e eles não correspondem às concepções grosseiras que se imagina indiquem, porque seu verdadeiro significado é bem diferente daquele que lhe atribuem os sábios europeus, e porque, na realidade, eles dizem respeito unicamente a certos elementos inferiores do ser humano. Apenas os selvagens, que para nós não são “primitivos” mas degenerados, podem haver conservado certos ritos sem os compreender, desde tempos imemoriais; a tradição, cujo sentido foi perdido, substituiu-se entre eles pela rotina, ou pela “superstição” no sentido etimológico do termo. Nestas condições, não vemos nenhum inconveniente em que certas tribos ao menos (convém não generalizar demais) tenham chegado a conceber a vida futura mais ou menos como dissemos; mas não é preciso ir tão longe para encontrarmos, e de modo mais certo, concepções ou antes representações exatamente como aquelas. Primeiramente, encontraremos, em nossa época como em qualquer outra, pessoas das classes inferiores que se vangloriam de sua civilização; se procurarmos entre os populares de diversos países da Europa, a colheita será grande. Mas o melhor não é isto: nestes mesmos países, os exemplos mais claros, aqueles que revestem as formas mais precisas em sua grosseria, não são fornecidos por iletrados, mas antes por pessoas que possuem uma certa instrução, sendo alguns até considerados “intelectuais”. Em nenhuma parte, de fato, as representações deste gênero são afirmadas com tanta força como entre os espíritas; eis aí um bom objeto de estudos, que recomendamos aos sociólogos, que ao menos aí não correrão o risco de erros de interpretação.
O melhor a fazer aqui, para começar, é citar alguns extratos do próprio Allan Kardec; primeiramente, eis o que ele diz a respeito do “estado de turbação” que segue imediatamente a morte: “Esta turbação apresenta circunstâncias particulares, segundo o caráter dos indivíduos e sobretudo segundo o gênero de morte. Nas mortes violentas, por suicídio, suplício, acidente, apoplexia, ferimentos, etc., o espírito fica surpreendido, aturdido, e não acredita estar morto; ele teima em estar vivo; e no entanto ele vê seu corpo, ele sabe que aquele corpo é o seu, e ele não compreende que esteja separado dele; ele corre para as pessoas de sua afeição, fala com elas, e não entende porque elas não o escutam. Esta ilusão dura até a completa separação do perispírito; apenas então o espírito se reconhece e compreende que não mais faz parte do mundo dos vivos. Este fenômeno é facilmente explicável. Surpreendido de improviso pela morte, o espírito está aturdido pela brusca mudança que se operou nele; para ele, a morte é ainda sinônimo de destruição, de extinção; ora, como ele pensa, ele vê, ele ouve, para os seus sentidos ele não está morto; o que aumenta sua ilusão, é que ele se vê num corpo semelhante ao precedente quanto à forma, mas cuja matéria diáfana ainda não teve tempo de estudar; ele o acredita sólido e compacto como o primeiro; e, quando sua atenção é chamada sobre este ponto, ele se espanta por não poder apalpar-se (...) Alguns espíritos apresentam esta particularidade, ainda que a morte não lhes tenha chegado inopinadamente; mas ela sempre acontece mais entre aqueles que, ainda que doentes, não imaginavam morrer. Vemos então o singular espetáculo de um espírito assistindo ao seu próprio féretro como se se tratasse de outra pessoas, e falando disso como de uma coisa que não lhe dissesse respeito, até a hora em que ele entende a verdade (...) Nos casos de mortes coletivas, observou-se que todos aqueles que perecem ao mesmo tempo nem sempre se reencontram imediatamente. Na perturbação que se segue à morte, cada um vai para o seu lado, não se ocupando senão daqueles que lhe interessam” (1). Vamos agora ao que é dito sobre o que poderíamos chamar a vida cotidiana dos “espíritos”: “A situação dos espíritos e sua maneira de ver as coisas variam ao infinito em razão do grau do seu desenvolvimento moral e intelectual. Os espíritos de uma ordem mais elevada não passam geralmente sobre a terra mais do que curtos períodos; tudo o que aí acontece é tão mesquinho em comparação com as grandezas do infinito (sic), as coisa às quais os homens atribuem tanta importância são tão pueris aos seus olhos, que eles encontram aí poucos atrativos, a menos que tenham sido chamados para participar do progresso humano. Os espíritos de ordem mediana aí permanecem mais freqüentemente, embora considerem as coisas de um ponto de vista mais elevado do que quando vivos. Os espíritos vulgares são como que sedentários aí e constituem a massa da população ambiente do mundo invisível; eles conservaram quase que as mesmas idéias, os mesmos gostos e as mesmas inclinações que tinham quando sob sua envoltória corporal; eles se misturam às nossas reuniões, aos nossos negócios, nas nossas diversões, nos quais tomam uma parte mais ou menos ativa, segundo seu caráter. Não podendo satisfazer suas paixões, eles gozam daqueles que a eles se abandonam e que os excitam. São mais numerosos são espíritos sérios, que olham e observam para se instruir e aperfeiçoar” (2). Parece de fato que os “espíritos errantes”, ou seja aqueles que aguardam uma nova encarnação, instruem-se “olhando e observando o que se passa nos lugares que percorrem” e também “escutando os discursos dos homens esclarecidos e os conselhos dos espíritos mais elevados do que eles, o que lhes dá idéias que eles não tinham” (3). As peregrinações destes “espíritos errantes”, por instrutivas que sejam, tem o inconveniente de serem quase tão fatigantes quanto as viagens terrestres; mas “existem mundos que são particularmente queridos dos seres errantes, mundos nos quais eles podem habitar temporariamente, espécies de acampamentos onde repousar de uma longa errância, estado que é sempre um pouco penoso. São estas posições intermediárias entre os outros mundos, escalonados segundo a natureza dos espíritos que aí podem ficar, e estes gozam de um maior ou menos bem-estar” (4). Nem todos os espíritos podem ir a qualquer lugar indiferentemente; eis como eles próprios explicam as relações que existem entre eles: “Os espíritos de diferentes ordens podem ver-se, mas eles se distinguem uns dos outros. Eles se repelem ou se aproximam, segundo a analogia ou a antipatia de seus sentimentos, como acontece entre vós. É um mundo do qual o vosso é como que um reflexo obscuro (5). Aqueles da mesma classe reúnem-se por uma espécie de afinidade e formam grupos ou famílias de espíritos unidos pela simpatia ou pelos objetivos a que se propõem; os bons pelo desejo de fazer o bem, os maus pelo desejo de fazer o mal, a vergonha de suas faltam e a necessidade de se achar entre seus iguais. Assim como uma grande cidade aonde os homens de diversas classes e condições se vêem e se encontram sem se confundirem; aonde as sociedades se formam pela analogia dos gostos; aonde o vício e a virtude andam lado a lado sem se olharem (...) Os bons vão a toda parte, e é preciso que seja assim para que eles possam exercer sua influência sobre os maus; mas as regiões habitadas pelos bons são interditas aos espíritos imperfeitos, a fim de que eles não possam aí levar a perturbação das baixas paixões (...) Os espíritos se vêem e se compreendem; a palavra é material: é o reflexo do espírito. O fluído universal estabelece entre eles uma comunicação constante; é o veículo da transmissão do pensamento, como para vós o ar é o veículo do som; uma espécie de telégrafo universal que liga todos os mundos, e permite aos espíritos corresponderem-se de um mundo a outro (...) Eles constatam sua individualidade pelo perispírito que faz deles seres distintos uns dos outros, como o corpo entre os homens” (6). Não seria difícil multiplicar estas citações, acrescentado-lhe textos que mostram os “espíritos” intervindo em quase todos os eventos da vida terrestre, e outros que especificam ainda as “ocupações e missões dos espíritos”; mas isto se tornaria logo cansativo; existem poucos livros cuja leitura seja tão insuportável quanto a da literatura espírita em geral. Parece-nos que os precedentes extratos não requerem comentários; apenas faremos sublinhar, porque isto parece importante e retorna a cada instante, a idéia que os “espíritos” conservam todas as sensações dos vivos; a única diferença é que elas não lhes chegam mais por órgãos especializados e localizados, mas pelo “perispírito” inteiro; e as faculdades mais materiais, as mais evidentemente dependentes do organismo corporal, como a percepção sensível, são vistas como “atributos do espírito”, que “fazem parte do seu ser” (7).

Depois de Allan Kardec, é preciso mencionar o mais “representativo” de seus discípulos atuais, Léon Denis: “Os espíritos de ordem inferior, envoltos em fluídos espessos, sofrem as leis da gravitação e são atraídos pela matéria (...) Enquanto que a alma purificada percorre a vasta e radiosa extensão, viaja à vontade pelos mundos e não vê limites para si, o espírito impuro não pode distanciar-se da vizinhança dos globos materiais (...) A vida do espírito avançado é essencialmente ativa, embora sem fadigas. As distâncias não existem para ele. Ele se transporta com a rapidez do pensamento. Seu invólucro, semelhante a um leve vapor, adquiriu uma tal sutileza que se torna invisível aos espíritos inferiores. Ele vê, escuta, sente, percebe, não mais pelos órgãos materiais que se interpõem entre a natureza e nós e interceptam a passagem das sensações, mas diretamente, sem intermediários, por todas as partes do seu ser. Também suas percepções são muito mais claras e multiplicadas do que as nossas. O espírito elevado nada por assim dizer num oceano de sensações deliciosas. Quadros mutantes desenrolam-se à sua vista, harmonias suaves o embalam e encantam. Para ele, as cores são perfumes, os perfumes são sons. Mas, por mais delicadas que sejam suas sensações, ele pode subtrair-se delas e recolher-se em sobre si à vontade, envolvendo-se num véu fluídico, isolando-se no seio dos espaços. O espírito avançado está livre de todas as necessidades corporais. O alimento e o sono não tem para ele nenhuma razão de ser (...) Os espíritos inferiores carregam consigo, no além-túmulo, seus hábitos, suas necessidades, suas preocupações materiais. Não podendo elevar-se acima da atmosfera terrestre, eles tornam a partilhar a vida dos humanos, misturando-se às suas lutas, aos seus trabalhos, aos seus prazeres (...) Encontramos na errância  multidões imensas sempre à procura de um estado melhor que lhes foge (...) É de certo modo o vestíbulo dos espaços luminosos, dos mundos melhores. Todos passam por aí, todos aí permanecem um tempo, mas para elevar-se mais alto (...) Todas as regiões do universo são povoadas de espíritos atarefados. Por toda parte, multidões, enxames de almas sobem e descem, agitam-se no seio da luz ou nas regiões obscuras. Num lugar, ouvintes ajuntam-se para receber as instruções de espíritos elevados. Mais adiante, grupos formam-se para festejar a chegada de um novato. Mais ao longe, outros espíritos misturam seus fluídos, emprestando-lhes mil formas, mil tonalidades fundidas e maravilhosas, preparando-os para os sutis usos que lhes destinam os gênios superiores. Outras multidões empurram-se ao redor dos globos, seguindo-os em sua rotação, multidões sombrias, turbadas, que influem à sua vontade sobre os elementos atmosféricos (...) O espírito, sendo ele mesmo fluídico, age sobre os fluídos do espaço. Pelo poder de sua vontade, ele os combina, os dispõe a seu critério, empresta-lhes as cores e as formas que respondem ao seu objetivo. É por meios destes fluídos que são executadas obras que desafiam toda comparação e toda análise: quadros mutantes, luminosos; reproduções de vidas humanas, vidas de fé e sacrifício, apostolados dolorosos, dramas do infinito (...) É nas alturas fluídicas que se desenvolvem as pompas das festas espirituais. Os espíritos puros, transbordantes de luz, aí se agrupam por famílias. Seu brilho, as nuances variadas de seus invólucros, permitem medir sua elevação e determinar seus atributos (...) A superioridade do espírito se reconhece por sua vestimenta fluídica. É como um manto tecido com os méritos e as qualidades adquiridas durante a sucessão de suas existências. Embaçada e sombria para a alma inferior, sua brancura aumenta na proporção dos progressos realizados e torna-se cada vez mais pura. Já bastante brilhante no espírito elevado, ela dá às almas superiores um fulgor insustentável” (8). E que não se diga que estas são maneiras de falar mais ou menos figuradas; tudo isto, para os espíritas, deve ser tomado rigorosamente ao pé da letra.

Por extravagantes que sejam as concepções dos espíritas franceses a respeito da “sobrevida”, elas são ultrapassadas pelas dos espíritas anglo-saxões, e por tudo o que estes contam das maravilhas do Summerland ou “país do verão”, como eles chamam a “morada dos espíritos”. Já dissemos que os teosofistas criticam severamente essas tolices, no que eles estão certos; é assim que Mme. Besant fala da “mais grosseira de todas estas representações, a do Summerland moderno, com seus “maridos-espíritos”, suas “esposas-espíritos”, seus “filhos-espíritos”, que vão à escola e à universidade, e tornam-se espíritos adultos” (9). Isto é muito justo, certamente, mas podemos nos perguntar se os teosofistas tem o direito de ironizar assim os “espiritualistas”; podemos julgá-lo por estas citações, tiradas da obra de um outro eminente teosofista, Leadbeater: “Após a morte, ao chegar ao plano astral, as pessoas não compreendem que estão mortas, e, mesmo quando se dão conta, não percebem de início em que este mundo difere do mundo físico... Assim, vemos pessoas recentemente falecidas tentando comer, preparando para si refeições completamente imaginárias, enquanto outros constroem casas. Eu vi positivamente no além um homem construir uma casa pedra por pedra, e, embora ele criasse cada pedra por um esforço de seu pensamento, ele não havia compreendido que poderia criar a casa toda de um golpe só, pelo mesmo procedimento, sem ter todo o trabalho. Pouco a pouco, ao descobrir que as pedras não tinham peso, ele foi percebendo que as condições deste novo mundo diferiam daquelas a que ele estava acostumado sobre a terra, o que o levou a continuar o seu exame. Em Summerland (10), os homens se cercam de paisagens criadas por eles mesmos; alguns entretanto nem se dão ao trabalho e contentam-se com as paisagens criadas por outros. Os homens que vivem sobre o sexto sub-plano, ou seja próximos da terra, estão cercados da contra-partida astral das montanhas, das árvores, dos lagos físicos, de sorte que eles não são tentados a construir por si próprios; aqueles que habitam os sub-planos superiores, que planam acima da superfície terrestre, criam para si todas as paisagens que desejam (...) Um materialista eminente, bem conhecido durante sua vida por um de nossos colegas da Sociedade Teosófica, foi recentemente descoberto por este numa subdivisão das mais elevadas do plano astral; ele havia se cercado de todos os seus livros e continuava seus estudos como se estivesse na terra” (11). Fora a complicação dos “planos” e “sub-planos”, devemos confessar que não vemos muita diferença; é verdade que Leadbeater foi um antigo espírita, talvez ainda influenciado por suas idéias anteriores, mas muitos de seus colegas vão pelo mesmo caminho; o teosofismo fez de fato muitos empréstimos ao espiritismo para se permitir criticá-lo. Convém lembrar que os teosofistas atribuem as pretensas constatações deste gênero à “clarividência”, enquanto os espíritas as admitem como simples “comunicações”; no entanto, o espiritismo também possui seus “videntes”, e o que há de mais absurdo, é que, em caso de divergência entre escolas, existe também desacordo entre as “visões”, sendo cada qual conforme às suas próprias teorias; não se pode assim atribuir a elas mais valor do que às “comunicações”, que estão no mesmo caso, e a sugestão aí desempenha um papel preponderante.

Mas voltemos aos espíritas: o que conhecemos de mais extraordinário, nesta ordem de coisas, é um livro intitulado Mes expériences avec les esprits, escrito por um norte-americano de origem francesa, chamado Henry Lacroix; esta obra, que foi publicada em Paris em 1889, prova que os espíritas não tem nenhum senso do ridículo. O próprio Papus tratou o autor como “fanático perigoso” e escreveu que “a leitura deste livro basta para afastar definitivamente do espiritismo todos os homens sensatos” (12); Donald Mac-Nab disse que “às pessoas que apreciam uma boa piada basta a leitura desta obra para verificar a extravagância dos espíritas” (13). Seria preciso reproduzir esta elucubração inteira para mostrar a que ponto podem chegar certas aberrações; é verdadeiramente incrível, e seria uma excelente propaganda anti-espírita recomendar sua leitura àqueles que ainda não foram contagiados, mas que correm o risco de ser atingidos. Podemos ver aí, entre outras curiosidades, a descrição e o desenho da “casa fluídica” do autor (pois, acredite quem quiser, parece que ele viveria em dois planos simultaneamente), e também os retratos de seus “filhos-espíritos”, desenhados por ele “sob seu controle mecânico”:  trata-se de doze crianças (em quinze) que ele havia perdido, e que continuaram a viver e a crescer “no mundo fluídico”; muitos chegaram até a se casar! Assinalemos a propósito que, segundo o mesmo autor, “existem com freqüência, nos Estados Unidos, casamentos entre vivos e mortos”; ele cita o caso de um juiz chamado Lawrence, que se fez casar com sua falecida esposa por um pastor amigo (14); se o fato é verdadeiro, ele dá uma triste idéia da mentalidade dos espíritas norte-americanos. Em outras partes, aprendemos como os “espíritos” se alimentam, se vestem, constroem moradias; mas o que há de melhor, são talvez as manifestações póstumas de Mme. de Girardin e os diversos episódios que a ela se ligam; eis um trecho: “Era noite, e eu estava ocupando em ler ou escrever, quando vi Delphine (Mme. de Girardin) chegar junto a mim com um fardo nos braços, que ela depositou a meus pés. De imediato, não percebi do que se tratava,  mas logo notei que aquilo tinha uma forma humana. Compreendi então o que se queira de mim. Tratava-se de desmaterializar este espírito infeliz que tinha o nome de Alfred de Musset! E o que confirmava para mim esta versão, é que Delphine havia se colocado a postos, após haver feito sua tarefa, como se pretendesse assistir a operação (...) A operação consistia em descolar da forma inteira do espírito uma espécie de epiderme, que se ligava ao interior do organismo por toda espécie de fibras e ligações, ou a esfolá-lo, enfim, o que fiz com sangue frio, começando pela cabeça, malgrado os gritos lancinantes e as convulsões violentas do paciente, que eu ouvia e via, mas sem tê-los em conta (...) No dia seguinte, Delphine voltou para me falar de seu protegido, e ela anunciou-me que após haver cuidado de minha vítima com todos os cuidados para livrá-la dos efeitos da terrível operação que eu lhe fizera, os amigos haviam organizado um “festim pagão” para celebrar sua libertação” (15). Não menos interessante é o relato de uma representação teatral entre os “espíritos”: “Enquanto Celeste (uma das “filhas-espírito” do autor) me acompanhava um dia em meus passeios, Delphine chegou inopinadamente a nós, e disse à minha filha: “Porque não convida seu pai para acompanhá-la à Opera?” Celeste respondeu: “É preciso que eu pergunte ao Diretor!” Alguns dias mais tarde, Celeste veio anunciar-me que seu diretor me convidava, e que ficaria encantado em receber-me juntamente com os amigos que me acompanhassem. Eu fui uma tarde à Opera com Delphine e uma dezena de amigos (espíritos) (...) A sala imensa, em anfiteatro, aonde nos colocamos, regurgitava de assistentes. Felizmente, em nossos lugares escolhidos, com os amigos, tínhamos espaço para nos movermos à vontade. O auditório, composto por cerca de vinte mil pessoas, tornava-se por momentos um mar agitado, quando a peça atingia os corações do público conhecedor. Aridide ou os sinais dos tempos, tal era o nome da ópera, em que Celeste, como protagonista, surgia com destaque, resplandecente, abrasada pelo fogo artístico que a anima. Em sua ducentésima apresentação, este esforço de colaboração das cabeças mais renomadas cativa ainda de tal modo os espíritos, que uma multidão de curiosos, não encontrando lugar no recinto, formava com seus corpos comprimidos uma abóbada (ou um teto) compacto. A trupe atuante, sem contar o pessoal da produção e a orquestra, era de cento e cinqüenta artistas de primeira ordem (...) Celeste vem sempre dizer-me o nome de outras peças em que ela figura. Ela me disse uma vez que Balzac havia composto uma bela ópera, que estava em reprise” (16). Apesar deste sucesso, a pobre Celeste, algum tempo depois, desentendeu-se com seu diretor e foi demitida! Em outra ocasião, o autor assiste a uma sessão de outro tipo, “num belo templo circular, dedicado à Ciência”; lá, a convite do presidente, ele subiu à tribuna e pronunciou um belo discurso “diante desta douta assembléia de quinhentas ou seiscentas pessoas que se ocupavam da ciência; esta era uma de suas reuniões periódicas” (17). Algum tempo depois, ele entra em relações com o “espírito” do pintor Courbet, cura-o de uma “bebedeira póstuma”, e o faz nomear “diretor de uma grande academia de pintura de grande reputação na zona em que ele se encontrava” (18). Eis agora a Maçonaria dos “espíritos”, que tem algumas analogias com a “Grande Loja Branca” dos teosofistas: “Os “grandes irmãos” são seres que passaram por todas as etapas da vida espiritual e da vida material. Eles formam uma sociedade com diversas classes, a qual se acha estabelecida (para servir-me de uma palavra terrestre) nos confins do mundo fluídico e do mundo etéreo, que é o mais alto, o mundo “perfeito”. Esta sociedade, chamada de Grande Irmandade, é a ponta-de-lança do mundo etéreo; é o governo administrativo das duas esferas, espiritual e material ou do mundo fluídico e da terra. É esta sociedade, com a colaboração legislativa do mundo etéreo propriamente dito, que governa os espíritos e os “mortais” através das fases de sua existência” (19). Numa outra passagem, podemos ler o relato de uma “iniciação maior” na “Grande Irmandade”, a de um defunto espírita belga chamado Jobard (20); lembra razoavelmente as iniciações maçônicas, mas as “provas” aí são mais sérias e não são puramente simbólicas. A cerimônia foi presidida pelo próprio autor, que, embora vivo, ocupava um dos mais altos graus desta estranha associação; num outro dia, vemo-lo “ocupar a chefia de uma tropa da Ordem Terceira, composta por cerca de dez mil espíritos, masculinos e femininos”, para ir “a uma colônia povoada por espíritos um pouco retrógrados”, e “purificar a atmosfera deste lugar, aonde se achavam mais de um milhão de habitantes, por um procedimento químico por nós conhecido, a fim de produzir uma reação salutar nas idéias desta população”; parece que “este país formava um departamento da França fluídica” (21), pois, como entre os teosofistas, cada região da terra tem sua “contra-partida fluídica”. A “Grande Irmandade” está em luta com uma outra organização, igualmente fluídica, que é, está claro, “uma Ordem clerical” (22); de resto, o autor, no que lhe concerne pessoalmente, declara expressamente que “o principal objetivo de sua missão é o de minar e restringir a autoridade clerical no outro mundo e, por acréscimo, neste” (23). Mas basta destas bobagens; achamos bom dar estes trechos, porque eles ressaltam, de certo modo em estado grosseiro, uma mentalidade que é também, num grau mais atenuado, a de muitos outros espíritas e “neo-espiritualistas”; não estamos bem fundamentados, desde já, para denunciar estas coisas como um verdadeiro perigo público?

Daremos agora, a título de curiosidade, esta descrição, bem diferente das anteriores, que um “espírito” fez de sua vida no além: “No mais das vezes, o homem morre sem ter consciência do que lhe aconteceu. Ele volta à consciência após alguns dias, às vezes após alguns meses. O despertar está longe de ser agradável. Ele se vê rodeado por pessoas que ele não conhece: o rosto destes seres se parece mais com um crânio de esqueleto. O terror que toma conte dele muitas vezes o faz perder a consciência uma segunda vez. Pouco a pouco, ele se acostuma a estas visões. O corpo dos espíritos é material e compõe-se de uma massa gasosa que tem aproximadamente o peso do ar; este corpo é composto de uma cabeça e tórax; ele não tem braços, nem pernas, nem abdome. Os espíritos movem-se numa velocidade que depende da sua vontade. Quando eles se movem rapidamente, seus corpos alongam-se e se tornam cilíndricos; quando eles se movem com o máximo de velocidade, seus corpos tomam a forma de uma espiral com quatorze voltas com um diâmetro de trinta e cinco centímetros. A espira pode ter um diâmetro médio de quatro centímetros. Nesta forma, eles chegam a uma velocidade que iguala a do som (...) Nós nos encontramos normalmente nas moradias dos homens, porque a chuva e o vento nos são desagradáveis. Normalmente nós enxergamos mal; existe aí pouca luz para nós. A luz que preferimos é a do acetileno; é a luz ideal. Em segundo lugar, os médiuns emitem uma luz que nos permite enxergar até uma distância média de um metro ao seu redor; esta luz atrai os espíritos. Os espíritos vêm pouco as roupas dos homens; estas roupas parecem
Nuvens; eles vêem também alguns órgãos internos do corpo humano; mas eles não vêem o cérebro devido ao crânio ósseo. Mas eles ouvem os homens pensar, e às vezes estes pensamentos são ouvidos à distância embora nenhuma palavra tenha sido pronunciada pela boca. No mundo dos espíritos reina a lei do mais forte, é um estado de anarquia. Se as sessões não tem sucesso, é porque um espírito malvado não deixa a mesa e se coloca sobre ela de uma sessão para outra, de modo que os espíritos que desejam entrar em comunicação séria com os membros do círculo não podem  aproximar-se da mesa (...) Em média, os espíritos vivem de cem a cento e cinqüenta anos. A densidade do corpo aumenta até os cem anos; depois disto, a densidade e a força diminuem, e enfim eles se dissolvem, como tudo se dissolve na natureza (...) Nós estamos submetidos às leis da pressão do ar; nós somos materiais; nós não temos interesses, nós nos aborrecemos. Tudo o que é material está submetido às leis da matéria: a matéria se decompõe; nossa vida não dura mais do que cento e cinqüenta anos ou pouco mais; então nós morremos para sempre” (24). Este “espírito” materialista e que nega a imortalidade deve ser visto pela maioria dos espíritas como razoavelmente heterodoxo e pouco “esclarecido”; e os experimentadores que receberam estas estranhas “comunicações” asseguram por outro lado que “os espíritos mais inteligentes protestam positivamente contra a idéia de Deus” (25); nós temos fortes razões para acreditar que eles próprios tinham fortes preferências pelo ateísmo e pelo “monismo”. Seja como for, as pessoas que registraram a sério as divagações de que demos este esboço, são daquelas que tem a pretensão de estudar os fenômenos “cientificamente”; elas se cercam de aparelhos impressionantes, e imaginam mesmo haverem criado uma nova ciência, a “psicologia física”; não existe aí o bastante para afastar os homens sensatos, e não somos mesmo tentados a desculpar aqueles que preferem negar tudo a priori? No entanto, ao lado do artigo do qual tiramos as citações precedentes, encontramos um outro no qual um psiquista, que aliás não passa de um espírita mal disfarçado, declara tranqüilamente que “os céticos, os contraditores e os que se obstinam no estudo dos fenômenos psíquicos devem ser considerados como doentes”, que “o espírito científico preconizado nestas espécies de exames pode provocar no examinador, a longo prazo, uma espécie de mania, se podemos dizê-lo, (...) um delírio crônico, com paroxismos, um tipo de loucura lúcida”, enfim que “a dúvida, ao se instalar num terreno predisposto, pode evoluir até a loucura maníaca” (26). Evidentemente, as pessoas que são equilibradas devem passar por loucas aos olhos daqueles que são mais ou menos "détraqués"; isto é muito natural, mas é pouco tranqüilizador pensar que, se o espiritismo continua a ganhar terreno, chegará talvez o dia em que qualquer um que se permita criticá-lo arriscar-se-á simplesmente a ser internado num hospício!

Uma questão à qual os espíritas dão grande importância, mas sobre a qual eles não chegam a se entender, é a de saber se os “espíritos” conservam seu sexo; isto os interessa sobretudo pelas conseqüências que pode ter do ponto de vista da reencarnação: se o sexo é inerente ao “espírito”, ele deve permanecer invariável por todas as existências. Evidentemente, para aqueles que puderam assistir aos “casamentos de espíritos”, como Henry Lacroix, a questão está resolvida afirmativamente, ou antes ela nem se coloca; mas nem todos os espíritas gozam de faculdades assim tão excepcionais. Allan Kardec, por sua vez, pronunciou-se claramente pela negativa: “Os espíritos não possuem sexo como o entendeis, pois os sexos dependem da organização (ele quer sem dúvida dizer do organismo). Existe entre eles amor e simpatia, mas fundado sobre a similitude de sentimentos”. E ele acrescenta: “Os espíritos encarnam-se como homens ou mulheres porque eles não possuem sexo; como eles devem progredir em tudo, cada sexo, como cada posição social, lhes oferece provas e deveres específicos e a ocasião de adquirir experiência. Aquele que fosse sempre homem só saberia o que sabem os homens” (27). Mas seus discípulos não tem a mesma segurança, sem dúvida porque receberam “comunicações” contraditórias; assim é que, em 1913, um órgão espírita, o Fraterniste, achou necessário colocar expressamente a questão, e o fez nestes termos: “Como concebem vocês a vida no além? Em particular, os espíritos, ou mais exatamente, os perispíritos conservam seu sexo ou tornam-se neutros ao penetrar no plano astral? E, se perdemos o sexo, como explicar que ao encarnar-se de novo um sexo seja claramente determinado? Sabemos que muitos ocultistas pretendem que o perispírito seja o molde no qual se forma o novo corpo”. A última frase contém um erro no que concerne aos ocultistas propriamente ditos, pois estes dizem ao contrário que o “corpo astral”, para eles o equivalente do “perispírito”, dissolve-se no intervalo entre duas encarnações; a opinião que ela exprime é mais a de alguns espíritas; mas existe tanta confusão nisto tudo que é perfeitamente escusável não reconhecer-se. Léon Denis, após haver “pedido o conselho de seus guias espirituais”, respondeu que “o sexo subsiste, mas permanece neutro e sem utilidade”, e que, no momento da reencarnação, o perispírito liga-se novamente à matéria e retoma o sexo que lhe era habitual”, a menos entretanto “que um espírito deseje mudar de sexo, o que lhe é permitido”. Gabriel Delanne mostrou-se, sobre este ponto de vista particular, mais fiel ao ensinamento de Allan Kardec, pois ele declarou que “os espíritos são assexuados, simplesmente porque eles não tem necessidade de se reproduzirem no além”, e que “alguns fatos de reencarnações parecem provar que os sexos alternam-se para o mesmo espírito conforme o objetivo a que ele se propõe aqui embaixo; isto é, ao menos”; o que parece resultar como ensinamento das comunicações recebidas por toda parte durante meio século” (28). Dentre todas as respostas que foram publicadas, haviam também as de muitos ocultistas, notadamente Papus, que, invocando a autoridade de Swedwnborg, escreveu o seguinte: “Existe sexos para os seres espirituais, mas estes sexos não tem nenhuma relação com seus análogos sobre a terra. Existem no plano invisível seres sentimentalmente femininos e seres mentalmente masculinos. Ao vir para a terra, cada um destes seres poderá tomar um outro sexo material do que aquele sexo astral que ele possuía”. Por outro lado, um ocultista dissidente, Ernest Bosc, confessava francamente conceber a vida no além “absolutamente como neste mundo, mas com a diferença que, do outro lado, não tendo mais que nos ocuparmos inteiramente com nossos interesses materiais, resta mais tempo para trabalharmos mental e espiritualmente por nossa evolução”. Este “simplismo” não o impediu de protestar contra uma barbaridade que seguia o questionário do Fraterniste, que era a seguinte: “Compreender-se-á toda a importância desta questão quando dissermos que, para muitos espiritistas (sic), os espíritos são assexuados, enquanto que os ocultistas acreditam nos íncubos e nos súcubos, atribuindo assim um sexo a nossos amigos do Espaço”. Ninguém jamais havia dito que os íncubos e os súcubos fossem humanos “desencarnados”; alguns ocultistas parecem vê-los como “elementais”, mas, antes deles, todos os que partilhavam a crença na sua existência eram unânimes em considerá-los como demônios e nada mais; se é isto que os espíritas chamam de “seus amigos do Espaço”, é bastante edificante!

Tivemos que nos antecipar um pouco sobre a questão da reencarnação; assinalaremos ainda, para terminarmos este capítulo, um outro ponto que dá lugar a tantas opiniões conflitantes quanto o precedente: as reencarnações se dão sempre sobre a terra, ou podem elas acontecer também sobre outros planetas? Allan Kardec ensina que “a alma pode reviver muitas vezes sobre um mesmo globo, se ela não está avançada o bastante para passar para um mundo superior” (29); para ele, pode haver uma pluralidade de existências terrestres, mas existem também existências sobre outros planetas, e é o grau de evolução dos “espíritos”  que determina sua passagem de um a outro. Eis os esclarecimentos que ele fornece no que concerne aos planetas do sistema solar: “Segundo os espíritos, de todos os globos que compõem nosso sistema planetário, a terra é um dos quais aonde os habitantes são menos avançados física e moralmente; Marte seria ainda inferior e Júpiter muito superior em todos os aspectos. O sol não seria um mundo habitado por seres corporais, mas um lugar de encontro dos espíritos superiores, que daí irradiariam pelo pensamento para os outros mundos, que eles dirigem pelo intermédio de espíritos menos elevados aos quais eles são transmitidos através do fluído universal. Como constituição física, o sol seria um gerador de eletricidade. Todos os sóis parecem estar em posição semelhante. O volume e a distância do sol não tem nenhuma relação necessária com o grau de avanço dos mundos, pois pareceria que Vênus seria mais avançado do que a terra, e Saturno menos do que Júpiter. Muitos espíritos que animaram pessoas conhecidas na terra disseram estar reencarnados sobre Júpiter, um dos mundos mais próximos da perfeição, e pudemos nos espantar de ver, neste globo tão avançado, homens cujas opiniões eram divergentes aqui embaixo. Isto não tem nada de surpreendente, se considerarmos que certos espíritos podem ter sido enviados à terra para aí cumprir missões que, a nossos olhos, não os colocavam em posições de destaque; ademais, entre sua existência terrestre e a de Júpiter, pode ter havido intermediárias durante as quais ele pode aperfeiçoar-se; enfim, neste mundo como no nosso, existem diferentes graus de desenvolvimento, e entre estes graus pode haver a distância que entre nós separa o selvagem do homem civilizado. Assim, pelo fato de habitar em Júpiter, não se segue que se esteja no nível dos seres mais avançados, assim como não se está no nível de um sábio do Instituto só porque se mora em Paris” (30). Já vimos a história dos “espíritos” que habitam Júpiter, graças aos desenhos de Victorien Sardou; poderíamos nos perguntar como é possível que estes “espíritos”, ao mesmo tempo em que vivem sobre outros planetas, podem no entanto enviar “mensagens” para a terra; teriam os espíritas resolvido o problema das comunicações interplanetárias? Sua opinião parece ser a de que estas comunicações são realmente possíveis por seus procedimentos, mas apenas quando se trata de “espíritos superiores”, os quais, “mesmo habitando certos mundos, não estão confinados como os homens na terra, e podem melhor do que todos estar em toda parte” (31). Alguns “clarividentes” ocultistas e teosofistas, como Leadbeater, pretendem possuir o poder de se transportar para outros planetas para aí fazer “investigações”; sem dúvida eles devem ser classificados dentre estes “espíritos superiores” de que falam os espíritas; mas estes, mesmo se pudessem para aí se transportar em pessoa, não têm necessidade de se dar a este trabalho, pois os “espíritos”, encarnados ou não, vêm satisfazer sua curiosidade e lhes contar o que se passa nesses mundos. A bem dizer, o que contam os “espíritos” não é tão interessante; no livro de Dunglas Home que mencionamos a propósito de Allan Kardec, existe um capítulo denominado Absurdos, de que destacamos esta passagem: “Estes poucos dados científicos que fornecemos à apreciação nos foram fornecidos sob a forma de brochuras. Trata-se de um resumo precioso que fará as delícias do mundo culto. Vemos aí, por exemplo, que o vidro desempenha um papel importante no planeta Júpiter; é um material indispensável, o complemento indispensável a toda a existência nestas paragens. Os mortos são colocados em caixões de vidro, e estes colocados como ornamentação nas casas. As habitações são também em vidro, de modo que é melhor não atirar pedras neste planeta. Existem fileiras destes palácios que se chamam Séména. Aí pratica-se uma espécie de cerimônia mística, e nesta ocasião, ou seja uma vez a cada sete anos, o santo sacramento é levado num carro de vidro pelas cidades de vidro. Os habitantes são de talhe gigantesco, como diz Scarron; eles tem de sete a oito pés de altura. Eles tem como animal doméstico uma raça especial de grandes papagaios. Invariavelmente encontramos um, quando se entra numa casa, atrás da porta, tricotando gorros de dormir (...) A crermos em outro médium, não menos informado, é o arroz o que melhor se adapta ao solo do planeta Mercúrio, se não me engano. Mas lá, ele não cresce sobre a terra na forma de planta; graças às influências climáticas e a uma tecnologia de manipulação, ele se lança aos ares a uma altura que ultrapassa a copa dos mais altos carvalhos. O cidadão de Mercúrio que desejar gozar à perfeição o otium cum dignitate deve, desde a juventude, aplicar tudo o que puder num arrozal; ele escolherá, dentre os mais altos de seu domínio, um caule para subir até o alto; então, a exemplo do rato dentro do queijo, ele se introduzirá no interior da enorme espiga para aí devorar o fruto delicioso. Depois de comer tudo, ele recomeçará o mesmo trabalho em outro caule” (32). É pena que Home não deu referências precisas, mas não temos nenhuma razão para duvidar da autenticidade do que ele reporta, e que é ultrapassado em muito pelas extravagâncias de Henry Lacroix; estas asneiras, que estão bem dentro do tom habitual das “comunicações” espíritas, denotam sobretudo uma grande pobreza de imaginação. Isto está longe de valer as fantasias dos escritores que imaginam viagens a outros planetas, e que, ao menos, não pretendem que suas invenções sejam a expressão da realidade; existem aliás casos em que estas obras exerceram uma certa influência; soubemos de uma “vidente” espírita que forneceu uma descrição dos habitantes de Netuno que era manifestamente inspirada nos romances de H. G. Wells. Cabe frisar que, mesmo entre os escritores melhor dotados sob o aspecto da imaginação, as fantasias deste gênero permanecem bem terrestres no fundo; eles constituem os habitantes dos outros planetas com elementos emprestados aos da terra e mais ou menos modificados, seja quanto às proporções, seja quanto ao arranjo; nem poderia ser diferente, e está aí um dos melhores exemplos que podemos dar para mostrar que a imaginação não passa de uma faculdade de ordem sensível. Esta observação deve fazer compreender porque aproximamos aqui estas concepções daquelas que concernem à “sobrevida” propriamente dita: é porque, nos dois casos, a fonte real é exatamente a mesma; e o resultado é o que se pode obter quando se trata com a imaginação “subconsciente” de pessoas bastante comuns e até um pouco abaixo da média. Este tema, como dissemos, liga-se de resto diretamente à questão da comunicação como os mortos: são estas representações inteiramente terrestres que permitem acreditar numa tal comunicação; e somos assim conduzidos a abordar enfim o exame da hipótese fundamental do espiritismo, e que será grandemente facilitado e simplificado por tudo o que precede.



NOTAS


1.      Le Livre des Esprits, pgs. 72-73.
2.      Ibid., pg. 145.
3.      Ibid., pgs. 109-110.
4.      Ibid., pg. 111.
5.      Esta frase está sublinhada no texto; invertendo-se a relação que ela indica, teremos a exata expressão da verdade.
6.      Le Livre des Esprits., pgs. 135-137
7.      Ibid., pgs. 116-117
8.      Après la Mort, pgs. 270-290.
9.      La Mort et l’au delà, pg. 85 da tradução francesa.
10.  O autor teosofista aceita então aqui até o próprio termo empregado pelos “espiritualistas”.
11.  L’Occultisme dans la Nature, pgs. 19-20 e 44.
12.  Traité mèthodique de Science occulte, pg. 341.
13.  Le Lotus, março de 1889, pg. 736.
14.  Mes expériences avec les esprits, pg. 174.
15.  Id., pg. 22-24.
16.  Ibid., pgs. 101-103. – Isto não impede os “espíritos”, fora das representações que lhes são especialmente destinadas, de assistir aquelas que acontecem no nosso mundo (ibid., pgs. 155-156).
17.  Ibid ., pgs. 214-215.
18.  Ibid ., pgs. 239.
19.  Ibid ., pgs. 81.
20.  Ibid ., pgs. 180-183.
21.  Ibid ., pgs. 152-154.
22.  Ibid ., pgs. 170-171.
23.  Ibid ., pgs. 29.
24.  Comunicação recebida por Zaalberg van Zelst e Matla, de la Haye: Le Monde Psychique, março de 1912.
25.  Le Secret de la Mort, por Matla e Zaalberg van Zelst: id., abril de 1912.
26.  Id., março de 1912.
27.  Le Livre des Esprits, pg. 88.
28.  Le Fraterniste, 13 de março de 1914.
29.  Le Livre des Esprits, pgs. 76-77.
30.  Le Livre des Esprits, pgs. 81-82.
31.  Le Livre des Esprits, pg. 81.
32.  Les Lumières et les Ombres du Spiritualisme, pgs. 179-181.


 V
AS COMUNICAÇÕES COM OS MORTOS


Ao discutir a comunicação com os mortos, ou a reencarnação, ou qualquer outro ponto da doutrina espírita, existe um tipo de argumento que não levaremos em nenhuma consideração: trata-se dos argumentos de ordem sentimental, que vemos como absolutamente nulos, tanto num sentido quanto no outro. Sabemos que os espíritas recorrem freqüentemente a estas razões que não o são, que eles fazem grande caso delas, e que eles estão sinceramente persuadidos que elas podem realmente justificar suas crenças; isto tudo está bem de acordo com a sua mentalidade. Os espíritas, certamente, estão longe de ter o monopólio do sentimentalismo, que predomina geralmente entre os Ocidentais modernos; mas seu sentimentalismo reveste-se de formas particularmente irritantes para qualquer um que seja isento de seus pré-julgamentos: não conhecemos nada de mais tolamente pueril do que estas invocações endereçadas aos “caros espíritos”, estes cantos com os quais são abertas a maior parte das sessões, este absurdo entusiasmo em presença das “comunicações” mais banais e das manifestações mais ridículas. Não há nada para se admirar, nestas condições, que os espíritas insistam a todo propósito sobre o que existe de “consolador” nas suas teorias; que eles as achem tal, é problema deles, e não temos nada a ver com isto; apenas constatamos que existem outros, ao menos tão numerosos quanto, que não compartilham esta apreciação e que pensam exatamente o contrário, o que, de resto, tampouco prova coisa alguma. Em geral, quando dois adversários se servem dos mesmos argumentos, é muito provável que estes argumentos não valham nada; e, no caso presente, ficamos sempre admirados de ver que alguns não encontram nada de melhor a dizer contra o espiritismo, que ele é pouco “consolador” por representar os mortos a falar inépcias, balançar mesas, fazer micagens mais ou menos grotescas; claro que seríamos antes desta opinião do que daquela dos espíritas, que acham tudo isto muito “consolador”, mas pensamos que não é a estas considerações que se deve recorrer quando é preciso pronunciar-se sobre a verdade ou a falsidade de uma teoria. Em primeiro lugar, nada é mais relativo: cada qual acha “consolador” o que quiser, aquilo que se adapte às suas próprias disposições sentimentais, e não há nada a se discutir aí, assim como em tudo o que é questão de gosto; o que é absurdo, é querer persuadir aos outros de que esta apreciação é melhor do que a apreciação contrária. Depois, nem todos tem igual necessidade de “consolações”, e, por conseguinte, não estão dispostos a dar a mesma importância a essas considerações; a nossos olhos, a importância é bem medíocre, porque só o que nos importa é a verdade: não é assim que os sentimentais vêem as coisas, mas, repetimos, sua maneira de ver só vale para eles, enquanto que a verdade deve impor-se a todos, por pouco que se seja capaz de compreendê-la. Enfim, a verdade não tem que ser “consoladora”; se existem aqueles que, conhecendo-a, vêem nela este caráter, tanto melhor para eles, mas isto só provém do modo particular com que sua sentimentalidade foi afetada; à parte estes, pode haver outros sobre os quais o efeito produzido seja muito diferente e mesmo oposto, e é mesmo certo que sempre haverá, pois nada é mais variável e diverso do que o sentimento; mas, em qualquer caso, a verdade não tem nada a ver com isso.
Isto dito, lembraremos que, quando se trata da comunicação com os mortos, esta expressão implica que aquilo com que se está comunicando é o ser real do morto; é assim que o entendem os espíritas, e é assim que iremos considerar exclusivamente. Não poderia tratar-se da intervenção de elementos quaisquer provenientes dos mortos, elementos mais ou menos secundários e dissociados; já dissemos que esta intervenção é perfeitamente possível, mas os espíritas não querem nem ouvir falar disto; não será disto portanto que iremos tratar aqui, e faremos uma observação semelhante no que concerne à reencarnação. Lembraremos igualmente a seguir que, para os espíritas, trata-se essencialmente de comunicar-se com os mortos por meios materiais; ao menos, foi nestes termos que definimos sua pretensão no início, porque bastava para nos fazermos compreender; mas existe aí um equívoco possível, porque é possível haverem concepções da matéria extremamente diferentes, e que aquilo que não é material para uns o é para outros, sem contar aqueles para quem a própria idéia d matéria é estranha e parece desprovida de sentido; diremos então, para maior clareza e precisão, que os espíritas encaram uma comunicação estabelecida por meios de ordem sensível. É isto, de fato, que constitui a hipótese fundamental do espiritismo; é precisamente aquilo de que afirmamos a impossibilidade absoluta, e daremos agora as razões. Mas é preciso que se compreenda bem nossa posição a respeito: um filósofo, mesmo recusando-se a admitir a verdade ou mesmo a possibilidade da teoria espírita, pode entretanto vê-la como representando uma hipótese como qualquer outra, e mesmo achando-a pouco plausível, pode considerar a comunicação com os mortos e a reencarnação como “problemas”, que talvez não tenham meios de serem resolvidos; para nós, ao contrário, não há nenhum “problema”, porque trata-se apenas de impossibilidades puras e simples. Não pretendemos que a demonstração seja facilmente compreensível por todos, porque ela apela para dados de ordem metafísica, de resto relativamente elementares; também não pretendemos fazer aqui uma exposição absolutamente completa, porque tudo o que ela pressupõe não poderia ser desenvolvido nos limites deste estudo, e existem pontos que retomaremos em alguma outra hora. Entretanto, esta demonstração, uma vez compreendida, traz a certeza absoluta, como tudo o que tem um caráter verdadeiramente metafísico; se então alguns não a acharem plenamente satisfatória, a falta será da expressão imperfeita que possamos ter-lhe dado, ou da compreensão igualmente imperfeita que poderão também ter tido eles.

Para que dois seres possam comunicar entre si por meios sensíveis, é preciso em primeiro lugar que ambos possuam sentidos, e, além disto, é preciso que seus sentidos sejam os mesmos, ao menos parcialmente; se um deles não puder ter sensações, ou se eles não tiverem sensações em comum, nenhuma comunicação desta ordem será possível. Isto pode parecer evidente, mas são as verdades deste tipo as que mais facilmente se esquecem, aquelas a que não se dá atenção; e no entanto elas tem às vezes um alcance insuspeitado. Das duas condições que enunciamos, é a primeira que estabelece de modo absoluto a impossibilidade da comunicação com os mortos por meio das práticas espíritas; quanto à segunda, ela compromete gravemente a possibilidade das comunicações interplanetárias. Este último ponto liga-se imediatamente ao que dissemos no fim do capítulo anterior; vamos examiná-lo em primeiro lugar, pois as considerações que ele possibilitará facilitarão o entendimento da outra questão, que nos interessa principalmente aqui.

Se admitirmos a teoria que explica todas as sensações por movimentos vibratórios mais ou menos rápidos, e se considerarmos o quadro onde estão indicados os números de vibrações por segundo que correspondem a cada tipo de sensação, ficamos admirados pelo fato de que os intervalos que representam aquilo que os sentidos nos transmitem são muito pequenos em relação ao conjunto; eles são separados por outros intervalos em que não há nada perceptível para nós, e, além do mais, não é possível assinalar um limite determinado à freqüência crescente ou decrescente das vibrações (1), de modo que podemos considerar o quadro como prolongando-se em uma como em outra direção por indefinidas possibilidades de sensações, para as quais não corresponde em nós nenhuma sensação efetiva. Mas dizer que existem possibilidades de sensações é dizer que estas sensações podem existir para seres diversos de nós, que por outro lado podem não ter nenhuma das que nós temos; quando dizemos nós, aqui, não queremos dizer apenas os homens, mas todos os seres terrestres em geral, pois parece que os sentidos não variam muito neles, e, mesmo que sua extensão seja maior ou menor, eles permanecem sempre fundamentalmente os mesmos. A natureza destes sentidos parece portanto ser determinada pelo meio terrestre; ela não é uma propriedade inerente a tal ou qual espécie, mas ela deriva do fato de que os seres considerados vivam na terra e não em outro lugar; em qualquer outro planeta, analogamente, os sentidos devem também ser determinados pelo meio, mas eles podem então não coincidir em nada com aqueles que possuem os seres terrestres, e é mesmo muito provável que seja assim. De fato, toda possibilidade de sensação deve poder ser realizada em algum lugar no mundo corporal, pois tudo o que é sensação é essencialmente uma faculdade corporal; como estas possibilidades são indefinidas, existem poucas chances de que as mesmas sejam realizadas duas vezes, ou seja de que seres vivendo em planetas diferentes possuam sentidos que coincidam no todo ou em parte. Se supomos no entanto que esta coincidência possa realizar-se apesar de tudo, existem ainda poucas chances para que ela se realize precisamente em condições de proximidade temporal e espacial tais que uma comunicação possa se estabelecer; queremos dizer que estas chances, que são já infinitesimais para todo o conjunto do mundo corpóreo, ficam ainda indefinidamente reduzidas se encaramos apenas os astros que existem simultaneamente em um dado momento, e indefinidamente mais ainda, se, dentre estes astros, considerarmos apenas aqueles que são muito próximos uns dos outros, como os diferentes planetas que pertencem a um mesmo sistema; isto é assim, porque o tempo e o espaço representam eles próprios possibilidades indefinidas. Não queremos dizer que uma comunicação interplanetária seja uma impossibilidade absoluta; dizemos apenas que as chances de possibilidade só podem ser expressas por uma quantidade infinitesimal, e que, se colocarmos a questão para um caso determinado, como o da terra e um outro planeta do sistema solar, corremos pouco risco de nos enganarmos se as virmos como praticamente nulas; em suma, isto não passa de uma aplicação da teoria das probabilidades. O que importa frisar, é que o obstáculo a uma comunicação interplanetária, não é uma dificuldade do tipo que experimentamos por exemplo para fazer comunicar entre si dois homens que ignorem a língua um do outro; esta dificuldade não seria insuperável, porque os dois sempre poderiam encontrar, dentre as faculdades que lhes são comuns, um meio de remediar a situação numa certa medida; mas, aonde faculdades em comum não existem, ao menos dentro da ordem em que deve operar-se a comunicação, ou seja na ordem sensível, o obstáculo pode não ser suprimido por nenhum meio, porque ele deriva da diferença de natureza entre os seres considerados. Se estes seres forem tais, que nada do que provoca sensações em nós o faz neles, eles estarão para nós como se eles não existissem, e reciprocamente; eles poderiam mesmo estar ao nosso lado que não teríamos avançado em nada, e talvez nem nos apercebêssemos de sua presença, ou, em todo caso, provavelmente sequer os reconheceríamos como seres vivos. Isto, digamo-lo de passagem, permite supor que não há nada de impossível que existam no meio terrestre seres inteiramente diferentes de todos os que conhecemos, e com os quais não temos nenhum meio de entrar em contato; mas não insistiremos mais nisto, porque, caso estes seres existam, eles não terão mesmo nada em comum com a nossa humanidade. Seja como for, o que dissemos mostra quanta ingenuidade há nas ilusões que certos sábios fazem a respeito das comunicações interplanetárias; e estas ilusões procedem do erro que assinalamos precedentemente, e que consiste em transportar por toda a parte representações puramente terrestres. Se se disser que estas representações são as únicas possíveis para nós, concordamos, mas é melhor não se fazer nenhuma representação do que fazer uma falsa; é perfeitamente verdadeiro que aquilo de que se trata não seja imaginável, mas não se deve concluir que seja inconcebível, pois ao contrário o é facilmente. Um dos grandes erros dos filósofos modernos é a confusão entre o concebível e o imaginável; este erro é particularmente visível em Kant, mas não é exclusivo dele, e é mesmo um traço geral da mentalidade ocidental, ao menos a partir do momento em que ela se voltou exclusivamente para o lado das coisas sensíveis; para qualquer um que faça este tipo de confusão, não há evidentemente metafísica possível.

O mundo corporal, por comportar possibilidades indefinidas, deve comportar seres cuja diversidade seja igualmente indefinida; e no entanto, este mundo inteiro não representa mais do que um único estado de existência, definido por um certo número de condições determinadas, que são comuns a tudo o que se acha compreendido aí, ainda que possam ser expressas de maneiras extremamente variadas. Se passamos de um estado de existência a outro, as diferenças serão incomparavelmente maiores, porque não haverão mais condições em comum, sendo elas substituídas por outras que, de modo análogo, definirão este outro estado. Não haverá portanto, desta vez, nenhum ponto de comparação com a ordem corporal e sensível vista na sua integralidade, e não mais apenas em tal ou qual de suas modalidades particulares, como a que constitui por exemplo a existência terrestre. Condições tais como o espaço e o tempo não são de modo algum aplicáveis a outros estados, porque elas são precisamente daquelas que definem o estado corporal; mesmo que exista em outra parte alguma coisa analogamente correspondente, esta “alguma coisa” não poderá dar lugar para nós a nenhuma representação; a imaginação, faculdade de ordem sensível, não pode atingir realidades de outra ordem, assim como não o pode a própria sensação, que fornece todos os elementos para as suas construções. Portanto, não será na ordem sensível que poderemos encontrar um meio de entrar em relação com o que pertence a uma outra ordem; existe aí uma heterogeneidade radical, o que não implica uma irredutibilidade principial: se puder haver comunicação entre dois estados diferentes, só poderá ser por intermédio de um princípio  que seja comum e superior a estes dois estados, e não diretamente de um a outro; mas é evidente que esta possibilidade não concerne em nenhum grau ao espiritismo. Para não considerarmos mais do que dois estados em si mesmos, diremos o seguinte: a possibilidade de comunicação aparece como extremamente improvável, ainda que se trate de seres pertencentes a modalidades diversas de um mesmo estado; agora que se trata de seres pertencentes a estados diferentes, a comunicação entre eles é uma impossibilidade absoluta. Precisaremos que se trata, para o momento pelo menos, de uma comunicação que se supõe seja estabelecida pelos meios que cada um dos seres encontra dentre as condições de seu próprio estado, ou seja pelas faculdades que produziram neles estas mesmas condições, o que é o caso das faculdades sensíveis na ordem corporal; e é de fato às faculdades sensíveis que os espíritas recorrem. Trata-se de uma impossibilidade absoluta, porque as faculdades em questão são rigorosamente próprias aos estados considerados, como são as condições das quais elas derivam; se estas condições fossem comuns aos dois estados, estes se confundiriam e seriam um só, porque é por suas condições que se define um estado de existência. (2). O absurdo do espiritismo fica assim plenamente demonstrado, e poderíamos ficar por aqui; entretanto, como o próprio rigor de nossa demonstração pode torná-la de difícil assimilação para aqueles pouco habituados a ver as coisas desse jeito, acrescentaremos algumas observações complementares, que apresentarão a questão sob um aspecto um pouco diverso e mais particularizado, tornando o absurdo mais visível ainda.

Para que um ser possa manifestar-se no mundo corporal, é preciso que ele possua faculdades apropriadas, ou seja faculdades de sensação e de ação, e que ele possua os órgãos correspondentes a estas faculdades; sem tais órgãos, com efeito, estas faculdades poderiam existir, mas apenas em estado latente e virtual, elas seriam puras potencialidades que não se atualizariam jamais, e elas não serviriam para nada. Então, mesmo se supormos que o ser que deixou o estado corporal para passar a um outro estado conserva em si, de algum modo, as faculdades do estado corporal, só pode ser a título de potencialidades, e assim elas não terão mais nenhuma utilidade para a comunicação com os seres corporais. Um ser pode aliás portar em si potencialidades correspondentes a todos os estados de que ele é susceptível, e mesmo isto deve acontecer de alguma maneira, sem o que estes estados não seriam possibilidades para ele; mas falamos aqui do ser em sua realidade total, e não apenas desta parte do ser que só encerra as possibilidades de um único estado, como a individualidade humana por exemplo. Isto está bem distante do que estamos considerando agora, e, se lhe fizemos alusão, é unicamente para não negligenciar nada que possa dar lugar a  objeção; por outro lado, para evitar qualquer equívoco, devemos acrescentar que o que representa a individualidade humana não é precisamente o estado corporal apenas, mas algo que comporta diversos prolongamentos, os quais, juntamente com o estado corporal propriamente dito, constituem ainda um único estado ou grau da existência universal. Aqui não iremos nos preocupar com esta última complicação, porque, se é verdade que o estado corporal não é um estado absolutamente completo, ele é no entanto o único em causa em toda manifestação sensível; no fundo, sensível e corporal identificam-se completamente. Para voltarmos ao nosso ponto de partida, podemos dizer que uma comunicação por meios sensíveis só é possível entre seres que possuem um corpo; isto equivale em suma a dizer que um ser, para manifestar-se corporalmente, deve ser ele próprio corporal, e, colocada assim, a coisa é bastante evidente. Os próprios espíritas não podem ir abertamente contra esta evidência; é por isso que, sem se dar conta das razões necessárias, eles supõem que seus “espíritos” conservem todas as faculdades de sensação dos seres terrestres, e eles lhe atribuem um outro organismo, uma espécie de corpo que não o é, porque ele tem propriedades incompatíveis com a própria noção de corpo, além de não ter todas as propriedades que são essencialmente inerentes a esta noção; ele apenas guardaria algumas delas, como estar submetido ao tempo e ao espaço, mas isto está longe de ser suficiente. Aqui não cabe meio-termo: ou um ser possui um corpo, ou não; se ele está morto no sentido normal do termo, aquilo que os espíritas chamam “desencarnado”, isto significa que ele deixou seu corpo; a partir daí, ele já não pertence ao mundo corporal, donde se segue que toda manifestação sensível lhe foi tornada impossível; quase pedimos desculpas por insistir em coisas que no fundo são tão simples, mas sabemos que é preciso. Lembraremos ainda que esta argumentação não pressupõe nada a respeito do estado póstumo do ser humano: seja como for que se conceba este estado, todos estão de acordo que ele não é corporal, a menos que se aceite as grosseiras representações da “sobrevida” que descrevemos no capítulo anterior, com todos os elementos contraditórios que elas comportam; esta última opinião não é daquelas sobre as quais se possa insistir seriamente, e qualquer outra opinião deve trazer necessariamente a negação da hipótese espírita. Esta observação é muito importante, porque existem efetivamente dois casos a considerar: ou bem o ser, após a morte e em decorrência desta mudança mesma, passou para um estado inteiramente diferente e definido por condições completamente diversas daquelas de seu estado precedente, e então a refutação que expusemos em primeiro lugar aplica-se imediatamente e em nenhuma restrição; ou bem ele permanece ainda dentro de alguma modalidade deste mesmo estado, mas diferente da  modalidade corporal, e caracterizada pela desaparição de uma ou mais das condições cuja reunião era necessária para constituir a corporeidade: a condição que necessariamente desapareceu (o que não quer dizer que outras não tenham desaparecido também), é a presença da matéria, ou, de modo mais preciso e mais exato, da “matéria quantificada” (3). Podemos dizer que estes dois casos correspondem ambos a possibilidades: no primeiro, a individualidade humana cede lugar a um outro estado, individual ou não, mas que não pode de modo algum ser chamado de humano; no segundo, ao contrário, podemos dizer que a individualidade humana subsiste através de alguns dos prolongamentos a que nos referimos antes, mas esta individualidade é agora incorpórea, portanto incapaz de manifestação sensível, o que basta para que ela não possa de nenhum modo intervir nos fenômenos do espiritismo. Não é preciso dizer que é ao segundo caso que corresponde a concepção de imortalidade entendida no sentido religioso e ocidental; de fato, é realmente da individualidade humana que se trata então, e aliás o fato de que para aí seja transportada a idéia de vida, por modificada que a suponhamos, implica que este estado conserva certas condições do estado precedente, pois a própria vida, em toda a extensão de que é susceptível, não passa de uma destas condições e nada além. Haveria ainda um terceiro caso a considerar: é o da imortalidade entendida no sentido metafísico e oriental, ou seja o caso em que o ser passa, de modo imediato ou progressivo (pois pouco importa, perante o objetivo final, que ele tenha passado por um ou mais estados intermediários), ao estado incondicionado, superior a todos os estados particulares de que tratamos até aqui, e no qual todos estes estados tem seu principio; mas esta possibilidade é de ordem demasiadamente transcendente para que nos detenhamos nela para o momento, e está claro que o espiritismo, com seu parti-pris “fenomenista”, não tem nada a ver com as coisas desta ordem; bastará dizer que este estado está além, não apenas da manifestação sensível, mas de qualquer manifestação em qualquer modo que seja.

Naturalmente só consideramos, em tudo o que precede, a comunicação com os mortos tal como a concebem os espíritas; e poderíamos nos perguntar agora, depois d estabelecida esta impossibilidade, se não haverá, ao contrário, possibilidade de comunicação de um outro gênero, que se traduza por uma espécie de inspiração ou de intuição especial, na ausência de qualquer fenômeno sensível; sem dúvida, isto pode não interessar aos espíritas, mas poderá interessar a outros. É difícil tratar completamente destas questões, porque, se existe aí uma possibilidade, os meios de expressão são insuficientes para explicá-la; de resto, para que seja verdadeiramente uma possibilidade, ela pressupõe realizadas condições de tal forma excepcionais que é quase inútil falar dela. Diremos no entanto que, de modo geral, para poder se colocar em relação com um ser que está em outro estado, é preciso haver desenvolvido em si mesmo as possibilidades deste estado, de sorte que, mesmo que aquele que aí chegue seja um homem vivendo atualmente sobre a terra, não será entretanto como individualidade humana terrestre que ele poderá aí chegar, mas apenas na medida em que ele for outra coisa ao mesmo tempo. O caso mais simples, relativamente, é aquele em que o ser com o qual se trata de comunicar está em um dos prolongamentos do estado individual humano; basta então que a pessoa viva estenda sua própria individualidade em uma direção correspondente, para além da modalidade corporal a que ela está normalmente ligada em ato, senão em potência (pois as possibilidades da individualidade integral são evidentemente as mesmas em todos, mas podem permanecer puramente virtuais durante a existência terrestre); este caso pode realizar-se em certos “estados místicos”, e isto pode acontecer mesmo sem que a vontade daquele que os realiza intervenha ativamente. Se considerarmos agora o caso em que se trata de comunicar com um ser que passou a um estado inteiramente diferente do estado humano, podemos dizer que isto é praticamente uma impossibilidade, pois a coisa só seria possível se a pessoa viva atingisse um estado superior, elevado o bastante para representar um princípio comum aos dois outros, permitindo uni-los por implicar “eminentemente” todas as suas possibilidades particulares; mas então a questão perde o interesse, pois, chegando a um tal estado, ele não terá mais nenhuma necessidade de voltar a um estado inferior que não lhe diz respeito mais diretamente; enfim, de todo modo, trata-se aí de algo muito diferente da individualidade humana (4). Quanto à comunicação com um ser que houvesse atingido a imortalidade absoluta, ela suporia que a pessoa viva possuísse ela mesma o estado correspondente, ou seja que ele tenha atual e plenamente realizado sua própria personalidade transcendente; de resto, não podemos falar deste estado como análogo a um estado particular e condicionado; aí já não se trataria mais de qualquer coisa parecida com individualidades, e a própria palavra comunicação perderia seu significado, precisamente porque toda comparação com o estado humano não seria mais aplicável. Estas explicações podem parecer um pouco obscuras ainda, mas seria preciso, para esclarecê-las agora, muitos desenvolvimentos completamente alheios ao nosso objeto (5); estes desenvolvimentos poderão encontrar o seu lugar em outro estudo. De resto, a questão está longe de ter a importância que alguns poderiam ser tentados a lhe atribuir, porque a verdadeira inspiração é algo bem diferente de tudo isto na realidade: ela não tem sua fonte numa comunicação com outros seres, quaisquer que sejam, mas numa comunicação com os estados superiores de seu próprio ser, o que é totalmente diferente. Assim poderíamos repetir, quanto a essas coisas, o que dissemos a propósito da magia, embora estejamos agora numa ordem bem mais elevada: aqueles que sabem verdadeiramente do que se trata e que tem disto um conhecimento profundo se desinteressam completamente das aplicações; quanto aos “empíricos” (cuja ação se acha aliás restrita aqui, por força das circunstâncias, ao único caso em que intervém uma extensão da individualidade humana), não é evidentemente possível impedi-los de aplicar a torto e a direito alguns conhecimentos fragmentários e descoordenados de que se apoderaram como que de surpresa, mas convém adverti-los de que estarão agindo sempre por sua própria conta e risco.

  

NOTAS


1.      É evidente que a freqüência de uma vibração por segundo não representa absolutamente um limite mínimo, sendo o segundo uma unidade de medida totalmente relativa, como qualquer unidade de medida; somente a unidade aritmética pura é absolutamente indivisível.
2.      Haveria uma ressalva a se fazer, no sentido que existe, como veremos adiante, uma condição comum a todos os estados individuais, à exclusão dos estados não-individuais; mas isto não afeta em nada nossa demonstração, que quisemos apresentar da forma mais simples possível, mas sem ser em detrimento da verdade.
3.      Materia quantitate signata, segundo a expressão escolástica .
4.      Supusemos aqui que o ser não-humano está num estado ainda individual; se ele estivesse num estado supra-individual, embora ainda condicionado, bastaria que a pessoa viva atingisse o mesmo estado, mas então as condições seriam tais que já não se poderia falar em comunicação, num sentido análogo à acepção humana, assim como não se poderá falar quando se tratar do estado incondicionado.
5.      Seria preciso ainda, depois de supor que a iniciativa parte da pessoa viva, tomar a questão em sentido inverso, o que traria ainda outras complicações.


 VI
A REENCARNAÇÃO


Não podemos pretender realizar aqui um estudo absolutamente completo sobre a questão da reencarnação, pois seria preciso um volume inteiro para examiná-la sob todos os seus aspectos; talvez voltaremos a isto algum dia; a coisa vale a pena, não sem si mesma, pois não passa de um absurdo pura e simplesmente, mas em razão da estranha difusão desta idéia de reencarnação, que é, na nossa época, uma das que contribuem mais ao desequilíbrio mental de muita gente. Mas como não podemos nos furtar ao assunto agora, diremos tudo o que é essencial para ser dito; e nossa argumentação valerá, não apenas contra o espiritismo kardecista, mas também contra todas as escolas “neo-espiritualistas” que, na seqüência, adotaram esta idéia, apenas modificando-a em pontos de menor importância. Ao contrário, esta refutação não está, como a precedente, endereçada ao espiritismo visto em sua generalidade, pois a reencarnação não é aí um elemento essencial, e é possível ser espírita sem admiti-la, enquanto que não é possível sê-lo sem admitir a manifestação dos mortos por fenômenos sensíveis. De fato, sabemos que os espíritas norte-americanos e ingleses, ou seja os representantes da forma mais antiga do espiritismo, foram unânimes em se opor à teoria reencarnacionista, que Dunglas Home, em particular, criticou violentamente (1); foi preciso, para que alguns se decidissem a aceitá-la mais tarde, que esta teoria penetrasse, neste ínterim, nos meios anglo-saxões por vias estranhas ao espiritismo. Na própria França, alguns dos primeiros espíritas, como Piérart e Anatole Barthe, separaram-se de Allan Kardec neste ponto; mas, hoje em dia, podemos dizer que todo o espiritismo francês faz da reencarnação um verdadeiro “dogma”; o próprio Allan Kardec, aliás, não hesitou em chamá-la por este nome (2). É do espiritismo francês, lembremos ainda, que esta teoria foi emprestada primeiro pelo teosofismo, depois pelo ocultismo de Papus e enfim por diversas outras escolas, que dela fizeram também artigo de fé; estas escolas costumam reprovar os espíritas por conceberem a reencarnação de maneira pouco “filosófica”, mas as modificações e complicações diversas que elas acrescentaram não conseguem esconder o empréstimo inicial.

Já notamos algumas das divergências que existem a propósito da reencarnação, seja entre os espíritas, seja entre estes e outras escolas; nisto como em tudo o mais, os ensinamentos dos “espíritos” são bastante flutuantes e contraditórios, e as pretensas constatações dos “clarividentes” não o são menos. Assim, vimos que para uns o ser humano se reencarna sempre no mesmo sexo; para outros, ele se reencarna indiferentemente num e noutro sexo, sem que haja lei nisto; para outros ainda, existe uma alternância mais ou menos regular entre as encarnações masculinas e femininas. Da mesma forma, uns dizem que o homem se reencarna sempre sobre a terra; outros pretendem que ele podem reencarnar-se também tanto em outro planeta do sistema solar como em qualquer astro; alguns admitem que haja um grande número de encarnações terrestres consecutivas até a passagem para outro lugar, e esta é a opinião do próprio Allan Kardec; para os teosofistas, só existem encarnações terrestres durante toda a duração de um ciclo extremamente longo, após os qual uma raça humana inteira começa uma nova série de encarnações em outra esfera, e assim por diante. Um outro ponto que não é menos discutido, é a duração do intervalo que acontece entre duas encarnações sucessivas; uns pensam que é possível reencarnar-se imediatamente, ou ao menos após um curto intervalo, enquanto que, para outros, as vidas terrestres devem ser separadas por longos intervalos; já vimos que os teosofistas, após supor que estes intervalos fossem de doze ou quinze séculos no mínimo, chegaram a reduzi-lo consideravelmente, e a fazer a respeito distinções segundo os “graus de evolução” dos indivíduos (3). Entre os ocultistas franceses, produziu-se igualmente uma variação que é curioso assinalar: em suas primeiras obras, Papus, mesmo atacando os teosofistas com quem acabara de romper, repete com eles que “segundo a ciência esotérica, uma alma não pode reencarnar-se antes de quinze séculos em média, salvo em algumas exceções muito claras (morte na infância, morte violenta, adeptato)” (4), e ele chega a afirmar, como Mme. Blavatsky e Sinnet, que “estas cifras foram tiradas de cálculos astronômicos do esoterismo  hindu) (5), enquanto que nenhuma doutrina autêntica jamais falou de reencarnação, sendo esta uma invenção inteiramente moderna e ocidental. Mais tarde, Papus rejeita totalmente a pretensa lei estabelecida pelos teosofistas e declara não haver nenhuma, dizendo que “seria absurdo fixar um termo fixo de doze séculos como de dez anos ao tempo que separa uma encarnação de um retorno à terra, assim como fixar para a vida humana sobre a terra um período igualmente fixo” (6). Tudo isto não inspira confiança a quem examina as coisas com imparcialidade, e, se a encarnação não é “revelada” pelos “espíritos” pela boa razão de que estes jamais se pronunciaram realmente por intermédio de tábuas ou de médiuns, estas poucas observações bastam para mostrar que ela não pode ser um verdadeiro conhecimento esotérico, ensinado por iniciados que, por definição, devem saber o que dizem. Não é preciso nem ir ao fundo da questão para descartar as pretensões de ocultistas e teosofistas; resta que a reencarnação fica como o equivalente de uma simples concepção filosófica; efetivamente, ela não passa disso, e está mesmo no nível das piores concepções filosóficas, porque ela é absurda no próprio sentido do termo. Existem muitos absurdos entre os filósofos, mas ao menos eles os apresentam sempre como hipóteses: os “neo-espiritualistas” iludem-se mais completamente (admitimos aqui sua boa fé, que é incontestável para as massas, mas não necessariamente para os dirigentes), e a segurança mesma com que eles formulam suas afirmações é uma das razões que as tornam mais perigosas do que aquelas dos filósofos.

Acabamos de pronunciar a expressão “concepções filosóficas”; a de “concepções sociais” seria talvez mais justa nas circunstâncias, se considerarmos qual foi a origem real da idéia de reencarnação. De fato, para os socialistas franceses da primeira metade do século XIX, que a inculcaram a Allan Kardec, esta idéia era essencialmente destinada a fornecer uma explicação para a desigualdade das condições sociais, que se revestia a seus olhos de um aspecto particularmente chocante. Os espíritas conservaram este mesmo motivo dentre aqueles que eles invocam com mais freqüência para justificar sua crença na reencarnação, e eles pretenderam mesmo estender esta explicação para todas as desigualdades, tanto intelectuais como físicas; eis o que diz Allan Kardec: “Ou as almas ao nascer são iguais, ou não o são, disto não há dúvida. Se elas são iguais, porque aptidões tão diversas? (...) Se elas são desiguais, é porque Deus as criou assim, mas então porque esta superioridade inata que cabe a alguns? É esta parcialidade conforme à sua justiça e ao igual amor que ele dedica a todas as suas criaturas? Admitamos, ao contrário, uma sucessão de existências anteriores progressivas, e tudo está explicado. Os homens trazem ao nascer a intuição daquilo que adquiriram; eles estão mais ou menos avançados, segundo o número de existências que eles percorreram, segundo estejam mais ou menos distanciados do ponto de partida, exatamente como numa reunião de indivíduos de diferentes idades cada um terá um desenvolvimento proporcional ao número de anos vividos; as existências sucessivas serão para a vida da alma aquilo que são os anos para a vida do corpo (...) Deus, em sua justiça, não pode criar as almas nem mais nem menos perfeitas; mas, com a pluralidade das existências, as desigualdades que vemos não contrariam a eqüidade mais rigorosa” (7). Léon Denis diz igualmente: “Apenas a pluralidade das existências pode explicar a diversidade dos caracteres, a variedade das aptidões, a desproporção das qualidades morais, em uma palavra, todas as desigualdades que nos espantam. Sem esta lei, perguntaríamos em vão porque certos homens possuem talento, sentimentos nobres, aspirações elevadas, enquanto que outros não receberam senão estupidez, paixões vis e instintos grosseiros. Que pensar de um Deus que, ao nos assinalar uma vida corporal, nos tivesse feito de partes tão desiguais e, do selvagem ao civilizado, tivesse reservado aos homens bens tão pouco proporcionais e um nível moral tão diferente? Sem a lei das reencarnações, é a iniqüidade que governa o mundo (...) Todas estas obscuridades dissipam-se diante da doutrina das existências múltiplas. Os seres que se distinguem por sua potência intelectual ou por suas virtudes viveram mais, trabalharam antes, adquiriram experiência e aptidões mais extensas” (8). Razões similares são alegadas mesmo por escolas cujas teorias são menos “primárias” do que as do espiritismo, pois a concepção reencarnacionista jamais pode perder inteiramente a marca de sua origem; os teosofistas, por exemplo, colocam também na frente, ao menos acessoriamente, a desigualdade das condições sociais. De sua parte, Papus faz exatamente o mesmo: “Os homens recomeçam um novo percurso no mundo material, ricos ou pobres, felizes ou infelizes socialmente, segundo os resultados adquiridos nos percursos anteriores, nas encarnações precedentes” (9). Em outra parte, ele se expressa ainda mais claramente: “Sem a noção de reencarnação, a vida social é uma iniqüidade. Porque seres sem nenhuma inteligência são cobertos de prata e cumulados de honra, enquanto seres de valor se debatem nas dificuldades e na luta cotidiana por alimentos físicos, morais e espirituais? (...) Podemos dizer, em geral, que a vida social atual é definida pelo estado anterior do espírito e que ela determina o estado social futuro” (10).

Uma tal explicação é perfeitamente ilusória, e eis o porquê: em primeiro lugar, se o ponto de partida não é o mesmo para todos, se existem homens que estão mais ou menos próximos dele e que não percorreram o mesmo número de existências (é o que diz Allan Kardec), existe aí uma desigualdade da qual eles não podiam ser responsabilizados, e que, portanto, os reencarnacionistas devem ver como uma “injustiça” da qual sua teoria não é capaz de dar conta. Depois, mesmo admitindo que não existam estas diferenças entre os homens, é preciso que tenha havido, na sua evolução (falamos segundo o modo de ver dos espíritas) um momento onde as desigualdades começaram, e é preciso também que tenha existido para isto alguma causa; se dissermos que esta causa está nos atos que os homens cumpriram anteriormente, é preciso explicar como estes homens puderam se comportar diversamente antes que as desigualdades tenham se introduzido entre eles. Isto é inexplicável, simplesmente porque há aí uma contradição: se os homens foram perfeitamente iguais, eles teriam sido semelhantes sob todos os aspectos, e, admitindo-se que isto tenha sido possível, eles não poderiam deixar de sê-lo, a menos que se conteste a validade do princípio da razão suficiente (e, neste caso, não adianta buscar nem lei nem nenhuma explicação); se eles puderam se tornar desiguais, é evidentemente porque a possibilidade da desigualdade estava neles, e esta possibilidade prévia bastaria para torná-los desiguais desde a origem, ao menos potencialmente. Assim, o que se faz é recuar a dificuldade ao invés de resolvê-la, e afinal ela subsiste inteira; mas, a bem dizer, não existe dificuldade, e o próprio problema não é menos ilusório do que a pretensa solução. Podemos dizer desta questão a mesma coisa que dizemos sobre muitas questões filosóficas, que elas só existem porque são mal colocadas; e, se ela é mal colocada, é sobretudo, no fundo, porque se faz intervir aí considerações morais e sentimentais onde elas não tem cabimento: esta atitude é tão desinteligente quanto seria a do homem que se perguntasse, por exemplo, porque tal espécie animal não é igual a tal outra, o que é manifestamente desprovido de sentido. Que existam na natureza diferenças que nos aparecem como desigualdades, enquanto que outra não tem este aspecto, isto é um ponto de vista puramente humano; e, se deixarmos de lado este ponto de vista eminentemente relativo, não cabe mais falar em justiça ou injustiça nesta ordem de coisas. Em suma perguntar porque um ser não é igual a um outro, equivale a perguntar porque ele é diferente deste outro; mas, se ele não fosse diferente em nada, ele seria o outro em lugar de ser ele mesmo. A partir do momento em que existe uma multiplicidade de seres, é preciso necessariamente que haja diferenças entre eles; duas coisas idênticas são inconcebíveis, porque, se elas forem realmente idênticas, não serão duas coisas, mas uma única e mesma coisa; Leibnitz tem inteira razão sobre este ponto. Cada ser se distingue dos outros, desde o princípio, na medida em que traz em si certas possibilidades que são essencialmente inerentes à sua natureza, e que não são as possibilidades de nenhum outro ser; a questão para a qual os espíritas imaginam trazer uma resposta equivale simplesmente a se perguntar porque um ser é ele mesmo e não outro. Se quisermos ver nisto uma injustiça, pouco importa, mas, em todo caso, é uma necessidade; e aliás, no fundo, seria o contrário da injustiça: de fato, a noção de justiça, despida de seu caráter sentimental e especificamente humano, reduz-se à noção de equilíbrio ou de harmonia; ora, para que haja harmonia total no Universo, é necessário e suficiente que cada ser ocupe o lugar que lhe cabe, como elemento deste Universo, em conformidade com sua própria natureza. Isto equivale simplesmente a dizer que as diferenças e as desigualdades, que são denunciadas como injustiças reais ou aparentes, ao contrário concorrem efetiva e necessariamente para esta harmonia total; e esta não pode não existir, porque isto seria supor que as coisas não são o que elas são, chegando ao absurdo de supor que a um ser pode acontecer qualquer coisa que não seja uma conseqüência da sua natureza; assim os partidários da justiça podem ficar também satisfeitos, sem ter que ir contra a verdade.

Allan Kardec declara que “o dogma da reencarnação está fundamentado na justiça de Deus e na revelação” (11); nós mostramos que, das duas razões apresentadas, a primeira não pode ser invocada validamente; quanto à segunda, como evidentemente ele quer dizer a revelação dos “espíritos”, e como já estabelecemos que esta é inexistente, não voltaremos a ela. Entretanto, essas não são mais do que observações preliminares, pois, que não haja nenhuma razão para admitir uma coisa, não se segue forçosamente que esta coisa seja falsa; pode-se ainda, ao menos, permanecer diante dela numa atitude de dúvida pura e simples. Devemos dizer, aliás, que as objeções que são formuladas normalmente contra a teoria reencarnacionista não são melhores do que as razões que são invocadas de outra parte para apoiá-la; isto se deve, em grande parte, a que os adversários e partidários da reencarnação colocam-se igualmente, de modo geral, sobre o terreno moral e sentimental, e que considerações desta ordem não conseguem provar nada. Podemos fazer aqui a mesma observação no que concerne à questão da comunicação com os mortos; ao invés de se perguntar se ela é verdadeira ou falsa, discute-se para saber se ela é ou não é “consoladora”, e pode-se discutir assim indefinidamente sem avançar um passo, porque trata-se de um critério puramente “subjetivo”, como diria um filósofo. Felizmente, há mais do que isso para se dizer contra a reencarnação, pois é possível estabelecer-se a sua impossibilidade absoluta; mas, antes de chegarmos aí, devemos ainda tratar de uma outra questão, e dar certas distinções, não apenas porque são importantes em si mesmas, mas também porque, sem elas, alguns poderiam ficar espantados quando afirmarmos que a reencarnação é uma idéia exclusivamente moderna. Muitas confusões e falsas noções aconteceram durante um século para que muitas pessoas, mesmo fora dos meios “neo-espiritualistas”, se achem gravemente influenciadas; esta deformação chega a tal ponto que os orientalistas oficiais, por exemplo, interpretam correntemente num sentido reencarnacionista textos aonde não existe nada disto, tornando-se incapazes de compreendê-los de outro modo, o que quer dizer que eles não entendem absolutamente nada.

O termo de “reencarnação” deve ser distinguido de dois outros termos ao menos, que têm um significado totalmente diferente, e que são a “metempsicose” e a “transmigração”; trata-se aí de coisas que eram bem conhecidas dos antigos, como ainda o são dos Orientais, mas que os Ocidentais modernos, inventores da reencarnação, ignoram absolutamente (12). Deve ficar entendido que, quando se  fala em reencarnação, isto quer dizer que o ser que já se incorporou toma um novo corpo, ou seja que ele volta ao estado pelo qual já passou; por outro lado, admite-se que isto concerne ao ser real e completo, e não apenas a elementos mais ou menos importantes que possam ter entrado na sua constituição a qualquer título. Fora destas duas condições, não se pode falar em reencarnação; ora, a primeira a distingue essencialmente da transmigração, tal como ela é vista pelas doutrinas orientais, e a segunda a difere profundamente da metempsicose, no sentido em que a entendiam notadamente os Órficos e os Pitagóricos. Os espíritas, apesar de afirmarem falsamente a antigüidade da teoria reencarnacionista, dizem com razão que ela não é idêntica à metempsicose; mas, segundo eles, a distinção está em que as existências sucessivas são sempre “progressivas”, e que só se devem considerar os seres humanos: “Existe, diz Allan Kardec, entre a metempsicose dos antigos e a doutrina moderna da reencarnação esta grande diferença, que os espíritas rejeitam da maneira mais absoluta a transmigração do homem para os animais, e reciprocamente” (13). Os antigos, na verdade, jamais consideraram uma tal transmigração, assim como a de homens para outros homens, tal como se define a reencarnação; sem dúvida, existem expressões mais ou menos simbólicas que podem dar lugar a mal-entendidos, mas apenas quando não se sabe o que elas querem dizer realmente, e que é o seguinte: existem no homem elementos psíquicos que se dissociam após a morte, e que podem então passar para outros seres vivos, homens ou animais, sem que isto tenha mais importância, no fundo, do que o fato de que, após a dissolução do corpo deste mesmo homem, os elementos que o compõem possam servir para formar outros corpos; nos dois casos, trata-se de elementos mortais do homem, e não da parte imperecível que é o seu ser real, e que não é absolutamente afetada pelas mutações póstumas. A este propósito, Papus cometeu um erro de outro gênero, ao falar das “confusões entre a reencarnação ou retorno do espírito num corpo material, após um estágio astral, e a metempsicose ou travessia pelo corpo material de corpos de animais e de plantas, antes de voltar em um novo corpo material” (14); sem falar de algumas bizarrices de expressão que podem ser lapsos (os corpos dos animais e das plantas não são menos “materiais” do que o corpo humano, nem são “atravessados” por este, mas por elementos provenientes dele), isto não poderia jamais ser chamado de “metempsicose”, pois a própria formação desta palavra mostra que se trata de elementos psíquicos, e não de elementos corporais. Papus tem razão em pensar que a metempsicose não diz respeito ao ser real do homem, mas ele se engana completamente sobre a sua natureza; e de outro lado, quanto à reencarnação, quando ele diz que “ela foi ensinada como um mistério esotérico em todas as iniciações da antigüidade” (15), ele a confunde simplesmente com a transmigração verdadeira.

A dissociação que se segue à morte não alcança apenas os elementos corporais, mas também alguns elementos que podemos chamar de psíquicos; isto já foi dito quando explicamos que tais elementos podem intervir às vezes nos fenômenos do espiritismo e contribuir para dar a ilusão de uma ação real dos mortos; de modo análogo, eles podem também, em certos casos, dar a ilusão de uma reencarnação. O que importa guardar, sob este último ponto, é que estes elementos (que podem, durante a vida, ter sido propriamente conscientes ou somente “subconscientes”) compreendem notadamente todas as imagens mentais que, como resultados da experiência sensível, fazem parte daquilo que se chama memória e imaginação: estas faculdades, ou melhor esses conjuntos, são perecíveis, ou seja sujeitos a se dissolverem, porque, sendo de ordem sensível, são literalmente dependências do estado corporal; aliás, fora da condição temporal, que é uma das que definem este estado, a memória não tem evidentemente nenhuma razão de existir. Isso está bem longe, certamente, das teorias da psicologia clássica sobre o “eu” e sua unidade; estas teorias tem o defeito de serem tão desprovidas de fundamento, no seu gênero, quanto as concepções “neo-espiritualistas”. Uma outra observação que não é menos importante, é que pode haver transmissão de elementos psíquicos de um ser a outro sem que isto pressuponha a morte do primeiro: de fato, existe ima hereditariedade psíquica tanto quanto a hereditariedade fisiológica, isto é pouco contestável, e é mesmo fato de observação corriqueira; mas aquilo de que muitos não se dão conta, é que isto supõe que os pais forneçam um germe psíquico, do mesmo modo que  um germe corporal; e este germe pode implicar potencialmente um conjunto muito complexo de elementos que pertencem ao domínio do “subconsciente", além das tendências e predisposições propriamente ditas, as quais, desenvolvendo-se, aparecerão de modo mais manifesto; estes elementos “subconscientes”, ao contrário, poderão só se tornar aparentes em casos excepcionais. É esta dupla hereditariedade física e psíquica que exprime a fórmula chinesa: “Tu reviverás nos milhares de teus descendentes”, que seria bem difícil, certamente, interpretar no sentido reecarnacionista, embora os ocultistas e mesmo alguns orientalistas tenham chegado perto em outras ocasiões. As doutrinas extremo-orientais consideram mesmo de preferência o lado psíquico da hereditariedade, e eles vêem aí um verdadeiro prolongamento da individualidade humana; é por isso que, sob o nome de “posteridade” (que é de resto susceptível de um sentido superior e puramente espiritual), eles a associam com a “longevidade”, que os Ocidentais chamam de imortalidade.

Como veremos a seguir, certos fatos que os reencarnacionistas acreditam poder invocar como apoio à sua hipótese explicam-se perfeitamente por um ou outro dos dois casos que citamos, ou seja, de um lado, pela transmissão hereditária de certos elementos psíquicos, e, por outro, pela assimilação por uma individualidade humana de outros elementos psíquicos provenientes da desintegração de individualidades humanas anteriores, que nem por isso terão a menor relação espiritual com ela. Existe, em tudo isso, correspondência e analogia entre a ordem psíquica e a ordem corporal; e isto é compreensível, porque tanto uma quanto outra, repetimos, referem-se exclusivamente àquilo que podemos chamar de elementos mortais do ser humano. É preciso ainda acrescentar que, na ordem psíquica, pode acontecer, mais ou menos excepcionalmente, que um conjunto bastante grande de elementos se conserve sem dissociar-se, e seja transferido tal e qual para uma nova individualidade; os fatos deste gênero são, naturalmente, os que apresentam o caráter mais chocante aos olhos dos partidários da reencarnação, e no entanto estes casos não são menos ilusórios do que os demais (16). Tudo isto, já dissemos, não diz respeito nem altera de modo algum o ser real; poderíamos, é verdade, ser questionados sobre porque, sendo assim, os antigos atribuíam tão grande importância à sorte póstuma desses elementos. Podemos responder lembrando simplesmente que existem também pessoas que se preocupam com o tratamento que seu corpo possa sofrer após a morte, sem por isso pensar que seu espírito possa receber um contra-golpe; mas acrescentaremos que de fato, de modo geral, essas coisas não são absolutamente indiferentes; se elas fosse, aliás, os ritos funerários não teriam nenhuma razão de ser, enquanto que na verdade eles tem razões muito profundas. Sem insistirmos muito nisto, diremos que a ação destes ritos se exerce precisamente sobre os elementos psíquicos do defunto; já mencionamos o que pensavam os antigos sobre a relação que existe entre o seu não cumprimento e certos fenômenos de “obsessão”, e esta opinião era perfeitamente bem fundamentada. Certamente, se só considerarmos o ser que está passando para um outro estado de existência, não haveria porque levar em conta o que pode acontecer com esses elementos (salvo talvez para assegurar a tranqüilidade dos vivos); mas a coisa muda de figura se considerarmos também aquilo a que chamamos de prolongamentos da individualidade humana. Este tema poderia dar lugar a comentários cuja complexidade e estranheza nos impedem de fazer aqui; e achamos que tampouco seria útil ou vantajoso expô-los publicamente de modo detalhado.

Após havermos dito em que consiste verdadeiramente a metempsicose, vamos agora dizer o que é a transmigração propriamente dita: desta vez, trata-se do ser real, mas não implica para ele um retorno ao mesmo estado de existência, retorno que, se pudesse existir, seria mais como uma “migração”, se se quiser, mas não uma “transmigração”. Aquilo de que se trata, é, ao contrário, a passagem do ser a outros estados de existência, que são definidos, como dissemos, por condições inteiramente diferentes daquelas a que está submetida a individualidade humana (apenas com a restrição d que, na medida em que se trata de estados individuais, o ser estará sempre revestido de uma forma, mas que não daria lugar a nenhuma representação espacial ou qualquer outra que fosse mais ou menos modelada sobre a forma corporal); quem diz transmigração diz essencialmente mudança de estado. É o que ensinam todas as doutrinas tradicionais do Oriente, e temos múltiplas razões para pensar que este ensinamento era também o dos “mistérios” da antigüidade; mesmo em doutrinas heterodoxas como o Budismo (17), não é questão de outra coisa, apesar da interpretação reencarnacionista que corre hoje em dia entre os Europeus. É precisamente a verdadeira doutrina da transmigração, entendida no sentido que lhe dá a metafísica pura, que permite refutar de modo absoluto e definitivo a idéia da reencarnação; de fato, é apenas neste terreno que tal refutação é possível. Mostraremos que a reencarnação é uma impossibilidade pura e simples: é preciso entender com isto que um mesmo ser não pode ter duas existências no mundo corporal, considerando este mundo em toda a sua extensão; pouco importa que seja sobre a Terra ou em quaisquer outros astros (18); pouco importa também que seja como ser humano, ou , segundo as falsas noções da metempsicose, sob outra forma, animal, vegetal ou mesmo mineral. Acrescentaremos ainda: pouco importa que se trate de existências sucessivas ou simultâneas, pois alguns fizeram esta suposição, no mínimo extravagante, de uma pluralidade de vidas desenrolando-se ao mesmo tempo, para um mesmo ser, em diversos lugares, possivelmente sobre planetas diferentes; isto nos leva novamente aos socialistas de 1848, pois parece ter sido Blanqui o primeiro a imaginar uma repetição simultânea e indefinida, no espaço, de indivíduos supostos idênticos (19). Alguns ocultistas pretendem também que o indivíduo humano pode ter muitos “corpos físicos”, como eles dizem, vivendo ao mesmo tempo em diferentes planetas; e eles chegam a afirmar que, se acontece a alguém sonhar ter sido ferido, é porque, em muitos casos, neste mesmo instante, ele foi efetivamente ferido em outro planeta! Isto teria nos parecido inacreditável se não tivéssemos ouvido em pessoa; mas veremos, no capítulo seguinte, outras histórias tão fortes quanto. Devemos também dizer que a demonstração que faremos vale contra todas as teorias reencarnacionistas, qualquer que seja a forma que tomem, e aplica-se igualmente, do mesmo modo, a certas concepções mais propriamente filosófica, como a concepção do “eterno retorno” de Nietzsche, em uma palavra a tudo o que suponha no Universo uma repetição qualquer.

Não podemos expor aqui, com todos os desenvolvimentos que ela comporta, a teoria metafísica dos estados múltiplos do ser; temos a intenção de consagrar a esta teoria, assim que possível, um ou mais estudos. Mas podemos ao menos indicar o fundamento desta teoria, que é ao mesmo tempo o princípio da demonstração de que tratamos aqui, e que é o seguinte: a Possibilidade universal é total e necessariamente infinita e não pode ser concebida de outra forma, pois, ao abarcar tudo e não deixar nada fora de si, ela não pode ser limitada por nada absolutamente; uma limitação da Possibilidade universal, por lhe ser exterior, é própria e literalmente uma impossibilidade, ou seja um puro nada. Ora, supor uma repetição no seio da Possibilidade, como se faz quando se admite que possam existir duas possibilidades particulares idênticas, implica supor uma limitação, porque o infinito exclui qualquer repetição; somente no interior de um conjunto finito pode-se voltar duas vezes ao mesmo elemento, e mesmo assim este elemento não será rigorosamente o mesmo a não ser que este conjunto forme um sistema fechado, condição que jamais é realizada efetivamente. A partir do momento que o Universo é um todo, ou antes o Todo absoluto, não pode existir em nenhum ponto um ciclo fechado: duas possibilidades idênticas seriam apenas uma única e mesma possibilidade; para que sejam duas, é preciso que elas difiram em pelo menos uma condição, e neste caso elas não serão idênticas. Nada pode voltar ao mesmo ponto, e isto mesmo dentro de um conjunto que seja simplesmente indefinido (e não mais infinito), como o mundo corporal: enquanto se traça um círculo, um deslocamento também se efetua, e assim o círculo só se fecha de modo ilusório. Esta é uma simples analogia, mas que pode ajudar a entender que, a fortiori, na existência universal, o retorno a um mesmo estado é impossível: dentro da Possibilidade total, estas possibilidades particulares que são os estados de existência condicionados são necessariamente me multiplicidade indefinida; negá-lo, é ainda pretender limitar a Possibilidade; é preciso então admiti-lo, sob pena de contradição, e isto basta para que nenhum ser possa passar duas vezes pelo mesmo estado. Como se vê, esta demonstração é extremamente simples em si mesma, e, se alguns tem dificuldades em compreendê-la, só pode ser por lhes faltar os mais elementares conhecimentos metafísicos; para estes, uma exposição mais completa seria necessária, e rogamos a eles que aguardem que daremos integralmente a teoria dos estados múltiplos; eles podem estar certos, em todo caso, que esta demonstração, tal como a formulamos no que ela tem de essencial, nada deixa a desejar quanto ao rigor. Quanto àqueles que imaginam que, por rejeitarmos a reencarnação, arriscamos a limitar de outro modo a Possibilidade universal, responderemos simplesmente que o que rejeitamos não passa de uma impossibilidade, o que não é nada, e que não aumentaria a soma das possibilidades senão de modo ilusório, por ser um puro zero; não se limita a possibilidade negando um absurdo qualquer, por exemplo ao dizermos que não pode existir um quadrado redondo, ou que, dentre os mundos possíveis, não haverá nenhum em que dois mais dois sejam cinco; o caso é exatamente o mesmo. Existem pessoas que manifestam, a esse respeito, estranhos escrúpulos; assim fez Descartes, quando atribuiu a Deus a “liberdade de indiferença”, por receio de limitar a toda-potência divina (expressão teológica da Possibilidade universal), sem dar-se conta de que esta “liberdade de indiferença”, ou a escolha na ausência de qualquer razão, implica condições contraditórias: diremos, para empregar sua linguagem, que um absurdo não é tal porque Deus assim o quis arbitrariamente, mas ao contrário é por ser um absurdo que Deus não pode fazê-lo ser qualquer coisa, sem que isto signifique a menor diminuição de Sua toda-potência, pois absurdo e impossibilidade são sinônimos.

Voltando aos estados múltiplos do ser, lembraremos, pois isto é essencial, que estes estados podem ser concebidos como sendo simultâneos ou sucessivos, e que mesmo, no conjunto, só se pode admitir a sucessão como representação simbólica, pois o tempo não é mais que uma condição própria a um destes estados, e mesmo a duração, sob qualquer modo que seja,  só pode ser atribuída a certos estados dentre eles; se quisermos falar de sucessão, é preciso então precisar que se trata do sentido lógico, e não no sentido cronológico. Por esta sucessão lógica, entendemos que existe um encadeamento causal entre os diversos estados; mas a própria relação de causalidade, se tomada no seu verdadeiro significado (e não na acepção “empirista” de certos lógicos modernos), implica precisamente a simultaneidade e a coexistência dos seus termos. Por outro lado, é bom precisar que mesmo o estado individual humano, que está submetido à condição corporal, pode não obstante apresentar uma multiplicidade simultânea de estados secundários; o ser humano não pode ter muitos corpos, mas, fora da modalidade corporal e ao mesmo tempo que ela, ele pode possuir outras modalidades nas quais se desenvolvem também certas possibilidades que ele comporta. Isto nos conduz a assinalar uma concepção que se liga estreitamente à idéia da reencarnação, e que conta também com inúmeros partidários dentre os “neo-espiritualistas”: segundo esta concepção, cada ser deveria, no curso de sua evolução (pois aqueles que sustentam essas posições são sempre, de um modo ou de outro, evolucionistas), passar sucessivamente por todas as formas de vida, terrestres e outras. Uma tal teoria só exprime uma manifesta impossibilidade, pela simples razão de que existe uma indefinidade de formas vivas pelas quais um ser qualquer jamais poderá passar, que são as formas ocupadas pelos outros seres. De resto, mesmo que um mesmo ser pudesse percorrer sucessivamente uma indefinidade de possibilidades particulares, e num domínio mais extenso do que o das “formas de vida”, ele não estaria por isso mais avançado em relação ao termo final, que não pode ser atingido desta maneira; voltaremos a isso quando falarmos do evolucionismo espírita. No momento, apenas lembraremos o seguinte: o mundo corporal inteiro, no desdobramento integral de todas as possibilidades que contém, não representa mais do que parte do domínio de manifestação de um único estado; este mesmo estado comporta portanto, a fortiori, a potencialidade correspondente a todas as modalidades da vida terrestre, que não passa de uma porção bastante restrita do mundo corporal. Isto torna perfeitamente inútil (mesmo que a sua impossibilidade não fosse provada de outro modo) a suposição de uma multiplicidade de existências através das quais o ser elevar-se-ia progressivamente da modalidade mais inferior, a do mineral, até a modalidade humana, considerada como a mais alta, e passando sucessivamente pelo vegetal e o animal, com toda a multitude de graus que compreende cada um destes reinos; existem alguns que fazem esta hipótese, e que rejeitam apenas a possibilidade de um retorno atrás. Na realidade, o indivíduo, em sua extensão integral, contém simultaneamente as possibilidades que correspondem a todos os graus de que se trata (não dizemos que os contém corporalmente); esta simultaneidade só se traduz em sucessão temporal no desenvolvimento de sua única modalidade corporal, no curso da qual, como o mostra a embriologia, ele passa efetivamente por todos os estados correspondentes, desde as formas unicelulares dos seres organizados mais rudimentares, e mesmo, remontando acima, desde o cristal, até a forma humana terrestre. Digamos de passagem, desde já, que este desenvolvimento embriológico, contrariamente à opinião comum, não é absolutamente uma prova da teoria “transformista”; isto não é menos falso do que todas as outras formas do evolucionismo, e é mesmo a mais grosseira de todas; voltaremos a isso mais adiante. O que é preciso reter sobretudo, é que o ponto de vista da sucessão é essencialmente relativo, e aliás, mesmo na medida restrita em que ele é legitimamente aplicável, ele perde o interesse pela observação de que o germe, antes de qualquer desenvolvimento, contém já em potência o ser completo (logo veremos a importância disto); em todo caso, esse ponto de vista deve sempre permanecer subordinado ao da simultaneidade, como exige o caráter puramente metafísico, portanto extra-temporal (mas também extra-espacial, pois a coexistência não supõe necessariamente o espaço), da teoria dos estados múltiplos do ser (20).

Acrescentaremos ainda que, embora o queiram os espíritas e sobretudo alguns ocultistas, não se encontra na natureza nenhuma analogia em favor da reencarnação, enquanto que encontramos numerosos exemplos no sentido contrário. Este ponto foi muito bem esclarecido nos ensinamentos da H.B.of L., de quem já tratamos, e que era formalmente anti-reencarnacionista; achamos interessante citar aqui algumas passagens desses ensinamentos, que mostram que esta escola possuía ao menos alguns conhecimentos da transmigração verdadeira, assim como de certas leis cíclicas: “É uma verdade absoluta aquilo que exprime o adepto de Ghostland, quando ele diz que, enquanto ser impessoal, o homem vive numa infinidade de mundos até chegar a este aqui (...) Desde que o grande estado de consciência, cume da série das manifestações materiais, é atingido, nunca mais a alma penetrará na matriz da matéria, nem sofrera encarnação material; daqui em diante, seus renascimentos serão no reino do espírito. Aqueles que sustentam a doutrina estranhamente ilógica da multiplicidade de nascimentos humanos jamais desenvolveram em si mesmos o estado lúcido de consciência espiritual; senão, a teoria da reencarnação, afirmada e sustentada hoje em dia por um grande número de homens e mulheres versados no “saber mundano”, não teria o menor crédito. Uma educação exterior é relativamente sem valor como meio de obter o conhecimento verdadeiro (...) A bolota se torna carvalho, a noz do coco se torna palmeira; mas o carvalho pode dar quantas bolotas quiser, ele jamais se tornará bolota novamente, assim como a palmeira não se tornará noz. O mesmo acontece com o homem: desde que a alma se manifesta no plano humano, tendo assim atingido a consciência da vida exterior, ela não retorna jamais por nenhum dos seus estágios rudimentares (...) Todos os pretensos “sonhos de recordações” latentes, através dos quais algumas pessoas afirmam lembrar-se de suas existências passadas, podem explicar-se (e mesmo só podem se explicar assim) pelas simples leis da afinidade e da forma. Cada raça de seres humanos, considerada em si mesma, é imortal; o mesmo acontece com cada ciclo: jamais o primeiro ciclo torna-se o segundo, mas os seres do primeiro ciclo são (espiritualmente) os pais ou os geradores (21) daqueles do segundo ciclo. Assim, cada ciclo compreende uma família constituída pela reunião de diversos agrupamentos de almas humanas, sendo cada condição determinada pelas leis de sua atividade, de sua forma e de sua afinidade: uma trindade de leis (...) É assim que o homem pode ser comparado à bolota e ao carvalho: a alma embrionária, não individualizada, torna-se um homem assim como a bolota se torna um carvalho, e, assim como o carvalho dá nascimento a uma quantidade inumerável de bolotas, também o homem fornece por sua vez a uma infinidade de almas os meios de tomar nascimento no mundo espiritual. Existe correspondência completa entre os dois, e é por esta razão que os antigos Druidas prestavam tão grandes honras a esta árvore, que era honrada além de todas as outras pelos poderosos Hierofantes”. Existe aí uma indicação daquilo que é a “posteridade” entendida no sentido puramente espiritual; não é este o lugar para nos estendermos sobre este ponto, assim como sobre as leis cíclicas a que ele se liga; talvez tratemos destas questões um dia, se encontrarmos meios de fazê-lo de forma inteligível, pois existem dificuldades que são devidas sobretudo à imperfeição das línguas ocidentais.

Infelizmente, a H.B.of L. admitia a possibilidade de reencarnação em certos casos excepcionais, como das crianças natimortas ou mortas em tenra idade, e nos casos dos idiotas de nascença (22); já vimos que Mme. Blavatsky admitia esta maneira de ver no tempo em que escrevia Isis Dévoilée (23). Na realidade, a partir do momento em que se trata de uma impossibilidade metafísica, não pode mais haver nenhuma exceção: basta que um ser tenha passado por um estado, nem que seja em modo embrionário, ou mesmo sob a forma de simples germe, para que ele não possa de modo algum voltar a este estado, cujas possibilidades ele efetuou segundo comportava sua própria natureza; se o desenvolvimento destas possibilidades parece ter sido detido em um certo ponto, é porque ele não poderia ter ido mais longe em sua modalidade corporal, e é o fato de só enxergar a esta que é aqui a causa do erro, pois não se leva em conta todas as possibilidades que, para este mesmo ser, podem se desenvolver em outras modalidades do mesmo estado; se estas fossem consideradas, ver-se-ia que a reencarnação, mesmo em casos como aqueles, é absolutamente inútil, o que se deve admitir desde que se saiba que ela é impossível, e que tudo o que existe concorre, quaisquer que sejam as aparências, para a harmonia total do Universo. Esta questão é bem análoga  à das comunicações espíritas: num e noutro caso, trata-se de impossibilidades; dizer que podem haver exceções é tão ilógico quanto, por exemplo, afirmar que pode haver um pequeno número de casos em que, no espaço euclidiano, a soma de dois ângulos de um triângulo não seja igual a dois ângulos retos; o que é absurdo, e absolutamente absurdo, e não apenas “em geral”. De resto, se começamos a admitir exceções, nunca sabemos com fazer para assinalar a elas um limite preciso: como determinar a idade a partir da qual uma criança, vindo a morrer, não terá mais necessidade de reencarnar, ou o grau que deve atingir a debilidade mental para exigir uma reencarnação? Evidentemente, nada poderia ser mais arbitrário, e podemos dar razão a Papus quando ele diz que “se rejeitamos esta teoria, não se pode admitir exceção, pois caso contrário abre-se uma brecha pela qual tudo pode passar” (24).

Esta observação, no pensamento de seu autor, endereçava-se sobretudo a alguns escritores que acreditaram que a reencarnação, em certos casos particulares, podia conciliar-se com a doutrina católica: o conde de Larmandie, notadamente, pretendeu que ela poderia ser admitida no caso das crianças mortas sem batismo (25). É bem verdade que alguns textos, como os do quarto concílio de Constantinopla, que se pensou poder invocar contra a reencarnação, não se aplicam a ela na realidade; mas isto não é um triunfo para os ocultistas, porque, se isto é assim, é apenas porque, nesta época, a reencarnação não havia sido imaginada. Tratava-se de uma opinião de Orígenes, segundo a qual a vida corporal seria um castigo para almas que, “pré-existindo enquanto potências celestes, estariam saciadas da contemplação divina”; como se vê, não se trata aí de uma outra vida corporal anterior, mas de uma existência no mundo inteligível no sentido platônico, que não tem nenhuma relação com a reencarnação. É difícil imaginar como Papus pode escrever que “a reprimenda do concílio indica que a reencarnação fazia parte do ensinamento, e que se houvesse quem voltasse voluntariamente a se reencarnar, não por desgosto do Céu, mas por amor ao próximo, o anátema não poderia aplicar-se” (ele imaginou que este anátema era levantado contra “aqueles que proclamavam haver voltado à terra por desgosto do Céu”); e ele se apóia nisto para afirmar que “a idéia de reencarnação faz parte dos ensinamentos secretos da Igreja” (26). A propósito da doutrina católica, devemos mencionar também uma asserção dos espíritas que é verdadeiramente extraordinária: Allan Kardec afirma que “o dogma da ressurreição da carne é a consagração do dogma da reencarnação ensinado pelos espíritos”, e que “assim a Igreja, pelo dogma da ressurreição da carne, ensina a doutrina da reencarnação”; na verdade, ele apresenta suas proposições sob forma interrogativa, e é o “espírito” de São Luís que lhe responde que “isto é evidente”, acrescentando que “em breve se reconhecerá que o espiritismo segue passo a passo o próprio texto das Escrituras sagradas” (27)! O que é mais assombroso ainda, é que se tenha encontrado um padre católico, de resto mais ou menos suspeito de heterodoxia, para aceitar e sustentar tal opinião: trata-se do abade J.A. Petit, da diocese de Beauvais, antigo confessor da duquesa de Pomar, que escreveu estas linhas: “A reencarnação foi admitida entre a maior parte dos povos antigos (..) O Cristo também a admitia. Se não a encontramos expressamente ensinada pelos apóstolos, é porque os fiéis deveriam reunir em si qualidades morais que os libertassem (...) Mais tarde, quando os grandes chefes e seus discípulos desapareceram, e que o ensinamento cristão, sob pressão dos interesses humanos, tornou-se um símbolo árido, só restou, como vestígio do passado, a ressurreição da carne, ou na carne, que, tomada no senso estrito da palavra, fez nascer o erro gigantesco da ressurreição de corpos mortos” (28). Não faremos a respeito nenhum comentário, pois tais interpretações são daquelas que nenhum ninguém que não tenha preconceitos pode levar a sério; mas a transformação da “ressurreição da carne” em “ressurreição na carne” é desses pequenos subterfúgios que fazem duvidar da boa fé do seu autor.

Antes de deixarmos o assunto, diremos ainda algumas palavras a respeito dos textos evangélicos que os espíritas e os ocultistas invocam em favor da reencarnação; Allan Kardec indica dois deles (29), dos quais o primeiro segue-se ao relato da transfiguração: “Quando eles desciam da montanha, Jesus ordenou-os, dizendo: Não digam a ninguém o que vocês viram hoje, até que o Filho do homem ressuscite de entre os mortos. Seus discípulos interrogaram-no, dizendo: Porque então os escribas dizem que Elias virá brevemente? Mas Jesus lhes respondeu: É verdade que Elias deverá vir e que restabelecerá todas as coisas. Mas eu vos declaro que Elias já veio, e eles não o conheceram, mas o fizeram sofrer como quiseram. É assim que eles farão morrer o Filho do homem. Então seus discípulos compreenderam que era de João Batista que ele lhes havia falado” (30). E Allan Kardec acrescenta: “Uma vez que João Batista era Elias, houve portanto reencarnação do espírito ou da alma de Elias no corpo de João Batista”. Papus, por sua vez, diz igualmente: “Para começar, os Evangelhos afirmam sem rodeios que João Batista é Elias encarnado. Este era um mistério. Interrogado, João Batista se esquiva, mas os outros sabem. Existe ainda a parábola do cego de nascença punido por seus anteriores pecados, que dá muito o que refletir” (31). Em primeiro lugar, não é dito no texto de que maneira “Elias já veio”; e, se lembrarmos que Elias não morreu no sentido normal da palavra, fica difícil afirmar que se tratou de uma reencarnação; além do que, porque Elias, na transfiguração, não se manifestou com os traços de João Batista (32)? Depois, João Batista interrogado não se esquiva, como quer Papus, mas ao contrário nega formalmente: “Eles lhe perguntaram: Então? Você é Elias? E ele lhes disse: Não o sou” (33). Se se disser que isto apenas mostra que ele não tinha a recordação de sua existência precedente, responderemos que existe um texto mais explícito ainda: é quando o anjo Gabriel, anunciando a Zacarias o nascimento de seu filho, declara: “Ele marchará diante do Senhor no espírito e na virtude de Elias, para reunir o coração dos pais com os dos filhos e chamar os desobedientes à prudência dos justos, para preparar para o Senhor um povo perfeito” (34). Não se poderia indicar com mais clareza que João Batista não era Elias em pessoa, mas apenas que ele pertencia, se podemos nos exprimir assim, à sua “família espiritual”; é portanto deste modo, e não literalmente, que se deve entender a “vinda de Elias”. Quanto à história do cego de nascença, da qual Allan Kardec não fala, Papus parece não conhecê-la, porque ele toma por uma parábola o relato de uma cura milagrosa; eis o texto exato: “Quando Jesus passava, ele viu um homem que era cego de nascença; e seus discípulos lhe fizeram esta pergunta: Mestre, foram os pecados deste homem, ou os pecados daqueles que o trouxeram ao mundo, a causa de ter nascido cego? Jesus lhes respondeu: Não é por causa de seus pecados, nem dos que cometeram aqueles que o trouxeram ao mundo; mas é para que as obras do poder de Deus manifestem-se nele” (35). Este homem não havia sido “punido por seus pecados”, mas isto poderia acontecer, com a condição de não se forçar o texto, adicionando uma palavra que não existia: “por seus pecados anteriores”; sem a ignorância que Papus demonstra, poderíamos acusá-lo de má-fé. O que é possível, é que a enfermidade deste homem lhe tenha sido imposta como sanção antecipada em vista dos pecados que ele cometeria ulteriormente; esta interpretação só pode ser descartada por aqueles que levam o antropomorfismo a ponto de submeter Deus ao tempo. Enfim, o segundo texto citado por Allan Kardec é o encontro de Jesus com Nicodemus; para refutarmos as pretensões reencarnacionistas a respeito, basta reproduzir a passagem essencial: “Se um homem não nasce de novo, ele não poderá ver o reino de Deus... Em verdade eu vos digo, se um homem não renasce da água e do espírito, ele não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne, o que nasce do espírito é espírito. Não vos espanteis do que vos digo, que é preciso que nasceis de novo” (36). É preciso uma ignorância tão prodigiosa como a dos espíritas para crer que pode se tratar da reencarnação, enquanto se trata do “segundo nascimento”, entendido num sentido puramente espiritual, e que é mesmo claramente oposto aqui ao nascimento corporal; esta concepção do “segundo nascimento”, sobre a qual não insistiremos presentemente, é aliás daquelas que são comuns a todas as doutrinas tradicionais, dentre as quais nenhuma, fora as divagações dos “neo-espiritualistas”, jamais ensinou seja lá o que for que lembre de perto ou de longe a reencarnação.


NOTAS


1.      Les Lumières et les Ombres du Spiritualisme, pgs. 118-141.
2.      Le Livre des Esprits, pgs. 75 e 96.
3.      Le Théosophisme, pgs. 88-90.
4.      Traité méthodique de Science occulte, pgs. 296-297.
5.      Ibid., pg. 341.
6.      La Réincarnation, pgs. 42-43.
7.      Le Livre des Esprits, pgs. 102-103
8.      Après la mort, pgs. 164-166.
9.      Traité méthodique de Science occulte, pg. 167.
10.  La Réincarnation, pgs. 113 e 118..
11.  Le Livre des Esprits, pg. 75.
12.  Caberia aqui mencionar também as concepções de certos cabalistas, que denominam-se “revolução das almas” e “embrionato”; mas não falaremos disto aqui, porque nos levaria muito longe; de resto, estas concepções só tem um alcance muito restrito, pois elas fazem intervir condições que, por estranho que pareça, são totalmente próprias ao povo de Israel.
13.   Le Livre des Esprits, pg. 96; cf. ibid., pgs. 262-264.
14.  La Réincarnation, pg. 9. – Papus acrescenta: “Não se deve nunca confundir a reencarnação e a metempsicose, pois o homem nunca volta atrás e jamais se torna um espírito animal, salvo no plano astral, em estado genial, mas isto é ainda um mistério”. Para nós, este pretenso mistério não existe: podemos dizer que se trata do “gênio da espécie”, ou seja da entidade que representa o espírito, não de uma individualidade, mas de uma espécie animal inteira; os ocultistas pensam, de fato, que o animal não é como o homem um indivíduo autônomo, e que, após a morte, sua alma retorna à “essência elemental” propriedade indivisível da espécie. Segundo a teoria a que Papus se refere em termos enigmáticos, os gênios das espécies seriam espíritos humanos chegados a um certo grau de evolução e a quem esta função estava especialmente destinada; de resto, existem “clarividentes” que pretendem haver visto gênios com a forma de homens com cabeças de animais, como as figuras simbólicas dos antigos Egípcios. A teoria em questão é inteiramente errada: embora o gênio da espécie seja uma realidade, mesmo para a espécie humana, ele não é o que crêem os ocultistas, e não  tem nada em comum com os espíritos dos homens individuais; quanto ao “plano” em que ele se situa, ele não cabe nos quadros convencionais do ocultismo.
15.  La Réincarnation, pg. 6.
16.  Alguns pensam que uma transferência análoga pode operar-se para os elementos corporais mais ou menos sutilizados, e assim consideram uma “metensomatose” ao lado da “metempsicose”; seríamos tentados a supor, à primeira vista, que existe aí uma confusão em atribuir erroneamente corporeidade ao elementos psíquicos inferiores; entretanto, pode tratar-se realmente de elementos de origem corpórea, mas “psiquizados” de certa forma, por esta transposição para o “estado sutil” cuja possibilidade já assinalamos; o estado corporal e o estado psíquico, simples modalidades diferentes de um mesmo estado de existência que é o da individualidade humana, não podiam ser totalmente separados. Assinalaremos à atenção dos ocultistas o que disse a respeito um autor que eles costumam citar sem conhecer, Keleph bem Nathan (Dutoit-Membrini), em La Philosophie Divine, tomo I, pgs. 62 e 191-193: entre declamações místicas vazias, este autor mistura considerações muito interessantes. Aproveitaremos a ocasião para corrigir um erro dos ocultistas, que apresentam Dutoit-Membrini como um discípulo de Louis-Claude de Saint-Martin (foi Joanny Bricaud que fez esta descoberta), enquanto que ao contrário ele expressou-se a respeito deste em  termos bastante desfavoráveis (ibid., tomo I, pgs, 245 e 345); haveria um livro a escrever, e bem divertido, sobre a erudição dos ocultistas e sua maneira de contar a história.
17.  Guénon refere-se aqui às formas do Budismo Hinayana (“pequeno veículo”) praticado sobretudo na península da Indochina, realmente um pouco heterodoxo, e o único que então era conhecido na Europa (nota do tradutor).
18.  A idéia da reencarnação em diversos planetas não é particular aos “neo-espiritualistas”; esta concepção, cara a Camille Flammarion, é também a de Louis Figuier (Le Lendemain de la Mort ou la Vie future selon la Science); é curioso ver a que delírios extravagantes pode chegar uma ciência tão “positiva” quanto se quer a astronomia moderna.
19.  L’Eternité par les Astres.
20.  Seria preciso criticar aqui as definições que Leibnitz dá do espaço (ordem de coexistências) e do tempo (ordem de sucessões); diremos apenas que ele estende dessa maneira estas noções de modo abusivo, como aliás ele também faz com a noção de corpo.
21.  São os pitris da tradição hindu.
22.  Haveria ainda um terceiro caso de exceção, mas de outra ordem: é o das “encarnações místicas voluntárias” que se produziriam a cada seiscentos anos mais ou menos, ou seja ao fim de cada um dos ciclos a que os Caldeus chamavam Naros, mas sem que o mesmo espírito jamais se encarne assim mais do que uma vez, e sem que haja sucessivamente duas encarnações na mesma raça;  a discussão e a interpretação desta teoria sairia completamente do nosso objeto.
23.  Le Théosophisme, pgs. 97-99.
24.  La Réincarnation, pg. 179; segundo o Dr. Rozier: Initiation, abril de 1898.
25.  Magie et Religion.
26.  La Réincarnation, pg. 171.
27.  Le Livre des Esprits, pgs. 440-442.
28.  L’Alliance Spiritualiste, julho de 1911.
29.  Le Livre des Esprits, pgs. 105-107. – Cf. Léon Denis, Christianisme et Spiritisme ,pgs. 376-378. Ver também Les Messies esseniens et l’Eglise orthodoxe, pgs. 33-35; esta obra é uma publicação da seita auto-denominada “essênia” à que já fizemos alusão.
30.  São Mateus, XVII, 9-15.- Cf. São Marcos, IX, 8-12; este texto só difere do outro por não mencionar o nome de São João Batista.
31.  La Réincarnation, pg. 170.
32.  O outro personagem do Antigo Testamento que se manifestou na transfiguração é Moisés, de quem “ninguém conhece o sepulcro”; Enoch e Elias, que devem retornar “no final dos tempos”, foram ambos “levados aos céus”; tudo isto não pode ser invocado como exemplos de manifestação dos mortos.
33.  São João, I, 21.
34.  São Lucas, I, 17.
35.  São João, IX, 1-3.
36.  Ibid., III, 3-7.



VII
EXTRAVAGÂNCIAS REENCARNACIONISTAS


Dissemos que a idéia de reencarnação contribui grandemente para enlouquecer muita gente em nossa época; vamos mostrá-lo agora citando exemplos das extravagâncias a que ela dá lugar, e isto será, após todas as considerações metafísicas que tivemos que expor, uma diversão mais agradável; a bem dizer, existe algo de triste no fundo no espetáculo de todas estas bobagens, mas é bem difícil nos impedirmos de rir delas algumas vezes. A esse respeito, o que mais se constata nos meios espíritas é uma megalomania de tipo especial: estas pessoas se imaginam quase todas como a reencarnação de personagens ilustres; já observamos que, a julgar pelas assinaturas das “comunicações”, os grandes homens se manifestam muito mais do que os outros; é preciso acreditar que eles se reencarnam também muito mais vezes, e mesmo simultaneamente em múltiplos exemplares. Em suma, esse caso não difere muito da megalomania vulgar senão sobre um ponto: em lugar de se crer grandes personagens no presente, os espíritas reportam seu sonho doentio ao passado; falamos dos espíritas porque eles são em maior número, mas existem também teosofistas que não são menos imputáveis (já lemos que Leadbeater assegurava gravemente que o coronel Olcott era a reencarnação dos reis Gushtasp e Ashoka) (1). Existem também aqueles para quem o mesmo sonho se torna a esperança no porvir, e é talvez essa uma das razões para que eles achem a reencarnação tão “consoladora”; na seção dos ensinamentos da H.B.of L., da qual reproduzimos alguns ensinamentos no capítulo precedente, é feita alusão a pessoas que afirmam que “aqueles que viverem uma vida nobre e digna de um rei (mesmo que seja no corpo de um mendigo), na sua última existência terrestre, reviverão como nobres, reis e outros personagens de alta categoria”, e acrescenta-se com muita justeza que “tais asserções são boas para provar que seus autores só falam sob a inspiração do sentimentalismo, e que lhes falta o conhecimento”.

Os espíritas anti-reencarnacionistas dos países anglo-saxões não deixaram de ironizar essas tolas imaginações: “Os partidários dos devaneios de Allan Kardec, diz Dunglas Home, são recrutados sobretudo nas classes burguesas da sociedade. É o consolo, desta brava gente que não é ninguém, acreditar que tenham sido algum grande personagem antes de seu nascimento e que serão ainda alguma coisa importante após a morte” (2). E em outra parte: “Além da confusão revoltante a que esta doutrina conduz logicamente (no concerne às relações familiares e sociais), existem impossibilidades materiais que é preciso ter em conta, por mais entusiasta que se queira ser. Uma senhora pode pretender o quanto quiser ter sido a companheira de um rei ou de um imperador numa existência anterior. Mas como conciliar as coisas se encontramos, como costuma acontecer, uma boa meia-dúzia de senhoras, igualmente convencidas, que sustentam cada uma ter sido a bem-amada esposa do mesmo augusto personagem? De minha parte, eu tive a honra de encontrar ao menos doze Marias Antonietas, seis ou sete Marias Stuart, uma quantidade de São Luís e outros reis, uma vintena de Alexandres e Césares, mas nunca um simples João-Ninguém” (3). Por outro lado, existe também, sobretudo entre os ocultistas, partidários da reencarnação que acreditaram dever protestar contra o que eles vêem como “exageros” susceptíveis de comprometer sua causa; assim, Papus escreve o seguinte: “Encontramos em certos meios espíritas pobres diabos que pretendem friamente ser uma reencarnação de Molière, de Racine ou de Richelieu, sem contar os poetas antigos, Orfeu ou Homero. Não vamos discutir agora se estas afirmações tem uma base sólida ou se são do domínio da alienação mental; mas lembremo-nos que Pitágoras, fazendo o relato de suas encarnações anteriores, não se vangloriou de ter sido um grande homem (4), e constatamos que é um modo singular de defender o progresso incessante das almas ao infinito (teoria do espiritismo), este que consiste em mostrar Richelieu tendo perdido todo traço de genialidade e Victor Hugo componde versos de pé quebrado após sua morte. Os espíritas sérios e instruídos, em número maior do que se pensa, deveriam vigiar para que tais fatos não aconteçam mais” (5). Mais adiante, ele afirma: “Certos espíritas, exagerando essa doutrina, consideram-se como a reencarnação de todos os grandes homens um pouco conhecidos. Um bravo trabalhador é Voltaire reencarnado... menos o espírito. Um capitão reformado, é Napoleão retornado de Santa Helena, embora tenha perdido a arte de reerguer-se depois disto. Enfim, não há grupo onde Maria de Medicis, Mme. de Maintenon, Maria Stuart, não tenham voltado nos corpos de boas burguesas enriquecidas, e onde Turenne, Condé, Richelieu, Mazarin, Molière, Rousseau, não dirijam alguma pequena sessão. Aí está o perigo, a causa real do estágio estacionário do espiritismo após cinqüenta anos; não é preciso buscar outra razão, além da ignorância e do sectarismo dos chefes de grupo” (6). Em outra obra, mais recente, ele volta ao assunto: “O ser humano que tem consciência deste mistério da reencarnação imagina logo o personagem que ele deve ter sido, e, como por acaso, ele descobre sempre que este personagem foi um homem considerável sobre a terra, e de uma alta posição. Nas reuniões espíritas ou teosóficas, vemos muito poucos assassinos, bêbados, antigos verdureiros ou criados de quarto (profissões honradas) reencarnados; é sempre Napoleão, uma grande princesa, Luís XIV, Frederico o Grande, alguns Faraós célebres, que se reencarnam na pele de pessoas que chegam a representar terem sido os grandes personagens que elas imaginam. Isto seria uma punição muito forte para os ditos personagens, voltar à terra em tais condições... O orgulho é a grande pedra aonde tropeçam os partidários da doutrina da reencarnação, tão nefasto como considerável. Se os grandes personagens da história são reservados para reencarnar assim, é preciso reconhecer que os adeptos desta doutrina conservam os assassinos, os grandes criminosos e os grandes caluniadores para se reencarnar nos seus inimigos” (7). Para remediar o mal que ele denuncia, eis o que Papus propõe: “Podemos ter a intuição de ter vivido em tal época, d ter estado em tal meio, podemos ter a revelação, pelo mundo dos espíritos, de ter sido uma grande dama contemporânea do grande filosofo Abelardo, tão incompreendido de seus contemporâneos,  mas não se pode ter a certeza do ser exato que fomos sobre a terra” (8). Portanto, a grande dama em questão não será Heloísa, e, se acreditamos termos sido tal pessoa célebre, é simplesmente porque vivemos em seu círculo, talvez na qualidade de doméstica; existe aí, pensa evidentemente Papus, como colocar um freio nas divagações causadas pelo orgulho; mas não duvidamos que os espíritas se deixem persuadir tão facilmente de que eles devem deixar as suas ilusões. Infelizmente também, existem outros gêneros de divagações que não são menos dignas de piedade: esta prudência e esta sabedoria, por sinal relativas, que Papus demonstra, não o impediram de escrever, e ao mesmo tempo, coisas do tipo: “O Cristo possui um aposento (sic) que encerra milhares de espíritos. Cada vez que um espírito do aposento de Cristo se reencarna, ele obedece na Terra a seguinte lei: ele é o mais velho da família; seu pai se chama sempre José; sua mãe se chama sempre Maria, ou o correspondente numérico destes nomes em outras línguas. Enfim existe, no nascimento dos espíritos que vêm do aposento do Cristo (não dizemos do próprio Cristo) aspectos planetários peculiares que é inútil revelar aqui” (9). Sabemos perfeitamente a que tudo isto pretende aludir; poderíamos contar toda a história destes “Mestre”, pretensamente tal, que se diz ser “o mais velho espírito do planeta”, e o “Chefe dos doze que passarão pela Porta do Sol, dois anos após a metade do século”. Aqueles que se recusarem a reconhecer este “Mestre” se vêem ameaçados de um “retardo de evolução”, que deve traduzir-se numa penalidade de trinta e três reencarnações suplementares, nem uma a mais, nem a menos!

Entretanto, ao escrever as linhas que reproduzimos por último, Papus já tinha a convicção de que ele não poderia contribuir para moderar certas pretensões excessivas, pois ele acrescentava: “Por ignorar tudo isto, uma multidão de visionários se querem a reencarnação do Cristo sobre a terra... e a lista não está fechada”. Esta previsão era bem justificada: já contamos a história dos Messias teosofistas, e existem muitos outros em meios parecidos; mas o messianismo dos “neo-espiritualistas” é capaz de se revestir das formas mais bizarras e mais diversas, fora destas “reencarnações do Cristo” de que um dos protótipos foi o pastor Guillaume Monod. Não vemos como, a este respeito, a teoria dos “espíritos do aposento de Cristo” seja menos extravagante do que as outras; sabemos bem que papel deplorável ela desempenha na escola ocultista francesa, e isto continua atualmente nos diversos agrupamentos que representam hoje em dia os restos daquela escola. De outro lado, existe uma “vidente” espírita, Mlle. Marquerite Wolff (podemos nomeá-la, pois a coisa tornou-se pública), que recebeu de seu “guia”, nos últimos tempos, a missão de anunciar a “próxima reencarnação de Cristo na França”; ela mesma se acreditava a reencarnação de Catarina de Médicis reencarnada (sem falar de algumas centenas de outras existências anteriores sobre a terra e alhures, e das quais ela tinha a lembrança mais ou menos precisa), e publicou uma lista de mais de duzentas “reencarnações célebres”, na qual ela mostrava “o que os grandes homens de hoje foram no passado”; eis aí um caso de patologia bastante espetacular (10). Existem também espíritas que tem concepções messiânicas de um tipo totalmente diferente: já lemos outrora, numa revista espírita estrangeira (não pudemos encontrar a referência exata) um artigo cujo autor criticava com justiça aqueles que, ao anunciarem para um tempo próximo a “segunda vinda” do Cristo, a apresentavam como devendo ser uma reencarnação; mas era para declarar na seqüência que, se ele não admitia esta tese, é porque o retorno do Cristo já havia se cumprido... pelo espiritismo: “Ele já veio, pois, em alguns centros, registramos suas comunicações”. Verdadeiramente, é preciso ter uma fé bem robusta para crer assim que o Cristo e seus Apóstolos manifestam-se nas sessões espíritas e falam pelos órgãos dos médiuns, sobretudo quando  vemos a qualidade das inumeráveis “comunicações” que lhes são atribuídas (11). Existem por outro lado, em alguns círculos norte-americanos, “mensagens” onde Apolônio de Tiana declara, apoiando-se sobre diversos “testemunhos”, que ele próprio foi “o Jesus e o São Paulo das Escrituras cristãs”, e talvez também São João, e que ele pregou os Evangelhos, cujos originais lhe foram entregues por Budistas; podemos encontrar a algumas destas “mensagens” no fim do livro de Henry Lacroix (12). Fora do espiritismo, existe também uma sociedade secreta anglo-americana que ensina a identidade de São Paulo e Apolônio, pretendendo que a prova encontra-se “num pequeno manuscrito conservado num mosteiro na região central da França”; existem muitas razões para pensar que esta fonte é puramente imaginária, mas a concordância desta história com as “comunicações” espíritas de que falamos torna a origem destas extremamente suspeita, pois ela permite pensar que existe mais coisa aí do que um produto do “subconsciente” de dois ou três desequilibrados (13).

Existe ainda, em Papus, outras histórias que valem quase tanto quanto a dos “espíritos do aposento do Cristo”; citemos um exemplo: “Assim como existem cometas que vêm trazer força ao sol fatigado e que circulam entre os diversos sistemas solares, existem também enviados cíclicos que vêm em certos períodos sacudir a humanidade mergulhada nos prazeres ou apática por uma quietude muito prolongada (...) Dentre estas reencarnações cíclicas, que vêm sempre do mesmo lugar do invisível, senão do mesmo espírito, citaremos a reencarnação que tanto espanta os historiadores: Alexandre, César, Napoleão. Cada vez que um espírito deste plano chega, ele transforma bruscamente todas as leis da guerra; qualquer que seja o povo colocado à sua disposição, ele o dinamiza e faz dele um instrumento de conquista contra o qual ninguém pode lutar (...) Em sua próxima vinda, este espírito encontrará meios de evitar a morte de dois terços de seus efetivos nos combates, pela criação de um sistema defensivo que revolucionará as leis da guerra” (14). A data desta próxima vinda não é indicada, mesmo aproximadamente, o que é uma pena; mas talvez devamos louvar Papus por ser tão prudente nas circunstâncias, pois, cada vez que ele se meteu a fazer profecias um pouco mais precisas, os acontecimentos, por uma inacreditável maldade, jamais deixaram de lhe dar um desmentido categórico. Mas eis aqui um outro “aposento” que ele traz ao nosso conhecimento: “É ainda a França (ele acabava de falar de Napoleão)  que teve a honra de encarnar muitas vezes uma enviada celeste dos aposentos da Virgem de Luz, unindo à fraqueza da mulher a força do anjo encarnado. Santa Genoveva forma o núcleo da nação francesa. Joana d’Arc salva esta nação no momento em que, logicamente, nada mais há a fazer” (14). E, a propósito de Joana d’Arc, ele não pode deixar escapar a ocasião para uma pequena declaração anti-clerical e democrática: “A Igreja Romana é hostil a todos os enviados celestes, e foi preciso a formidável voz do povo para reformar a sentença dos juízes eclesiásticos que, cegados pela política, martirizaram a enviada do Céu” (15). Se Papus faz Joana d’Arc vir do “aposento da Virgem de Luz”, houve outrora na França uma seita, principalmente espírita no fundo, que se intitulava “essênia” (esta denominação faz muito sucesso em todos os meios do gênero), que a via como “Messias feminino”, igual ao próprio Cristo, enfim como o “Consolador celeste” e o “Espírito da Verdade anunciado por Jesus” (16); e parece que certos espíritas chegaram a considerá-la como uma reencarnação do Cristo em pessoa (17).

Mas passemos a outro tipo de extravagâncias a que a idéia de reencarnação dá igualmente lugar: trata-se das relações que espíritas e ocultistas supõem entre as existências sucessivas; para eles, de fato, as ações cumpridas no decurso de uma vida devem ter conseqüências nas vidas seguintes. Está aí uma causalidade de uma espécie bastante particular: mais exatamente, trata-se da idéia de sanção moral, mas que, ao invés de ser aplicada a uma “vida futura” extra-terrestre como acontece com as concepções religiosas, acha-se ligada às vidas terrestres devido à asserção, no mínimo contestável, de que as ações cumpridas sobre a terra devem ter seus efeitos exclusivamente sobre a terra; o “Mestre” a que aludimos ensinava expressamente que “no mundo em que contraímos dívidas, nele teremos de pagá-las”. É a esta “causalidade ética” que os teosofistas deram o nome de karma (completamente fora de propósito, pois esta palavra, em sânscrito, não significa outra coisa do que “ação”); em outras escolas, se a palavra não se encontra (embora os ocultistas franceses, malgrado sua hostilidade para com os teosofistas, a empreguem bastante), a concepção permanece no fundo a mesma, e as variações só atingem pontos secundários. Quando se trata de indicar com precisão as conseqüências futuras de uma determinada ação, os teosofistas se mostram bastante reservados; mas espíritas e ocultistas rivalizam para ver quem dá a respeito os detalhes mais minuciosos e mais ridículos; por exemplo, a acreditar em alguns, se alguém trata mal seu pai, renascerá com um defeito na perna direita; se tratar mal sua mãe, será da perna esquerda, e assim por diante. Existem outros que colocam, em certos casos, as enfermidades desse tipo na conta de acidentes ocorridos nas existências anteriores; conhecemos um ocultista que, sendo manco, acreditava firmemente que era devido ao fato de, em sua vida precedente, ter quebrado a perna ao saltar de uma janela quando tentava fugir das prisões da Inquisição. É inacreditável até onde pode chegar o perigo desta sorte de coisas: é cotidiano, sobretudo nos meios ocultistas, ensinar a alguém ter ele cometido outrora tal ou tal crime, devendo portanto apressar-se em “pagá-lo” na sua vida atual; acrescenta-se ainda que a pessoa não deve fazer nada para escapar ao castigo que o atingirá cedo ou tarde, e que este será cada vez maior, quanto mais for postergado. Debaixo de tal sugestão, o infeliz correrá em busca do suposto castigo, e mesmo irá se esforçar para provocá-lo; se se tratar de um fato cujo cumprimento dependa da sua vontade, as coisas mais absurdas não farão recuar quem chegou a um tal ponto de credulidade e fanatismo. O “Mestre” (sempre o mesmo) havia persuadido um dos seus discípulos que, em razão de alguma obscura ação cometida numa outra encarnação, ele deveria esposar uma mulher cuja perna esquerda houvesse sido amputada; o discípulo (que aliás era um engenheiro, portanto uma pessoa que deveria ter um certo grau de inteligência e instrução) fez anunciar em diversos jornais procurando uma pessoa que preenchesse a condição requerida, e acabou encontrando-a de fato. É apenas um caso em meio a tantos, e só o mencionamos porque ele é característico da mentalidade dessas pessoas; mas existem os que podem ter resultados mais trágicos, e soubemos de um outro ocultista que, desejando uma morte acidental que o libertaria de uma karma pesado, adotou simplesmente o hábito de não fazer nada para evitar os automóveis que encontrava em seu caminho; se ele não chegou a se atirar sob as rodas de um, é porque ele deveria morrer por acidente e não por suicídio que, em lugar de aliviar-lhe o karma, iria ao contrário agravá-lo. Não se imagine que estamos exagerando; essas coisas não se inventam, e a puerilidade de certos detalhes é, para quem conhece esses meios, uma garantia de autenticidade; de resto, caso houvesse necessidade, poderíamos dar os nomes das pessoas a quem aconteceram tais aventuras. Só podemos lamentar as pessoas que são vítimas de semelhantes sugestões; mas que pensar dos responsáveis pela sua autoria? Se eles estão de má-fé, merecem ser denunciados como verdadeiros malfeitores; se são sinceros, o que é possível em muitos casos, devem ser tratados como loucos perigosos.

Quando essas coisas permanecem no domínio da simples teoria, elas não passam de serem grotescas: como exemplo, bem conhecido entre os espíritas, temos o caso da vítima que persegue até outra vida a vingança sobre seu matador; o assassinado de outrora torna-se agora o assassino, e o matador, tornado vítima, deverá vingar-se por sua vez em uma outra existência... e assim indefinidamente. Um outro exemplo do mesmo gênero é o do cocheiro que atropela um transeunte; como punição, pois a “justiça” póstuma dos espíritas estende-se mesmo ao homicídio por imprudência, este cocheiro, tornado pedestre na vida seguinte, será atropelado pelo transeunte que terá se tornado cocheiro; mas logicamente, este, cujo ato não difere do primeiro, deverá em seguida sofrer a mesma punição, sempre em função da vítima, de sorte que estes dois infelizes indivíduos serão obrigados a atropelar-se alternativamente um ao outro até o fim dos séculos, porque não há evidentemente nenhuma razão para que isto pare em algum ponto; pergunte-se a Gabriel Dellane o que ele acha deste raciocínio. Ainda sobre este ponto, existem outros “neo-espiritualistas” que não ficam nada a dever aos espíritas, e chegamos a ouvir de um ocultista com tendências místicas a seguinte história, como exemplo das conseqüências temíveis que podem trazer alguns atos geralmente considerados como indiferentes: um escolar diverte-se quebrando uma pena de escrever, depois a joga fora; as moléculas do metal guardarão, através de todas as transformações que irá sofrer, a lembrança da maldade com que foi tratada por aquela criança; finalmente, após alguns séculos, estas moléculas passarão para o mecanismo de uma máquina qualquer, e, um dia, um acidente irá se produzir, e um trabalhador irá morrer nesta máquina; ora, encontraremos então que este trabalhador será aquele escolar, que se reencarnou para sofrer o castigo de seu ato anterior. Seria difícil imaginar qualquer coisa de mais extravagante do que tais histórias fantásticas, que bastam para dar uma justa idéia da mentalidade daqueles que as inventam, e sobretudo daqueles que crêem nelas.

Nessas histórias, como se vê, quase sempre se trata de castigos; isto pode parecer surpreendente entre pessoas que se vangloriam de ter uma doutrina “consoladora” acima de tudo, mas é sem dúvida o que há de mais apropriado para chocar as imaginações. No demais, como vimos, deve-se esperar recompensas para o amanhã; mas quanto a saber o que, na vida presente, é a recompensa de tal ou tal boa ação cumprida no passado, parece que isto teria o inconveniente de poder gerar sentimentos de orgulho; seria talvez menos funesto, depois de tudo, do que aterrorizar as pobres pessoas com o “pagamento” de “dívidas’ imaginárias. Acrescentemos que também podemos ver algumas vezes conseqüências mais inofensivas: é assim que Papus assegura que “é raro que um ser espiritual reencarnado sobre a terra não seja levado, por circunstâncias aparentemente fortuitas, a falar, além da sua língua atual, a língua do país em que se deu sua última encarnação” (19); ele acrescenta que “é uma marca interessante a se controlar”, mas, infelizmente, ele não indica por que meios chegar a isto. Mas como citamos outra vez Papus, não esqueçamos, pois é uma curiosidade digna de nota, que ele ensinava (embora acreditamos que ele não tenha ousado escrever isto) que se pode às vezes reencarnar antes de estar morto: ele reconhecia que este era um caso excepcional, mas ele apresentava um quadro de um avô e seu neto que possuíam um só e mesmo espírito, que se encarnaria progressivamente na criança (esta é de fato a teoria dos ocultistas, que precisam que a encarnação só se completa ao final de sete anos) na medida em que o ancião iria se enfraquecendo. De resto, a idéia de que se pode reencarnar em sua própria descendência lhe era particularmente cara, porque ele via nisto um modo de justificar, de seu ponto de vista, as palavras com as quais “o Cristo proclama que o pecado pode ser punido até a sétima geração” (20); a concepção daquilo que poderíamos chamar de uma “responsabilidade hereditária” parece ter-lhe escapado completamente, e no entanto, mesmo fisiologicamente, este é um fato inconteste. A partir do momento em que o indivíduo humano recebe de seus pais certos elementos corporais e psíquicos, ele os prolonga de certo modo parcialmente sob este duplo aspecto, e ele é verdadeiramente alguma coisa deles assim como é ele próprio, e assim as conseqüências das suas ações podem estender-se até ele; é deste modo, ao menos, que podemos exprimir as coisas despojando-as de todo caráter especificamente moral. Inversamente, podemos dizer ainda que a criança, e mesmo todos os descendentes, estão potencialmente incluídos desde a origem na individualidade dos pais, sempre sob o duplo aspecto corporal e psíquico, ou seja, não naquilo que concerne ao ser propriamente espiritual e pessoal, mas no que constitui a individualidade humana enquanto tal; e assim a descendência pode ser vista como tendo participado, de certa maneira, nas ações dos pais, sem entretanto existir ainda em modo atual em estado individualizado. Indicamos dois aspectos complementares da questão; não nos deteremos nisso agora, mas talvez estas indicações bastem para que alguns leitores possam entrever todo o partido que se pode tirar da teoria do “pecado original”.

Os espíritas, precisamente, protestam contra esta idéia do “pecado original”, em primeiro lugar porque ela choca sua concepção particular de justiça, e também porque ela tem conseqüências contrárias à sua teoria “progressista”; Allan Kardec não quer ver nela mais do que uma expressão do  fato de que “o homem veio sobre a terra, portando em si o germe das paixões e os traços de sua inferioridade primitiva”, de modo que, para ele, “o pecado original provém da natureza imperfeita do homem, que assim só é responsável por si mesmo e por suas faltas, e não por aquelas de seus pais”; tal é ao menos, a este respeito, o ensinamento q eu ele atribui ao “espírito” de São Luís (21). Léon Denis exprime-se em termos mais precisos, e também mais violentos: “O pecado original é o dogma fundamental sobre o qual repousa todo o edifício dos dogmas cristãos. Idéia verdadeira no fundo, mas falsa na forma e desnaturada pela Igreja. Verdadeira no sentido que o homem sofre pela intuição que ele conserva das faltas cometidas nas suas vidas anteriores, e pelas conseqüências que elas trazem para ele. Mas este sofrimento é pessoal e merecido. Ninguém é responsável pelas faltas de outrem, se não participar delas. Apresentado sob um aspecto dogmático, o pecado original, que pune toda a posteridade de Adão, vale dizer a humanidade inteira, pela desobediência do primeiro casal, para em seguida salvá-la por meio de uma iniqüidade ainda maior, a imolação de um justo, é um ultraje à razão e à moral, consideradas em seus princípios essenciais: a bondade e a justiça. Ela fez mais para afastar o homem da crença em Deus do que todos os ataques e as críticas da filosofia” (22). Poderíamos perguntar ao autor se a transmissão de uma doença hereditária não é igualmente, segundo seu modo de ver, “um ultraje à razão e à moral”, o que não o impede de ser um fato real e corriqueiro (23); poderíamos perguntar-lhe também se a justiça, entendida no sentido humano (e é bem assim que ele a entende, pois sua concepção de Deus é totalmente antropomórfica e “antropopática”), pode consistir em algo diferente do que “compensar uma injustiça com outra injustiça”, como dizem os Chineses; mas, no fundo, declarações deste gênero não merecem a menor discussão. O que é mais interessante, é notar aqui um procedimento habitual  nos espíritas, e que consiste em pretender que os dogmas da Igreja, e também as diversas doutrinas da antigüidade, são uma deformação de suas próprias teorias; eles esquecem apenas que estas são de invenção totalmente moderna, e isto eles tem em comum com os teosofistas, que apresentam sua doutrina como “a fonte de todas as religiões”; Léon Denis não chegou a declarar formalmente que “todas as religiões, em sua origem, repousam sobre fatos espíritas e não tem outra fonte do que o espiritismo” (24)? No caso atual, a opinião dos espíritas, é que o pecado original é uma representação das faltas cometidas nas vidas anteriores, representação cujo verdadeiro sentido evidentemente só pode ser compreendido por aqueles que, como eles, acreditam na reencarnação; é pena, para a solidez desta tese, que Allan Kardec seja um pouco posterior a Moisés!

Os ocultistas dão interpretações sobre o pecado original e a queda do homem que, se não são melhor fundamentadas, são ao menos mais sutis nem geral: existe uma que não podemos deixar de assinalar aqui, porque ela se liga diretamente à teoria da reencarnação. Esta explicação pertence a um ocultista francês, estranho à escola papusiana, e que reivindica apenas para si a qualificação de “ocultista cristão” (ainda que os outros tenham também a pretensão de ser cristãos, a menos de quando se dizem “crísticos”); uma das suas particularidades é que, rindo-se a propósito dos triplos e sétuplos sentidos dos esoteristas e dos cabalistas, ele pretende se ater à interpretação literal das Escrituras, o que não o impede, como veremos, de acomodar esta interpretação às suas concepções pessoais. É preciso saber, para compreender sua teoria, que este ocultista é partidário do sistema geocêntrico, no sentido em que ele vê a terra como centro do Universo, senão materialmente, ao menos por um certo privilégio no que concerne à natureza dos seus habitantes (25): para ele, a terra é o único mundo aonde existem seres humanos, porque as condições de vida sobre outros planetas ou em outros sistemas são muito diferentes das da terra para que um homem possa adaptar-se a elas, donde resulta manifestamente que, por “homem”, ele entende exclusivamente um indivíduo corporal, dotado dos cinco sentidos que conhecemos das faculdades correspondentes, e de todos os órgãos necessários às diversas funções da vida humana terrestre. Por conseguinte, os homens só podem se reencarnar sobre a terra, pois não há nenhum lugar no Universo onde lhe seja possível viver (não é preciso dizer que nisto tudo não se cogita em sair da condição espacial), e que além disso eles permanecem sempre homens ao se reencarnar; acrescenta-se que mesmo uma mudança de sexo é impossível. Na origem, o homem, “saindo das mãos do Criador” (as expressões mais antropomórficas devem ser tomadas aqui ao pé da letra, e não como os símbolos que elas são na realidade), foi colocado na terra para “cultivar seu jardim”, ou seja, ao que parece, para “evoluir a matéria física”, supostamente mais sutil então do que agora. Por “homem”, é preciso entender a coletividade humana inteira, a totalidade do gênero humano, vista como a soma de todos os indivíduos (observe-se esta confusão da noção de espécie com a de coletividade, que é muito comum também entre os filósofos modernos), de tal sorte que “todos os homens”, sem nenhuma exceção, foram inicialmente encarnados sobre a terra ao mesmo tempo. Não é a opinião das outras escolas, que muitas vezes falam das “diferentes idades dos espíritos humanos” (sobretudo aqueles que tiveram o privilégio de conhecer “o mais velho espírito do planeta”), e mesmo dos meios de as determinar, principalmente pelo exame dos “aspectos planetários” do horóscopo; mas deixemos isto para lá. Nas condições que descrevemos, não poderia evidentemente produzir-se nenhum nascimento, pois não haveria nenhum homem não encarnado, e isto prosseguiu até que o primeiro homem morresse, ou seja até a queda, na qual todos tiveram que participar em pessoa (este é o ponto essencial da teoria), e que é considerada como “podendo representar  toda uma série de acontecimentos que se desenrolaram durante um período de muitos séculos”; mas evita-se prudentemente pronunciar-se sobre a exata natureza destes acontecimentos. A partir da queda, a matéria física tornou-se mais grosseira, suas propriedades foram modificadas, ela foi submetida à corrupção, e os homens, aprisionados nesta matéria, começaram a morrer, a “desencarnar-se”; em seguida, eles começaram igualmente a nascer, pois estes homens “desencarnados”, soltos “no espaço” (vemos como a influência do espiritismo é presente nisto tudo), ou na “atmosfera invisível” da terra, tendiam a se reencarnar, a retomar a vida terrestre em novos corpos humanos, em suma, a regressar à sua condição normal. Assim, segundo esta concepção, são sempre os mesmos seres humanos que devem renascer periodicamente do começo ao fim da humanidade terrestre (admitindo que a humanidade terrestre tenha um fim, pois existem também escolas segundo as quais o fim que ela deve atingir é o de entrar na posse da “imortalidade física” ou corporal, e cada um dos indivíduos que a compõem se reencarnará sobre a terra até chegar finalmente a este resultado. Certamente, todo este raciocínio é simples e perfeitamente lógico, mas com a condição de que se admita inicialmente o ponto de partida, e especialmente de que se admita a impossibilidade para o ser humano de existir em outras modalidades diferentes da forma corporal terrestre, o que de modo algum é conciliável com as noções mais elementares da metafísica; parece no entanto, ao menos no dizer do autor, que este é o argumento mais sólido que se pode fornecer em apoio à hipótese da reencarnação (26)!

Podemos nos deter aqui, porque não temos a intenção de esgotar a lista dessas excentricidades; já dissemos o bastante para que se possa compreender tudo o que a idéia reencarnacionista tem de inquietante para o estado mental de nossos contemporâneos. Não se deve ficar espantado por termos tomado exemplos fora do espiritismo, pois é dele que esta idéia foi emprestada por todas as demais escolas que a ensinam; é portanto sobre o espiritismo que recai, ao menos indiretamente, a responsabilidade por essa estranha loucura. Enfim, pedimos desculpas por havermos, no que precede, omitido a indicação de alguns nomes; não queremos fazer polêmica, e se podemos certamente citar sem inconvenientes, com apoio de referências, tudo o que um autor publicou sob sua assinatura, ou mesmo sob um pseudônimo qualquer, o caso muda quando se trata de coisas que não foram escritas; mas se formos obrigados algum dia a fornecer maiores precisões, não hesitaremos em fazê-lo em prol da verdade, e apenas as circunstâncias determinarão nossa conduta a esse respeito.



NOTAS


1.      Le Théosofisme, pg. 105.
2.      Les Lumières et les Ombres du Spiritualisme, pg. 111.
3.      Ibid., pgs. 124-125.
4.      Isto não passa da confusão comum entre a metempsicose e a reencarnação.
5.      Traité méthodique de Science occulte, pg. 297.
6.      Ibid., pg. 342.
7.      La Réincarnation, pgs. 138-139 e 142-143.
8.      Ibid., pg. 141.
9.      Ibid., pg. 140.
10.  Esta empreita teve um triste fim: caída em mãos de escroques que a exploraram odiosamente, a infeliz está hoje, ao que parece, completamente desiludida de sua “missão”.
11.  Uma revista espírita bastante independente que era publicada em Marselha, sob o título de La Vie Posthume, publicou outrora um divertido relato de uma sessão “espírita pietista” em que se manifestaram São João, Jesus Cristo e Allan Kardec; Papus reproduziu este relato, não sem alguma malícia, em seu Traité méthodique de Science occulte, pgs. 332-339. – Mencionemos também, a propósito, que os “prolegômenos” do Livro dos Espíritos trazem as seguintes assinaturas: São João Evangelista, Santo Agostinho, São Vicente de Paula, São Luís, Espírito da Verdade, Sócrates, Platão, Fenelon, Franklin, Swedenborg, etc., etc.; não existe aí o bastante para tornar desculpáveis os “exageros” de alguns discípulos de Allan Kardec?
12.  Mes expériences avec les esprits, pgs. 259-280. – Os “testemunhos” são Caifás, Pôncio Pilatos, o procônsul Felix, o gnóstico Marcion (suposto São Marcos), Luciano (suposto São Lucas), Damis, biógrafo de Apolônio, o papa Gregório VII, e enfim uma certa Deva Bhodastuata, personagem imaginário que se apresentava como o “vigésimo sétimo profeta a partir de Buda”; parece que muitos deles tomaram como intérprete o “espírito” de Faraday!
13.  A sociedade secreta de que se trata denominava-se, de modo muito enigmático, “Ordem S.S.S. e Fraternidade Z.Z.R.R.Z.Z.”; ele esteve em hostilidade declarada com a H.B. of L.
14.   La Réincarnation, pgs. 155-159.
15.  Ibid., pg. 160.
16.  Ibid., pg. 161.
17.  Haveriam coisas curiosas a serem ditas sobre esta seita, que era de um anti-catolicismo feroz; as fantasias pseudo-históricas de Jacolliot eram tidas em grande honra aí, e tentava-se sobretudo “naturalizar” o Cristianismo; já dissemos a respeito alguma coisa, a propósito do papel que os teosofistas atribuem aos antigos Essênios (Le Théosofisme, pg. 194).
18.  Les Messies esséniens et L' Église orthodoxe, pg. 319).
19.  La Réincarnation, pgs. 135.
20.  Ibid., pg. 35. – Esta frase parece não ter nenhuma relação com o resto da passagem na qual ela está intercalada, mas sabemos que se tratava do pensamento de Papus sobre este ponto (cf. ibid., pgs. 103-105).
21.  Le Livre des Esprits, pgs. 446-447.
22.  Christianisme et Spiritisme, pgs. 93-96.
23.  Apesar de Léon Denis (ibid., pgs. 97-98), não é necessário ser materialista para admitir a hereditariedade; mas o espíritas, pelas necessidades de sua tese, não hesitam em  negar a própria evidência. – Gabriel Delanne, ao contrário, admite a hereditariedade numa certa medida (L‘Evolution animique, pgs. 287-301).
24.  Discurso pronunciado no Congresso espírita de Genebra em 1913.
25.  Outros ocultistas, que tem concepções astronômicas muito especiais, chegam a sustentar que a terra é, mesmo materialmente, o centro do Universo.
26.  Isto já estava escrito, quando soubemos da morte do ocultista a quem fizemos alusão; podemos assim dizer que é do Dr. Rozier que se trata neste parágrafo.
VIII
OS LIMITES DA EXPERIMENTAÇÃO


Antes de deixarmos a questão da reencarnação, resta-nos ainda falar das pretensas “provas experimentais”; certamente, quando uma coisa é demonstrada impossível, como é o caso, todos os fatos que podem ser invocados em seu favor são perfeitamente insignificantes, e podemos estar certos de antemão que estes fatos estão mal interpretados; mas às vezes é interessante e útil colocar essas coisas, e iremos encontrar aí um bom exemplo das fantasias pseudo-científicas a que se dedicam os espíritas e mesmo alguns psiquistas que se deixam, sem o saber, contagiar-se pouco a pouco pelo “neo-espiritualismo”. Em primeiro lugar, lembraremos e precisaremos melhor o que dissemos antes sobre o caso que se apresenta como  caso de reencarnação, em razão de um pretenso “despertar de recordações” que se produz espontaneamente; quando eles são reais (pois existem também os que são no mínimo muito mal controlados, e que os autores que se ocupam destes assuntos repetem um após outro sem se dar ao trabalho de verificá-los), trata-se de simples casos de metempsicose, no verdadeiro sentido do termo, ou seja a transmissão de certos elementos psíquicos de uma individualidade a outra. O mesmo acontece com outros casos mais próximos: assim, acontece às vezes que uma pessoa sonha com um lugar que ela não conhece, e em seguida, estando pela primeira vez em um país mais ou menos distante, encontre ali tudo o que havia visto como que por antecipação; se ela não guardou uma lembrança claramente consciente do sonho, e se no entanto este reconhecimento se produz, admitindo que a pessoa acredite na reencarnação, ela pode imaginar haver aí uma reminiscência de uma existência anterior; é assim que muitos casos podem ser explicados, ao menos aqueles em que os lugares reconhecidos não evoquem a idéia de um acontecimento preciso. Esses fenômenos, que podemos ligar à classe dos chamados “sonhos premonitórios”, são longe de serem raros, mas aqueles a quem isto acontece costumam evitar comentar o assunto, por medo de passar por “alucinados” (outra palavra muito usada e que não explica nada no fundo), coisa que também acontece com casos de “telepatia” e outros do gênero; eles colocam em jogo alguns prolongamentos obscuros da individualidade, que pertencem ao domínio do “subconsciente”, e cuja existência se explica mais facilmente do que parece. De fato, um ser qualquer deve trazer em si certas virtualidades que são como que o germe de todos os eventos que lhe acontecerão, pois estes eventos, na medida em que representam estados secundários ou modificações de si mesmo, devem ter na sua natureza seu princípio e sua razão de ser; este é um ponto que Leibnitz, único dentre os filósofos modernos, viu bem, embora sua concepção seja falseada pela idéia de que o indivíduo é um ser completo e uma espécie de sistema fechado. Admite-se normalmente a existência, desde a origem, de tendências ou predisposições de diversas ordens, tanto psicológicas como fisiológicas; não vemos porque seja assim apenas com algumas coisas, dente todas as que se realizarão ou se desenvolverão no futuro, enquanto que as outras não teriam nenhuma correspondência no estado presente do ser; se se disser que existem eventos que não tem mais do que um caráter puramente acidental, replicaremos que este modo de ver implica uma crença no acaso, que é a mesma coisa que a negação do princípio da razão suficiente. Reconhece-se sem dificuldade que todo evento passado que afetou um ser, por pouco que seja, deixe nele algum traço, mesmo orgânico (sabemos que certos psicólogos pretendem explicar a memória por um suposto “mecanismo” fisiológico), mas parece ser difícil conceber que haja, sob este aspecto, uma espécie de paralelismo entre o passado e o futuro; isto provém simplesmente da dificuldade em perceber a relatividade da condição temporal. Haveria, a este respeito, toda uma teoria a expor, e que poderia dar lugar a longos desenvolvimentos; mas basta-nos assinalar que existem possibilidades que não devem ser negligenciadas, ainda que seja complicado enquadrá-la dentro dos campos da ciência comum, que só se aplicam a uma pequena porção da individualidade humana e do mundo onde ela se desenvolve; que aconteceria se fosse preciso ultrapassar o domínio desta individualidade?

Quanto aos casos que não podem ser explicados da forma precedente, são principalmente aqueles em que a pessoa que reconhece o lugar onde nunca esteve tem também a idéia mais ou menos clara de ter aí vivido, ou ter-lhe aí sucedido tal ou tal evento, ou ainda de ter aí morrido (no mais das vezes, de morte violenta); ora, nos casos em que se pode proceder algumas verificações, constatou-se que aquilo que a pessoa acredita ter acontecido a si ocorreu efetivamente neste lugar a algum de seus ancestrais mais ou menos distantes. Existe um exemplo muito claro desta transmissão hereditária de elementos psíquicos de que falamos: poderíamos designar os fatos deste gênero sob o nome de “memória ancestral”, e os elementos que assim se transmitem são de fato, em boa parte, da esfera da memória. O que á primeira vista é singular, é que esta memória pode não se manifestar senão após muitas gerações; mas sabemos que o mesmo acontece com as semelhanças físicas, e também com algumas doenças hereditárias. Podemos muito bem admitir que, durante o intervalo, a lembrança permaneceu em estado latente e “subconsciente”, aguardando uma condição favorável para manifestar-se; se a pessoa em quem o fenômeno se produz não fosse ao local evocado, esta lembrança permaneceria muito tempo ainda a conservar-se, sem tornar-se claramente consciente. De resto, o mesmo acontece para tudo o que, na memória, pertence propriamente ao indivíduo: tudo se conserva, pois tudo tem, de modo permanente, a possibilidade de reaparecer, mesmo o que parece mais esquecido e o que é mais insignificante em aparência, como vemos em certos casos mais ou menos anormais; mas, para que tal lembrança determinada reapareça, é preciso que as circunstâncias se prestem a isto, de sorte que existem muitas que jamais chegam ao campo da consciência clara e distinta. O que acontece no domínio das predisposições orgânicas é exatamente análogo: um indivíduo pode trazer em si, em estado latente, tal ou tal doença, como o câncer por exemplo, mas esta doença não se desenvolverá senão sob a ação de um choque ou de um enfraquecimento do organismo; se estas circunstâncias não advém, a doença não se desenvolverá jamais, mas nem por isso seu germe deixará de existir real e presentemente no organismo, assim como uma tendência psicológica que não se manifesta por nenhum ato exterior tampouco deixa de ser real em si mesma por causa disto. Agora, devemos acrescentar que, como não existem circunstâncias fortuitas, e que mesmo uma tal suposição é desprovida de sentido  (não é porque ignoramos a causa de uma coisa, que esta causa não existe), deve haver uma razão para que a “memória ancestral” se manifeste num indivíduo ao invés de em qualquer outro membro da mesma  família, assim como deve haver um motivo para que uma pessoa se pareça fisicamente a um dado ancestral e não a outro, e mesmo a seus parentes imediatos. É aqui que é preciso fazer intervir as leis da “afinidade” que mencionamos mais acima; mas seríamos levados muito longe se quiséssemos explicar como uma individualidade pode estar ligada mais especialmente a uma outra, tanto mais que os laços deste gênero não são forçosamente hereditários em todos os casos, e que, por estranho que pareça, eles podem existir entre um ser humano e seres não humanos; e ainda, além dos laços naturais, podem ser criados outros por procedimentos que são do domínio da magia, e mesmo da magia mais inferior. Sobre este ponto, como sobre tantos outros, os ocultistas deram as explicações mais fantasistas: é assim que Papus escreve: “O corpo físico pertence a uma família animal da qual vieram (sic) a maior parte de suas células, após uma evolução ancestral. A transformação evolutiva dos corpos se faz no plano astral; existem assim corpos humanos que se ligam por sua forma fisionômica, seja ao cão, seja ao macaco, seja ao lobo, seja mesmo a pássaros e peixes. Esta é a origem secreta dos totens das raças vermelha e negra” (1). Nós confessamos não compreender o que pode ser uma “evolução astral” de elementos corpóreos; mas, antes de tudo, esta explicação vale tanto quanto a dos sociólogos, que imaginam que o “totem” animal ou mesmo vegetal seja visto, literal e materialmente, como o ancestral da tribo, sem se darem conta de que o “transformismo” é coisa de invenção bastante recente. Na realidade, não é de elementos corporais que se trata em tudo isso, mas de elementos psíquicos (já vimos que Papus faz esta confusão sobre a natureza da metempsicose); é evidentemente pouco razoável supor que a maioria das células de um corpo humano, ou antes dos seus elementos constituintes, tenham a mesma proveniência, enquanto que, na ordem psíquica, possa haver, como dissemos, a conservação de um conjunto mais ou menos considerável de elementos que permanecem associados. Quanto à “origem secreta dos totens”, podemos afirmar que de fato ela permaneceu secreta para os ocultistas, tanto quanto para os sociólogos; de resto, talvez seja melhor assim, pois estas coisas são daquelas que não podem ser explicadas sem reservas, devido às conseqüências e às aplicações práticas que algumas pessoas tentariam conseguir; já existem coisas suficientes, bastante perigosas também, que só podemos lamentar estarem à disposição do primeiro experimentador que se apresente.

Falamos de casos de transmissão não hereditária; quando esta transmissão só se refere a elementos pouco importantes, quase não é percebida, e mesmo  chega a ser impossível constatá-la claramente. Certamente existem, em cada um de nós, elementos como estes que provém da desagregação das individualidades que nos precederam (trata-se aqui naturalmente só da parte perecível do ser humano); se alguns dentre eles, normalmente “subconscientes”, chegam à consciência clara e distinta, a pessoas percebe que traz em si algo cuja origem ela não explica, mas pouca atenção se dá a isto, tanto mais que estes elementos aparecem como incoerentes e desprovidos de ligação com o conteúdo habitual da consciência. É sobretudo nos casos anormais, como entre os médiuns e os pacientes hipnóticos, que os fenômenos deste tipo tem mais chance de se produzir com alguma significância; e, entre eles igualmente, pode haver manifestações de elementos de proveniência análoga, mas “adventícios”, que só se agregam de passagem à sua individualidade, em lugar de fazer parte integrante dela; mas pode ser ainda que estes elementos, uma vez penetrando aí, estabeleçam-se de modo permanente, e este não é dos menores perigos desta sorte de experiências. Para voltarmos ao caso em que a transmissão opera-se espontaneamente, a ilusão da reencarnação só pode acontecer pela presença de um conjunto notável de elementos psíquicos de mesma proveniência, suficiente para representar aproximadamente o equivalente a uma memória individual mais ou menos completa; isto é bastante raro, mas já foram constatados alguns exemplos. É provavelmente isto que acontece quando, após a morte de uma criança numa família, nasce outra que possui, ao menos parcialmente, a memória do primeiro; seria difícil, de fato, explicar tais fatos por uma simples sugestão, o que não quer dizer que os pais não tenham desempenhado um papel inconsciente na transferência real, que o sentimentalismo contribuirá para interpretar num sentido reencarnacionista. Acontece também da transferência de memória operar-se em uma criança que pertence a uma outra família e um outro meio, o que contraria a hipótese da sugestão; em todo caso, quando há morte prematura, os elementos psíquicos permanecem mais facilmente sem se dissolver, e é por isso que a maior parte dos exemplos que encontramos referem-se a crianças. São citados também alguns casos de pessoas que manifestaram, desde tenra idade, a memória de indivíduos adultos; mas muitos destes são mais duvidosos do que os antecedentes, podendo reduzir-se a uma simples sugestão ou a uma transmissão de pensamento; naturalmente, se os fatos acontecem num meio que tenha sido influenciado pelas idéias espíritas, eles devem ser considerados como suspeitos, sem que a boa-fé daqueles que os constataram seja posta em causa, assim como a dos experimentadores que determinam involuntariamente a conduta de seus pacientes em conformidade com suas próprias teorias. Entretanto, não há nada de impossível, a priori, em todos esses fatos, salvo a interpretação espírita; existem ainda outros onde se quis ver provas da reencarnação, como nos casos das “crianças-prodígio” (2), que se explicam muito bem pela presença de elementos psíquicos previamente elaborados e desenvolvidos por outras individualidades. Acrescentemos também que a desintegração psíquica, mesmo nos casos de morte prematura, é às vezes impedida ou retardada artificialmente; mas este é um assunto sobre o qual não convém insistir. Quanto aos verdadeiros casos de “posteridade espiritual”, no sentido que indicamos precedentemente, não trataremos deles aqui, pois, por sua própria natureza, eles escapam aos estreitos meios de investigação de que dispõem os experimentadores.

Já dissemos que a memória está sujeita à desagregação póstuma, por ser uma faculdade de ordem sensível; convém também acrescentar que ela pode sofrer, mesmo com o indivíduo em vida, uma espécie de dissolução parcial. As diversas doenças da memória, estudadas pelos psico-fisiologistas, não são outra coisa no fundo; e é assim que se devem explicar, em particular, os pretensos “desdobramentos de personalidade”, em que existe um como que fracionamento em duas ou mais memórias diferentes, que ocupam alternativamente o campo da consciência clara e distinta; estas memórias fragmentárias devem naturalmente coexistir, mas, como só uma delas pode estar plenamente consciente num momento dado, as outras são então remetidas para o domínio do “subconsciente; de resto, às vezes existe uma comunicação entre elas numa certa medida. Tais fatos se produzem espontaneamente em algumas pessoas doentes, assim como o sonambulismo natural; eles podem também ser obtidos experimentalmente em “estados secundários” de pacientes hipnóticos, aos quais devem ser assimilados a maior parte dos fenômenos de “encarnação” espírita. Pacientes e médiuns diferem das pessoas normais por uma certa dissociação de seus elementos psíquicos, que vai se acentuando na medida do treinamento que recebem; é esta dissociação que torna possíveis os fenômenos de que tratamos, e que permite igualmente que elementos heteróclitos venham de certo modo intercalar-se em sua individualidade.

O fato de que a memória não constitui um princípio verdadeiramente permanente do ser humano, sem falar das condições orgânicas às quais ela está mais ou menos ligada (ao menos quanto às suas manifestações exteriores), deve fazer compreender porque não fizemos questão de uma objeção que é freqüentemente colocada contra a tese reencarnacionista, e que os defensores desta estimam entretanto “considerável”: trata-se do “esquecimento”, durante uma existência, das existências anteriores. A resposta que Papus dá à questão é ainda mais fraca do que a própria objeção: “Este esquecimento, diz ele, é uma necessidade iniludível para evitar o suicídio. Antes de voltar para a terra ou para o plano físico, todo espírito vê as provas que irá sofrer, e ele só volta após aceitar conscientemente todas estas provas. Ora, se o espírito soubesse, uma vez encarnado, tudo o que ele teria que suportar, sua razão escureceria, sua coragem se perderia, e o suicídio consciente seria o resultado de uma visão clara (...) Seria preciso retirar do homem a faculdade do suicídio se quiséssemos guardar com certeza a lembrança das existências anteriores” (3). Não vemos que relação pode haver entre a lembrança das existências anteriores e a previsão da existência presente; se esta previsão só foi imaginada para responder à objeção do esquecimento, não valeria a pena; mas é preciso dizer também que a concepção  bastante sentimental das “provas” desempenha um papel muito importante entre os ocultistas. Sem procurar ir tão longe, os espíritas são às vezes mais lógicos; é assim que Léon Denis, mesmo declarando que “o esquecimento do passado é, para o homem, condição indispensável de toda prova e de todo progresso terrestre”, e acrescentando ainda algumas outras considerações não menos sentimentais, diz simplesmente o seguinte: “O cérebro não pode conceber e armazenar senão as impressões comunicadas pela alma no estado de cativeiro na matéria. A memória só pode reproduzir o que ela registrou. A cada renascimento, o organismo cerebral constitui, para nós, como que um livro novo sobre o qual são gravadas as sensações e as imagens” (4). É talvez um pouco rudimentar, porque a memória, apesar de tudo, não é de natureza corporal; mas enfim é mais plausível, tanto mais que é colocado ainda que existem muitas partes de nossa existência atual das quais parecemos não ter nenhuma lembrança. Ainda desta vez, a objeção não é assim tão profunda como se pretende, ainda que tenha numa aparência mais séria do que aquelas que se fundamentam no sentimento; talvez seja ela o que de melhor conseguem os que não conhecem nada de metafísica; mas, quanto a nós, não temos necessidade de recorrer a argumentos tão contestáveis.

Até aqui, ainda não havíamos abordado as “provas experimentais” propriamente ditas; designa-se sob este nome os diversos casos que tratamos; mas há outra coisa, que provém da experimentação entendida no seu sentido mais restrito. É aqui sobretudo que os psiquistas não se dão conta dos limites dentro dos quais seus métodos podem ser aplicados; aqueles que compreenderam o que precede devem ver desde já que os experimentadores, segundo as idéias admitidas pela “ciência moderna” (mesmo quando eles são mais ou menos colocados à parte por seus representantes “oficiais”), estão longe de poder fornecer explicações válidas para tudo aquilo de que se trata: como os fatos da metempsicose, por exemplo, poderiam dar lugar às suas investigações? Nós assinalamos um singular desconhecimento dos limites da experimentação entre os espíritas que tem a pretensão de “provar cientificamente a imortalidade”; encontraremos outro não menos espantoso para qualquer isento do pré-julgamento “científico”, e, desta vez, não será entre os espíritas, mas entre os psiquistas. De resto, entre espíritas e psiquistas, é às vezes difícil traçar uma linha de demarcação clara, como em princípio deveria haver, e parece que existem pessoas que se declaram psiquistas por não ousar se dizerem francamente espíritas, pois esta última denominação é pouco prestigiosa aos olhos de muitos; existem outros que se deixam influenciar se querer, e que ficariam espantados se lhes fosse dito que uma premissa inconsciente falseia o resultado de suas experiências; para estudar verdadeiramente nos fenômenos psíquicos sem idéia pré-concebida, os experimentadores deveriam ignorar até mesmo a existência do espiritismo, o que evidentemente é impossível. Se fosse assim, não se teria pensado em instituir experiências destinadas a verificar a hipótese da reencarnação; e, se não tivesse havido primeiramente a idéia de verificar esta hipótese, jamais teriam sido constatados fatos como os que iremos falar, pois os pacientes hipnóticos, que são empregados nestas experiências, não fazem senão refletir todas as idéias que lhes são sugeridas voluntária ou involuntariamente. Basta que o experimentador pense numa teoria, que ele veja como simplesmente possível, com ou sem razão, para que esta teoria se torne, no paciente, o ponto de partida de divagações intermináveis; e o experimentador acolherá ingenuamente como uma confirmação aquilo que não passa do efeito de seu próprio pensamento agindo sobre a imaginação “subconsciente” do paciente, pois as intenções mais “científicas” jamais garantiram ninguém contra certas causas de erros.

As primeiras histórias deste gênero onde se falou em reencarnação são as que deram a conhecer os trabalhos de um psiquista de Genebra, o professor Flournoy, que reuniu num volume (5) tudo o que um dos seus pacientes lhe contara sobre as diversas existências que ele pretendia ter vivido sobre a terra e mesmo em outros lugares; e o que há de mais notável, é que ele não parece ter-se espantado de que o que se passa no planeta Marte pudesse tão facilmente ser expresso em linguagem terrestre! Isto valeria tanto quanto o relato de um sonho qualquer, e poderia ter sido estudado do ponto de vista da psicologia do sonho provocado em estados hipnóticos; e é incrível que alguém tenha visto aí algo de mais, e no entanto foi isto que aconteceu. Um pouco mais tarde, um outro psiquista pretendeu retomar a questão de modo mais metódico: tratava-se do coronel de Rochas, geralmente reputado como um experimentador sério, mas a quem faltava a inteligência necessária para saber com que estava tratando dentro dessa ordem de coisas para evitar certos perigos; partindo também do hipnotismo puro e simples, ele fez como tantos outros e, insensivelmente, acabou por se converter quase inteiramente às teorias espíritas (6). Uma de suas últimas obras (7) foi consagrada ao estudo experimental da reencarnação: tratava-se da exposição de suas pesquisas sobre as pretensas “vidas sucessivas” por meio daquilo que ele chamou de fenômenos de “regressão da memória”. No momento em que surgiu esta obra (1911), acabava de ser fundado em Paris um “Instituto de pesquisas psíquicas”, fundado precisamente sob o patrocínio de Mme. de Rochas, e dirigido por L. Lefranc e Charles Lancelin; convém lembrar que este último, que se diz indiferentemente psiquista ou ocultista, não passa no fundo de um espírita, então bastante conhecido como tal. Lefranc, cujas tendências eram as mesmas, quis retomar as pesquisas de de Rochas, e, naturalmente, chegou a resultados que concordavam perfeitamente com os obtidos por ele; o contrário teria sido surpreendente, porque ele partiu de uma hipótese pré-concebida, de uma teoria já formulada, e porque ele não encontrou nada melhor do que trabalhar com os antigos pacientes do próprio coronel de Rochas. Hoje a coisa se tornou corrente: existe um certo número de psiquistas que acreditam firmemente na reencarnação, simplesmente porque possuem pacientes que lhes contaram suas existências anteriores; havemos de convir que é um pouco difícil usar isto como prova, e assim abre-se um novo capítulo da história a que podemos chamar de “credulidade científica”. Sabendo o que são os pacientes hipnóticos, e também como eles passam indiferentemente de um experimentador a outro, levando assim o produto das diferentes sugestões que receberam, não é duvidoso que eles se tornem, em todos os meios psiquistas, como que os propagadores de uma verdadeira epidemia reencarnacionista; não é portanto inútil mostrar com mais detalhe o que existe no fundo de todas essas histórias (8).

O coronel de Rochas acreditou constatar em alguns pacientes uma “regressão da memória”; dizemos que ele acreditou constatar, pois, se sua boa-fé é incontestável, não é menos verdade que os fatos que ele interpretou assim, em virtude de uma simples hipótese, podem explicar-se na realidade de outro modo, e muito mais simples. Em suma, esses fatos resumem-se no seguinte: o paciente, estando num certo estado de adormecimento, pode ser recolocado mentalmente nas condições em que se encontraria numa época passada, e ser “situado” assim numa era qualquer , da qual ele passa a falar então como se estivesse no presente, donde se conclui que, neste caso, não existe mais “lembrança”, mas “regressão da memória”: “O paciente não se lembra, declara categoricamente Lancelin, mas ele é colocado na época indicada”; e ele acrescenta com verdadeiro entusiasmo que “esta simples observação foi, para o coronel de Rochas, o ponto de partida de uma descoberta absolutamente superior” (9). Infelizmente, esta “simples observação” contém uma contradição de termos, pois evidentemente não pode se tratar de memória quando não existe lembrança; isto é mesmo tão evidente que é difícil entender como ele não percebeu, e faz pensar que houve um erro de interpretação. Fora isto, é preciso perguntar se a possibilidade de lembrança pura e simples fica excluída apenas pelo fato de que a pessoa fala do passado como se ele se tivesse tornado presente, como, por exemplo, ao ser perguntada sobre o que fazia em tal dia e em tal hora, ela não responde: “Eu fazia isto”, mas “Eu faço isto”. Quanto a isto, podemos responder imediatamente que as lembranças, enquanto tais, estão sempre mentalmente presentes; que estas lembranças se achem atualmente no campo da consciência clara e distinta ou no do “subconsciente”, pouco importa, pois, como dissemos, elas tem sempre a possibilidade de passar de um para outro, o que mostra que só existe aí uma diferença de grau. Aquilo que, para nossa consciência atual, caracteriza efetivamente estes elementos como lembranças de eventos passados, é sua comparação com os eventos presentes (presentes enquanto percepções), comparação que permite distinguir uns dos outros estabelecendo uma relação temporal, vale dizer uma relação de sucessão, entre os eventos exteriores dos quais elas são para nós as respectivas traduções mentais; esta distinção entre a lembrança e a percepção faz parte da psicologia mais elementar. Se a comparação se torna impossível por qualquer razão, seja pela supressão momentânea de toda impressão exterior, seja por outro motivo, a lembrança, não estando mais localizada no tempo em relação a outros elementos psicológicos presentemente diferentes, perde seu caráter representativo do passado, para conservar apenas sua qualidade atual de presente. Ora, é precisamente aí que se produz o caso de que falamos: o estado no qual está colocado o paciente corresponde a uma modificação de sua consciência atual, que implica uma extensão, num certo sentido, de suas faculdades individuais, mas em detrimento momentâneo do desenvolvimento em outro sentido que estas faculdades possuem em estado normal. Se então, neste estado, impede-se o paciente de ser afetado pelas percepções presentes, e se, de outro, afasta-se da sua consciência todos os eventos posteriores a um dado momento, condições que são perfeitamente realizáveis através da sugestão, eis o que acontece: a partir do momento em que as lembranças que se referem a este mesmo momento apresentam-se à consciência modificada em sua extensão, e que para o paciente representa a sua consciência atual, elas não podem de modo algum ser situadas no passado, nem mesmo simplesmente encaradas sob o aspecto do passado, porque não existe atualmente no campo da consciência (apenas no campo da consciência clara e distinta) nenhum elemento com o qual elas possam ser relacionadas sob um aspecto de anterioridade temporal.

Em tudo isto, não há nada além de um estado mental que implica uma modificação da concepção do tempo, ou antes de sua compreensão, em relação ao estado normal; e, de resto, estes dois estados não passam de modalidades diferentes da mesma individualidade, como o são igualmente os diversos estados, espontâneos ou provocados, que correspondem a todas as alterações possíveis da consciência individual, inclusive aquelas que se classifica usualmente sob a denominação imprópria e enganosa de “múltiplas personalidades”. Com efeito, não pode tratar-se aqui de estados superiores e extra-individuais nos quais o ser estaria liberto da condição temporal, nem mesmo de uma extensão da individualidade que implique esta mesma libertação parcial, porque o paciente é colocado num instante determinado, o que supõe essencialmente que o seu estado atual está condicionado pelo tempo. Ademais, de um lado, estados como aqueles a que fizemos alusão não podem evidentemente ser atingidos por meios que são inteiramente do domínio da individualidade atual, ainda mais vista exclusivamente numa porção muito restrita de suas possibilidades, que é necessariamente o caso de todo procedimento experimental; e, de outro lado, mesmo se tais estados fossem atingidos de um modo qualquer, eles não poderiam ser tornados sensíveis para esta individualidade, cujas condições particulares de existência não tem nenhum ponto de contato com as dos estados superiores do ser, e que, enquanto dada individualidade, ela é forçosamente incapaz de assentir, e com mais forte razão exprimir, tudo o que está além dos limites de suas próprias possibilidades. De resto, em todos os casos que mencionamos, trata-se sempre de eventos terrestres, ou ao menos que só se referem ao estado corporal; não existe aí nada que exija minimamente a intervenção de estados superiores do ser, de cuja existência, aliás, sequer suspeitam os psiquistas.

Quanto a transportar-se ao passado, está aí uma coisa que é tão manifestamente impossível ao indivíduo quanto transportar-se para o futuro; é evidente que esta idéia de um transporte para o futuro enquanto tal não passa de uma interpretação completamente errada dos fatos de “previsão”, mas esta interpretação não seria mais extravagante do que a de que tratamos, e ela pode muito bem também vir a produzir-se um dia ou outro. Se não conhecêssemos as teorias dos psiquistas em questão, jamais pensaríamos que a “máquina do tempo” de H. G. Wells pudesse ser considerada como outra coisa do que uma concepção de pura fantasia, nem que se viesse a falar seriamente da “reversibilidade do tempo”. O espaço é reversível, vale dizer que qualquer de suas partes, tendo sido percorrida num certo sentido, pode sê-lo a seguir em sentido inverso, e isto porque ele representa uma coordenação de elementos encarados em modo simultâneo e permanente; mas o tempo, sendo ao contrário uma coordenação de elementos encarados de modo sucessivo e transitório, não pode ser reversível, pois uma tal suposição seria a própria negação do ponto de vista da sucessão, ou, em outros termos, ela equivaleria precisamente a suprimir a condição temporal. Esta supressão da condição temporal é aliás perfeitamente possível em si mesma, assim como a da condição espacial; mas ela não o é nos casos que tratamos aqui, porque eles todos pressupõem o tempo; de resto, convém lembrar que a concepção do “eterno presente”, que é a conseqüência desta supressão, não pode ter nada em comum com um retorno ao passado ou com um transporte para o futuro, pois ela suprime exatamente o passado e o futuro, libertando-nos do ponto de vista da sucessão, ou seja daquilo que constitui para nosso ser atual toda a realidade da condição temporal.

Entretanto, existem pessoas que conceberam esta idéia no mínimo singular da “reversibilidade do tempo”, e que pretenderam apoiá-la sobre um pretenso “teorema de mecânica”, cujo enunciado integral achamos interessante reproduzir, a fim de mostrar mais claramente a origem de sua fantástica hipótese. Foi Lefranc quem, para interpretar suas experiências, colocou a questão nestes termos: “Podem a matéria e o espírito reverter o curso do tempo, ou seja, podem eles colocar-se em uma época de vida dita anterior? O passado não volta; entretanto, ele não poderia vir?” Para responder a isto, ele foi buscar um trabalho sobre a “reversibilidade de todo movimento puramente material”, publicado outrora por um certo Breton (11); convém dizer que este autor não apresentou a concepção em pauta senão como uma espécie de jogo matemático, chegando a conseqüências que ele mesmo considerava absurdas; é verdade também que havia aí uma espécie de abuso de raciocínio, como acontece às vezes com certos matemáticos, sobretudo com os “especialistas”, e a mecânica fornece um terreno particularmente favorável para coisas deste gênero. Eis como começa o enunciado de Breton: “Conhecendo a série completa de todos os estados sucessivos de um sistema de corpos, estados que se seguem e engendram uns aos outros dentro de uma ordem determinada, do passado que faz a função de causa, ao futuro que tem o lugar de efeito (sic), consideremos um destes estados sucessivos, e, sem nada alterar nas massas componentes, nem nas forças que agem nestas massas (12), nem nas leis destas forças, assim como nas situações atuais destas massas no espaço, vamos substituir cada velocidade por uma velocidade igual e contrária (...)”. Uma velocidade contrária a uma outra, ou melhor de direção diferente, não pode, a bem dizer, ser igual à primeira no sentido rigoroso do termo, mas apenas equivalente em quantidade; e, por outro lado, será possível considerar esta substituição como algo que não muda em nada as leis do movimento considerado, dado que, se estas leis fossem seguidas, este movimento não se produziria? Mas voltemos ao texto: “Chamaremos a isto “reverter as velocidades”; esta mudança tomará o nome de reversão, e chamaremos sua possibilidade de reversibilidade do movimento do sistema (...)”. Vamos nos deter um instante aqui, pois é justamente esta possibilidade que não podemos admitir, do ponto de vista mesmo do movimento, que efetua-se necessariamente dentro do tempo: o sistema considerado tomará em sentido inverso, em uma nova série de estados sucessivos, as situações que ele havia anteriormente ocupado no espaço, mas o tempo não voltará jamais a ser o mesmo por causa disto, e isto basta evidentemente para que os novos estados do sistema não possam de modo algum ser identificados aos precedentes. De resto, no raciocínio que estamos citando, supõe-se explicitamente (embora num linguajar contestável) que a relação do passado com o futuro é uma relação de causa e efeito, enquanto que a verdadeira relação causal, ao contrário, implica essencialmente a simultaneidade dos dois termos, donde resulta que estados considerados como seguindo-se uns aos outros não podem de modo algum, deste ponto de vista, engendrarem-se correspondentemente, pois seria preciso então que uma estado que não existe mais produzisse um outro estado que não existe ainda, o que é absurdo (e resulta daí também que, se a lembrança de uma impressão qualquer pode ser causa de outros fenômenos mentais, quaisquer que sejam, é unicamente enquanto lembrança presente, pois a impressão passada não pode atualmente ser causa de nada). Mas prossigamos: “Ora, quando houvermos operado a reversão das velocidades de um sistema de corpos (...)” – o autor do raciocínio tem a prudência de acrescentar entre parêntesis: “não na realidade, mas no puro pensamento”; neste momento, sem perceber, ele sai totalmente do domínio da mecânica, e aquilo de que ele fala já não tem nenhuma relação com um “sistema de corpos” (é verdade que, na mecânica clássica, encontram-se também muitas suposições contraditórias, como a de um corpo pesado reduzir-se a um ponto matemático, ou seja um corpo que não é um corpo, porque falta-lhe extensão); mas convém reter que ele próprio vê a pretensa “reversão” como irrealizável, contrariamente àqueles que pretenderam aplicar seu raciocínio à “regressão da memória”. Supondo a “reversão” operada, eis qual será o problema: “Tratar-se-á de encontrar, para o sistema assim revertido, a série completa de seus estados futuros e passados: será esta procura mais, ou menos difícil, do que o problema correspondente para os estados sucessivos do mesmo sistema não revertido? Nem mais, nem menos (...)”. Evidentemente, porque, num e noutro caso, trata-se de estudar um movimento cujos elementos estão todos dados; mas, para que este estudo corresponda a qualquer coisa de real e mesmo de possível, ele não deveria ser falseado por um simples jogo de notação, como o que é indicado  na seqüência da frase: “E a solução de um destes problemas dará a do outro por uma mudança muito simples, que consiste, em termos técnicos, em mudar o sinal algébrico do tempo, em escrever –t em lugar de +t, e reciprocamente (...)”. De fato, é bastante simples na teoria, mas, não levando em conta que a notação dos “números negativos” não passa de um procedimento artificial para simplificação de cálculos (que não deixa de ter inconvenientes do ponto de vista lógico) e não corresponde a nenhuma espécie de realidade, o autor do raciocínio cai incide num grave erro, que é aliás comum a muitos matemáticos, e, para interpretar a mudança de sinal que indicada, ele acrescenta: “Quer dizer que as duas séries completas de estados sucessivos do mesmo sistema de corpos diferirão apenas em que o futuro se tornará passado e o passado se tornará futuro (...)”. Eis aí, com certeza, uma singular fantasmagoria, e é preciso reconhecer que uma operação tão comum como uma mudança de sinal algébrica seja dotada de uma potência estranha e verdadeiramente maravilhosa... aos olhos de matemáticos deste tipo. “Será a mesma série de estados sucessivos percorrida em sentido inverso. A reversão das velocidades em um instante qualquer reverte simplesmente o tempo; a série primitiva dos estados sucessivos e a série revertida possuem, em todos os instantes correspondentes, as mesmas figuras do sistema com as mesmas velocidades iguais e contrárias (sic)”. Infelizmente, na realidade, a reversão das velocidades reverte simplesmente as situações espaciais, e não o tempo; em lugar de ser “a mesma série de estados sucessivos percorrida em sentido inverso”, será uma segunda série homóloga à primeira, mas apenas quanto ao espaço; o passado não se tornará futuro por causa disto, e o futuro só se tornará passado em virtude da lei natural e normal da sucessão, como acontece a cada instante. Para que haja realmente correspondência entre as duas séries, é preciso que não tenha havido, dentro do sistema considerado, outras mudanças do que simples mudanças de situação; apenas estas podem ser reversíveis, porque aí só intervém a consideração do espaço, que é efetivamente reversível; para qualquer outra mudança de estado, o raciocínio não mais poderá ser aplicado. É assim inteiramente ilegítimo pretender tirar daí conseqüências como estas: “No reino vegetal, por exemplo, veríamos, na reversão, uma pêra caída que “desapodrece”, que se torna fruto maduro, que se recolhe à sua árvores, que se torna fruto verde, que decresce e se torna flor aberta, depois flor fechada, depois botão, depois broto, ao mesmo tempo em que sua matéria retorna, uma parte ao estado de ácido carbônico e vapor d’água espalhado no ar, outra ao estado de semente, depois de humus e de adubo”. Parece-nos que Camille Flammarion descreveu coisas semelhantes, mas supondo um “espírito” que se afastasse da terra a uma velocidade superior à da luz, e que possuísse uma capacidade visual capaz de fazê-lo distinguir, a uma distância qualquer, os menores detalhes dos eventos terrestres (13); era uma hipótese no mínimo fantasista, mas enfim não se tratava de uma verdadeira “reversão do tempo”, pois os próprios eventos continuariam a seguir seu curso normal, e seu desenvolvimento em sentido contrário não passaria de uma ilusão de ótica. Nos seres vivos, produz-se a cada momento uma multitude de alterações que não são redutíveis a mudanças de situação; e, mesmo nos corpos inorgânicos que parecem permanecer completamente idênticos a si mesmos, efetuam-se também muitas mudanças irreversíveis: a “matéria inerte”, postulada pela mecânica clássica, não se encontra em parte alguma do mundo corporal, pelo simples fato de que o que é inerte é necessariamente desprovido de qualquer qualidade sensível ou qualquer outra. É verdadeiramente muito fácil mostrar os sofismas inconscientes e múltiplos que se escondem debaixo de tais argumentos; e no entanto isso é tudo o que se pode encontrar para justificar “perante a ciência e a filosofia” uma teoria como a das pretensas “reversões da memória”!

Mostramos que se pode explicar facilmente, e quase sem sair do domínio da psicologia comum, o pretenso “retorno ao passado”, ou seja em realidade simplesmente a evocação à consciência clara e distinta de lembranças conservadas em estado latente na memória “subconsciente” do paciente, referindo-se a tal ou tal determinado período da sua existência. Para completar esta explicação, convém acrescentar que esta evocação é facilitada por outro lado, do ponto de vista fisiológico, pelo fato de que toda impressão deixa sempre um traço sobre o organismo que a experimentou; não é o caso de se procurar de que modo esta impressão pode ser registrada por certos centros nervosos, pois este é um estudo que pertence à ciência experimental pura e simples, o que não quer dizer aliás que ela tenha obtido até o presente grandes resultados a respeito. Seja como for, a ação exercida sobre os centros que correspondem às diferentes modalidades da memória (de resto auxiliada por um fator psicológico que é a sugestão, a qual desempenha aqui o papel principal, pois o que é de ordem fisiológica só concerne às condições de manifestação exterior da memória), seja como for que se efetue, permite colocar o paciente nas condições requeridas para realizar as experiências de que falamos, ao menos quanto à sua primeira parte, que se refere aos eventos dos quais ele realmente tomou parte ou assistiu em uma época mais ou menos distante. Apenas, o que contribui para iludir o experimentador, é que as coisas se complicam com uma espécie de “sonho em ação”, do tipo dos que dão nome ao sonambulismo: o paciente, ao invés de simplesmente contar suas lembranças, começa a representá-las, como ele representará  tudo o que lhe for sugerido, sejam sentimentos ou impressões. É assim que o coronel de Rochas “recolocou, situou o paciente a dez, vinte, trinta anos atrás; fez dele uma criança, um bebê chorando”; seria de se esperar, com efeito, desde que ele sugeriu ao paciente um retorno ao estado de infância, vê-lo agir e falar como uma verdadeira criança; mas, se ele lhe tivesse sugerido ser um animal qualquer, o paciente não deixaria, analogamente, de se comportar com aquele animal; daí se concluiria ter ele sido este animal numa época anterior? O “sonho em ação” pode ter como ponto de partida, sejam lembranças pessoais, seja o conhecimento do modo de agir de um outro ser, e estes dois elementos podem se misturar mais ou menos; este último caso representa provavelmente o que se produz quando se quer “situar” o paciente na infância. Pode acontecer também que se trate de um conhecimento que o paciente não possui em estado normal, mas  que lhe é comunicado mentalmente pelo experimentador, sem que este tenha intenção; foi provavelmente assim que de Rochas “situou o paciente anteriormente ao seu nascimento, fazendo-o retornar à vida intra-uterina, onde ele adotou, retroagindo, as diversas posições do feto”. Todavia, não queremos dizer que, mesmo no último caso, não haja na individualidade do paciente alguns traços, orgânicos e mesmo psíquicos, destes estados; ao contrário, devem haver, e eles podem fornecer uma porção considerável, ainda que difícil de determinar, de seu “sonho em ação”. Mas, bem entendido, uma correspondência fisiológica qualquer só é possível para as impressões que tenham realmente afetado o organismo do paciente; da mesma forma, do ponto de vista psicológico, a consciência individual de um ser qualquer só pode evidentemente conter elementos que tenham alguma relação com a individualidade atual deste ser. Isto deveria bastar para mostrar que é perfeitamente inútil e ilusório prosseguir as pesquisas experimentais além de certos limites, ou seja, no caso atual, anteriormente ao nascimento do paciente, ou ao menos no início de sua vida embrionária; no entanto é isto que se quis fazer, pois tentou-se “situar o paciente antes da concepção”, e, apoiando-se na hipótese pré-concebida da reencarnação, acreditou-se ser possível, “remontando cada vez mais longe, fazê-lo reviver suas vidas anteriores”, ao mesmo tempo em que se estudava, no intervalo, “o que se passou com o espírito não encarnado”!

Aqui, estamos evidentemente em plena fantasia; e no entanto Lancelin nos afirma que “o resultado adquirido pode ser considerado enorme, não só em si mesmo, mas pelos caminhos que ele abre à exploração das anterioridades do ser vivo”, que “um grande passo acaba de ser dado, pelo sábio de primeira ordem que é o coronel de Rochas, na via que este seguiu da desocultação (sic) do oculto”, e que “um novo princípio foi colocado, cujas conseqüências são, atualmente, incalculáveis (14). Como se pode falar de “anterioridades do ser vivo”, quando se trata de um tempo em que este ser vivo ainda não existia em estado individualizado, e ainda pretender colocá-lo além de sua origem, vale dizer em condições nas quais ele nunca esteve, e que portanto não correspondem para ele a nenhuma realidade? Isto equivale a criar inteiramente, com todas as suas peças, uma realidade artificial, se podemos nos exprimir assim, ou seja uma realidade mental atual que não é a representação de nenhuma espécie de realidade sensível; a sugestão dada pelo experimentador fornece o ponto de partida, e a imaginação do paciente faz o resto. Sem dúvida, pode acontecer que o paciente encontre, seja em si mesmo, seja no ambiente psíquico, alguns desses elementos de que falamos, e que provém da desintegração de outras individualidades; isto explicaria que ele possa fornecer certos detalhes referentes a pessoas que de fato existiram, e, se tais fatos fossem constatados e verificados de forma isenta, eles não provariam mais do que os outros. De um modo geral, tudo isso é comparável, fora a sugestão inicial, ao que se passa no estado comum de sonho, onde, como ensina a doutrina hindu, “a alma individual cria um mundo que procede inteiramente de si mesma, e cujos objetos consistem exclusivamente em concepções mentais”, para os quais ela utiliza naturalmente todos os elementos de proveniência variada que ela possa ter à disposição. De resto, normalmente não é possível distinguir estas concepções, ou antes as representações que as traduzem, das percepções de origem exterior, sem que se estabeleça uma espécie de comparação entre estas duas espécies de elementos psicológicos, o que só pode ser feito pela passagem mais ou menos clara do estado de sonho para o estado de vigília; mas esta comparação nunca é possível no caso de sonho provocado por sugestão, pois o paciente, ao acordar, não conserva nenhuma lembrança na sua consciência normal (o que não quer dizer que esta lembrança não subsista no “subconsciente”). Lembremos ainda que o paciente pode, em certos casos, considerar como lembranças imagens mentais que não o são realmente, pois um sonho pode compreender tanto lembranças quanto impressões atuais, sem que estas duas coisas sejam mais do que puras criações mentais do momento presente; estas criações, como todas as da imaginação, não passam, com todo o rigor, de combinações novas formadas a parir de elementos pré-existentes. Não falamos aqui, bem entendido, de lembranças da vigília que chegam freqüentemente, mais ou menos modificadas e deformadas, para se misturar ao sonho, pois a separação dos dois estados nunca é completa, ao menos quanto ao sonho habitual; esta parece ser maior quando o sonho é provocado pela sugestão, e é isto que explica o esquecimento total, ao menos em aparência, que se segue ao despertar do paciente. Entretanto, esta separação é sempre relativa, pois não se trata senão de partes diversas da mesma consciência individual; o que o mostra bem, é que uma sugestão feita durante o sonho hipnótico pode produzir seu efeito após o despertar do paciente, quando este parece não mais se lembrar. Se fôssemos aprofundar o exame dos fenômenos do sonho aqui, veríamos que todos os elementos que eles colocam em jogo participam também do estado hipnótico; estes dois casos não representam senão um mesmo estado do ser humano; a única diferença, é que, no estado hipnótico, a consciência do paciente se acha em comunicação com uma outra consciência individual, a do experimentador, e assim ela pode assimilar elementos que estão contidos nesta, como se eles constituíssem seus próprios prolongamentos. É por isso que o experimentador pode fornecer ao paciente alguns dos dados que ele utilizará em ser sonho, dados que podem ser imagens, representações de complexidade diversa, como acontece nas experiências mais comuns, e que podem também ser idéias e teorias, como a hipótese reencarnacionista, idéias que o paciente se apressará a traduzir igualmente em representações imaginativas; e isto sem que o experimentador tenha necessidade de formular verbalmente estas sugestões, e mesmo sem que ele tenha a menor intenção disso. Assim portanto, é um sonho provocado, estado em tudo semelhante àqueles em que se provoca no paciente, por sugestões apropriadas, percepções total ou parcialmente imaginárias, mas com a única diferença que, aqui, o experimentador é vítima de sua própria sugestão e toma as criações mentais do paciente como “despertar de lembranças”, e mesmo como um retorno real ao passado – é a isto que se reduz a pretensa “exploração das vidas sucessivas”, única “prova experimental” propriamente dita que os reencarnacionistas tem para apoiar a sua teoria.

O “Instituto de pesquisas psíquicas” tinha como anexo uma “clínica neurológica e pedagógica”, onde se tentava aplicar a sugestão à “psicoterapia”, e servir-se dela para curar principalmente os alcoólatras e os maníacos, ou para desenvolver a mentalidade de certos retardados. As tentativas deste gênero não deixam de ser muito louváveis, e, quaisquer que sejam os resultados obtidos, nada se pode dizer em contrário, ao menos quanto às intenções que as inspiram; é verdade que estas práticas, mesmo no terreno estritamente médico, são muitas vezes mais nocivas do que úteis, e que as pessoas que as empregam às vezes não sabem aonde vão; mas enfim, as coisas deviam ficar por aí, e em todo caso, se os psiquistas querem ser levados a sério, deveriam parar de empregar a sugestão a fantasmagorias como as que mencionamos. Mas eles ainda vem nos gabar “a clareza e a evidência do espiritismo” em contraste com a “obscuridade da metafísica”, que eles aliás confundem com a simples filosofia (15); singular evidência, nem que seja apenas do absurdo! Alguns chegam mesmo a reclamar das “experiências metafísicas”, sem se dar conta que a junção destas duas palavras constitui um contra-senso puro e simples; suas concepções são de tal modo limitadas ao mundo dos fenômenos, que tudo o que está além da experiência não existe para eles. Certamente, isso tudo não deve nos espantar, pois é evidente que espíritas e psiquistas de diferentes categorias ignoram profundamente o que é a verdadeira metafísica, de cuja existência sequer suspeitam; mas gostamos de constatar, toda vez, como suas tendências são as mesmas que caracterizam o espírito ocidental moderno, voltado exclusivamente para o exterior, por um monstruoso desvio que não tem paralelo em parte alguma. Os “neo-espiritualistas” gostam de discutir com os “positivistas” e com os sábios “oficiais”, mas sua mentalidade no fundo é a mesma, e as “conversões’ de alguns sábios ao espiritismo não implica para eles mudanças tão profundas como se imagina, ou ao menos só implicam uma: é que seu espírito, permanecendo ainda e sempre estreitamente limitado, perdeu, ao menos sob certo aspecto, o equilíbrio relativo em que vinha se mantendo até então. Pode-se ser um “sábio de primeira ordem” muito mais incontestável do que o coronel de Rochas, a quem não negamos um certo mérito, pode-se ser mesmo um “homem de gênio”, segundo as idéias correntes no mundo “profano” (16), sem que se esteja ao abrigo de tais acidentes; tudo isso, mais uma vez, só prova que um sábio ou um filósofo, qualquer que seja seu valor enquanto tal, e qualquer que seja seu domínio específico, nem por isso é, fora deste domínio, muito melhor do que a massa do público ignorante e crédulo que fornece a maior parte da clientela espírita e ocultista.


  
NOTAS


1.      La Réincarnation, pgs. 11-12.
2.      Allan Kardec, Le Livre des Esprits, pg. 101; Léon Denis, Après la mort, pg. 166; Christianisme et Spiritisme, pg. 296; Gabriel Delanne, L’Evolution animique, pg. 282, etc.
3.      La Réincarnation, pgs. 136-137.
4.      Après la mort, pg. 180.
5.      Des Indes à la planète Mars.
6.      Em 1914, o coronel de Rochas aceitou, assim como Camille Flammarion, o título de membro de honra da “Association des Etudes spirites” (doutrina Allan Kardec), fundada por M. Pulvis (Argol), com Léon Denis e Gabriel Delanne como presidentes de honra (Revue Spirite, março de 1914, pg. 140).
7.      Le Vies sucessives.
8.      Lembramos de memória as “investigações no passado” às quais se dedicam os “clarividentes” da Sociedade Teosófica; este caso é análogo ao outro, salvo em que a sugestão hipnótica aí é substituída pela auto-sugestão.
9.      Le Monde Psychique, janeiro de 1912.
10.  Le Monde Psychique, janeiro de 1912.
11.  Les Mondes, dezembro de 1875.
12.  “Sobre estas massas” talvez fosse mais compreensível.
13.  Lumen.
14.  Le Monde Psychique, janeiro de 1912.
15.  Isto se encontra num artigo assinado por J. Rapicault, que também está no Monde Psychique de janeiro de 1912, e que se caracteriza pelas tendências propagandísticas dos espíritas: a “simplicidade”, ou seja a mediocridade intelectual, é abertamente colocada como uma superioridade; voltaremos a isso adiante.
Rapicault chega um pouco longe talvez, ao afirmar que “muitos dos grandes gênios foram fervorosos adeptos do espiritismo”; já é muito que exista algum, mas não se deve dar muita importância a isso, porque aquilo que se convencionou denominar “gênio” é algo bastante relativo, e que vale incomparavelmente menos do que a menor parcela de verdadeiro conhecimento.

Nenhum comentário:

Postar um comentário