quarta-feira, 21 de outubro de 2015

René Guénon - O Erro Espírita - Parte 1

RENÉ GUÉNON

O ERRO ESPÍRITA



APRESENTAÇÃO


O original desta obra, com o mesmo título de L’Erreur Spirite, surgiu no ano de 1923, sendo o terceiro livro lançado por René Guénon. Apesar da distância no tempo, o tema é de grande atualidade, pois aquilo que o autor denuncia neste livro continua na ordem do dia, tendo mesmo aumentado, e muito, nos oitenta anos passados desde então. Particularmente no Brasil, onde, segundo estatísticas, existem cerca de dois milhões de espíritas declarados, além de um número possivelmente bem maior de simpatizantes, as teorias espíritas ganharam muito terreno, mesclando-se por outro lado com todo o leque de doutrinas “neo-espiritualistas” cuja invasão parece não ter fim. Assim, ouvimos falar em reencarnação a todo momento, e não é preciso ser espírita para tanto; mesmo pessoas que se dizem católicas dão como certa esta teoria, sem perceberem a flagrante contradição com tudo o que a própria Igreja ensina; isso, para não falar naqueles em quem a religião foi substituída por um vago sentimento de religiosidade, disposto a acolher qualquer idéia que tenha a aparência de “espiritualidade”, seja lá o que se entenda por isto.

Os fatos e os autores mencionados em L‘Erreur Spirite podem parecer desatualizados, mas o kardecismo, que data ainda do século XIX, é ensinado nos meios espíritas como uma verdade inconteste e atemporal; o famoso médium Francisco Cândido Xavier, recentemente falecido, confidenciou antes de morrer ser ele próprio a reencarnação de Allan Kardec. Ademais, os fenômenos relatados continuam a ser cultivados nas sessões espíritas, e os perigos que les representam estão mais presentes do que nunca.
Nossa tradução pretende, assim, ser uma contribuição à difusão da obra guenoniana, e servir de amparo àqueles que intentam reagir às idéias espíritas, mas acham-se desarmados de argumentos verdadeiramente sólidos para opor eficazmente, nem que seja em seu foro interno. Pedimos desculpas pelas falhas do texto, e por não estarmos habituados ao jargão espírita, o que pode causar estranheza em alguns dos termos empregados. Não pretendemos polemizar com ninguém, mesmo porque, no campo dos argumentos de ordem sentimental e empírica que são normalmente utilizados na defesa das bandeiras espíritas, nenhum diálogo sério é realmente possível. Deixemos, portanto, René Guénon conduzir a discussão, que será sem dúvida muito mais proveitosa em sua pena, do que na nossa.

  

INTRODUÇÃO


Ao abordar a questão do espiritismo, devemos dizer antes de mais nada, tão claramente quanto possível, com que espírito queremos tratá-la. Muitas obras já foram consagradas a esta questão, e, nos últimos tempos, tem sido mais numerosas do que nunca; entretanto, não pensamos que já se tenha dito tudo o que havia sobre o assunto, nem que o presente trabalho vá repetir algum outro. Não nos propomos, aliás, a fazer uma exposição completa do objeto sob todos os seus aspectos, o que nos obrigaria e reproduzir muitas coisas que se pode encontrar mais facilmente em outras obras, o que seria assim uma tarefa tão grande quanto inútil. Preferimos nos limitar aos pontos que até aqui foram insuficientemente tratados; assim, começaremos por dissipar as confusões e os enganos que constatamos tantas vezes nesta ordem de idéias, e em seguida mostraremos os erros que formam o fundo da doutrina espírita, se é que se pode chamar aquilo de doutrina.

Achamos que seria difícil e pouco interessante tratar a questão, em seu conjunto, do ponto de vista histórico; de fato, pode-se fazer a história de uma seita bem definida, que forme um todo claramente organizado, ou que possua ao menos uma certa coesão; mas não é assim que o espiritismo se apresenta. É preciso salientar que os espíritas foram, desde a origem, divididos em muitas escolas, que por sua vez se multiplicaram, e que eles constituíram inumeráveis agrupamentos independentes e às vezes rivais entre si; ainda que fosse possível escrever a lista completa de todas estas escolas e de todos estes agrupamentos, a fastidiosa monotonia de uma tal enumeração não seria compensada pelo proveito que se pudesse tirar dela. E é preciso ainda acrescentar que, para declarar-se espírita, não é indispensável pertencer a uma associação qualquer: basta admitir certas teorias, que se fazem acompanhar em geral das práticas correspondentes; muitas pessoas podem praticar o espiritismo isoladamente, ou em pequenos grupos, sem se ligar a nenhuma organização, e este é um elemento com o qual o historiador não consegue lidar. Nisto, o espiritismo se comporta ao contrário do teosofismo e da maior parte das escolas ocultistas; este ponto está longe de ser o mais importante dentre todos os que o distinguem destes, mas ele é a conseqüência de outras diferenças menos exteriores, sobre as quais teremos ainda ocasião de nos explicar. Isto basta para compreender porque só introduziremos considerações históricas quando elas permitirem esclarecer nossa exposição, sem no entanto dedicar-lhes uma parte especial.

Um outro ponto que não pretendemos tratar de maneira completa é o exame dos fenômenos que os espíritas evocam para apoiar suas teorias, e que outros, mesmo admitindo igualmente sua realidade, interpretam de forma completamente diferente. Diremos apenas o bastante para indicar o que pensamos a respeito, mas as descrições mais ou menos detalhadas destes fenômenos já foram tão debatidas pelos experimentadores que seria supérfluo voltar a elas; de resto, não é isto o que nos interessa mais, e preferimos, a propósito, assinalar a possibilidade de certas explicações que estes experimentadores, espíritas ou não, nem sequer suspeitam. Sem dúvida, é preciso lembrar que, no espiritismo, as teorias nunca são separadas da experimentação, e não o faremos aqui; mas o que sustentamos, é que os fenômenos só fornecem uma base puramente ilusória às teorias espíritas, e que, sem estas últimas, não se tratará mais de espiritismo. De resto, isto não nos impedirá de reconhecer que, fosse o espiritismo puramente teórico, ele seria muito menos perigoso e atrairia muito menos gente; e se insistimos sobre este perigo, é porque ele constitui o motivo mais premente que nos levou a escrever este livro.

Já dissemos antes o quanto é nefasta, em nossa opinião, a expansão destas muitas teorias que surgiram de um século para cá, e que podemos designar, de modo geral, pelo nome de “neo-espiritualismo”. Certamente existem, em nossa época, muitas outras “contra-verdades” que se deve combater igualmente; mas aquelas tem um caráter especial, que as tornam mais daninhas, e em todo caso de outra maneira, do que as que se apresentam sob uma forma simplesmente filosófica ou científica. Tudo isto, com efeito, representa mais ou menos a “pseudo-religião”; esta expressão, que aplicamos ao teosofismo, podemos também aplicar ao espiritismo; embora este último manifeste freqüentemente pretensões científicas em razão do lado experimental onde ele quer encontrar, não apenas a base, mas a própria fonte de sua doutrina, ele não passa de um desvio do espírito religioso, conforme a esta mentalidade “científica” da maior parte dos nossos contemporâneos. Ademais, dentre todas as teorias “neo-espiritualistas, o espiritismo é certamente a mais difundida e a mais popular, o que é fácil de compreender, pois ele é a forma mais “simplista”, diríamos mesmo a mais grosseira: ele está ao alcance de todas as inteligências, por medíocres que sejam, e os fenômenos sobre os quais se apóia, ou ao menos os mais comuns dentre estes, podem também ser facilmente obtidos por qualquer um. É portanto o espiritismo que faz o maior número de vítimas, e suas investidas cresceram nos últimos anos, chegando a proporções inauditas, devido à confusão que os eventos recentes lançaram sobre os espíritos. Quando falamos aqui de investidas e de vítimas, não se trata de simples metáforas: todas as coisas deste gênero, e o espiritismo mais do que todas, tem por resultado desequilibrar e prejudicar irremediavelmente uma multidão de infelizes que, se não o tivessem encontrado em seus caminhos, teriam seguido vivendo uma vida normal. Está aí um perigo que não se deve negligenciar, e que, sobretudo nas atuais circunstâncias, é necessário e oportuno denunciar com insistência; e estas considerações vem para nós, reforçar a preocupação, de ordem mais geral, de salvaguardar os direitos da verdade contra todas as formas de erro.

Devemos acrescentar que nossa intenção não é de nos limitarmos a uma crítica puramente negativa: é preciso que a crítica, justificada pelas razões que expusemos, seja a oportunidade para expor ao mesmo tempo certas verdades. Mesmo que, sobre muitos pontos, tivermos que nos restringir a indicações sumárias para permanecermos dentro dos limites que nos impusemos, achamos que será possível com isto entrever muitas questões ignoradas, susceptíveis de abrir novas linhas de pesquisa para quem souber apreciar seu alcance. Devemos ademais prevenir que nosso ponto de vista é muito diferente, sob muitos aspectos, do de outros autores que falaram do espiritismo, para combatê-lo ou defendê-lo: nós nos inspiramos sempre nos dados da metafísica pura, tal como nos trazem as doutrinas orientais; achamos que só assim se pode refutar plenamente alguns erros, e não se colocando em seu próprio terreno. Sabemos bem também que, do ponto de vista filosófico, assim como do científico, pode-se discutir indefinidamente sem se avançar nada, e que prestar-se a essas controvérsias significa no mais das vezes fazer o jogo do adversário, por pouca habilidade que tenha este em desviar a discussão. Estamos persuadidos da necessidade de uma direção doutrinal da qual nunca nos devemos afastar, e que somente ela nos permite tocar em certos pontos impunemente; e, por outro lado, como não queremos fechar a porta a nenhuma possibilidade, e só nos levantarmos contra o que sabemos ser falso, esta direção, para nós, só pode ser de ordem metafísica, no sentido em que já a definimos antes. É claro que uma obra como esta não pode ser vista como propriamente de metafísica em todas as suas partes; mas não duvidamos em afirmar que há, em sua inspiração, mais de metafísica verdadeira do que em tudo a que os filósofos modernos dão este nome. E que ninguém se espante com esta declaração: a metafísica verdadeira a que aludimos não tem nada em comum com as sutilezas da filosofia, nem com as confusões que esta cria e entretém, e ademais, o presente estudo, em seu conjunto, não terá nada do rigor de uma exposição puramente doutrinal. O que queremos dizer, é que somos guiados por princípios que, para quem os compreende, são de uma certeza absoluta, e sem os quais se corre o risco de perder-se nos tenebrosos labirintos do “mundo inferior”, do que muitos exploradores temerários, malgrado seus títulos científicos e filosóficos, nos deram o triste exemplo.

Tudo isto não significa que desprezamos os esforços daqueles que se colocaram de pontos de vista diferentes do nosso; ao contrário, achamos que todos estes pontos de vista, na medida em que sejam legítimos e válidos, só podem harmonizar-se e se completar. Mas existem distinções a fazer e uma hierarquia a observar: um ponto de vista particular só vale dentro de um certo domínio, e é preciso verificar além de que ponto ele não é mais aplicável; é o que tantas vezes esquecem os especialistas das ciências experimentais. Por outro lado, os que se colocam do ponto de vista religioso tem a grande vantagem de uma direção doutrinal como a de que falamos, mas que, em razão da forma de que se reveste, não é universalmente aceitável, e que de resto chega para impedi-los de se perder, mas não consegue fornecer soluções adequadas a todas as questões. Seja como for, em presença dos eventos atuais, pensamos que nunca será demais opor um esforço a certas atividades nocivas, e que todo esforço neste sentido, desde que bem dirigido, terá sua utilidade, sendo talvez melhor que um outro para esclarecer tal ou tal ponto determinado; e, para falar uma linguagem que alguns compreenderão, diremos ainda que não haverá jamais luz suficiente para dissipar todas as emanações do “Satélite sombrio”.

 PRIMEIRA PARTE

 Distinções e precisões necessárias


I
DEFINIÇÃO DO ESPIRITISMO


Uma vez que nos propomos a, antes de mais nada, distinguir o espiritismo das diversas outras coisas que se confundem com ele, e que no entanto são bastante diferentes, é indispensável começar por defini-lo com precisão. À primeira vista, parece que se pode dizer: o espiritismo consiste essencialmente em admitir a possibilidade de comunicar com os mortos; é isto que o constitui propriamente,  sobre isto todas as escolas espíritas estão igualmente de acordo, quaisquer que sejam suas divergências teóricas sobre outros pontos mais ou menos importantes, que elas sempre vêem como secundários em relação a este. Mas isto não é o bastante: o postulado fundamental do espiritismo, é que a comunicação com os mortos é, não apenas uma possibilidade, mas um fato; se o admitimos puramente a título de possibilidade, não seremos espíritas por isso. É verdade que, neste último caso, ficamos impossibilitados de refutar de maneira absoluta a doutrina dos espíritas, o que já é grave; como mostraremos a seguir, a comunicação com os mortos, tal como a entendem eles, é um impossibilidade pura e simples, e somente assim pode-se cortar pela raiz suas pretensões de um modo completo e definitivo. Fora desta atitude, não poderia haver senão compromissos mais ou menos escusos, e quando se inicia a via das concessões e acomodações, é difícil saber aonde se vai parar. Temos a prova disto no que sucedeu com alguns, sobretudo teosofistas e ocultistas, que protestam energicamente – e com razão, aliás – se os tratamos de espíritas, mas que, por razões diversas, admitem que a comunicação com os mortos pode realmente ocorrer em casos mais ou menos raros e excepcionais. Reconhecer isto corresponde em suma a admitir aos espíritas a verdade de sua hipótese; mas estes não se contentam com pouco, e o que eles pretendem, é que esta comunicação se produz de maneira corrente de certa forma, em todas as suas sessões, e não apenas uma vez em cem ou em mil. Assim, para os espíritas, basta colocar-se sob certas condições para que se estabeleça a comunicação, que eles vêem, não como um fato extraordinário, mas como um fato normal e habitual; está aí uma precisão que devemos incluir na própria definição do espiritismo.

Existe ainda uma outra coisa: até aqui, falamos de comunicação com os mortos de modo bastante vago; mas agora, cabe apontar que, para os espíritas, esta comunicação se dá por meios materiais. Eis aí um elemento que é essencial para distinguir o espiritismo de certas outras concepções, nas quais se admitem apenas comunicações mentais, intuitivas, uma espécie de inspiração; os espíritas também o admitem, sem dúvida, mas não é a estas que eles atribuem maior importância. Discutiremos este ponto mais tarde, e podemos dizer que a verdadeira inspiração, que estamos longe de negar, tem na  realidade uma outra fonte bem diferente; mas estas concepções são certamente menos grosseiras do que as do espiritismo, e as objeções a que elas dão lugar são de ordem bem diversa. Aquilo que vemos como propriamente espírita, é a idéia que os “espíritos” agem sobre a matéria, que eles produzem fenômenos físicos, como deslocamento de objetos, pancadas e outros ruídos variáveis, e assim por diante; lembramos aqui apenas os exemplos mais simples e mais comuns, que são também os mais característicos. De resto, convém acrescentar que esta ação sobre a matéria supõe-se que seja exercida, não diretamente, mas por intermédio de um ser humano vivo, possuidor de certas faculdades especiais, e que, em razão deste papel de intermediário, é chamado de “médium”. É difícil definir exatamente a natureza do poder “mediúnico” ou “medianímico”, e as opiniões a respeito variam; parece que ele é visto mais comumente como sendo de ordem fisiológica, ou , se se preferir, psico-fisiológica. Lembremos desde já que a introdução deste intermediário não suprime as dificuldades: à primeira vista, não parece mais fácil a um “espírito” agir imediatamente sobre o organismo de um ser vivo do que sobre um corpo inanimado qualquer; mas aqui intervém algumas considerações mais complexas.

Os “espíritos”, apesar da denominação que lhes é dada, não são vistos como seres puramente imateriais; pretende-se ao contrário que eles sejam revestidos de uma espécie de invólucro, que, apesar de ser demasiado sutil para ser normalmente percebido pelos sentidos, nem por isso deixa de ser um organismo material, um verdadeiro corpo, que é designado pelo nome algo bárbaro de “perispírito”. Se é assim, podemos nos perguntar porque este organismo não permite aos “espíritos” agir sobre não importa que matéria, e porque lhes é necessário recorrer a um médium; isto, para falar a verdade, soa pouco lógico; ou por outro lado, se o “perispírito” é por si só incapaz  de agir sobre a matéria sensível, o mesmo deve ocorrer com o elemento correspondente que existe no médium ou em qualquer outro ser vivo, e então este elemento de nada servirá na produção dos fenômenos que se tenta explicar. Naturalmente, nós nos contentamos em assinalar de passagem estas dificuldades, que cabe aos espíritas solucionar; seria sem interesse seguir uma discussão sobre estes pontos particulares, porque existe mais a ser dito contra o espiritismo; e, para nós, não é deste modo que a questão deve ser colocada. Entretanto, achamos útil insistir um pouco sobre a maneira pela qual os espíritas encaram a constituição do ser humano, dizendo em seguida, para afastar qualquer equívoco, o que reprovamos nesta concepção.

Os Ocidentais modernos tem o hábito de conceber o composto humano sob uma forma tão simplificada e reduzida quanto possível, fazendo-o consistir em não mais do que dois elementos, dos quais um é o corpo e o outro, algo chamado indiferentemente de alma ou de espírito; dizemos os Ocidentais modernos porque, na verdade, esta doutrina dualista só se implantou definitivamente após Descartes. Não podemos aqui fazer a história, mesmo sucinta, desta questão; diremos apenas que, antes disso, a idéia que se fazia da alma e do corpo não comportava esta completa oposição de natureza que torna sua união verdadeiramente inexplicável, e também que haviam, mesmo no Ocidente, concepções menos “simplistas”, e mais próximas das concepções orientais, para quem o ser humano é um conjunto bastante mais complexo. Com mais razão ainda, estava-se longe de sonhar com este último degrau de simplificação que são as teorias materialistas, mais recentes ainda, segundo as quais o homem não é nem mais um composto, por se reduzir a um único elemento, o corpo. Dentre as concepções antigas a que aludimos, encontraremos muitas, sem nem precisar voltar à antigüidade e ficando só pela idade média, que viam no homem três elementos, distinguindo a alma do espírito; existe de resto uma certa flutuação no emprego destes dois termos, mas a alma é no mais das vezes o elemento médio, ao qual corresponde em parte àquilo que alguns modernos chamaram de “princípio vital”, e assim somente o espírito é o ser verdadeiro, permanente e imperecível. É esta concepção ternária que os ocultistas, ou ao menos a maior parte deles, quiseram renovar, introduzindo aí aliás toda uma terminologia especial; mas eles não compreenderam seu verdadeiro sentido, e retiraram-lhe todo alcance pela maneira fantasista como representaram os elementos do ser humano: assim, eles fizeram do elemento médio um corpo, o “corpo astral”, que se parece singularmente com o “perispírito” dos espíritas. Todas as teorias deste gênero tem o defeito de não passarem no fundo de formas de transposições das concepções materialistas; este “neo-espiritualismo” nos parece um materialismo expandido, e mesmo esta expansão tem bastante de ilusório. Aquilo no que essas teorias mais erram, e seria preciso descobrir a origem deste erro, é nas concepções “vitalistas”, que reduzem o elemento médio do composto humano apenas ao papel de “princípio vital”, e que ainda parecem fazê-lo apenas para explicar que o espírito possa mover o corpo, problema insolúvel para a hipótese cartesiana. O vitalismo, por colocar mal a questão, e porque, sendo uma hipótese de fisiologistas, coloca-se de um ponto de vista muito particular, dá lugar a uma objeção das mais simples: ou se admite, como Descartes, que a natureza do espírito e a do corpo não tem o menor ponto de contato, e então não é possível que entre eles haja algum intermediário ou meio termo; ou se admite ao contrário, como os antigos, que eles tem uma certa afinidade de naturezas, e então este intermediário se torna inútil, pois esta afinidade basta para explicar que um possa agir sobre o outro. Esta objeção vale contra o vitalismo, e também contra as concepções “neo-espiritualistas”, na medida em que adotam este ponto de vista; mas, bem entendido, ela não vale contra concepções que encaram as coisas sob outros aspectos, muito anteriores ao dualismo cartesiano, e portanto totalmente estranhas às preocupações criadas por este, e que vêem o homem como um ser complexo para corresponder tão exatamente quanto possível à realidade, não para dar uma solução hipotética a um problema artificial. Pode-se, de resto, conforme o ponto de vista, estabelecer para o ser humano um número maior ou menor de divisões e subdivisões, sem que estas concepções deixem por isso de serem conciliáveis; o essencial é que não se corte este ser humano em duas metades que parecem não ter nenhuma relação entre si, e que não se tente depois reunir estas duas metades por um terceiro termo cuja natureza, nestas condições, não é nem mesmo concebível.

Podemos agora voltar à concepção espírita, que é ternária, porque ela distingue o espírito, o “perispírito” e o corpo; em um sentido, ela pode parecer superior às dos filósofos modernos, na medida em que ela admite um elemento a mais, mas esta superioridade é só aparente, pois o modo como este elemento é visto não corresponde à realidade. Voltaremos a isto mais adiante, mas existe um outro ponto para o qual, sem que possamos tratá-lo completamente agora, devemos desde já chamar a atenção: se a teoria espírita já é bastante inexata no que diz respeito à constituição do homem durante a vida, ela é inteiramente falsa quando se trata do estado deste homem após a morte. Tocamos aqui o fundo da questão, que queremos reservar para mais tarde; mas podemos, em duas palavras, dizer que o erro consiste sobretudo no seguinte: segundo o espiritismo, nada mudaria com a morte, senão pela desaparição do corpo, ou por sua separação dos dois outros elementos, que permanecem unidos um ao outro como antes; em outros termos, o morto só difere do vivo por ter um elemento a menos, que é o corpo. Compreende-se sem dificuldade que esta concepção seja necessária para que se possa admitir a comunicação entre os mortos e os vivos, e também que a permanência do “perispírito”, elemento  material, seja não menos necessária para que esta comunicação possa acontecer por meios igualmente materiais; existe, entre estes diversos pontos da teoria, um certo encadeamento; mas o que não se entende tão bem, é que a presença de um médium constitua, aos olhos dos espíritas, uma condição indispensável para a produção dos fenômenos. Não vemos porque, repetimos, admitida a hipótese espírita, um “espírito” agiria diferentemente por meio de um outro “perispírito” do que através do seu próprio; ou por outra, se a morte modifica o “perispírito” de modo a lhe tirar algumas possibilidades de ação, a comunicação parece ficar bem comprometida. Seja como for, os espíritas insistem tanto sobre o papel do médium e lhe atribuem tão grande importância, que podemos dizer sem exagero que eles fazem disto um dos pontos fundamentais de sua doutrina.

Não contestamos absolutamente a realidade das chamadas faculdades “mediúnicas”, e nossa crítica só se dirige à interpretação que lhes dão os espíritas; de resto, experimentadores que nada tem de espíritas não vêem inconveniente em empregar o termo “mediunidade”, simplesmente para se fazer compreender conformando-se com os hábitos estabelecidos, ainda que esta palavra já não tenha sua razão de ser primitiva; faremos também o mesmo. Por outro lado, quando dizemos não compreender bem o papel do médium, queremos dizer que é colocando-nos do ponto de vista dos espíritas que não o compreendemos, ao menos fora de certos casos determinados; sem dúvida, se um “espírito” quer cumprir certas ações particulares, se ele quer falar por exemplo, ele só poderá fazê-lo apoiando-se nos órgãos de um homem vivo; mas não é mais a mesma coisa quando o médium empresta ao “espírito” uma certa força mais ou menos difícil de definir, e à qual se deram denominações variadas: força nêurica, ódica, ectênica, e outras mais. Para escapar às objeções que levantamos precedentemente, é preciso admitir que esta força não faz parte integrante do “perispírito”, e que, só existindo no ser vivo, ela seja antes de natureza fisiológica; nada temos a contradizer, mas o “perispírito”, se é que há algum, deve servir-se desta força para agir sobre a matéria sensível, e então podemos nos perguntar qual é a sua utilidade, sem contar que a introdução deste novo elemento intermediário está longe de simplificar a questão. Enfim, parece que é preciso, ou distinguir essencialmente o “perispírito” e a força nêurica, ou negar pura e simplesmente o primeiro para conservar só a segunda, ou renunciar a qualquer explicação inteligível. Além disso, se a força nêurica basta para dar conta de tudo, o que concorda melhor do que qualquer outra suposição com a teoria mediúnica, a existência do “perispírito” aparece como uma hipótese gratuita; mas nenhum espírita aceitará esta conclusão, tanto mais que, na falta de qualquer outra consideração, ela já torna bem duvidosa a intervenção dos mortos nos fenômenos, que parece ser possível de ser explicada simplesmente por certas propriedades mais ou menos excepcionais do ser vivo. De resto, no dizer dos espíritas, estas propriedades não tem nada de anormal: elas existem em todos os seres humanos, ao menos em estado latente; o que é raro, é que elas atinjam um grau suficiente para produzir fenômenos evidentes, e os médiuns propriamente ditos são os indivíduos que se acham neste último caso, sejam suas faculdades desenvolvidas espontaneamente ou pelo efeito de um treinamento especial; mas mesma essa raridade é relativa.

Agora, há um último ponto sobre o qual julgamos útil insistir: quando se fala em “comunicação com os mortos”, emprega-se uma expressão cuja ambigüidade não é notada pela maioria das pessoas, espíritas ou não: se entramos realmente em comunicação com alguma coisa, que é exatamente a sua natureza? Para os espíritas, a resposta é extremamente simples: aquilo com o que se comunica, é o que eles chamam impropriamente de “espíritos” (dizemos impropriamente por causa da suposta presença do “perispírito”); um tal “espírito” é identicamente o mesmo indivíduo humano que viveu anteriormente sobre a terra, e, agora que ele está “desencarnado”, ou seja despojado de seu corpo visível e tangível, ele permaneceu exatamente tal como era durante a sua vida terrestre, ou melhor, tal como ele seria se esta vida tivesse continuado; é, numa palavra, o homem verdadeiro que “sobrevive” e que se manifesta nos fenômenos do espiritismo. Mas nós espantaríamos muito os espíritas, e sem dúvida também a maior parte dos seus adversários, dizendo que a própria simplicidade desta resposta nada tem de satisfatório; quanto àqueles que compreenderam o que dissemos sobre a constituição do ser humano e de sua complexidade, compreenderão também a correlação que existe entre as duas questões. A pretensão de comunicar com os mortos no sentido que dissemos é algo de muito novo, e é ela que dá ao espiritismo um caráter especificamente moderno; em outros casos, quando se falava em comunicar com os mortos, era de modo bem diferente que se entendia isto; sabemos que isto parece extraordinário para a maioria dos nossos contemporâneos, mas é assim. Explicaremos esta afirmação a seguir, mas quisemos formulá-la antes de avançar mais, primeiro porque, sem isto, a definição do espiritismo ficaria vaga e incompleta, ainda que nem todos se dessem conta, e também por ser sobretudo a ignorância desta questão que faz tomar-se o espiritismo por outra coisa que não a doutrina de invenção totalmente recente que ele é na realidade.


II
AS ORIGENS DO ESPIRITISMO


O espiritismo data exatamente de 1848; é importante fixar esta data, porque diversas particularidades das teorias espíritas refletem a mentalidade especial de sua época de origem, e porque é de preferência nos períodos conturbados, como foi aquele, que coisas deste gênero nascem e se desenvolvem, graças ao desequilíbrio dos espíritos. As circunstâncias que cercaram os inícios do espiritismo são bastante conhecidas e já foram relatadas muitas vezes; bastará a nós lembrá-las brevemente, apenas insistindo em alguns pontos que são particularmente instrutivos, e que são talvez os menos lembrados.

Sabemos que foi nos Estados Unidos da América que o espiritismo, como muitos outros movimentos análogos, teve seu ponto de partida; os primeiros fenômenos produziram-se em Dezembro de 1847 em Hydesville, estado de Nova Yorque, numa casa aonde acabara de se instalar a família Fox, que era de origem alemã e cujo nome primitivo era Voss. Se mencionamos esta origem alemã é porque, se quisermos um dia estabelecer completamente as causas reais do movimento espírita, não se deve esquecer de dirigir algumas pesquisas do lado da Alemanha; diremos porque logo mais. Parece também, aliás, que a família Fox não desempenhou, ao menos no começo, senão um papel involuntário, e que, mesmo na seqüência, seus membros foram apenas os instrumentos passivos de uma força qualquer, como o são todos os médiuns. Seja como for, os fenômenos em questão, que consistiam em ruídos diversos e em deslocamentos de objetos, não tinham em suma nada de inusitado; eles eram semelhantes aos que se observavam desde sempre nas chamadas “casas mal-assombradas”; o que houve de novo, foi o partido que se tirou disto ulteriormente. Ao fim de alguns meses, alguém teve a idéia de fazer ao misterioso fazedor de ruídos algumas questões que ele respondeu corretamente: para começar, só lhe foram perguntados números, que ele indicava por séries de golpes regulares; foi um Quaker chamado Isaac Post que lembrou de nomear as letras do alfabeto convidando o “espírito” a designar com um golpe aquelas que compunham as palavras que ele queria dizer, e que inventou assim o modo de comunicação que se chamou spiritual telegraph. O “espírito” declarou que ele era um certo Charles B. Rosna, que quando vivo fora ladrão, que foi assassinado nesta casa e enterrado no celeiro, aonde de fato foram encontrados os restos de uma ossada. Por outro lado, notou-se que os fenômenos se produziam sobretudo na presença das meninas Fox, e foi daí que resultou a descoberta da mediunidade; dentre os visitantes que acorriam em número cada vez maior, alguns acreditaram, com ou sem razão, serem dotados do mesmo poder. Desde então, o modern spiritualism, como foi chamado inicialmente, estava fundado; sua primeira denominação foi em suma a mais exata, mas, sem dúvida para abreviar, chegou-se, nos países anglo-saxões, ao emprego mais freqüente de spiritualism sem epíteto; quanto ao nome “espiritismo”, ele foi inventado na França um pouco mais tarde.

Logo constituíram-se reuniões ou spiritual circles, em que novos médiuns revelaram-se em grande número; segundo as “comunicações” ou “mensagens” recebidas, este movimento espírita, tendo por objetivo o estabelecimento de relações regulares entre os habitantes dos dois mundos, havia sido preparado por “espíritos” científicos e filosóficos que, durante sua existência terrestre, haviam se ocupado particularmente de pesquisas sobre a eletricidade e sobre diversos outros fluídos imponderáveis. À frente destes “espíritos” achava-se Benjamin Franklin, a quem se atribuía haver dado muitas indicações sobre a maneira de desenvolver e aperfeiçoar as vias de comunicação entre os vivos e os mortos. Desde os primeiros tempos, de fato, esforçou-se em encontrar, com a ajuda dos “espíritos”, meios mais cômodos e rápidos: daí as tábuas giratórias e tamborilantes , depois os quadros alfabéticos, os lápis amarrados a cestos ou a pranchetas móveis, e outros instrumentos análogos. O emprego do nome de Benjamin Franklin, além de ser natural num ambiente norte-americano, é bem característico de algumas tendências que viriam a se afirmar no espiritismo; ele próprio estava de graça nesta história, mas os aderentes do novo movimento não poderiam fazer melhor do que se colocar sob o patronímico deste “moralista” da mais inacreditável ingenuidade. E, a este respeito, convém fazer uma outra reflexão: os espíritas conservaram alguma coisa de certas teorias que tiveram curso pelo do fim do século XVIII, época em que havia a mania de se falar em “fluídos” a propósito de tudo; a hipótese do “fluído elétrico”, hoje abandonada, serviu de modelo para muitas outras concepções, e o “fluído” dos espíritas parece-se tanto com o dos magnetizadores, que o mesmerismo, por afastado que esteja do espiritismo, pode ser visto como um de seus precursores e como tendo contribuído numa certa medida para preparar a sua aparição.

A família Fox, que a esta altura considerava-se especialmente encarregada da missão de espalhar o conhecimento dos fenômenos “espiritualistas”, foi expulsa da Igreja episcopal metodista a que pertencia. Na seqüência, ela foi se estabelecer em Rochester, aonde os fenômenos continuaram, e onde logo ganharam a hostilidade da maior parte da população; houve mesmo um verdadeiro tumulto, em que os Fox quase foram massacrados, devendo sua salvação à intervenção de um Quaker chamado George Willets. É a segunda vez que vemos um Quaker desempenhar um papel nessa história, e isto se explica sem dúvida pelas afinidades que esta seita apresenta incontestavelmente com o espiritismo: não fazemos apenas alusão às tendências “humanitárias”, mas também à estranha “inspiração” que se manifesta nas assembléias dos Quakers, e que se anuncia pelo tremor ao qual eles devem seu nome; existe aí qualquer coisa que lembra singularmente certos fenômenos mediúnicos, embora a interpretação seja naturalmente diferente. Em todo caso, entende-se que a existência de uma seita como a dos Quakers possa ter contribuído para facilitar a aceitação das primeiras manifestações “espiritualistas” (1); talvez tenha ocorrido uma relação semelhante, no século XVIII, entre as façanhas dos convulsionários jansenistas e o sucesso do “magnetismo animal” (2).

O essencial do que antecede foi emprestado do relato de um autor norte-americano, relato que todos os demais contentaram-se em reproduzir mais ou menos fielmente; ora, é curioso que este autor, que se tornou o historiador dos inícios do modern spiritualism (3) seja Emma Hardinge-Britten, que era membro da sociedade secreta designada pelas letras “H.B. of L.” (Hermetic Brotherood of Luxor), de que já falamos a propósito das origens da Sociedade Teosófica. Dizemos que este fato é curioso, porque a H.B. of L., apesar de ser claramente oposta às teorias do espiritismo, parece ter estado envolvida de modo bastante direto nas origens deste movimento. De fato, segundo os ensinamentos da H.B. of L., os primeiros fenômenos espíritas foram provocados, não pelos “espíritos” dos mortos, mas por homens vivos agindo à distância, por meios conhecidos somente por alguns poucos iniciados; e estes iniciados seriam, precisamente, os membros do “círculo interior” da H.B. of L. Infelizmente, é difícil chegar, na história desta associação, antes de 1870, ou seja o mesmo ano em que Hardinge-Britten publica o livro de que falamos (e no qual não há nenhuma menção àquilo que mencionamos por último); deste modo, alguns afirmaram que, apesar de suas pretensões a uma grande antigüidade, ela dataria, realmente, da mesma época. Mas, se isto é verdade, é apenas em relação à forma com que a H.B. of L. revestiu-se por último; em todo caso, ela recolheu a herança de diversas outras organizações, as quais existiam certamente antes da metade do século XIX, como a “Fraternidade de Eulis”, que era dirigida, ao menos exteriormente, por Paschal Beverly Randolph, personagem bastante enigmático falecido em 1875. No fundo, pouco importam o nome ou a forma da organização que teria realmente entrado nos eventos que lembramos; e devemos dizer que a tese da H.B. of L., em si mesma e independentemente destas contingências, nos parece no mínimo muito plausível; tentaremos explicar as razões.

De fato, não nos parece importuno formular aqui algumas observações gerais sobre as “casas mal-assombradas” ou sobre aquilo que alguns chamam de “lugares fatídicos”; fatos deste gênero estão longe de ser raros, e são conhecidos de longa data; encontramos exemplos disso na antigüidade, tanto quanto na idade média e nos tempos modernos, como prova o que é reportado numa carta de Plínio o Moço. Ora, os fenômenos que se produzem nesses casos apresentam algumas constantes: eles podem ser mais ou menos intensos, mais ou menos complexos, mas eles possuem certos traços característicos que se encontram sempre e em toda parte; de resto, os fatos de Hydesville não devem ser contados entre os mais significativos, pois lá só se constataram os mais elementares destes fenômenos. Convém distinguir ao menos dois casos principais: no primeiro, que seria o de Hydesville se a história é exata, trata-se de um lugar em que alguém sofreu uma morte violenta, e onde, além disso, o corpo da vítima permaneceu escondido. Se indicamos a reunião destas duas condições, é porque, para os antigos, a produção dos fenômenos estava ligada ao fato da vítima não ter recebido uma sepultura regular, acompanhada de certos ritos, e apenas cumprindo-se estes ritos após a descoberta do corpo se poderia fazê-los cessar; é o que vemos na carta de Plínio o Moço, e há aí alguma coisa que merece a atenção. A este propósito, seria importante determinar exatamente o que seriam os “manes” para os antigos, e o que estes entendiam por diversos outros termos que não eram sinônimos, embora modernamente não se os diferencie mais; pesquisas nesta direção poderiam esclarecer em muito a questão das invocações, sobre que voltaremos mais adiante. No segundo caso, não se trata mais das manifestações de um morto, ou antes, para permanecermos na indefinição que convém manter até segunda ordem, de alguma coisa que provém de um morto, e que é captada sob a ação de um homem vivo; existem, nos tempos modernos, alguns exemplos típicos, que foram cuidadosamente constatados em todos os seus detalhes, e aquele que é mais citado, e que se tornou uma espécie de clássico, constitui-se dos fatos que se produziram com o presbítero de Cideville, na Normandia, de 1849 a 1851, ou seja na ocasião dos acontecimentos de Hydesville, mas quando estes eram ainda desconhecidos na França (4). Trata-se de fatos de “feitiçaria” bem caracterizados, que em nada devem interessar aos espíritas, salvo por parecerem fornecer uma confirmação à teoria da mediunidade entendida num sentido amplo: é preciso que o feiticeiro que quer vingar-se dos habitantes de uma casa chegue a influenciar um deles, que se tornará a partir de então seu instrumento inconsciente e involuntário, e que servirá por assim dizer de “suporte” para uma ação que poderá inclusive ser exercida à distância, mas apenas quando este sujeito “passivo” estiver presente. Não se trata de um médium no sentido em que entendem os espíritas, pois a ação da qual ele é o meio não  tem a mesma origem, mas é algo análogo, e podemos supor, sem maiores precisões, que a mesma ordem de forças seja posta em jogo nos dois casos; é o que pretendem os ocultistas contemporâneos que estudaram estes casos, e que, é preciso lembrar, foram todos mais ou menos influenciados pela teoria espírita. Com efeito, depois do surgimento do espiritismo, cada vez que uma casa mal-assombrada é encontrada em qualquer lugar, começa-se, em virtude de uma idéia pré-concebida, por procurar-se o médium e, com um pouco de boa vontade, termina-se sempre por encontrar um ou mesmo vários; não dizemos que isto esteja sempre errado, mas existem muitos exemplos de lugares inteiramente desertos, de casas abandonadas, onde fenômenos de assombração se produzem na ausência de qualquer ser humano, e onde não se pode pretender que testemunhas acidentais, que muitas vezes só os observaram de longe, tenham desempenhado o papel de médiuns. É pouco verossímil que as leis segundo as quais agem certas forças, quaisquer que sejam elas, tenham mudado; afirmaremos, portanto, contra os ocultistas, que a presença de um médium não seja sempre uma condição necessária, e que é preciso, aqui como sempre, defender-se dos pré-julgamentos que podem falsificar o resultado de uma observação. Acrescentaremos que a assombração sem médium pertence ao primeiro dos dois casos que distinguimos: um feiticeiro não teria nenhuma razão para ligar-se a um lugar inabitado, e de resto pode ser que ele tenha necessidade, para agir, de condições que não são requeridas para os fenômenos que se produzem espontaneamente, mesmo quando estes fenômenos apresentem aparência similar. No primeiro caso, que é a verdadeira assombração, a produção dos fenômenos está ligada ao próprio local que foi palco de um crime ou de um acidente, e onde certas forças foram condensadas de maneira permanente; é portanto sobre o lugar que os observadores deveriam sempre colocar a atenção; agora, que a ação das forças em questão seja às vezes intensificada pela presença de pessoas dotadas de certas propriedades, isto nada tem de impossível, e é talvez assim que as coisas tenham se passado em Hydesville, admitindo sempre que os fatos tenham sido reportados corretamente, do que não temos motivo para duvidar.

No caso que parece ser explicado por “alguma coisa” que não definimos, e que provém de um morto, mas que certamente não é seu espírito, se por espírito entendemos a parte superior do ser, deve esta explicação excluir toda possibilidade de intervenção de homens vivos? Não o cremos, e não vemos porque uma força pré-existente não poderia ser dirigida e utilizada por certos homens que conhecessem suas leis; ao contrário, isto parece mais fácil do que agir aonde nenhuma força tenha existido anteriormente, o que entretanto qualquer feiticeiro é capaz de fazer. Naturalmente, podemos supor que “adeptos” (para usar um termo rosa-cruz cujo emprego é cada vez mais usual), ou iniciados de alto grau, tenham meios de ação superiores aos dos feiticeiros, e aliás bem diferentes, assim como os objetivos a que se propõem; a propósito, convém lembrar que existem iniciados de diferentes tipos, mas no momento vamos tratar as coisas de forma bem genérica. No estranho discurso pronunciado em 1898 diante de uma assembléia de espíritas, e que citamos longamente em nossa história do teosofismo (5), Annie Besant pretendeu que os “adeptos” que teriam provocado o movimento tivessem se servido das “almas dos mortos”; como ela se propunha a tentar uma aproximação com os espíritas, ela tomou, com maior ou menor sinceridade, esta expressão de “almas dos mortos” no sentido em que eles a entendem; mas nós, que não temos problemas “políticos”, achamos que ela deve ser entendida de outro modo, como designando aquela “alguma coisa” de que falamos. Parece que esta interpretação concorda melhor do que a outra com a tese da H.B. of L.; certamente, não é isto o mais importante, mas esta constatação nos faz pensar que os seus membros, ou ao menos seus dirigentes, sabiam bem do que falavam; em todo caso, sabiam muito mais do que Annie Besant, cuja tese, apesar da correção que ela fez, não era melhor aceita pelos espíritas. Achamos, aliás, que é um exagero, dentro das circunstâncias, fazer intervir “adeptos” no sentido estrito do termo; mas repetimos que é possível que iniciados, quaisquer que fossem, tenham provocado os fenômenos de Hydesville, servindo-se de condições favoráveis que ali encontraram, ou que eles tenham ao menos imprimido uma certa direção a estes fenômenos depois que estes haviam começado a se produzir. Não afirmamos nada a respeito, apenas dizemos que a coisa é possível, pensem alguns o que quiserem; acrescentaremos ainda que existe mais uma hipótese que parece mais simples, o que não quer dizer que seja mais verdadeira: é que os agentes da organização em questão, seja a H.B. of L. ou outra, tenham aproveitado a ocasião que se passava para criar o movimento “espiritualista”, agindo por uma espécie de sugestão sobre os habitantes e os visitantes de Hydesville. Esta última hipótese representa um mínimo de intervenção, e devemos aceitar pelo menos este mínimo, pois, sem isto, não haveria nenhuma razão plausível para que os fatos de Hydesville tenham tido conseqüências que não tiveram fatos análogos ocorridos anteriormente; se um tal fato fosse, por si só, condição suficiente para o nascimento do espiritismo, este teria certamente aparecido desde uma época muito mais recuada. De resto, não acreditamos em movimentos espontâneos, seja na ordem política, seja na religiosa, ou neste domínio bastante mal definido de que nos ocupamos agora; é preciso sempre um impulso, ainda que as pessoas que se tornam em seguida os chefes aparentes do movimento possam ignorar sua proveniência tanto quanto os outros; mas é bem difícil dizer como as coisas possam ter se passado num caso como este, pois é evidente que este lado dos acontecimentos não se acha consignado em nenhum processo verbal, e é por isso que os historiadores que pretendem a todo custo apoiar-se apenas em documentos escritos não o levam em conta e preferem negá-lo pura e simplesmente, quando na verdade aí está o que há de mais essencial. Esta últimas reflexões tem, para nós, um alcance geral; ficaremos por aqui, para não nos lançarmos numa longa digressão, e voltaremos sem mais às origens do espiritismo.

Dissemos que houveram casos similares ao de Hydesville, e mais antigos; o mais parecido de todos foi o que se passou em 1762 em Dibbelsdorf, na Saxônia, onde o “espectro batedor” respondia exatamente do mesmo modo às perguntas que lhe eram feitas (5); se, portanto, não tivesse faltado alguma coisa, o espiritismo poderia muito bem ter nascido nesta circunstância, tanto mais que os eventos tiveram repercussão suficiente para chamar a atenção das autoridades e dos sábios da época. Por outro lado, alguns anos antes do início do espiritismo, o Dr. Kerner havia publicado um livro sobre o caso da “vidente de Prevorst”, Sra. Hauffe, em torno de quem se produziram numerosos fenômenos da mesma ordem; lembraremos que esse caso, como o precedente, teve lugar na Alemanha, e, embora tenha havido outros na França e algures, é uma das razões pelas quais notamos a origem alemã da família Fox. É interessante, a propósito, indicar outras aproximações: na segunda metade do século XVIII, alguns ramos da Maçonaria alemã ocuparam-se particularmente de invocações: a história mais conhecida nesse domínio é a de Schroepfer, que suicidou-se em 1774. Não se tratava de espiritismo então, mas de magia, o que extremamente diferente, como explicaremos a seguir; mas não é menos verdade que práticas desse gênero, se vulgarizadas, teriam podido deflagrar um movimento tal como o espiritismo, pelas falsas idéias que o grande público teria inevitavelmente formado a respeito. Existiram certamente também na Alemanha, após o início do século XIX, outras sociedades secretas que não tinham caráter maçônico, e que se ocupavam igualmente da magia e de evocações, ao mesmo tempo que de magnetismo; ora, a H.B. of L., ou aquilo de que ela foi sucessora, esteve precisamente em contato com algumas destas organizações. Sobre este último ponto, podemos encontrar indicações numa obra anônima intitulada Ghostland (6), que foi publicada sob os auspícios da H.B. of L., e que alguns atribuíram à Sra. Hardinge-Britten; de nossa parte, não cremos que ela tenha sido a autora, mas é ao menos provável que ela a tenha editado (7). Achamos que seria interessante dirigir algumas pesquisas para este lado, cujos resultados poderiam ser importantes para dissipar algumas obscuridades; se entretanto o movimento espírita não foi suscitado inicialmente na Alemanha, mas na América, é porque ele deveria encontrar aí um meio mais favorável que em qualquer outro lugar, como o prova aliás a prodigiosa eclosão de seitas e escolas “neo-espiritualistas” que   surgiu então, e que continua hoje com mais força ainda.

Resta-nos colocar aqui uma última questão: que objetivos teriam os inspiradores do modern spiritualism nos seus começos? Parece que o próprio nome dado ao movimento o diz de modo bastante claro: tratar-se-ia de lutar contra a invasão do materialismo, que nesta época atingia sua maior extensão, e ao qual se pretendia assim opor uma espécie de contrapeso; e, ao chamar a atenção para fenômenos para os quais o materialismo – ao menos o materialismo ordinário – era incapaz de fornecer uma explicação satisfatória, este seria combatido em seu próprio terreno (o que só faria sentido na época moderna, pois o materialismo propriamente dito é de origem recente, assim como o estado de espírito que atribui aos fenômenos e à sua observação uma importância quase exclusiva). Se a finalidade foi esta que definimos, referindo-nos aliás às afirmações da H.B. of L., é agora o momento de lembrar o que dissemos de passagem mais acima, que existem iniciados de tipos bem diferentes, e que podem se achar muitas vezes em oposição entre si; assim, dentre as sociedades secretas alemãs a que fizemos alusão, existem algumas que professam ao contrário teorias absolutamente materialistas, ainda que de um materialismo singularmente mais extenso que o da ciência oficial. Bem entendido, quando falamos de iniciados como agora, não tomamos esse termo na sua acepção mais elevada, mas queremos simplesmente designar com isto homens que possuem certos conhecimentos que não são de domínio público; é por isso que tivemos o cuidado de precisar que seria um erro supor que “adeptos” pudessem ter estado interessados, ao menos diretamente, na criação do movimento espírita. Esta ressalva permite explicar que existem contradições e oposições entre escolas diferentes; falamos somente de escolas que possuem conhecimentos reais e sérios, embora de ordem relativamente inferior, e que não lembram em nada as múltiplas formas do “neo-espiritualismo”; estas últimas seriam mais contrafações daquelas. Agora, uma outra questão de apresenta ainda: suscitar o espiritismo pata lutar contra o materialismo, equivale em suma a combater um erro com outro erro; porque então agir assim? É possível, a bem dizer, que o movimento tenha prontamente se desviado ao ampliar-se e popularizar-se, que ele tenha escapado ao controle de seus inspiradores, e que o espiritismo tenha tomado desde logo um caráter que não correspondia às suas intenções; quando se pretende fazer obras de vulgarização, deve-se esperar acidentes desse tipo, que são quase inevitáveis, pois existem coisas que não se coloca impunemente ao alcance de qualquer um, e esta vulgarização arrisca a ter conseqüências que é quase impossível prever; e, no caso presente, ainda que os promotores tivessem previsto estas conseqüências numa certa medida,  eles podem ter pensado, com ou sem razão, que seria este um mal menor em comparação com o que se tentava impedir. Não cremos, de nossa parte, que o espiritismo seja menos pernicioso de que o materialismo, ainda que seus perigos sejam diferentes; mas outros poderão julgar as coisas de outro modo, e estimar que a coexistência de dois erros opostos, limitando-se por assim dizer mutuamente, seja preferível à livre expansão de um destes erros. É possível mesmo que correntes de idéias, completamente divergentes, tenham tido uma origem análoga, e tenham sido destinadas a servir a uma espécie de jogo de equilíbrio que caracteriza uma política muito particular; nesta ordem de coisas, é um erro ater-se às aparências exteriores. Enfim, se uma ação pública de certo alcance só pode efetivar-se em detrimento da verdade, algumas pessoas aderem com facilidade, com muita facilidade mesmo; é conhecido o adágio: vulgus vult decipi, que às vezes se completa: ergo decipiatur; e este é mais um traço, mais freqüente do que se imagina, desta política a que fizemos alusão. Pode-se assim guardar a verdade para si e ao mesmo tempo espalhar erros que se sabe serem erros, mas que se julga oportunos; acrescentemos que pode aí haver ainda uma outra atitude, que consiste em dizer a verdade àqueles que são capazes de a compreender, sem se preocupar como os demais; estas atitudes contrárias podem ter ambas suas justificativas, segundo o caso, e é provável que apenas a primeira permita uma ação mais geral; mas este é um resultado pelo qual nem todos se interessam, e a segunda responde a preocupações de ordem mais puramente intelectual. Seja como for, nós não entramos no mérito da coisa, mas apenas exprimimos, a título de possibilidades, as conclusões a que conduzem certas deduções que não podemos expor inteiramente aqui; isto nos levaria muito longe, e o espiritismo só aparece aí como um incidente bastante secundário. De resto, não pretendemos absolutamente resolver todas as questões que levantamos aqui; mas podemos afirmar que, sobre o assunto que tratamos neste capítulo, dissemos certamente bem mais do que tudo o que foi escrito a respeito até agora.



NOTAS

1.      Por uma curiosa coincidência, o fundador da seita dos Quakers, no século XVII, chamava-se George Fox; pretendia-se que ele e alguns de seus discípulos imediatos tivessem o poder de curar os doentes.
2.      Para explicar o caso dos convulsionários, Allan Kardec faz intervir, ao invés do magnetismo, “espíritos de natureza pouco elevada” (O Livro dos Espíritos, pgs. 210-212).
3.      History of modern american spiritualism.
4.      Os fatos de Cideville foram reportados já em 1853 por Eudes de Mirville, que foi testemunha ocular, num livro intitulado Des esprits et de leurs manifestations fluidiques, onde se encontram indicações sobre muitos fatos análogos, e ao qual seguiram-se cinco volumes tratando do mesmo tipo de questões.
5.      Uma relação deste fato, conforme documentos de época, foi publicado na Revue Spirite de 1858.
6.      Esta obra foi traduzida para o francês, mal e parcialmente, sob o título: Au Pays des Esprits, que é equívoco e não dá o sentido real do título inglês.
7.      Outros acreditaram que o autor de Ghostland e de Art Magic fosse o mesmo de Light of Egypt, de Celestial Dynamics e de Language of the Stars (Sédir, Histoire des Rose-Croix, pg. 122); mas podemos afirmar que há aí um erro: o autor das três últimas obras, igualmente anônimas, foi T.H. Burgoyne, que foi secretário da H.B. of L.; as duas primeiras são muito anteriores.


III
INÍCIO DO ESPIRITISMO NA FRANÇA


A partir de 1850, o modern spiritualism espalha-se por toda parte nos Estados Unidos, graças a uma propaganda na qual, note-se, os jornais socialistas empenharam-se particularmente; e, em 1852, os “espiritualistas” fizeram em Cleveland seu primeiro congresso geral. É também em 1852 que a nova crença faz sua aparição na Europa: ela foi primeiro importada pela Inglaterra através de médiuns americanos; daí, no ano seguinte, ela chegou à Alemanha, e depois à França. Entretanto, não houve nestes países nada comparável à agitação causada na América, onde, sobretudo durante uma dezena de anos, fenômenos e teorias foram objeto de discussões violentas e apaixonadas.

Foi na França, como dissemos, que pela primeira vez empregou-se a denominação de “espiritismo”; e esta nova palavra serviu para designar alguma coisa que, ainda que baseando-se nos mesmos fenômenos, era efetivamente muito diferente, quanto às teorias, daquilo que havia sido até então o modern spiritualism dos americanos e ingleses. Já se observou muitas vezes, com efeito, que as teorias expostas nas “comunicações” ditadas pelos pretensos “espíritos” estão em geral relacionadas com as opiniões do meio em que são produzidas, e onde, naturalmente, elas são aceitas rapidamente; esta observação permite entender, ao menos em parte, sua origem real. Os ensinamentos dos “espíritos”, na França, estavam assim em desacordo sobre muitos pontos com o que se dizia nos países anglo-saxões, pontos que, mesmo não sendo daqueles que colocamos na definição geral do espiritismo, nem por isso tinham menos importância; o que fez a maior diferença foi a introdução da idéia de reencarnação, da qual os espíritas franceses fizeram um verdadeiro dogma, enquanto que os demais recusaram-se quase todos a admitir. Acrescentemos aliás que foi sobretudo na França que sentiu-se a necessidade, quase desde o começo, de juntar as “comunicações” obtidas, de modo a formar com elas um corpo de doutrina; é o que fez com que houvesse uma escola espírita francesa possuidora de uma certa unidade, ao menos na origem, pois esta unidade era evidentemente difícil de manter, e produziram-se logo diversas cisões que deram nascimento a outras tantas escolas novas.

O fundador da escola espírita francesa, ou ao menos aquele que seus aderentes concordam em ver como tal, foi Hippolyte Rivail: era um velho instrutor de Lyon, discípulo do pedagogo suíço Pestalozzi, que havia abandonado o ensino para ir a Paris, onde durante algum tempo dirigiu o teatro de Folie-Marigny. Sob o aconselhamento dos “espíritos”, Rivail tomou o nome celta de Allan Kardec, que se supunha tivesse sido o seu em uma existência anterior; é sob este nome que ele publicou as diversas obras que foram, para os espíritas franceses, o próprio fundamento de sua doutrina, e que assim permaneceram para a maior parte deles (1). Dissemos que Rivail publicou suas obras, mas não que ele as tivesse escrito sozinho; de fato, sua redação, e por conseguinte a fundação do espiritismo francês, foram na realidade obra de todo um grupo, do qual ele não era em suma mais do que o porta-voz. Os livros de Allan Kardec são uma espécie de obra coletiva, o produto de uma colaboração; e, com isto, entendemos outra coisa do que a colaboração dos “espíritos” proclamada por Allan Kardec, que declarou haver composto seus livros com a ajuda de “comunicações” que ele e outros teriam recebido, e que ele teria feito controlar, rever e corrigir por “espíritos superiores”. De fato, para os espíritas, como o homem muda muito pouco após a morte, não se pode confiar em tudo o que dizem os “espíritos”: existem alguns que podem nos enganar, seja por malícia, seja por simples ignorância, e é assim que se pretende explicar as “comunicações” contraditórias; podemos assim nos perguntar como os “espíritos superiores” podem ser distinguidos dos outros. Seja como for, existe uma opinião que é muito difundida, mesmo entre os espíritas, e que é inteiramente errônea: é aquela segundo a qual Allan Kardec teria escrito seus livros sob uma espécie de inspiração; a verdade é que ele jamais foi médium, sendo ao contrário um magnetizador (dizemos ao contrário porque essas duas qualidades parecem ser incompatíveis), e que foi através de seus “voluntários” que ele obtinha as “comunicações”.  Quanto aos “espíritos superiores” pelos quais estas teriam sido corrigidas e coordenadas, nem todos eram “desencarnados”; o próprio Rivail não foi estranho a esse trabalho, mas parece não ter tomado grande parte nele; achamos que a organização dos “documentos de além-túmulo”, como se dizia, deve ser atribuída sobretudo aos diversos membros do grupo que se formou ao redor dele. Mas é provável que a maior parte dentre estes, por razões diversas, tenham preferido que esta colaboração ficasse ignorada pelo grande público; e aliás, se se soubesse que havia ali escritores profissionais, isto poderia causar dúvidas sobre a autenticidade das “comunicações”, ou ao menos sobre a exatidão com que foram reproduzidas, embora seu estilo, de resto, estivesse longe de ser notável.

Achamos interessante reportar aqui, sobre Allan Kardec e o modo como foi composta sua doutrina, aquilo que foi escrito pelo famoso médium inglês Dunglas Home, que se mostrou muitas vezes mais sensato do que outros espíritas: “Eu classifico a doutrina de Allan Kardec dentre as ilusões deste mundo, e tenho boas razões para isso... Eu não coloco em dúvida absolutamente sua boa fé... Sua sinceridade projetava-se, nuvem magnética, sobre o espírito sensitivo daqueles que ele chamava seus médiuns. Os dedos destes confiavam ao papel as idéias que se impunham forçosamente a eles, e Allan Kardec recebia suas próprias doutrinas como mensagens enviadas do mundo dos espíritos. Se os ensinamentos fornecidos deste modo emanassem realmente de grandes inteligências que, segundo ele, eram seus autores, teriam eles tomado a forma com que os vemos? Onde então Jâmblico aprendeu tão bem o francês moderno? Teria Pitágoras podido esquecer completamente o grego, sua língua natal?... Eu jamais encontrei um único caso de clarividência magnética em que o voluntário não refletisse direta ou indiretamente as idéias do magnetizador. Isto é demonstrado de maneira contundente pelo próprio Allan Kardec. Sob o império da sua vontade enérgica, seus médiuns eram máquinas de escrever, que reproduziam servilmente seus próprios pensamentos. Se às vezes as doutrinas publicadas não estavam conformes aos seus desejos, ele as corrigia ao seu arbítrio. Sabemos que Allan Kardec não era médium. Ele não fazia senão magnetizar ou “psicologisar” (com o perdão do neologismo) pessoas mais impressionáveis do que ele” (2). Isto tudo é exato, salvo que a correção dos “ensinamentos” não deve ser atribuída apenas a Allan Kardec, mas ao seu grupo todo; e, ademais, o teor mesmo das “comunicações” poderia já ter sido influenciado por outras pessoas que assistiam às sessões, como explicaremos adiante.
Dentre os colaboradores de Allan Kardec que não eram simples “voluntários”, alguns eram dotados de faculdades mediúnicas diversas; havia um, em particular, que possuía um curioso talento como “médium desenhista”. Encontramos a respeito, num artigo que apareceu em 1859, dois anos antes da publicação do Livro dos Espíritos, uma passagem que acreditamos interessante reproduzir, dada a personalidade de quem se trata: “Alguns meses atrás, cerca de quinze pessoas pertencentes à sociedade polida e instruída, algumas até com certo renome na literatura, estavam reunidas num salão do bairro Saint-Germain para contemplar os desenhos a pena executados por um médium presente à sessão, mas inspirados e ditados por... Bernard Palissy. É como eu digo: o senhor S..., uma pena na mão, uma folha de papel em branco diante de si, mas sem idéia de nenhum tema de arte, havia evocado o famoso oleiro. Este chegara e havia imprimido a seus dedos a seqüência de movimentos necessários para executar sobre o papel desenhos de estranho gosto, de grande riqueza de ornamentação, de execução fina e delicada, dos quais um representa, se se quiser, a casa habitada por Mozart no planeta Júpiter! É preciso acrescentar, para prevenir toda estupefação, que Palissy casualmente é vizinho de Mozart neste lugar retirado, conforme ele indicou positivamente ao médium. Não é duvidoso, aliás, que esta casa seja de um grande músico, pois ela é toda decorada com claves e colcheias... Os outros desenhos representavam igualmente construções erguidas em diversos planetas; uma delas é do avô do senhor S... Este pensa em reunir tudo em um álbum; será literalmente um álbum do outro mundo...” (3). Este “senhor S...”, que, fora de suas singulares produções artísticas, foi um dos colaboradores mais constantes de Allan Kardec, não é outro que o célebre dramaturgo Victorien Sardou. Ao mesmo grupo pertencia um outro autor dramático, mais conhecido hoje em dia, Eugène Nus; mas este, em seguida, separou-se do espiritismo numa certa medida (4), e foi um dos primeiros aderentes franceses da Sociedade Teosófica. Mencionaremos ainda, tanto mais que ele é provavelmente um dos últimos sobreviventes da primeira organização intitulada “Société Parisienne d’Études Spirites”, Camille Flammarion; é verdade que ele só chegou mais tarde, e era muito jovem então; mas é difícil contestar que os espíritas o viam como um dos seus, pois, em 1869, ele pronunciou um discurso louvando Allan Kardec. Entretanto, Flammarion às vezes protestou dizendo não ser espírita, mas de modo um pouco embaraçado; suas obras não deixam de mostrar claramente suas tendências e suas simpatias; a falamos aqui de suas obras em geral, e não apenas daquelas que ele consagrou especialmente ao estudo dos fenômenos ditos “psíquicos”; estas últimas consistem sobretudo em coleções de observações, onde o autor, malgrado suas pretensões “científicas”, introduziu muitos elementos que não foram seriamente controlados. Acrescentemos que seu espiritismo, confesso ou não, não impediu Flammarion de ser nomeado membro honorário da Sociedade Teosófica quando esta foi introduzida na França (5).

Se existe nos meios espíritas um certo elemento “intelectual”, mesmo uma minoria, podemos nos perguntar como é possível que os livros espíritas, a começar pelos de Allan Kardec, sejam manifestamente de tão  baixo nível. Convém lembrar, a respeito, que toda obra coletiva reflete sobretudo a mentalidade dos elementos mais inferiores do grupo que a produziu; por estranho que pareça, esta é uma observação que é familiar a todos os que estudaram um pouco a “psicologia das massas”; e é sem dúvida esta uma das razões pelas quais as pretensas “revelações de além-túmulo” geralmente não passam de um tecido de banalidades, porque são efetivamente, na maior parte dos casos, uma obra coletiva, e, como elas são a base de todo o resto, esse caráter deve naturalmente se encontrar em todas as produções espíritas. Ademais, os “intelectuais” do espiritismo são sobretudo literatos; podemos notar aqui o exemplo de Victor Hugo, que, durante sua estada em Jersey, foi convertido ao espiritismo pela Sra. de Girardin (6); entre os literatos, o sentimento costuma predominar sobre a inteligência, e o espiritismo é acima de tudo uma coisa sentimental. Quanto aos sábios que, tendo abordado o estudo dos fenômenos sem idéias pré-concebidas, foram levados, de uma maneira mais ou menos distorcida e dissimulada, a adotar o ponto de vista dos espíritas (e não falamos de Flammarion, que é antes um vulgarizador, mas de sábios que gozam de uma reputação mais série e melhor estabelecida), teremos ocasião de voltar ao caso; mas podemos dizer desde já que, em razão de sua especialização, a competência desses sábios se acha limitada a um domínio restrito, e que, fora deste domínio, sua opinião vale tanto quanto a de qualquer um; e de resto a intelectualidade propriamente dita tem pouca relação com as qualidade requeridas para obter sucesso nas ciências experimentais, assim como os modernos as concebem e praticam.

Mas voltemos às origens do espiritismo francês: podemos verificar aí aquilo que afirmamos precedentemente, que as “comunicações” estão em harmonia com as opiniões do meio. Com efeito, o meio onde principalmente foram recrutados os primeiros aderentes da nova crença, foi o dos socialistas de 1848; sabemos que estes eram, na maior parte, “místicos” no pior sentido da palavra, ou , se se preferir, “pseudomísticos”; era portanto natural que eles aderissem ao espiritismo, antes mesmo que a doutrina tivesse sido elaborada, e, como eles participaram desta elaboração, eles encontraram aí em seguida não menos naturalmente suas próprias idéias, refletidas por estes verdadeiros “espelhos psíquicos” que são os médiuns. Rivail, que pertencia à Maçonaria, pode aí freqüentar muitos chefes de escolas socialistas, e provavelmente leu as obras daqueles que não conheceu pessoalmente; daí veio a maior parte das idéias que foram expressas por ele e seu grupo, e notadamente, como já dissemos, a idéia de reencarnação; já assinalamos, a respeito, a influência decisiva de Fourier e de Pierre Leroux (7). Alguns contemporâneos não deixaram de fazer esta relação, e dentre eles o Dr. Dechambre, no artigo que mencionamos mais acima; a propósito do modo como os espíritas vêem a hierarquia dos seres superiores, e após lembrar as idéias dos neo-platônicos (que estavam bem mais distantes disto do que ele crê), ele acrescenta o seguinte: “Os instrutores visíveis de Allan Kardec não teriam necessidade de conversar pelos ares com o espírito de Porfírio para saber tanto dele; eles só precisavam estar alguns instantes com Pierre Leroux, mais fácil de ser encontrado, ou ainda com Fourier (8). O inventor do Falanstério ficaria honrado de lhes ensinar que nossa alma revestirá corpos mais e mais etéreos à medida em que atravessar as oitocentas existências (em números redondos) a que está destinada”. Falando a seguir da concepção “progressista”, ou como se diria hoje, “evolucionista”, à qual a idéia de reencarnação está estreitamente ligada, o mesmo autor diz ainda: “Este dogma lembra muito o de Pierre Leroux, para quem as manifestações da vida universal, às quais ele liga a vida do indivíduo, não passam, a cada existência, de mais uma etapa na direção do progresso” (9). Esta concepção tinha uma tal importância para Allan Kardec, que ele a havia exprimido numa frase que se tornou sua divisa: “Nascer, morrer, renascer e progredir sem cessar, esta é a lei”. Seria fácil encontrar muitas outras similaridades em pontos secundários; mas não se trata, por enquanto, de seguir um exame detalhado das teorias espíritas, e o que dissemos basta para mostrar que, se o movimento “espiritualista” norte-americano foi na realidade provocado por homens vivos, foi  a espíritos igualmente “encarnados” que devemos a constituição da doutrina espírita francesa, diretamente no caso de Allan Kardec e de seus colaboradores, e indiretamente quanto às influências mais ou menos “filosóficas” que se exerceram sobre eles; mas, desta vez, os que intervieram não eram iniciados, nem mesmo de uma ordem inferior. Não pretendemos, por razões que já dissemos, continuar a seguir o espiritismo em todas as etapas de seu desenvolvimento; mas as considerações históricas que precedem, assim como as explicações a que elas deram ocasião, eram indispensáveis para permitir compreender o que virá a seguir.



NOTAS

1.      As principais obras de Allan Kardec são as seguintes: O Livro dos Espíritos; O Livro dos Médiuns; A Gênese, os milagres e as predições segundo o espiritismo; O Céu e o Inferno ou a Justiça divina segundo o espiritismo; O Evangelho segundo o espiritismo; O Espiritismo na sua expressão mais simples; Caracteres da revelação espírita, etc.
2.      Les Lumières et les Ombres du Spiritualisme, pgs. 112-114.
3.      La Doctrine spirite, pelo Dr. Dechambre: Gazette hebdomadaire de médecine et de chirurgie, 1859.
4.      Ver as obras de Eugène Nus intituladas Choses de l’autre monde, Les Grands Mystères e A la recherche des destinées.
5.      Le Lotus, abril de 1887, pg. 125.
6.      Ver o relato de Auguste Vacquerie em Miettes de l ‘histoire.
7.      Le Théosophisme, pg. 116.
8.      Ver a respeito a Théorie des quatre mouvements de Fourier.
9.      La Doctrine spirite, pelo Dr. Dechambre.


IV
CARÁTER MODERNO DO ESPIRITISMO


O que existe de novo no espiritismo, comparado a tudo o que existia anteriormente, não são os fenômenos, que eram conhecidos desde longa data, como já assinalamos a respeito das “casas mal-assombradas”; e seria espantoso que estes fenômenos, se reais são, tivessem esperado até nossa época para se manifestar, ou que ao menos ninguém tivesse se dado conta até então. O que há de novo, e o que é especificamente moderno, é a interpretação que os espíritas dão dos fenômenos dos quais se ocupam, a teoria pela qual eles pretendem explicá-los; mas é justamente essa teoria que constitui propriamente o espiritismo, com advertimos desde o início; sem ela, não existiria o espiritismo, mas qualquer outra coisa, e que poderia mesmo ser totalmente diferente. É preciso insistir nisso, primeiro porque aqueles que não estão suficientemente a par do assunto não sabem fazer as distinções necessárias, e depois porque as confusões são mantidas pelos próprios espíritas, que gostam de afirmar que sua doutrina é velha como o mundo. Esta é, aliás, uma atitude singularmente ilógica entre pessoas que professam uma crença no progresso; os espíritas não chegam a se querer herdeiros de uma tradição imaginária, como os teosofistas contra os quais já levantamos a mesma objeção (1), mas eles parecem no mínimo ver, na antigüidade que eles atribuem falsamente à sua crença (e muitos o fazem de boa fé), uma razão capaz de fortalecê-la numa certa medida. No fundo todas estas pessoas vivem em contradição, e, se elas nem percebem a contradição, é porque a inteligência participa pouco de suas convicções; é por isso que suas teorias, sendo sobretudo de origem e essência sentimentais, não merecem sequer o nome de doutrinas, e, se as pessoas se agarram a elas, é quase que exclusivamente porque as consideram “consoladoras” e próprias para satisfazer suas aspirações a uma vaga religiosidade.

A própria crença no progresso, que desempenha um papel tão importante no espiritismo, mostra desde logo que este é uma coisa essencialmente moderna, pois ela é totalmente recente e não chega além da segunda metade do século XVIII, época cujas concepções, como vimos, deixaram traços na terminologia espírita, assim como inspiraram todas estas teorias socialistas e humanitárias que forneceram, de modo imediato, os elementos doutrinais do espiritismo, dentre os quais destaca-se a idéia da reencarnação. Esta idéia, de fato, é extremamente recente também, malgrado as asserções contrárias tantas vezes repetidas, e que repousam sobre assimilações inteiramente errôneas; é igualmente pelo fim do século XVIII que Lessing a formulou pela primeira vez, ao que sabemos, e esta constatação lança nossa atenção sobre a Maçonaria alemã, a que este autor pertencia, sem contar que ele esteve provavelmente em contato com outras organizações secretas do tipo de que falamos precedentemente; seria curioso que aquilo que levantou tantos protestos de parte dos “espiritualistas” norte-americanos tenha tido origens aparentadas com as de seu próprio movimento. Caberia indagar se não teria sido por esta via que a concepção expressa por Lessing transmitiu-se pouco depois a certos socialistas franceses; mas não podemos afirmar nada a este respeito, pois não está provado que Fourier e Pierre Leroux tenham tido conhecimento, e é possível, afinal, que a mesma idéia lhes tenha ocorrido de forma independente, para resolver uma questão que os preocupava fortemente, e que era simplesmente a da desigualdade das condições sociais. Seja como for, foram eles os verdadeiros promotores da teoria reencarnacionista, popularizada pelo espiritismo que a emprestou deles, aonde outros a vieram buscar por sua vez. Voltaremos na segunda parte deste estudo ao exame aprofundado desta concepção, que, por grosseira que seja, adquiriu hoje em dia uma verdadeira importância em função do espantoso sucesso que o espiritismo francês lhe trouxe: não apenas ela foi adotada pela maior parte das escolas “neo-espiritualistas” que foram criadas depois, e das quais algumas, como o teosofismo em particular, conseguiram fazer penetrar nos meios até então refratários do espiritismo anglo-saxão; mas ainda vemos pessoas que a aceitam sem estar ligadas a nenhuma dessas escolas, e que não se dão conta de estar sob a influência de certas correntes mentais das quais elas não sabem quase nada, quando não ignoram a existência. Para o momento, vamos nos limitar a dizer, para explicá-lo mais tarde, que a reencarnação não tem absolutamente nada em comum com concepções antigas como a “metempsicose” e a “transmigração”, com as quais os “neo-espiritualistas” pretendem identificá-la abusivamente; mas podemos antever, pelo que dissemos ao tentar definir o espiritismo, que a explicação das diferenças básicas que eles desconhecem está naquilo que se refere à constituição do ser humano, tanto para esta questão como para a da comunicação com os mortos, sobre a qual vamos nos deter mais longamente.

Existe um erro muito difundido, que consiste em querer ligar o espiritismo ao culto dos mortos, tal como ele existe mais ou menos em todas as religiões, e também nas diversas doutrinas tradicionais que não tem caráter religioso; na realidade, este culto, sob qualquer forma como se apresente, não implica absolutamente uma comunicação efetiva com os mortos; no máximo se poderia falar talvez, em certos casos, de uma espécie de comunicação ideal, mas jamais desta comunicação por meios materiais cuja afirmação constitui o postulado fundamental do espiritismo. Em particular, aquilo que se denomina o “culto dos ancestrais”, estabelecido na China conforme os ritos confucionistas (os quais tem um caráter puramente social e não religioso), não tem nada a ver com quaisquer práticas invocatórias; e este exemplo é no entanto um aos quais recorrem os partidários da antigüidade e da universalidade do espiritismo, que dizem ainda que as evocações são freqüentemente feitas, entre os chineses, por procedimentos semelhantes aos seus. Eis ao que se deve esta confusão: existem efetivamente na China pessoas que usam instrumentos muitos parecidos com as “tábuas giratórias”; mas trata-se de práticas adivinhatórias que pertencem ao domínio da magia, inteiramente estranhas aos ritos confucionistas. De resto, aqueles que fazem da magia uma profissão são profundamente desprezados, tanto lá como na Índia, e o emprego desses processos é visto como vergonhoso, afora alguns casos de que não vale a pena nos ocuparmos aqui, e cuja semelhança com os casos comuns é apenas exterior; o essencial, de fato, não é o fenômeno provocado, mas o objetivo para o qual se o provoca, e também o modo como ele é produzido. Assim, a primeira distinção que cabe fazer é entre a magia e o “culto dos antepassados”; e é mesmo mais do que uma distinção, porque trata-se, de fato e de direito, de uma separação absoluta; mais ainda há mais: é que a magia não é o espiritismo, e ela difere dele teoricamente em tudo, e na prática em quase tudo. Para começar, devemos frisar que o mágico é o contrário do médium; ele desempenha na produção dos fenômenos um papel essencialmente ativo, enquanto que o médium é, por definição, um instrumento puramente passivo; o mágico teria, a este respeito, mais analogia com o magnetizador, e o médium com o “paciente” deste; mas é preciso acrescentar que o mágico não opera necessariamente através de um “paciente”, e que isto é mesmo muito raro, e que o domínio onde se exerce sua ação é tão extenso e complexo quanto aquele onde opera o magnetizador. Em segundo lugar, a magia não implica que as forças que ela coloca em jogo sejam “espíritos” ou coisa do gênero, e, mesmo onde ela apresenta fenômenos comparáveis aos do espiritismo, ela fornece uma explicação completamente diferente; pode-se muito bem, por exemplo, empregar um procedimento de adivinhação qualquer sem admitir que as “almas dos mortos” estejam envolvidas nas respostas obtidas. Isto que dizemos tem aliás um alcance bem geral: os procedimentos que os espíritas se felicitam por encontrar na China existiam também na antigüidade greco-romana: assim, Tertuliano fala das adivinhações que se faziam “por meio das cabras e das tábuas”, e outros autores, como Teócrito e Luciano, falam também de vasos e de peneiras que se fazia girar; mas, em tudo isto, é apenas de adivinhação que se trata. De resto, mesmo que as “almas dos mortos” possam, em certos casos, ser misturadas a práticas desse gênero (como parece indicar o texto de Tertuliano), ou, em outros termos, se a invocação vem, mais ou menos excepcionalmente, juntar-se à adivinhação pura e simples, é porque as “almas” de que se trata são outra coisa que aquilo que os espíritas chamam de “espíritos”; elas são apenas esta “alguma coisa” a que fizemos alusão antes para explicar certos fenômenos, mas de que não precisamos ainda a natureza. Voltaremos a isto  brevemente, e acabaremos assim de mostrar que o espiritismo não tem nenhum direito a sucessor da magia, mesmo vista neste ramo particular que concerne às invocações; mas, da China, a propósito da qual fomos levados a estas considerações, deveremos agora passar à Índia, a cujo respeito foram cometidos outros erros da mesma natureza.

Encontramos, a este respeito, coisas espantosas num livro que entretanto tem uma aparência séria, o que aliás é a razão pela qual achamos bom mencioná-lo aqui particularmente: este livro, bastante conhecido, é do Dr. Paulo Gibier (2), que não é absolutamente espírita; ele pretende ter uma atitude cientificamente imparcial, e toda a parte experimental parece feita conscienciosamente. Apenas, podemos nos perguntar porque quase todos que se ocuparam dessas coisas, mesmo pretendendo apegar-se ao ponto de vista estritamente científico e abstendo-se de concluir em favor da hipótese espírita, acham necessário proclamar opiniões anti-católicas que não parecem ter relação com o assunto tratado; está aí algo de muito estranho, e o livro do Dr. Gibier contém, no gênero, passagens capazes de alegrar até mesmo Flammarion, que aprecia tanto introduzir declamações desta sorte em suas obras de vulgarização astronômica. Mas não é sobre isto que queremos nos deter agora; há outra coisa mais importante, porque muitas pessoas parecem sequer se dar conta dela: é que este livro contém, a respeito da Índia, verdadeiras enormidades. A origem disto, aliás, é fácil de achar: o autor cometeu o erro de aceitar, de um lado, as histórias fantasistas de Louis Jacolliot (3), e, de outro, os documentos não menos fantasistas que lhe foram comunicados por uma certa “Sociedade Átmica” que existia então em Paris (1886), e que de resto era representada unicamente por seu fundador, o engenheiro Tremeschini. Não nos deteremos nos erros de detalhe, como quando se toma o título de um tratado pelo nome de um homem (4); eles só são interessantes na medida em que mostram a pouca qualidade dos ensinamentos transmitidos. Falamos de enormidades; e achamos que a palavra não é forte o bastante para qualificar coisas como esta: “A doutrina espírita moderna (...) acha-se quase completamente de acordo com a religião esotérica atual dos brahmanes. Estes a ensinavam aos iniciados dos graus inferiores nos templos do Himalaya, há talvez cem mil anos! A aproximação é no mínimo curiosa, e podemos dizê-lo, sem cair no paradoxo, que o espiritismo não passa do brahmanismo esotérico ao ar livre”(5). Para começar, não existe um “Brahmanismo esotérico”, e, como já o explicamos em outra parte (6), não voltaremos a isto agora; mas, se houvesse um, ele não poderia ter nenhuma relação com o espiritismo, porque seria contraditório com os próprios princípios do Brahmanismo em geral, e também porque o espiritismo é uma das doutrinas mais grosseiramente exotéricas que jamais existiram. Se quisermos aludir à teoria da reencarnação, repetimos que ela jamais foi ensinada na Índia, mesmo pelos Budistas, e que ela pertence propriamente aos Ocidentais modernos; os que pretendem o contrário não sabem do que falam (7); mas o erro do autor é mais grave e mais completo, pois eis o que lemos mais adiante: “Entre os brahmanes, a prática da invocação dos mortos é a base fundamental da liturgia dos templos e o fundo da doutrina religiosa” (8). Esta afirmação é exatamente o contrário da verdade: podemos afirmar categoricamente que todos os Brahmanes sem exceção, longe de fazer da evocação um elemento fundamental de sua doutrina e de seus ritos, proscrevem-na absolutamente e sob todas as suas formas. Parece tratar-se de “relatos de viajantes europeus”, e sobretudo de Jacolliot, que ensinaram ao Dr. Gibier que “as invocações das almas dos ancestrais não podem ser feitas senão pelos brahmanes de certos graus” (9); ora, as práticas deste gênero, quando não podem ser suprimidas, são ao menos abandonadas a pessoas das classes mais inferiores, sobretudo à dos chândâlas, ou seja os sem-casta (que os Europeus chamam parias), e mesmo assim ainda são distorcidas o quanto possível. Jacolliot está manifestamente de má fé em inúmeros casos, como quando traveste Isha Krishna em Jezeus Christna para fins de alguma tese anticristã; mas, além disso, ele e seus pares podem muito bem ter sido enganados, e, se lhes ocorreu, em sua passagem pela Índia, testemunhar fenômenos reais, certamente não lhes foram contadas as verdadeiras explicações. Fazemos alusão sobretudo aos fenômenos dos faquires; mas antes de entrar neste ponto, diremos ainda o seguinte: na Índia, quando surge espontaneamente em alguém (dizemos espontaneamente porque ninguém pensaria em adquirir ou desenvolver de propósito esta faculdade) aquilo que os espíritas chamam de mediunidade, isso é considerado uma calamidade para o médium e para seus próximos; as pessoas do povo não hesitam em atribuir ao diabo os fenômenos desta ordem, e mesmo aqueles que lidam com os mortos só tem em vista a intervenção dos prêtas, vale dizer dos elementos inferiores que permanecem ligados ao cadáver, elementos rigorosamente idênticos aos mânes dos antigos Latinos, e que não representam absolutamente o espírito. No  mais, de resto, os médiuns naturais são sempre vistos como “possuídos” ou “obcecados”, segundo o caso, e só lhes dão atenção quando se quer livrá-los ou curá-los; somente os espíritas transformam esta enfermidade em privilégio, e procuram mantê-la e cultivá-la, e mesmo provocá-la artificialmente, e somente eles cercam de uma inacreditável veneração os infelizes afligidos por este mal, ao invés de vê-los como objetos de piedade ou de repulsão. Basta não ter nenhum pré-julgamento para ver claramente o perigo desta estranha inversão das coisas: o médium, qualquer que seja a natureza das influências que se exercem sobre ele, deve ser considerado como um verdadeiro enfermo, como um ser anormal e desequilibrado; a partir do momento em que o espiritismo, longe de remediar este desequilíbrio, propaga-o com todas as suas forças, ele deve ser denunciado como perigoso para a saúde pública; aliás, este não é seu único perigo.

Mas voltemos à Índia, a propósito da qual nos resta tratar de uma última questão, a fim de dissipar o equívoco que se exprime no próprio título que o Dr. Gibier deu ao seu livro: qualificar o espiritismo de “faquirismo ocidental”, corresponde a provar simplesmente que não se sabe nada, não diremos do espiritismo, sobre o qual é fácil informar-se, mas sobre o faquirismo. A palavra fakir, que é árabe e significa propriamente “pobre” ou “mendicante”, aplica-se na Índia a uma categoria de indivíduos muito pouco considerados, salvo pelos Europeus, e que são visto como atores ambulantes que divertem as pessoas. Ao dizermos isto, não queremos contestar a realidade de seus poderes especiais; mas estes poderes, cuja aquisição exige um treinamento longo e penoso, são de ordem inferior, e portanto considerados como pouco desejáveis; buscá-los equivale a mostrar a incapacidade de atingir resultados de outra ordem, para os quais eles não passam de um obstáculo; e encontramos aqui ainda um exemplo do descrédito que se liga, no Oriente, a tudo o que é do domínio da magia. De fato, os fenômenos dos faquires são às vezes simulados; mas mesmo esta simulação supõe um poder de sugestão coletiva, exercendo-se sobre todos os assistentes, que não é menos espantoso, à primeira vista, do que a própria produção dos fenômenos reais; isto não tem nada em comum com a prestidigitação (que é excluída pelas próprias condições a que se submetem os faquires) e é bem diferente do hipnotismo dos Ocidentais. Quanto aos fenômenos reais, dos quais os outros não passam de imitações, eles são sempre, como dissemos, do domínio da magia; o faquir, sempre ativo e consciente em sua produção, é um mágico, e, no outro caso, pode ser assimilado a um magnetizador; ele não lembra em nada um médium, e mesmo, se um indivíduo possui a menor dose de mediunidade, isto basta para torná-lo incapaz de obter qualquer dos fenômenos do faquirismo do modo como este se caracteriza, pois os procedimentos são diametralmente opostos, e isto mesmo para os efeitos que apresentam alguma semelhança exterior; aliás, esta semelhança só se manifesta nos fenômenos mais elementares apresentados pelos faquires. Por outro lado, nenhum faquir jamais pretendeu que os “espíritos” ou as “almas dos mortos” tivessem a menor participação na produção destes fenômenos; caso algum tivesse dito isto a um Europeu como Jacolliot, não seria por crer nisto: como a maioria dos Orientais, ele estaria apenas respondendo no sentido das opiniões pré-concebidas que percebeu no seu interlocutor, a quem eles não diriam a verdadeira natureza das forças que eles manejavam; e de resto, na falta de outros motivos para agir assim, eles deveriam julgar que qualquer explicação verdadeira seria perfeitamente inútil, dada a mentalidade das pessoas com quem estavam lidando. Por pouco instruídos que sejam alguns faquires, eles ainda possuem algumas noções que pareceriam “transcendentes” ao comum dos Ocidentais atuais; e, mesmo sobre as coisas que eles são incapazes de explicar, eles não formam essas idéias falsas que são a essência do espiritismo, pois eles não teriam nenhuma razão para fazer suposições que estariam em completo desacordo com todas as concepções tradicionais hindus. A magia dos faquires não é a magia invocatória, que ninguém ousaria exercer publicamente; os mortos não entram aí para nada; e, por outro lado, a própria magia invocatória, se compreendermos bem o que ela é, pode antes contribuir para reverter a hipótese espírita do que para confirmá-la. Achamos bom prestar estes esclarecimentos, apesar de um pouco longos, porque, sobre esta questão do faquirismo e outras que lhe são conexas, a ignorância é geral na Europa: os ocultistas sabem tão pouco quanto os espíritas e os “psiquistas” (10); de outro lado, alguns escritores católicos que trataram do mesmo tema limitaram-se a reproduzir os erros dos outros (11); quanto aos sábios “oficiais”, eles contentam-se em negar tudo o que não podem explicar, a menos quando, mais prudentemente, preferem apenas silenciar.

Se as coisas são como dissemos nas civilizações que se mantiveram até hoje, como as da China e da Índia, podemos presumir que o mesmo tenha se passado com civilizações desaparecidas que, segundo tudo o que se sabe, repousavam sobre princípios tradicionais análogos. É assim que, por exemplo, os antigos Egípcios
viam a constituição do ser humano de um modo que não se distancia das concepções hindus e chinesas; parece que o mesmo pode ser dito dos Caldeus; devemos portanto tirar daí conseqüências semelhantes, tanto no que concerne aos estados póstumos quanto para explicar as invocações. Não queremos entrar aqui em detalhes, mas apenas dar as indicações gerais; e não devemos nos deter diante de certas divergências aparentes, que não são contradições, mas que correspondem a uma diversidade de pontos de vista; se a forma difere de uma tradição para outra, o fundo permanece idêntico, simplesmente porque a verdade é uma. Isto é tão verdadeiro que povos como os Gregos e os Romanos, que já haviam perdido em grande parte a razão de ser de seus ritos e seus símbolos, guardavam ainda certos dados que concordam perfeitamente com tudo o que se encontra de forma mais completa em outras tradições, mas que os modernos não compreendem mais; e o esoterismo de seus “mistérios” comportava provavelmente muitos ensinamentos que, entre os Orientais, são expostos abertamente, sem ser jamais vulgarizados, porque sua própria natureza opõe-se a isto; de resto, temos razões para crer que os próprios “mistérios” tenham tido uma origem oriental. Podemos assim, ao falarmos de magia e invocações, dizer que todos os antigos as compreendiam da mesma maneira; encontramos por toda a parte as mesmas idéias, revestidas de modos diferentes, porque os antigos, como os Orientais de hoje em dia, sabiam do que tratavam essas coisas. Em tudo o que nos chegou, não encontramos nem traço de seja o que for que lembre o espiritismo; e, quanto ao resto, podemos dizer que o que foi perdido não pode ser usado pelos espíritas a seu favor, e que razões de coerência e analogia levam a pensar que nem aí deve haver nada que justifique suas pretensões.

Vamos ainda insistir sobre a distinção entre a magia e o espiritismo, de modo a completar o que já dissemos; e antes de mais nada, para afastar qualquer mal-entendido, diremos que a magia é propriamente uma ciência experimental, que nada tem a ver com concepções religiosas ou pseudo-religiosas de qualquer tipo; não é o que acontece com o espiritismo, onde estas últimas são predominantes, mesmo quando ele se quer “científico”.  Se a magia sempre foi tratada mais ou menos como uma “ciência oculta”, reservada a poucos, é em razão dos graves perigos que ela apresenta; porém, sob este aspecto, há uma diferença entre aquele que, cercando-se de todas as precauções necessárias, provoca conscientemente fenômenos dos quais ele estudou as leis, e aquele que, ignorando tudo destas leis, coloca-se à mercê de forças desconhecidas aguardando passivamente o que irá produzir-se; vemos por aí a vantagem que o mágico leva sobre o espírita, médium ou simples assistente, mesmo admitindo-se que as demais condições sejam comparáveis. Falando das precauções necessárias, pensamos nas regras precisas e rigorosas a que estão submetidas as operações mágicas, todas elas tendo sua razão de ser; os espíritas negligenciam até as mais elementares destas regras, ou antes eles nem fazem idéia que elas existam, e agem como crianças que, inconscientes do perigo, brincam com máquinas temíveis, liberando assim, sem que ninguém as possa proteger, forças capazes de fulminá-las. Não é preciso dizer que tudo isto não vem a recomendar a magia, bem ao contrário, mas unicamente para mostrar que, se ela é perigosa, o espiritismo é muito mais; e ele o é ainda de um outro modo, no sentido em que ele é de domínio público, enquanto que a magia sempre foi reservada para alguns, primeiro por ser propositadamente escondida (precisamente por ser considerada perigosa), e depois em razão dos conhecimentos requeridos e da complexidade de suas práticas. De resto, cabe lembrar que aqueles que possuem um conhecimento completo e profundo destas coisas sempre se abstiveram rigorosamente de práticas mágicas afora alguns casos excepcionais, em que suas ações são ainda diferentes das de um mágico comum; este costuma ser um “empírico”, ao menos numa certa medida, não por ser desprovido totalmente de conhecimento, mas por não conhecer sempre as verdadeiras razões de tudo o que ele faz; mas, em todo caso, se estes mágicos expõem-se a certos perigos, como eles sempre foram pouco numerosos (e tanto menos numerosos na medida mesma em que estas práticas, à parte as que são relativamente mais inofensivas, são severamente proibidas, e com muita justiça, pelas leis de todos os povos que sabem do que se trata), o perigo fica muito limitado, enquanto que, com o espiritismo, este perigo existe para todos sem exceção. Mas isto é o bastante quanto à magia em geral; consideraremos daqui para frente apenas a magia invocatória, ramo bastante restrito, e o único com o qual o espiritismo pode pretender ter relações; a bem dizer, muitos dos fenômenos que se manifestam, nas sessões espíritas não provém deste domínio particular, e a invocação está apenas na intenção dos assistentes, e não nos resultados efetivamente obtidos; mas, no tocante à natureza das forças que intervém no caso, reservaremos a explicação para outro capítulo. Para tudo o que entra nessa categoria, mesmo quando se trata de fatos semelhantes, é evidente que a interpretação mágica e a interpretação espírita são completamente diferentes; para as invocações, veremos que elas também o são, apesar de certas aparências enganosas.

De todas as práticas mágicas, as práticas invocatórias são aquelas que, entre os antigos, foram objeto das interdições mais formais; e no entanto sabemos que o que se tratava de invocar realmente, não eram os “espíritos” no sentido moderno, até porque os resultados que se pretendia obter eram em suma de menor importância. Sabia-se bem, que o que pode ser invocado não representa o ser real e pessoal, colocado fora de alcance por ter passado para um outro estado de existência (falaremos disto na segunda parte de nosso estudo), mas unicamente estes elementos inferiores que o ser de certa forma abandona atrás de si, no domínio da existência terrestre, na seqüência desta dissolução do composto humano a que chamamos morte. É isto, como dissemos, que os antigos Latinos chamavam “mânes”; é também o que os Hebreus chamam ob, palavra que é sempre empregada nos textos bíblicos quando se trata de invocações, e que alguns tomam erradamente como a designação de uma entidade demoníaca. De fato, a concepção hebraica da constituição do homem concorda perfeitamente com todas as outras; e, para servirmo-nos de correspondências tomadas da linguagem aristotélica, para melhor compreensão, diremos não apenas que o ob não é o espírito ou a “alma racional” (neshamah), mas que ele não é a “alma sensitiva” (ruahh), e nem sequer a “alma vegetativa” (nephesh). Sem dúvida, a tradição judaica parece indicar, como uma das razões da proibição de invocar o ob (12), a existência de uma certa relação entre este e os princípios superiores, e este ponto deveria ser examinado mais de perto em função do modo próprio como esta mesma tradição encara os estados póstumos do homem; mas, em todo caso, não é ao espírito que o ob permanece ligado direta e imediatamente, mas ao corpo, e é por isso que a linguagem rabínica o chama habal de garmin ou “sopro dos ossos” (13); é precisamente o que permite explicar os fenômenos que assinalamos mais acima. Assim, aquilo de que se trata não lembra em nada o “perispírito” dos espíritas, nem o “corpo astral” dos ocultistas, que se supõe revestir o espírito do morto; há uma outra diferença capital, pois o ob tampouco é um corpo: é, se o quisermos, uma forma sutil, que pode tomar uma aparência corporal ao se manifestar em certas condições, donde o nome de “duplo” que lhe davam os Egípcios. De resto, não se trata de uma aparência em todos os sentidos: separado do espírito, este elemento não pode ser consciente no verdadeiro sentido da palavra; mas ele possui uma simulacro de consciência, uma imagem virtual do que era a consciência da pessoa viva; e o mágico, revivificando esta aparência emprestando-lhe aquilo que lhe falta, dá temporariamente a esta consciência reflexa uma consistência suficiente para obter dela respostas quando a interroga, como acontece quando a invocação é feita com fins adivinhatórios, que é o que constitui propriamente a “necromancia”. Nós nos desculpamos se estas explicações, que completaremos mais adiante com a consideração de forças de uma outra ordem, parecem pouco claras; é difícil colocar estas coisas em linguagem comum, e devemos nos contentar com expressões aproximativas; isto se deve em boa parte à filosofia moderna, a qual, ignorando totalmente estas questões, não pode fornecer uma terminologia adequada para tratá-las. Agora, há outro equívoco que pode acontecer a respeito dessa teoria, e que convém evitar: pode parecer, se ficarmos na superfície das coisas, que o elemento póstumo de que se trata seja assimilável ao que os teosofistas chamam “cascas”, e que eles dizem intervir na explicação da maior parte dos fenômenos espíritas; mas não se trata disto, embora esta teoria seja provavelmente derivada da outra, mas deformada pela incompreensão de seus autores. De fato, para os teosofistas, uma “casca” é um “cadáver astral”,  ou seja um corpo em vias de decomposição; e, além de se considerar que este corpo só é abandonado pelo espírito algum tempo após a morte, ao invés de ser essencialmente ligado ao corpo físico, a própria concepção de “corpos invisíveis” é grosseiramente errônea, e é uma das que podemos qualificar de “neo-espiritualismo” ou de “materialismo transposto”.  Sem dúvida, a teoria da “luz astral” de Paracelso, que é de um alcance muito maior, contém ao menos uma parte de verdade; mas os ocultistas não a compreenderam, e ela tem pouca relação com o “corpo astral”, e com o “plano” a que eles dão o mesmo nome, concepções modernas, apesar de suas pretensões, e que não concordam com nenhuma tradição autêntica.

Acrescentaremos ao que foi dito algumas reflexões que, apesar de não se ligarem diretamente ao nosso assunto, nem por isso são menos necessárias, dada a mentalidade própria aos Ocidentais modernos. Estes, de fato, quaisquer que sejam suas convicções religiosas ou filosóficas, são, na prática, “positivistas”, em sua maioria; parece mesmo que eles não conseguem sair desta atitude sem cair nas extravagâncias do “neo-espiritualismo”, talvez por não conhecerem nada diferente. Isto chega a um ponto tal que muitas pessoas sinceramente religiosas, mas influenciadas pelo meio, tendo que admitir certas possibilidades em princípio, recusam-se energicamente a aceitar-lhes as conseqüências e negam de fato, senão de direito, tudo o que não cabe dentro da idéia que elas se fazem da chamada “vida comum”; a estes, as considerações que expusemos devem soar tão estranhas e chocantes quanto para os “cientistas” mais limitados. Isto pouco nos importaria, se estas pessoas não se acreditassem mais competentes que quaisquer outras em matéria de religião, e mesmo qualificadas para exprimir, em nome desta religião, julgamentos sobre coisas ultrapassam seu entendimento; é por isso que achamos bom fazer-lhes uma advertência, embora sem nos iludirmos sobre os efeitos que esta poderá causar. Lembraremos portanto que não pretendemos nos colocar aqui do ponto de vista religioso, e que as coisas de que falamos pertencem a um domínio totalmente distinto da religião; de resto, se exprimimos certas concepções, é apenas porque sabemos que elas são verdadeiras, independentemente de qualquer preocupação estranha à pura intelectualidade; mas acrescentaremos que, apesar disso, estas concepções permitem, melhor do que muitas outras, compreender alguns pontos concernentes à própria religião. Perguntaremos, por exemplo, o seguinte: como se pode justificar o culto católico das relíquias, ou ainda a peregrinação aos túmulos dos santos, se não admitirmos que alguma coisa de não material permanece, de um modo ou de outro, ligado ao corpo após a morte? Sabemos que, unindo assim as duas questões, apresentamos a coisa de uma maneira bastante simplificada; na realidade, as forças de que se trata neste caso (e usamos a palavra “força” num sentido muito geral) não são idênticas àquelas de que nos ocupamos precedentemente, embora haja aí uma certa relação: elas são de uma ordem muito superior, porque nelas intervém outra coisa que é como que superposta, e colocá-las em jogo não depende absolutamente de magia, mas sim daquilo que os neo-platônicos chamavam “teurgia”; esta é uma distinção que não se deve esquecer. Para darmos um outro exemplo, o culto das imagens e a idéia que certos lugares possuem privilégios especiais são ininteligíveis se não admitirmos que existem verdadeiros centros de força  (qualquer que seja aliás a natureza destas forças) e que certos objetos podem representar de certa forma o papel de “condensadores”: veja-se simplesmente na Bíblia o que é dito da arca da aliança, assim como do templo de Jerusalém, para entender o que dizemos. Tocamos aqui na questão das “influências espirituais”, sobre a qual não vamos insistir, e cujo desenvolvimento encontraria muitas dificuldades, pois, apara abordá-la, seria preciso apelas para certos dados metafísicos de ordem mais elevada. Citaremos apenas um caso: em certas escolas do esoterismo muçulmano, o “Mestre” (Sheikh) que foi o fundador, embora morto há séculos, é visto como estando vivo e agindo através de sua “influência espiritual” (barakah); mas nisto não intervém sua personalidade real, que está, não apenas além deste mundo, mas também além de todos os “paraísos”, vale dizer dos estados superiores ainda transitórios. Pode-se avaliar assim como estamos longe, não só do espiritismo, mas ainda da magia; e, se tocamos no assunto, foi para não deixar incompletas todas as indicações necessárias; a diferença que separa esta ordem de todas as outras é também a mais profunda de todas.

Pensamos ter dito o suficiente para mostrar que, antes dos tempos modernos, nunca houve nada de comparável com o espiritismo; no caso do Ocidente, encaramos sobretudo a antigüidade, mas tudo o que se refere à magia é igualmente válido para a idade média. Se no entanto quiséssemos a toda força encontrar algo que pudesse ser assimilado ao espiritismo até um certo ponto (porque as teorias não concordariam aí também), encontraríamos simplesmente a feitiçaria. De fato, os feiticeiros são manifestamente “empíricos”, embora o mais ignorante deles saiba provavelmente mais do que os espíritas a este respeito; eles só conhecem os ramos mais baixos da magia, e as forças que eles colocam em jogo, as mais baixas de todas, são as mesmas com que lidam os espíritas. Enfim, os casos de “possessão” e de “obsessão”, diretamente relacionados com as práticas de feitiçaria, são as únicas manifestações autênticas de mediunidade que se pode constatar antes da aparição do espiritismo; e será que as coisas mudaram tanto que as mesmas palavras não sejam mais aplicáveis? Achamos que não; e na verdade, se os espíritas não podem se recomendar um parentesco tão suspeito quanto inviável, recomendaremos a eles que renunciem a reivindicar para seu movimento qualquer espécie de filiação, e tomar o partido de uma modernidade que, pela boa lógica, não deveria envergonhar os partidários do progresso.




NOTAS

1.      Le Théosophisme, pg. 108.
2.      Le Spiritisme ou Fakirisme occidental.
3.      Le Spiritisme dans le Monde; La Bible dans l’Inde; Les Fils de Dieu; Christna e Christ; Histoire des Vierges; La Genèse de L’Humanité.
4.      Sûrya-Siddhânta (grafado Souryo-Siddhanto); esclarece-se mesmo que este suposto astrônomo teria vivido há cinqüenta mil anos atrás.
5.      Le Spiritisme, pg. 76.
6.      Introduction générale à l’étude des doctrines hindoues, pgs. 152-154.
7.      O Dr. Gibier chega a traduzir avatara como “reencarnação” (pg. 117); e acredita que este termo aplica-se à alma humana.
8.      Le Spiritisme, pg. 117.
9.      Ibid., pg. 118.
10.  Para a interpretação ocultista, ver Le Fakirisme hindou, por Sédir.
11.  Ver Le Fakirisme, de Charles Godard, que cita Jacolliot como uma autoridade, acredita na existência do “adepto” Koot-Hoomi, e chega a confundir o faquirismo com o yoga e com diversas outras coisas do gênero. Este autor era de resto um antigo ocultista, embora tenha negado isto em  termos que nos fazem duvidar de sua sinceridade (L’Ocultisme contemporain, pg. 70); agora que ele está morto, não há mais inconveniente em revelar que ele colaborou longamente com a Initiation sob o pseudônimo de Saturninus; na Echo du Merveilleux, ele se assinava Timothée.
12.  Deuteronômio, XVIII, 11.
13.  E não “corpo de ressurreição”, como traduziu o alemão Carl Von Leiningen (comunicação à Societé Psychologique de Munich, a 5 de março de 1887).

V
ESPIRITISMO E OCULTISMO


O ocultismo é também coisa bastante recente, talvez até mais recente do que o espiritismo; este termo parece ter sido empregado pela primeira vez por Alphonse-Louis Constant, mais conhecido pelo pseudônimo de Eliphas Lévi, e parece-nos ter sido ele seu inventor. Se o termo é novo, aquilo que ele designa não o é menos: até então, haviam “ciências oculta”, aliás mais ou menos ocultas, e também de maior ou menor importância; a magia era uma destas ciências, e não seu conjunto como querem alguns (1); o mesmo ocorre com a alquimia, a astrologia e muitas outras; mas jamais se pretendeu reuni-las num corpo de doutrina único, o que implica essencialmente a denominação de “ocultismo”. A bem dizer, este auto-intitulado corpo doutrinal é formado de elementos bem díspares: Eliphas Lévi quis constituí-lo sobretudo com a cabala hebraica, o hermetismo e a magia; os que vieram depois dele viriam a dar ao ocultismo um caráter bem diferente. As obras de Eliphas Lévi, ainda que menos profundas do que se pretendiam, exerceram uma influência extremamente ampla: elas inspiraram os chefes de escolas as mais diversas, como Mme. Blavatsky, a fundadora da Sociedade Teosófica, sobretudo na época em que ela publicava Isis Dévoilée, como o escritor maçônico americano Albert Pike, como os neo-rosacruz ingleses. Os teosofistas aliás continuaram a empregar o termo de ocultismo para qualificar sua própria doutrina, que podemos ver de fato como uma variedade particular de ocultismo, pois ninguém se opõe a que se faça desta denominação o nome genérico de múltiplas escolas, cada qual com sua concepção própria; entretanto, não é assim que se entende o termo habitualmente. Eliphas Lévi morreu em 1875, ano em que foi fundada a Sociedade Teosófica; na França, passaram-se alguns anos durante os quais quase não se tratou de ocultismo; foi por volta de 1887 que o Dr. Gérard Encausse, com o nome de Papus, retomou essa denominação, esforçando-se para agrupar em torno de si todos aqueles que tivessem tendências análogas, e foi sobretudo a partir do momento em que se separou da Sociedade Teosófica, em 1890, que ele pretendeu de certo modo monopolizar o título de ocultismo em benefício da sua escola. Tal é a gênese do ocultismo francês; já se disse que este ocultismo não passava de um “papusismo”, o que é verdade sob certo aspecto, pois uma grande parte de suas teorias não passam efetivamente de obras de uma fantasia individual; algumas mesmo só se explicam pelo desejo de opor, à falsa “tradição oriental” dos teosofistas, uma “tradição ocidental”, não menos imaginária. Não vamos fazer aqui a história do ocultismo, nem expor o conjunto de suas doutrinas; mas, antes de falarmos de suas relações com o espiritismo e do que os diferencia, estas explicações sumárias são indispensáveis, a fim de que ninguém se espante quando classificamos o ocultismo entre as concepções “neo-espiritualistas”.

Como os teosofistas, os ocultistas em geral são cheios de desdém pelos espíritas, e isto é compreensível até certo ponto, pois o teosofismo e o ocultismo tem ao menos uma aparência superficial de intelectualidade que o espiritismo não tem, e eles podem endereçar-se a espíritos de um nível um pouco superior. Assim vemos Papus, aludindo ao fato de que Kardec era uma antigo instrutor, trata o espiritismo de “filosofia primária” (2); e eis como ele aprecia os meios espíritas: “Não recrutando senão uns poucos crentes nos meios científicos, esta doutrina sustenta-se pela quantidade de aderentes que lhes fornecem as classes médias e sobretudo o povo. Os “grupos de estudos”, cada um mais “científico” do que o outro, são formados por pessoas sempre muito honestas e de boa fé, antigos oficiais, pequenos comerciantes ou empregados, cuja instrução científica e principalmente filosófica deixa muito a desejar. Instrutores são “luzes” nestes grupos” (3). Esta mediocridade é de fato impressionante; mas Papus, que critica tão vivamente a falta de seleção entre os aderentes do espiritismo, teria sido ele, com sua própria escola, tão isento de falhas? Responderemos esta questão lembrando que seu papel foi sobretudo o de um “vulgarizador”; esta atitude, bem diferente da de Eliphas Lévi, é incompatível com pretensões aos esoterismo, e há aí uma contradição que não nos cabe explicar. Em todo caso, o que há de certo é que o ocultismo, tanto quanto o teosofismo, não tem nada em comum com um esoterismo verdadeiro, sério e profundo; é preciso não  ter nenhuma noção destas coisas para se deixar seduzir pela vã miragem de uma suposta “ciência iniciática” que na verdade não passa de uma erudição superficial e de segunda ou terceira mão. A contradição que assinalamos não existe no espiritismo, que rejeita totalmente qualquer esoterismo, e cujo caráter eminentemente “democrático” concorda perfeitamente com uma intensa necessidade de propaganda; é mais lógico do que a atitude dos ocultistas, mas as críticas deste não deixam de ser justas em si mesmas, como veremos mais adiante.

Não voltaremos, porque já reproduzimos diversos extratos em outra ocasião (4), sobre as críticas, por vezes violentas, que os chefes do teosofismo endereçaram aos espíritas, embora muitos tenham passado por esta escola; as dos ocultistas franceses são, de modo geral, formuladas em termos mais moderados. No início, entretanto, houve vivos ataques de parte a parte; os espíritas ficavam particularmente ofendidos por serem tratados de “profanos” por pessoas dentre as quais estavam alguns de seus antigos “irmãos”; mas logo se viu uma tendência à conciliação, sobretudo por parte dos ocultistas, cujo “ecletismo” predispunha a maiores concessões. O primeiro efeito disto foi uma reunião em Paris, em 1889, de um “Congresso espírita e espiritualista”, onde todas as escolas estavam representadas; naturalmente, isto não fez desaparecer as dissensões e as rivalidades; mas, pouco a pouco, os ocultistas chegaram a aceitar, em seu pouco coerente sincretismo, uma parte maior ou menor das teorias espíritas, por sinal em vão, porque nem por isso os espíritas chegaram a reconhecê-los como verdadeiros “crentes”. Houve no entanto algumas exceções individuais: na medida em que a distensão de processava, o ocultismo ia-se “vulgarizando” pouco a pouco, e os  seus grupos, mais abertos que originalmente, passaram a acolher pessoas que, por entrar, não deixavam por isso de ser espíritas; estes eram talvez uma elite dentro do espiritismo, mas uma elite bem relativa, e o nível dos meios ocultistas foi caindo devagar e sempre – talvez um dia possamos descrever esta “evolução” às avessas. Já falamos, a respeito do teosofismo, sobre as pessoas que aderem simultaneamente a escolas cujas teorias se contradizem, e que não se dão conta disto, por serem acima de tudo sentimentais; acrescentaremos que, em todos estes grupos, o elemento feminino predomina, e que muitos só se interessam, do ocultismo, pelo estudo das “artes adivinhatórias”, o que dá a justa medida de suas capacidades intelectuais.

Antes de avançarmos, vamos explicar um fato que assinalamos no início: existem, entre os espíritas, inúmeros indivíduos e pequenos grupos isolados, enquanto que os ocultistas quase sempre se ligam a alguma organização, mais ou menos sólida, mais ou menos bem constituída, mas que permite àqueles que fazem parte dizerem-se “iniciados” em alguma coisa, ou terem a ilusão disto. É porque os espíritas não tem nenhuma iniciação e não querem nem ouvir falar de nada que lembre de perto ou de longe, pois uma das características de sua organização é de ser aberta a todos sem distinção e de não admitir nenhuma espécie de hierarquia; desta forma, alguns de seus adversários erraram redondamente falando de uma “iniciação espírita” que é inteiramente inexistente; é preciso lembrar, aliás, que de diversos lados abusou-se bastante deste termo de “iniciação”. Os ocultistas, ao contrário, pretendem possuir uma tradição, a torto ou a direito; mas enfim pretendem; é por isso que eles acreditam precisar de uma organização apropriada através da qual os ensinamentos possam ser transmitidos regularmente; e, se um ocultista separa-se desta organização, é normalmente para fundar uma outra, e tornar-se “chefe de escola” por sua vez. Na verdade, os ocultistas estão enganados quando pensam que a transmissão de conhecimentos tradicionais deva se fazer por uma organização revestida da forma de uma “sociedade”, no sentido bem claro como esta palavra é tomada modernamente; estes grupos não passam de caricaturas das escolas verdadeiramente iniciáticas. Para mostrar a pouca seriedade da suposta iniciação dos ocultistas, basta, sem mais considerações, mencionar a prática, corrente entre eles, de “iniciações por correspondência”; não é difícil tornar-se “iniciado” nestas condições, e trata-se de uma formalidade sem valor nem alcance; mas serve para salvaguardar as aparências. A este respeito, devemos dizer ainda, para que ninguém se engane sobre nossas intenções, que o que repreendemos no ocultismo é não ser ele aquilo pelo que se faz passar; e nossa atitude, quanto a isto, é bem diferente da maior parte dos seus adversários, e mesmo inversa de certa forma. Com efeito, os filósofos universitários, por exemplo, criticam o ocultismo por pretender ultrapassar os estreitos limites dentro dos quais eles mesmos encerram suas concepções, enquanto que, para nós, seu defeito é justamente o de não ultrapassá-los, salvo em alguns pontos específicos onde ele se apropriou de conceitos anteriores, aliás sem os compreender bem. Assim, para os outros, o ocultismo vai ou pretende ir longe demais; para nós, ao contrário, ele não vai nem um pouco longe, e ele engana seus aderentes sobre o caráter e a qualidade dos conhecimentos que lhes fornece. Uns ficam aquém, nos vamos além – e daí resulta que, se aos olhos dos ocultistas, filósofos universitários e sábios oficiais são simples “profanos”, assim como os espíritas, aos nossos olhos os ocultistas são igualmente “profanos”, e ninguém pensa de outra forma dentre aqueles que sabem o que são as verdadeiras doutrinas tradicionais.

Isto posto, podemos voltar à questão das relações  entre o ocultismo e o espiritismo; e devemos precisar que, no que se segue, iremos tratar sempre do ocultismo papusiano, bem diferente, como dissemos, do de Eliphas Lévi. Este último, de fato, era formalmente anti-espírita, e, por outro lado, ele nunca acreditou em reencarnação; se ele gostava de dizer-se um Rabelais reencarnado, era apenas por brincadeira: temos sobre isto o testemunho de quem o conheceu pessoalmente, e que, sendo reencarnacionista, não pode ser considerado suspeito a respeito. Ora, a teoria da reencarnação é um dos empréstimos que tanto o ocultismo quanto o teosofismo fizeram ao espiritismo, pois sempre houveram tais empréstimos, e estas duas escolas bem ou mal sofreram a influência do espiritismo que lhes é anterior, apesar de todo o desdém que elas manifestam a seu respeito. No  tocante à reencarnação, a coisa é muito clara: já dissemos como Mme. Blavatsky tomou esta idéia dos espíritas francesas e a transplantou para os meios anglo-saxões; por sua vez, Papus e alguns de seus primeiros aderentes começaram por ser teosofistas, e quase todos vieram diretamente do espiritismo; não é preciso procurar mais longe. Sobre pontos menos fundamentais, já tivemos um exemplo da influência espírita na importância capital que o ocultismo atribui ao papel dos médiuns na produção de certos fenômenos; podemos encontrar outro na concepção do “corpo astral”, que não deixa de ter muitas particularidades do “perispírito”, mas com a diferença que se supõe que o espírito abandona o “corpo astral” mais o menos tempo depois da morte, assim como ele abandonou o “corpo físico”, enquanto que o “perispírito” pretensamente persiste indefinidamente e acompanha o espírito em todas as suas reencarnações. Um outro exemplo está naquilo que os ocultistas chamam de “estado de turbação”, ou seja um estado de inconsciência  em que o espírito mergulha imediatamente após a morte: “Durante os primeiros instantes desta separação, diz Papus, o espírito não se dá conta do novo estado em que está; ele está perturbado, ele não acredita estar morto, e é apenas de forma progressiva, muitas vezes ao cabo de muitos dias ou de muitos meses, que ele toma consciência deste seu novo estado” (5). Isto não é outra coisa que a exposição da doutrina espírita; mas, de resto, Papus dá esta teoria como sua e precisa que “o estado de turbação estende-se desde o começo da agonia até a liberação do espírito e a desaparição das cascas” (6), vale dizer dos elementos inferiores do “corpo astral”. Os espíritas falam constantemente de homens que passaram anos sem se dar conta de que estavam mortos, mantendo todas as preocupações de sua existência terrestre e imaginando-se ainda desempenhando suas ações habituais, e alguns dentre eles atribuíam-se mesmo a  bizarra função de “instrutores de espíritos” a este respeito; Eugène Nus (7) e outros contaram muitas histórias sobre isto bem antes de Papus, de modo que a fonte de onde ele tirou sua idéia do “estado de turbação” fica fora de dúvida. Convém mencionar ainda as conseqüências atribuídas às ações através da série de existências sucessivas, aquilo que os teosofistas chamam de “karma”; ocultistas e espíritas rivalizam em matéria de detalhes inverossímeis  sobre estas coisas, e voltaremos a elas quando falarmos da reencarnação; ainda aí, os espíritas podem reivindicar a prioridade. Prosseguindo neste exame, encontraremos muitos outros pontos onde as similaridades podem ser explicadas por empréstimos feitos ao espiritismo, a quem o ocultismo deve muito mais do que gostaria; é verdade que tudo junto não vale grande coisa; mas o que é mais importante, é ver como e em que medida os ocultistas admitem a hipótese fundamental do espiritismo, que é a comunicação com os mortos. 

Podemos constatar no ocultismo uma preocupação visível de dar às teorias um aspecto “científico”, no sentido moderno; quando se recusa, às vezes com razão, a competência dos sábios comuns em certas áreas, seria talvez mais lógico não procurar imitar seus métodos nem se inspirar em seu espírito; mas estamos apenas constatando um fato. É preciso de resto notar que os médicos, dentre os quais são recrutados muitos dos “psiquistas” de que falaremos mais adiante, forneceram também um importante contingente ao ocultismo, sobre o qual os hábitos mentais oriundos de sua educação e do exercício profissional reagiram manifestamente; é assim que podemos explicar o grande espaço que ocupam, notadamente nas obras de Papus, as teorias que podemos chamar de “psico-fisiológicas”. A partir daí, a parte da experimentação deveria também ser considerável, e os ocultistas, para terem uma atitude “científica” ou reputada como tal, deveria voltar sua atenção principalmente para o lado dos fenômenos, que as verdadeiras escolas iniciáticas sempre trataram, bem ao contrário, como coisas totalmente negligenciáveis; acrescentemos que isto não conseguiu trazer para o ocultismo nem o favor nem a simpatia dos sábios oficiais. De resto, a atração pelos fenômenos não se exerceu senão naqueles que era movidos por preocupações “científicas”; alguns os cultivaram com intenções bem outras, e com não menos ardor, pois é este lado do ocultismo que, juntamente com as “artes adivinhatórias”, interessa uma grande parte de seu público, onde se contam naturalmente todos aqueles que eram mais ou menos espíritas. À medida em que este elemento cresceu, foi relaxando cada vez mais o rigor “científico” que se apregoava de início; mas, independentemente deste desvio, o caráter experimental e “fenomenista” do ocultismo o predispôs sempre a manter com o espiritismo relações que, mesmo não sendo sempre agradáveis e corteses, nem por isso deixaram de ser comprometedoras. O que temos a lembrar, não é que o ocultismo não tenha admitido a realidade desses fenômenos, que também não contestamos, nem que ele não os tenha estudado especificamente, e voltaremos a isto a propósito do “psiquismo”; mas é a excessiva importância que ele atribuiu a estes estudos, dadas as suas pretensões a uma ordem intelectual mais elevada, e principalmente o fato de ter admitido parcialmente a explicação espírita, procurando somente reduzir o número de casos em que ela se aplica. “O ocultismo, diz Papus, admite como absolutamente reais todos os fenômenos do espiritismo. Entretanto, ele restringe consideravelmente a influência dos espíritos na produção destes fenômenos, e os atribui a uma variedade de outras influências em ação no mundo invisível” (8). Não é preciso dizer que os espíritas protestam energicamente contra esta restrição, tanto quanto contra a afirmação de que “o ser humano divide-se em inúmeras entidades após a morte, e o que vem comunicar-se não é o ser inteiro, mas um fragmento do ser, uma concha astral”; e de resto acrescenta-se a isto que, de modo geral, “a ciência oculta é muito difícil de compreender e muito complicada para os leitores habituais dos livros espíritas” (9), o que não é elogioso para estes. De nossa parte, a partir do momento em que se admite em qualquer medida a “influência dos espíritos” nos fenômenos, não vemos qual o interesse em restringi-la, seja quanto ao número de casos onde ela se manifesta, seja quanto às categorias de “espíritos” que podem ser realmente invocados. Sobre este último ponto, com efeito, eis o que diz ainda Papus: “Parece incontestável que as almas dos mortos amados possam ser invocadas e possam vir sob certas condições. Partindo deste ponto verdadeiro, os experimentadores de imaginação ativa não tardaram a pretender que as almas de todos os mortos, antigos e modernos, eram capazes de responder à ação de uma invocação mental” (10). Existe algo de extraordinário neste modo de criar uma exceção para os “mortos amados”, como se considerações sentimentais fossem capazes de dobrar as leis naturais! Ou a invocação das “almas dos mortos”, no sentido espírita, é uma possibilidade, ou não é; no primeiro caso, é bastante arbitrário pretender assinalar limites a esta possibilidade, e seria melhor talvez aliar-se simplesmente ao espiritismo. Em todo caso, fica mal, em tais condições, repreender a este o caráter sentimental ao qual ele deve certamente grande parte do seu sucesso, e não é direito fazer declarações deste gênero: “A Ciência deve ser verdadeira e não sentimental, para não dar lugar à argumentação que pretende que a comunicação com os mortos não pode ser discutida por constituir-se numa idéia consoladora” (11). Isto é aliás perfeitamente justo, mas, para estar autorizado a dizê-lo, é preciso estar isento de qualquer sentimentalismo, o que não é o caso; sob este aspecto, não há mais que uma diferença de grau entre o espiritismo e o ocultismo, e, neste último, as tendências sentimentais e pseudo-místicas foram se acentuando no decurso dessa decadência a que já fizemos alusão. Mas, desde os primeiros tempos, e sem sairmos da questão da comunicação com os mortos, essas tendências já se afirmavam suficientemente em frases como esta: “Quando uma mãe desesperada vê sua filha manifestar-se diante de si de uma maneira evidente, quando uma criança deixada só sobre a terra vê seu pai defunto aparecer-lhe e lhe prometer seu apoio, existem oitenta chances sobre cem que estes fenômenos tenham sido produzidos por “espíritos”, o eu dos defuntos” (12). A razão pela qual estes casos são privilegiados é que, parece, “para que um espírito, para que o próprio ser venha a se comunicar, é preciso que exista relação fluídica entre o invocador e o invocado”. É preciso assim acreditar que o sentimento deve ser considerado como qualquer coisa “fluídica”; não falamos a pouco de “materialismo transposto”? De resto, toda esta história de “fluídos” vem dos magnetizadores e dos espíritas; aqui também, na terminologia como nas concepções, o ocultismo sofreu a influência de escolas que ele qualifica desdenhosamente como “primárias”.

Os representantes do ocultismo saíram algumas vezes de sua atitude de desprezo em relação aos espíritas, e os avanços que fizeram em certas circunstâncias não deixam de lembrar algo do discurso de 1898 em que Mme. Annie Besant, diante da Aliança Espiritualista de Londres, declarou que os dois movimentos, “espiritualista” e teosofista, tinham tido a mesma origem. Os ocultistas foram ainda mais longe nisso, chegando a afirmar que suas teorias não eram apenas aparentadas às dos espíritas, o que é incontestável, mas que eram idênticas no fundo; Papus o disse expressamente na conclusão do relatório que apresentou no Congresso Espírita e Espiritualista de 1889: “Como é fácil de ver, as teorias do espiritismo são as mesmas do ocultismo, mas menos detalhadas. O alcance dos ensinamentos do espiritismo é maior, pois ele pode ser compreendido por um número maior de pessoas. Os ensinamentos do ocultismo, mesmo os teóricos, são, por sua complexidade mesma, reservados aos cérebros amoldados às dificuldades das concepções abstratas. Mas no fundo a doutrina que ensinam estas duas grandes escolas é idêntica” (13). Existe aí um certo exagero, e podemos talvez qualificar esta atitude como “política”, sem no entanto atribuir aos ocultistas intenções comparáveis às de Annie Besant; de resto, os espíritas sempre desconfiaram e não responderam a estes avanços, parecendo temer uma tentativa de fusão com outros movimentos. Seja como for, podemos dizer que o “ecletismo” dos ocultistas franceses é singularmente abrangente, e bastante incompatível com sua pretensão de possuir uma doutrina séria apoiada sobre uma tradição respeitável; nós iremos mais longe, e diremos que qualquer escola que tenha qualquer coisa em comum com o espiritismo perde por isso mesmo todo direito de apresentar suas teorias como a expressão de um verdadeiro esoterismo.

Apesar de tudo, não se deve confundir o ocultismo com o espiritismo; se esta confusão é cometida por pessoas mal informadas, o erro, é verdade, não se deve apenas à sua ignorância, mas também em parte, como vimos, às imprudências dos próprios ocultistas. Entretanto, de modo geral, existe entre os dois movimentos uma espécie de antagonismo, mais violento por parte dos espíritas, mais discreto por parte dos ocultistas; basta aliás, para irritar as convicções e as susceptibilidades dos espíritas, que os ocultistas levantem algumas de suas extravagâncias, o que não os impede de cometê-las eles próprios em outras ocasiões. Podemos compreender agora porque dissemos que, para ser espírita, não basta apenas admitir a comunicação com os mortos em alguns casos mais ou menos excepcionais; por outro lado, os espíritas não querem nem ouvir falar dos elementos que os ocultistas fazem intervir na produção dos fenômenos (e sobre os quais voltaremos), a menos de alguns poucos que, menos limitados e menos fanáticos do que os outros, aceitam que haja às vezes uma ação inconsciente do médium e de seus assistentes. Enfim, existe dentro do ocultismo uma quantidade de teorias que não tem nenhuma correspondência com o espiritismo; qualquer que seja seu valor real,  elas são testemunho de preocupações menos restritas, e, em suma, os ocultistas enganam-se quando, com maior ou menor sinceridade, pretendem tratar as duas escolas em pé de igualdade; e é verdade que, para ser superior ao espiritismo, uma doutrina não precisa ser sólida nem mostrar nenhuma grande elevação espiritual.



NOTAS

1.      Papus, Traité méthodique de Science oculte, pg. 324.
2.      Papus, Traité méthodique de Science oculte, pgs. 324 e 909.
3.      Papus, Traité méthodique de Science oculte, pgs. 331.
4.      Le Théosophisme, pgs. 124-129.
5.      Papus, Traité méthodique de Science oculte, pgs. 327.
6.      L’état de trouble et l’évolution posthume de l’être humain, pg. 17.
7.      A la recherche des destinées.
8.      Papus, Traité méthodique de Science oculte, pgs. 347.
9.      Ibid., pg. 344.
10.  Ibid., pg. 331.
11.  Papus, Traité méthodique de Science oculte, pgs. 324.
12.  Ibid., pg. 847
13.  Papus, Traité méthodique de Science oculte, pgs. 359-360.



VI
ESPIRITISMO E PSIQUISMO


Dissemos antes que, se nós negamos de modo absoluto todas as teorias do espiritismo, nem por isso contestamos a realidade dos fenômenos que os espíritas invocam para apoio destas teorias; vamos nos explicar melhor sobre este ponto. O que queremos dizer, é que não pretendemos contestar “a priori” a realidade de nenhum fenômeno, desde que este fenômeno nos pareça possível; e devemos admitir a possibilidade de tudo o que não seja intrinsecamente absurdo, ou seja de tudo o que não implique nenhuma contradição; em outros termos, admitimos em princípio tudo o que responde à noção da possibilidade entendida num sentido que seja ao mesmo tempo metafísico, lógico e matemático. Agora, quando se trata da realização de uma possibilidade em um caso particular e definido, é preciso naturalmente verificar outras condições: dizer que admitimos em princípio todos os fenômenos de que se trata, não significa que aceitamos, sem mais exame, todos os exemplos que são reportados com garantias mais ou menos sérias; mas não faremos a sua crítica, o que é tarefa dos experimentadores, e, do ponto de vista em que nos colocamos, isto pouco nos importa. Com efeito, a partir do momento em que um certo gênero de fatos é possível, é sem interesse para nós que tal ou qual fato particular relacionado seja verdadeiro ou falso; a única coisa que pode nos interessar é saber como os fatos desta ordem podem ser explicados, e, se tivermos disto uma explicação satisfatória, qualquer outra discussão nos parece supérflua. Compreendemos bem que esta não é a atitude do sábio que amontoa fatos para chegar a formar uma convicção, e que só conta com o resultado de suas observações para edificar uma teoria; mas nosso ponto de vista está muito distante disto, e de resto não achamos que os simples fatos possam realmente servir de base para uma teoria, pois eles sempre podem ser explicados por muitas teorias diferentes. Sabemos que os fatos em questão são possíveis, porque podemos ligá-los a certos princípios que conhecemos; e, como esta explicação não tem nada em comum com as teorias espíritas, temos o direito de dizer que estes fenômenos e seu estudo são coisas absolutamente independentes do espiritismo. Ademais, sabemos que tais fenômenos existem efetivamente; temos, a este respeito, testemunhos que não poderiam ter sido influenciados pelo espiritismo, alguns por lhe serem anteriores e outros por provirem de meios aonde ele jamais penetrou, de países onde seu nome é tão desconhecido como sua doutrina; os fenômenos, como já dissemos, nada tem de novo nem de exclusivo ao espiritismo. Não temos assim nenhuma razão para colocar em dúvida a existência desses fenômenos, mas ao contrário podemos vê-los como bem reais; mas está claro que aqui se trata de sua simples existência, e de resto, para os objetivos que nos propomos aqui, qualquer outra consideração é perfeitamente inútil.

Se tomamos estas precauções e formulamos estas reservas, é porque, sem falar nos relatos que foram inteiramente inventados por pessoas de má fé e por razões de conveniência, inúmeros casos de fraudes já se produziram, como o reconhecem os próprios espíritas (1); mas daí a sustentar que tudo não passa de superstição há uma distância muito grande. Não entendemos porque os que negam os fenômenos insistem tanto em que o fazem baseados nas fraudes constatadas, acreditando ter aí um argumento sólido em seu favor; e entendemos tanto menos na medida em que, como já dissemos (2), toda superstição é sempre uma imitação da realidade; esta imitação pode ser mais ou menos deformada, mas enfim só se pode simular algo que existe, e seria dar muito crédito aos fraudadores achar que eles seriam capazes de realizar qualquer coisa inteiramente nova, a que a imaginação humana nunca pudesse chegar. Além disso, existem nas sessões espíritas fraudes de muitas categorias: o caso mais simples, mas não o único, é o do médium profissional que, não podendo produzir fenômenos autênticos por qualquer motivo, é levado a simulá-los por interesse; é por isso que todo médium remunerado deve ser tido como suspeito e observado de perto; até porque, independentemente de interesses, a própria vaidade pode incitar um médium à fraude. Já aconteceu à maior parte dos médiuns, mesmo aos mais reputados, serem pegos em flagrante delito; isto não prova que eles não possuam faculdades reais, mas apenas que eles não as podem usar à vontade; os espíritas, freqüentemente muito impulsivos, passam nestes casos de um extremo a outro, acusando de modo absoluto como falsos médiuns aqueles que tiveram essa desventura, mesmo que tenha sido uma só vez. Os médiuns não são santos, como querem crer alguns espíritas fanáticos, que os cercam de um verdadeiro culto; eles são doentes, o que é bem diferente, apesar das teorias absurdas de alguns psicólogos contemporâneos. É preciso sempre elevar em conta este estado anormal, que permite explicar fraudes de um outro gênero: o médium, como o histérico, tem esta necessidade irresistível de mentir, mesmo sem razão, que todos os hipnotizadores constatam em seus pacientes, não havendo porém aí mais do que uma fraca responsabilidade, se é que há alguma; além disso, ele é eminentemente apto, não apenas a se auto-sugestionar, mas também a sofrer as sugestões de seu grupo, e a agir em conseqüência disto sem saber o que faz: basta pedir-lhe a produção de um fenômeno determinado para que ele seja levado a simulá-lo automaticamente (3). Assim, existem fraudes que são semi-conscientes, e outras que são totalmente inconscientes, nas quais o médium demonstra habilidades que ele está longe de possuir em seu estado normal; tudo isto provém de uma psicologia anormal, que aliás nunca foi estudada como deveria; muitas pessoas acham que existe, mesmo no domínio das simulações, um objeto de pesquisa de grande interesse. Deixaremos agora de lado esta questão da fraude, expressando nosso desgosto em ver que as concepções normais dos psicólogos, bem como seus meios de investigação, sejam tão limitados, a ponto de que coisas como as que mencionamos lhes escapem quase completamente, e que, mesmo quando eles pretendem se ocupar delas, não tenham condição de compreender praticamente nada.

Não somos os únicos a pensar que o estudo dos fenômenos pode ser empreendido de modo absolutamente independente das teorias espíritas; é esta também a opinião daqueles que se chamam “psiquistas”, que são ou pretendem ser em geral experimentadores sem idéias preconcebidas (dizemos em geral, porque também aí existem muitas distinções a fazer), e que inclusive evitam formular quaisquer teorias. Conservamos os termos “psiquismo” e “fenômenos psíquicos” porque são os mais empregados, e também porque não existem outros melhores à disposição; mas eles não deixam de dar lugar a algumas críticas: assim, com todo o rigor, “psíquico” e “psicológico” deveriam ser perfeitamente sinônimos, e no entanto não é assim que eles são entendidos. Os fenômenos ditos “psíquicos” estão inteiramente fora do domínio da psicologia clássica, e, mesmo quando se supõe que eles tenham alguma relação com esta, esta relação é muito longínqua; de resto, de nossa perspectiva, os experimentadores iludem-se quando imaginam poder encaixar todos esses fatos indistintamente no âmbito daquilo que se convencionou chamar de “psico-fisiologia”. A verdade é que existem fatos de tipos muito diferentes, e que não podem ser ligados a uma explicação única; mas a maior parte dos sábios não é tão desprovida de idéias preconcebidas como se imagina, e, sobretudo quando se trata de “especialistas”, há entre eles uma tendência a reduzir tudo ao objeto de seus estudos particulares; isto equivale a dizer que as conclusões dos “psiquistas”, quando eles as fornecem, só devem ser aceitas a título de inventário. As próprias observações podem ser afetadas por pré-julgamentos; os praticantes das ciências experimentais costumam ter idéias muito próprias a respeito do que é possível e do que não é, e, com a maior boa fé do mundo, obrigam os fatos a concordar com suas idéias; por outro lado, aqueles mesmos que são os maiores opositores das teorias espíritas podem, malgrado sua vontade, sofrer em certa medida a influência do espiritismo. Como quer que seja, é certo que os fenômenos de que se trata podem ser objeto de uma ciência experimental como qualquer outra, diferente das demais sem dúvida, mas da mesma ordem, e com a mesma importância e interesse; não vemos porque alguns qualificam os esses fenômenos de “transcendentes” ou de “transcendentais”, o que é um pouco ridículo (4). Esta última observação leva a outra: é que a denominação de “psiquismo”, malgrado seus inconvenientes, é em todo caso preferível à de “metapsíquica”, inventada pelo Dr. Charles Richet e logo adotada pelo Dr. Gustave Geley e alguns outros; “metapsíquica”, com efeito, parece ser uma palavra calcada em “metafísica”, o que não se justifica por nenhuma analogia (5).  Qualquer que seja a opinião que se tenha sobre a natureza e a causa dos fenômenos em questão, podemos vê-los como “psíquicos”, tanto mais que este termo ganhou um sentido bastante vago entre os modernos, e não como sendo “além do psíquico”: alguns, ao contrário, estão aquém; por outro lado, o estudo de não importa qual fenômeno fará sempre parte da “física” no sentido geral em que a entendiam os antigos, ou seja como o conhecimento da natureza, sem nenhuma relação com a metafísica, que é o que está “além da natureza” e portanto além de toda experiência possível. Não há nada que possa estar em paralelo com a metafísica, e todos os que sabem verdadeiramente o que ela é só podem protestar energicamente contra estas assimilações; mas é verdade que, hoje em dia, nem os filósofos nem os sábios parecem ter mais nenhuma idéia do que se trata realmente.

Dissemos que existem muitas espécies de fenômenos psíquicos, e acrescentaremos, a respeito, que o domínio do psiquismo nos parece susceptível de estender-se a outros fenômenos que não os do espiritismo. É verdade que os espíritas são extremamente invasivos: eles se esforçam em explorar em proveito de suas idéias uma quantidade de fatos que deveriam permanecer fora de sua alçada, por não serem provocados por suas práticas e por não ter nenhuma relação direta ou indireta com suas teorias, pois não se pode fazer intervir em tudo os “espíritos dos mortos”: sem falar nos “fenômenos místicos”, no sentido próprio e teológico desta expressão, fenômenos que de resto escapam totalmente à competência dos comum dos sábios, citaremos apenas os fatos que costumam ser reunidos sob o nome de “telepatia”, e que são incontestavelmente manifestações de seres atualmente vivos (6). As inacreditáveis pretensões dos espíritas em anexar as coisas mais diversas contribuem para criar e manter no público muitas confusões: já vimos em muitas ocasiões pessoas confundirem o espiritismo com o magnetismo e mesmo com o hipnotismo; isso não aconteceria com tanta freqüência se os espíritas não se metessem com fatos que não lhes dizem respeito absolutamente. A bem dizer, dentre os fenômenos que se produzem nas sessões espíritas, existem alguns que provém efetivamente do magnetismo ou do hipnotismo, e nos quais o médium comporta-se como sonâmbulo; estamos aludindo principalmente ao fenômeno que os espíritas denominam “encarnação”, e que não passam de casos de “estados segundos”, impropriamente chamados de “múltiplas personalidades”, que se manifestam freqüentemente também em doentes e pessoas hipnotizadas; mas, naturalmente, a interpretação espírita é completamente diferente. A sugestão desempenha igualmente um papel importante em tudo isso, e tudo o que é sugestão e transmissão de pensamento liga-se evidentemente ao magnetismo ou ao hipnotismo (não vamos insistir sobre a distinção que é preciso fazer entre estas duas coisas, que aliás é bem difícil de precisar, e afinal pouco importa aqui); mas, a partir do momento em que um fenômeno cai neste campo, o espiritismo já não tem mais nada a dizer. Ao contrário, não vemos inconveniente em que estes fenômenos sejam ligados ao psiquismo, cujos limites são bastante indecisos e mal definidos; talvez o ponto de vista dos experimentadores modernos não se oponha a que se trate como uma ciência única aquilo que seria objeto de muitas ciências distintas para aqueles que as estudam de outro modo, e que, digamo-lo claramente, sabem melhor do que se trata em realidade.

Isso nos conduz a falar um pouco a respeito das dificuldades do psiquismo: se os sábios não chegam, neste domínio, a obter resultados seguros e satisfatórios, não é só por manejarem forças que conhecem mal, mas sobretudo porque estas forças não agem do mesmo modo como aquelas que estão habituados a manipular, e porque elas não podem ser submetidas aos métodos de observação que funcionam com estas últimas. Com efeito, os sábios não podem vangloriar-se de conhecer com certeza a verdadeira natureza da eletricidade, por exemplo, e no entanto isto não os impede de estudá-la do seu ponto de vista “fenomenista”, nem de utilizá-la sob o aspecto das aplicações práticas; é preciso então que, no caso que nos ocupa, haja algo além desta ignorância com a qual os experimentadores resignam-se tão facilmente. O que importa lembrar, é que a competência de um “especialista” é qualquer coisa de muito limitada; fora de seu domínio habitual, ele não pode reivindicar uma autoridade maior do que a de qualquer um, e, seja qual for o seu valor, ele não terá mais vantagens do que a que lhe pode dar o hábito de uma certa precisão em suas observações; e mesmo esta vantagem não compensaria totalmente certas deformações profissionais. É por isso que as experiências psíquicas de Crookes, para tomarmos um dos exemplos mais conhecidos, não tem a nossos olhos a importância excepcional que muitos se sentem obrigados em lhes atribuir; reconhecemos de bom grado a competência de Crookes em química e física, mas não vemos razão para estendê-la a uma ordem completamente diferente. Os mais sérios títulos científicos não garantem sequer os experimentadores contra os acidentes mais vulgares, como deixar-se simplesmente enganar por um médium: isto possivelmente aconteceu a Crookes; certamente aconteceu ao Dr. Gibier, e as famosas histórias da vila Carmem, em Alger, são pouco lisonjeiras à sua perspicácia. De resto, tudo isto é desculpável, pois essas coisas são próprias a derrotar um físico ou um fisiologista, e até mesmo um psicólogo; e, devido a um grosseiro efeito da especialização, nada é mais ingênuo e indefeso do que certos sábios quando são colocados fora de sua esfera habitual: não conhecemos exemplo melhor disto do que a fantástica coleção de autógrafos que o célebre falsário Vrain-Lucas fez aceitar como autênticos pelo matemático Michel Chasles; nenhum psiquista atingiu até agora semelhante grau de extravagante credulidade (7).

Mas não é só diante das fraudes que os experimentadores se vêem desarmados, na falta de um melhor conhecimento da psicologia especial dos médiuns e de outros pacientes a que eles recorrem; eles estão também expostos a outros perigos. Em primeiro lugar, quanto ao modo de conduzir experimentos tão diferentes daqueles a que estão acostumados, estes sábios são mergulhados em grandes embaraços, ainda que não o reconheçam; assim, eles não compreendem que existem fatos que não podem ser reproduzidos à vontade, e que estes fatos sejam entretanto tão reais como todos os outros; eles pretendem também impor condições arbitrárias ou impossíveis, como exigir a produção em plena luz de fenômenos para os quais a escuridão pode ser indispensável; eles ririam certamente, e com todo direito, do ignorante que, no domínio das ciências físico-químicas, demonstrasse tamanho desconhecimento de todas as leis e pretendesse entretanto observar alguma coisa a todo custo. Ademais, de um ponto de vista mais teórico, estes mesmos sábios costumam desprezar os limites da experimentação, exigindo o que ela não pode dar; como eles dedicam-se a ela exclusivamente, imaginam de boa vontade que ela é a única fonte de todo conhecimento possível; e, de resto, um especialista está pior colocado do que qualquer outro para apreciar os limites além dos quais seus métodos habituais cessam de ter validade. Enfim, o mais grave é o seguinte: é sempre extremamente imprudente, como já dissemos, colocar em jogo forças das quais se ignora tudo; ora, a este respeito, os psiquistas mais “científicos” não tem grande vantagem sobre os espíritas vulgares. Existem coisas com as quais não se mexe impunemente, quando não se tem a diretriz doutrinal necessária para evitar extravio; nunca é demais repetir isto, tanto mais que, neste domínio, uma tal desorientação é um dos efeitos mais comuns e mais funestos das forças sobre as quais se experimenta; o número de pessoas que aí perderam a razão prova-o suficientemente. Ora, a ciência comum é absolutamente incapaz de fornecer a menor diretriz doutrinal, e não é raro encontrar psiquistas que, sem chegar a enlouquecer propriamente, perderam-se entretanto da maneira mais deplorável: colocamos neste caso todos aqueles que, após terem iniciado com intenções puramente “científicas”, acabaram por serem “convertidos” ao espiritismo mais ou menos completamente, e mais ou menos abertamente. Diremos mais: já é vexatório, para homens que deveriam saber refletir, a simples admissão da possibilidade da hipótese espírita, e no entanto existem sábios (diríamos mesmo que quase todos) que não vêem porque não admiti-la, e que, mesmo descartando-a “a priori”, tem medo de faltar com a imparcialidade a que se agarram; eles não acreditam nelas, bem entendido, mas não a rejeitam de modo absoluto, mantendo-se na reserva, numa atitude de dúvida pura e simples, tão distante da negação quanto da afirmação. Infelizmente, existem muitas chances de que aquele que aborda os estudos psíquicos com esta disposição escorregue imperceptivelmente para o lado espírita, mais do que para o lado oposto; em primeiro lugar, sua mentalidade tem ao menos um ponto em comum com a dos espíritas, na medida em que é essencialmente “fenomenista” (não tomamos este termo no sentido em que ele é aplicado a uma teoria filosófica, mas designamos simplesmente com isto essa espécie de superstição do fenômeno que faz o fundo do espírito “científico”); em seguida, existe a própria influência do meio espírita, com o qual o psiquista vai entrar necessariamente em contato ainda que indireto, nem que seja por intermédio dos médiuns com os quais irá trabalhar, e este meio é um espantoso cadinho de sugestão coletiva e recíproca. O experimentador incontestavelmente sugestiona o médium, o que falsifica os resultados se ele tiver a menor idéia preconcebida , por obscura que seja; mas, sem se dar conta, ele é talvez sugestionado por aquele; e isto não seria nada se só existisse o médium, mas existem também todas as influências que este carrega consigo, e das quais o mínimo que se pode dizer é que são eminentemente malsãs. O psiquista, nestas condições, vai se ver à mercê de um incidente qualquer, normalmente de ordem sentimental: a Lombroso, Eusapia Paladino ver aparecer o fantasma de sua mãe; Sir Oliver Lodge recebeu “comunicações” de seu filho morto na guerra; não é preciso mais para determinar as “conversões”. Estes casos são talvez mais freqüentes do que se imagina, pois existem certamente muitos sábios que, para não se colocar em descordo com seu passado, não ousam confessar sua “evolução” dizendo-se francamente espíritas, nem mesmo manifestar simplesmente pelo espiritismo uma simpatia mais acentuada. Existem mesmo alguns que não gostam que se saiba que se ocupam de estudos psíquicos, como se isto fosse diminuí-los aos olhos de seus confrades e do público, mais acostumados a assimilar essas coisas ao espiritismo; é assim que Mme. Curie e M. d’Arsonval, por exemplo, esconderam durante muito tempo que se dedicavam a este gênero de experimentos. É curioso citar a propósito estas linhas de um artigo da Revue Scientifique consagrado ao livro do Dr. Gibier a que nos referimos: “O Dr. Gibier chama para si a formação de uma sociedade para estudar este novo ramo da fisiologia psicológica, e parece crer que seja ele o único, senão o primeiro dentre os sábios competentes, a interessar-se por esta questão. Que ele fique tranqüilo e satisfeito. Um certo número de pesquisadores muito competentes, os mesmos que começaram pelo princípio e já colocaram uma certa ordem na confusão do sobrenatural (sic), ocupam-se desta questão e continuam sua obra... sem entreter o público” (8). Semelhante atitude é verdadeiramente espantosa entre pessoas que, de ordinário, tanto amam a publicidade, e que proclamam sem cessar que tudo aquilo de que eles se ocupam pode e deve ser divulgado tão amplamente quanto possível. Acrescentemos que o diretor da Revue Scientifique, nesta época, era o Dr. Richet; este, ao menos, não se manteve sempre fechado dentro desta prudente reserva.

Existe ainda uma outra observação que convém fazer: é que certos psiquistas, sem serem suspeitos de ligação com o espiritismo, possuem singulares afinidades com o “neo-espiritualismo” em geral, ou com uma ou outra das suas escolas; os teosofistas, em particular, vangloriam-se de ter atraído muitos aos seus quadros, e um de seus órgãos assegurava outrora “que todos os sábios que se ocuparam do espiritismo e que são citados como clássicos, não chegaram todos a crer no espiritismo (com exceção de um ou dois), que quase todos deram interpretações que se aproximam das dos teosofistas, e que os mais célebres são membros da Sociedade Teosófica” (9). É certo que os espíritas reivindicam com muita facilidade como sendo dos seus todos aqueles que se misturaram de perto ou de longe com seus estudos e que não são seus adversários declarados; mas os teosofistas, por seu lado, são talvez demasiadamente prontos a divulgar certas adesões que nunca tiveram nada de definitivo; eles deveriam no entanto ter na memória o exemplo de Myers e de diversos outros membros da Sociedade de Pesquisas Psíquicas de Londres, assim como o do Dr. Richet, que apenas passou pela organização, e que esteve entre os primeiros que, na França, fizeram eco à denúncia das artimanhas de Mme. Blavatsky pela dita Sociedade de Pesquisas Psíquicas (10). Seja como for, a frase que citamos continha talvez uma alusão a Flammarion, que foi entretanto sempre mais próximo do espiritismo do que de qualquer outra concepção; ela também apontava certamente para William Crookes, que foi efetivamente aderente da Sociedade Teosófica em 1883, e que foi inclusive membro do Conselho Diretor da London Lodge. Quanto ao Dr. Richet, seu papel no movimento “pacifista” mostra que ele sempre guardou algo em comum com os “neo-espiritualistas”, dentre os quais as tendências humanitárias afirmam-se ruidosamente; para quem está ao corrente destes movimentos, coincidências como estas constituem um sinal bem mais claro e mais característico do que muitos poderão crer. Dentro da mesma ordem de idéias, já fizemos alusão às tendências anti-católicas de certos psiquistas como o Dr. Gibier; nós poderíamos mesmo, a respeito deste, falar mais genericamente em tendências anti-religiosas, a menos que se trate desta “religião leiga”, segundo a expressão de Charles Fauvety, um dos primeiros apóstolos do espiritismo francês; eis, com efeito, algumas linhas que extraímos de sua conclusão, e que são um exemplo bastante de suas declamações: “Nós temos fé na ciência e cremos firmemente que ela libertará  para sempre a humanidade do parasitismo de todas as espécies de brahmes (o autor quer dizer sacerdotes), e que a religião, ou antes a moral tornada científica, será representada, um dia, por uma seção própria nas academias de ciências do futuro” (11). Não queríamos insistir sobre estas asneiras, que infelizmente não são inofensivas; haveria entretanto um interessante estudo a fazer sobre a mentalidade das pessoas que invocam assim a “Ciência” por qualquer motivo, e que pretendem misturá-la ao que há de mais estranho ao seu domínio; esta é mais uma das formas que o desequilíbrio intelectual toma entre nossos contemporâneos, e que talvez sejam mais próximas  umas das outras do que se imagina: não existe uma “misticismo científico”, diríamos até um “misticismo materialista”, que são, tanto quanto as aberrações “neo-espiritualistas”, evidentes desvios do sentimento religioso (12)?

Tudo o que dissemos dos sábios, podemos dizer também dos filósofos que também se ocupam do psiquismo; eles são muito menos numerosos, mas enfim existem. Já tivemos ocasião (13) de mencionar o caso de William James, que, no fim da vida, manifestou tendências pronunciadas pelo espiritismo; é necessário insistir nisso, tanto mais que alguns consideraram “um pouco pesado” o termos qualificado este filósofo como espírita e sobretudo como “satanista inconsciente”. A este respeito, advertiremos inicialmente nossos eventuais contraditores que possuímos guardadas coisas ainda mais “pesadas”, o que não as impede de serem rigorosamente verdadeiras; e de resto, se eles soubessem o que pensamos da imensa maioria dos filósofos modernos, os admiradores do que se convencionou chamar “grandes homens” ficariam sem dúvida espantados. Sobre aquilo que chamamos “satanismo inconsciente”, nós nos explicaremos mais tarde; mas, quanto ao espiritismo de William James, seria preciso lembrar que isto só aconteceu no seu último período (que chamaríamos de “florescimento final”), pois as idéias deste filósofo variaram prodigiosamente. Mas há um fato inconteste: é que William James prometeu fazer, após sua morte, tudo o que lhe fosse possível para comunicar-se com seus amigos ou outros experimentadores; esta promessa, feita certamente “no interesse da ciência”, prova que ele admitia a possibilidade da hipótese espírita (14), coisa grave para um filósofo (ou que deveria ser grave se a filosofia fosse o que ela deveria ser), e temos razões para supor que ele foi ainda mais longe neste sentido; não é preciso dizer, de resto, que uma multidão de médiuns americanos registraram “mensagens” assinadas por ele. Esta história nos lembra a de outro americano não menos ilustre, o inventor Edison, que recentemente pretendia haver descoberto uma maneira de se comunicar com os mortos (14); não sabemos os desdobramentos disso, pois um grande silêncio foi feito, mas não temos dúvidas dos resultados; este episódio é instrutivo para mostrar que os sábios mais incontestáveis, e que diríamos os mais “positivos”, não estão ao abrigo do contágio espírita. Mas voltemos aos filósofos: ao lado de William James, havíamos mencionado Bergson; quanto a este, nós nos contentaremos de reproduzir, por tão significativa, a frase que citamos então: “Seria uma grande coisa poder estabelecer sobre o terreno da experiência a probabilidade da sobrevivência por um tempo x” (15). Esta declaração é no mínimo inquietante, e prova que seu autor, já tão perto das idéias “neo-espiritualistas” por mais de um lado, engajou-se numa senda bem perigosa, o que lamentamos, principalmente por aqueles que, nele depositando sua confiança, arriscam-se a perder o rumo em seguida. Decididamente, para prevenir-se contra os piores absurdos, a filosofia não vale mais do que a ciência, pois ela não é capaz, não diremos de provar (sabemos que isto seria pedir demais), mas de fazer compreender ou apenas pressentir, por confusamente que seja, que a hipótese espírita é uma impossibilidade pura e simples.

Nós poderíamos dar muitos outros exemplos, tanto mais que, mesmo deixando de lado aqueles que são mais ou menos suspeitos de espiritismo, os psiquistas com tendências “neo-espiritualistas” parecem estar em maior número; na França, é sobretudo o ocultismo,  no sentido que definimos no capítulo anterior, que mais influenciou a maior pare deles. Assim, as teorias do dr. Grasset, que no entanto é católico, apresentam certas relações com as do ocultismo; as do Dr. Durand de Gros, do Dr. Dupouy, do Dr. Baraduc, do coronel de Rochas, aproximam-se ainda mais. Nós apenas citamos alguns nomes tomados ao acaso; quanto a fornecer os textos justificativos, não seria difícil, mas não podemos fazê-lo aqui sem nos afastarmos demasiado do nosso objeto. Ficaremos apenas com essas constatações, indagando se tudo isso não se explica por ser o psiquismo um domínio mal conhecido e mal definido, ou se não seria, dados tantos casos concordantes, o resultado inevitável de investigações temerárias conduzidas, neste domínio mais temível que qualquer outro, por pessoas que ignoram até as mais elementares precauções a tomar para abordá-lo com segurança. Para concluir, acrescentaremos apenas o seguinte: com todo o direito, o psiquismo é inteiramente independente, não apenas do espiritismo, mas também de toda sorte de “neo-espiritualismo”, e mesmo, se ele se pretende puramente experimental, de toda e qualquer teoria; de fato, os psiquistas são mais freqüentemente ao mesmo tempo “neo-espiritualistas” mais ou menos conscientes e mais ou menos confessos, e este estado de coisas é tão mais lamentável na medida em que coloca seus estudos, aos olhos de pessoas sérias e inteligentes, num descrédito que acabará por deixar o campo livre para os charlatões e os desequilibrados.



NOTAS

1.      O médium Dunglas Home encarregou-se, de modo bem pouco gentil para com seus colegas, de denunciar e explicar um grande número de fraudes (Les Lumières et les Ombres du Spiritualisme, pgs. 186-235)
2.      Le Théosophisme, pgs. 50-52.
3.      Lembraremos também o caso dos falsos médiuns que, conscientemente ou não, e provavelmente sob a influência ao menos parcial de uma sugestão, parecem ter sido instrumentos de uma ação muito misteriosa; a este propósito, remeteremos ao que dissemos das manifestações do pretenso “John King” ao expormos as origens do teosofismo.
4.      Existe até uma “Sociedade de estudos de fotografia transcendental”, fundada por Emmanuel Vauchez e presidida pelo Dr. Foveau de Courmelles, que tem por objetivo “encorajar e recompensar os fotógrafos dos seres e das radiações do espaço”; é curioso ver como certas palavras podem ser distorcidas em relação ao seu sentido normal.
5.      Recentemente o Dr. Richet, ao apresentar seu Traité de Métapsychique à Academia de Ciências, declarou textualmente: “Como Aristóteles, acima da física, introduziu a metafísica, acima da psique, eu apresento a metapsique”. Dificilmente se poderia ser mais modesto!
6.       Um grande número destes fatos foram reunidos por Gurney, Myers e Podmore, membros da Sociedade de Pesquisas Psíquicas de Londres, numa obra intitulada Phantasms of the Living. Existe uma tradução francesa desta obra, mas o tradutor achou de lhe dar o título bizarro de Les Hallucinations Télépathiques, que está em total desacordo com a intenção dos autores, pois se trata de fenômenos reais, e que revela curiosamente a estreiteza de visão da ciência oficial.
7.      Henri Poincaré, mais prudente que outros, ou mais consciente de sua falta de preparo, recusou-se a tentar uma experiência com Eusapia Paladino, coma certeza prévia, conforme ele escreveu, “de que seria enrolado” (artigo de Philippe Pagnant em Les Entretiens Idéalistes, junho de 1914, pg. 387).
8.      Revue Scientifique, 13 de Novembro de 1886, pgs. 631-632.
9.      Le Lotus, outubro de 1887.
10.  Numa carta que citamos em outra parte (Le Théosofisme, pg. 74), o Dr. Richet diz que ele conheceu Mme. Blavatsky por intermédio de Mme. de Barrau; a mesma pessoa desempenhou também um certo papel junto ao Dr. Gibier, como vemos por esta nota que vem na seqüência de um elogio do “grande e consciencioso sábio” Burnouf: “Devemos também uma menção especial à obra considerável de Louis Leblois, de Strasbourg, cujo conhecimento devemos a uma dama de grande mérito, Mme. Caroline de Barrau, mãe de um dos antigos alunos, hoje nosso amigo, o Dr. Emile de Barrau” (Le Spiritisme, pg. 110). A obra de Leblois, intitulada Les Bibles et les Initiateurs religieux de l’humanité, contribuiu, como as de Jacolliot, a inculcar no Dr. Gibier as falsas idéias que ele expressou sobre a Índia e suas doutrinas, e que assinalamos precedentemente.
11.  Le Spiritisme, pg. 383.
12.  A “religião da Humanidade”, inventada por Augusto Comte.
13.  Esta atitude foi  também a de um filósofo universitário francês, Emile Boirac, que, numa comunicação intitulada L’Étude scientifique du spiritisme, apresentada ao “Congresso de Psicologia Experimental” de 1911, declarou que a hipótese espírita representava “uma das explicações filosóficas possíveis dos fatos psíquicos”, e que não se podia rejeitá-la a priori como “anti-científica”; ela talvez não seja nem anti-científica nem anti-filosófica, mas ela é certamente anti-metafísica, o que é muito mais grave e mais decisivo.
14.  Já faz algum tempo que dois espíritas holandeses, os senhores Zaalberg van Zelst e Matla, construíram um “dinamistógrafo” ou “aparelho destinado à comunicação com o além sem médium” (Le Monde Psychique, março de 1912).
15.   L ‘Energie Spirituelle.

VII
A EXPLICAÇÃO DOS FENÔMENOS


Embora não seja nossa intenção estudar especialmente os fenômenos do espiritismo, devemos falar ao menos sumariamente sobre sua explicação, nem que seja para mostrar que se pode perfeitamente dispensar a hipótese espírita, antes de levantar contra ela razões mais decisivas. Lembramos que não é uma ordem lógica a que estamos seguindo: existem, além de toda consideração relativa aos fenômenos, razões plenamente suficientes para rejeitar de modo absoluto esta hipótese; uma vez demonstrada esta impossibilidade, é preciso, na falta de uma explicação pronta para os fenômenos, começar a procurar alguma. Entretanto, como a mentalidade de nossa época é toda voltada para o lado experimental, estará mais apta, na maior parte dos casos, a admitir que uma teoria é impossível e a examinar sem preconceitos as provas que lhes são exibidas, se primeiro ficar demonstrado que ela é inútil, e que existem outras teorias susceptíveis de substituí-la vantajosamente. Por outro lado, convém dizer antes de mais nada que muitos dos fatos em questão, senão todos, não se enquadram no campo das ciências ordinárias, não cabem dentro dos estreitos limites que os modernos atribuíram a estas, e são, em particular, totalmente alheios ao domínio da fisiologia e da psicologia clássica, contrariamente ao que pensam certos psiquistas que se iludem grandemente a respeito. Como nós não temos nenhum dos preconceitos da ciência oficial, não cremos ter de nos desculpar pela aparente estranheza de algumas considerações que se seguirão; mas é bom prevenir aqueles que, em razão dos hábitos adquiridos, poderão achá-las por demais extraordinárias. Isso tudo, repetimos, não quer dizer que atribuamos aos fenômenos psíquicos o menor caráter “transcendente”; de resto, nenhum fenômeno, de qualquer espécie que seja, não possui em si mesmo um tal caráter, mas isto não impede que existam muitos que escapam aos meios de ação da ciência ocidental moderna, que não é tão “avançada” como crêem seus admiradores, ou pelo menos só o é em alguns pontos muito específicos. A própria magia, pelo fato de ser uma ciência experimental, não tem absolutamente nada de
“transcendente”; o que pode ser visto como tal, é a “teurgia”, cujos efeitos, mesmo quando se parecem com os da magia, são devidos a causas completamente diferentes; e é precisamente a causa, e não o fenômeno que ela produz, que é de ordem transcendente. Para melhor compreensão, vamos nos permitir uma analogia com a doutrina católica (falamos apenas de analogia e não de assimilação, pois não nos colocamos do ponto de vista teológico): existem fenômenos, em tudo semelhantes exteriormente, que foram constatados entre santos e entre feiticeiros; ora, está claro que é apenas no primeiro caso que se pode atribuir um caráter “milagroso” e propriamente “sobrenatural”; no segundo caso, eles podem quando muito ser chamados de “proto-naturais”; assim, se os fenômenos são idênticos, é porque a diferença não reside na sua natureza, mas unicamente na sua causa, e é apenas a partir do “modo” e das “circunstâncias” que tais fenômenos adquirem seu caráter sobrenatural. Não é preciso dizer que, quando se trata de psiquismo, nenhuma causa transcendente poderá intervir, sejam os fenômenos provocados comumente pelos espíritas ou fenômenos magnéticos ou hipnóticos, e todos aqueles que lhes são mais ou menos conexos; não vamos portanto nos ocupar aqui de coisas de ordem transcendente, o que quer dizer que existem questões, como as relativas aos “fenômenos místicos” por exemplo, que podem permanecer totalmente fora das explicações que vamos fornecer. Por outro lado, não vamos examinar todos os fenômenos psíquicos indistintamente, mas apenas aqueles que tem alguma relação com o espiritismo; nós poderíamos ainda, dentre estes últimos, deixar de lado aqueles que, como os produzidos pelos “médiuns curadores”, ligam-se realmente, seja à sugestão, seja ao magnetismo propriamente dito, pois é evidente que eles se explicam suficientemente sem precisar da hipótese espírita. Não queremos dizer que não hajam dificuldades na explicação dos fatos desta ordem, mas os espíritas não podem pretender apossar-se de todo o domínio do hipnotismo e do magnetismo; de resto, é possível que estes fatos possam ser algo melhor esclarecidos a partir das indicações que daremos a propósito dos outros.

Após estas observações gerais, indispensáveis para colocar e delimitar a questão como se deve, podemos lembrar as principais teorias que foram desenvolvidas para explicar os fenômenos do espiritismo; existe um grande número delas, mas o Dr. Gibier considerou poder agrupá-las em quatro grupos (1); sua classificação não é perfeita, longe disto, mas ela serve de ponto de partida. A primeira, que ele chama “teoria do ente coletivo”, poderia ser definida assim: “Um fluido especial emana da pessoa do médium, combina-se com o fluido das pessoas presentes para constituir um personagem novo, temporário, independente numa certa medida, e produzindo os fenômenos conhecidos”. Em seguida vem a teoria “demoníaca”, segundo a qual “tudo é produzido pelo diabo e seus prepostos”, e que equivale em suma a assimilar o espiritismo à feitiçaria. Em terceiro lugar, vem uma teoria que o Dr. Gibier chama bizarramente de “gnômica”, segundo a qual “existe uma categoria de seres, um mundo imaterial, vivendo ao nosso lado e que manifesta sua presença em certas condições: trata-se dos seres que foram conhecidos através dos tempos como gênios, fadas, silvanos, duendes, gnomos, diabretes, etc.”; não sabemos porque ele escolheu os gnomos para dar nome a esta teoria, à qual ele liga a dos teosofistas (atribuindo-a falsamente ao Budismo), que atribui os fenômenos aos “elementais”. Enfim, há a teoria espírita, segundo a qual “todas estas manifestações são devidas aos espíritos ou almas dos mortos, que se colocam em relação com os vivos, manifestando aí suas qualidades e seus defeitos, sua superioridade ou inferioridade como se vivessem ainda”. Cada uma destas teorias, salvo a do espiritismo que é absurda, pode conter uma parte de verdade e explicar de fato, não todos os fenômenos, mas alguns dentre eles; o erro de seus respectivos partidários é sobretudo o de serem demasiado exclusivos e tudo querer explicar por uma teoria única. Quanto a nós, não pensamos que todos os fenômenos sem exceção devam necessariamente ser explicados por uma ou outra destas teorias, pois existem omissões e confusões na listagem; de resto, não estamos entre aqueles que consideram que a simplicidade de uma explicação seja garantia de sua veracidade; podemos querer que as coisas sejam assim, mas elas não estão obrigadas a se conformar aos nossos desejos, e nada prova que elas devam ser organizadas do modo mais cômodo ou mais próprio a facilitar nossa compreensão; um tal “antropocentrismo”, entre muitos sábios e filósofos, supõe realmente algumas ilusões bastante ingênuas.

A teoria “demoníaca” tem o dom de colocar especialmente em fúria tanto os espíritas como os “cientistas”, uns e outros igualmente alardeando não acreditar no demônio; para os espíritas, parece que não deve haver no “mundo invisível” outra coisa senão seres humanos, o que é a limitação mais inacreditavelmente arbitrária que se pode imaginar. Como iremos nos explicar mais adiante a respeito do “satanismo”, não insistiremos agora sobre o ponto; apenas observaremos que a oposição a esta teoria, que não é menor entre os ocultistas do que entre os espíritas, é menos compreensível naqueles, porque eles admitem a existência de seres muito variados, o que prova que suas concepções são menos limitadas. Deste ponto de vista, a teoria “demoníaca” poderia ser associada de certo modo à que o Dr. Gibier chama “gnômica”, pois, num caso como no outro, trata-se de uma ação exercida por seres não-humanos; em princípio, nada há a opor, não só a que existam tais seres, como  também que sejam tão diversificados quanto possível. É certo que, dentre quase todos os povos e em todas as épocas, falou-se de seres como os que o Dr. Gibier menciona, e isto não é sem razão, pois, quaisquer que sejam os nomes que lhes são dados, o que é dito de seu modo de agir concorda admiravelmente; apenas não achamos que eles possam ser vistos como propriamente “imateriais”, e de resto a questão, sob este aspecto, não se colocaria do mesmo modo para os antigos, pois as próprias noções de “matéria” e de “espírito” mudaram muito de significado. Por outro lado, o modo como estes seres são “personificados” liga-se sobretudo às concepções populares, que revestem a verdade mais do que exprimem, e que correspondem antes às aparências manifestadas do que à realidade profunda; e é este mesmo “antropomorfismo”, de origem totalmente exotérica, que podemos condenar também na teoria dos “elementais”, que deriva da precedente, como uma espécie de forma modernizada. De fato, os “elementais”, no sentido original do termo, não são outra coisa que os “espíritos dos elementos”, que a antiga magia dividia em quatro categorias: salamandras ou espíritos do fogo, silfos ou espíritos do ar, ondinas ou espíritos da água, gnomos ou espíritos da terra; bem entendido, o termo “espíritos” não era tomado no sentido dos espíritas, mas designava seres sutis, dotados apenas de uma existência temporária, e que não tinham nada de “espiritual” no sentido filosófico moderno; ainda aí o que temos é a expressão exotérica de uma teoria, sobre cujo verdadeiro sentido voltaremos mais adiante. Os teosofistas deram uma grande importância aos “elementais”; já vimos que Mme. Blavatsky provavelmente tirou a idéia de George H. Felt, membro da H.B.ofL., que a atribuía de forma inteiramente gratuita aos antigos egípcios. Daí para frente, esta teoria foi mais ou menos estendida e modificada, tanto pelos próprios teosofistas quanto pelos ocultistas franceses, que evidentemente a emprestaram deles, embora não o reconheçam; de resto, ela é daquelas teorias sobre as quais as idéias destas escolas nunca ficaram bem fixadas, e não somos nós que iremos tentar conciliar tudo o que já foi dito dos “elementais”. A maioria dos teosofistas e dos ocultistas agarra-se à concepção mais grosseiramente antropomórfica; mas existem aqueles que quiseram dar à teoria ares mais “científicos”, e que, sem possuir nenhum dado tradicional que pudesse lhe restituir o sentido original e esotérico, simplesmente acomodaram-na às idéias modernas ou aos caprichos de sua própria fantasia. Assim uns tentaram identificar os “elementais” às “mônadas” de Leibnitz (2); outros reduziram-nos a nada além de “forças inconscientes”, como Papus para quem eles são “os glóbulos sangüíneos do universo” (3), ou mesmo simples “centros de forças”, ou “potencialidades de seres” (4); outros pretenderam ver neles “os embriões das almas animais ou humanas” (5); existem outros ainda que, num outro sentido, forçaram a confusão até assimilá-los às “hierarquias espirituais” da cabala judaica, donde resulta que deveriam ser considerados como “elementais” os anjos e os demônios, aos quais se imaginava assim fazer “perder seu caráter fantasista” (6)! O que é fantasista, são os arranjos de conceitos disparates de que os ocultistas são costumeiros; aquelas onde aparece qualquer coisa de verdadeiro não lhes pertence, mas são concepções antigas mais ou menos mal interpretadas, e os ocultistas parecem ter tomado para si a missão, sem dúvida involuntariamente, de misturar todas estas noções mais do que esclarecê-las ou ordená-las.

Um exemplo dessas falsas interpretações já nos foi fornecida pela teoria das  “cascas astrais”, que o Dr. Gibier esqueceu por  completo em sua nomenclatura, e que é outro empréstimo feito pelos ocultistas ao teosofismo; como já restabelecemos o sentido verdadeiro desta deformação, não voltaremos ao assunto, mas lembraremos apenas que é só no sentido que indicamos então que se pode admitir a intervenção dos mortos em certos fenômenos, ou antes um simulacro de intervenção dos mortos, pois o ser real não está envolvido nem é afetado por estas manifestações. Quanto à teoria dos “elementais”, sobre a qual o ocultismo e o teosofismo não se diferenciam mais do que sobre as precedentes, existe uma certa flutuação, às vezes confundindo-se com as “cascas”, às vezes indo além, chegando o mais freqüentemente a se identificar com a hipótese espírita, à qual ela traz apenas algumas restrições. De um lado, Papus escreveu o seguinte: “Isto que o espírita chama de espírito, de eu, o ocultista chama de elemental, de casca astral” (7). Não cremos que ele fez esta afirmação, inaceitável para os espíritas, de boa-fé; mas prossigamos: “Os princípios inferiores iluminados pela inteligência da alma humana (com a qual eles não possuem mais do que uma “ligação fluídica”) formam aquilo que os ocultistas chamam de “elemental”, e flutuam ao redor da terra no mundo invisível, enquanto que os princípios superiores evoluem num outro plano... Na maior parte dos casos, o espírito que aparece  numa sessão é o elementar da pessoa evocada, ou seja um ser que não possui do defunto senão os instintos e a memória das coisas terrestres” (8). Isto é muito claro, e, se existe uma diferença entre uma “casca” propriamente dita e um “elemental”, é que a primeira é literalmente um “cadáver astral”, enquanto que o segundo parece guardar ainda uma “ligação fluídica”  com os princípios superiores; lembremos de passagem que isto parece implicar que todos os elementos do ser humano devem situar-se em algum lugar no espaço; os ocultistas, com seus “planos”, tomam uma imagem muito grosseira por uma realidade. Mas, por outro lado, as afirmações que reproduzimos não impedem o mesmo autor, em outros pontos da mesma obra, de qualificar os “elementais” de “seres conscientes e voluntários”, de apresentá-los como as “células nervosas do universo”, e de assegurar que “são eles que aparecem às infelizes vítimas das alucinações da feitiçaria sob a figura do diabo, ao qual (sic) se fazem pactos” (9); este último papel, de resto, é mais comumente atribuído pelos ocultistas aos “elementais”. Em outro lugar ainda, Papus precisa que o “elemental” (e aí ele pretende que o termo, que nada tem de hebraico, pertença à cabala) “é formado pelo espírito imortal superiormente, pelo corpo astral (parte superior) medianamente, pelas cascas inferiormente” (10). Seria assim, segundo esta nova versão, o ser humano verdadeiro e completo, tal como ele é constituído durante o tempo mais ou menos longo em que ele permanece  no “plano astral"; esta é a opinião que prevaleceu entre os ocultistas, assim como entre os teosofistas, e ambos chegaram a admitir genericamente que este ser pode evocado na medida em que se encontra neste estado, ou seja no decurso do período que vai da “morte física” à “morte astral”. Apenas acrescenta-se que os “desencarnados” que se manifestam no mais das vezes nas sessões espíritas (com exceção dos “mortos amados”) são homens cuja natureza é a mais inferior, notadamente os bêbados, os bruxos e os criminosos, bem como  os que sofreram morte violenta, sobretudo os suicidas; e é exatamente para estes mesmos seres inferiores, com os quais manter relações é considerado perigosíssimo, que alguns teosofistas reservam o nome de “elementais”. Os espíritas, que se opõem absolutamente a todas as teorias que expusemos até aqui, não parecem apreciar muito esta concessão, que no entanto é bastante grave, e isto é bem compreensível: eles próprios reconhecem que existem “maus espíritos” que se misturam às suas sessões, mas, se só existissem estes, seria preciso abster-se de todas as práticas espíritas; isto é de fato o que recomendam os dirigentes do ocultismo e do teosofismo, porém sem ser escutados, sobre este ponto, por uma certa categoria dos seus aderentes, para a qual tudo o que é “fenômeno”, qualquer que seja sua qualidade, possui uma atração irresistível.

Chegamos agora às teorias que explicam os fenômenos pela ação de seres humanos vivos, e que o Dr. Gibier reúne confusamente sob o nome, impróprio para algumas delas, de “teoria do ser coletivo”. A teoria que merece realmente este nome foi enxertada de outra que não lhe é necessariamente solidária, e que é chamada às vezes de teoria “animista” ou “vitalista”; sob sua forma mais comum, a que é expressa na definição do Dr. Gibier, poderíamos chamá-la de teoria “fluídica”. O ponto de partida desta teoria é de que existe no homem alguma coisa que é susceptível de se exteriorizar, ou seja de sair dos limites do corpo, e muitas constatações parecem comprovar que é realmente assim; lembraremos apenas as experiências do coronel de Rochas e de diversos outros psiquistas sobre a “exteriorização da sensibilidade” e a “exteriorização da motricidade”. Admitir isto não implica em adesão a nenhuma escola; mas alguns acharam por bem representar esta “alguma coisa” sob o aspecto de um fluído, que é chamado tanto de “fluído nervoso” como de “fluído vital”; estes são naturalmente os ocultistas, que, aqui como em qualquer lugar onde se trate de fluídos, seguem de perto os magnetizadores e os espíritas. Este pretenso “fluído”, com efeito, é o mesmo dos magnetizadores: é o od de Reichenbach, que se pretendeu aproximar das “radiações invisíveis” da física moderna (11); é ele que se separa do corpo sob a forma de eflúvios que alguns acreditaram haver fotografado; mas isto é uma outra questão, que não faz parte do nosso objeto. Quanto aos espíritas, dissemos que eles tiraram do mesmerismo esta idéia de “fluídos”, a que eles recorrem igualmente para explicar a mediunidade; não é aí que surgem as divergências, mas sobre o fato de que os espíritas pretendem que um “espírito” venha a servir-se do “fluído” exteriorizado pelo médium, enquanto que ocultistas e simples psiquistas supõem mais razoavelmente que este último, na maior parte dos casos, poderia perfeitamente produzir todo o fenômeno sozinho. Efetivamente, se alguma coisa do homem se exterioriza, não há necessidade de recorrer a fatores estranhos para explicar fenômenos tais como golpes ou deslocamento de objetos sem contato, que não constituem por isso uma “ação à distância”, pois, em suma, um ser está em todo lugar aonde ele age: em qualquer ponto onde se produza esta ação, é porque o médium projetou aí, sem dúvida inconscientemente, alguma coisa de si mesmo. Para negar que isto seja possível, só mesmo os que acreditam que o homem é absolutamente limitado pelo seu corpo, o que prova que eles só conhecem uma mínima parte de suas possibilidades; esta suposição, sabemo-lo bem, é a mais comum entre os Ocidentais modernos, mas ela só se justifica pela ignorância de sempre: ela equivale, em outros termos, a sustentar que o corpo é a medida da alma, o que é, na Índia, uma das teses heterodoxas dos Jainas (e aqui empregamos os termos de corpo e alma apenas para nos exprimirmos mais facilmente), e cujo absurdo é muito fácil de demonstrar para que insistamos aqui: é concebível que a alma deva ou possa sofrer as variações quantitativas do corpo, e que, por exemplo, a amputação de um membro acarrete nela uma diminuição proporcional? De resto, é difícil compreender que a filosofia moderna tenha colocado uma questão tão desprovida de sentido com a do “lugar da alma”, como se se tratasse de algo “localizável”; e os ocultistas não estão isentos de reprovação sob este aspecto, pois eles tem uma tendência a localizar, mesmo após a morte, todos os elementos do ser humano; quanto aos espíritas, eles repetem a cada instante que os “espíritos” estão “no espaço”, ou ainda naquilo que eles chamam de “errância”. É precisamente este hábito de tudo materializar que criticamos também na teoria “fluídica”: não teríamos nada a acrescentar se, ao invés de se chamar de “fluídos”, fosse falado simplesmente de “forças”, como o fazem os psiquistas mais prudentes ou menos atingidos pelo “neo-espiritualismo”; o termo “forças” é sem dúvida bem vago, mas é melhor do que o outro, no momento em que a ciência comum não está em condições de permitir maior precisão a respeito.

Mas voltemos aos fenômenos que podem ser explicados pela força exteriorizada; os casos que mencionamos são os mais elementares de todos; mas seria a mesma coisa quando encontramos neles a marca de uma certa inteligência, como, por exemplo, quando a tábua que se move responde mais ou menos bem às questões que lhe são colocadas? Não hesitaremos em responder afirmativamente para um grande número de casos: é excepcional que as respostas ou “comunicações” obtidas ultrapassem sensivelmente o nível intelectual do médium ou dos assistentes; o espírita que, possuindo algumas faculdades mediúnicas, retira-se sozinho para consultar sua tábua a respeito de não importa o que, não suspeita que é apenas consigo mesmo que ele se comunica por este meio turvo, e no entanto é o que acontece normalmente. Nas sessões dos grupos, a presença de assistentes mais ou menos numerosos vem complicar um pouco as coisas; o médium não está reduzido ao seu único pensamento, mas, no estado particular em que ele se acha e que o torna eminentemente acessível à sugestão sob todas as suas formas, ele poderá igualmente refletir e expressar o pensamento de qualquer um dos presentes. De resto, neste caso como no precedente, não se trata forçosamente de um pensamento que seja claramente consciente no momento, e mesmo um tal pensamento quase que só será expresso se alguém tiver a vontade determinada de influenciar as respostas; habitualmente, o que se manifesta pertence a este domínio bastante complexo que os psicólogos chamam de “subconsciente”. Muito já se abusou desta última denominação, por ser cômodo, em muitas circunstâncias, apelar para o que é obscuro e mal definido; não é menos verdadeiro que o “subconsciente” corresponde a uma realidade; apenas, há de tudo aí, e os psicólogos, dentro dos limites dos meios de que dispõem, teriam grande dificuldade de colocar ordem. Existe em primeiro lugar aquilo que podemos chamar de “memória latente”: ninguém esquece jamais de modo absoluto, como o provam os casos de “revivência” anormal que foram tantas vezes constatados; basta portanto que qualquer coisa tenha sido conhecida por um dos assistentes, mesmo que ele ache tê-la esquecido por completo, para que não seja preciso buscar fora aquilo que venha a se expressar numa “comunicação” espírita. Existem também todas as “previsões” e todos os “pressentimentos” que chegam às vezes, mesmo normalmente, a se tornar bastante conscientes em certas pessoas; é a esta ordem que devemos ligar muitas das predições espíritas que se realizam, sem contar que existem muitas outras, e provavelmente em maior número, que não se realizam, e que representam pensamentos vagos que tomam corpo como o podem fazer não importa quais devaneios (12). Mas iremos ainda mais longe: uma “comunicação” anunciando fatos realmente desconhecidos de todos os assistentes pode no entanto provir do “subconsciente” de algum deles, pois, sob este aspecto também, estamos longe de conhecer todas as possibilidades do ser humano: cada um de nós pode estar em relação, por esta parte obscura de si mesmo, com seres e coisas das quais não haja conhecimento no sentido corrente do termo, e podem estabelecer-se aí inúmeras ramificações para as quais é impossível estabelecer limites definidos. Aqui, estamos bem longe da psicologia clássica; isto poderá parecer bastante estranho, assim como o fato de que as “comunicações” podem ser influenciadas pelo pensamento de pessoas não presentes; e no entanto, não receamos afirmar que não há nisso nada de impossível. Voltaremos em outra ocasião sobre a questão do “subconsciente”; por ora, só a mencionamos para mostrar que os espíritas são muito imprudentes ao invocar, como provas certas em apoio à sua teoria, fatos do tipo que fizemos alusão.

Estas últimas considerações permitirão compreender o que é a teoria do “ser coletivo”  propriamente dito e que parte de verdade ela encerra; esta teoria, digamo-lo desde já, foi admitida por alguns espíritas mais independentes, e que não acham indispensável fazer intervir os “espíritos” em todos os casos sem exceção: tais são Eugène Nus, que foi o primeiro a empregar a expressão de “ser coletivo” (13), e Camille Flammarion. Segundo esta teoria, o “ser coletivo” seria formado por uma espécie de combinação dos “perispíritos” ou dos “fluídos” do médium e de seus assistentes, e ele se fortificaria a cada sessão, desde que os assistentes fossem sempre os mesmos; os ocultistas adotaram esta concepção apressadamente pensando poder aproximá-la das idéias de Eliphas Lévi sobre os egrégores (14) ou “entidades coletivas”. É preciso porém frisar, para não levarmos longe demais a assimilação, que, para Eliphas Lévi, tratar-se-ia, mais genericamente, daquilo que se poderia chamar de “alma” de uma coletividade qualquer, como uma nação por exemplo; o grande erro dos ocultistas, em casos como este, é de tomar ao pé da letra certos modos de expressão, e de acreditar que se trata verdadeiramente de um ser comparável a um ser vivo, e que eles situam naturalmente no “plano astral”. Para voltarmos ao
“ser coletivo” das sessões espíritas, diremos simplesmente que, deixando de lado todos os “fluídos”, não se deve ver aí mais do que estas ações e reações dos diversos “subconscientes” em presença, de que já falamos, sendo o efeito das relações que se estabelecem entre eles de uma maneira mais ou menos durável e amplificando-se na medida em que o grupo se constitui mais solidamente. Existem de resto fatos que podem ser explicados pelo “subconsciente”, individual ou coletivo, sem que haja a menor exteriorização de força de parte do médium ou de parte dos assistentes: é o que acontece com os “médiuns de encarnações” e mesmo com os “médiuns escritores”; estes estados, repetimos, são rigorosamente idênticos a estados sonambúlicos puros e simples (a menos que se trate de uma verdadeira “possessão”, mas isto é muito raro). A este respeito, acrescentaremos que existem semelhanças entre o médium, o paciente hipnótico e o sonâmbulo natural; existe um certo conjunto de condições “psico-fisiológicas” que são comuns aos três, e o modo como eles se comportam é freqüentemente o mesmo. Citaremos Papus sobre as relações entre o hipnotismo e o espiritismo: “Uma série de observações rigorosas nos conduziu à idéia de que o espiritismo e o ocultismo não eram dois campos de estudo diferentes, mas sim graus diferentes da mesma ordem de fenômenos; que o médium apresentava com o paciente numerosos pontos em comum, pontos  os quais, que eu saiba, não foram suficientemente sublinhados até aqui. Mas o espiritismo conduz a resultados experimentais bem mais completos que o hipnotismo; o médium é de fato um paciente, mas um paciente que leva os fenômenos além do domínio atual conhecido do hipnotismo” (12). Sobre este ponto, ao menos, podemos estar de acordo com os ocultistas, mas com algumas reservas: por um lado, é certo que o hipnotismo pode ir muito mais longe do que o que estudaram alguns sábios, mas não vemos vantagem em estender esta denominação para abrigar todos os fenômenos psíquicos sem distinção; por outro lado, como já dissemos, todo fenômeno ligado ao hipnotismo escapa por isso mesmo ao espiritismo,  e aliás os resultados experimentais obtidos pelas práticas espíritas não constituem o espiritismo em si: o espiritismo está nas teorias, não nos fatos, e é neste sentido que dizemos que o espiritismo não passa de erro e ilusão.

Existe ainda uma certa categoria de fenômenos de que não falamos, mas que estão entre aqueles que supõem evidentemente uma exteriorização: trata-se dos fenômenos conhecidos como “transportes” e “materializações”. Os “transportes” são em suma deslocamentos de objetos, mas com a complicação de que os objetos provém às vezes de lugares muito distantes, e de que muitas vezes eles tem que atravessar obstáculos materiais. Se o médium emite, de um modo ou de outro, prolongamentos de si mesmo para exercer uma ação sobre objetos, a maior ou menor distância não será um impedimento, ela implicará apenas faculdades mais ou menos desenvolvidas, e, se a intervenção de “espíritos” ou outras entidades extra-terrestres nem sempre é necessária, é porque ela não é jamais. A dificuldade reside aqui na passagem, real ou aparente, através da matéria: para explicá-la, alguns supõem que existiu sucessivamente “desmaterialização” e “rematerialização” do objeto transportado; outros constroem teorias mais ou menos complicadas, nas quais a “quarta dimensão” do espaço costuma desempenhar papel importante. Não entraremos aqui na discussão dessas muitas hipóteses, mas observaremos que é bom suspeitar das fantasias que a “hipergeometria” inspirou ais “neo-espiritualistas” de diversas escolas; parece-nos preferível ver simplesmente, no transporte do objeto, “mudanças de estado”, sem entrarmos em muito detalhe; e acrescentaremos que, apesar das crenças dos físicos modernos, a impenetrabilidade da matéria seja bem relativa. Mas em todo caso, basta assinalar que, aí também, a suposta ação dos “espíritos” não resolve nada; desde que se admita o papel do médium, é lógico tentar explicar fatos como estes pelas propriedades do ser vivo; de resto, para os espíritas, o ser humano, pela morte, mais perde certas propriedades do que adquire novas; enfim, colocando-nos fora de qualquer teoria em particular, o ser vivo é, do ponto de vista de uma ação que se exerça sobre a matéria física, manifestamente em condições mais favoráveis do que um ser em cuja constituição não entre nenhum elemento desta matéria.

Quanto  às “materializações”, são talvez fenômenos mais raros, mas também os que os espíritas consideram mais comprobatórios: como é possível duvidar da existência e da presença de um “espírito”, quando ele toma uma aparência perfeitamente sensível, quando ele se reveste de uma forma que pode ser vista, tocada e mesmo fotografada (o que exclui a hipótese de alucinação)? E no entanto, os próprios espíritas admitem que o médium desempenha algum papel na coisa: uma espécie de substância, primeiro informe e nebulosa, parece desprender-se do seu corpo para depois condensar-se gradualmente; isto todo mundo admite, salvo aqueles que contestam a própria realidade do fenômeno; mas os espíritas acrescentam que um “espírito”  vem em seguida modelar esta substância, este “ectoplasma” como o chamam alguns psiquistas, vem dar-lhe a sua forma e animá-la como um verdadeiro corpo temporário. Infelizmente, existem “materializações” de personagens imaginários, como existem “comunicações” assinadas por heróis romanos: Eliphas Lévi assegura que pessoas fizeram evocar por Dunglas Home os fantasmas de supostos parentes que nunca existiram (13); também mencionam-se casos em que as formas “materializadas” reproduziam simplesmente retratos, ou mesmo figuras fantasistas emprestadas dos jornais ou de desenhos que o médium havia visto: “Durante o Congresso espírita e neo-espiritualista de 1889, Donald Mac-Nab mostrou-nos uma fotografia representando uma jovem que ele e mais seis de seus amigos haviam podido tocar e que ele tinha conseguido fotografar. O médium em letargia era visível ao lado da aparição. Ora, esta aparição materializada não era outra coisa senão a reprodução material de um velho desenho datado de muitos séculos e que havia causado admiração ao médium quando este se encontrava acordado” (14). Por outro lado, se a pessoa evocada é reconhecida por algum dos assistentes, isto prova evidentemente que este assistente possuía uma imagem em sua memória, e daí provir a semelhança constatada; se ao contrário ninguém reconhece o suposto “desencarnado”, sua identidade não pode ser verificada, e a argumentação espírita cai por terra mais uma vez. O próprio Flammarion reconheceu que a identidade dos “espíritos” jamais foi demonstrada, e que os casos mais admiráveis sempre podiam dar lugar a contestações; e como poderia ser de outro modo, quando nos lembramos que, mesmo para um homem vivo, é quase impossível, teoricamente senão na prática, dar provas de sua identidade que sejam rigorosas e irrefutáveis? É preciso então ater-se à teoria chamada da “ideoplastia”, segundo a qual não apenas o substrato da “materialização” é fornecido pelo médium, mas sua forma é devida a uma idéia ou mais exatamente a uma imagem mental, seja do médium propriamente, seja de um dos assistentes, sendo que esta imagem pode ainda ser “subconsciente” todos os fatos desta ordem podem ser explicados por esta teoria, e alguns dentre eles não podem ser explicados de outra maneira. Lembremos de passagem que, admitindo-se isto, não se pode dizer que haja fraude quando se apresentam “materializações” desprovidas de relevo como os desenhos que são seus modelos; bem entendido, isto não impede que  as fraudes sejam de fato inúmeras, mas casos como esses deveriam ser examinados de mais perto, ao invés de serem descartados a priori. Sabemos de resto que existem “materializações” mais e menos completas; existem algumas formas que podem ser tocadas, mas que não chegam a se tornar visíveis; existem também aparições que são parciais, e estas últimas são no mais das vezes formas de mãos. Estas aparições de mãos isoladas merecem a atenção: tentou-se explicá-las dizendo que “como um objeto se toma geralmente com as mãos, o desejo de agarrar um objeto deve necessariamente despertar a idéia de mão e por conseqüência a representação mental de uma mão” (15); mesmo aceitando esta explicação em princípio, podemos pensar que ela não é sempre suficiente, e lembraremos a propósito que manifestações similares foram constatadas em casos do domínio da bruxaria, como os fatos de Cideville que já mencionamos. A teoria da “ideoplastia”, de resto, não exclui forçosamente qualquer intervenção estrangeira, como poderiam crer alguns com tendência a sistematizar; ela apenas restringe o número de casos em que se pode atribuí-la; notadamente, ela não exclui a ação de homens vivos não presentes corporalmente (é assim que operam os bruxos), nem de forças diferentes, sobre as quais voltaremos ainda.

Alguns dizem que o que se exterioriza é o “duplo” do médium; esta expressão é imprópria, ao menos no sentido em que este pretenso “duplo” pode tomar uma aparência muito diferente da do próprio médium. Para os ocultistas, este “duplo” é evidentemente idêntico ao “corpo astral”; existem alguns que se exercitam em obter, de um modo consciente e voluntário, o “desdobramento” ou a “saída no astral”, ou seja realizar ativamente aquilo que faz passivamente o médium, ignorando que as experiências deste gênero são extremamente perigosas. Quando os resultados Não são puramente ilusórios e devidos a uma simples auto-sugestão, eles são em todo caso mal interpretados; já dissemos que não é possível admitir o “corpo astral”, tanto quanto os “fluídos”, porque são representações grosseiras, que consistem em supor estados materiais que quase não diferem da matéria ordinária, senão por terem menos densidade. Quando falamos em “estado sutil”, queremos dizer outra coisa: não se trata de um corpo de matéria rarefeita, uma “aerosoma” segundo a expressão empregada por alguns ocultistas; trata-se de qualquer coisa verdadeiramente “incorpórea”; não sabemos de resto se devemos dizer material ou imaterial, e pouco nos importa, pois estas palavras só tem um valor relativo para quem se coloca fora dos quadros convencionais da filosofia moderna, e esta ordem de considerações permanece inteiramente estranha aos olhos das doutrinas orientais, as únicas aonde, hoje em dia, a questão poderia ser estudada como se deve. É preciso frisar que aludimos a algo que é essencialmente um estado do homem vivo, pois o ser, ao morrer, muda bem mais do que a simples perda do corpo, contrariamente ao que sustentam espíritas e ocultistas; da mesma forma, aquilo que é susceptível de se manifestar após a morte não pode ser visto senão como uma espécie de vestígio deste estado sutil do ser vivo, e não é ele, tanto quanto o cadáver não é o organismo animado. Durante a vida, o corpo é a expressão de um certo estado do ser, mas este possui igualmente, e ao mesmo tempo, estados incorpóreos, dentre os quais este de que falamos é o mais próximo do estado corporal; este estado sutil deve apresentar-se ao observador como uma força ou um conjunto de forças mais do que como um corpo, e a aparência corporal das “materializações” é sobreposta excepcionalmente às suas propriedades normais. Tudo isto foi singularmente deformado pelos ocultistas, que dizem com razão que o “plano astral” é o “mundo das forças”, o que não os impede de colocar corpos aí; e é preciso acrescentar ainda que as “forças sutis” são bem diferentes, tanto pela sua natureza como por seu modo se ação, das forças que a física ordinária estuda.

O que há de curioso a notar como conseqüência destas últimas observações é o seguinte: aqueles mesmos que admitem que é possível invocar os mortos (queremos dizer o ser real dos mortos) deveriam admitir que seja igualmente possível, e mesmo mais fácil, invocar um vivo, porque o morto não adquiriu, aos seus olhos, elementos novos, e que de resto, qualquer que seja o estado no qual se suponha que ele esteja, este estado, comparado com o dos vivos, jamais oferecerá uma similitude tão perfeita quanto se compara os vivos entre si, donde segue-se que as possibilidades de comunicação, se é que elas existem, só podem ser diminuídas e não aumentadas. Ora, é sabido que os espíritas insurgem-se violentamente contra esta possibilidade de invocar um vivo, e que eles a consideram perigosa para a sua teoria; nós, que negamos qualquer fundamento a esta, reconhecemos ao contrário essa possibilidade, e tentaremos mostrar mais claramente as razões. O cadáver não possui outras qualidades do que o organismo animado, ele guarda apenas algumas destas possibilidades consigo; da mesma forma, o ob dos Hebreus, ou o prêta dos Hindus, não poderiam ter propriedades novas em relação ao estado do qual ele não é mais do que um vestígio; se portanto este elemento pode ser invocado, é porque o ser vivo também pode sê-lo em seu estado correspondente. Bem entendido, o que dissemos supõe apenas uma analogia entre diferentes estados, e não uma assimilação com o corpo; o ob (conservaremos o nome para maior facilidade) não é um “cadáver astral”, e foi somente a ignorância dos ocultistas, que confundem analogia com identidade, que o transformou na “casca” de que falamos; os ocultistas, lembramos, não fizeram mais do que recolher fragmentos de conhecimentos incompreendidos. Frisemos que todas as tradições reconhecem a realidade da invocação mágica do ob, qualquer nome que ele tenha; em particular, a Bíblia hebraica reporta o caso da invocação do Profeta Samuel (16), e de resto, se não fosse uma realidade, as proibições que ela contém a respeito não teriam alcance nem significado. Mas voltemos à nossa questão: se um homem vivo pode ser invocado, existe, com o caso do morto, a diferença que, não tendo sido o seu composto dissociado, a invocação afetará necessariamente seu ser real; ela poderá portanto ter conseqüências mais graves sob este aspecto do que a invocação do ob , o que não quer dizer que esta não tenha também seus perigos, só que de outra ordem. Por outro lado, possibilidade de invocação deve ser realizável sobretudo se o  homem estiver adormecido, porque ele se encontrará então, quanto à sua consciência atual, no estado correspondente àquele que é invocado, a menos que ele esteja mergulhado no sono profundo, aonde nada pode atingi-lo e aonde nenhuma influência exterior pode se exercer sobre ele; esta possibilidade refere-se apenas ao que podemos chamar de estado de sonho, intermediário entre a vigília e o sono profundo, e é igualmente deste lado, observemo-lo de passagem, que seria preciso buscar a verdadeira explicação de todos os fenômenos do sonho, explicação que não é menos impossível para os psicólogos do que o é para os fisiologistas. Não é preciso dizer que não aconselhamos a ninguém tentar a invocação de um ser vivo, e muito menos submeter-se a uma tal experiência, bem como seria extremamente perigoso dar publicamente a menor indicação de como se obter este resultado; mas o que pior é que pode acontecer de alguém conseguir sem tê-lo tentado, e este é um dos inconvenientes acessórios que apresenta a vulgarização das práticas empíricas dos espíritas; não queremos exagerar a importância deste perigo, mas já é bastante que ele exista, por excepcional que seja. Eis o que diz a respeito um psiquista que se colocou como adversário resoluto da hipótese espírita, o engenheiro Donald Mac-Nab: “Pode acontecer que numa sessão se materialize a identidade física de uma pessoa distante, em relação psíquica com o médium. Neste caso, se se agir desastradamente, é possível matar a pessoa. Muitos casos de morte súbita podem ser relacionados a esta causa” (17). Em outro ponto, o autor enfoca também, além da invocação propriamente dita, outras possibilidades da mesma ordem: “Uma pessoa afastada pode assistir psiquicamente à sessão, de sorte que fica explicado que se possa observar o fantasma desta pessoa ou qualquer outra imagem contida no seu inconsciente, inclusive as de pessoas mortas que ela tenha conhecido. A pessoas que se manifesta assim geralmente não tem a consciência, mas ela experimenta uma espécie de ausência ou de abstração. Este caso é menos raro do que se imagina” (18). Basta substituir aqui “inconsciente” por “subconsciente”, e veremos que, no fundo, é exatamente o que dissemos a respeito destas obscuras ramificações do ser humano que permitem explicar tantas coisas nas “comunicações” espíritas. Antes de irmos mais longe, lembraremos que o “médium de materializações” está sempre mergulhado neste sono especial que os espíritas anglo-saxões denominam transe, porque sua vitalidade, assim como sua consciência, está neste instante concentrada no “estado sutil”; e para dizer a verdade, este transe é bem mais parecido com uma morte aparente do que o sono comum, porque existe então, entre o “estado sutil” e o estado corporal, uma dissociação mais ou menos completa. É por isso que, em todas as experiências de “materialização”, o médium está constantemente em perigo de morte, tanto quanto o ocultista que ensaia o “desdobramento”; para evitar este perigo, seria preciso recorrer a meios especiais que nem uns nem outros tem à disposição; apesar de todas as suas pretensões, os ocultistas “praticantes” são, assim como os espíritas, simples empíricos que não sabem bem o que estão fazendo.

O “estado sutil” de que falamos, e ao qual devem ser reportadas em geral, não apenas as “materializações”, mas também todas as outras manifestações que supõem uma “exteriorização”  em qualquer grau que seja, este estado tem o nome de taijasa na doutrina hindu, porque esta vê o princípio correspondente como sendo da natureza do elemento ígneo (têjas), que por sua vez é ao mesmo tempo calor e luz. Isto poderia ser melhor entendido através de uma exposição da constituição do ser humano tal como esta doutrina o encara; mas não podemos fazê-lo aqui, pois esta questão exigiria um estudo especial, que temos intenção de fazer algum dia. Para o momento, vamos nos limitar a assinalar sumariamente algumas das possibilidades deste “estado sutil”, possibilidades que ultrapassam em muito todos os fenômenos do espiritismo, e com as quais estes não são sequer comparáveis; tais são, por exemplo, as seguintes: possibilidade de transferir para este estado a integralidade da consciência individual, e não apenas uma porção da ‘”subconsciência” como acontece no sono comum e nos estados hipnóticos e mediúnicos; possibilidade d “localizar” este estado em um lugar qualquer, o que é a “exteriorização” propriamente dita, e de condensar neste lugar, por seu meio, uma aparência corporal que é análoga à “materialização” dos espíritas, mas sem a intervenção de nenhum médium; possibilidade de dar a esta aparência, seja a própria forma do corpo (que assim mereceria realmente o nome de “duplo”), seja qualquer outra forma correspondente a uma imagem mental qualquer; enfim, possibilidade de “transpor” para este estado, se podemos nos exprimir assim, os elementos constitutivos do próprio corpo, o que parecerá sem dúvida mais extraordinário do que todo o resto. Lembraremos que aí residem as explicações de outras coisas, dentre elas os fenômenos de “bilocação”, que são daqueles a que fizemos alusão quando dissemos que existem exemplos de fenômenos que são exteriormente semelhantes em santos e feiticeiros; encontramos também aí a explicação destas histórias, demasiado comuns para serem sem fundamento, de feiticeiros que foram vistos vagando sob formas animais, e podemos ver também porque os golpes desferidos contra estas formas tem sua repercussão, em ferimentos reais, sobre o próprio corpo do feiticeiro, assim como quando o fantasma deste se apresenta em sua forma natural, que aliás pode não ser visível para todos os assistentes; sobre este último ponto como sobre muitos outros, o caso de Cideville é particularmente impressionante e instrutivo. Por outro lado, é a realizações bastante incompletas e rudimentares da última das possibilidades que enumeramos que se deve ligar os fenômenos de “levitação”, de que ainda não falamos (e para os quais valem as mesmas observações que para a “bilocação”), as mudanças de peso constatadas nos médiuns (e que deram a alguns psiquistas a ilusão absurda de poder “pesar a alma”), e também estas “mudanças de estado”, ou ao menos de modalidade, que devem se produzir nos “transportes”. Existem mesmo casos em que se pode ver a representação de um “bilocação” incompleta: tais são todos os fenômenos de “telepatia”, ou seja as aparições de seres humanos à distância, produzidas durante sua vida ou no instante da sua morte, aparições que podem aliás apresentar graus de consistência extremamente variáveis. As possibilidades de que se trata, por estarem além do domínio do psiquismo ordinário permitem explicar a fortiori muitos fenômenos que esta estuda; mas estes fenômenos, como vimos, só representam casos atenuados, reduzidos às proporções mais medíocres. Em todo caso, só estamos falando de possibilidades, e achamos que existem coisas sobre as quais é difícil insistir, dada a deformação da mentalidade dominante em nossa época; quem poderia acreditar, por exemplo, que um ser humano possa deixar a existência terrestre sem deixar um cadáver atrás de si? E no entanto, encontramos mais uma vez o testemunho na Bíblia: Henoch “nunca mais foi visto, porque Deus tomou-o” (19); Moisés “foi sepultado pelo Senhor, e ninguém conheceu seu sepulcro” (20); Elias subiu aos Céus num “carro de fogo” (21), que lembra estranhamente o “veículo ígneo” da tradição hindu; e, se estes exemplos implicam a intervenção de uma causa transcendente, não é menos verdade que esta intervenção mesma pressupõe certas possibilidades no ser humano. Seja como for, só indicamos tudo isto para dar o que refletir aos que são capazes, e fazê-los conceber até certo ponto a extensão dessas possibilidades do ser humano, tão completamente insuspeitadas da maioria; para aqueles ainda, acrescentaremos que tudo o que diz respeito ao “estado sutil” toca de perto a própria natureza da vida, que os antigos como Aristóteles (nisto de acordo com os Orientais) assimilavam ao próprio calor, propriedade específica do elemento têjas (22). Por outro lado, este elemento está como que polarizado em calor e luz,  donde resulta que o “estado sutil” está ligado ao estado corporal de duas maneiras diferentes e complementares, pelo sistema nervoso quanto à qualidade luminosa, e pelo sangue quanto à qualidade calórica; existem aí os princípios de toda uma “psico-fisiologia” que não tem nenhuma relação com a dos Ocidentais modernos, e da qual estes não tem a menor noção. Aqui, seria ainda preciso lembrar o papel do sangue na produção de certos fenômenos, seu emprego em diversos ritos mágicos e mesmo religiosos, e também sua interdição, enquanto alimento, por legislações tradicionais com a dos Hebreus; mas isto poderia nos levar muito longe, e de resto estas coisas são daquelas de que se deve falar com reserva. Enfim, o “estado sutil” não deve ser visto apenas no seres vivos individuais, e, como qualquer outro estado, ele tem sua correspondência na ordem cósmica: é a que se referem os mistérios do “Ovo do Mundo”, este antigo símbolo comum aos Druidas e aos Brahmanes.

Parece que estamos bem longe dos fenômenos do espiritismo; isto é verdade, mas é a última observação que fizemos que irá nos remeter de volta, permitindo-nos completar a explicação que nos propusemos, e à qual falta ainda uma coisa. O ser vivo, em cada um de seus estados, está em relação com o meio cósmico correspondente; isto é evidente para o estado corporal, e, para os demais, a analogia deve ser observada aqui como em todas as coisas; a verdadeira analogia, corretamente aplicada, não pode ser responsabilizada pelos abusos da falsa analogia que encontramos entre os ocultistas. Estes, sob o nome de “plano astral”, desfiguraram, caricaturaram por assim dizer, o meio cósmico correspondente ao “estado sutil”, meio incorpóreo, de que um “campo de forças” é a única imagem que pode fazer um físico, e ainda com a reserva de que estas forças são completamente outras do que as que ele está acostumado a manejar. Eis então como explicar as ações estrangeiras que podem, em certos casos, vir somar-se à ação dos seres vivos, combinar-se de certo modo para a produção dos fenômenos; e, ainda aí, o que mais se deve temer ao formular as teorias, é limitar arbitrariamente possibilidades que podemos chamar propriamente de indefinidas (Não dizemos infinitas). As forças susceptíveis de entrar em jogo são diversas e múltiplas; que sejam vistas como provenientes de seres especiais, ou como simples forças no sentido mais próximo do empregado pela física, pouco importa quando se está restrito às generalidades, pois ambas as coisas podem ser verdadeiras segundo o caso. Dentre estas forças, existem aquelas que são, por sua natureza, mais próximas do mundo corporal e das forças físicas, e que, conseqüentemente, manifestar-se-ão mais facilmente tomando contato com o domínio sensível por intermédio de um organismo vivo (o do médium) ou por algum outro meio. Ora, estas forças são precisamente as mais baixas de todas, portanto aquelas cujos efeitos podem ser os mais funestos e que devem ser evitadas mais cuidadosamente; elas correspondem, na ordem cósmica, àquilo que são as mais baixas regiões do “subconsciente” no ser humano. É dentro desta categoria que se deve agrupar todas as forças às quais a tradição extremo-oriental da o nome de “influências errantes”, forças cujo manejo constitui a parte mais importante da magia, e cujas manifestações, às vezes espontâneas, dão lugar a todos esses fenômenos dos quais a “obsessão” é o tipo mais conhecido; são, em suma, todas as energias não individualizadas, e as há de todo tipo. Algumas destas forças podem ser chamadas verdadeiramente de “demoníacas” ou “satânicas”; são estas, notadamente, que a bruxaria põe em jogo, e as práticas espíritas podem atraí-las freqüentemente, ainda que sem querer; o médium é um ser cuja infeliz constituição coloca em contato com tudo o que há de menos recomendável neste mundo, e mesmo nos mundos inferiores. Dentre as “influências errantes” também deve ser compreendido tudo o que, provindo dos mortos, é susceptível de causar manifestações sensíveis, pois trata-se aí de elementos que não são individualizados: tal é o ob, e tais são com mais razão todos estes elementos psíquicos de menor importância que representam “o produto da desintegração do inconsciente (ou melhor do “subconsciente”) de uma pessoa morta (23); acrescentemos que, nos casos de morte violenta, o ob conserva durante um certo tempo um grau particular de coesão e de quase vitalidade, o que dá conta de um bom número de fenômenos. Estes são apenas alguns exemplos, e de resto, repetimos, não é preciso indicar uma fonte necessária para estas influências; de onde quer que elas venham, elas podem ser captadas segundo certas leis; mas os sábios comuns, que não conhecem absolutamente nada destas leis, não deveriam espantar-se de não conseguirem se fazer obedecer pela “força psíquica”, que às vezes parece comprazer-se em desmontar as mais engenhosas combinações de seu método experimental; não é que esta força (que de resto não é uma) seja mais “caprichosa” do que outra, mas é preciso saber como dirigi-la; infelizmente, ela tem outros inconvenientes além de tontear os sábios. O mágico, que conhece as leis das “influências errantes”, pode fixá-las através de diversos procedimentos, por exemplo tomando como suporte certas substâncias ou certos objetos que irão agir como “condensadores”; não é preciso dizer que existe uma semelhança puramente exterior entre as operações deste gênero e a ação das “influências espirituais” de que tratamos precedentemente. Ao contrário, o mágico pode também dissolver estes “conglomerados” de força sutil, que tenham sido formados voluntariamente por ele ou por outrem, ou que tenham se constituído espontaneamente; a este respeito, o poder das pontas é conhecido há muito tempo. Estas duas ações inversas são análogas àquilo que a alquimia chama “coagulação” e “solução” (dizemos análogas e não idênticas, porque as forças postas em ação pela alquimia e pela magia não são exatamente da mesma ordem); elas constituem a “saudação” e a “despedida” pelos quais se abre e se fecha toda operação de “magia cerimonial” ocidental; mas esta é eminentemente simbólica, e, quando se toma ao pé da letra o modo como ela personifica estas “forças”, chega-se aos piores absurdos; é o que, aliás, costumam fazer os ocultistas. O que há de verdadeiro sob todo este simbolismo, é sobretudo o seguinte: as forças em questão podem ser repartidas em diferentes classes, e a classificação adotada dependerá do ponto de vista de onde se está colocado; o da magia ocidental distribui as forças, segundo suas afinidades, em quatro “reinos elementares”, e não se deve buscar outra origem nem outra filiação real à teoria moderna dos “elementais” (24). Por outro lado, durante o intervalo compreendido entre as duas fases inversas que são os dois extremos de sua operação, o mágico pode emprestar às forças que ele captou uma espécie de consciência, reflexo ou prolongamento da sua própria, que constitui para ele como que uma individualidade temporária; e é esta individuação fictícia que, aos olhos daqueles que chamamos de empíricos e que aplicam regras que não compreendem, dá a ilusão de se constituir num ser verdadeiro. O mágico que sabe o que faz, se ele interroga estas pseudo-individualidades que ele mesmo suscitou às expensas de sua própria individualidade, não pode ver aí senão um meio de fazer aparecer, por um desenvolvimento artificial, aquilo que seu “subconsciente” continha já em estado latente; a mesma teoria pode ser aplicada, com as devidas modificações, a todos os procedimentos adivinhatórios, quaisquer que sejam. É aí também que reside, quando a simples exteriorização dos vivos não basta, a explicação das “comunicações” espíritas, com a diferença que as influências, por não serem neste caso dirigidas por nenhuma vontade, exprimem-se da maneira mais incoerente e mais desordenada; existe também uma outra diferença, que está nos procedimentos colocados em ação, pois o emprego de um ser humano como “condensador”, anteriormente ao espiritismo, era o apanágio dos bruxos da mais baixa classe; e existe mesmo uma terceira, pois, como já dissemos, os espíritas são mais ignorantes do que o último dos bruxos, e nenhum destes jamais levou tão longe a inconsciência a ponto de tomar as “influências errantes” pelos “espíritos dos mortos”. Antes de deixarmos o tema, acrescentaremos ainda que, além da forma de ação que mencionamos e que é a única conhecida pelos mágicos ordinários, ao menos no Ocidente, existe uma outra bem diferente, cujo princípio consiste em condensar as influências em si mesmo, de modo a servir-se delas à vontade e ter assim à disposição uma possibilidade permanente de produzir certos fenômenos; é a este modo de ação que devem ser relacionados os fenômenos dos faquires; mas não se deve esquecer que estes não passam ainda de ignorantes relativos, e que aqueles que conhecem mais perfeitamente as leis desta ordem de coisas são os mesmos que se desinteressam mais completamente por sua aplicação.

Não pretendemos que as indicações precedentes constituam, sob a forma abreviada que lhes demos, uma explicação absolutamente completa dos fenômenos do espiritismo; mas elas contém todo o necessário para fornecer esta explicação, cuja possibilidade quisemos mostrar, antes de apresentar as verdadeiras provas da inanidade das teorias espíritas. Tivemos que condensar neste capítulo considerações cujo desenvolvimento demandaria muitos volumes; e teríamos mesmo insistido menos nelas se as circunstâncias atuais não nos tivessem mostrado a necessidade de opor algumas verdades à onda crescente das divagações “neo-espiritualistas”. Estas coisas, de fato, não são daquelas sobre as quais gostamos de nos deter, e estamos longe de experimentar, pelo “mundo intermediário” ao  qual elas estão ligadas, a atração demonstrada pelos amantes dos “fenômenos”; assim evitamos ir, neste domínio, além das considerações gerais e sintéticas, as únicas cuja exposição não pode causar nenhum inconveniente. Temos a convicção de que estas explicações, tais como estão, vão muito além do que tudo o que se pode encontrar a respeito; mas advertimos que elas não são de nenhuma utilidade para quem queira empreender experiências ou tente dedicar-se a quaisquer práticas, coisas que, longe de serem favorecidas por pouco que seja, não serão nunca desaconselhadas em demasia.

  

NOTAS

1.      Le Spiritisme, pgs. 310-311.
2.      Conferência feita à Aryan Theosophical Society de New York, a 14 de dezembro de 1886, por C.H.A. Bjerregaard: Le Lotus, setembro de 1888.
3.      Traité méthodique de Science occulte, pg. 373.
4.      Marius Decrespe (Maurice Després), Les Microbes de l’Astral.
5.      Ibid., pg. 39.
6.      Jules Lermina, Magie Pratique, pgs. 218-220.
7.      Traité méthodique de Science occulte, pg. 347.
8.      Ibid., pg. 351.
9.      Ibid., pgs. 373 e 909-910.
10.  L’état de trouble ou l’evolution posthume de l’être humain, pgs. 12-13.
11.  Ver a brochura de Papus intitulada Lumière invisible, Médiunité et Magie. – Não confundir este od moderno com o ob hebraico.
12.  Traité méthodique de Science occulte, pg. 874. – Segue-se um paralelo entre o paciente e o médium que é inútil reproduzir aqui, pois não é nossa intenção entrar nos detalhes dos fenômenos.
13.  La Clef des Grands Mystères.
14.  Traité méthodique de Science occulte, pg. 881.
15.  Etude expèrimentale de qualques phénomènes de force psychique, por Donald Mac-Nab: Le Lotus, março de 1889,pg. 729.
16.  I Samuel, XXVIII.
17.  Artigo citado: Le Lotus, março de 1889, pg. 732. – A última frase está inclusive sublinhada no texto.
18.  Ibid., pg. 742.
19.  Gênesis, V, 24.
20.  Deuteronômio, XXXIV, 6.
21.  II Reis, II, 11.
22.  Não se trata por isso de um “princípio vital” no sentido de certas teorias modernas, que são tão deformadas com a do “corpo astral”; não sabemos em que medida o “mediador plástico” de Cudworth pode escapar à mesma crítica.

23.  Artigo citado de Donald Mac-Nab: Le Lotus, março de 1889, pg. 742.

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