quinta-feira, 1 de outubro de 2015

René Guénon - Os Princípios do Cálculo Infinitesimal





INTRODUÇÃO



Embora o presente estudo possa parecer, ao menos à primeira vista, possuir um caráter um pouco “particular”, ele nos pareceu útil para precisar e explicar de modo mais completo certas noções a que recorremos em diversas ocasiões nas quais nos servimos do simbolismo matemático, e esta razão já é justificativa suficiente para empreende-lo. Entretanto, devemos dizer que existem ainda outras razões secundárias, que dizem respeito sobretudo ao que podemos chamar de lado “histórico” da questão; este, de fato, não é totalmente desprovido de interesse do nosso ponto de vista, no sentido de que todas as discussões que surgiram em relação à natureza e ao valor do cálculo infinitesimal oferecem um exemplo notável desta ausência de princípios que caracteriza as ciências profanas, ou seja as únicas ciências que os modernos conhecem e mesmo concebem como possíveis. Já observamos muitas vezes que a maior parte destas ciências, mesma na medida em que correspondem a alguma realidade, não representam nada além de simples resíduos desfigurados de algumas das antigas ciências tradicionais: trata-se da parte mais inferior destas que, tendo cessado de estar em relação com os princípios, e tendo por isso perdido seu verdadeiro significado original, acabou por ganhar um desenvolvimento independente e por ser vista como uma conhecimento bastando-se a si mesmo, embora, na verdade, seu valor próprio enquanto conhecimento foi precisamente por isso reduzido a quase nada. Isto é visível principalmente quando se trata das ciências físicas, mas, como já explicamos (1), os matemáticos modernos não são exceção sob este aspecto, se os comparamos ao que era para os antigos a ciência dos números e da geometria; e, quando falamos aqui de antigos, é preciso compreender aí inclusive a antigüidade “clássica”, como o demonstra o menor estudo das teorias pitagóricas e platônicas, ou como deveria demonstrar, não fosse a extraordinária incompreensão daqueles que hoje pretendem interpretá-las; se esta incompreensão não fosse assim tão completa, como se poderia sustentar, por exemplo, a opinião sobre uma origem “empírica” dessas ciências, quando, na realidade, elas aparecem ao contrário como tanto mais distantes de todo “empirismo” quanto mais nos afastamos no tempo, como aliás acontece também com todos os outros ramos do conhecimento científico?

Os matemáticos, na época moderna, e mais especificamente ainda na época contemporânea, parecem ter chegado mesmo a ignorar o que é verdadeiramente o número; e, aqui, não pensamos falar apenas do número tomado no sentido analógico e simbólico como o entendiam os Pitagóricos e os Cabalistas, o que é bastante evidente, mas mesmo, o que pode parecer mais estranho e quase paradoxal, do número em sua acepção simplesmente e propriamente quantitativa. De fato, eles reduzem toda sua ciência ao cálculo, segundo a concepção mais estreita que se possa fazer dele, ou seja considerado como um simples conjunto de procedimentos mais ou menos artificiais, e que não valem em suma senão pelas aplicações práticas a que dão lugar; no fundo, isto eqüivale a dizer que eles substituem o número pela cifra, e, de resto, esta confusão do número com a cifra é tão comum em nossos dias que podemos encontrá-la facilmente até nas expressões da linguagem corrente (2). Ora, a cifra não passa, com todo rigor, senão da vestimenta do número; não dizemos seu corpo, pois é antes a forma geométrica que, sob certos aspectos, pode ser legitimamente considerada como constituindo o verdadeiro corpo do número, como o demonstram as teorias dos antigos sobre os polígonos e os poliedros, colocados em relação direta com os números; e isto aliás concorda com o fato de que toda “incorporação” implica necessariamente uma “espacialização”. Não queremos dizer, entretanto, que as cifras sejam signos inteiramente arbitrários, cuja forma teria sido determinada pela fantasia de um ou mais indivíduos; acontece o mesmo com os caracteres numéricos que com os caracteres alfabéticos, dos quais eles não se distinguem em algumas línguas (3), e podemos aplicar a uns e outros a noção de uma origem hieroglífica, ou seja ideográfica ou simbólica, que vale para todas as escritas sem exceção, por escondida que esta origem possa estar em certos casos por deformações ou alterações mais ou menos recentes.

O que há de certo, é que os matemáticos empregam em sua notação símbolos dos quais eles já não conhecem o sentido, e que são como que os vestígios de tradições esquecidas; e o que é mais grave, é que eles não apenas não se perguntam qual poderá ser este sentido, mas que inclusive eles não querem que haja aí sentido algum. Com efeito, eles tendem cada vez mais a ver toda notação como uma simples “convenção”, entendendo com isto algo que foi colocado de modo inteiramente arbitrário, o que, no fundo, é uma verdadeira impossibilidade, pois não se produz jamais uma convenção sem ter alguma razão para faze-lo, e para faze-la assim antes do que de outra maneira; é apenas para os que ignoram esta razão que a convenção pode parecer arbitrária, assim como é somente aos que ignoram as causas de um evento que este pode parecer “fortuito”; é o que ocorre aqui, e podemos ver nisto uma das conseqüências mais extremas da falta de qualquer princípio, que chega a fazer com que a ciência (ou suposta ciência, pois então ela não mais merecerá este nome) perca todo significado plausível. De resto, pela própria concepção atual de uma ciência unicamente quantitativa, este “convencionalismo” estende-se aos poucos das matemáticas às ciências físicas, em suas teorias mais recentes, que assim distanciam-se mais e mais da realidade que elas pretendem explicar; já insistimos o bastante a respeito em outras obras para nos dispensarmos de faze-lo agora, tanto mais que é apenas das matemáticas que pretendemos nos ocupar aqui. Deste ponto de vista, acrescentaremos apenas que, quando se perde de vista assim tão completamente o sentido de uma notação, fica muito fácil passar de seu uso legítimo e válido para um uso ilegítimo, que não corresponde efetivamente a mais nada, e que às vezes pode chegar a ser totalmente ilógico; isto pode parecer extraordinário quando se trata de uma ciência como a matemática, que deveria ter laços especialmente estreitos com a lógica, e no entanto a verdade é que podemos encontrar múltiplos ilogismos nas noções matemáticas tais como são vistas comumente em nossa época.

Um dos exemplos mais notáveis destas noções ilógicas, e o que iremos considerar aqui antes de mais nada (embora não seja o único que iremos encontrar em nossa exposição), é a do pretenso infinito matemático ou quantitativo, que é a fonte de quase todas as dificuldades que se levantaram contra o cálculo infinitesimal, ou, talvez mais exatamente, contra o método infinitesimal, pois existe aí qualquer coisa que, pensem o que quiserem os “convencionalistas”, ultrapassa o alcance de um simples “cálculo” no sentido comum do termo; não há exceção a fazer senão para as dificuldades que provém de uma concepção errônea ou insuficiente da noção de “limite”, indispensável para justificar o rigor deste método infinitesimal e fazer dele outra coisa do que um simples método de aproximação. Existe de resto, como o  veremos, uma distinção a fazer entre os casos em que o suposto infinito não exprime mais do que um absurdo puro e simples, ou seja uma idéia contraditória em si mesma, como o do “número infinito”, e aqueles em que ele é apenas empregado de modo abusivo no sentido do indefinido; mas não se deve crer por isso que a própria confusão entre o infinito e o indefinido se reduza a uma simples questão de palavras, pois ela estende-se verdadeiramente até as idéias em si. O que é singular, é que essa confusão, que bastaria dissipar para eliminar pela raiz tantas discussões, foi cometida pelo próprio Leibnitz, que é geralmente visto como o inventor do cálculo infinitesimal, e que chamaríamos antes seu “formulador”, pois este método corresponde a certas realidades que, como tais, tem uma existência independente daquele que as concebe ou as exprime de maneira mais ou menos perfeita; as realidades de ordem matemática só podem, assim como todas as outras, ser descobertas e não inventadas, enquanto que, ao contrário, é de “invenção” que se trata quando se é levado à pura fantasia por um “jogo” qualquer de notações, como acontece frequentemente neste domínio; mas seria com certeza bem difícil fazer compreender essa verdade a matemáticos que imaginam de bom grado que toda sua ciência não é e nem deve ser senão uma “construção do espírito humano”, o que, se fossemos concordar com eles, a reduziria a bem pouca coisa na realidade! Seja como for, Leibnitz nunca foi capaz de explicar-se claramente sobre os princípios de seu cálculo, e é isto que mostra que existe aí algo que o ultrapassa e que se impôs a ele sem que ele tivesse consciência; se ele tivesse se dado conta disto, ele certamente não teria se engajado numa disputa de “prioridade” com Newton, disputa aliás vã como todas as deste tipo, pois as idéias, se verdadeiras, não podem ser propriedade de ninguém, malgrado o “individualismo” moderno, e somente o erro pode ser atribuído propriamente aos indivíduos humanos. Não nos alongaremos sobre esta questão, que poderia nos distanciar do objeto de nosso estudo, embora talvez não fosse inútil, sob certos aspectos, fazer compreender que o papel daqueles a que se chama “grandes homens” é muitas vezes, em grande parte, um papel de “receptores”, embora sejam eles geralmente os primeiros a se iludir a respeito de sua “originalidade”.

O que nos concerne mais diretamente para o momento é o seguinte: se constatamos tais insuficiências em Leibnitz, e insuficiências tanto mais graves na medida em que se referem a questões de princípios, que se poderá dizer dos outros filósofos e matemáticos modernos, aos quais ele é muito superior apesar de tudo? Esta superioridade, ele a deve, de um lado, aos estudos que fez das doutrinas escolásticas da Idade Média, embora não as tendo compreendido inteiramente, e de outro, a certos dados esotéricos, de origem ou de inspiração principalmente rosicruciana (4), dados evidentemente muito incompletos e mesmo fragmentários, e que aliás ele aplicou às vezes bastante mal, como veremos; é a estas duas “fontes”, para falarmos como os historiadores,  que se deve reportar, em definitivo, quase tudo o que há de realmente válido em suas teorias, e é o que lhe possibilitou reagir, ainda que imperfeitamente, contra o cartesianismo, que representava então, no duplo domínio filosófico e científico, todo o conjunto das tendências e concepções mais especificamente modernas. Esta observação basta em suma para explicar, em poucas palavras, tudo o que foi Leibnitz, e, se quisermos compreende-lo, não se deve jamais perder de vista estas indicações gerais, que achamos conveniente, por isso mesmo, formular desde o início; mas é tempo de deixarmos essas considerações preliminares para entrarmos no exame das questões que nos permitirão determinar o verdadeiro significado do cálculo infinitesimal.


NOTAS



1.      Ver Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps.
2.      Existem mesmo “pseudo-esoteristas” que sabem tão pouco a respeito daquilo de que falam que não deixam nunca de cometer esta mesma confusão nas elucubrações fantasistas com as quais pretendem substituir a ciência tradicional dos números!
3.      O hebraico e o grego estão neste caso, e também o árabe antes da introdução do uso das cifras de origem indiana, que, a seguir, com algumas modificações, passaram daí à Europa medieval; podemos lembrar a propósito que a palavra “cifra” não é outra que o árabe çifr, embora este seja na realidade apenas a designação do zero. É verdade que, em hebraico, saphar significa “contar” ou “numerar”, ao mesmo tempo que “escrever”, donde sepher, “escritura” ou “livro” (em árabe sifr, que designa especificamente um livro sagrado), e sephar, “numeração” ou “cálculo”; deste último termo vem também a designação das Sephiroth da Cabala, que são as “numerações” principiais assimiladas aos atributos divinos.
4.      A marca inegável dessa origem acha-se na figura hermética colocada por Leibnitz na capa de seu tratado De Arte Combinatoria; é uma representação da Rota Mundi, na qual, no centro da dupla cruz dos elementos (fogo e água, ar e terra) e das qualidades (calor e frio, seco e úmido), a quinta essentia é simbolizada por uma rosa com cinco pétalas (correspondente ao éter considerado em si mesmo e como princípio dos outros quatro elementos); naturalmente, esta “assinatura” passou completamente desapercebida de todos os comentadores universitários!





I

 INFINITO E INDEFINIDO



Procedendo de certo modo no sentido inverso da ciência profana, devemos, segundo o ponto de vista constante de toda ciência tradicional, colocar aqui antes de tudo o princípio que nos permitirá resolver, de modo quase imediato, as dificuldades a que deu lugar o método infinitesimal, sem nos deixarmos arrastar para discussões que de outro modo seriam intermináveis, como o são de fato para os filósofos e matemáticos modernos, que, pela falta deste mesmo princípio, jamais puderam dar a essas dificuldades uma solução satisfatória e definitiva. Este princípio, é a própria idéia de Infinito entendido no único sentido verdadeiro, que é o sentido puramente metafísico, e basta-nos aqui lembrar sumariamente o que já expusemos a respeito em outra parte (1): o Infinito é propriamente aquilo que não tem limites, pois finito e limitado são evidentemente sinônimos; não podemos portanto aplicar este nome senão àquilo que não possui absolutamente limite algum, ou seja ao Todo universal que inclui em si todas as possibilidades, e que, por conseguinte, não pode ser de modo algum limitado pelo que quer que seja; o Infinito, entendido assim, é metafísica e logicamente necessário, pois ele não apenas não pode implicar nenhuma contradição, por não encerrar em si nada de negativo, como, ao contrário, a negação é que seria contraditória. Ademais, não pode existir evidentemente senão um Infinito, pois dois infinitos supostos distintos limitar-se-iam um ao outro, e portanto excluir-se-iam forçosamente; consequentemente, toda vez que o termo “infinito” é empregado em outro sentido do que o que foi exposto, podemos estar certos a priori que este emprego é necessariamente abusivo, pois ele eqüivale em suma, ou a ignorar pura e simplesmente o Infinito metafísico, ou a supor outro infinito ao seu lado.

É verdade que os escolásticos admitiam aquilo a que eles chamavam infinitum secundum quid, que eles distinguiam cuidadosamente do infinitum absolutum que é o único Infinito metafísico; mas não podemos ver aí senão uma imperfeição de sua terminologia, pois, se esta distinção lhes permitia escapar da contradição de uma pluralidade de infinitos entendidos em seu sentido próprio, também é certo que este duplo emprego do termo infinitum pode causar múltiplas confusões, além do que um dos sentidos é totalmente impróprio, pois dizer que algo é infinito apenas sob um certo aspecto, que é o significado exato da expressão infinitum secundum quid, eqüivale a dizer que ele não é absolutamente infinito (2). De fato, não é porque uma coisa não é limitada em um certo sentido ou sob um dado aspecto que podemos legitimamente concluir que ela não é limitada de modo algum, que é o que seria necessário para que ela seja verdadeiramente infinita; não apenas ela pode ser ao mesmo tempo limitada sob outros aspectos, mas podemos dizer que ela o é necessariamente, desde que ela é uma certa coisa determinada, e que, por sua própria determinação, ela não inclui todas as possibilidades, pois isso eqüivale a dizer que ela é limitada por aquilo que ela deixa fora de si; ao contrário, se o Todo universal é infinito, é precisamente porque ele não deixa nada fora de si (3). Toda determinação, por geral que se possa supor, e qualquer que seja a extensão que possa receber, exclui assim necessariamente a verdadeira noção de infinito (4); uma determinação, qualquer que seja, é sempre uma limitação, pois ela tem por caráter essencial o de definir um certo domínio de possibilidades em relação a todo o resto, excluindo por isso mesmo este resto. Assim, existe um verdadeiro contra-senso em aplicar a idéia de infinito a uma determinação qualquer, como por exemplo, no caso que iremos considerar aqui especificamente, a quantidade ou qualquer um de seus modos; a idéia de um “infinito determinado” é por demais contraditória para que seja preciso insistir, embora esta contradição tenha quase sempre escapado ao pensamento profano dos modernos, e mesmo daqueles que podemos chamar de “semi-profanos” como Leibnitz (5). Para salientar ainda mais esta contradição, podemos dizer, em outros termos, que é obviamente absurdo pretender definir o Infinito: uma definição não passa no fundo da expressão de uma determinação, e as próprias palavras dizem claramente que o que é susceptível de ser definido não pode ser senão finito ou limitado; procurar encaixar o Infinito em uma fórmula, ou, se se preferir, revesti-lo de uma forma qualquer, é, consciente ou inconscientemente, esforçar-se por fazer caber o Todo universal em um dos elementos mais ínfimos compreendidos nele, o que, certamente, é a mais manifesta das impossibilidades.

O que dissemos basta para estabelecer, sem deixar dúvidas e sem necessidade de outras considerações, que não pode haver um infinito matemático ou quantitativo, e que esta expressão não tem mesmo o menor sentido, porque a própria quantidade é uma determinação; o número, o espaço, o tempo, aos quais se pretende aplicar a noção deste pretenso infinito, são condições determinadas, e que, como  tais, não podem ser senão finitas; trata-se aí de certas possibilidades, ou de certos conjuntos de possibilidades, fora das quais existem outras, o que evidentemente implica sua limitação. Existe mesmo, nestes casos, alguma coisa mais: conceber o Infinito em termos quantitativos eqüivale não apenas a limitá-lo, mas ainda, por acréscimo, a concebe-lo como susceptível de aumento e diminuição, o que não é menos absurdo; com semelhantes considerações, chega-se depressa a considerar, não apenas múltiplos infinitos coexistindo sem se confundir nem se excluir, mas também infinitos que são maiores ou menores do que outros infinitos, e mesmo – tendo o infinito se tornado tão relativo nestas condições que já não basta mais – inventa-se o “transfinito”, ou seja o domínio das quantidades maiores do que o infinito; e é realmente de “invenção” que se trata propriamente então, pois tais concepções já não correspondem a nada de real; são apenas palavras e outros tantos absurdos, mesmo aos olhos da simples lógica elementar, o que não impede que, dentre aqueles que as sustentam, encontre-se quem tenha a pretensão de ser “especialista” em lógica, tal é a confusão intelectual de nossa época!

Devemos lembrar aqui o que já dissemos, não apenas sobre “conceber um infinito quantitativo”, mas também quanto a “conceber o Infinito em termos quantitativos”, e isto pede algumas explicações: quisemos, assim, aludir mais particularmente àqueles que, no jargão filosófico contemporâneo, são chamados de “infinitistas”; de fato, todas as discussões entre “finitistas” e “infinitistas” mostram claramente que tanto uns quanto outros tem ao menos em comum esta idéia completamente falsa de que o Infinito metafísico é solidário com o infinito matemático, quando não se identificam pura e simplesmente (6). Ambos ignoram igualmente assim os princípios mais elementares da metafísica, porque é ao contrário a própria concepção do verdadeiro Infinito metafísico a única que permite rejeitar de modo absoluto todo e qualquer “infinito particular”, se podemos nos exprimir assim, tal como o pretenso infinito quantitativo, bem como ter a certeza de que não se trata senão de uma ilusão aonde quer que se encontre um, restando assim apenas a questão de encontrar sua origem, a fim de poder substituí-lo por outra noção mais conforme à verdade. Em suma, todas as vezes em que se tratar de uma coisa particular, de uma possibilidade determinada, teremos por isso mesmo a priori a certeza de que ela é limitada, e, podemos dize-lo, limitada por sua própria natureza, mesmo nos casos em que, por uma razão qualquer, não podemos atualmente alcançar seus limites; mas é precisamente esta impossibilidade de atingir o limite de certas coisas, e mesmo às vezes de concebe-lo claramente, que causa, ao menos àqueles a quem falta o princípio metafísico, a ilusão de que estas coisas não tem limites, e, repetimos, é apenas esta ilusão, e nada mais, que se formula na afirmação contraditória de um “infinito determinado”.

É aqui que intervém, para retificar esta falsa noção, ou antes para substituí-la por uma concepção verdadeira das coisas (7), a idéia de indefinido, que é precisamente a idéia de um desenvolvimento de possibilidades de que não podemos alcançar atualmente os limites; e é por que vemos como fundamental, em todas as questões onde aparece o pretenso infinito matemático, a distinção entre o Infinito e o indefinido. É sem dúvida a ela que correspondia, na intenção de seus autores, a distinção escolástica entre o infinitum absolutum e o infinitum secundum quid; é certamente espantoso que Leibnitz, que entretanto fez em outras ocasiões tantos empréstimos à escolástica, a tenha negligenciado, pois, por imperfeita que seja a forma de sua expressão, ela teria podido servir-lhe para responder com facilidade a muitas objeções levantadas contra seu método. Ao contrário, parece que Descartes havia ensaiado estabelecer essa distinção, mas sem exprimi-la ou concebe-la com suficiente precisão, pois, segundo ele, o indefinido é aquilo de que não vemos os limites, e que poderia mesmo ser infinito, embora não possamos afirmar que o seja, enquanto que a verdade é que podemos ao contrário afirmar que ele não o é, e que não é preciso ver os limites de algo para sabermos que eles existem; vemos assim como tudo é vago e confuso, e sempre devido à mesma falta de princípio. Descartes diz com efeito: “Quanto a nós, ao vermos coisas das quais, segundo certos sentidos (8), não percebemos os limites, não asseguraremos por isso que elas são infinitas, mas apenas as estimaremos como indefinidas” (9). E ele dá como exemplos a extensão e a divisibilidade dos corpos; ele não assegura que estas coisas sejam infinitas, mas ele não chega a negá-lo formalmente, tanto mais que ele declara não pretender “envolver-se nas disputas do infinito”, o que é um modo muito fácil de descartar as dificuldades, e embora ele diga mais adiante que “ainda que observemos propriedades que nos parecem não ter limites, não deixamos de reconhecer que isto se deve a uma falha do nosso entendimento, e não à sua natureza” (10). Em suma, ele pretende, com justa razão, reservar o nome de infinito ao que não pode ter nenhum limite; mas, por outro lado, ele parece não saber, com a certeza absoluta que implica todo conhecimento metafísico, que aquilo que não tem nenhum limite não pode ser nada nem outro senão o Todo universal, e, por outro lado, a própria noção de indefinido precisa ser mais explicitada do que ele o faz; se isto tivesse acontecido, muitas confusões ulteriores não teriam se produzido tão facilmente (11).

Dissemos que o indefinido não pode ser infinito, porque seu conceito comporta sempre uma certa determinação, quer se trate da extensão, da duração, da divisibilidade, ou de qualquer outra possibilidade; em uma palavra, o indefinido, qualquer que seja e sob qualquer aspecto considerado, é sempre finito e não pode ser senão finito. Sem dúvida, seus limites podem ser recuados até se acharem fora de nosso alcance, ao menos na medida em que tentamos atingi-los de um modo a que podemos chamar “analítico”, como explicaremos a seguir; mas eles não são suprimidos por essa razão, e, em todo caso, se as limitações de uma dada ordem podem ser suprimidas, sempre subsistem outras, devidas à própria natureza daquilo que se considera, pois é em virtude de sua natureza, e não apenas por qualquer circunstância mais ou menos exterior e acidental, que toda coisa particular é finita, seja lá qual for o grau a que pode ser levado a extensão de que ela é susceptível. Podemos lembrar a propósito que o signo pelo qual os matemáticos representam seu pretenso infinito, é ele próprio uma figura fechada, portanto visivelmente finita, assim como o círculo com que alguns pretendem simbolizar a eternidade, o qual não pode ser senão a figuração de um ciclo temporal, indefinido somente em sua ordem, ou seja aquilo a que se chama propriamente a perpetuidade (12); é fácil de ver que essa confusão entre a eternidade e a perpetuidade, tão comum entre os Ocidentais modernos, aparenta-se estreitamente àquela entre o Infinito e o indefinido.

Para melhor fazer compreender a idéia do indefinido e o modo pelo qual este se forma a partir do finito entendido em sua acepção comum, podemos considerar um exemplo como o da série dos números: nesta, evidentemente, jamais se pode parar num ponto determinado, pois, após qualquer número, sempre existe um outro que se obtém adicionando ao primeiro a unidade;  por conseguinte, é


preciso que a limitação desta série indefinida  seja de outra ordem da
que se aplica a um conjunto definido de números, tomado entre dois números determinados quaisquer; é preciso então que ela se deva, não às propriedades específicas de certos números, mas à própria natureza do número em toda a sua generalidade, ou seja à determinação que, por constituir essencialmente esta natureza, faz ao mesmo tempo com que o número seja o que ele é e que ele não seja outra coisa. Podemos repetir exatamente a mesma observação se se tratar, não mais do número, mas do espaço ou do tempo considerados também em toda extensão de que são susceptíveis (13); esta extensão, por indefinida que a concebamos ou que o seja efetivamente, não poderá jamais nos fazer sair do finito. É que, de fato, enquanto que o finito pressupõe necessariamente o Infinito, por ser este que compreende e abarca todas as possibilidades, o indefinido procede ao contrário do finito, do qual ele não passa na realidade de um desenvolvimento, e ao qual ele é por conseguinte sempre redutível, pois é evidente que não se pode extrair do finito, por qualquer processo que seja, nada além nem de outro que o que já esteja nele contido potencialmente. Para retomarmos o mesmo exemplo da série dos números, podemos dizer que esta série, com toda a indefinidade que ela comporta, nos é dada por sua lei de formação, porque é desta mesma lei que resulta imediatamente sua indefinidade; ora, esta lei consiste em que, dado um número qualquer, forma-se o número seguinte acrescentando-lhe a unidade. A série dos números forma-se portanto por adições sucessivas da unidade a si mesma indefinidamente repetida, o que, no fundo, não passa da extensão indefinida do processo de formação de uma soma aritmética qualquer; e vemos aqui claramente como o indefinido se forma a partir do finito. Este exemplo deve aliás sua particular clareza ao caráter descontínuo da quantidade numérica; mas, para tomar as coisas de modo mais geral e aplicável a todos os casos, basta, a respeito, insistir sobre a idéia de “devir” que está implicada no termo “indefinido”, e que exprimimos mais acima ao falarmos de um desenvolvimento de possibilidades, desenvolvimento que, em si mesmo e em todo seu curso, comporta sempre algo de inacabado (14); a importância da consideração das “variáveis”, no que diz respeito ao cálculo infinitesimal, dará a este último ponto todo seu significado.

NOTAS


1.      Os Estados Múltiplos do Ser, cap. I.
2.      É num sentido bastante próximo que Spinoza empregará mais tarde a expressão “infinito em seu gênero”, que naturalmente dá lugar às mesmas objeções.
3.      Podemos dizer que ele não deixa fora de si senão a impossibilidade, que, por ser um puro nada, não poderia limitá-lo de nenhum modo.
4.      Isto vale igualmente para as determinações de ordem universal, em mais apenas geral, inclusive para o próprio Ser que é a primeira de todas as determinações; mas é claro que esta consideração não deve intervir nas aplicações unicamente cosmológicas a que iremos nos ater no presente estudo.
5.      Se a expressão “semi-profano” que empregamos aqui pode espantar, diremos que ela se justifica, de modo muito preciso, pela distinção entre a iniciação efetiva e a iniciação simplesmente virtual, sobre a qual iremos nos explicar em outra ocasião.
6.      Citaremos aqui, como exemplo característico, apenas o caso de L. Couturat, que conclui sua tese De l’infini mathématique (na qual ele se esforçou para provar a existência de um infinito em número e grandeza) declarando que sua intenção havia sido a de mostrar assim que, “apesar do neo-criticismo (ou seja as teorias de Renouvier e de sua escola), uma metafísica infinitista é provável”!
7.      Dentro do rigor lógico, cabe fazer uma distinção entre “falsa noção” (ou, se se preferir, “pseudo-noção”) e “noção falsa”; uma “noção falsa” é aquela que não corresponde adequadamente à realidade, embora corresponda ainda numa certa medida; ao contrário, uma “falsa noção” é aquela que implica contradição, como é o caso aqui, e que assim não chega a ser verdadeiramente uma noção, mesmo falsa, embora tenha a aparência de uma para os que não percebem a contradição , pois, por não exprimir senão o impossível, que é a mesma coisa que o nada, ela não corresponde absolutamente a coisa alguma; uma “noção falsa” pode ser retificada, mas uma “falsa noção” só pode ser rejeitada pura e simplesmente.
8.      Estas palavras parecem querer lembrar o secundum quid escolástico e assim pode ser que a intenção primeira da frase citada fosse a de criticar indiretamente a expressão infinitum secundum quid.
9.      Principes de la Philosophie, I, 26.
10.  Ibid., I, 27.
11.  É assim que Varignon, em sua correspondência com Leibnitz a respeito do cálculo infinitesimal, emprega indistintamente as palavras “infinito” e “indefinido”, como se elas fossem quase sinônimos, ou no mínimo como se fosse indiferente tomar uma pela outra, enquanto que ao contrário é a diferença entre seus significados que, em todas as discussões, teria que ser vista como o ponto essencial.
12.  Convém ainda lembrar que, como já explicamos, um tal ciclo jamais é verdadeiramente fechado, mas apenas parece sê-lo quando nos colocamos de uma perspectiva que não permite perceber a distância que realmente existe entre suas extremidades, assim como a espira de uma hélice com eixo vertical aparece como um círculo quando é projetada sobre um plano horizontal.
13.  De nada serviria dizer que o espaço, por exemplo, não poderia ser limitado senão por algo que ainda fosse espaço, de modo que o espaço em geral não poderia ser limitado por nada; ele é ao contrário limitado pela própria determinação que constitui sua natureza particular enquanto espaço, e que deixa lugar, fora dele, a todas as possibilidades não espaciais.
14.  Cf. a observação de A .K. Coomaraswamy sobre o conceito platônico de “medida” que já citamos (Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps, cap. III): o “não-medido” é aquilo que ainda não foi definido, ou seja em suma o indefinido, e ele é, ao mesmo tempo e por isso mesmo, aquilo que não está realizado senão incompletamente dentro da manifestação.


II
A CONTRADIÇÃO DO
“NÚMERO INFINITO”


Existem casos em que basta, como veremos adiante mais claramente, substituir a idéia do pretenso infinito pela do indefinido para que desapareçam imediatamente todas as dificuldades; mas existem outros casos em que mesmo isto não é possível, por tratar-se de algo claramente determinado, de “congelado” de certo modo por hipótese, e que, como tal, não pode ser chamado de indefinido, conforme a ressalva que fizemos por último: assim, por exemplo, podemos dizer que a série dos números é indefinida, mas não podemos dizer que um dado número, por maior que o suponhamos e seja qual for sua posição dentro desta série, seja indefinido. A idéia do “numero infinito”, entendido como “o maior de todos os números”, ou “o número de todos os números”, ou ainda “o número de todas as unidades”, é uma idéia verdadeiramente contraditória em si mesma, cuja impossibilidade subsistiria mesmo que renunciássemos ao emprego injustificável do termo “infinito”: não pode haver um número que seja maior do que todos os outros, pois, por maior que seja ele, podemos sempre formar um maior acrescentando-lhe a unidade, conforme a lei de formação que formulamos mais acima. Isto eqüivale a dizer que a série dos números não pode ter um último termo, e é precisamente pelo fato de que ela não pode ser “acabada” que ela é verdadeiramente indefinida; como o número de todos os seus termos não poderia ser senão o último dentre eles, podemos dizer também que ela não é “numerável”, e esta é uma idéia sobre a qual voltaremos adiante.

A impossibilidade do “número infinito” pode ainda ser estabelecida por diversos argumentos; Leibnitz, que pelo menos admitia esta impossibilidade claramente (1), empregava aquele que consiste em comparar a série dos números pares com a de todos os números inteiros: a todo número corresponde um outro número que é igual a seu dobro, de sorte que podemos fazer corresponder as duas séries termo a termo, donde resulta que o número de termos deve ser o mesmo em uma como na outra; mas, por outro lado, é evidente que existem duas vezes mais números inteiros do que números pares, pois os números pares se colocam de dois em dois dentro da série dos números inteiros; chega-se assim a uma manifesta contradição. Podemos generalizar  este argumento tomando, ao invés da série dos números pares, ou seja dos múltiplos de dois, a dos múltiplos de um número qualquer, e o raciocínio é idêntico; do mesmo modo podemos tomar a série dos quadrados dos números inteiros (2), ou, mais genericamente, a das potências de um expoente qualquer. Em todos os casos, a conclusão é sempre a mesma: é que uma série que não compreende senão uma parte dos números inteiros deve ter o mesmo número de termos que aquela que os compreende a todos, o que eqüivale a dizer que o todo não é maior do que sua parte; e, desde que se admita que existe um número de todos os números, é impossível escapar a esta contradição. Entretanto, alguns acreditaram poder escapar-lhe admitindo ao mesmo tempo que existem números a partir dos quais a multiplicação por um certo número ou a elevação a uma certa potência não seria mais possível, porque daria um resultado que ultrapassaria o pretenso “número infinito”; existem mesmo os que admitiram números ditos “maiores do que o infinito”, donde as teorias tais como a do “transfinito” de Cantor, que podem ser muito engenhosas, mas que nem por isso são válidas logicamente (3): será concebível que se possa chamar de “infinito” um número que, ao contrário, é de tal modo “finito” que não é sequer o maior de todos? De resto, com semelhantes teorias, haveria números aos quais nenhuma das regras do cálculo normal seriam mais aplicáveis, ou seja, em suma, números que não seriam verdadeiramente números, e que só seriam chamados assim por convenção (4); é o que acontece forçosamente quando, tentando conceber o “número infinito” de outro modo que não como o maior dos números, admite-se diferentes “números infinitos”, supostos desiguais entre si, e aos quais são atribuídas propriedades que não tem mais nada em comum com as dos números normais; assim, escapa-se de uma contradição para cair em outras, e, no fundo, tudo isso não passa de produto do “convencionalismo” mais vazio que se possa imaginar.

Assim, a idéia do pretenso “número infinito”, seja lá como se apresente e seja qual for o nome com que se apresente, contém sempre elementos contraditórios; de resto, não há necessidade desta suposição absurda a partir do momento em que se coloca uma concepção exata daquilo que é realmente a indefinitude do número, e quando reconhecemos que o número, apesar de sua indefinitude, não é absolutamente aplicável a tudo o que existe. Não vamos insistir sobre este último ponto, que já explicamos suficientemente em outra ocasião: o número não passa de um modo da quantidade, e a própria quantidade não é mais do que uma categoria ou um modo particular do ser, não coextensivo a este, ou, mais precisamente ainda, ela não passa de uma condição própria a um certo estado de existência dentro do conjunto da existência universal; mas isto é justamente o que a maior parte dos modernos tem dificuldade em compreender, por estarem habituados a reduzir tudo à quantidade, e mesmo a avaliar tudo numericamente (5). Entretanto, dentro do próprio domínio da quantidade, existem coisas que escapam ao número, como veremos a respeito do contínuo; e, mesmo sem sairmos da consideração exclusiva da quantidade descontínua, somos forçados a admitir, ao menos implicitamente, que o número não é aplicável a tudo, quando reconhecemos que a multitude de todos os números não pode constituir um número, o que, de resto, não passa de uma aplicação desta verdade incontestável que diz que aquilo que limita uma certa ordem de possibilidades deve estar necessariamente fora e além desta (6). Apenas deve ficar bem entendido que uma tal multitude, seja considerada dentro do descontínuo, como é o caso da série dos números, seja dentro do contínuo, sobre o qual voltaremos adiante, nunca pode ser chamada de infinita, não havendo aí mais do que o indefinido; é esta noção de multitude que iremos examinar mais de perto a seguir.


NOTAS


1.      “Apesar de meu cálculo infinitesimal, escrevia ele notadamente, eu não admito um verdadeiro número infinito, embora confesse que a multitude das coisas ultrapassa todo número finito, ou antes todo número”.
2.      É o que  fez Cauchy, que aliás atribuiu este argumento a Galileu (Sept leçons de Physique générale, 3ª lição)
3.      Já na época de Leibnitz, Wallis considerava os “spatia plus quam infinita”; esta opinião, denunciada por Varignon por implicar contradição, foi igualmente sustentada por Guido Grandi em seu livro De Infinitis infinitorum. Por outro lado, Jean Bernoulli, ao longo de suas discussões com Leibnitz, escreveu: “Si dantur termini infiniti, dabitur etiam terminus infinitesimus (non dico ultimus) et qui eum sequuntur”, o que, embora ele não o tenha explicado mais claramente, parece indicar que ele admitia que pudesse haver numa série numérica termos “além do infinito”.
4.      Não podemos dizer que se trate de um emprego analógico da idéia de número, pois isto suporia uma transposição em um domínio outro que o da quantidade, e, ao contrário, é exatamente à quantidade, entendida em seu sentido mais literal, que todas estas considerações se reportam exclusivamente.
5.      É assim que Renouvier pensava que o número é aplicável a tudo, ao menos idealmente, ou seja que tudo é “numerável” em si mesmo, mesmo que sejamos incapazes de “numerá-lo” efetivamente; ele também enganou-se completamente sobre o sentido que Leibnitz dá à noção de “multitude”, e ele jamais compreendeu como a distinção entre esta e o número permite escapar à contradição do “número infinito”.
6.      Dissemos entretanto que uma coisa particular  ou determinada, seja ela qual for, é limitada por sua própria natureza, mas não existe aí nenhuma contradição: com efeito, é pelo lado negativo desta natureza que ela é limitada (pois, como diz Spinoza, “omnis determinatio negatio est”), ou seja enquanto esta exclui as outras coisas e as deixa fora dela, de sorte que, definitivamente, é a coexistência com estas outras coisas que limita a coisa considerada; é por isso aliás que o Todo universal, e apenas ele, não pode ser limitado por nada.





III
A MULTITUDE INUMERÁVEL


Leibnitz, como vimos, não admite o “número infinito”, pois ele declara expressamente que este, em qualquer sentido que o entendamos, implica contradição; mas, ao contrário, ele admite aquilo que ele chama uma “multitude infinita”, sem sequer precisar, como faziam os escolásticos, tratar-se aí de um infinitum secundum quid; e a série dos números é, para ele, um exemplo desta multitude. No entanto, de um outro lado, no domínio quantitativo, e mesmo no que concerne à grandeza contínua, a idéia de infinito lhe parece sempre no mínimo suspeita de contradição, pois, longe de ser uma idéia adequada, ela comporta inevitavelmente uma certa parte de confusão, e não podemos estar certos de que uma idéia não implica  contradição a menos que possamos conceber distintamente todos os elementos (1); isto permite quando muito atribuir a esta idéia um caráter “simbólico”, diríamos mesmo “representativo”, e é por isso que ele jamais ousou, como veremos adiante, pronunciar-se claramente sobre a realidade dos “infinitamente pequenos”; mas este embaraço e esta atitude dubitativa fazem ressaltar a falta de princípio que o fazia admitir que se pudesse falar de uma “multitude infinita”. Podemos nos perguntar, a partir daí, se ele não pensava que uma tal multitude, para ser “infinita” como ele a chama, não deveria apenas não ser “numerável”, o que é evidente, mas mais ainda não poderia ser inclusive quantitativa, tomando a quantidade em toda sua extensão e em todos os seus modos; isso poderia ser verdade em alguns casos, mas não em todos; seja como for, este é mais um ponto sobre o qual ele jamais explicou-se claramente.

A idéia de uma multitude que ultrapassa todo número, e que por conseguinte não é um número, parece ter chocado a maior parte daqueles que discutiram as concepções de Leibnitz, tanto “finitistas” quanto “infinitistas”; entretanto ela está longe de ser particular a Leibnitz como se acredita, e ao contrário, era uma idéia corrente entre os escolásticos (2). Esta idéia era entendida propriamente a respeito de tudo o que não é número nem é “numerável”, ou seja de tudo o que não provém da quantidade descontínua, quer se trate de coisas pertencentes a outros modos da quantidade ou daquilo que está inteiramente fora do domínio quantitativo, pois tratava-se de uma idéia da ordem dos “transcendentais”, ou seja dos modos gerais do ser, que, contrariamente aos seus modos particulares como a quantidade, lhe são coextensivos (3). É o que permite falar, por exemplo, da multitude dos atributos divinos, ou ainda da multitude dos anjos, ou seja de seres que pertencem a estados não submetidos à quantidade e onde, consequentemente, não pode ser questão de número; é também o que nos permite considerar os estados do ser ou os graus da existência como sendo em multiplicidade ou em multitude indefinida, enquanto que a quantidade não passa de uma condição particular de um apenas dentre eles. Por outro lado, como a idéia de multitude, contrariamente à do número, é aplicável a tudo o que existe, devem forçosamente existir multitudes de ordem quantitativa, notadamente no que diz respeito à quantidade contínua, e é por isso que dizemos que não seria verdadeiro em todos os casos considerar a suposta “multitude infinita”, ou seja aquela que ultrapassa todo número, como algo que escapa inteiramente ao domínio da quantidade. Mais do que isto, o próprio número pode ser visto como uma espécie de multitude, mas com a condição de acrescentar que se trata, segundo a expressão de São Tomás de Aquino, uma “multitude medida pela unidade”; qualquer outra espécie de multitude, não sendo “numerável”, é “não-mensurável”, o que eqüivale a dizer que ela é, não infinita, mas propriamente indefinida.

Convém notar, a propósito, um fato singular: Para Leibnitz, esta multitude, que não constitui um número, é entretanto um “resultado de unidades” (4); o que se deve entender por isto, e de que unidades se trata? O termo “unidade” pode ser aqui tomado em dois sentidos bastante diferentes: de um lado, existe a unidade matemática ou quantitativa, que é o elemento primeiro e o ponto de partida do número, e, de outro, existe aquilo que é designado analogamente como a Unidade metafísica, que identifica-se ao próprio Ser puro; não cremos que possa haver outra acepção possível fora estas; mas, de resto, quando se fala em “unidades”, no plural, só pode ser evidentemente no sentido quantitativo. Porém, se á assim, a soma das unidades não pode ser senão um número, e ela não pode absolutamente ultrapassar o número; é verdade que Leibnitz diz “resultado” e não “soma”, mas esta distinção, mesmo que voluntária, não deixa de manter uma estranha obscuridade. De resto, ele declara em outra parte que a multitude, sem ser um número, é no entanto concebida por analogia com o número: “Quando existem mais coisas do que podem ser compreendidas por qualquer número, diz ele, nós entretanto atribuímos analogamente um número, a que chamamos infinito”, embora não seja senão um “modo de  falar”, um “modus loquendi” (5), e mesmo, sob esta forma, um modo de falar bastante incorreto, pois, na realidade, não se trata de modo algum de um número; mas, quaisquer que sejam as imperfeições da expressão e as confusões a que ela dá lugar, devemos admitir, em todo caso, que uma identificação da multitude com o número não estava certamente no fundo de seu pensamento.

Um outro  ponto ao qual Leibnitz parece dar grande importância, é que o “infinito”, tal como ele o concebe, não constitui um todo (6); esta é uma condição que ele considera necessária para que esta idéia escape à contradição, mas é um ponto que também fica mantido obscuro. Cabe perguntar que espécie de “todo” está agora em questão, e é preciso antes de mais nada descartar inteiramente a idéia do Todo universal, que é, ao contrário, o próprio Infinito metafísico, ou seja o único verdadeiro Infinito, que não poderia nunca estar aí em causa; com efeito, quer se trate do contínuo ou do descontínuo, a “multitude infinita” considerada por Leibnitz mantém-se, em todos os casos, dentro de um domínio restrito e contingente, de ordem cosmológica e não metafísica. Trata-se evidentemente, aliás, de um todo concebido como sendo composto de partes, enquanto que, como já explicamos (7), o Todo universal é propriamente “sem partes”, em razão de sua própria infinitude, pois, como estas partes devem necessariamente ser relativas e finitas, elas não podem ter com ele nenhuma relação real, o que eqüivale a dizer que elas não existem para ele. Devemos então limitar-nos, quanto à questão colocada, à consideração de um todo particular; mas ainda aqui, e precisamente no que diz respeito ao modo de composição deste todo e sua relação com suas partes, existem dois casos a considerar, correspondentes a duas acepções bem diferentes da mesma palavra “todo”. Primeiramente, se se trata de um todo que não é mais do que a simples soma de suas partes, portanto composto ao modo de uma soma aritmética, o que diz Leibnitz é evidente no fundo, pois este modo de formação é precisamente o que é próprio do número, e ele não nos permite ultrapassar o número; mas, a bem dizer, esta noção, longe de representar o único modo como um todo pode ser concebido, não é sequer a de um todo verdadeiro no sentido mais rigoroso deste termo. Com efeito, um todo que não é mais do que a soma ou o resultado de suas partes, e que, por conseguinte, é logicamente posterior a estas, não é outra coisa, enquanto todo, do que um ens rationis, pois ele só é “um” e “todo” na medida em que o concebemos como  tal; em si mesmo, não se trata mais do que de uma “coleção”, e somos nós que, pelo modo como a consideramos, lhe conferimos, num sentido relativo, os caracteres de unidade e de totalidade. Ao contrário, um todo verdadeiro, possuindo estes caracteres por sua natureza mesma, deve ser logicamente anterior às suas partes e delas ser independente: este é o caso de um conjunto contínuo, que podemos dividir em partes arbitrárias, ou seja de uma grandeza qualquer, mas que não pressupõe absolutamente a existência atual destas partes; aqui, somos nós que atribuímos a estas partes como tais uma realidade, por uma divisão ideal ou efetiva, e assim este caso é exatamente o inverso do precedente.

Agora, toda a questão resume-se em suma a saber se, quando Leibnitz diz que “o infinito não é um todo”, ele exclui este segundo sentido tanto quanto o primeiro; é o que parece, e é mesmo provável, pois é o único caso em que um todo é verdadeiramente “um”, e que o infinito, segundo ele, não é “nec unum, nec totum”. O que o confirma ainda, é que este caso, e não o primeiro,  é aquele que se aplica a um ser vivo ou a um organismo quando considerado do ponto de vista da totalidade; ora, Leibnitz diz: “Mesmo o Universo não é um todo, e ele não deve ser concebido como um animal cuja alma é Deus, como o faziam os antigos” (8). Mas, se é assim, não vemos como as idéias do infinito e do contínuo podem ser conexas como o são para ele no mais das vezes, pois a idéia do contínuo liga-se precisamente, num sentido ao menos, a essa segunda concepção da totalidade; mas este é um ponto que poderá ser melhor compreendido mais adiante. O que é certo em todo aso, é que, se Leibnitz havia concebido o terceiro sentido do termo “todo”, sentido puramente metafísico e superior aos dois outros, ou seja a idéia do Todo universal tal como colocamos de início, ele não poderia dizer  que a idéia do infinito exclui a de totalidade, pois ele declara em outra parte: “O infinito real é talvez o próprio absoluto, que não é composto de partes, mas que, possuindo partes, compreende-as por razão eminente e como que ao grau de perfeição” (9). Existe aqui no mínimo um “engano”, se podemos dize-lo, pois desta vez, como por exceção, ele toma o termo “infinito” em seu verdadeiro sentido,, embora seja errôneo dizer que este infinito “possua partes”, como quer que as entendamos; mas é estranho que mesmo aí ele expresse seu pensamento de modo dubitativo e embaraçado, como se não estivesse exatamente certo sobre o significado desta idéia; e talvez ele nunca tenha se certificado, pois de outro modo não se explica que ele a tenha tantas vezes distorcido de seu sentido próprio, e que seja tão difícil, quando ele fala do infinito, saber se sua intenção era a de tomar este termo com rigor, ou se ele não via aí mais do que um simples “modo de dizer”.


NOTAS

1.      Descartes falava apenas em idéias “claras e distintas”; Leibnitz precisa que uma idéia pode ser clara sem ser distinta, na medida em que ela permite apenas reconhecer seu objeto e distingui-lo de todas as outras coisas, enquanto que uma idéia distinta é aquela que é, não apenas “distintiva” neste sentido, mas também “distinguida” em seus elementos; uma idéia pode aliás ser mais ou menos distinta, e a idéia adequada é aquela que o é completamente e em todos os seus elementos; mas, enquanto Descartes achava que se podia ter idéias “claras e distintas” de todas as coisas, Leibnitz estima ao contrário que apenas as idéias matemáticas podem ser adequadas, porque seus elementos são de certa forma em número definido, enquanto que todas as outras idéias abrangem uma multitude de elementos cuja análise jamais pode ser acabada, de modo que elas permanecem sempre parcialmente confusas.
2.      Citaremos apenas um texto entre muitos outros, e que é particularmente claro a respeito: “Qui diceret aliquam multitudinem esse infinitam, non diceret eam esse numerum, vel numerum habere; addit etiam numerus super multitudinem rationem mensurationis. Est enim numerus multitudo mensurata per unum, ... et propter hoc numerus ponitur species quantitatis discretae, non autem multitudo, sed est de transcendentibus” (São Tomás de Aquino, in III Phys., 1. 8)
3.      Sabemos que os escolásticos, mesmo na parte propriamente metafísica de suas doutrinas, jamais foram além da consideração do Ser, de modo que, de fato, sua metafísica reduz-se à mera ontologia.
4.      Système nouveau de la nature et de la communication des substances.
5.      Observatio quod rationes sive proportionaes non habeant locum circa quantitates nihilo minores, et de vero sensu Methodi infinitesimalis, nas Acta Eruditorum de Leipzig, 1712.
6.      Cf. notadamente ibid.: “Infinitum continuum vel discretum proprie nec unum, nec totum, nec quantum est”, onde a expressão “nec quantum” parece querer dizer que para ele, como indicamos mais acima, a “multitude infinita” não deve ser concebida quantitativamente, a menos que por “quantum” ele não tenha entendido aqui apenas uma quantidade definida, como acontecia com o pretenso “número infinito” cuja contradição ele demonstrou.
7.      Sobre este ponto, ver Os Estados Múltiplos do Ser, cap. I.
8.      Carta a Jean Bernoulli. – Leibnitz gratuitamente dá como dos antigos em geral uma opinião que, na verdade, era de apenas alguns; ele tinha em vista manifestamente a teoria dos Estóicos, que concebiam Deus como unicamente imanente e o identificavam à Anima Mundi. Está claro, aliás, que trata-se apenas do Universo manifestado, ou seja do “cosmos”, e não do Todo universal que compreende todas as possibilidades, tanto não-manifestadas como manifestadas.
9.      Carta a Jean Bernoulli, 7 de junho de 1698.


IV
A MEDIDA DO CONTÍNUO


Até aqui, quando falamos do número, tivemos em vista exclusivamente o número inteiro, e tinha que ser logicamente assim, desde que consideramos a quantidade numérica como sendo propriamente a quantidade descontínua; na série dos números inteiros, existe sempre, entre dois termos consecutivos, um intervalo perfeitamente definido, que é marcado pela diferença de uma unidade existente entre estes dois números, a qual, quando nos mantemos na consideração dos números inteiros, não pode ser reduzida de modo algum. De resto, na realidade, apenas o número inteiro é um verdadeiro número, que podemos chamar de número puro; e a série dos números inteiros, partindo da unidade, cresce indefinidamente, sem jamais atingir um último termos, cuja suposição, como vimos, é contraditória; mas está claro que ela se desenvolve inteiramente num único sentido, de modo que o sentido oposto, que seria indefinidamente decrescente, não pode encontrar aí sua representação, embora haja, de um outro ponto de vista que mostraremos adiante, uma certa correlação e uma espécie de simetria entre a consideração das quantidades indefinidamente crescentes e a das quantidades indefinidamente decrescentes. Entretanto, não se pode permanecer lá, e somos obrigados a considerar diversas sortes de números, além dos números inteiros; trata-se, como se diz habitualmente, de extensões ou generalizações da idéia de número, e isso é verdade numa certa medida; mas, ao mesmo tempo, estas extensões são também alterações desta idéia, e isto é o que os matemáticos modernos parecem esquecer com demasiada facilidade, porque seu “convencionalismo” os faz desconhecer sua origem e sua razão de ser. De fato, os números que não são inteiros apresentam-se sempre, antes de mais nada, como a representação do resultado de operações que são impossíveis quando nos mantemos do ponto de vista da matemática pura, pois esta, com todo rigor, não é mais do que a aritmética dos números inteiros: assim, por exemplo, um número fracionário não é outra coisa que a representação do resultado de uma divisão que não se efetua exatamente, ou seja de uma divisão que deveria ser considerada aritmeticamente impossível, o que se reconhece aliás implicitamente quando é dito, segundo a terminologia matemática normal, que um destes números considerados não é divisível pelo outro. Cabe lembrar ainda que a definição que se dá comumente dos números fracionários é absurda: as frações não podem de modo algum serem “partes da unidade”, como se diz, pois a unidade aritmética verdadeira é necessariamente indivisível e sem partes; e é aliás daí que resulta a descontinuidade essencial do número que é formado a partir dela; mas vejamos de onde provém este absurdo.

Com efeito, não é arbitrariamente que chegamos a considerar assim o resultado das operações de que falamos, ao invés de considerá-las pura e simplesmente como impossíveis; é, de um modo geral, em conseqüência da aplicação que se faz do número, quantidade descontínua, à medida de grandezas que, como as grandezas espaciais por exemplo, pertencem à ordem das quantidades contínuas. Entre estes modos da quantidade, existe uma diferença de natureza tal, que a correspondência entre ambas não pode ser estabelecida com perfeição; para remediar isto até um certo ponto, e na medida do possível, procurou-se reduzir de certa forma os intervalos deste descontínuo que é constituído pela série dos números inteiros, introduzindo entre seus termos outros números, em primeiro lugar os números fracionários, que não fariam nenhum sentido fora desta consideração. É fácil de compreender que o absurdo que assinalamos, no que concerne à definição das frações, provém simplesmente de uma confusão entre a unidade aritmética e aquilo que se chama “unidades de medida”, que só são tais por convenção, e que são na realidade grandezas de outra ordem do que os números, notadamente grandezas geométricas. A unidade de comprimento, por exemplo, não passa de um dado comprimento escolhido por razões estranhas à aritmética, e à qual se faz corresponder o número “1” a fim de se poder medir em relação a ela todos os outros comprimentos; mas, por sua própria natureza de grandeza contínua, todo comprimento, mesmo que representado assim pela unidade, não deixa de ser sempre e indefinidamente divisível; podemos então, comparando-o com outros comprimentos que não sejam múltiplos exatos seus, chegar a considerar partes desta unidade de medida, mas que não serão por isso absolutamente partes da unidade aritmética; e é somente assim que se introduz realmente a consideração dos números fracionários, como representação da relação entre grandezas que não são exatamente divisíveis umas pelas outras. A medida de uma grandeza não é de fato outra coisa do que a expressão numérica de sua relação com outra grandeza de mesma espécie tomada como unidade de medida, ou seja no fundo como termo de comparação; e é por isso que o método normal de medida das grandezas geométricas é essencialmente fundamentado sobre a divisão.

É preciso dizer ainda que, apesar disso, subsiste sempre forçosamente algo da natureza descontínua do número, que não permite que se obtenha assim um equivalente exato do contínuo; podemos reduzir os intervalos tanto quanto se queira, vale dizer em suma reduzi-los indefinidamente, tornando-os menores do que qualquer quantidade tomada como referência, mas jamais chegaremos a suprimi-los inteiramente. Para nos explicarmos melhor, tomaremos o exemplo mais simples de um contínuo geométrico, ou seja uma linha reta: consideremos uma semi-reta estendendo-se indefinidamente num certo sentido (1), e façamos corresponder a cada um de seus pontos um número que exprima a distância deste ponto à origem; esta será representada por zero, porque sua distância de si mesmo será obviamente nula; a partir desta origem, os números inteiros corresponderão às extremidades sucessivas de segmentos todos iguais entre si e iguais à unidade de comprimento; os pontos compreendidos entre estes só poderão ser representados por números fracionários, pois suas distâncias até a origem não são múltiplos exatos da unidade de comprimento. É claro que, à medida em que tomemos números fracionários cujo denominador seja crescente, portanto cuja diferença será cada vez menor, os intervalos entre os pontos correspondentes a estes números se verá reduzido na mesma proporção; podemos assim fazer decrescer estes intervalos indefinidamente, teoricamente  ao menos, pois os denominadores dos números fracionários possíveis são todos os números inteiros, cuja série cresce indefinidamente (2). Dizemos teoricamente, porque, de fato, como a multiplicidade dis números fracionários é indefinida, jamais poderemos chegar a empregá-la por completo; mas suponhamos que entretanto que se possa fazer corresponder idealmente todos os números fracionários possíveis a pontos da semi-reta assim considerada: apesar do decréscimo indefinido dos intervalos, restarão ainda sobre esta linha uma multitude de pontos aos quais não corresponderá nenhum número. Isto pode parecer singular e mesmo paradoxal à primeira vista, e no entanto é fácil de perceber, pois esta ponto pode ser obtido por meio de uma operação geométrica muito simples: construiremos um quadrado que tenha por lado o segmento de reta cujas extremidades são os pontos zero e um, e traçaremos a diagonal deste quadrado partindo da origem, e em seguida a circunferência que tem a origem como centro e esta diagonal como raio; o ponto em que esta circunferência corta a semi-reta não poderá ser representado por nenhum número inteiro ou fracionário, pois sua distância à origem será igual à diagonal do quadrado e esta é incomensurável em relação ao lado, ou seja, no nosso caso, com a unidade de comprimento. Assim, a multitude dos números fracionários, malgrado o decréscimo indefinido de suas diferenças, nunca bastará para preencher, se podemos dize-lo, os intervalos entre os pontos contidos na linha (3), o que eqüivale a dizer que esta multitude não é um equivalente real e adequado do contínuo linear; somos forçados, para exprimir a medida de certos comprimentos, a introduzir ainda outras espécies de números, que são os chamados números incomensuráveis, ou seja aqueles que não tem medida comum com a unidade. Estes são os números irracionais, ou seja aqueles que representam o resultado da extração de uma raiz aritmeticamente impossível, como por exemplo a raiz quadrada de um número que não é um quadrado perfeito; é assim que, no exemplo precedente, a relação da diagonal do quadrado com seu lado, e por conseguinte o ponto cuja distância à origem é igual a esta diagonal, só pode ser representado pelo número irracional “raiz de 2”, que é verdadeiramente incomensurável, pois não existe nenhum número inteiro ou fracionário cujo quadrado seja igual a dois; e, além dos números irracionais, existem ainda outros números incomensuráveis cuja origem geométrica é evidente, como por exemplo o número “pi” que representa a relação entre a circunferência e seu diâmetro.

Sem entrarmos ainda na questão da “composição do contínuo”, veremos que o número, seja qual for a extensão que se dê à sua noção, não lhe é jamais perfeitamente aplicável: esta aplicação eqüivale em suma sempre a substituir o contínuo por um descontínuo cujos intervalos podem ser minúsculos, e ainda tornar-se cada vez menores por uma série indefinida de divisões sucessivas, mas jamais podendo ser suprimidos, pois, na realidade, não existe um “último elemento” ao qual estas divisões possam chegar, porque uma quantidade contínua, por menor que seja, permanece sempre indefinidamente divisível. É a estas divisões do contínuo que responde propriamente a consideração dos números fracionários; mas, e é isto que mais importa lembrar, um fração, por ínfima que seja, é sempre uma quantidade determinada, e entre duas frações, por tão pouco diferentes entre si que as possamos supor, existe sempre um intervalo igualmente determinado. Ora, a propriedade da divisibilidade indefinida que caracteriza as grandezas contínuas exige evidentemente que se possa sempre tomar delas elementos tão pequenos quanto se queira, e que os intervalos existentes entre estes elementos podem ser tornados menores do que qualquer quantidade dada; mas, por outro lado – e é aqui que aparece a insuficiência dos números fracionários, e mesmo de qualquer número que seja -, estes elementos e estes intervalos, para que haja realmente continuidade, não devem ser concebidos como qualquer coisa determinada. Por conseguinte, a representação mais perfeita da quantidade contínua será obtida pela consideração de grandezas, não mais fixas e determinadas como aquelas a que nos referimos, mas ao contrário variáveis, porque mesmo sua variação poderá ser vista como efetuando-se de modo contínuo; e estas quantidades deverão ser susceptíveis de decrescer indefinidamente, por sua variação, sem jamais se anularem nem chegar a um “mínimo”, que seria tão contraditório quanto os “últimos elementos” do contínuo: e é esta precisamente, como veremos, a verdadeira noção das quantidades infinitesimais.


NOTAS


1.      Veremos adiante, a respeito da representação geométrica dos números negativos, porque devemos considerar aqui uma semi-reta; de resto, o fato de que a série dos números só se desenvolve num sentido, como já dissemos, indica suficientemente a razão.
2.      Isto ficará mais claro quando falarmos dos números inversos.
3.      Cabe lembrar que não dizemos os pontos que compõem ou que constituem a linha, o que corresponderia a uma concepção falsa do contínuo, como mostrarão as considerações que iremos expor mais adiante.

V
QUESTÕES LEVANTADAS PELO MÉTODO INFINITESIMAL


Quando Leibnitz expôs pela primeira vez o método infinitesimal (1), e ainda em muitos trabalhos subsequentes (2), ele insistiu sobretudo nos usos e aplicações do novo cálculo, o que era bem coerente com a tendência moderna de atribuir maior importância às aplicações práticas da ciência do que à própria ciência; é muito difícil dizer se esta tendência existia em Leibnitz, ou se não haveria, neste modo de apresentar seu método, uma espécie de concessão de sua parte. Seja como for, não basta, para justificar um método, mostrar as vantagens que ele pode ter sobre outros métodos anteriormente admitidos, nem as comodidades que ele pode fornecer na prática para o cálculo, nem mesmo os resultados que ele pode fornecer de fato; são estas objeções que os adversários do método infinitesimal logo fizeram valer, e foram elas que fizeram Leibnitz decidir explicar-se sobre seus princípios e sobre as origens de seu método. Sobre este último ponto, é muito possível que ele não tenha dito tudo, mas isto importa pouco no fundo, pois, frequentemente, as causas ocasionais de uma descoberta não passam de circunstâncias bastante insignificantes em si mesmas; em todo caso, o que há de interessante nas indicações que ele fornece a respeito (3), é que ele partiu da consideração das diferenças “assinaláveis” que existem entre os números, para daí passar às diferenças “inassinaláveis” que podem ser concebidas entre as grandezas geométricas em razão de sua continuidade, e que inclusive ele dava uma grande importância a esta ordem, como se ela fosse de certa forma “exigida pela natureza das coisas”. Resulta daí que as quantidades infinitesimais, para ele, não se apresentavam naturalmente de modo imediato, mas apenas como um resultado da passagem da variação da quantidade descontínua para a quantidade contínua, e da aplicação da primeira à medida da segunda.

Agora, qual é exatamente o significado das quantidades infinitesimais, cujo emprego por Leibnitz foi censurado por falta de uma definição sua, e permitirá este significado considerar seu cálculo como absolutamente rigoroso, ou somente, ao contrário, como um simples método de aproximação? Responder a estas duas questões equivaleria a resolver por isso mesmo as objeções mais importantes que lhe foram feitas; mas, infelizmente, ele jamais o fez claramente, e mesmo suas diversas respostas nem sempre são conciliáveis entre si. A este propósito, convém lembrar que Leibnitz tinha, de modo geral, o hábito de explicar as mesmas coisas de maneira diferente conforme a pessoa a quem se endereçava; não seremos nós a censurá-lo por esta maneira de agir, irritante apenas para os espíritos sistemáticos, pois, em princípio, assim ele apenas conformava-se com um preceito iniciático e mais particularmente rosicruciano, segundo o qual deve-se falar a cada um na sua própria linguagem; apenas, às vezes ele aplicava este princípio bastante mal. Com efeito, se é evidentemente possível revestir uma verdade com diferentes expresões, está claro que isto deve ser feito sem deformá-la nem diminuí-la, e deve-se evitar modos de expressão que possam ocasionar concepções falsas; é o que Leibnitz não pode fazer em muitos casos (4). Assim, ele leva a “acomodação” ao ponto de parecer dar razão àqueles que não viam em seu cálculo mais do que um método de aproximação, pois ele chega a apresentá-lo como não sendo outra coisa que uma espécie de resumo do “método de exaustão” dos antigos, próprio a facilitar as descobertas, mas cujos resultados precisam depois ser verificados por este método para dar deles uma demonstração rigorosa; e no entanto é certo que este não era o seu pensamento, e que, na realidade, ele via aí muito mais do que um simples expediente para abreviar os cálculos.

Leibnitz declara frequentemente que as quantidades infinitesimais não passam de “incomparáveis”, mas, quanto ao sentido exato pelo qual se deve entender este termo, ele fornece explicações não apenas pouco satisfatórias, como às vezes deploráveis, que forneceram muitas armas que seus adversários não deixaram de usar; também aí ele não expressou seu verdadeiro pensamento, e temos outro exemplo ainda mais grave do que o anterior, desta “acomodação” excessiva que consiste em substituir perspectivas errôneas por uma expressão “adaptada” da verdade. Com efeito, Leibnitz escreve: “Não é preciso tomarmos aqui o infinito rigorosamente, mas apenas como quando dizemos, na óptica, que os raios do sol provém de um ponto infinitamente afastado e por isto são vistos como paralelos. E quando se trata de muitos graus do infinito, é como quando vemos o globo terrestre como um ponto diante da distância das estrelas fixas, e uma bola que temos na mão como um ponto em comparação ao diâmetro do globo da terra, de modo que a distância das estrelas fixas é como um infinito do infinito em relação ao diâmetro da bola. Pois em lugar do infinito ou do infinitamente pequeno, tomamos quantidades tão grandes ou tão pequenas quanto se queira para que o erro seja menor do que o erro dado, de sorte que não diferimos de Arquimedes senão  nas expressões que são mais diretas em nosso método, e mais conformes com a arte de inventar” (5). Observaram-lhe que, por menor que seja o globo da terra em relação ao firmamento, ou um grão de areia em relação ao globo, eles não deixam de ser quantidades fixas e determinadas, e que, se uma destas quantidades pode ser considerada como praticamente despezível em comparação com outra, isto não passa de uma simples aproximação; ele respondeu que apenas havia tentado “evitar as sutilezas” e “tornar o raciocínio mais acessível a todo o mundo” (6), o que confirma nossa suposição e, ademais, é como se fosse já uma manifestação do espírito “vulgarizador” dos sábios modernos. O que é extraordinário é ter ele escrito em seguida: “Mas aí não há nada que faça pensar que eu entenda considere uma quantidade verdadeiramente muito pequena, mas sempre fixa e determinada”, ao que ele acrescenta: “De resto, eu escrevi há alguns anos a Bernoulli de Groningue que os infinitos e os infinitamente pequenos poderiam ser tomados como ficções, semelhantes às raízes imaginárias (7), sem que isto prejudique nosso cálculo, pois estas ficções são na realidade úteis e bem fundamentadas” (8). Por outro lado, parece que ele jamais percebeu exatamente em que ponto sua comparação era falha, pois ele a repetiu quase nos mesmos termos uma dezena de anos depois (9); mas, como ao menos ele declara expressamente que sua intenção não foi a de apresentar as quantidades infinitesimais como determinadas, devemos concluir que, para ele, o sentido da comparação resumia-se ao seguinte: um grão de areia, embora não sendo infinitamente pequeno, pode entretanto, sem grande inconveniente, ser considerado como tal em relação à terra, e assim não há necessidade de considerar os infinitamente pequenos “a rigor”, e pode-se mesmo entende-los como ficções; mas, seja lá como se os entenda, uma tal comparação só se presta para dar do cálculo infintesimal a idéia, certamente insuficiente aos olhos do próprio Leibnitz, de um simples cálculo de aproximação.

NOTAS

1.      Nova Methodus pro maximis et minimis, itemque tangentibus, quae nec fractas nec irrationales quantitates moratur, et singulare pro  illis calculi genus, nas Acta Eruditorum de Leipzig, 1684.
2.      De Geometria recondita et Analysi indivisibulum atque infinitorum, 1686. – Os trabalhos seguintes referem-se todos à solução de problemas particulares.
3.      Primeiro em sua correpondência, e depois na Historia et origo Calculi differentialis, 1714.
4.      Em linguagem rosacruz, diríamos que isto, tanto quanto e até mais do que o fracasso de seus projetos de “characteristica universalis”, prova que, se ele tinha alguma idéia teórica do “dom das línguas”, ele estava longe de te-lo recebido efetivamente.
5.      Mémoire de M.G.G. Leibnitz  touchant son sentiment sur le Calcul différentiel, no Journal de Trévoux, 1701.
6.      Carta a Varignon, 2 de fevereiro de 1702.
7.      As raízes imaginárias são as raízes dos números negativos; falaremos mais adiante sobre os números negativos e das dificuldades lógicas que eles ocasionam.
8.      Carta a Varignon, 14 de abril de 1702.
9.      Memória citada, nas Acta Eruditorum de Leipzig, 1712.



VI
AS “FICÇÕES BEM FUNDADAS”


O pensamento que Leibnitz expressa de modo mais constante, embora não o afirmando sempre com a mesma força, e até às vezes não querendo pronunciar-se categoricamente a respeito, é o de que, no fundo, as qunatidades infinitas e infinitamente pequenas não passam de ficções; mas, acrescenta ele, trata-se de “ficções bem fundadas”, e, com isto, ele não entende apenas que elas são úteis para o cálculo (1),  ou mesmo para ajudar a “encontrar verdades reais”, embora ele insista igualmente sobre essa utilidade; mas ele repete constantemente que essas ficções estão “fundamentadas na realidade”, que elas possuem “fundamentum in re”, o que implica evidentemente algo além de um valor puramente utilitário; e, em definitivo, este próprio valor deve, para ele, explicar-se pelo fundamento que estas ficções tem na realidade. Em todo caso, ele estima que basta, para que o método seja seguro, considerar, não quantidades infinitas ou infinitamente pequenas no sentido rigoroso destas expressões, uma vez que este sentido não correponde a realidades, mas quantidades tão grandes ou tão pequenas quanto se queira, ou quanto seja necessário para que o erro se torne menor do que não importa qual quantidade dada; ainda seria preciso examinar se é verdade que, como ele declara, este erro é nulo por isso mesmo, ou seja se este modo de encarar o cálculo infinitesimal lhe fornece um fundamento perfeitamente rigoroso, questão à qual voltaremos mais adiante. Seja como for quanto a este último ponto, os enunciados em que figuram quantidades infinitas e infinitamente pequenas entram para ele na categoria das asserções que, diz ele, não passam de “toleranter verae”, que se pode traduzir como “passáveis”, e que precisam ser “redirecionadas” pela explicação que se dá delas, assim como quando consideramos as quantidades negativas como “menores do que zero”, ou nos casos em que a linguagem dos geômetras implica “um certo modo de falar figurado e críptico” (2); este último termo pareceria ser uma alusão ao sentido simbólico e profundo da geometria, mas este é bem diferente daquilo que Leibnitz tinha em vista, e talvez não haja aí, como acontece com ele em outras ocasiões, mais do que a lembrança de algum dado esotérico mais ou menos mal compreendido.

Quanto ao sentido pelo qual deve-se entender que as quantidades infinitesimais são “ficções bem fundadas”, Leibnitz declara que “os infinitos e infinitamente pequenos são fundamentados do mesmo modo como na geometria e na natureza, como se se tratasse de perfeitas realidades” (3); para ele, com efeito, tudo o que existe na natureza implica de certo modo a consideração do infinito, ou ao menos daquilo que ele crê poder chamar assim: “A perfeição da análise dos transcendentes ou da geometria aonde entra a consideração de qualquer infinito, diz ele, seria sem dúvida a mais importante devido à aplicação que se pode fazer dela nas operações da natureza, que faz entrar o infinito em tudo o que ela faz” (4); mas é apenas talvez, porque não podemos ter disto idéias adequadas, e porque entram sempre aí alguns elementos que não podemos perceber distintamente. Se é assim, não devemos entender literalmente afirmações como esta por exemplo: “Sendo nosso método propriamente esta parte da matemática geral que trata do infinito, é isto que o torna tão necessário quando se aplicam as matemáticas à física, porque o caráter do Autor infinito entre normalmente nas operações da natureza” (5). Mas, se o próprio Leibnitz entende por isto apenas que a complexidade das coisas naturais ultrapassa incomparavelmente os limites de nossa percepção distinta, permanece o fato de que as quantidades infinitas e infinitamente pequenas devem ter seu “fundamentum in re”; e este fundamento que se encontra na natureza das coisas, ao menos como ele o concebe, não é outra coisa do que o que ele chama de “lei da continuidade”, que iremos examinar mais adiante, e que ele vê, com ou sem razão, como sendo um caso particular de uma certa “lei de justiça”, que se ligaria à consideração da ordem e da harmonia, e que encontraria sua aplicação todas as vezes em que uma certa simetria devesse ser observada, como acontece por exemplo com as combinações e permutações.

Agora, se as quantidades infinitas e infinitamente pequenas não passam de ficções, e mesmo admitindo que elas sejam realmente “bem fundamentadas”, podemos nos perguntar o seguinte:  porque empregar tais expressões, que, mesmo podendo ser consideradas como “toleranter verae” , nem por isso deixam de ser incorretas? Existe aí alguma coisa que já prenuncia o “convencionalismo” da ciência moderna, ainda que com a notável diferença de que esta já não se preocupa em absoluto se as ficções com as quais ela lida são fundamentadas ou não, ou se, segundo outrta expressão de Leibnitz, elas podem ser interpretadas “sano sensu”, ou mesmo se elas tem qualquer significado. Uma vez que podemos dispensar estas quantidades fictícias, e contentarmo-nos com considerar em seu lugar quantidades que podemos simplesmente tornar tão grandes ou tão pequenas quanto se queira, e que, por esta razão, podem ser chamadas indefinidamente grandes e indefinidamente pequenas, teria sido melhor começar por aí, e evitar assim a introdução de ficções que, qualquer que seja seu “fundamentum in re”, não possuem nenhuma utilização efetiva, não apenas para o cálculo, mas para o próprio método infinitesimal. As expressões “indefinidamente grande” e “indefinidamente pequeno”, ou, o que é equivalente mas mais preciso, “indefinidamente crescente” e “indefinidamente decrescente”, não tem apenas a vantagem de serem as únicas rigorosamente exatas; elas ainda mostram claramente que as quantidades às quais elas se aplicam só podem ser quantidades variáveis e não determinadas. Como dise com razão um matemático, “o infinitamente pequeno não é uma quantidade muito pequena, que tem um valor atual, susceptível de determinação; seu caráter é o de ser eminentemente variável e de podr tomar um valor menor do que todos os que se quiser precisar; seria melhor chamá-lo de indefinidamente pequeno” (6).

O emprego destes termos teria evitado muitas dificuldades e discussões, e isto não é de espantar, pois não se trata apenas de uma questão de palavras, mas da substituição de uma idéia falsa por uma idéia justa, de uma ficção por uma realidade; não se poderia, notadamente, tomar as quantidades infinitesimais por quantidades fixas e determinadas, pois a palavra “indefinido” comporta por si só sempre uma idéia de “devir”, como já dissemos, e por conseguinte de mudança, ou, quando se trata de quantidades, de variação; e, se Leibnitz tivesse se servido dela habitualmente, ele não teria se deixado levar tão facilmente à pobre comparação do grão de areia. Ademais, reduzir “infinite parva ad indefinite parva” teria sido em todo caso mais claro do que reduzi-los “ad incomparabiliter parva”; a precisão teria ganho, sem perda da exatidão. As quantidades infinitesimais são certamente “incomparáveis” em relação às quantidades normais, mas isto poderia ser entendido de outro modo, e o foi efetivamente; teria sido melhor dizer que elas são “inassinaláveis”, segundo outra expressão de Leibnitz, pois este termo só pode ser entendido rigorosamente para quantidades que são susceptíveis de se tornarem tão pequenas quanto se queira, ou seja menores do que qualquer quantidade dada, e às quais, por conseguinte, não se pode “assinalar” nenhum valor determinado, por pequeno que seja, e este é de fato o sentido dos “indefinite parva”. Infelizmente, é quase impossível saber se, no pensamento de Leibnitz, “incomparável” e “inassinalável” são deveras sinônimos; mas, em todo caso, é ao menos certo que uma quantidade propriamente “inassinalável”, em razão da possibilidade de  descréscimo indefinido que ela comporta, é por isso mesmo “incomparável” com qualquer quantidade dada, e mesmo, para estendermos esta idéia às diferentes ordens infinitesimais, com qualquer quantidade em relação à qual ela possa decrescer indefinidamente, enquanto que esta mesma quantidade é considerada como possuindo uma fixidez ao menos relativa.

Se existe um ponto a respeito do qual todos podem colocar-se de acordo, mesmo sem aprofundar as questões de princípio, é que a noção de indefinidamente pequeno, ao menos do ponto de vista puramente matemático, basta perfeitamente à análise infinitesimal, e os próprios “infinitistas” o reconhecem sem dificuldade (7). Podemos então, a respeito, nos ater à definição de Carnot: “O que é uma quantidade chamada de infinitamente pequena em matemática? Nada além de uma quantidade que podemos tornar tão pequena quanto se queira, sem que por isso sejamos obrigados a fazer variar aquelas cuja relação procuramos” (8). Mas, quanto ao significado verdadeiro das quantidades infinitesimais, a questão não se limita a isto: pouco importa, para o cálculo, que os infinitamente pequenos não passem de ficções, pois podemos nos contentar com a consideração dos indefinidamente pequenos, que não levanta qualquer dificuldade lógica; e de resto, a partir do momento em que, pelas razões metafísicas que expusemos de início, não podemos admitir um infinito quantitativo, seja ele em grandeza ou pequenez (9), nem nenhum infinito de ordem relativa e determinada, é certo que estes não podem ser outra coisa do que ficções e nada mais; mas, se estas ficções foram introduzidas, com ou sem razão, na origem do cálculo infinitesimal, é porque, na intenção de Leibnitz, elas deveriam corresponder a alguma coisa, por defeituosa que seja a maneira com que foram expressas. Mas como é de princípios que nos ocupamos aqui, e não de um procedimento de cálculo reduzido de certa forma a si mesmo, o que não tem interesse para nós, devemos então nos perguntar qual é o real valor destas ficções, não apenas do ponto de vista lógico, mas ainda do ponto de vista ontológico, se elas são tão “bem fundamentadas” quanto dizia Leibnitz, e mesmo se podemos dizer que elas são “toleranter verae” e assim aceitá-las como tais, “modo sano sensu intelligantur”; para responder a estas questões, será preciso examinar mais de perto a concepção da “lei da continuidade”, pois é nesta que ele pensava encontrar o “fundamentum in re” dos infinitamente pequenos.

NOTAS

1.      É nesta consideração da utilidade prática que Carnot pensou encontrar uma justificativa suficiente; é evidente que, de Leibnitz até ele, a tendência “pragmatista” da ciência moderna acentuou-se fortemente.
2.      Memória citada, nas Acta Eruditorum de Leipzig, 1712.
3.      Carta citada a Varignon, 2 de fevereiro de 1702.
4.      Carta ao Marquês de l’Hospital, 1693.
5.      Considérations sur la différence qu’il y a entre l’Analyse ordinaire et le nouveau Calcul des transcendantes, no Journal des Sçavans, 1694.
6.      Ch. De Freycinet, De l’Analyse infinitésimale, pgs. 21-22. – O autor acrescenta: “Mas como a primeira denominação (de infinitamente pequeno) prevaleceu na linguagem, preferimos conservá-la”. Este é sem dúvida um escrúpulo excessivo, pois o uso não pode justificar as incorreções e impropriedades de linguagem, e, se não houver reação a abusos do gênero, não será possível sequer inntroduzir nos termos mais precisão e exatidão do queu comporta seu emprego corrente.
7.      Ver L. Couturat, De l’infini Mathématique, pg. 265, Nota: “Podemos constituir logicamente o cálculo infinitesimal apenas sobre a noção de indefinido...” – É verdade que no emprego do termo “logicamente” implica aqui uma reserva, pois, para o autor, ele se opões a “racionalmente”, o que é aliás uma terminologia bastante estranha.
8.      Réflexions sur la Métaphysique du Calcul infinitésimal , pg. 7, Nota; cf. ibid., pg. 20. – O título desta obra é pouco justificável, pois, na realidade, não se acha nela a menor idéia de natureza metafísica.
9.      A célebre concepção dos “dois infinitos” de Pascal é metafisicamente absurda, e ela não passa ainda do resultado da confusão entre o infinito e o indefinido, sendo este tomado nos dois sentidos opostos das grandezas crescentes e decrescentes.



VII
OS “GRAUS DE INFINITUDE”


Ainda não vimos, no que precede, todas as confusões que se introduzem inevitavelmente quando se admite a idéia de infinito em acepções diferentes de seu único e verdadeiro sentido metafísico; encontraremos mais de um exemplo, notadamente, na longa discussão entre Leibnitz e Jean Bernoulli sobre a realidade das quantidades infinitas e infinitamente pequenas, discussão que aliás não chegou a neenhuma conclusão definitiva, e que nem o poderia, dadas as confusões cometidas a cada instante por cada um deles, e dada a falta de princípios de onde elas provinham; de resto, em qualquer ordem de idéias que nos coloquemos, é sempre a falta de princípios que torna as questões insolúveis. Podemos no espantar, entre outras coisas, que Leibnitz tenha feito uma distinção entre “infinito” e “interminado”, e que assim ele não tenha rejeitado absolutamente a idéia, entretanto manifestamente contraditória, de um “infinito terminado”, embora ele chegue a se perguntar “se é possível que exista por exemplo uma linha reta infinita, e entretanto terminada numa ponta e noutra” (1). Sem dúvida, ele recusa-se a admitir esta possibilidade, “tanto mais que me parece, diz ele, que o infinito tomado a rigor deve ter sua fonte no innterminado, sem o que eu não vejo meio de encontrar um fundamento próprio para distingui-lo do finito” (2). Mas, ainda que digamos, com mais ênfase do que ele o faz, que “o infinito tem sua fonte no interminado”, por não ser-lhe absolutamente idêntico, e distinguir-se dele numa certa medida, ainda assim nos arriscamos a sermos detidos em meio a uma quantidade de idéias estranhas e contraditórias. É verdade que Leibnitz declara não aceitar de boa vontade estas idéias, e que para tanto ele teria de ser “obrigado por demonstrações irrefutáveis”; mas já é grave atribuir a isto uma grande importância, e mesmo encarar como algo mais do que simples impossibilidades; no que concerne, por exemplo, à idéia de uma espécie de “eternidade terminada”, que é das que ele anuncia a este propósito, só podemos ver aí o produto de uma confusão entre a noção de eternidade e a de duração, que é absolutamente injustificável do ponto de vista da metafísica. Admitimos facilmente que o tempo no qual transcorre nossa vida corporal seja realmente indefinido, o que não exclui de modo algum que ele seja “terminado de um lado como de outro”, ou seja que ele tenha tanto um começo como um fim, conforme a concepção cíclica tradicional; admitimos também que existem outros modos da duração, como o que os escolásticos chamavam de aevum, cuja indefinidade é, se podemos nos exprimir assim, indefinidamente maior do que a do tempo; mas todos esses modos, em toda sua extensão possível, não passam de indefinidos, porque trata-se sempre de condições particulares de existência, próprias a tal ou tal estado, e nenhum deles, pelo fato mesmo de serem durações, portanto implicando sucessão, pode ser identificado ou assimilado à eternidade, com a qual não têm mais relação do que o finito, sob qualquer modo que seja, tem com o Infinito verdadeiro, pois a concepção de uma eternidade relativa não tem mais sentido do que a de um infinito relativo. Em tudo isso, tudo o que há para se considerar são diferentes ordens do indefinido, como veremos melhor adiante; mas Leibnitz, não tendo feito as distinções necessárias e essenciais, e sobretudo não tendo colocado antes de tudo o único princípio que lhe permitiria não perder-se, acha-se embaraçado para refutar as opiniões de Bernoulli, a ponto de considerá-lo, tão equívocas e hesitantes são suas respostas, menos distante do que está em realidade de suas próprias idéias sobre a “infinidade dos mundos” e os diferentes “graus de infinitude”.

Esta concepção dos pretensos “graus de infinitude” equivale em suma a supor que podem existir dois mundos incomparavelmente maiores e menores do que o nosso, de tal modo que os habitantes de qualquer um destes mundos poderia vê-lo como infinito comtanta razão como fazemos em relação ao nosso; diríamos melhor, com tão pouca razão quanto. Um tal modo de ver as coisas não tem a priori nada de absurdo sem a introdução da idéia de infinito, que não tem nada a ver com isto; cada um destes mundos, por maiores que possamos supô-los, não deixa por isso de ser limitado, e assim como podemos chamá-lo de infinito? A verdade é que nenhum deles pode sê-lo realmente, nem que seja só pelo fato de serem concebidos como múltiplos, pois chegamos aqui à contradição de uma pluralidade de infinitos; e aliás, mesmo se alguns (ou muitos) consideram nosso mundo como tal, esta asserção continua a não fazer sentido.  De resto, podemos nos perguntar se serão mundos diferentes, ou se não serão, simplesmente, partes mais ou menos extensas de um mesmo mundo, pois, por hipótese, eles devem estar todos submetidos às mesmas condições de existência e, notadamente à condição espacial, desenvolvendo-se numa escala simplesmente aumentada ou diminuída. É num sentido completamente diferente que se pode falar, não da infinidade, mas da indefinidade dos mundos, e isso apenas porque, fora das condições de existência, tais como o espaço e o tempo, que são próprias do nosso mundo em toda a extensão que ele comporta, existe uma indefinidade de outros mundos igualmente possíveis; um mundo, ou seja em suma um estado de existência, será definido assim pelo conjunto de condições às quais está submetido; mas, pelo fato mesmo de que ele será sempre condicionado, ou seja determinado e limitado, e que portanto ele não conterá todas as possibilidades, ele jamais poderá ser visto como infinito, mas apenas como indefinido (3).

No fundo, a concepção dos “mundos” no sentido em que os entende Bernoulli, incomparavelmente maiores e menores uns em relação aos outros, não é muito diferente daquela à qual Leibnitz recorre quando ele considera “o firmamento em relação à terra, e a terra em relação ao grão de areia”, e este em relação a “uma parcela de matéria magnética que passa através do vidro”. Apenas, Leibnitz não pretende falar aqui de “gradus infinitatis” no sentido próprio; ele quer inclusive mostrar ao contrário que “não é preciso tomar aqui o infinito a rigor”, e ele se contenta em considerar os “incomparáveis”, aquilo contra quê não se lhe pode objetar nada logicamente. O defeito de sua comparação é de ordem bem diferente, e consiste, como já dissemos, em que ela dá uma idéia muito inexata, até mesmo falsa, das quantidades infinitesimais tal como elas se introduzem no cálculo. Teremos adiante a ocasião de substituir esta consideração pela dos verdadeiros graus múltiplos de indefinitude, tomados tanto na ordem crescente quanto na decrescente; mas não insistiremos mais sobre isto no momento.

Em suma, a diferença entre Bernoulli e Leibnitz, é que, para o primeiro, trata-se verdadeiramente de “graus de infinitude”, embora considerando-os como não mais do que uma conjectura provável, enquanto que o segundo, duvidando de sua probabilidade e mesmo de sua possibilidade, limita-se a substituí-los pelo que se pode chamar de “graus de incomparabilidade”. Fora esta diferença, por sinal muito importante, a concepção de uma série de mundos semelhantes entre si, mas em escalas diferentes, lhes é comum; esta concepção não deixa de ter uma certa relação, ao menos ocasional, com as descobertas devidas ao emprego do microscópio, na mesma época, e com certas visões que elas sugeriam então, mas que não foram de modo algum justificadas por observações ulteriores, como a teoria da “superposição dos germes”: não é verdade que, no germe, o ser vivo esteja atual e corporalmente “pré-formado” em todas as suas partes, e a organização de um célula não tem nenhuma semelhança com a do conjunto do corpo do qual ela é um elemento. Quanto a Bernoulli pelo menos, parece não haver dúvida que esteja aí, de fato, a oroigem de sua concepção; ele diz com efeito, entre outras coisas significativas a respeito, que as partículas de um corpo coexistem no todo “como, segundo Harvey e outros, mas não segundo Leuwenhoeck, existem em um animal inúmeros óvulos, em cada óvulo um animálculo ou muitos, em cada animálculo ainda incontáveis óvulos, e assim ao infinito” (4). Quanto a Leibnitz, ele tem provavelmente um ponto de partida bem diverso: assim, a idéia de que todos os astros que vemos poderiam não ser senão os elementos do corpo de um ser incomparavelmente maior do que nós lembra a concepção do “Grande Homem” da Kaballa, mas singularmente materializada e “espacializada”, por uma espécie de ignorância do verdadeiro valor analógico do simbolismo tradicional; da mesma forma, a idéia do “animal”, ou seja do ser vivo, que subsiste após a morte, mas “reduzido ao mínimo tamanho”, é manifestamente inspirada na concepção da luz ou “semente de imortalidade” da tradição judaica (5), concepção que Leibnitz deforma igualmente colocando-a em relação com a dos mundos incomparavelmente menores do que o nosso, pois, diz ele, “nada impede que os animais ao morrerem se transfiram para tais mundos; eu penso de fato que a morte não passa de uma contração do animal, assim como a geração não é outra coisa que sua evolução” (6), sendo este último termo tomado aqui simplesmente no sentido etimológico de “desenvolvimento”. Tudo isso não passa, no fundo, de um exemplo do perigo que existe em pretender fazer concordar as noções tradicionais com as visões da ciência profana, o que sempre acontece em detrimento das primeiras; sendo elas com certeza totalmente independentes das teorias suscitadas pelas observações microscópicas, Leibnitz, aproximando-as e mesclando-as, agiu então como viriam a fazer mais tarde os ocultistas, que se entregam especialmente a este tipo de aproximações injustificadas. Por outro lado, a superposição dos “incomparáveis” de ordens diferentes parecia-lhe conforme à sua concepção do “melhor dos mundos”, fornecendo-lhe um meio de colocar aí, segundo a definição que ele mesmo dá, “tanto de ser e de realidade quanto possível”; e esta idéia do “melhor dos mundos”, provém também de um outro dado tradicional mal aplicado, emprestado da geometria simbólica dos Pitagóricos, como já explicamos (7): a circunferência é, de todas as linhas de mesmo comprimento, a que abarca a superfície máxima, assim como a esfera é, de todos os corpos de igual superfície, o que contém o volume máximo, e esta é uma das razões pelas quais estas figuras eram vistas como as mais perfeitas; mas, se existe a este respeito um máximo, não existe um mínimo, ou seja figuras que encerrem uma superfície ou um volume menor do que todas as outras, e é por isso que Leibnitz foi levado a pensar que, se existe um “melhor dos mundos”, não existe o “pior dos mundos”, ou seja um mundo que contenha menos ser do que qualquer outro mundo possível. Sabemos de resto que é a esta concepção do “melhor dos mundos”, ao mesmo tempo que à dos “incomparáveis”, que se ligam sua conhecidas comparações do “jardim cheio de plantas” e do “tanque repleto de peixes”, onde “cada ramo da planta, cada membro do animal, cada gota de seus humores é ainda um tal jardim ou um tal tanque” (8); e isso nos conduz naturalmente a abordar uma outra questão conexa, que é a da “divisão da matéria ao infinito”.

NOTAS


1.      Carta a Jean Bernoulli, 18 de novembro de 1698.
2.      Carta citada a Varignon, 2 de fevereiro de 1702.
3.      Ver a respeito Os Estados Múltiplos do Ser.
4.      Carta de 23 de julho de 1698.
5.      Ver Le Roi du Monde, pgs. 87-89.
6.      Carta citada a Jean Bernoulli, 18 de novembro de 1698.
7.      O Simbolismo da Cruz, pg. 58. – Sobre a distinção dos “possíveis” e dos “compossíveis”, de que depende a concepção do “melhor dos mundos”, cf. Os Estados Múltiplos do Ser, cap. II.
8.      Monadologie, 67; cf. ibid., 74.

VIII
“DIVISÃO AO INFINITO” OU DIVISIBILIDADE INDEFINIDA


Para Leibnitz, a matéria não apenas é divisível, mas “subdivisível atualmente sem fim” em todas as suas partes, “cada parte em partes, de que cada uma possui algum movimento próprio” (1); e é sobretudo nesta visão que ele apóia teoricamente a concepção que expusemos em último lugar: “Segue-se da divisão atual que, em uma parte da matéria, por pequena que seja, existe como que um mundo constituído de criaturas inumeráveis” (2). Bernoulli admite igualmente esta divisão atual da matéria “in partes numero infinitas”, mas ele tira disto conclusões que Leibnitz não aceita: “Se um corpo finito, diz ele, tem partes infinitas em número, eu sempre acreditei e acredito mesmo que a menor destas partes deve ter para com o todo uma relação inassinalável ou infinitamente pequena” (3); ao que Leibnitz responde: “Mesmo se concordarmos que não há nenhuma porção da matéria que não seja atualmente divisível, não chegaremos entretanto a elementos indissecáveis, ou a partes menores do que todas ou infinitamente pequenas, mas apenas a partes cada vez menores, que são no entanto quantidades ordinárias, assim como, em aumentando, chegaremos a quantidades cada vez maiores” (4). É portanto a existência das “minimae portione” ou dos “últimos elementos”, que Leibnitz contesta; ao contrário, para Bernoulli, parece claro que a divisãoa tual implica a existência simultânea de todos os elementos, assim como, dada uma série “infinita”, todos os termos que a constituem devem estar dados simultaneamente, o que implica a existência do “terminus infinitesimus”. Mas, para Leibnitz, a existência deste termo não é menos contraditória que a do “número infinito”, e a noção do menor dos números, ou da “fractio omnium infima” não o é menos do que a do maior dos números; o que ele considera como “infinitude” de uma série caracteriza-se pela impossibilidade de chegar a um último termo, e da mesma forma a matéria não seria divisível “ao infinito”, se esta divisão pudesse terminar e chegar aos “últimos elementos”; e isto não é devido apenas ao fato de que não dispomos de meios para chegar de fato a estes últimos elementos, como o concede Bernoulli, mas porque eles não devem realmente existir na natureza. Não existem elementos corporais indissecáveis, ou “átomos” no sentido próprio da palavra, tanto quanto não há, na ordem numérica, fração indivisível que não possa dar nascimento a frações sempre menores, ou, na ordem geométrica, elemento linear que não possa ser dividido em elementos menores.

No fundo, o sentido no qual Leibnitz toma o termo “infinito” em tudo isso é exatamente o mesmo que quando ele fala, como vimos, de um “multitude infinita”: para ele, dizer de uma série numérica qualquer, assim como da série dos números inteiros, que ela é infinita, corresponde a dizer, não que ela deva chegar a um “terminus infinitesimus” ou a um “número infinito”, mas ao contrário que ela não deve possuir termo último, porque os termos que ela compreende são “plus quam numero designari possint”, ou seja constituem uma multitude que ultrapassa todo número. Da mesma forma, se podemos dizer que a matéria é divisível o infinito, é porque qualquer uma de suas partes, por pequena que seja, abarca sempre uma tal multitude; em outros termos, a matéria não tem “partes infimae” ou elementos simples, ela é essencialmente um composto”: “É verdade que as substâncias simples, ou seja as que não são seres por agregação, são verdadeiramente indivisíveis, mas elas são imateriais, e não passam de princípios de ação” (5). É neste sentido de uma multitude inumerável, que é aliás o mais habitual em Leibnotz, que a idéia do suposto infinito pode aplicar-se à matéria, à extensão geométrica, e em geral ao contínuo, visto sob a perspectiva de sua composição; de resto, este sentido não é próprio exclusivamente ao “infinitum continuum”, e ele estende-se também ao “infinitum discretum”, como vimos pelo exemplo da multitude de todos os números e pelo das “séries infinitas”. É por isso que Leibnitz podia dizer que uma grandeza é infinita naquilo que ela tem de “inesgotável”, o que faz “com que se possa sempre tomar uma grandeza tão pequena quanto se queira”; e “permanece verdadeiro que 2 é a mesma coisa que 1/1+1/2+1/4+1/8+1/16+1/32+...etc., o que é uma série infinita, na qual todas as frações cujos numeradores são 1 e os denominadores de progressão geométrica dupla estão compreendidos simultaneamente, ainda que se empreguem sempre números ordinários, e que não se introduza nenhuma fração infinitamente pequena, ou cujo denominador seja um número infinito” (6). Ademais, isto permite compreender como Leibnitz, mesmo afirmando que o infinito, no sentido em que ele o entende, não é um todo, pode entretanto aplicar esta idéia ao contínuo: um conjunto contínuo, como um corpo qualquer, constitui realmente um todo, e mesmo o que denominamos mais acima um todo verdadeiro, logicamente anterior às suas partes e independente destas, mas ele permanece sempre finito enquanto tal; não portanto é sob este aspecto do todo que Leibnitz pode chamá-lo infinito, mas apenas sob o aspecto das partes nas quais ele é ou pode ser dividido, e na medida em que a multitude destas partes sobrepassa efetivamente todo número assinalável: é o que podemos denominar uma concepção analítica do infinito, devido ao fato de que que, de fato, é apenas analiticamente que a multitude em questão é inesgotável, como explicaremos adiante.

Se agora nos perguntarmos sobre o valor da idéia da “divisão ao infinito”, é preciso reconhecer que, assim como a da “multitude infinita”, ela contém uma certa parte de verdade, ainda que o modo como ela está expressa esteja longe de estar isenta de crítica: em primeiro lugar, é claro que, segundo o que expusemos até aqui, não pode tratar-se de divisão ao infinito, mas apenas de divisão indefinida; por outro lado, é preciso aplicar esta idéia, não à matéria em geral, o que talvez não faça sentido, mas apenas aos corpos, ou à matéria corporal se se quiser falar de “matéria”, apesar da extrema obscuridade desta noção e dos múltiplos equívocos que ela origina (7). Com efeito, é à extensão que pertence propriamente a divisibilidade, e não à matéria, seja qual for a acepção em que a tomemos, e não podemos confundí-las sem adotar a concepção cartesiana que faz consistir a natureza dos corpos única e essencialmente na extensão, concepção que Leibnitz tampouco admitia; assim, se todo corpo é divisível, é porque os corpos são extensos, e não porque eles são materiais. Ora, lembremo-nos ainda, sendo a extensão algo determinado, ela não pode ser infinita, e, a partir daí, ela não pode evidentemente implicar nenhuma possibilidade que seja infinita, assim como ela própria não o é; mas, como a divisibilidade é uma qualidade inerente à natureza da extensão, sua limitação só pode advir desta mesma natureza: na medida em que exista uma extensão, ela será sempre divisível, e assim podemos considerar a divisibilidade como realmente indefinida, e esta indefinitude será aliás condicionada pela indefinitude da extensão. Por conseguinte, a extensão, como tal, não pode ser composta de elementos indivisíveis, pois estes elementos, para serem verdadeiramente indivisíveis, teriam que ser inextensos, e uma soma de elementos inextensos não pode jamais constituir uma extensão, assim como uma soma de zeros não pode constituir um número; é por isso que, como explicamos (8), os pontos não são elementos ou partes da linha, e os verdadeiros elementos lineares são sempre as distâncias entre pontos, os quais são apenas suas extremidades. De resto, é assim que o próprio Leibnitz encarava as coisas a esse respeito,  e aquilo que criava, segundo ele, a diferença fundamental entre seu método infinitesimal e o “método dos indivisíveis” de Cavalieri, era o fato dele não considerar uma linha como composta de pontos, nem uma superfície como composta de linhas, nem um volume como composto de superfícies: pontos, linhas e superfícies não são aqui senão limites ou estremidades, nunca elementos constitutivos. É evidente de fato que pontos, multiplicados por qualquer quantidade que seja, não podem jamais produzir um comprimento, pois eles são rigorosamente nulos sob o aspecto do comprimento; os verdadeiros elementos de uma grandeza devem ser sempre da mesma natureza desta grandeza, ainda que incomparavelmente menores: é o que não aconntece com os “indivisíveis”, e, por outro lado, é o que permite observar no cálculo infinitesimal uma certa lei de homogeneidade que supõe que as quantidades ordinárias e as quantidades infinitesimais das diversas ordens, ainda que incomparáveis entre si, sejam entretanto grandezas de mesma espécie.

Podemos dizer ainda, deste ponto de vista, que a parte deve sempre, qualquer que seja ela, conservar uma certa “homogeneidade” ou conformidade de natureza com o todo, ao menos na medida em que considerarmos este todo como passível de ser reconstituído por meio  de suas partes através de um procedimento comparável ao que serve para a formação de uma soma aritmética. Isto não quer dizer que não haja nada de simples na realidade, pois o composto pode ser formado, a partir de elementos, de modo bem diferente; mas então, a bem dizer, estes elementos não são mais propriamente “partes”, e, como o reconhecia Leibnitz, eles não podem ser de ordem corporal. O que é certo, com efeito, é que não podemos chegar a elementos simples, vale dizer indivisíveis, sem sair desta condição particular que é a extensão, de sorte que esta não pode ser resumida a tais elementos sem deixar de existir enquanto extensão. Resulta daí imediatamente que não podem existir elementos corporais indissecáveis, e que esta noção implica contradição; de fato, tais elementos deveriam ser inextensos, e então eles não seriam mais corporais, pois, por definição, quem diz corporal diz forçosamente extensão, embora não seja esta toda a natureza dos corpos; e assim, malgrado todas as reservas que fizemos sob outros aspectos, Leibnitz teve toda razão contra o atomismo.

Mas, até aqui, nós só falamos de divisibilidade, ou seja, da possibilidade de divisão; será preciso ir mais longe e admitir com Leibnitz uma “divisão atual”? Esta idéia tampouco está isenta de contradição, pois ela equivale a supor um indefinido inteiramente realizado, e, com isto, ela é contrária à própria natureza do indefinido, que é de ser sempre, como dissemos, uma possibilidade em vias de desenvolvimento, implicando assim essencialmente qualquer coisa de inacabado, de ainda não totalmente realizado. Não existe aliás verdadeiramente nenhuma razão para fazer tal suposição, pois, quando estamos em presença de um conjunto contínuo, é o todo que nos é dado, mas as partes em que ele pode ser dividido não nos são dadas, e apenas concebemos que ser possível dividir este todo em partes que poderão ser tornadas cada vez menores, de modo a se tornarem menores do que qualquer grandeza dada, desde que a divisão seja levada longe o bastante; de fato, somos nós que realizamos as partes na medida em que efetuamos a divisão. Assim, o que nos dispensa de supor a “divisão atual”, é a divisão que estabelecemos precedentemente a respeito dos diferentes modos como um todo pode ser visto: um conjunto contínuo não é o resultado das partes em que ele pode ser dividido, mas é na verdade independente delas, e, por conseguinte, o fato dele nos ser dado como todo não implica absolutamente a existência atual destas partes.

Da mesma forma, de outro ponto de vista, e passando à consideração do descontínuo, podemos dizer que, se uma série indefinida nos é dada, isto não implica de modo algum que todos os termos que ela contém nos sejam dados distintamente, o que é uma impossibiliade pelo fato mesmo dela ser indefinida; na realidade, dar uma série tal, é simplesmente dar a lei que permite calcular o termo que ocupa um lugar determinado na série (9). Se Leibnitz houvesse dado esta resposta a Bernoulli, sua discussão sobre a existência do “terminus infinitesimus” teria cessado imediatamente; mas ele não poderia responder assim sem renunciar logicamente à sua idéia da “divisão atual”, a menos de negar toda relação entre o modo contínuo da quantidade e seu modo descontínuo.

Seja como for, ao menos no que tange ao contínuo, é precisamente na “indistinção” das partes que podemos ver a raiz da idéia de infinito tal como a compreedia Leibnitz, pois, como dissemos, esta idéia comporta sempre para ele uma certa parte de confusão; mas esta “indistinção”, longe de supor uma divisão realizada, tenderia ao contrário a excluí-la, mesmo na falta das razões decisivas que indicamos. Portanto, se a teoria de Leibnitz é justa na medida em que se opõe ao atomismo, é preciso, para que ela corresponda à verdade, retificá-la substituindo a “divisão da matéria ao infinito” pela “divisibilidade indefinida da extensão”; está aí, em sua expressão mais sucinta e mais precisa, o resultado a que chegam definitivamente todas as considerações que expusemos.


NOTAS

1.      Monadologie, 65.
2.      Carta a Jean Bernoulli, 12-22 de julho de 1698.
3.      Carta citada de 23 de julho de 1698.
4.      Carta de 29 de julho de 1698.
5.      Carta a Varignon, 20 de junho de 1702.
6.      Carta citada a Varignon, 2 de fevereiro de 1702.
7.      A este respeito, ver Le Règne d la Quantité et les Signes des Temps.
8.      O Simbolismo da Cruz, cap. XVI.
9.      Cf. L. Couturat, De l’infini mathématique, pg. 467: “A série natural dos números é dada inteiramente pela lei de sua formação, assim como, aliás, todas as demais seqüências e séries infinitas, que uma fórmula de recorrência basta, em geral, para definir inteiramente, de tal modo que seu limite ou sua soma (quando existe) acha-se por isso completamente determinada... É graças à lei de formação da série natural que temos a idéia de todos os números inteiros, e neste sentido eles estão todos dados por esta lei”. – Podemos dizer de fato que a fórmula geral que exprime o enésimo termo de uma série contém potencial e implicitamente, mas não atual e distintamente, todos os termos desta série, pois podemos chegar a qualquer um dentre eles dando a n o valor correpoondente ao lugar que este termo deve ocupar na série; mas, contrariamente ao que pensava Couturat, não era isso que Leibnitz queria dizer, quando ele sustentava a “infinitude atual da série natural dos números”.



IX
INDEFINIDAMENTE CRESCENTE E INDEFINIDAMENTE DECRESCENTE


Antes de continuarmos o exame das questões que se relacionam com o contínuo, devemos voltar sobre o que dissemos mais acima a respeito da inexistência de uma “fractio omnis infima”, o que nos permitirá ver como a correlação ou a simetria que existe sob certos aspectos entre as quantidades indefinidamente crescentes e as quantidades indefinidamente decrescentes é susceptível de ser representada numericamente. Vimos que, no domínio da quantidade descontínua, na medida em que só considerarmos a série dos números inteiros, estes devem ser vistos como crescendo indefinidamente a partir da unidade, sendo que, como esta é essencialmente indivisível, não pode evidentemente existir um decréscimo indefinido; se tomamos os números no sentido decrescente, achamo-nos necessariamente detidos na unidade, de sorte que a representação do indefinido por números inteiros fica limitado a um só sentido, que é o do indefinidamente crescente. Ao contrário, quando se trata da quantidade contínua, podemos considerar tanto as quantidades indefinidamente decrescentes quanto as indefinidamente crescentes; e a mesma coisa aconntece com a quantidade descontínua, desde que, para tarduzirmos esta possibilidade, introduzamos a consideração dos números fracionários. Com efeito, podemos considerar uma série de frações decrescendo indefinidamente, na medida em que, por pequena que seja uma fração, sempre se pode formar uma menor, e este decrescer não pode jamais chegar a uma “fractio minima”, assim como o crescimento dos números inteiros não pode chegar a um “numerus maximus”.

Para tornarmos evidente, pela representação numérica, a correlação entre o indefinidamente crescente e o indefinidamente decrescente, basta considerar, ao mesmo que a série dos números inteiros, a série dos seus inversos: um número é chamado de inverso de um outro quando seu produto é igual à unidade, e, por esta razão, o inverso do número n é representado pela notação 1/n. Enquanto que a série dos números inteiros cresce indefinidamente a partir da unidade, a série de seus inversos vai decrescendo indefinidamente a partir desta mesma unidade, que é ela mesma seu próprio inverso, e assim é o ponto de partida das duas séries; a cada número de uma das séries corresponde um número da outra e inversamente, de maneira que estas duas séries são igualmente indefinidas, e o são exatamente do mesmo modo, embora em sentido contrário. O inverso de um número é evidentemente tão pequeno quanto grande for o número, pois seu produto deve permanecer constante; por grande que seja o número N, o número N+1 será ainda maior, em virtude da própria lei de formação da série indefinida dos números inteiros, e da mesma forma, por menor que seja um número 1/N, o número 1/(N+1) será ainda menor; é o que prova claramente a impossibilidade do “menor dos números”, cuja noção não é menos contraditória do que a do “maior dos números”, pois, se não é possível deter-se em um número determinado no sentido crescente, tampouco o será no sentido decrescente. De resto, como esta correlação que se observa no descontínuo numérico apresenta-se antes de tudo como uma conseqüência da aplicação deste descontínuo ao contínuo, como dissemos a respeito dos números fracionários cuja introdução ela pressupõe, ela não pode senão traduzir à sua maneira, condicionada necessariamente pela natureza do número, a correlação que existe dentro do próprio contínuo entre o indefinidamente crescente e o indefinidamente decrescente. Cabe assim, desde que consideramos as quantidades contínuas como susceptíveis de se tornarem tão grandes ou tão pequenas quanto se queira, vale dizer maiores ou menores do que qualquer quantidade determinada, observar sempre a simetria, e, poderíamos dizer, o paralelismo que oferecem entre si as duas variações inversas; esta observação nos ajudará a compreender melhor, a seguir, a possibilidade de diferentes ordens de quantidades infinitesimais.

Convém lembrar que, embora o símbolo 1/n evoque a idéia de números fracionários, e é daí realmente que ele se origina, não é necessário que os inversos dos números inteiros sejam aqui definidos como tais, e isto para evitar o inconveniente apresentado pela noção corriqueira de número fracionário do ponto de vista aritmético, ou seja a concepção de frações como “partes da unidade”. Basta considerar as duas séries como sendo constituídas por números respectivamente maiores e menores do que a unidade, vale dizer como duas ordens de grandeza que tem nela seu limite comum, ao mesmo tempo em que se pode vê-las ambas como igualmente saídas desta unidade, que é verdadeiramente a origem primeira de todos os números; ademais, se quisermos considerar estes dois conjuntos indefinidos como formando uma série única, podemos dizer que a unidade ocupa exatamente o meio desta série de números, pois, como vimos, existem tantos números num conjunto como no outro. Por outro lado, se quisermos, para generalizar mais, introduzir os números fracionários propriamente ditos, em lugar de considerarmos apenas a série dos números inteiros e a de seus inversos, nada mudaria quanto à simetria das quantidades crescentes e decrescentes: teríamos de um lado todos os números maiores do que a unidade, e de outro os menores do que a unidade; aqui ainda, a todo número a/b>1, corresponderá no outro grupo um número b/a<1, e reciprocamente, de tal modo que a/b x b/a=1, assim como tínhamos que n x 1/n=1, e deste modo teremos sempre exatamente tantos números em um como em outro dos dois grupos separados pela unidade; é claro que, quando dizemos “tantos números”, isto significa que existem duas multitudes correspndendo-se termo a termo, mas sem que estas multitudes possam por isso ser consideradas como “numeráveis”. Em todos os casos, o conjunto formado por dois números inversos multiplicando-se um pelo outro, reproduz sempre a unidade de que eles saíram; podemos ainda dizer que a unidade, que ocupa o meio dos dois grupos e é o único número que pode ser visto como pertencente tanto a um como a outro grupo (1) – embora se possa dizer melhor que ela os une, mais do que os separa –, corresponde ao estado de equilíbrio perfeito, e que ela contém em si todos os números, que saem dela por pares de números inversos ou complementares, sendo que cada um destes pares constitui, devido a este complementarismo, uma unidade relativa em sua indivisível dualidade (2); mas voltaremos adiante sobre esta última consideração e sobre as conseqüências que ela implica.

Ao invés de dizer que a série dos números inteiros é indefinidamente crescente e a de seus inversos indefinidamente decrescente, podemos dizer também, no mesmo sentido, que os números tendem assim de um lado para o indefinidamente grande e de outro para o indefinidamente pequeno, com a condição de entender por isto os próprios limites do domínio dentro do qual consideramos esses números, pois uma quantidade variável só pode tender para um limite. O domínio de que se trata é, em suma, o da quantidade numérica vista em toda a extensão de que é susceptível (3); isto eqüivale ainda a dizer que os limites não são determinados por tal ou tal número particular, por grande ou pequeno que o suponhamos, mas pela própria natureza do número enquanto tal. É pelo fato mesmo de que o número, como qualquer outra coisa de natureza determinada, exclui tudo o que não é ele, que não se pode falar aí de infinito; de resto, dissemos que o indefinidamente grande deve forçosamente entendido como um limite, embora ele não seja nunca um “terminus ultimus” da série dos números, e podemos observar a propósito que a expressão “tender ao infinito”, empregada com freqüência pelos matemáticos no sentido de “crescer indefinidamente”, é ainda um absurdo, pois o infinito implica a ausência de quaisquer limites, e por conseguinte não há nada lá para onde seja possível tender. O que é singular também, é que alguns, mesmo reconhecendo a incorreção e o caráter abusivo desta expressão “tender ao infinito”, não tem nenhum escrúpulo em usar a expressão “tender a zero” no sentido de “decrescer indefinidamente”; entretanto, o zero, ou a “quantidade nula”, é exatamente simétrico, em relação às quantidades decrescentes, daquilo que é a pretensa “quantidade infinita” em relação às quantidades crescentes; mas voltaremos adiante sobre as questões que se colocam mais especificamente a respeito do zero e de seus diferentes significados.

Uma vez que a série dos números, em seu conjunto, não é “terminada”  por nenhum número dado, resulta que não há número, por maior que seja, que possa ser identificado ao indefinidamente grande no sentido como o entendemos; e, naturalmente, a mesma coisa vale no que diz respeito ao indeinidamente pequeno. Podemos quando muito considerar um número como praticamente indefinido, se podemos nos exprimir assim, quando ele não pode mais ser expresso pela linguagem nem representado pela escrita, o que, de fato, acontece inevitavelmente em algum momento quando tomamos números que vão sempre crescendo ou decrescendo; existe aí, se se quiser, uma simples questão de “perspectiva”, mas isto está de acordo com o caráter do indefinido, na medida em que este não é outra coisa, em dfinitivo, do que aquilo cujos limites podem ser, não suprimidos, o que seria contra a natureza das coisas, mas recuados até se perderem inteiramente de vista. A este propósito, caberiam algumas questões curiosas: assim, podemos nos perguntar porque a língua chinesa representa simbolicamente o indefinido pelo número dez mil; a expressão ‘os dez mil seres”, por exemplo, significa todos os seres, que são realmente em multitude indefinida ou “inumerável”. O que digno de nota, é que a mesma coisa acontece em grego, onde uma mesma palavra, com uma diferença de acentuação que não passa de um detalhe acessório (devida sem dúvida à necessidade de distinguir o uso das duas expressões), serve igualmente para exprimir uma e outra das duas idéias: murioi (múrioi), dez mil; murioi (muríoi), uma indefinidade. A verdadeira razão disto é a seguinte: o número dez mil é a quarta potência de dez; ora, segundo a fórmula do Tao Te King, “o um produziu o dois, o dois produziu o três, o três produziu todos os números”, o que implica que o quatro, produzido imediatamente pelo três, eqüivale de certo modo a todo o conjunto dos números, e isto ainda porque, quando se produz o quaternário, produz-se também, pela adição dos quatro primeiros números, o denário, que representa um ciclo numérico completo: 1+2+3+4=10, que é, como já vimos, a fórmula numérica da Tetraktys pitagórica. Podemos ainda acrescentar que esta representação da indefinidade numérica tem seu correspondente na ordem espacial: sabemos que a elevação a uma potência superior de um grau representa, nesta ordem, a adjunção de uma dimensão; ora, como nossa extensão não possui senão três dimensões, seus limites são ultrapassados quando se vai além da terceira potência, o que, em outros termos, eqüivale a dizer que a elevação à quarta potência marca o próprio termo de sua indefinidade, pois, uma vez que ela se efetue, teremos por isso mesmo saído desta extensão e passado a uma outra ordem de possibilidades.

NOTAS

1.      Segundo a definição dos números inversos, a unidade se apresenta de um lado sob a forma 1, e de outro sob a forma 1/1, de tal maneira que o produto 1 x 1/1= 1; mas, como 1/1=1, é a mesma unidade que é assim representada sob duas formas diferentes, e consequentemente, como dissemos, ela é assim seu próprio inverso.
2.      Dizemos indivisível porque, a partir do instante em que um dos números que formam o par existe, o outro existe necessariamente também por isso mesmo.
3.      Não é preciso dizer que os números incomensuráveis, sob o aspecto da grandeza, intercalam-se necessariamente entre os números comuns, inteiros ou fracionários, conforme sejam maiores ou menores do que a unidade; é o que aliás mostra a correspondência geométrica que indicamos precedentemente, e também a possibilidade de definir um tal número por dois conjuntos convergentes de números comensuráveis dos quais ele é o limite comum.


X
INFINITO E CONTÍNUO


A idéia de infinito tal como a entende Leibnitz, e que no mais das vezes é, simplesmente, a de uma multitude que ultrapassa qualquer número, apresenta-se às vezes sob o aspecto de um “infinto descontínuo”, como no caso da série numéricas chamadas de infinitas; mas seu aspecto mais usual, e também o mais importante no que concerne ao significado do cálculo infinitesimal, é o de um “infinito contínuo”. Convém lembrar a propósito que, quando Leibnitz iniciou as pesquisas que o levariam, segundo suas palavras, à descoberta de seu método, ele operava sobre séries de números. E não tinha que considerar senão diferenças finitas no sentido comum do termo; as diferenças infinitesimais só se apresentaram a ele quando se tratou de aplicar o descontínuo numérico ao contínuo espacial. A introdução dos diferenciais justificava-se então pela observação de uma certa analogia entre as variações respectivas destes dois modos da quantidade; mas seu caráter infinitesimal provinha da continuidade das grandezas às quais eles deveriam aplicar-se, e assim a consideração dos “infinitamente pequenos” achava-se, para Leibnitz, estreitamente ligada à questão da “composição do contínuo”.

Os “infinitamente pequenos”, tomados “com rigor” seriam, como pensava Bernoulli, “partes minimae” do contínuo; mas precisamente o contínuo, na medida em que existe como tal, é sempre divisível, e, por conseguinte, ele não poderia ter “partes minimae”. Os “indivisíveis” não são sequer partes daquilo em relação a que eles são indivisíveis, e o “minimum” só pode aqui ser concebido como limite ou extremidade, não como elemento: “A linha não é apenas menor do que qualquer superfície, diz Leibnitz, mas ela não é sequer uma parte da superfície, mas apenas um mínimo ou uma extremidade” (1); e a assimilação entre extremum e minimum pode aqui justificar-se, de seu ponto de vista, pela “lei da continuidade”, na medida em que esta permite, segundo ele, a “passagem ao limite”, como veremos adiante. O mesmo ocorre, como vimos, para o ponto em relação à linha, e, de outro lado, para a superfície em relação ao volume; mas, ao contrário, os elementos infinitesimais devem ser partes do contínuo, sem o que eles não seriam sequer quantidades; e eles só podem se-lo com a condição de não serem “infinitamente pequenos” verdadeiramente, pois estes não seriam outra coisa do que essas “partes minimae” ou esses “últimos elementos”, cuja existência, em relação ao contínuo, implica contradição. Assim, a composição do contínuo não permite que os infinitamente pequenos sejam mais do que simples ficções; mas, por outro lado, é a própria existência deste contínuo que faz com que sejam, pelo menos para Leibnitz, “ficções bem fundamemntadas”; se “tudo se passa na geometria como se fosem perfeitas realidades”, é porque a extensão, que é o objeto da geometria, é contínua; e, se o mesmo ocorre na natureza, é porque os corpos são igualmente contínuos, e porque existe assim continuidade em todos os fenômenos tais como o movimento, que tem nestes corpos sua base, sendo eles o objeto da mecânica e da física. De resto, se os corpos são contínuos, é porque eles são extensos, e participam assim da natureza da extensão; e, da mesma foroma, a continuidade do movimento e dos diversos fenômenos que podem ligar-se a ele mais ou menos diretamente provém essencialmente de seu caráter espacial. É portanto, em suma, a continuidade da extensão que é o verdadeiro fundamento de todas as outras continuidades que se observam na natureza corporal; e é aliás por isso que, introduzindo a respeito uma distinção essencial que Leibnitz não fez, nós frisamos que não é à matéria, mas à extensão, que deve realmente ser atribuída a propriedade da “divisibilidade indefinida”.

Não vamos examinar aqui a questão das outras formas possíveis da continuidade, independentes de sua forma espacial; com efeito, é sempre a esta que se deve voltar quando se consideram grandezas, e assim sua consideração basta para tudo o que se refere às quantidades infinitesimais. Devemos entretanto acrescentar a continuidade do tempo, pois, contrariamente à estranha opinião de Descartes a respeito, o tempo é realmente contínuo em si mesmo, e não apenas na representação espacial pelo movimento que serve à sua mensuração (2). A este respeito, podemos dizer que o movimento é duplamente contínuo, pois ele o é pela sua condição espacial e pela sua condição temporal; e esta espécie de combinação do tempo e do espaço, de que resulta o movimento, não seria possível se um fosse descontínuo e o outro contínuo. Esta consideração permite ademais introduzir a continuidade em certas categorias de fenômenos naturais que se referem mais diretamente ao tempo e ao espaço, embora cumprindo-se em ambos igualmente, como, por exemplo, o processo de um desenvolvimento orgânico qualquer. Pode-se aliás, pela composição do contínuo temporal, repetir tudo o que dissemos do contínuo espacial, e, em virtude desta espécie de simetria que existe sob certos aspectos entre o espaço e o tempo, chegar a conclusões estritamente análogas: os instantes, concebidos como indivisíveis, não são mais partes da duração do que os pontos são partes da extensão, como o próprio Leibnitz reconhecia, e esta era aliás uma tese corrente entre os escolásticos; em suma, é uma característica geral de todo contínuo, que sua natureza não comporta a existência de “últimos elementos”.

Tudo o que dissemos até aqui mostra suficientemente em que sentido podemos compreender que, do ponto de vista em que se coloca Leibnitz, o contínuo abarca necessariamente o infinito; mas, bem entendido, não podemos admitir que se trata aí de uma “infinidade atual”, como se todas as partes possíveis devessem ter sido dadas efetivamente quando o todo foi dado, nem mesmo de uma verdadeira infinidade, que é excluída por toda e qualquer determinação, e que por conseguinte não pode estar implicada na consideração de nenhuma coisa particular. Assim, aqui como em todos os casos em que se apresenta a idéia de um pretenso infinito, diferente do verdadeiro Infinito metafísico, e que portanto, em si mesmos, não passam de absurdos puros e simples, toda contradição desaparece, e com ela toda dificuldade lógica, se substituímos o suposto infinito pelo indefinido, e se dissermos simplesmente que todo contínuo encerra uma certa indefinidade quando visto sob o aspecto de seus elementos. É ainda por falta de fazer esta distinção fundamental entre o Infinito e o indefinido que alguns acharam que não seria possível escapar à contradição de um infinito determinado a não ser rejeitando absolutamente o contínuo e substituindo-o pelo descontínuo; é assim notadamente que Renouvier, que nega com razão o infinito matemático, mas a quem a idéia de Infinito metafísico é totalmente estranha, achou-se obrigado, pela lógica de seu “finitismo”, a admitir o atomismo, caindo assim em outra concepção tão contraditória quanto a que ele quis descartar.

NOTAS

1.      Meditatio nova de natura anguli contactus et osculi, horumque usu in practica Mathesi ad figuras faciliores succedaneas difficilioribus substituendas, nas Acta Eruditorum de Leipzig, 1686.
2.      Cf. Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps, cap. V.



XI
A “LEI DA CONTINUIDADE”


Uma vez que o contínuo existe, podemos dizer com Leibnitz que existe continuidade na natureza, ou, se se preferir, que deve haver uma certa “lei de continuidade” que se aplica a tudo o que apresenta as características do contínuo; isto é bastante evidente, mas não resulta daí absolutamente que uma tal lei deva ser aplicável a tudo como ele o quer, pois, se o contínuo existe, também existe o descontínuo, e isto mesmo dentro do domínio da quantidade (1): o número, com efeito, é essencialmente descontínuo, e é mesmo esta quantidade descontínua, e não a quantidade contínua, que é realmente, como já dissemos, o modo primeiro e fundamental da quantidade, ou daquilo que podemos chamar propriamente a quantidade pura (2). Por outro lado, nada permite supor a priori que, fora da quantidade, uma continuidade qualquer posa ser considerada em toda parte, e mesmo, a bem dizer, seria espantoso que apenas o número, dentre todas as coisas possíveis, tivesse a propriedade de ser essencialmente descontínuo; mas nossa intenção não é a de buscar aqui em quais limites uma “lei de continuidade” pode ser aplicada, e quais as restrições a colocar para aquilo que ultrapassa o domínio da quantidade entendida em seu sentido mais geral. Vamos nos limitar a fornecer, no que concerne aos fenômenos naturais, um exemplo bastante simples de descontinuidade: se é preciso uma dada força para romper uma corda, e se aplicarmos a esta corda uma força de intensidade menor do que aquela, não obteremos por isso uma ruptura parcial, ou seja a ruptura de uma parte dos fios que compõem a corda, mas apenas uma tensão, o que é bem diferente; se aumentarmos a força de modo contínuo, a tensão crescerá inicialmente também de modo contínuo, mas chegará um momento em que a ruptura irá produzir-se, e teremos então, de modo súbito e de certo modo instantâneo, um efeito de natureza totalmente diversa do precedente, o que implica manifestamente uma descontinuidade; e assim não é certo dizer, em termos gerais e sem nenhuma restrição, que “natura non facit saltus”.

Seja como for, basta em todo caso que as grandezas geométricas sejam contínuas, como o são de fato, para que se possa sempre tomar elementos tão pequenos quanto se queira, e que podem tornar-se menores do que qualquer grandeza assinalável; e como dizia Leibnitz, “é sem dúvida nisto que consiste a demonstração rigorosa do cálculo infinitesimal”, que se aplica precisamente a essas grandezas geométricas. A “lei da continuidade” pode assim ser o “fundamentum in re” dessas ficções que são as quantidades infinitesimais, assim como destas outras ficções que são as raízes imaginárias, pois Leibnitz faz uma aproximação entre as duas coisas sob este aspecto, sem que se deva por isso ver aí, como  talvez ele pretendesse, “a pedra de toque de toda a verdade” (3). Por outro lado, se admitimos uma “lei de continuidade”, mesma fazendo algumas restrições sobre seu alcance, e mesmo se reconhecemos que esta lei pode servir para justificar as bases do cálculo infinitesimal, “modo sano sensu intelligantur”, não se segue daí que devemos concebe-la exatamente como o fazia Leibnitz, nem aceitar todas as conseqüências que ele pretendia tirar dela; é esta concepção e suas conseqüências que precisamos agora examinar mais de perto.

Sob sua forma mais geral, esta lei equivale em suma a isto que Leibnitz enuncnia em muitas ocasiões em diferentes termos, mas cujo sentido é no fundo sempre o mesmo: uma vez que existe uma certa ordem nos princípios, aqui entendidos num sentido relativo como os dados que se toma como ponto de partida, deve haver também uma ordem correspondente nas conseqüências que se obtém. Trata-se assim, como já indicamos, de um caso particular da “lei de justiça”, vale dizer da ordem, que é postulada pela “inteligibilidade universal”; trata-se portanto no fundo, para Leibnitz, de uma conseqüência ou uma aplicação do “princípio da razão suficiente”, ou mesmo deste próprio princípio na medida em que ele é aplicado mais particularmente às combinações e às variações da quantidade: “a continuidade é uma coisa ideal”, diz ele, o que aliás está longe de ser claro como se poderia supor, mas “o real não deixa de ser governado pelo ideal e o abstrato (...) porque tudo é governado pela razão” (4). É claro que existe uma certa ordem nas coisas, e não é isto que está em questão, mas podemos conceber esta ordem de modo completamente diferente do que o fazia Leibnitz, cujas idéias a respeito eram sempre mais ou menos influenciadas por seu pretenso “princípio do melhor”, que perde todo seu significado quando se compreende a identidade metafísica entre o possível e o real (5); ademais, embora ele tenha sido sempre um adversário declarado do estreito racionalismo cartesiano, podemos, no que tange à sua concepção da “inteligibilidade universal”, censurá-lo por haver confundido “inteligível” com “racional”; mas não insistiremos nisto agora, porque nos afastaríamos demasiado de nosso tema central. Apenas acrescentaremos, a propósito, que é espantoso que, após haver afirmado que “não há necessidade de fazer depender a análise matemática das controvérsias metafísicas”, o que de resto é bastante contestável (porque equivaleria a torná-la, segundo o ponto de vista estritamente profano, uma ciência inteiramente ignorante de seus princípios, além de que somente a incompreensão pode criar controvérsias no domínio metafísico), Leibnitz chega finalmente a invocar, em apoio à sua “lei de causalidade” à qual ele liga esta mesma análise matemática, um argumento não mais metafísico, mas teológico, que poderia prestar-se ainda a outras controvérsias: “É devido ao fato de que tudo se governa pela razão, diz ele, sem o que não há ciência nem regra, o que não seria conforme com a natureza do princípio soberano” (6), ao que poderíamos responder que a razão não passa na verdade de uma faculdade puramente humana e de ordem individual, e que, mesmo sem precisar remontar até o “princípio soberano”, a inteligência, entendida em seu sentido universal (ou seja o intelecto puro e transcendente), é coisa bem diversa da razão e não poderia ser assimilada a ela de modo algum, de tal modo que, se é verdade que não existe nada “irracional”, também é verdade que existem muitas coisas que são “supra-racionais”, mas que nem por isso tornam-se menos “inteligíveis”.

Passaremos agora a um outro enunciado mais preciso da “lei da continuidade”, enunciado que aliás refere-se mais diretamente do que o antecedente aos princípios do cálculo infinitesimal: “Se um caso aproxima-se de modo contínuo de um outro caso em seus dados e acaba por perder-se nele, é preciso necessariamente que os resultados destes casos se aproximem igualmente de modo contínuo nas soluções buscadas e que finalmente eles terminem reciprocamente um dentro do outro” (7). Existem duas coisas que é preciso distinguir aqui: primeiro, se a diferença ente os dois casos diminui até tornar-se menor do que qualquer grandeza assinalável “in datis”, o mesmo deve acontecer “in quaesitis”; não se  trata aí, em suma, senão da aplicação do enunciado mais geral, e não é esta parte da lei que levanta controvérsias, uma vez que admitamos que existem variações contínuas e que é precisamente ao domínio aonde se efetuam estas variações, ou seja o domínio geométrico, que se refere diretamente o cálculo infinitesimal; mas é preciso admitir além disto que “casus in casum tandem evanescat”, e que portanto “eventus casuum tandem in se invicem desinant”? Em outros termos, a diferença entre os dois casos jamais se tornará rigorosamente nula em decorrência de seu decréscimo contínuo e indefinido, ou, se se preferir, este decréscimo, ainda que indefinido, chegará a atingir seu termo? Trata-se, no fundo, da questão de saber se o limite pode ser atingido numa variação contínua; e, a respeito, observaremos ainda o o seguinte: como o indefinido, tal como implicado no contínuo, comporta sempre em certo sentido algo de “inesgotável”, e como Leibnitz não admite tampouco que a divisão do contínuo possa chegar a um termo final, nem mesmo que este termo exista verdadeiramente, será perfeitamente lógico e coerente de sua parte admitir que ao mesmo tempo que uma variação contínua, efetuando-se “per infinitos gradus intermedios” (8), possa atingir seu limite? Isto não quer dizer, certamente, que o limite possa ser atingido seja como for, o que reduziria o cálculo infinitesimal a um simples método de aproximação; mas, se ele pudesse ser efetivamente atingido, não seria dentro da própria variação contínua, nem como último termo da série indefinida dos “gradus mutationis”. E no entanto é pela “lei da continuidade” que Leibnitz pretende justificar a  “passagem ao limite”, que não é a menor das dificuldades a que seu método dá lugar do ponto de vista lógico, e é precisamente então que suas conclusões tornam-se inaceitáveis; mas, para que este lado da questão possa ser inteiramente compreendido, é preciso começarmos por definir a própria noção matemática de limite.

NOTAS

1.      Cf. L. Couturat, De l’infini mathématique, pg. 140: “Em geral, o princípio da continuidade não tem lugar na álgebra, e não pode ser invocada para justificar a generalização algébrica do número. Não apenas a continuidade não é necessária às especulações da aritmética geral, mas ela é estranha ao espírito desta ciência e à natureza mesma do número. O número, com efeito, é essencialmente descontínuo, assim como quase todas as suas propriedades aritméticas (...) Não podemos assim impor o contínuo às funções algébricas, por complicadas que sejam, pois o número inteiro, que lhe fornece todos os seus elementos, é descontínuo, e “salta” de certo modo de um valor a outro sem transição possível”.
2.      Ver Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps, cap. II.
3.      L. Couturat, De l’infini  mathématique.
4.      Carta citada a Varignon, 2 de fevereiro de 1702.
5.      Ver Os estados múltiplos do ser, cap. II.
6.      Carta a Varignon, 2 de fevereiro de 1702. – A primeira exposição da “lei da continuidade” apareceu em Nouvelles de République des Lettres, em julho de 1687, sob este título bastante significativo: Principium quoddam generale non in Mathematicis tantam sed Physicis utile, cujus ope ex consideratioine Sapientiae Divinae examinantur Naturae Leges, qua occasione nata cum R. P. Mellebranchio controversia explicatur, et quidam Cartesianorum errores notantur.
7.      Specimen Dynamicum pro admitandis Naturae Legibus circa corporum vires et mutuas actiones detegendis et ad suas causas revocandis, parte II.
8.      Carta a Schulemburg, 29 de março de 1698.



XII
A NOÇÃO DE LIMITE


A noção de limite é uma das mais importantes que temos a examinar, porque dela depende todo o valor do método infinitesimal quanto ao seu rigor; chegou-se até a dizer que, em definitivo, “todo algoritmo infinitesimal repousa apenas sobre a noção de limite, pois é precisamente esta noção rigorosa que serve para definir e para justificar todos os símbolos e todas as fórmulas do cálculo infinitesimal” (1).De fato, o objeto deste cálculo “reduz-se a calcular os limites de relações e os limites de somas, ou seja a encontrar valores fixos para os quais convergem relações ou somas de quantidades variáveis, na medida em que estas decrescem indefinidamente segundo uma dada lei” (2). Para maior clareza ainda, diremos que, dos dois ramos nos quais se divide o cálculo infinitesimal, o cálculo diferencial consiste em calcular limites de somas de elementos cuja multitude cresce indefinidamente ao mesmo tempo em que o valor de cada um deles decresce indefinidamente, pois é preciso que estas duas condições estejam reunidas para que a própria soma permaneça sempre uma quantidade finita e determinada  Isto posto, podemos dizer, de modo geral, que o limite de uma quantidade variável é uma outra quantidade considerada como fixa, e da qual supõe-se que a quantidade variável se aproxima, pelos os valores que esta toma no decurso de sua variação, até diferir dela tão pouco quanto se queira, ou, em outros termos, até que a diferença entre as duas quantidades se torne menor do que qualquer quantidade assinalável. O ponto sobre o qual devemos insistir mais particularmente, por razões que serão melhor compreendidas adiante, é que o limite é concebido essencialmente como uma quantidade fixa e determinada; mesmo quando ele não é dado pelas condições do problema, devemos começar por atribuir-lhe um valor determinado, e continuar considerando-o como fixo até o final do cálculo.

Mas uma coisa é a concepção de limite em si mesma, e outra a justificativa lógica da “passagem ao limite”; Leibnitz estimava que “o que justifica em geral a passagem ao limite, é que a mesma relação que existe entre muitas grandezas variáveis subsiste entre seus limites fixos, quando suas variações são contínuas, pois então elas atingem de fato seus respectivos limites; este é um outro enunciado da lei da continuidade” (3). Mas toda a questão é precisamente saber se a quantidade variável, que se aproxima indefinidamente de seu limite fixo, e que, por conseguinte, pode diferir dele tão pouco quanto o queiramos (segundo a própria definição de limite), pode efetivamente atingir este limite em conseqüência de sua própria variação, ou seja se o limite pode ser concebido como o último termo de uma variação contínua. Veremos que, na realidade, esta solução é inaceitável; para o momento, diremos apenas que a verdadeira noção de continuidade não permite jamais considerar as quantidades infinitesimais como podendo igualar-se a zero, pois elas cessariam então de ser quantidades; ora, para o próprio Leibnitz, elas devriam sempre mater o caráter de verdadeiras quantidades, e isto mesmo quando consideradas como “evanescentes”. Uma diferença infinitesimal jamais pode tornar-se rigorosamente nula; por conseguinte, uma variável, enquanto for vista como tal, diferirá sempre realmente de seu limite, e não poderá atingi-lo sem perder por isso mesmo seu caráter de variável.

Sobre esse ponto, podemos aceitar inteiramente, salvo uma pequena reserva, as considerações que um matemático que já citamos expõe nestes termos: “O que caracteriza o limite tal como definimos, é ao mesmo tempo que a variável possa aproximar-se dele tanto quanto se queira, e que não obstante ela jamais possa atingi-lo rigorosamente; pois, para que ela o atingisse de fato, seria preciso a realização de uma certa infinidade, que nos é necessariamente interdita (...) Devemos nos ater à idéia de uma aproximação indefinida, ou seja cada vez maior” (4). Ao invés de falar da “realização de uma certa infinidade”, o que para nós não teria nenhum sentido, diremos simplesmente que seria preciso que uma certa indefinidade fosse esgotada precisamente naquilo que ela tem de inesgotável, mas que, ao mesmo tempo, as possibilidades de desenvolvimento que esta mesma indefinidade comporta permitissem obter uma aproximação tão grande quanto de queira, “ut error fiat minor dato”, segundo a expressão de Leibnitz, para quem “o método é seguro” desde que este resultado seja atingido. “O que caracteriza o limite e o que faz com que a variável jamais o atinja exatamente, é ter uma definição diferente daquela da variável; e a variável, por sua vez, mesmo aproximando-se mais e mais do limite, não o atinje, porque ela nunca pode deixar de satisfazer sua primitiva definição, a qual, como dissemos, é diferente. A distinção necessária entre as duas definições, do limite e da variável, acha-se sempre (...) Este fato, que as duas definições são logicamente distintas enquanto tais, e que não obstante os objetos definidos podem aproximar-se cada vez mais um do outro (5), explica aquilo que à primeira vista pode parecer estranho, a imposibilidade de fazer coincidir duas quantidades das quais se pode reduzir a diferença além de toda expressão” (6).

Não é preciso dizer que, em virtude da tendência moderna de reduzir tudo exclusivamente ao quantitativo, não se deixou de reprovar nesta concepção do limite a introdução de uma diferença qualitativa dentro da própria ciência quantitativa; mas, se por isso fosse preciso descartá-la, seria também preciso que a geometria evitasse inteiramente, entre outras coisas, a consideração da similaridade, que é também puramente qualitativa, como já indicamos, porque ela só consnidera a forma das figuras sem levar em consideração sua grandeza, ou seja os elementos propriamente quantitativos. Convém lembrar, a propósito, que uma das principais utilizações do cálculo diferencial é determinar as direções das tangentes em cada ponto de uma curva, direções cujo conjunto define a própria forma da curva, e que direção e forma são precisamente, na ordem espacial, elementos cuja natureza é essencialmente qualitativa (7) Ademais, não é uma solução suprimir pura e simplesmente a “passagem ao limite”, sob o pretexto de que o matemático não precisa efetivamente disto, e que isto não o ajuda a conduzir o cálculo até o final; isso pode ser verdade, mas o que importa é o seguinte: até que ponto, nessas condições, terá ele o direito de considerar esse cálculo como repousando sobre um raciocínio rigoroso, e, mesmo se “o método é seguro” assim, não seria apenas enquanto método de aproximação? Poder-se-ia objetar que a concepção que expusemos torna também impossível a “passagem ao limite”, porque este limite tem precisamente como característica não poder ser atingido; mas isto só é verdade num certo sentido, e apenas quando se considera as variáveis como tais, pois não dissemos que o limite jamais pode ser atingido, mas, e isto é essencial precisar, que ele não pode ser atingido dentro da variação e como parte desta. O que é verdadeiramente impossível, é unicamente a concepção de “passagem ao limite” como constituindo o termo de uma variação contínua; mas devemos então substituir esta concepção por uma outra, e é isto o que faremos a seguir.

NOTAS

1.      L. Couturat, De l’infini mathématique, Introdução, pg. XXIII.
2.      Ch. De Freycinet, De l ‘Analyse infinitésimale, Prefácio, pg. VIII.
3.       L. Couturat, De l’infini mathématique, pg. 268, Nota. – É o ponto de vista que também está exposto em Justification du Calcul des infintésimales par celui de l’Algèbre ordinaire.
4.      Ch. De Freycinet, De l ‘Analyse infinitésimale, pg. 18.
5.      Seria mais exato dizer que um dos dois pode aproximar-se mais e mais do outro, pois apenas um desses objetos é variável, enquanto que o outro é essencialmente fixo, e que assim, em razão mesmo da definição de limite, sua proximação não pode ser considerada como constituindo uma relação recíproca e cujos termos seriam de certo modo intercambiáveis; esta irreciprocidade implica de resto que sua diferença é de ordem propriamente qualitativa.
6.      Ibid., pg. 19.
7.      Ver Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps, cap. IV.



XIII
CONTINUIDADE E
PASSAGEM AO LIMITE


Podemos voltar agora ao exame da “lei da continuidade”, ou, mais exatamente, do aspecto desta lei que deixamos momentaneamente de lado, e que é aquele pelo qual Leibnitz acreditava poder justificar a “passagem ao limite”, porque, para ele, resultava daí que, “nas quantidades contínuas, o caso extremo exclusivo pode ser tratado como inclusivo, e assim este último caso, embora totalmente diferente em natureza, está como que contido em estado latente na lei geral dos outros casos” (1). É justamente aí que reside, embora ele pareça não aperceber-se, o principal erro lógico de sua concepção da continuidade, como se pode perceber facilmente pelas conseqüências que ele tira daí e pelas aplicações que ele faz disto; eis alguns exemplos: “Em virtude de minha lei de continuidade, podemos considerar o repouso como um movimento infinitamente pequeno, ou seja como equivalente a uma espécie de contraditório seu, e a coincidência como uma distância infinitamente pequena, e a igualdade como a última das desigualdades, etc.” (2). E ainda: De acordo com esta lei da continuidade que exclui todo salto na mudança, o caso do repouso pode ser visto como um caso particular do movimento, ou seja como um movimento evanescente e mínimo, e o caso da igualdade como um caso de desigualdade evanescente. Resulta daí que as leis do movimento devem ser estabelecidas de tal modo queu não haja necesidade de regras particulares para os corpos em equilíbrio e em repouso, mas que estas surjam por si sós das regras concernentes aos corpos em desequilíbrio e em movimento; ou, se se preferir enunciar regras particulares para o repouso e o equilíbrio, é preciso cuidado para que estas possam acordar-se com a hipótese que considra o repouso como um movimento nascente ou a igualdade como a última das desigualdades” (3). Acrescentemos ainda esta última citação a respeito, onde encontramos um novo exemplo algo diferente dos primeiros, mas não menos contestável do ponto de vista lógico: “Embora não seja rigorosamente certo que o repouso seja uma espécie de movimento, ou que a igualdade seja uma espécie de desigualdade, assim como não é exato que o círculo seja uma espécie de polígono regular, podemos entretanto dizer que o repouso, a igualdade e o círculo encerram os movimentos, as desigualdades e os polígonos regulares, que por uma mudança contínua aí chegam ao evanescer. E ainda que estas terminações sejam exclusivas, ou seja não compreendidas a rigor dentro das variedades que elas limitam, elas no entanto possuem suas propriedades, como se estivessem aí compreendidas, segundo a linguagem dos infinitos ou infinitesimais, que vê o círculo, por exemplo, como um polígono regular cujo número de lados é infinito. De outro modo, a lei da continuidade seria violada, ou seja, se passamos dos polígonos ao círculo por uma mudança contínua e sem dar saltos, é preciso também que não haja salto na passagem das qualidades dos polígonos para as do círculo” (4).

Convém dizer, como o indica aliás o início da última passagem citada, que Leibnitz vê suas assertivas como do mesmo tipo daquelas que não mais do que “toleranter verae”, e que, diz ele em outra passagem, elas “servem sobretudo à arte de inventar, embora, a meu juízo, elas encerrem algo de fictício e de imaginário, que no entanto pode ser facilmente retificado pela redução às expresões normais, a fim de que não se produzam erros” (5); mas será que elas são assim, e não encerrarão elas, na realidade, senão contradições puras e simples? Sem dúvida, Leibnitz reconhecia que o caso extremo, ou o “ultimus casus”, é “exclusivus”, o que supõe manifestamente que ele está fora da série de casos que entram naturalmente na lei geral; mas então com que direito ele o inclui nessa lei, tratando-o “ut inclusivum”, como se ele não passasse de um caso particular incluído nessa série? É verdade que o círculo é o limite de um polígono regular cujo número de lados cresce indefinidamente, mas sua definição é essencialmente diferente da dos polígonos; e vemos claramente, num exempllo como este, a diferença qualitativa que existe, como já dissemos, entre o próprio limite e aquilo de quê ele é limite. O repouso não é de modo algum um caso parrticular do movimento, nem a igualdade um caso particular da desigualdade, nem a coincidência um caso particular da distância, nem o paralelismo um caso particular da convergência; de resto, Leibnitz não admite que eles o sejam no sentido rigoroso, mas ele não deixa de sustentar que eles podem ser visstos como tais, de sorte que “o gênero termina na quase-espécie oposta” (6), e que alguma coisa pode ser “equivalente a uma espécie de seu contraditório”. É aliás à mesma ordem de idéias, notemo-lo de passagem, que parece ligar-se a noção de “virtualidade” concebida por Leibnitz, no sentido particular que ele lhe atribui, como uma potência que seria um ato que começa (7), o que é tão contraditório quanto todos os outros exemplos que demos.

Qualquer que seja ponto de vista em que nos coloquemos, não vemos como uma espécie poderia ser um “caso-limite” da espécie ou do gênero oposto, pois não é neste sentido que os opostos limitam-se reciprocamente, mas é ao contrário naquilo que eles excluem, e é impossível que termos contraditórios sejam reduzidos um ao outro; e de resto, por exemplo, pode a desigualdade possuir outro significado senão na medida em que ela se opõe à igualdade, sendo sua negação? Não podemos dizer que tais asserções sejam sequer “toleranter verae”; mesmo que não admitamos a existência de gêneros absolutamente separados, continua verdadeiro que um gênero qualquer, definido como tal, não pode jamais tornar-se parte integrante de um outro gênero igualmente definido e cuja definição não inclui a sua própria, se é que não a exclui formalmente como no caso dos contraditórios, e que, se uma comunnicação pode ser estabelecida entre gêneros diversos, não pode ser por aquilo em que eles diferem efetivamente, mas apenas por meio de um gênero superior no qual ambos caibam  igualmente. Uma tal concepção da continuidade, que chega a suprimir não apenas toda separação, mas mesmo toda distinção efetiva, permitindo a passagem direta de um gênero a outro sem redução a um gênero superior ou mais geral, é propriamente a negação de todo princípio verdadeiramente lógico; daí à afirmação hegeliana da “identidade dos contraditórios” não há mais do que um passo, bem fácil de ser dado.

NOTAS
1.      Epistola ad V.Cl. Christianum Wolfium, Professorem Matheseos Halensem, circa Scientiam Infiniti, nas Acta Eruditorum de Leipzig, 1713.
2.      Carta citada a Varignon, 2 de fevereiro de 1702.
3.      Specimen Dynamicum, já citado acima.
4.      Justification du Calcul des infinitésimales par celui de l’Algèbre ordinaire, nota anexa à carta de Varignon a Leibnitz em 23 de maio de 1702, na qual ela é mencionada como tendo sido enviada por Leibnitz para ser inserida no Journal de Trévoux.
5.      Epistola ad V.Cl. Christianum Wolfium, já citada.
6.      Initia Rerum Mathematicarum Metaphysica. – Leibnitz afirma textualmente: “genus in quasi-speciem oppositam desinit”, e o emprego desta singular expressão “quasi-especies” parece indicar ao menos um certo embaraço para dar uma aparência plausível ao enunciado.
7.      Os termos “ato” e “potência” são tomados aqui no seu sentido aristotélico e escolástico.



XIV
AS “QUANTIDADES EVANESCENTES”


A justificativa da “passagem ao limite” consiste em suma, para Leibnitz, em que o caso particular das “quantidades evanescentes”, como ele diz, deve, em virtude da continuidade, caber de certa forma dentro da regra geral; e de resto estas quantidades evanescentes não podem ser vistas como “absolutamente nada”, ou como puros zeros, pois, sempre em razão da mesma continuidade, elas mantém entre si uma relação determinada, e geralmente diferente da unidade, no instante mesmo em que elas evanescem, o que pressupõe ainda que elas sejam ainda quantidades verdadeiras, ainda que “inassinaláveis” em relação às quantidades ordinárias (1). Entretanto, se as quantidades evanescentes, ou, o que vem a dar no mesmo, as quantidades infinitesimais, não são “absolutos nada”, mesmo que se trate de diferenciais de ordens superiores ao primeiro, elas devem ser consideradas como “relativos nada”, o que equivale a dizer que, mesmo mantendo o caráter de verdadeiras quantidades, elas podem e devem ser negligenciadas em relação às quantidades ordinárias, com as quais elas são “incomparáveis” (2); mas, multiplicadas por quantidades “infinitas”, ou incomparavelmente maiores do que as quantidades ordinárias, elas reproduzem quantidades ordinárias, o que não ocorreria se elas fossem nada. Podemos ver, pelas definições que demos antes, que a consideração de uma relação que permanece determinada entre as quantidades evanescentes, refere-se ao cálculo diferencial, e que a relação da multiplicação destas mesmas quantidades evanescentes por quantidades “infinitas”, produzindo quantidades ordinárias, refere-se ao cálculo integral. A dificuldade, em tudo isso, está em admitir que quantidades que não são nulas devem no entanto ser tratadas como nulas no cálculo, o que pode dar a imprerssão de que se trata de uma simples aproximação; a este respeito ainda, Leibnitz parece às vezes invocar a “lei da continuidade”, segundo a qual o “caso limite” é remetido à regra geral, como o  único postulado que seu método exige; mas este argumento é pouco claro, e seria melhor voltar à noção dos “incomparáveis”, como ele o faz com mais freqüência, para justificar a eliminação das quantidades infinitesimais no resultado do cálculo.

De fato, Leibnitz considera como iguais, não apenas as quantidades cuja diferença é nula, mas ainda aquelas cuja diferença é incomparável com estas mesmas quantidades; é sobre esta noção dos “incomparáveis” que repousa, para ele, não apenas a eliminação das quantidades infinitesimais, que assim desaparecem diante das quantidades ordinárias, mas também a distinção entre as diferentes ordens de quantidades infinitesimais ou diferenciais, por serem as quantidades de cada uma destas ordens incomparáveis com as da precedente, como as da primeira ordem o são com relação às quantidades ordinárias, mas sem que jamais se chegue a “absolutos nada”. “Eu chamo de grandezas incomparáveis, diz Leibnitz, aquelas que, quando uma é multiplicada por qualquer número finito, não é capaz de exceder a outra, assim como Euclides tomou na quinta definição do quinto livro” (3). Não há de resto aí nada que indique se esta definição deve ser entendida a respeito de quantidades fixas e determinadas ou de quantidades variáveis; mas podemos admitir que, em toda sua generalidade, ela deve aplicar-se indistintamente a ambos: a questão resume-se em saber agora se duas quantidades fixas, por diferentes que sejam na escala de grandezas, podem jamais ser vistas como  realmente “incomparáveis”, ou se elas só o são relativamente aos meios de mensuração de que dispomos. Mas não cabe aqui insinstir sobre este ponto, pois o próprio Leibnitz declarou em outra ocasião que este não é o caso dos diferenciais (4), donde se conclui, não apenas que a comparação do grão de areia era manifestamente insuficiente em si, mas ainda que ela não correspondia, em seu próprio pensamento, à verdadeira noção dos “incomparáveis”, ao menos na medida em que esta noção deva aplicar-se às quantidades infinitesimais.

Alguns acharam entretanto que o cálculo infinitesimal não poderia ser tornado perfeitamente rigoroso a menos que as quantidades infinitesimais pudessem ser consideradas como nulas, e, ao mesmo tempo, pensaram erradamente que um erro poderia ser suposto nulo desde ele pudesse ser suposto tão pequeno quanto se queira; dizemos erradamente, porque isto equivale a admitir que uma variável, enquanto variável, pode atingir seu limite. Eis, aliás, o que Carnot diz a respeito: “Existem pessoas que acreditam haver estabelecido suficientemente o princípio da análise infinitesimal a partir do seguinte raciocínio: é evidente, dizem, e todos concordam que os erros que originam-se dos procedimentos de análise infinitesimal, se os há, podem sempre ser supostos tão pequenos quanto se queira; é evidente também que todo erro que podemos supor tão pequeno quanto se queira é nulo, pois, se é possível supô-lo tão pequeno, pode-se supô-lo zero; portanto os resultados da análise infinitesimal são rigorosamente exatos. Este raciocínio, plausível à primeira vista, não é inteiramente justo, pois é falso dizer que, porque podemos supor um erro tão pequeno quanto o queiramos, podemos por isso torná-lo nulo. Estamos necessariamente na alternativa de, ou cometer um erro, por pequeno que seja, ou de cair numa fórmula que não leva a nada, e este é precisamente o nó da dificuldade na análise infinitesimal” (5).

É certo que uma fórmula na qual entre uma relação que se apresenta sob a forma 0 / 0 “não leva a nada”, e podemos mesmo dizer que ela não tem nenhum sentido em si mesma; é apenas em virtude de uma convenção, de resto justificada, que podemos dar um sentido à forma 0/0, vendo-a como um símbolo da indeterminação (6); mas esta mesma indeterminação faz com que a relação, tomada sob esta forma, poderia ser igual a não importa qual outra, enquanto que ela deve ao contrário, em cada caso particular, conservar um valor determinado: é a existência deste valor determinado que Leibnitz alega (7), e este argumento, em si, é perfeitamente inatacável (8). Apenas, é preciso reconhecer que a noção das “quantidades evanescentes” tem, segundo a expressão de Lagrange, “o grande inconveniente de considerar as quantidades no estado em que elas cessam, por assim dizer, de ser quantidades”; mas, contrariamente ao que pensava Leibnitz, não há necessidade de considerá-las precisamente no instante em que elas evanescem,, nem mesmo de admitir que elas possam evanescer verdadeiramente, pois, neste caso, elas cessam efetivamente de ser quantidades. Isto supõe de resto essencialmente que não existe “infinitamente pequeno” tomado “a rigor”, pois este “infinitamente pequeno”, ou ao menos o que podemos chamar assim adotando a linguagem de Leibnitz, não poderia ser senão zero, assim como o “infinitamente grande”, tomado no mesmo sentido, não poderia ser outro que o “número infinito”; mas, na realidade, o zero não é um número, e a “quantidade nula” não existe mais do que a “quantidade infinita”. O zero matemático, em sua acepção estrita e rigorosa, não passa de uma negação, ao menos sob o aspecto quantitativo, e não podemos dizer que a ausência de quantidade constitua ainda uma quantidade; este é um ponto sobre o qual voltaremos para desenvolver mais completamente as diversas conseqüências que dele resultam.

Em suma, a expressão de ‘quantidades evanescentes” tem sobretudo o defeito de se prestar a um equívoco, e de fazer crer que as quantidades infinitesimais são consideradas como quantidades que se anulam efetivamente, pois, a menos que se mudem os sentidos das palavras, é difícil compreender que “evanescer”, quando se trata de quantidades, possa querer dizer outra coisa do que anular-se. Em realidade, estas quantidades infinitesimais, entendidas como quantidades indefinidamente decrescentes, que é seu verdadeiro significado, jamais podem ser ditas “evanescentes” no sentido próprio do termo, e teria sido preferível não ter introduzido esta noção, que, no fundo, refere-se à concepção que Leibnitz fazia da continuidade, e que, como tal, comporta inevitavelmente o elemento de contradição que é inerente ao ilogismo desta mesma concepção. Agora, se um erro, mesmo podendo ser tornado tão pequeno quanto se queira, não pode jamais tornar-se absolutamente nulo, como poderia o cálculo infinitesimal ser verdadeiramente rigoroso, e, se de fato o erro pode ser desprezível, deve-se concluir daí que este cálculo se reduz a um simples método de aproximação, ou ao menos, como diz Carnot, de “compensação”? Eis uma questão que deverá ser resolvida adiante; mas, como falamos do zero e da pretensa “quantidade nula”, trataremos primeiro deste assunto, que, como se verá, está longe de ser negligenciável.

NOTAS

1.      Para Leibnitz, 0 / 0 = 1, porque, diz ele, “um nada vale outro”; mas, como temos que 0 x  n = 0, e isto qualquer que seja o valor de n, é evidente que podemos também escrever que 0 / 0 = n, e é por isso que a expressão 0 / 0 é geralmente vista como representando o que se chama uma “forma indeterminada”.
2.      A diferença entre isto e a comparação do grão de areia é que, quando se  fala em “quantidades evanescentes”, isto supõe necessariamente que se trata de quantidades variáveis, e não mais de quantidades fixas e determináveis, por pequenas que sejam.
3.      Carta ao marquês de l’Hospital, 14-24 de junho de 1695.
4.      Carta citada a Varignon, 2 de fevereiro de 1702.
5.      Réflexions sur la Métaphyisique du Calcul infinitésimal, pg. 36.
6.      Ver a nota precedente a respeito.
7.      Com a diferença que, para ele, a relação 0 / 0 é, não indeterminada, mas sempre igual a 1, como dissemos acima, enquanto que o valor de que se trata difere em cada caso.
8.      Cf. Ch. de Freycinet, De l’Analyse infinitésimale, pgs. 45-46: “Se os acréscimos são levados à condição de puros zeros, eles não tem mais nenhum significado. Sua característica é de serem, não rigorosamente nulos, mas indefinidamente decrescentes, sem jamais poder se confundir com zero, em virtude do princípio geral que uma variável não pode nunca coincidir com seu limite”.



XV
ZERO NÃO É UM NÚMERO


O decréscimo indefinido dos números não pode chegar a um “número nulo”, assim como seu crescimento não pode chegar a um “número infinito”, e isto pela mesma razão, uma vez que um destes números deve ser o inverso do outro; de fato, a partir do que dissemos antes a respeito dos números inversos, que por estarem igualmente distanciados da unidade nas duas séries, uma crescente e outra decrescente, tem como ponto de partida comum esta unidade, e como existem necessariamente tantos termos em uma como em outra das duas séries, os últimos termos, que seriam o “número infinito” e o “número nulo”, se existissem, estariam igualmente distanciados da unidade, sendo portanto inversos um do outro (1). Nestas condições, se o signo do infinito  não passa do símbolo das quantidades indefinidamente crescentes, o signo 0 deveria logicamente poder ser tomado da mesma forma como símbolo das quantidades indefinidamente decrescentes, a fim de exprimir na notação a simetria que existe, como dissemos, entre uns e outros; mas, infelizmente, este signo 0 já possui outro significado, pois ele serve originariamente para designar a ausência de qualquer quantidade, enquanto que o signo do infinito não tem nenhum significado real que corresponda. Esta é uma nova fonte de confusões, como as que se produzem a respeito das “quantidades evanescentes”, e seria preciso, para evitá-las, criar para as quantidades indefinidamente decrescentes um outro símbolo diferente do zero, pois estas quantidades tem por característica jamais poderem se anular em sua variação; em todo caso, com a notação atualmente empregada pelos matemáticos, é quase impossível que estas confusões não aconteçam.

Se insistimos nesta questão de que o zero, na medida em que ele representa a ausência de qualquer quantidade, não é nem pode ser considerado como um número, embora isto possa parecer óbvio para que jamais teve contato com certas discussões, é porque, uma vez que se admite a existência de um “número nulo”, que deve ser “o menor dos números”, deve-se forçosamente concluir daí, como seu inverso, um “número infinito”, no sentido de “o maior dos números”. Se portanto aceitamos este postulado de que zero é um número, o argumento em favor do “número infinito” pode parecer perfeitamente lógico (2); mas é precisamente este postulado que devemos rejeitar, pois, se as conseqüências que dele se deduzem são contraditórias, e vimos que a existência do ‘número infinito” o é realmente, é porque, em si mesmo, ele implica contradição. De fato, a negação da quantidade não pode ser assimilada a uma quantidade; a negação do número ou da grandeza não pode em nenhum sentido e em nenhum grau constituir uma espécie do número ou da grandeza; pretender o contrário, equivale a sustentar que qualquer coisa pode ser, segundo a expressão de Leibnitz, “equivalente a uma espécie de seu contraditório”, e poder-se-ia assim dizer que a negação da lógica é a própria lógica.

É portanto contraditório falar do zero como um número, ou supor um “zero de grandeza” que seria ainda uma grandeza, donde resultaria forçosamente a consideração de tantos zeros distintos quantas ordens diferentes de grandezas; na realidade, só pode haver um zero puro e simples, que não é outra coisa do que a negação da quantidade, qualquer que seja o modo como esta é considerada (3). Uma vez que este seja no verdadeiro sentido do zero aritmético tomado “a rigor”, é evidente que este sentido não tem nada a ver com a noção das quantidades indefinidamente decrescentes, que sempre são quantidades, e não ausência de quantidade, assim como não são algo de intermediário entre o zero e a quantidade, o que seria ainda uma concepção perfeitamente ininteligível, e que, em sua ordem, lembraria a da “virtualidade” leibnitziana de que falamos preedentemente.

Podemos agora voltar ao outro significado que o zero tem de fato na notação habitual, a fim de ver como as confusões de que falamos puderam produzir-se: dissemos antes que um númeropode ser visto como praticamente indefinido desde que não nos seja mais posível exprimí-lo ou representá-lo distintamente de um modo qualquer; um tal número, seja qual for, poderá apenas, na ordem crescente, ser simbolizado pelo signo do infinito, na medida em que este representa o indefinidamente grande; não se trata portanto aí de um número determinado, mas antes de todo um domínio, o que de resto é necessário para que seja possível considerar, no indefinido, desigualdades e mesmo diferentes ordens de grandeza. Falta, na notação matemática, um outro símbolo para representar o domínio que corresponda àquele na ordem decrescente, ou seja no domínio do indefinidamente pequeno; mas, como um número que pertença a este domínio é, de fato, desprezível para efeitos de cálculo, tomou-se o hábito de considerá-lo como praticamente nulo, embora isto não seja mais do que uma simples aproximação resultatnte da imperfeição inevitável de nossos modos de expressão e de medida, e é sem dúvida por esta razão que se chegou a representá-lo com o mesmo signo 0 que representa por outro lado a ausência rigorosa de qualquer quantidade. É apenas neste sentido que que o signo 0 torna-se de certa forma simétrico do signo do infinito, h , e podem ser colocados respectivamente nas duas extremidades da série dos números, tal como já a consideramos antes como estendendo-se indefinidamente, pelos números inteiros e seus inversos, nos dois sentidos crescente e decrescente. Esta série apresenta-se então sob a seguinte forma:
0, ..., ¼, 1/3, ½, 1, 2, 3, 4, ..., infinito;
mas é preciso cuidado porque o zero e o infinito representam, não dois números determinados, que terminariam a série nos dois sentidos, mas dois domínios indefinidos, nos quais ao contrário não existem últimos termos, em razão de sua própria indefinitude; é aliás evidente que o zero não poderia ser aqui um “número nulo”, que seria um último termo no sentido decrescente, nem uma negação ou ausência de quantidade, que não pode ter lugar nesta série de quantidades numéricas.

Nesta mesma série, como já explicamos, dois números eqüidistantes da unidade central são inversos ou complementares um do outro, e portanto reproduzem a unidade por sua multiplicação: (1 / n) x n = 1, de modo que, para as duas extremidades da série, seríamos levados a escrever que 0 x h = 1; mas, como os signos 0 e h, que são os dois fatores deste último produto, não representam números determinados, segue-se que a expressão 0 x h em si constitui um símbolo da indeterminação ou aquilo que é chamado de “forma indeterminada”, e podemos então dizer que 0 x h = n, sendo n um número qualquer (4); não é menos verdade que, de qualquer modo, somos levados ao finito comum, pois as duas indefinitudes opostas como que neutralizam uma à outra. Vemos ainda claramente aqui, mais uma vez, que o símbolo h não representa o Infinito, pois este, em seu verdadeiro sentido, não pode ter nem oposto nem complementar, nem pode entrar em correlação com o que quer que seja, nem com o zero, como quer que o entendamos, nem com a unidade ou qualquer outro número, nem de resto com qualquer coisa particular seja de que ordem for, quantitativa ou não; por ser o Todo universal e absoluto, ele contém tanto o Ser como o Não-Ser, de modo que o próprio zero, desde que não seja visto como uma pura negação, deve ser considerando como estando também ele compreendido no Infinito.

Ao fazermos aqui alusão ao Não-Ser, chegamos a um outro significado do zero, totalmente diferente daqueles que vimos até agora, e de resto o mais importante do ponto de vista de seu simbolismo metafísico; mas, a este respeito, é preciso frisar, para evitar qualquer confusão entre o símbolo e aquilo que ele representa, que o Zero metafísico, que é o Não-Ser, não é o zero da quantidade, assim como a Unidade metafísica, que é o Ser, tampouco é a unidade artitmética; aquilo que é designado por esses termos só pode sê-lo por transposição analógica, pois, uma vez que se está no domínio do Universal, também se está além de qualquer domínio em particular como o da quantidade. Não é aliás por representar o indefinidamente pequeno que o zero pode ser transposto como símbolo do Não-Ser, mas porque, segundo sua concepção matemática mais rigorosa, ele representa a ausência de quantidade, que de fato simboliza em sua própria ordem a possibilidade de não-manifestação, assim como a unidade simboliza a possibilidade de manifestação, por ser o ponto de partida da multiplicidade indefinida dos números, como o Ser é o princípio de toda a manifestação (5).

Isso nos conduz a lembrar ainda que, qualquer que seja o modo como consideremos o zero, ele só não pode ser considerado como um puro nada, que metafisicamente corresponde a uma impossibilidade, a qual logicamente não pode ser representada por nada. Isto é bastante evidente quando se trata do indefinidamente pequeno; é verdade que trata-se aí apenas de um sentido derivado, devido a uma espécie de assimilação entre uma quantidade desprezível e a ausência de quantidade; mas, no que diz respeito à  ausência mesma de quantidade, o que é nulo sob este aspecto pode não sê-lo sob outros, como vemos claramente por um exemplo como o do ponto, que, sendo indivisível, e por isto mesmo sem extensão, é espacialmente nulo (6), mas que nem por isto, como já vimos, deixa de ser o próprio princípio de toda a extensão (7). É estranho que os matemáticos tenham o hábito de ver o zero como um puro nada, mas que ao mesmo tempo  aceitem-no como dotado de uma potência indefinida, pois, colocado à direita de qualquer cifra “significativa”, ele contribui para formar a representação de um número que, pela simples repetição de zeros,  pode crescer indefinidamente, como é o caso do dez e de suas potências sucessivas. Se realmente o zero não passasse de um puro nada, isto não poderia ser assim, e, a bem dizer, ele seria um símbolo perfeitamente inútil, desprovido de qualquer valor efetivo; mas esta é apenas mais uma das muitas inconseqüências das concepções matemáticas modernas.


NOTAS

1.      Isto seria representado, segundo a notação comum, pela conhecida fórmula  0 x h = 1; mas, de fato, a forma 0 x h é também, assim como 0 / 0 , uma “forma indeterminada”; e pode-se escrever ainda que 0 x h = n, sendo n um número qualquer, o que mostra que 0 e h não devem ser vistos como representando números determinados; voltaremos a isto adiante. Cabe observar, por outro lado, que 0 x h corresponde, em relação aos “limites das somas” do cálculo integral, ao que é o 0 / 0 em relação aos “limites de relações” do cálculo diferencial.
2.      É de fato sobre este postulado que repousa grande parte da argumentação de L. Couturat em sua tese  De l’infini mathématique.
3.      Resulta daí ainda que o zero não pode ser visto como um limite no sentido matemático do termo, porque um limite verdadeiro é sempre, por definição, uma quantidade; aliás é evidente que uma quantidade que decresce indefinidamente tem tanto limite quanto uma que cresce indefinidamente, ou ao menos ambas não podem ter outros limites do que aqueles impostos por sua própria natureza enquanto quantidades,  o que é uma acepção bastante diferente da palavra “limite”, embora entre os dois sentidos haja uma relação que indicaremos mais adiante; matematicamente, só se pode falar de limite em relação a duas quantidades indefinidamente crescentes ou a duas quantidades indefinidamente decrescentes, e não do limite destas quantidades por si  mesmas.
4.      Ver a nota precedente a respeito.
5.      A este respeito,cf. Os estados múltiplos do ser, cap. III.
6.      É porisso que o ponto não pode ser considerado como um elemento ou uma parte da extensão.
7.      Ver O simbolismo da cruz, cap. XVII

XVI
A NOTAÇÃO DOS NÚMEROS NEGATIVOS


Se voltarmos ao segundo dos dois significados do zero, ou seja considerando-o como uma representação do indefinidamente pequeno, o que importa ter em mente antes de tudo é que este domínio compreende, na série duplamente indefinida dos números, tudo o que está além de nossos meios de avaliação num certo sentido, assim como o indefinidamente grande compreende, dentro desa mesma série, tudo o que está além dos mesmos meios de avaliação no outro sentido. Isto posto, não faz sentido falar em números “menores do que zero”, assim como de números “maiores do que o indefinido”, e com mais razão ainda, se possível for, uma vez que o zero representa, segundo seu primeiro significado, pura e simplesmente a  ausência de toda e qualquer quantidade, e uma quantidade que seja menor do que nenhuma é propriamente inconcebível. É isto entretanto o que se fez, num certo sentido, quando se introduziu nas matemáticas a consideração dos números ditos negativos, esquecendo-se, por efeito do “convecionalismo” moderno, que esses números não são, originalmente, senão a indicação do resultado de uma operação realmente impossível, pela qual um número maior deve ser extraído de um menor; de resto, já notamos que todas as generalizações ou extensões da idéia de número não porvém de fato senão da consideração de operações impossíveis do ponto de vista da aritmética pura; mas esta concepção dos números negativos e as conseqüências que ela traz merecem algumas explicações.

Dissemos antes que a série dos números inteiros é formada a partir da unidade, e não a partir do zero; de fato, dada a unidade, dela se deduz toda a série dos números, de modo que podemos dizer que esta está implicada e contida em princípio nesta unidade inicial (1), enquanto que do zero não se pode evidentemente extrair nenhum número. A passagem do zero à unidade não pode se fazer do mesmo modo como a passagem da unidade para os outros números, ou de um número qualquer ao seu seguinte, e, no fundo, imaginar possível esta passagem do zero para a unidade equivale a pressupor implicitamente esta unidade (2). Colocar o zero diante da série dos números, como se ele fosse o primeiro desta série, só pode ter dois significados: ou se admite que o zero é um número, contrariamente ao que estabelecemos, e que por conseguinte ele pode ter para com os demais números relações da mesma ordem que estes tem entre si (o que não acontece, porque zero dividido ou multiplicado por qualquer número dá sempre zero); ou trata-se de um simples artifício de notação, que só pode trazer consigo confusões mais ou menos inextricáveis. De fato, o emprego deste artifício quase que só se justifica para permitir a introdução da notação dos números negativos, e, se o uso desta notação oferece sem dúvida algumas vantagens para a comodidade dos cálculos (consideração “pragmática” que não está em causa aqui e que na verdade não tem importância de nosso ponto de vista),  não é difícil dar-se conta de que ela apresenta por outro lado graves inconvenientes lógicos. A primeira das dificuldades é precisamente a consideração das quantidades negativas como “menores do que zero”, que Leibnitz classificava dentre as afirmações que não passavam de “toleranter verae”, mas que na verdade é, como já dissemos, inteiramente desprovida de qualquer significado. “Admitir que uma quantidade negativa isolada é menor do que zero,  diz Carnot, é cobrir a ciência das matemáticas, que deve ser a da evidência, com uma nuvem impenetrável e enfiar-se num labirinto de paradoxos cada qual mais bizarro” (3). Sobre este ponto, concordamos com esta opinião, que não é suspeita nem tem nada de exagerado; e não se deve jamais esquecer, no uso que se faz dessa notação dos números negativos, que se trata apenas de uma simples convenção.

A razão desta convenção é a seguinte: mesmo quando uma subtração é aritmeticamente impossível, seu resultado ainda é susceptível de interpretação nos casos em que esta subtração se refere a grandezas que podem ser contadas em sentidos opostos, como por exemplo as distâncias medidas sobre uma linha, ou os ângulos de rotação ao redor de um ponto fixo, ou ainda o tempo contado em passado e futuro a partir de um momento dado. Daí a representação que normalmente se faz desses números negativos: se considerarmos uma reta inteira, indefinida nos dois sentidos, e não mais apenas uma semi-reta como fizemos antes, podemos contar, sobre esta reta, as distâncias como positivas ou negativas segundo a percorramos num ou noutro sentido em relação a um ponto fixo de origem, a partir do qual as distâncias são chamadas de positivas numa direção e de negativas na outra. A cada ponto da reta corresponderá um número que será a medida de sua distância até a origem, e que podemos chamar de coeficiente; a própria origem terá como coeficiente o zero, e o ceoficiente de qualquer outro ponto da reta será um número qualificado pelo sinal + ou , signos que, na realidade, indicam apenas de qual lado este ponto está situado em relação à origem. Também podemos distinguir um sentido positivo e um negativo sobre uma circunferência, e contar, a partir de uma posição inicial do raio, os ângulos como positivos ou negativos conforme sejam descrito em um ou outro sentido, o que dá lugar a observações análogas. Para ficarmos na consideração da reta, doi spontos eqüidistantes da origem, de cada lado desta, terão como coeficiente o mesmo número, mas com sinais contrários, e um ponto mais distante da origem do que um outro terá como coeficiente um número maior; vemos assim que, se um número n é maior do que um número m, é absurdo afirmar, como se faz normalmente, que –n é menor do que –m, porque na verdade ele representa uma distância maior. De resto, o sinal colocado diante do número não pode realmente modificá-lo do ponto de vista da quantidade, porque ele não representa nada que se refira à medida das distâncias em si mesmas, mas apenas a direção segundo a qual estas distâncias são percorridas, direção que é de ordem puramente qualitativa e não quantitativa ( 4).

Por outro lado, sendo a reta indefinida nos dois sentidos, somos obrigados a considerar um indefinido positivo e um negativo, que são representados respectivamente pelos signos +(infinito) e – (infinito) e que costumam ser designados pelas expressões absudar de “mais infinito” e “menos infinito”; é o caso de se perguntar o que poderia ser um infinto negativo, ou o que restaria se de qualquer coisa, ou mesmo de nada (pois os matemáticos vêem o zero como nada), se extraísse o infinito; é o tipo de coisas que basta enunciar em termos claros para se ver que não tem nenhum significado. É preciso ainda acrescentar que isso também nos conduz, em especial no estudo da variação das funções, a ver o indefinido negativo como confundindo-se com o positivo, de tal modo que um objeto partindo da origem e dela se afastando constantemente no sentido positivo retornaria a ela pelo lado negativo, ou inversamente, se seu movimento se mantivesse por um tempo indefinido, donde resulta que a reta, ou aquilo que está sendo considerado como tal, deve ser na realidade uma linha fechada, mesmo que indefinida. Podemos mostrar que as propriedades da reta sobre o plano são inteiramente análogas às de um círculo diametral sobre a superfície de um esfera, de modo que o plano e a reta podem ser comparados a uma esfera e a um círculo de raio indefinidamente grande (e por conseguinte de curvatura indefinidamente pequena), enquanto que os círculos comuns do plano equivalem aos círculos menores da esfera. Essa assimilação, para ser rigorosa, supõe de resto uma “passagem ao limite”, pois é evidente que, por maior que se torne o raio em seu crescimento indefinido, teremos sempre uma esfera e não um plano, e que esta esfera apenas tende a confundir-se com o plano e seus grandes círculos com as retas deste plano, de tal modo que o plano e a reta são aqui limites, do mesmo modo como o círculo é o limite de um polígono regular cujo número de lados cresce indefinidamente. Sem insistirmos mais, lembraremos apenas que, com essas considerações, atingimos os próprios limites da indefinitude espacial; como é possível então, se quisermos guardar a lógica, falar ainda de infinito?

Ao considerarmos os números positivos e negativos como acabamos de fazer, a série dos números toma a seguinte forma:
-h(...) –4,-3,-2,-1,0, 1,2,3,4, (...) + h,
sendo que a ordem destes números é a mesma dos correspondentes pontos sobre a reta, ou seja pontos que tem estes números como seus respectivos coeficientes, o que de resto marca a origem real da série assim formada. Esta série, apesar de ser igualmente indefinida nos dois sentidos, é completamente diferente da que vimos anteriormente e que compreednia os números inteiros e seus inversos: ela é simétrica, não em relação à unidade, mas em relação ao zero, que corresponde à origem das distâncias; e, se dois números equidistantes deste termo central  ainda o reproduzem, não é mais por multiplicação como o fazíamos, mas por adição “algébrica”, tendo em conta seus respectivos sinais, o que é aqui o equivalente aritmético de uma subtração. Por outro lado, esta nova série não é absolutamente, como a anterior, indefinidamente crescente num sentido e indefinidamente decrescente no outro;  se a considerarmos assim, será apenas como “modo de dizer”, por sinal dos mais incorretos, assim como quando se fala de “números menores do que zero”. Na realidade, essa série é indefinidamente crescente nos dois sentidos igualmente, pois o que ela contém de cada lado do zero central é a mesma série de números inteiros; o que se chama de “valor absoluto”, expressão bastante sigular também, deve ser levado em conta apenas do ponto de vista puramente quantitativo, e os sinais de positivo e negativo não alteram nada a respeito, porque, na realidade, eles só exprimem relações de “situação”, como já explicamos antes. O indefinido negativo não é assim assimilável ao indefinidamente pequeno; ao contrário, ele é, assim como o indefinido positivo, indefinidamente grande; a única diferença, e que näo é de ordem quantitativa, é que ele se desenvolve em outra direção, o que é perfeitamente concebível quando se trata  de grandezas espaciais ou temporais, mas totalmente desprovido de sentido para as grandezas matemáticas, para as quais este dsenvolvimento é necessariamente único, não podendo ser outra coisa que não a própria série dos números inteiros.

Dentre outras conseqüências bizarras ou ilógicas da notação dos números negativos, assinalaremos ainda a consideração das quantidades ditas “imaginárias”, que foi introduzida pela resolução das equações algébricas, as quais Leibnitz classificava dentre as suas “ficções bem fundamentadas”, como fazia também com as quantidades infinitesimais; estas quantidades, ou assim ditas quantidades, apresentam-se como as raízes dos números negativos, o que na realidade não passa de uma imposibilidade pura e simples, porque, seja um número positivo ou negativo, seu quadrado será sempre necessariamente positivo, pelas simples regras da multiplicação algébrica. Mesmo se fosse possível dar outro sentido a essas quantidades “imaginárias” e faze-las corresponder a qualquer coisa de real, o que não examinaremos aqui, o que é certo em todo o caso é que sua teoria e sua aplicação à geometria analítica, tais como expostas pelos matemáticoa atuais, não passam de um tecido de confusões e mesmo de absurdos, e como o produto de uma necessidade de generalização excessiva e artificial que não recua nem mesmo diante do enunciado de proposições manifestamente contraditórias; certos teoriema sobre as “assimptóticas do círculo” mostram que não estamos exagerando. Pode-se dizer, é verdade, que não se trata da geometria propriamente dita, mas somente da consideração da “quarta dimensão” do espaço (5), de álgebra traduzida em linguagem geométrica; mas o que é grave, precisamente, é que, por ser esta tradução ou inversa possível e legítima numa certa medida, pretender-se estende-la também a casos em que ela já não significa nada, o que é o sintoma de uma grande confusão de idéias, ao mesmo tempo que o ápice de um “convencionalismo” que chega a perder toda noção de realidade.

NOTAS

1.      Da mesma forma, por transposição analógica, toda a multiplicidade indefinida das possibilidades de manifestação está contida em princípio e “eminentemente” no Ser puro ou na Unidade metafísica.
2.      Isto fica evidente se, conforme a lei geral de formação da série dos números, representamos esta passagem pela fórmula 0 + 1 = 1.
3.      “Nota sobre as quantidades negativas”, nota ao final de Réflexions sur la Métaphysique du Calcul infinitésimal, pg. 173.
4.      Ver O Reino da quantidade e os sinais dos tempos, cap. IV. – Podemos nos perguntar se não existe uma lembrança inconsciente desse caráter qualitativo no fato de os matemáticos modernos designarem às vezes os números tomados “com seus sinais”, ou seja como positivos ou negativos, como “números qualificados”, embora eles pareçam não se dar conta do sentido desta expressão.
5.      Cf. O Reino da quantidade e os sinais dos tempos, cap. XVIII e XXIII.



XVII
REPRESENTAÇÃO DO EQUILÍBRIO DE FORÇAS


A propósito dos números negativos, e embora seja apenas uma digressão em relação ao objeto de nosso estudo, falaremoa ainda sobre as conseqüências nada contestáveis do emprego destes números do ponto de vista da mecanica; esta, aliás, é por seu objeto uma ciência física, e o fato de tratá-la como uma parte integrante das matemáticas (conseqüência do ponto de vista exclusivamente quamtitativo da ciência atual) não deixa de introduzir nela estranhas deformações. Diremos apenas, a este respeito, que os pretensos “princípios”sobre os quais os matemáticos modernos fazem repousar esta ciência tal como a concebem, não são propriamente mais do que hipóteses mal ou bem fundamentadas, ou ainda, nos casos mais favoráveis, simples leis mais ou menos gerais, algumas mais gerais do que outras, mas que nada tem em comum com os verdadeiros princípios universais, e que, numa ciência constituída sobre bases tradicionais, não passariam de aplicações destes princípios a um domínio bastante particular. Sem entrarmos em grandes desenvolvimentos, citaremos como exemplo do primeiro caso o assim chamado “princípio da inércia”, que nada poderia justificar, nem a experiência que ao contrário mostra que não há inércia em parte alguma na natureza, nem o entendimento que é incapaz de conceber esta inércia, que só pode constituir a ausência completa de toda e qualquer propriedade; tal palavra só poderia ser aplicada de forma legítima à pura potencialidade da substância universal, ou à materia prima dos escolásticos, que aliás é por esta mesma razão “ininteligível”; mas esta materia prima é coisa bem diferente da “matéria” dos físicos (1). Um exemplo do segundo caso é o que se chama de “princípio da igualdade da ação e da reação”, que se deduz imediatamente da lei geral do equilíbrio das forças naturais: cada vez que este equilíbrio é rompido, ele tende logo a se restabelecer, de onde provém uma reação cuja intensidade é equivalente à da ação que a provocou; trata-se de um simples caso particular daquilo que a tradição extremo-oriental chama de “ações e reações concordantes”, que não dizem respeito apenas ao mundo corporal como as leis mecânicas, mas ao conjunto da manifestçaõ em todos os seus modos e estados; é precisamente sobre esta questão do equilíbrio e de sua representação matemática que nos propomos insistir ainda um pouco, pois ela é bastante importante.

Usa-se representar duas forças que se equilibram por dois “vetores” opostos, ou seja dois segmentos de reta de igual comprimento, mas dirigidos em sentido contrário: se duas forças, aplicadas sobre um mesmo ponto, tem a mesma intensidade e a mesma direção, mas em sentidos contrários, elas se equilibram; como então elas não agem sobre o ponto de aplicação, diz-se comumente que elas se destroem, sem levar em conta que, se uma delas for suprimida, a outra agirá imediatamente, o que mostra que ela não foi realmente destruída. Essas forças são caracterizadas por coeficientes numéricos proporcionais às suas intensidades respectivas, e duas forças com sentidos contrários são marcadas por coeficientes de sinais diferentes, um positivo e outro negativo: se uma for f, a outra será –f’. No caso que estamos considerando, se as duas forças tiverem a mesma intensidade, os coeficientes que as caracterizam devem ser iguais “em valor absoluto”, e teremos que f = f’, donde se deduz, como condição de equilíbrio, que ff’ = 0, ou seja que a soma algébrica das duas forças, ou dos dois “vetores” que as representam, é nula, de tal sorte que o equilíbrio é assim definido pelo zero. Os matemáticos têm, aliás, o mau costume de ver o zero como uma espécie de símbolo de nada - como se o nada pudesse ser representado pelo que quer que seja -, donde resulta que o equilíbrio corresponde ao estado de não-existência, o que é uma conseqüência bastante singular; é sem dúvida por esta razão que eles, ao invés de dizer que duas forças que se equilibram se neutralizam, dizem que elas se destroem, o que contraria a realidade, como veremos por uma observação muito simples.

A verdadeira noção de equilíbrio é bastante diferente disso; para compreendê-la, basta lembrar que todas as forças naturais, e não apenas as forças mecânicas (que, repetimos, não passam de um caso particular) mas também as forças de ordem sutil tanto quanto as de ordem corporal, são ou atrativas ou repulsivas; as primeiras podem ser consideradas como forças compressivas ou de contração e as segundas como forças expansivas ou de dilatação (2); no fundo, isto não passa de uma expressão, neste domínio específico, da própria dualidade cósmica fundamental. É fácil de compreender que, num meio originalmente homogêneo, a toda compressão produzida num ponto corresponderá necessariamente uma expansão equivalente em outro ponto e vice-versa, de modo que devemos sempre considerar dois centros de forças, dos quais um não pode existir sem o outro; é oq eu podemos chamar de lei da polaridade, a qual, sob diversas formas, aplica-se a todos os fenômenos naturais, porque ela deriva igualmente da dualidade dos princípios que regem toda a manifestação; esta lei, dentro do domínio específico de que se ocupam os físicos, é sobretrudo evidente nos fenômenos elétricos e magnéticos, mas ela não se limita a eles. Agora, se estas duas forças, uma compressiva e outra expansiva, agirem sobre um mesmo ponto, a condição para que elas se equilibrem ou se neutralizem, ou seja, para que neste ponto não ocorra nem contração nem dilatação, é que as intensidades destas duas forças sejam equivalentes; não dizemos  iguais, porque elas são de espécies diferentes, e esta é uma diferença realmente qualitativa e não simplesmente quantitativa. Podemos caracterizar as forças por coeficientes proporcionais à contração ou à dilatação que elas produzem, de tal modo que, se considerarmos uma força compressiva e uma força expansiva, a primeira será marcada com um coeficiente n>1, e a segunda por um coeficiente n’<1; cada um destes coeficientes pode ser a densidade que toma o meio ambiente no ponto considerado, sob a ação da força correspondente, em relação à densidade original deste mesmo meio, suposto homogêneo enquanto não sofre a ação de nenhuma força, por uma simples aplicação do princípio da razão suficiente (3). Enquanto não se produz nem compressão nem dilatação, esta relação é forçosamente igual à unidade, pois a densidade do meio não é modificada; para que duas forças estejam em equilíbrio, é preciso portanto que sua resultante tenha como coeficiente a unidade. É fácil ver que o coeficieinte desta resultante é o produto, e não mais a soma como na concepção vulgar, dos coeficientes das duas forças consideradas; estes dois ncoeficientes n e n’ deverão assim ser números inversos um do outro: n’=(1/n), e teremos como condição de equilíbrio que n.n’=1; assim, o equilíbrio será definido, não mais pelo zero, mas pela unidade (4).

Vemos que esta condição do equilíbrio pela unidade, que é a única real, corresponde ao fato que a unidade ocupa o ponto central dentro da série duplamente indefinida dos números inteiros e de seus inversos, enquanto que este lugar central é de certa froam usurpado pelo zero dentro da série artificial dos números positivos e negativos. Bem longe de ser o estado de não-existência, o equilíbrio é ao contrário a existência considerada em si mesm, independentemente de suas manifestações secundárias e múltiplas;  de resto, deve ficar entendido que não se trata do Não-Ser, no sentido metafísico do termo, pois a existência, mesmo em seu estado primordial indiferenciado, não é senão o ponto de partida de todas as manifestações diferenciadas, como a unidade é o ponto de partida de toda a multiplicidade dos números. Esta unidade, tal como a consideramos agora, e na qual reside o equilíbrio, é o que a tradição extremo-oriental chama de “Invariável Meio”; e, segundo esta mesma tradição, este equilíbrio ou esta harmonia é, no centro de cada estado e de cada modalidade do ser, o reflexo da “Atividade do Céu”.

NOTAS

1.      Cf. Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps, cap. II.
2.      Se considerarmos a noção comum das forças centrípetas e centrífugas, veremos sem dificuldade que as primeiras se referem às forças compressivas e as segundas às forças expansivas; da mesma forma, uma força de tração é assimilável a uma força expansiva, porque ela se exerce a partir de seu ponto de aplicação, e uma força de impulsão ou de choque é assimilável a uma força compressiva, porque ela se exerce ao contrário sobre este mesmo ponto de aplicação; mas, vista em relação ao ponto de emissão, é o inverso que acontece, o que aliás concorda com a lei de polaridade. Num outro domínio, a “coagulação” e a “solução” herméticas correspondem respectivamente à compressão e à expansão.
3.      Deve ficar claro que, quando falamos aqui do principio da razão suficiente, estamos considerando-o unicamente em si mesmo, fora de todas as formas específicas e mais ou menos contestáveis que Leibnitz e outros lhe atribuiram.
4.      Esta fórmula corresponde exatamente à concepção do equilíbrio dos dois princípios complementares yang e yin na cosmologia extremo-oriental.



XVIII
QUANTIDADES VARIÁVEIS E QUANTIDADES FIXAS


Voltemos agora à questão da justificativa do rigor do cálculo infinitesimal: já vimos que Leibnitz considera como iguais as qunatidades cuja diferença, sem ser nula, é incomparável com estas próprias quantidades; em outros termos, as quantidades infinitesimais, que não são “nihila absoluta”, são entretanto “nihila respectiva”, e devem assim ser desprezadas em relação às quantidades ordinárias. Infelizmente, a noção dos “incomparáveis” permanece muito imprecisa para que um raciocínio que só se apóie nesta noção baste plenamente para estabelecer o caráter rigoroso do cálculo infinitesimal; sob este aspecto, o cálculo apresenta-se como não mais do que um método de aproximação indefinida, e não podemos dizer, como Leibnitz, que “isto posto, segue-se que o erro é não apenas infinitamente pequeno, mas inteiramente nulo” (1); mas não há outro modo mais rigoroso para se chegar a esta conclusão? Devemos admitir, em todo caso, que o erro introduzido no cálculo pode ser tornado tão pequeno quanto se queira, o que já é bastante; mas, precisamente, este caráter infinitesimal do erro não o suprime completamente quando consideramos, não mais o curso do cálculo, mas os resultados aos quais ele permite chegar finalmente?

Uma diferença infinitesimal, ou seja indefinidamente decrescente, só pode ser a diferença entre duas quantidades variáveis, pois é evidente que a diferença entre duas quantidades fixas só pode ser uma quantidade fixa; a consideração de uma diferença infinitesimal entre duas quantidades fixas não faz sentido. É claro que podemos dizer que duas quantidades fixas “são rigorosamente iguais entre si a partir do momento em que sua diferença possa ser considerada tão pequena quanto se queira (2); ora, “o cálculo infinitesimal, como o cálculo ordinário, não tem em vista senão quantidades fixas e determinadas” (3); ele só introduz as quantidades variáveis a título de auxiliares, com um caráter puramente transitório, e estas variáveis devem desaparecer dos resultados, que só podem exprimai relações entre quantidades fixas. É preciso então, para obter estes resultados, passar da consideração das quantidades variáveis à das quantidades fixas; e esta passagem tem por efeito precisamente eliminar as quantidades infinitesimais, que são essencialmente variáveis, e que só podem se apresentar como diferenças entre quantidades variáveis.

É fácil compreender agora porque Carnot, na definição que citamos precedentemente, insiste na propriedade que possuem as quantidades infinitesimais, tais como são empregadas nos cálculos, de poderem ser consideradas tão pequenas quanto se queira “sem que sejamos obrigados porisso a fazer variar as quantidades cuja relação buscamos”. É que estas últimas devem ser em realidade quantidades fixas; é verdade que elas são consideradas no cálculo como limites das quantidades variáveis, mas estas não desempenham mais do que um papel de simples auxiliares, assim como as quantidades infinitesimais que elas introduzem consigo. O ponto essencial, para justificar o rigor do cálculo infinitesimal, é que, no resultado, só devem figurar quantidades fixas; é preciso então, ao final do cálculo, passar das quantidades variáveis às quantidades fixas, e esta é bem a “passagem ao limite”, mas concebida de modo diverso do que fazia Leibnitz, por não serem a conseqüência ou o “último termo” da própria variação; ora, e é isso o que importa, as quantidades infinitesimais, nesta passagem, eliminam-se entre si, e isto simplesmente em razão da substituição das quantidades variáveis pelas quantidades fixas (4).

Devemos ver nesta eliminação, como queria Carnot, apenas o efeito de uma simples “compensação de erros”? Não pensamos assim, e parece que é possível ver aí em realidade algo a mais, a partir do momento em que fazemos a distinção entre as quantidades fixas e as variáveis como constituindo de certo modo dois domínios separados, entre os quais existe sem dúvida uma correlação e uma analogia, o que é aliás necessário para que se possa passar de uma a outra, como quer que se dê esta passagem, mas sem que suas relações reais possam estabelecer entre elas uma interpenetração ou mesmo uma continuidade qualquer; isto implica de resto, entre estas duas espécies de quantidades, uma diferença de ordem esssencialmente qualitativa, conforme o que dissemos antes a respeito da noção de limite. É esta distinção que Leibnitz jamais fez claramente, e, aqui ainda, é sem dúvida sua concepção de uma continuidade universalmente aplicada que o impediu; ele não podia ver que a “passagem ao limite” implica essencialmente uma descontinuidade, pois, para ele, não havia descontinuidade em parte alguma. É no entanto somente essa distinção que nos permite formular a proposição seguinte: se a diferença de duas quantidades variáveis pode ser tornada tão pequena quanto se queira, as quantidades fixas que correspondem a estas variáveis, e que são vistas como seus respectivos limites, são rigorosamente iguais. Assim, uma diferença infinitesimal não pode jamais tornar-se nula, mas sópode existir entre duas variáveis, e, entre as quantidades fixas correspondentes, a diferença deve ser nula; daí, resulta imediatamente que, a um erro que possa ser tornado tão pequeno quanto se queira no domínio das quantidades variáveis, onde não pode efetivamente tratar-se (em razão do próprio caráter destas quantidades) de nada além de uma aproximação indefinida, corresponde necessariamente um erro rigorosamewnte nulo no domínio das quantidades fixas; está aí unicamente, e não em outras considerações, que, quaisquer que sejam, estão sempre mais ou menos fora ou lateralmente à questão, que rteside essencialmente a verdadeira justificativa do rigor do cálculo infinitesimal.

NOTAS

1.      Fragmento datado de 26 de março de 1676
2.      Carnot, Réflexions sur la Métaphysique du Calcul infinitésimal, pg 29.
3.      Ch. De Freycinet, De l’Analyse infinitésimale, Prefácio, pg. VIII.
4.      Ch. De Freycinet, ibid., pg.220 : « As equações chamadas « imperfeitas » por Carnot são, propriamente falando, equações de espera ou de transição, que são rigorosas na medida em que não sirvam ao cálculo dos limites, e que seriam, ao contrário, absolutamente inexatas, se os limites não tivessem quye ser atingidos efetivamente. Basta lembrar a destinação efetiva dos cálcuulos para não ter nenhuma incerteza sobre o valor das relações pelas quais se passa. É preciso verem cada uma delas, não o que elas parecem exprimir de fato, mas aquilo que elas irão exprimir adiante, quando se tomar os limites ».




XIX
AS DIFERENCIAÇÕES SUCESSIVAS


O que dissemos deixa ainda subsistir uma dificuldade no que concerne a consideração das diferentes ordens de quantidades infinitesimais: como podemos conceber quantidades que sejam infinitesimais, não apenas em relação às quantidades ordinárias, mas em relação a outras quantidades que sejam, elas mesmas, infinitesimais? Aqui ainda, Leibnitz recorreu à noção dos “incomparáveis”, mas esta noção é por demais vaga para que possamos nos contentar com ela, e ela não explica suficientemente a possibilidade das diferenciações sucessivas. Sem dúvida, esta possibilidade pode ser melhor compreendida por uma comparação ou um exemplo tirado da mecânica: “Quanto aos d d x, eles estão para d x como os conatus do peso ou as solicitações centrífugas estão para a velocidade” (1). E Leibnitz desenvolve esta idéia na resposta às objeções do matemático holandês Nieuwentijt, que, mesmo admitindo os dife5enciais de primeira ordem, sustentava que os das ordens superiores não poderiam ser senão nulos: “A quantidade ordinárias, a quantidade infinitesimal primeira ou diferencial, e a quantidade diferencio-diferencial ou infinitesimal segunda, estão entre si como o movimento, a velocidade e a solicitação, que é um elemento da velocidade (2). O movimento descreve uma linha, a velocidade um elemento da linha, e a solicitação um elemento do elemento” (3). Mas isto não passa de um exemplo ou um caso particular, que pode servir de simples “ilustração” e não de argumento, e é preciso fornecer uma justificativa de ordem geral, que este exemplo, num certo sentido, contém aliás implicitamente.

De fato, os diferenciais de primeira ordem representam os aumentos, ou melhor as variações, porque podem estar, conforme o caso, tanto no sentido decrescente como no crescente, que recebem a cada instante as quantidades ordinárias: é o que acontece com a velocidade em relação ao espaço percorrido num movimento qualquer. Do mesmo modo, os diferenciais de uma certa ordem representam as variações instantâneas daquelas da ordem precedente, tomadas por sua vez como grandezas existentes dentro de um certo intervalo: é o que acontece com a aceleração em relação à velocidade. É portanto sobre a consideração dos diferentes graus de variação, mais do que das grandezas incomparáveis entre si, que repousa verdadeiramente a distinção das diferentes ordens de quantidades infinitesimais.

Para deixar claro o modo como isto deve ser entendido, faremos a seguinte observação: podemos estabelecer, dentre as próprias variáveis, distinções análogas à que estabelecemos precedentemente entre as quantidades fixas e as variáveis; nestas condições, para retomar a definição de Carnot, uma quantidade será dita infinitesimal em relação a outras quando pudermos torná-la tão pequena quanto se queira “sem que por isso sejamos obrigados a fazer variar as outras quantidades”. É que, com efeito, uma quantidade que não é absolutamente fixa, ou mesmo que é essencialmente variável (o que é o caso das quantidades infinitesimais, sejam de que ordem forem) pode ser vista como  relativamente fixa e determinada, ou seja susceptível de desempenhar o papel de quantidade fixa em relação a determinadas outras variáveis. É apenas nestas condições que uma quantidade variável pode ser considerada como o limite de uma outra variável, o que, segundo a própria definição delimite, supõe que ela seja considerada como fixa, aomenos sob um certo aspecto, ou seja em relação àquilo de  que ela é o limite; inversamente, uma quantidade poderá ser variável, nnão apenas em si mesma, ou, o que vem a ser o mesmo, em relação às quantidades absolutamente fixas, mas ainda em relação a outras variáveis, na medida em que estas últimas possam ser vistas como relativamente fixas.

Ao invés de falarmos a este respeito dos graus de variação como  já fizemos, podemos falar também de graus de indeterminação, o que, no fundo, seria exatamente a mesma coisa, apenas vista de um ponto de vista algo diferente: uma quantidade, mesmo indeterminada em sua natureza, pode no entanto ser determinada, num sentido relativo, pela introdução de certas hipóteses, que deixam ao mesmo tempo subsistir a indeterminação de outras quantidades; estas últimas serão assim, se podemos dizê-lo, mais indeterminadas que as outras, ou indeterminadas num grau superior, e assim elas poderão ter com aquelas uma relação semelhante à que as qunatidades indeterminadas tem com as quantidades verdadeiramente determinadas. Nós nos limitaremos as estas poucas indicações a esse respeito, pois, por sumárias que sejam, achamos que são suficientes ao menos para permitir compreender a possibilidade da existência de diferenciais de diversas ordens sucessivas; mas resta-nos ainda, em conexão com esta mesma questão, mostrar de forma explícita que não existe realmente nenhuma dificuldade lógica em considerar graus múltiplos de indefinição, tanto na ordem das quantidades decrescentes (que é aquela à qual pertencem os infinitesimais ou os diferenciais), como na das quantidades crescentes, onde podemos considerar as integrais de diferentes ordens, simétricas de certa forma em relação aos diferenciuais sucessivos, o que aliás concorda com a correlação que existe, como já explicamos, entre o indefinidamente crescente e o indefinidamente decrescente. Bem entendido, trata-se aí de graus de indefinição, e não de “graus de infinitude” tal como os entendia Jean Bernoullli, cuja concepção a respeito Leibnitz não ousou nem admitir nem rejeitar; e este caso é mais um em que as dificuldades sãoimediateamente resolvidas pela substituição do pretenso infinito pela noção de indefinido.

NOTAS

1.      Carta a Huygens, 1 de Outubro de 1693
2.      Esta « solicitação » e o que se designa habitualmente pelo nome de « aceleração ».
3.      Responsio ad nonnullas difficultattes a Dn. Bernardo Nieuwwntij circa Methodum diferentialem seu infinitesimalem motas, em Acta Eruditorum de Leipzig, 1695.



XX
 DIFERENTES ORDENS DE INDEFINIÇÃO

As dificuldades lógicas e mesmo as contradições com que se debatem os matemáticos, quando eles consideram quantidades “infinitamente grandes” ou “infinitamente pequenas” diferentes entre si e mesmo pertencentes a ordens distintas, provém apenas do fato de que eles consideram como infinito aquilo que é simplesmente indefinido; é verdade que, em geral, eles parecem se preocupar pouco com essas dificuldades, mas nem por isso elas deixam de existir ou se tornam menos graves, e elas fazem com que sua ciência pareça cheia de ilogismos, ou, se se preferir, de “paralogismos”, que fazem com que perca todo o valor e alcance aos olhos daqueles que não se deixam iludir pelas palavras. Eis alguns exemplos das contradições que são introduzidas pelos que admitem a existência de grandezas infinitas, quando se trata de aplicar esta noção às grandezas geométricas: se considerarmos uma linha, uma reta por exemplo, como infinita, este infinito deve ser menor (e deve mesmo ser infinitamente menor), do que o constituído por uma superfície, tal como um plano, no qual esta linha estará contida em meio a uma infinidade de outras, e este segundo infinito, por sua vez, será infinitamente menor do que aquele da extensão em três dimensões. A própria possiblidade da coexistência de todos estes pretensos infinitos, dos quais alguns estão no mesmo nível e outros estão em níveis diferentes, deveria bastar para demonstrar que nenhum deles pode ser verdadeiramente infinito, mesmo sem entrarmos em nenhuma consideração de ordem metafísica; de fato, nunca é demais repetir, é evidente que, se supomos uma pluralidade de infinitos distintos, cada um deles será limitadoi pelos outros, o que equivale a dizer que eles se excluem mutuamente. Aliás, a bem, dizer, os “infinitistas” (dentre quem esta acumulação puramente verbal de uma “infinidade de infinitos” parece produzir uma espécie de, digamos, “intoxicação mental”) não recuam diante dessas contradições, porque, como já dissemos, eles não vêem dificuldade em admitir que existem diferentes números infinitos, e que, por conseguinte, um infinito pode ser maior ou menos do que outro; mas o absurdo destes enunciados é mais do que evidente, e o fato deles serem utilizados correntemente pelos matemáticos atuais mostra apenas a que ponto a mais elementar noção de lógica perdeu-se em nossa época. Uma outra contradição ainda, não menor do que essa, é a que se apresenta no caso de uma superfície fechada, portanto evidente e visivelmente finita, e que deveria não obstante conter uma infinidade de linhas, como, por exemplo, uma esfera que contenha uma infinidade de círculos; teremos aqui um continente finito, cujo conteúdo seria infinito, o que acontece também aliás quando se sustenta, como o fez Leibnitz, a “infinidade atual” dos elementos de um conjunto contínuo.

Ao contrário, não há contradição alguma em admitir a coexistência de múltiplas indefinidades de diferentes ordens: é assim que a linha, indefinida segundo uma só dimensão, pode ser considerada como constituindo uma indefinidade simples ou de primeira ordem; a superfície, indefinida segundo duas dimensões, e que compreende uma indefinidade de linhas indefinidas, será uma indefinidade de segunda ordem, e a extensão tridimensional, que pode conter uma indefinidade de superfícies indefinidas, será uma indefinidade de terceira ordem. É essencial frisar aqui que dizemos a superfície compreende uma indefinidade de linhas, mas não que ela é constituída por uma indefinidade de linhas, assim como uma linha não é composta por pontos, embora contenha uma multitude indefinida deles; o mesmo acontece com o volume em relação às superfícies, e a extensão tridimensional não é outra coisa que um volume indefinido. Está aí, no fundo, aquilo que já dissemos a respeito dos “indivisíveis” e da “composição do contínuo”; as questões deste tipo, em razão de sua complexidade, são daquelas que fazem mais sentir a falta de uma linguagem rigorosa. Acrescentemos ainda a respeito que, se podemos legitimamente considerar, de um certo ponto de vista, a linha formada por um ponto, a superfície por uma linha e o volume por uma superfície, isto supõe essencialmente que este ponto, esta linha ou esta superfície se deslocam por um movimento contínuo, compreendendo uma indefinidade de posições sucessivas; e isto é bem diferente do que considerar estas posições isoladamente umas das outras, ou seja, os pontos, linhas e superfícies vistos como fixos e determinados, constituindo respectivamente partes ou elementos da linha, da superfície e do volume. Da mesma forma, quando consideramos, em sentido inverso, uma superfície como a intersecção de dois volumes, uma linha como a intersecção de duas superfícies e um ponto como intersecção de duas linhas, deve ficar entendido que estas intersecções não devem ser concebidas como sendo partes comuns a estes volumes, superfícies ou linhas; como dizia Leibnitz, elas são apenas seus limites ou extremidades.

A partir do que já dissemos, cada dimensão introduz um novo grau de indeterminação na extensão, ou seja no continuum espacial considerado como susceptível de crescer indefinidamente em extensão, e obtemos Assim o que podemos chamar de potências sucessivas do indefinido (1); e podemos dizer também que uma indefinidade de uma certa ordem ou a uma certa potência contém uma multitude indefinida de indefinitudes de uma ordem inferior ou a uma potência menor. Na medida em que se trata de indefinido, todas essas considerações e outras do gênero permanecem perfeitamente aceitáveis, pois não existe nenhuma incompatibilidade lógica entre indefinitudes múltiplas e distintas, as quais, por serem indefinidas, não deixam por isso de possuir uma natureza essencialmente finita, portanto perfeitamente capaz de coexistir, como possibilidades particulares e determinadas, no interior da Possibilidade total, a única que é infinita, por ser idêntica ao Todo universasl (2). Estas mesmas considerações só tomam uma forma impossível e absurda pela confusão entre o infinito e o indefinido; assim, trata-se de mais um caso onde, como no caso da “multitude infinita”, a contradição inerente a um suposto infinito determinado esconde, deformando-a até torná-la irreconhecível, uma outra idéia que não tem nada de contraditório em si mesma.

Falamos de diferentes graus de indeterminação das quantidades no sentido crescente; é através desta mesma noção, considerada no sentido decrescente, que justificamos mais acima a consideração das diversas ordens de quantidades infinitesimais, cuja possibilidade compreende-se assim nais facilmente ainda observando-se a correlação que assinalamos entre o indefinidamente crescente e o indefinidamente decrescente. Dentre as quantidades indefinidas de diferentes ordens, aquelas de uma ordem outra que a primeira são sempre indefinidas em relação às das ordens precedentes tanto quanto o são em relação às quantidades ordinárias; é legítimo considerar também, em sentido inverso, quantidades infinitesimais de diferentes ordens, sendo as de cada ordem infinitesimais, não apenas em relação às quantidades ordinárias, mas ainda em relação às quantidades infinitesimais das ordens precedentes (3). Não existe heterogeneidade absoluta entre as quantidades indefinidas e as quantidades ordinárias, nem entre estas e as quantidades infinitesimais; existem apenas diferenças de grau, não de natureza, pois, em realidade, a consideração do indefinido, de qualquer ordem ou em qualquer potência, jamais nos faz sair do finito; é ainda a falsa concepção de infinito que introduz em aparência, entre estas diferentes ordens de quantidades, uma heterogeneidade radical que, no fundo, é totalmente incompreensível. Ao suprimir esta heterogeneidade, estabelece-se uma espécie de continuidade, mas bem diferente daquela que Leibnitz considerava entre as variáveis e seus limites, e muito melhor fundamentada na realidade, pois a distinção das quantidades variáveis e das quantidades fixas implica ao contrário uma verdadeira diferença de natureza.

Nessas condições, as próprias quantidades ordinárias podem, ao menos quando se trata de variáveis, ser consideradas de certa forma como infinitesimais, em relação às quantidades indefinidamente crescentes, pois, se uma quantidade pode ser tornada tão grande quanto se queira em relação a uma outra, esta última se torna inversamente tão pequena quanto se queira em relação à primeira. Introduzimos a restrição de que deve se tratar de variáveis, porque uma quantidade infinitesimal deve sempre ser considerada como essencialmente variável, sendo isto inerente à sua natureza mesma; de resto, quantidades pertencentes a duas ordens diferentes de indefinitude são forçosamente variáveis uma em relação à outra, e esta propriedade de variabilidade relativa e recíproca é perfeitamente simétrica, pois, de acordo com o que dissemos, dá na mesma considerar uma quantidade como sendo indefinidamente crescente em relação a uma outra, ou esta última como indefinidamente decrescente em relação à primeira; sem esta variabilidade relativa, não haveria nem crescimento nem decrescimento indefinido, mas sim relações definidas e determinadas entre as duas quantidades.

É a mesma coisa que acontece quando, numa mudança de situação entre dois corpos A e B, tanto faz (ao menos quando não se considera nada além do que esta mudança) dizer que o corpo A se move em relação ao B, ou inversamente, que o corpo B se move em relação ao A; a noção do movimento relativo não é menos simétrica, a este respeito, do que a variabilidade relativa que consideramos aqui. É porisso que, segundo Leibnitz (que com isto demonstrava a insuficiência do mecanismo cartesiano como teoria física que pretendia fornecer uma explicação dos fenômenos naturais), não se pode estabelecer distinção entre um estado de movimento e um estado de repouso se nos limitarmos a considerar as mudanças de situação; é preciso para tanto fazer intervir algo de outra ordem, a saber a noção de força, que é a causa próxima destas mudanças, e que é a única que pode ser atribuída a um corpo e não a outro, permitindo encontrar neste corpo e apenas nele a verdadeira razão da mudança (4).

NOTAS

1.      Cf. O Simbolismo da Cruz, cap. XIII.
2.      Cf. Os Estados Múltiplos do Ser, Cap. I.
3.      Reservamos, como se faz habitualmente, a denominação de “infinitesimais” para as quantidades indefinidamente decrescentes, à exclusão das quantidades indefinidamente crescentes, as quais, para abreviar, podemos chamar simplesmente “indefinidas”; é curioso que Carnot tenha reunido todas sob o mesmo nome de “infinitesimais”, o que contraria não apenas o uso, mas o próprio sentido inerente à formação do termo. Mesmo conservando o termo “infinitesimal” após definirmos seu significado como fizemos, devemos ainda observar que este termo tem o inconveniente de derivar da palavra “infinito”, o que o torna pouco adequado à idéia que ele exprime realmente; para empregá-lo sem inconveniente, devemos esquecer sua origem e nos fixar unicamente em seu caráter “histórico”, como proveniente da concepção que Leibnitz fazia de suas “ficções bem fundadas”.
4.      Ver Leibnitz, Discours de Métaphysique, cap. XVIII; cf. O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, cap. XIV.



XXI
O INDEFINIDO É INESGOTÁVEL ANALITICAMENTE


Nos dois casos que consideramos, o indefinidamente crescente e o indefinidamente decrescente, uma quantidade de uma certa ordem pode ser vista como a soma de uma indefinidade de elementos, dos quais cada um é uma quantidade infinitesimal em relação a esta soma. Para que se possa falar de quantidades infinitesimais, é de resto necessário que se trate de elementos não determinados em relação à sua soma, e é isto o que acontece a partir do momento em que esta soma é indefinida em relação a estes elementos; isto resulta diretamente do caráter essencial do próprio indefinido, na medida em que este implica forçosamente, como já dissemos, a idéia de “devir”, e por conseguinte uma certa indeterminação. É aliás evidente que esta indeterminação pode ser relativa e só existir de um certo ponto de vista ou em relação a alguma coisa: tal é por exemplo o caso de uma soma que, sendo uma quantidade ordinária, não é indefinida em si mesma, mas apenas em relação aos seus elementos infinitesimais; mas em todo caso, se fosse de outro modo e não fizéssemos intervir a noção de indeterminação, seríamos levados simplesmente à noção dos “incomparáveis”, interpretada no sentido grosseiro do grão de areia em relação à terra, e da terra em relação ao firmamento.

A soma de que falamos aqui não pode ser efetuada ao modo de uma soma aritmética, porque para isto seria preciso que uma série indefinida de adições sucessivas fosse completada, o que é contraditório; no caso em que a soma é uma quantidade ordinária e determinada como tal, é preciso evidentemente (como já dissemos ao formularmos a definição do cálculo integral) que o número (ou antes a multitude) dos elementos cresça indefinidamente ao mesmo tempo em que a grandeza de cada qual descresce indefinidamente e, neste caso, a indefinitude destes elementos é verdadeiramente inesgotável. Mas, se esta soma não pode ser efetuada deste modo, como resultado final de uma multitude de operações distintas e sucessivas, ela pode ao contrário efetuar-se de um só golpe e por uma operação única, que é a integração (1); esta é a operação inversa da diferenciação, porque ela reconstitui a soma a partir de seus elementos infinitesimais, enquanto que a diferenciação vai ao contrário no sentido da soma para os elementos, ao fornecer o meio de formular a lei das variaçôes instantâneas de uma quantidade cuja expressão é dada.

Assim, desde que se trate do indefinido, a noção de soma aritmética não é mais aplicável, e é preciso recorrer  à noção de integração para compensar esta impossibilidade de “numerar” os elementos infinitesimais, impossibilidade que, bem entendido, resulta de sua própria natureza e não de uma imperfeição qualquer de nossa parte. Podemos lembrar de passagem que existe, no que diz respeito à  sua aplicação às grandezas geométricas (que é aliás a verdadeira razão de ser de todo o cálculo infinitesimal), um método de medida que é completamente diferente do método habitual fundado sobre a divisão de uma grandeza em porções definidas, de que já falamos a propósito das “unidades de medida”. Este método corresponde sempre, em suma, a substituir de certo modo o contínuo pelo descontínuo, por este “desdobramento” em porções iguais à grandeza de mesma espécie tomada como unidade (2), a fim de poder aplicar diretamente o número à medida das grandezas contínuas, o que só pode ser feito alterando a sua natureza para torná-la, por assim dizer, assimilável àquela do número. Ao contrário, o outro método respeita, na medida do possível, o caráter próprio do contínuo, considerando-o como uma soma de elementos, não mais fixos e determinados, mas essencialmente variáveis e capazes de decrescer, em sua variação, abaixo de qualquer grandeza assinalável, permitindo assim fazer variar a quantidade espacial entre limites tão aproximados quanto se queira, o que é, levando-se em conta a natureza do número que apesar de tudo não pode ser alterada, a representação menos imperfeita que se pode dar de uma variação contínua.

Estas observações permitem compreender de modo mais preciso em que sentido se pode dizer, como fizemos ao princípio, que os limites do indefinido jamais podem ser atingidos por um procedimento analítico, ou, em outros termos, que o indefinido é, não absolutamente inesgotável por qualquer processo que seja, mas ao menos inesgotável analiticamente. Naturalmente devemos considerar como analítico, a este respeito, o procedimento que consiste em tomar os elementos distinta e sucessivamente para reconstituir um todo: tal é o procedimento para a formação de uma soma aritmética, e é essencialmente nisto que a integração se diferencia dela. Isto é particularmente interessante de nosso ponto de vista, pois vemos aí, por um exemplo bastante claro, o que são as verdadeiras relações entre a análise e a síntese: contrariamente à opinião corrente, segundo a qual a análise seria de certa forma preparatória para a síntrese e conduziria a ela, de tal maneira que se deveria sempre começar pela análise (mesmo quando não se pretende permanecer nela), a verdade é que não se pode chegar efetivamente à síntese partindo da análise; toda síntese, no sentido verdadeiro do termo, é por assim dizer qualquer coisa de imediato, que não é precedida de nenhuma análise e é inteiramente independente dela, assim como a integração é uma operação que se efetua de um só golpe e que não pressupõe a consideração de elementos comparáveis aos de uma soma aritmética; e, como esta soma aritmética não pode fornecer o meio de atingir e esgotar o indefinido, existem, em todos os domínios, coisas que resistem por sua própria natureza a toda análise e cujo conhecimento só é possível pela síntese (3).


NOTAS

1.      Os termos « integral » e « integração », cujo uso prevaleceu, não são de Leibnitz mas de Jean Bernoulli; Leibnitz usava os termos de « soma » e « somatória », que tem o inconveniente de parecer criar  uma assimilação entre esta operação e a formação de uma soma aritmética ; dizemos que parece criar, pois é certo que a diferença entre estas operações não pode ter escapado a Leibnitrz.
2.      Ou a uma fração desta grandeza, mas pouco importa, pois esta fração constitui então uma unidade secundária menor, que se substitui pela primeira, no caso em que a divisão por esta não se faz de modo exato, para obter um resultado exato ou ao menos mais aproximado.
3.      Aqui e no que segue, deve ficar entendido que tomamos os termos « análise » e « síntese » em sua acepção verdadeira e original, que deve ser distinguida daquela, diversa e bastante imprópria, em que se fala correntemente de « análise matemática », e segundo a qual a própria integração, apesar de seu caráter essencialmente sintético, é vista como fazendo parte do que se chama « análise infinitesimal » ; é de resto por esta razão que preferimos evitar o emprego desta última expressão, e nos servirmos apenas de « cálculo infinitesimal » e de « método infinitesimal », que não se prestam a nenhum equívoco deste gênero.




XXII
CARÁTER SINTÉTICO DA INTEGRAÇÃO

Ao contrário da formação de uma soma aritmética, que tem um caráter propriamente analítico, a integração deve ser vista como uma operação essencialmente sintética, na medida em que ela abarca simultaneamente todos os elementos da soma que se trata de calcular, conservando entre eles a “indistinção” que convém às partes do contínuo, a partir do momento em que estas partes, devido à própria natureza do contínuo, não podem ser algo fixo e determinado. A mesma “indistinção” deve ser mantida igualmente, ainda que por outra razão, em relação aos elementos discontínuos que formam uma série indefinida, quando se quer calcular a sua soma, pois, se a grandeza de cada um destes elementos é agora concebida como determinada, seu número não o é, e podemos mesmo dizer que sua multitude ultrapassa todo número; e entretanto existem casos em que a soma dos elementos de uma tal série tende para um dado limite definido quando sua multitude cresce indefinidamente. Podemos dizer, embora possa parecer estranho à primeira vista, que uma tal série descontínua é indefinida por “extrapolação’, enquanto que um conjunto contínuo o é por “interpolação”; o que queremos dizer com isto é que, se tomamos  em uma série descontínua uma porção compreendida entre dois termos quaisquer, não existe aí nada de indefinido, pois esta porção é determinada ao mesmo tempo dentro do conjunto e dentro dos seus elementos, mas que é ao estender-se além desta porção sem jamais chegar a um último termo que esta série é indefinida; ao contrário, num conjunto contínuo, determinado como tal, é no próprio interior deste que o indefinido está contido, porque os elementos não são determinados e porque, sendop o contínuo sempre divisível, não existem elementos últimos; aqssim, sob este aspecto, os dois casos são de certa forma inversos um do outro. A somatória de uma série numérica indefinida não terminaria jamais se todos os termos tivessem que ser tomados um a um, pois não existe um último termo que se possa atingir; no caso em que uma tal somatória seja possível, ela só pode sê-lo por um procedimento sintético, que nos fará de certo modo captar de um só golpe toda uma indefinidade vista em seu conjunto, sem que isto pressuponha a consideração distinta de seus elementos, que aliás seria impossível pelo simples fato de serem eles em multitude indefinida. Do mesmo modo ainda, desde que uma série indefinida nos é dada implicitamente por sua lei de formação, como vimos um exemplo no caso da série dos números inteiros, podemos dizer que ela nos é dada inteiramente de modo sintético, e nem poderia ser de outro modo; com efeito, fornecer uma tal série analiticamente, equivaleria a fornecer distintamente todos os termos, o que é uma impossibilidade.

Portanto, a partir do momento em que considerarmos uma indefinidade qualquer, seja de um conjunto contínuo ou de uma série descontínua, será preciso, em todsos os casos, recorrer a uma operação sintética para poder atingir seus limites; uma progressão por graus não teria nem poderia levar a resultados aqui, pois uma tal progressão só poderia chegar a um termo final com a dupla condição de que este termo e o número de etapas para se chegar a ele sejam ambos determinados. É por isso que não dissemos que os limites do indefinido não podem ser atingidos, impossibilidade que seria aliás injustificável uma vez que estes limites existem, mas apenas que eles nãopodem ser atingidos analiticamente: uma indefinidade não pode ser esgotada por degraus, mas ela pode pode ser compreendida em seu conjunto por uma dessas operações transcendentes das quais a integração nos fornece um exemplo na ordem das matemáticas. Lembremos que a progressão por degraus corresponderia aqui à própria variação da quantidade, diretamente no caso das séries descontínuas, e, para a variação contínua, seguindo-a por massim dizer na medida em que o permita a natureza descontínua do número; ao contrário, por uma operação sintética, colocamo-nos de pronto fora e além da variação, como necessariamente deve ser, a partir do que já dissemos, para que a “passagem ao limite” possa ser realizada efetivamente; em outras palavras, a análise não atinge senão as variáveis, tomadas no próprio curso de sua variação, e somente a sínntese atinge seus limites, o que é aqui o único resultado definitivo e realmente válido, porque é preciso, para que se possa falar em resultado, chegar a qualquer coisa que se refira exclusivamente a quantidades fixas e determinadas.

Deve ficar claro, de resto, que poderíamos encontrar o análogo dessas operações sintéticas em outros domínios que não o da quantidade, pois é óbvio que a idéia de um desenvolvimento indefinido de possibilidades é aplicável a qualquer outra coisa além da quantidade, como por exemplo a um estado qualquer de existência manifestada e às condições, quaisquer que sejam, a que este estado está submetido, quer vejamos nisto o conjunto cósmico em geral ou um ser particular, ou seja, quer nos coloquemos do ponto de vista “macrocósmico” ou do ponto de vista “microcósmico” (1) Podemos dizer que aqui a “passagem ao limite” corresponde à fixação definitiva dos resultados da manifestação na ordem principial; é apenas assim, com efeito, que o ser escapa finalmente à mudança ou ao “devir”, que é necessariamente inerente a toda manifestação enquanto tal; e vemos assim que esta fixação não é absolutamente um “último termo” do desenvolvimento da manifestação, mas que ela situa-se essencialmente fora e além deste desenvolvimento, porque ela pertence a uma outra ordem de realidade, transcendente em relação à manifestação e ao “devir”; a distinção entre a ordem manifestada e a ordem principial corresponde assim analogicamente àquela que estabelecemos entre o domínio das quantidades variáveis eo das quantidades fixas. Ademais, desde que se trata de quantidades fixas, é evidente que nenhuma modificação pode ser introduzida aí por qualquer operação que seja, e portanto, a “passagem ao limite” não tem por efeito produzir nada neste domínio, mas apenas nos dar seu conhecimento; da mesma forma, sendo a ordem principial imutável, não se trata jamais, para atingi-la, de “efetuar” algo que não existiria ainda, mas sim de tomar consciência efetiva daquilo que é, de modo permanente e absoluto. Tivemos naturalmente que, dado o objeto de nosso estudo, considerar nele, particularmente, aquilo que se refere propriamente ao domínio quantitativo, no qual a idéia de desenvolvimento de possibilidades traduz-se por uma noção de variação, seja no sentido do indefinidamente crescente, seja no sentido do indefinidamente decrescente; mas essas poucas indicações mostrarão que todas essas coisas são susceptíveis de receber, por uma transposição analógica apropriada, um alcance incomparavelmente maior do que o que parecem ter em si mesmas, pois, em virtude de uma tal transposição, a integração e as outras operações do gênero aparecem verdadeiramente como um símbolo da própria “realização” metafísica.

Vemos assim o tamanho da diferença que existe entre a ciência tradicional, que permite tais considerações, e a ciência profana dos modernos; e, a este propósito, acrescentaremos ainda outra observação, que se refere diretamente à distinção entre o conhecimento analítico e o conhecimento sintético. A ciência profana, de fato, é essencial e exclusivamente analítica: ela não considera jamais os princípios, e ela se perde nos detalhes dos fenômenos, cuja multiplicidade indefinida e indefinidamente mutante é verdadeiramente inesgotável em si, de modo que ela jamais pode chegar, enquanto conhecimento, a nenhum resultado real e definitivo; ela se atém unicamente aos fenômenos em si mesmos, vale dizer às aparências exteriores, e é incapaz de chegar ao fundo das coisas, como Leibnitz já censurava o mecanicismo cartesiano. Esta aí uma das razões pelas quais se explica o “agnosticismo” moderno, pois, como existem coisas que só podem ser conhecidas sinteticamente, qualquer um que só porceda por análise será levado a considerar estas coisas como “incognoscíveis”, porque elas de fato o são desta maneira, da mesma forma como alguém que se atenha a uma perspectiva analítica do indefinido acreditará que este indefinido é absolutamente inesgotável, enquanto que ele só o é analiticamente. É verdade que o conhecimento sintético é essencialmente aquilo que podemos chamar de um conhecimento “global”, como o de um conjunto contínuo ou de uma série indefinida cujos elementos não são nem podem ser dados distintamente; mas, fora o fato de que isto é tudo o que importa verdadeiramente, sempre se poderá (pois tudo está contido no princípio) retroagir daí à consideração de quantas coisas particulares se quiser, assim como, numa série indefinida dada sinteticamente pelo conhecimento de sua lei de formação, sempre se poderá calcular qualquer um dos seus termos, enquanto que, ao contrário, partindo destas coisas particulares consideradas em si mesmas e em seu detalhamento indefinido, jamais se chegará aos pprincípios; e é nisto que, como dissemos no início, o ponto de vista e a marcha da ciência tradicional são de certo modo inversos dos da ciência profana, como a síntese é o inverso da análise. Está aí aliás uma aplicação desta verdade evidente que diz que, se podemos tirar o “menos” do “mais”, não podemos tirar o “mais” do “menos”; é isto entretanto o que pretende fazer a ciência moderna, com suas concepções mecanicistas e materialistas e seu ponto de vista exclusivamente quantitativo; mas é precisamente por ser uma impossibilidade, que ela é, na realidade, incapaza de fornecer a verdadeira explicação de seja lá o que for (2).

NOTAS


1.      A respeito desta aplicação analógica da noção de integração, cf. O Simbolismo da Cruz, caps. XVIII e XX.
2.      Sobre este último ponto, podemos nos reportar ainda às considerações que expusemos em O Reino da Quiantidade e os Sinais dos Tempos.




XXIII
OS ARGUMENTOS DE ZENON DE ELÉIA
As considerações que precedem contém implicitamente a solução de todas as dificuldades do gênero daquelas que Zenon de Eléia, através de seus célebres argumentos, opunha à possibilidade do movimento, ao menos em aparência e a julgar somente pela forma como estes argumentos são apresentados atualmente, pois é lícito duvidar que este tenha sido no fundo seu verdadeiro significado. É pouco
crível, de fato, que Zenon tenha tido realmente a intenção de negar o movimento; o que parece mais provável, é que ele tenha pretendido provar apenas a incompatibilidade deste com a suposição, admitida notadamente pelos atomistas, de uma multiplicidade real e irredutível existente na natureza das coisas. É portanto contra esta multiplicidade assim concebida que seus argumentos, originalmente, deviam ser dirigidos; não dizemos contra toda multiplicidade, pois é óbvio que a multiplicidade existe também em sua ordem, assim como o movimento que, de resto, como toda mudança, a supõe necessariamente; mas, assim como o movimento, em razão de seu caráter de modificação transitória e momentânea, não pode bastar-se a si mesmo e não passa de ilusão se não se ligar a um princípio superior, transcendente em relação a ele (tal como o “motor imóvel” de Aristóteles), também a multiplicidade será verdadeiramente inexistente se for reduzida a si mesma e se não proceder da unidade, como demos uma imagem matemática ao nos referirmos à formação da série dos números. Ademais, a suposição de uma multipolicidade irredutível exclui forçosamente toda ligação real entre os elementos das coisas, e por conseguinte toda continuidade, pois a continuidade não passa de uma caso particular ou uma forma especial desta ligação; o atomismo, precisamente, implica a descontinuidade de todas as coisas; é com esta descontinuidade que, em definitivo, o movimento é realmente incompatível, e veremos que é isto que demonstram os argumentos de Zenon.

Podemos, por exemplo, fazer o seguinte raciocínio: um móvel jamais poderá passar de uma posição a uma outra, pois, entre as duas, por mais próximas que estejam, sempre haverá uma infinidade de outras posições que terão que ser percorridas sucessivamente no decurso do movimento e, qualquer que seja o tempo empregado para as percorrer, esta infinidade jamais poderá ser esgotada. Certamente, no caso, não se trata de uma infinidade propriamente dita, que não faria nenhum sentido; mas não deixa de ser verdade que se pode considerar, dentro de qualquer intervalo, uma indefinidade de posições do móvel, e que não pode ser esgotada deste modo analítico que consiste em ocupá-las distintamente uma a uma, como quandop se toma cada um dos termos de uma série descontínua. Mas é essa concepção de movimento que está errada, pois ela equivale em suma a ver o contínuo como se ele fosse composto por pontos, ou por últimos elementos indivisíveis, da mesma forma como se consideram os corpos como compostos de átomos; e isto é o mesmo que afirmar que não existe o contínuo, pois, quer se trate de pontos ou de átomos, estes últimos elementos só podem ser descontínuos; é aliás verdade que, sem continuidade, não há movimento possível, e é isto que este argumento prova efetivamente. O mesmo acontece com o argumento da flecha que voa e que no entanto é imóvel, porque, a cada instante, só a vemos em uma única posição, o que equivale a supor que cada posição, em si mesma, pode ser vista como fixa e determinada, e que assim as posições sucessivas formam uma espécie de série descontínua. É preciso de resto lembrar que, de fato, não é verdade que um móvel possa jamais ser visto como ocupando uma posição fixa, e que, ao contrário, quando o movimento é muito rápido, já não se distingue o móvel em si, mas apenas uma espécie de traço de seu deslocamento contínuo: assim, por exemplo, se fazemos girar uma brasa acesa, não vemos mais a forma da brasa, mas apenas um círculo de fogo; que isto se explique pela persistência das impressões na ertina, como o fazem os fisiologistas, ou de qualquer outro modo que se queira, pouco importa, pois o que fica manifersto é que, em tais casos, apreedemos de certa forma diretamente e de maneira sensível a própria continuidade do movimento. Ademais, quando se diz “em cada instante”, na formulação de um tal argumento, está-se supondo que o tempo é formado por uma série de instantes indivisíveis, sendo que a cada qual corresponderia uma posiçlão determinada do móvel; mas na realidae o contínuo temporal tampouco é formado de instantes, como o contínuo espacial não é formado de pontos e, como já indicamos, é poreciso a reunião – ou melhor, a combinação – destas duas continuidades do tempo e do espaço para dar conta da possibilidade do movimento.

Diremos ainda que, para percorrer uma certa distância, é preciso primeiro percorrer a metade desta distância, depois a metade da metade, depois a metade do resto, e assim indefinidamente (1), de modo nos encontraremos sempre diante de uma indefinidade que, vista assim, será de fato inesgotável. Um outro argumento quase equivalente é o seguinte: se supomos dois móveis separados por uma dada distância, um deles, mesmo que se desloque mais depressa do que o outro, jamais o alcançará, pois, quando houver atingido o ponto em que este se achava, ele já ocupará uma segunda posição, separada da primeira por uma distância menor do que a distância inicial; quando primeiro chegar a esta segunda posição, o outro ocupará uma terceira, separada da segunda por uma distância ainda menor, e assim indefinidamente, de tal modo que a distância entre os dois móveis, embora decresça sempre, jamais se tornará nula. A falha essencial desses argumentos, como no caso precedente, consiste em supor que, para atingir um dado termo, todos os graus intermediários devem ser percorridos distinta e sucessivamente. Ora, das duas uma: ou o movimento considerado é verdadeiramente contínuo, e então ele não pode ser decomposto desta forma (pois o contínuo não possui últimos elementos), ou ele compõe-se de uma sucessão descontínua (ou que ao menos possa ser considerada como tal) de intervalos cada qual com uma grandeza determinada, como os passos de um homem em marcha (2), e então a consideração destes intervalos suprime evidentemente a consideração de todas as posições intermediárias possíveis, que não precisarão ser percorridas efetivamente como outras tantas etapas distintas. Por outro lado, no primeiro caso, que é propriamente o de uma variação contínua, o termo desta variação, suposto fixo por definição, não pode ser atingido dentro da própria variação, e o fato de atingi-lo efetivamente exige a introdução de uma heterogeneidade qualitativa, que constitui desta vez uma verdadeira descontinuidade, e que traduz-se aqui pela passagem do estado de movimento ao estado de repouso; isto nos leva à questão da “passagem ao limite”, cuja verdadeira noção vamos colocar a seguir.


NOTAS

1.      Isto corresponde aos termos sucessivos da série indefinida 1/1+ 1/2+1/4+1/8+.....= 2, dada como exemplo por Leibnitz na passagem que citamos mais acima.
2.      Na realidade, os movimentos de que se compõe a marcha são contínuos como qualquer movimento, mas os pontos onde o homem toca o solo formam uma série descontínua, de modo que cada passo marca um intervalo determinado, e assim a distância percorrida pode ser decomposta nestes intervalos, e o solo não é tocado em nenhum ponto intermediário.




XXIV
VERDADEIRA CONCEPÇÃO DA PASSAGEM AO LIMITE

A consideração da “passagem ao limite”, como dissemos, é necessária, senão às aplicações práticas do método infinitesimal, ao menos para a sua justificação teórica, e esta justificação é precisamente a única coisa que nos importa aqui, pois, simples regras práticas de cálculo, que funcionam de certa forma “empírica” e sem que se saiba exatamente por quê, não tem nenhum interesse de nosso ponto de vista. Sem dúvida, para efetuar os cálculos e mesmo para conduzi-los ao final, não há necessidade de se colocar a questão de saber se a variável atinge o limite e como ela pode atingi-lo; mas por outro lado, se ela não o atingir, estes cálculos não terão mais que o valor de simples aproximações. É verdade que se trata aqui de uma aproximação indefinida, pois a própria natureza das quantidades infinitesimais permite tornar o erro tão pequeno quanto se queira, sem no entanto que seja possível suprimi-lo inteiramente, porque estas mesmas quantidades infinitesimais, em seu indefinido decrescimento, não se tornam jamais nulas. Pode-se argumentar talvez que, na prática, isto equivale a um cálculo perfeitamente rigoroso;  mas, além do fato de que não é disto que estamos tratando, pode esta mesma aproximação indefinida fazer sentido se, nos resultados aos quais se quer chegar, não se considere mais variáveis, mas unicamente quantidades fixas e determinadas? Nessas condições, não se pode, ao menos do ponto de vista dos resultados, escapar destas alternativas: ou o limite não é atimngido, e então o método infinitesimal não passa de um grosseiro método de aproximação, ou o limite é atingido, e então estamos diante de um método verdadeiramente rigoroso. Mas nós vimos que o limite, em razão de sua própria definição, jamais pode ser atingido exatamente pela variável; como afirmar então que ele pode ser atingido? De fato, ele pode, não no decurso do cálculo, mas sim nos seus resultados, porque, nestes, só podem figurar quantidades fixas e determinadas, como o próprio limite, e não mais variáveis; é portanto na distinção entre as quantidades variáveis e as quantidades fixas, distinção aliás propriamente qualitativa, que reside a verdadeira justificação do rigor do cálculo infinitesimal.

Assim, repetimos mais uma vez, o limite não pode ser atingido dentro da variação e como termo desta; ele não é o último dos valores que adquire a variável, e a concepção de uma variação contínua que desemboca num “último valor” ou num “último estado” é tão incompreensível e contraditória quanto a de uma série indefinida que chega ao “último termo”, ou de uma divisão de um conjunto contínuo que chega ao “último elemento”. O limite, portanto, não pertence à série dos valores sucessivos da variável; ele está fora desta série, e é porisso que dissemos que a passagem ao limite implica essencialmente uma descontinuidade. Se fosse de outro modo, estaríamos em presença de uma indefinidade que poderia ser esgotada analiticamente, o que não pode acontecer; mas é aqui que a distinção que estabelecemos a respeito mostra sua importância, pois trata-se de um desets casos em que se quer atingir, segundo a expressão que já empregamos, os limites de um certo indefinido; não é sem razão, assim, que a mesma palavra “limite” se encontra, com um outro significado particular, no caso particular que consideramos agora. O limite de uma variável deve verdadeiramente limitar, no sentido geral do termo, a indefinidade de estados ou de modificações possíveis que comporta a definição dewsta variável; e é justamente porisso que é preciso que ele esteja além daquilo que ele deve limitar. Não se poderia esgotar esta indefinidade no próprio curso da variação que a constitui; aquilo de que se trata em realidade, é de passar além do domínio desta variação, na qual o limite não está compreendido, e é este resultado que é obtido, não analiticamente e por etapas, mas sinteticamente e de um só golpe, de um modo “súbito” através do qual se traduz a descontinuidade que se produz então, pela passagem das quantidades variáveis para quantidades fixas (1).

O limite pertence essencialmente ao domíno das quantidades fixas: é porisso que a “passagem ao limite” exige logicamente a consideração simultânea, dentro da quantidade, de duas modalidades diferentes e de certo modo superpostas; trata-se da passagem à modalidade superior, na qual realiza-se plenamente aquilo que, na modalidade inferior, não existe senão como simples tendência, e existe aí, para empregarmos uma linguagem aristotélica, uma verdadeira passagem da potência ao ato, o que não tem nada em comum com a simples “compensação de erros” de Carnot. A noção matemática de limite implica, por sua própria definição, um caráter de estabilidade e equilíbrio, caráter que é o de algo permanente e definitivo, e que não pode evidentemente ser realizado pelas quantidades na medida em que se as considere, na modalidade inferior, como essencialmente variáveis; ele não pode jamais ser atingido gradualmente, mas sim imediatamente pela passagem de uma modalidade à outra, sendo que somente isto permite suprimir todos os estágios intermediários, porque esta passagem compreende e abarca sinteticamente toda sua indefinidade, e porque é através dela que aquilo que não era e nem podia ser mais do que uma tendência em meio às variáveis, afirma-se e fixa-se num resultado real e definido. De outra forma, a “passagem ao limite”  seria sempre um ilogismo puro e simples, pois é evidente que, desde que permaneçamos nos limites das variáveis, não poderemos obter esta fixidez que é própria do limite, onde as quantidades que eram antes consideradas como variáveis perdem este caráter transitório e contingente. O estado das quantidades variáveis é, com efeito, um estado eminentemente transitório e de certa forma imperfeito, pois ele não passa da expressão de um “devir”, cuja idéia encontramos na própria definição de indefinidade, que é aliás estreitamente ligada a este estado de  variação. Da mesma forma o cálculo não pode ser perfeito, no sentido de plenamente terminado, senão quando ele chega a resultados nos quais não cabe nada mais de variável ou de indefinido, mas apenas quantidades fixas e definidas; e já vimos como mesmo isto é susceptível de aplicar-se, por transposição analógica, para além da ordem quantitativa, que não possui então mais do que um valor de símbolo, e exatamente naquilo que concerne diretamente à “realização” metafísica do ser.

NOTAS

1.      Podemos, a propósito deste caráter « súbito »  ou «  instantâneo », lembrar aqui, como comparação com a ordem dos fenômenos naturais, o exemplo da ruptura de uma corda que expusemos mais acima: esta ruptura é também um limite da tensão, mas ela não pode de mmodo algum ser assimilada a uma tensão em qualquer grau que seja.



XXV
CONCLUSÃO


Não é preciso insistir sobre a importância que as considerações que expusemos neste estudo apresentam do ponto de vista propriamente matemático, na medida em que elas trazem a solução de todas as dificuldades que foram levantadas a propósito do método infinitesimal, seja no que concerne ao seu verdadeiro significado, seja quanto ao seu rigor. A condição necessária e suficiente para que esta solução possa ser dada não é outra coisa que a estrita aplicação dos princípios verdadeiros; mas são justamente estes princípios que os matemáticos modernos, como todos os sábios profanos, ignoram totalmente, e esta ignorância é, no fundo, a única razão de  tantas discussões que, nestas condições, podem prosseguir indefinidamente sem chegar jamais a nenhuma conclusão válida, e que apenas embaralham as questões e multiplicam as copnfisões, como o demosntra a querela entre os “finitistas” e os “infinitistas”; teria no entanto sido bem fácil acabar com isso se a verdadeira noção de Infinito metafísico e de sua distinção fundamental em relação ao indefinido tivessem sido colocadas claramente desde o início. O próprio Leibnitz, que teve o mérito de abordar francamente estas questões (o que não fizeram aqueles que vieram depois), não passou de considerações bem pouco metafísicas, e às vezes até tão anti-metafísicas quanto as levantadas pela generalidade dos filósofos modernos; é a mesma falta de princípios que o impediu de responder a seus contraditores de um modo satisfatório e definitivo, e que abriu a porta a todas as discussões ulteriores. Sem dúvida, podemos dizer com Carnot que “se Leibnitz se enganou, foi unicamente em provocar dúvidas sobre a exatidão de sua própria análise, se é que ele mesmo teve estas dúvidas” (1); mas, mesmo que ele não as tivesse, ele não poderia demonstrar rigorosamente esta exatidão, porque seu conceito de continuidade, que não é nem metafísico e nem sequer lógico, o impediria de fazer as distinções necessárias a este respeito e, por conseguinte, de formular a noção precisa de limite, que é, como demonstramos, de uma importância capital para o fundamento do método infinitesimal.

Vemos por tudo isso quanto interêsse tem a consideração dos princípios, mesmo para uma ciência em particular copnsiderada em si mesma, e sem que se proponha a avançar, apoiando-se nesta ciência, além do domínio relativo e contingnente ao qual ela se aplica de maneira imediata; está aí, bem entendido, o que os modernos desconhecem totalmente, ao mesmo tempo em que se vangloriam de ter, em sua concepção profana de ciência, tornado-a independente da metafísica, e até mesmo da  teologia (2), enquanto que a verdade é que eles não fizeram outra coisa do que privá-la de todo valor real enquanto conhecimento. Ademais, se fosse compreendida a necessidade de se ligar a ciência aos princípios, está claro que não haveria mais nenhuma razão para se manter nessa postura, e tudo seria conduzido naturalmente à concepção tradicional segundo a qual uma ciência em particular vale menos pelo que ela é do que pela possibilidade que ela tem de servir de “suporte” para a elevação a um grau superior (3). É o que quisemos mostrar aqui, através de um exemplo característico, dando uma idéia do que seria possível de fazer, ao menos em alguns casos, para restituir a uma ciência, mutilada e deformada pelas concepções profanas, seu valor e seu alcance reais, tanto do ponto de vista do conhecimento relativo que ela representa diretamente quanto em relação ao conhecimento superior ao qual ela pode conduzir por trasnposição analógica; sob este último aspecto, pudemos ver notadamente o que é possível de se alcançar a partir de noções como as de integração e de “passagem ao limite”. É preciso de resto dizer que as matemáticas, mais do que qualquer outra ciência, fornecem assim um simbolismo especialmente apto à expressão de verdades metafísicas, na medida em quem estas são exprimíveis, como sabem aqueles que leram alguns de nossos trabalhos precedentes; é por isso que este simbolismo matemático é de uso tão frequente, seja do ponto de vista tradicional em geral, seja do ponto de vista iniciático em particular (4). Apenas deve ficar entendido que, para que isto possa ocorrer, é preciso antes de mais nada que essas ciências sejam desembaraçadas dos erros e das confusões múltiplas que foram introduzidos pelas falsas visões modernas, e ficaremos felizes se o presente trabalho puder ao menos contribuir de algum modo para este resultado.


NOTAS

1.      Réflexions sur la Métaphysique du Calcul infinitésimal, pg. 33.
2.      Lembramo-nos de haver visto certa vez um « cientista » contemporâneo indignar-se de que na Idade Média se falava da Trindade usando-se para isto a geometria do triângulo; ele parecia não se dar conta de que é isto que ainda hoje acontece no simbolismo da Compagnonage.
3.      Ver por exemplo, a este respeito, sobre o aspecto esotérico e iniciático das «artes liberais», O Esoterismo de Dante, pgs. 10-15.
4.       Sobre o especial valor que tem a esse respeito o simbolismo matemático, tanto numérico quanto geométrico, remetemos às explicações que demos em O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos.

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