quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Mohyiddin Ibn Arabi - A Sabedoria dos Profetas - Parte I

PREFÁCIO


Em algum canto de Damasco, existe uma mesquita de aspecto bastante banal, aonde os muçulmanos não gostam de levar estrangeiros. O interior costuma achar-se deserto, e no entanto uma reforma recente praticamente dobrou sua área coberta. Qual será o interesse que desperta este lugar?
Aqueles que são admitidos nos segredos são convidados a descer por uma longa escada até uma espécie de cripta aonde subitamente revela-se aos olhos um espetáculo inesperado: uma outra mesquita, luxuosa e muito frequentada, esconde-se debaixo da primeira. Os muros são cobertos quase até o alto, por estas magníficas telas azuis que são uma das glórias de Damasco. À luz de antigas lamparinas de vidro que descem do teto, uma atmosfera de silêncio e de recolhimento.
No centro, um túmulo rodeado por uma alta grade em prata admiravelmente trabalhada, sobre o qual descansam como oferendas, embrulhados em linho branco, exemplares do Corão. Em torno, homens e mulheres em meditação. É aí que repousa o Grande Sheikh por excelência, Muhyi-d-Din Ibn ‘Arabi, cujo ensinamento e influência nos traz este livro.
Existem aí também outras tumbas, mais simples. Dois de seus filhos estão lá, além de duas ou três figuras ilustres. Ligeiramente deslocada, uma tumba imponente, de estilo bastante diverso: “Quem está enterrado aí?” – “Alguém que os franceses conhecem bem: o emir Abd-el-Kader, o Argelino, que defendeu seu país contra o exército francês, há bem mais de um século.” Exilado em Damasco por Napoleão III, o terrível adversário do General Bugeaud, livre de suas responsabilidades políticas, passou a consagrar sua vida à busca espiritual. Sufi ardoroso, ele passou o resto dos dias a editar em árabe a obra de seu mestre Muhyi-d-Din.
A coleção à que pertence originalmente este livro – “Espiritualidades vivas” – destina-se a apresentar os movimentos espirituais pela boca dos seus representantes mais qualificados em nossa época; parece ser uma ruptura da regra uma obra escrita no século XIII. Mas o próprio livro de Abd-el-Kader, que constitui uma das obras primas do sufismo moderno, seria inteligível sem um conhecimento daquilo que está na base – e não tínhamos até agora nenhum texto importante de Muhyi-d-Din em língua ocidental.

Jean Herbert
Hadeyah, 1955


INTRODUÇÃO


O sufi Abu Bakr Muhammad ibn al-Arabi, da tribo árabe de Hatim at-Ta’i, nasceu no ano 560 da hégira – ano 1165 da era cristã – em Múrcia, na Andaluzia; ele morreu em 638 (A.D. 1240) em Damasco. Nos meios esotéricos do islam ele é denominado muhyi-d-din, “o vivificador da religião”, e ash-sheikh al-akbar, “o maior dos mestres”. Sua obra doutrinal impõe-se pela profundidade e pela síntese, assim como pela força incisiva de certas formulações, que se referem aos aspectos mais elevados do sufismo. Os livros e os tratados do mestre foram numerosos, a maior parte deles definitivamente perdidos; dentre os que subsistem, os mais célebre são “As Revelações de Meca” (Futuhat al-Makkiyah) e “A Sabedoria dos Profetas” (Fuçuç al-Hikam). O primeiro constitui uma espécie de suma das ciências esotéricas; o segundo, de que apresentamos aqui uma tradução limitada aos capítulos mais importantes, é muitas vezes considerado como o testamento espiritual do mestre, que o escreveu no ano 627 da hégira, em Damasco.
Devemos esclarecer que o título “A Sabedoria dos Profetas” é uma paráfrase, de resto consagrada pelo uso, do título árabe Fuçuç al-Hikam, que significa literalmente “o engaste das sabedorias”. Esta expressão antes resume simbolicamente o livro do que define seu conteúdo, e não pode ser entendida a menos que se conheça previamente o simbolismo de que se trata: al-façç – singular de fuçuç – é o engaste que prende uma pedra preciosa ou o selo (al-khatam) de um anel; como “sabedorias” (al-hikam) devemos entender os aspectos da Sabedoria divina. Os “engastes” que prendem as pedras preciosas da Sabedoria (al-hikmah) eterna, são as “formas” espirituais dos diferentes profetas, suas respectivas naturezas, a um tempo humanas e espirituais, que veiculam este ou aquele aspecto do Conhecimento divino. O caráter incorruptível da pedra preciosa corresponde à natureza imutável da Sabedoria.
A metáfora do engaste que segura a pedra preciosa da Sabedoria e lhe esposa o talhe, diz respeito à naturezahumana de um profeta enquanto recipiente da Sabedoria divina; entretanto, este aspecto do simbolismo, que corresponde à aparência humana das coisas, acha-se compensado e como que expandido pela fórmula que Ibn‘Arabi adota para os títulos das diversas partes de seu livro: “o engaste da Sabedoria divina no Verbo Adâmico”, “o engaste da Sabedoria da Inspiração divina no Verbo de Seth”, “o engaste da Sabedoria da Transcendência no Verbo de Noé”, etc. Segundo estas expressões, o engaste, ou seja a forma individual do profeta, está por sua vez contido no verbo (al-kalimah), que é a realidade essencial e divina deste mesmo profeta; com efeito, por sua identificação “ativa” com a Sabedoria divina, todo profeta é uma determinação imediata do Verbo eterno, que é o “enunciado” primordial de Deus. São os “verbos” que contém os “engastes”, pois é o individual que está contido no universal e não inversamente, apesar das apar~encias humanas. Todo profeta, enquanto homem perfeito, “contém” assim a si mesmo, porque ele “contém” a Sabedoria divina e porque, sob o aspecto da realidade interior e supra-individual, ele "é” esta Sabedoria; ora, esta por sua vez contém a humanidade perfeita do Homem-Deus, e é este aspecto das coisas que corresponde à realidade ontológica, sem anular entretanto a “realidade” aparente do ponto de vista humano. Enfim, não devemos esquecer que a humanidade dos profetas que, por definição, é perfeita e “fora de série”, reflete em sua particularidade – o “engaste” que tal ou qual forma possui – um dado aspecto ou Nome divino, o que equivale a dizer que o profeta se identifica em última análise com este Nome, que “abre o caminho” para a Essência divina indiferenciada.
Esta complexidade de aspectos aparentemente contraditórios, integrados numa síntese supra-racional, é típica do ensinamento de Ibn'Arabi.
A relação entre o “engaste” e a sabedoria que ele contém, e da qual ele por seu lado é o conteúdo, prefigura o tema fundamental dos Fuçul al-Hikam, tema que pode ser resumido da seguinte maneira: a revelação divina conforma-se à receptividade do coração, assim como a luz, em si incolor, torna-se colorida conforme o cristal que a refrata; o aspecto que a Divindade assume depende portanto do seu “recipiente”. Por outro lado, sendo a Realidade divina ativa e criadora, enquanto que o “recipiente” é passivo, qualquer qualidade positiva pela qual Deus Se manifeste, deve emanar d’Ele; são portanto os conteúdos reais da Essência divina que determinam a qualidade de um estado contemplativo. Enfim, segundo um ponto de vista mais amplo, o receptáculo, ou seja o coração do homem, ou mais exatamente seu ser integral e essencial, é ele próprio uma possibilidade divina: é esta possibilidade permanente e informal, o arquétipo, que “recebe” imediatamente a “luz” infinita.
A Realidade divina engloba assim a um tempo o recipiente da revelação e seu conteúdo; não podemos conhecê-la senão conhecendo a lei mesma de Sua manifestação, de modo que a possamos distinguir de Seus receptáculos sem no entanto separar essencialmente, e sob todos os aspectos, os receptáculos da Realidade.
O homem, que é o receptáculo por excelência da revelação divina, deve conhecer a si mesmo em sua possibilidade permanente, para conhecer a Deus. Ora, ele só se conhecerá através de Deus; na medida em que ele próprio é objeto do conhecimento, Deus é seu “sujeito”, o Testemunho transcendente; na medida em que Deus é “objeto” do conhecimento, Ele se “colore” em função do sujeito que O contempla.
Se existe no ensinamento doutrinal de Ibn’Arabi algum sistema, é a permutação de termos opostos e complementares. Este emprego metódico do paradoxo não dá  nenhuma trégua ao espírito do leitor, naturalmente inclinado a fixar-se sobre uma noção definida,“dogmática” se quisermos, e o empurra para aquilo que Ibn’Arabi chama al-hayrah – o “espanto” ou a “perplexidade” – diante do que ultrapassa a ordem racional; esta hayrah, diz ele, deve tornar-se um movimento circular constante ao redor de um ponto mentalmente inatingível, imagem que lembra os últimos versos da Divina Comédia: “...assim estava eu próximo a esta nova visão: eu queria ver como a imagem (humana) convinha ao círculo (divino) e como ela se integra nele. Mas para isto minhas próprias asas não bastavam. Meu espírito foi sacudido por um clarão, e instantaneamente minha vontade se cumpriu. À alta imaginação (espiritual) faltavam aqui as forças; mas logo meu desejo e minha vontade retornaram, como uma roda que é movida uniformemente, pelo Amor que move o sol e as outras estrelas.”
Algumas exposições de Ibn’Arabi podem parecer incoerentes não apenas pela razão que indicamos, mas também porque a inspiração intelectual, evocando simultaneamente inumeráveis verdades solidárias umas às outras, exerce uma espécie de pressão sobre o recipiente demasiado estreito que é o pensamento discursivo e tende a quebrar sua continuidade “horizontal”; pela mesma razão, as epístolas de São Paulo podem também parecer incoerentes. A plenitude intrínseca da visão contemplativa, sem medida comum com o raciocínio, produzirá fórmulas supersaturadas de significados, ao mesmo tempo em que impede de certo modo a construção homogênea e definitiva de um sistema, que seria em todo caso demasiado limitado para “esgotar” um aspecto da Verdade divina. Quanto mais essenciais são as exposições de Ibn’Arabi, mais elas são descontínuas; o caráter originalmente nômade do espírito árabe, sua capacidade mais incisiva do que plástica, é colocada aqui em proveito pela inspiração.
Não voltaremos aqui a falar da terminologia usada pelo mestre, pois já tratamos do assunto em nosso outro estudo sobre o Sufismo, que podemos, a este respeito, considerar como uma introdução aos Fuçuç al-Hikam. Podemos nos referir também à nossa tradução parcial do Al-Insan al-kamil, de Jili, que se apresenta como uma exposição, mais construtiva e mais explícita, de algumas idéias fundamentais contidas nos Fuçuç al-Hikam. De resto, existe entre a linguagem de Ibn’Arabi e a de Jili a diferença que caracteriza em geral a distância mental entre os séculos XII e XIV: aquilo que o primeiro expressa implicitamente, o segundo detalha de modo mais articulado, ao preço de uma certa delimitação das realidades.

Como vimos, cada capítulo dos Fuçuç al-Hikam é dedicado a um profeta, vale dizer a um profeta mencionado no Corão, começando por Adão – considerado pelo Islam como um profeta – até Maomé que “sela” a profecia universal. A cadeia corânica dos profetas abrange ainda o Cristo e alguns profetas dos antigos povos da Arábia, como Salih e Hud, que as escrituras judaico-cristãs não conhecem. A base e o ponto de partida de cada capítulo é uma passagem da escritura, no mais das vezes uma palavra que o Corão atribui a um dos profetas.
Dentre  os 27 capítulos da obra original, escolhemos aqueles que, por seu conteúdo doutrinal, nos pareceram os mais importantes. Omitimos os capítulos ou os trechos cujo conteúdo fosse demasiado específico, ou que comportavam exegeses muito difíceis de expressar em língua européia; pois a interpretação sufi do Corão baseia-se frequentemente num simbolismo verbal que é próprio da língua árabe. E num certo sentido os dois primeiros capítulos, sobre Adão e Seth, resumem por si sós a doutrina metafísica de Ibn’Arabi sob o duplo aspecto da manifestação universal de Deus e da realização espiritual.

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Dentre os livros que foram escritos sobre Muhyi-d-Din Ibn’Arabi em línguas européias, a mais importante e a única que vale a pena é “El Islam cristianizado”, de Miguel Asín Palacios. Esta obra não menciona a metafísica de Ibn’Arabi, mas descreve sua vida e seu método espiritual, de que fornece uma visão preciosa, malgrado a tendência geral já anunciada no próprio título e que esta na base de algumas assimilações abusivas: impressionado com a santidade de alguns sufis, Palacios pretende justificá-los diante do dogma cristão mostrando-os como representantes de uma corrente cristã dentro dos quadros do Islam. Para tanto, ele faz derivar seus métodos das tradições monásticas da cristandade do Oriente. Ora, se é certo que houve contatos entre os primeiros sufis e os contemplativos cristãos – alguns testemunhos islâmicos o confirmam – a maior parte das analogias que Palacios invoca em favor de sua tese são do tipo que encontramos nas civilizações mais diversas. Quanto ao papel fundamental que desempenha o Corão no Sufismo, Palacios pretende que os “elementos judaico-cristãos” contidos no Corão compensam sua falta de autenticidade, como se a verdade pudesse ser veiculada por um engano, ou como se uma via espiritual não fosse um conjunto orgânico, onde tudo está ligado, de modo que o menor elemento pode ter consequências incalculáveis. Seja como for, a obra em questão fornece um aspecto da espiritualidade de Ibn’Arabi que uma obra puramente metafísica como os Fuçuç al-Hikam poderia fazer perder de vista; é preciso sublinhar que nosso livro não dá uma idéia completa da via do mestre. O próprio Ibn’Arabi observa que a perfeição das virtudes espirituais pode provocar a iluminação do coração, mesmo que o homem tenha um conhecimento teórico que não ultrapassa as verdades elementares da doutrina, enquanto que a compreensão da teoria metafísica não garante sua efetiva realização. Acrescentemos que houve sufis que não ensinaram mais que o “polimento do espelho do coração” e que detinham-se quanto às Verdades transcendentes (al-haqaiq), um pouco como certos mestres budistas que se limitam a ensinar a rejeição às limitações psicológicas.
Miguel Palacios publicou também uma tradução espanhola da Risalat al-Quds (“Epístola da Santidade”) de Ibn’Arabi sob o título de “Vidas de Santos Andaluzes”; este livro descreve as vidas de sufis que Ibn’Arabi conheceu na Espanha e que na maior parte foram seus mestres espirituais.
Não é de admirar – dado o caráter obscuro de nosso autor – que o número de escritos seus traduzidos em línguas européias seja tão restrito. Podemos mencionar a tradução inglesa por Reynold A. Nicholson do Tarjuman al-ashwaq (“O Intérprete dos Desejos”), um apanhado de poesias de amor com comentários esotéricos. Uma excelente tradução do Risalat al-Ahadiyah (“Tratado da Unidade”), atribuido a Ibn’Arabi, foi publicado por Abdul Radi na revista Le Voile d’Isis.O texto árabe de três tratados menores de Ibn’Arabi, com o título de Kleinere Schriften des Ibn al-‘Arabi, foi editado por Nyberg, com uma resenha em alemão. Quanto aolivro de Khaja Khan, The Wisdom of the Prophets, não representa mais do que uma paráfrase livre dos Fuçuç al-Hikam.
Para nossa tradução utilizamos a edição litográfica do Cairo, do ano 1309 da hégira (A.D. 1891), feita por Muhammad al-Baruni, com os comentários de ‘Abd ar-Razzaq al-Qashani, e a edição tipográfica de 1304 (A.D. 1887), feita por Jalal ad-din Uskubi, com os comentários de ‘Abd al-Ghani na-Nabulusi e de ‘Abd ar-Rahman al-Jami. Estes três comentadores são sufis bem conhecidos; na-Nabulusi viveu no final do século XII e início do XIII, al-Qashani no século XIII e al-Jami no século XV da era cristã. Não achamos útil traduzir esses comentários, pois as exigências do leitor ocidental a respeito de um comentário diferem muito das de um leitor oriental; em compensação, completamos a tadução com algumas notas e interpolações aonde nos pareceu indispensável; afianl, toda tradução moderna de um texto árabe escrito em linguagem elíptica do século XII necessita um certo trabalho de exegese.



A SABEDORIA DIVINA
(AL HIKMAT AL-ILAHIYAH)
SEGUNDO O VERBO DE ADÃO


Deus (al-haqq) quis ver as essências (a’yan)[1] de Seus Nomes perfeitíssimos (al-asma al-husna), que o número não saberia esgotar – e, se quisermos, podemos igualmente dizer: Deus quis ver Sua própria essência (‘ayn)[2] – em um objeto (kawn) global que, sendo dotado de existencia (al-wujud)[3], resumisse toda a ordem divina (al-amr)[4], a fim de com isto manifestar Seu mistério (sirr) a Si mesmo[5].
Pois a visão (ru’ya)[6] que o ser[7] tem de si mesmo em si mesmo não é parecida com aquela que lhe fornece uma outra realidade da qual ele se serve como de um espelho: ele aí manifesta a si mesmo sob a forma que resulta do “lugar” de sua visão; esta não existiria sem este “plano de reflexão” e o raio que nele se reflete. Deus criou inicialmente o mundo inteiro como uma coisa amorfa[8] e desprovida de graça[9], parecido com um espelho ainda não polido[10]; ora, é uma regra da Atividade divina nunca preparar um “lugar” sem que este receba um espírito divino, o que é expresso [no Corão] pelo sopro do Espírito divino em Adão[11]; e isto não é outra coisa [de um ponto de vista complementar ao primeiro] que a atualização da aptidão (al-isti’dad) que esta forma possui, previamente disposta, para receber a efusão (al-fayd)[12] inesgotável da revelação (al-tajalli)[13] essencial. Não existe assim [fora da Realidade divina] senão um puro receptáculo (qabil)[14]; mas este receptáculo provém, ele mesmo, da “Efusão santíssima” (al-fayd al-aqdas) [vale dizer da manifestação principial metacósmica, onde as “essências imutáveis” são divinamente “concebidas”, antes de sua aparente projeção na existência relativa][15]. Pois a realidade (al-amr)[16] inteira, de seu começo até o fim, provém apenas de Deus, e é para Ele que ela retorna[17]. Assim portanto a Ordem divina (al-amr) exige o polimento do espelho do mundo; e Adão torna-se o próprio brilho deste espelho e o espírito desta forma[18].
Quanto aos anjos [de que trata o relato corânico da criação de Adão][19], eles representam determinadas qualidades desta “forma”[20] do mundo, que os sufis chamam de “Grande Homem” (al-insan al-kabir), de modo que os Anjos estão para este assim como as faculdades espirituais e físicas estão para o organismo humano[21]. Cada uma dessas faculdades [cósmicas] acha-se como que envolta por sua própria natureza; ela não concebe nada que seja superior à sua essência [relativa]; pois há nela algo que pretende ser digno do mais alto escalão e de ocupar um lugar elevado próximo a Deus. Isto acontece porque ela participa [de certo modo] da síntese divina (al-jam’-iyat al-ilahiyah)[22] que rege aquilo que pertence, seja ao lado divino (al-janab al-ilahi)[23], seja ao lado da realidade das realidades (haqiqat al-haqaiq)[24], seja ainda – através deste organismo, suporte de todas as faculdades – da Natureza universal (tabi’at al-kull)[25]; esta engloba todos os receptáculos (qawabil) do mundo, de alto a baixo[26]. Mas isto a razão discursiva não compreenderá, pois esta ordem de conhecimento provém unicamente da intuição divina (al-kashf al-ilahi); é somente através dela que se pode conhecer a raiz das formas do mundo, na medida em que elas são receptivas aos olhos dos espíritos que as regem[27].
É assim que este ser [adâmico] foi chamado Homem (insan) e Representante (khalifah) de Deus. Quanto à sua qualidade de homem, ela designa sua natureza sintética [que contém virtualmente todas as outras naturezas criadas] e sua aptidão para abarcar todas as Verdades essenciais. O homem está para Deus (al-haqq) assim como a pupila está para o olho [a pupila é chamada em árabe “o homem dentro do olho”], pois a pupila é aquilo através de que o olhar se efetua; pois através dele [o Homem Universal] Deus contempla Sua criação e lhe envia Sua misericórdia. Assim o homem é a um tempo efêmero e eterno, ser criado perpétuo e mortal, Verbo que discrimina [por seu conhecimento distintivo] e une [por sua essência divina][28]. Por sua existência, o mundo foi completado. Ele está para o mundo assim como o engaste está para o anel: o engaste porta o selo que o rei aplica aos cofres de seu tesouro; é por isso que o homem [universal] é chamado de representante de Deus, de quem ele guarda os tesouros através de um selo; enquanto o selo do rei estiver colocado sobre os cofres de seu tesouro, ninguém ousará abri-los sem permissão; assim foi confiada ao homem a salvaguarda divina do mundo, e o mundo não cessará de estar guardado enquanto este Homem Universal (al-insan al-kamil) residir nele. Veja assim que, desde que ele desapareça e for transportado dos cofres deste mundo de baixo, nada do que Deus conserva aí ficará, e tudo o que ele contém sairá, e cada parte reencontrará sua parte [correspondente]; o todo será transportado para o outro mundo, e [o Homem Universal] será o selo dos cofres do outro mundo perpetuamente.
Tudo o que implica a “Forma Divina”, vale dizer todo o conjunto dos Nomes [ou Qualidades universais], manifesta-se nesta constituição humana que, por isso, distingue-se [das demais criaturas] pela integração [simbólica] de toda a existência. Daí o argumento divino que condenou os Anjos [que não viam a razão de ser nem a superioridade intrínseca de Adão]; lembremo-nos disto, porque Deus nos exorta pelo exemplo de outrem, e vê como o julgamento atinge aquele a quem atinge. Os anjos não conscientizam aquilo que implica a constituição deste representante [de Deus sobre a terra], e também não conscientizam aquilo que implica a adoração essencial (dhatiyah) de Deus; pois cada qual só conhece de Deus aquilo que ele próprio infere.  Ora, os Anjos não possuem a natureza integral de Adão; eles não realizam os Nomes divinos cujo conhecimento é privilégio dessa natureza e pelos quais esta O “louva” [afirmando seus aspectos de Beleza e de Bondade] e O “proclama Santo” [atestando Sua Transcendência essencial]; eles não sabem que Deus possui Nomes que se subtraem ao seu conhecimento e pelos quais eles não saberiam “louvá-Lo” nem “proclamá-Lo Santo”.
Eles foram vítimas de sua própria limitação quando disseram, a respeito da criação [de Adão sobre a terra]: “Pretendes Tu criar alguém que semeie a corrupção?” Ora, o que é esta corrupção senão a revolta, portanto precisamente aquilo que eles próprios manifestaram? Aquilo que eles disseram de Adão aplica-se à sua própria atitude diante de Deus. De resto, se tal possibilidade [de revolta] não estivesse em sua natureza, eles não a teriam afirmado inconscientemente a respeito de Adão; se eles tivessem tido conhecimento de si mesmos, eles seriam isentos, devido a este conhecimento, dos limites que eles têm; eles não teriam insistido [em sua acusação a Adão] até tornar vão seu proprio “louvor” a Deus e àquilo pelo que eles O proclamaram “Santo”, enquanto que Adão realizava os Nomes divinos que os Anjos ignoravam, de sorte que nem seu “louvor” (tasbih), nem sua “proclamação da Santidade divina” (taqdis) assemelhavam-se ao louvor e à proclamação de Adão.
Isto, Deus o descreve para que estejamos atentos e para que aprendamos a atitude correta em relação a Ele – exaltado seja! -  livres de pretensão a respeito daquilo que realizamos ou abraçamos com nossa ciência individual; de resto, como poderíamos nós pretender possuir seja lá o que for que nos ultrapassa [em sua realidade universal] e que não conhecemos [essencialmente]? Sejamos então atentos a esta instrução divina sobre o modo como Deus castiga os mais obedientes e mais fiéis dos Seus servidores, Seus representantes mais próximos [segundo a hierarquia geral dos seres].
Voltemos agora à Sabedoria [divina de Adão]. Podemos dizer a seu respeito que as Idéias universais (al-umur al-kulliyah)[29], que evidentemente não têm existência individual enquanto tais,  não deixam por isso de estar presentes, inteligivelmente, distintamente, no mental; elas permanecem sempre interiores em relação à existência individual, mas determinam tudo o que pertence a esta. Mais do que isto, tudo o que existe individualmente não é outra coisa do que a expressão destas Idéias universais, sem que estas cessem por isso de serem em si mesmas puramente inteligíveis. Elas são portanto exteriores enquanto determinações implicadas na natureza individual e, por outro lado, interiores enquanto realidades inteligíveis. Tudo o que existe individualmente provém destas Idéias, que permanecem entretanto unidas inseparavelmente ao intelecto e não poderiam ser individualmente manifestadas de modo a sair de sua existência puramente inteligível, quer se trate da manifestação individual no tempo, quer fora dele[30]; pois a relação entre o ser individual e a Idéia universal é sempre a mesma, esteja este ser submetido ou não à condição temporal. Apenas, a Idéia universal assume por sua vez certas condições que são próprias às existências individuais, segundo as realidades (haqaiq) que definem estas mesmas existências. Assim acontece, por exemplo, quanto à relação que une o conhecimento ao conhecedor ou a vida ao vivente: o conhecimento e a vida são realidades inteligíveis, distintas uma da outra; ora, nós afirmamos a respeito de Deus que ele é conhecedor e vivo, e afirmamos igualmente a respeito do Anjo que ele é conhecedor e vivo, e dizemos o mesmo do homem; em todos os casos, a realidade inteligível do conhecimento ou da vida permanece a mesma, e sua relação com o conhecedor ou com o vivente é idêntica em cada caso; e no entanto, dizemos que o conhecimento divino é eterno e que o conhecimento do homem é efêmero; existe portanto qualquer coisa nesta realidade inteligível, que é efêmera por sua dependência em relação a uma condição [limitativa]. Ora, consideremos esta dependência recíproca entre as realidades ideais e as realidades individuais[31]: assim como o conhecimento determina aquele que dele participa – pois o chamamos conhecedor – também aquilo que é qualificado pelo conhecimento determina por sua vez o conhecimento, de modo que ele é efêmero em conexão com o efêmero e eterno em conexão com o eterno; e cada um dos dois lados é, em relação ao outro, a um tempo determinante e determinado. É certo que essas Idéias universais, apesar de sua inteligibilidade, não possuem, como tais, existência [própria], mas apenas uma existência principial; da mesma forma, desde que elas se aplicam ao indivíduo, elas aceitam sua condição (hukm) sem entretanto assumir sua distinção nem sua divisibilidade; elas estão integralmente presentes em qualquer coisa qualificada por elas, assim como a hominidade (a qualidade do homem) apresenta-se integralmente em cada ser particular desta espécie sem sofrer nem a distinção nem o número que afetam os indivíduos, e sem cessar de ser em si mesma uma realidade puramente intelectual.
Ora, como existe uma dependência mútua entre aquilo que possui uma existência individual [ou substancial] e aquilo que não, e que esta é uma relação não-existente[32] como tal, é fácil conceber que os seres estão ligados entre si; pois nesses casos, existe sempre um termo médio, a saber a existência como tal, enquanto que no primeiro caso a relação mútua existe mesmo na ausência de um termo médio.
Sem dúvida, o efêmero não é concebível como tal, vale dizer em sua natureza efêmera e relativa, a não ser em relação a um princípio do qual ele extrai sua própria possibilidade, de modo que ele não tem existência em si mesmo, mas a tem a partir de outra coisa à qual está ligado por sua dependência. E é certo que este princípio é em si mesmo necessário, que ele subsiste por si mesmo e é independente, em seu ser, de toda e qualquer outra coisa. É este princípio que, por sua própria essência, confere ser ao efêmero que dele depende.
Mas, uma vez que o princípio exige de per si a existência do ser efêmero, este se coloca, sob este aspecto, não apenas como “possível” mas também como “necessário”. E uma vez que o efêmero depende essencialmente de seu princípio, é preciso também que ele apareça sob a “forma” qualitativa do princípio, em tudo o que ele tira deste, como os “nomes” e as qualidades, com a exceção apenas da autonomia principial, que não se aplica ao ser efêmero, embora este seja “necessário”; é que ele é necessário em virtude de um outro, não de si mesmo.
Dado que o ser efêmero manifesta a “forma” do eterno, é pela contemplação do efêmero que Deus nos comunica o conhecimento de Si; Ele nos diz no Corão que Ele nos mostra os seus “sinais” no efêmero (“Nós mostraremos Nossos sinais nos horizontes e neles mesmos...” – Corão, XLI, 53). É a partir de nós mesmos que chegamos a Ele; nós não Lhe atribuimos nenhuma qualidade sem que tenhamos nós mesmos esta qualidade, à exceção da autonomia existencial. A partir do momento em que nós O conhecemos por nós e a partir de nós, nós Lhe atribuimos tudo aquilo que atribuimos a nós mesmos, e é por isto, por outro lado, que a Revelação nos foi dada pela boca de intérpretes [ou seja, dos profetas] e que Deus descreve a Si mesmo por meio de nós. Ao contemplá-Lo, nos nos contemplamos, e ao nos contemplar Ele Se contempla, embora sejamos evidentemente muito numerosos em indivíduos e gêneros; nós estamos unidos, é verdade, numa única e mesma realidade essencial, mas não deixa de existir por isso uma distinção entre os indivíduos, sem o que, aliás, não haveria multiplicidade na unidade.
Da mesma forma, embora sejamos qualificados, sob todos os aspectos, pelas qualidades que pertencem a Deus, existe [entre Ele e nós] uma diferença certa, a saber nossa dependência em relação a Ele, naquilo que é do Ser, e nossa conformidade essencial para com Ele, em razão de nossa possibilidade mesma; mas Ele é independente de tudo o que faz a nossa indigência. É neste sentido que é preciso entender a eternidade sem começo (al-azal) e a antiguidade (al-qidam) de Deus, que de resto anulam a primazia (al-awwaliyah) divina que significa a passagem da não-existência à existência: embora Deus seja o Primeiro (al-awwal) e o Último (al-akhir), Ele não pode ser chamado o Primeiro no sentido temporal, pois neste caso ele seria também o Último neste mesmo sentido; ora, as possibilidades de manifestação não têm fim: elas são inesgotáveis. Se Deus é chamado de Último, é porque toda a realidade retorna finalmente a Ele, depois de ser trazida a nós: Sua qualidade de Último é assim essencialmente Sua qualidade de Primeiro, e inversamente.
Sabemos também que Deus descreve a Si mesmo como o “Exterior” (al-zahir) e como o “Interior” (al-batin), e que Ele manifestou o mundo ao mesmo tempo como interior e como exterior, a fim de que conheçamos o “interior” [de Deus] através de nosso próprio interior, e o “exterior” através de nosso exterior. Da mesma forma, Ele descreveu a Si mesmo pelas qualidades da clemência e da cólera, e Ele manifestou o mundo como um lugar de temor e esperança, para que tenhamos medo de Sua cólera e para que esperemos Sua clemência. Ele descreveu a Si mesmo pela beleza e a majestade e nos dotou de temor reverencial (al-haybah) e de intimidade (al-uns). O mesmo acontece para tudo o que se refere a Ele e através de quê Ele Se designou. Ele simbolizou os pares de qualidades [complementares] pelas duas mãos que Ele estendeu para a criação do Homem universal; este reune em si todas as realidades essenciais (haqaiq) do mundo, tanto em seu conjunto quanto em cada um dos seus indivíduos. O mundo é o aparente, e o representante [de Deus nele] é o oculto. É graças a isto que o sultão permanece invisível, e é neste sentido que Deus diz de Si mesmo que Ele se esconde atrás dos véus das trevas – que são os corpos naturais – e os véus de luz – que são os espíritos sutis[33] –; pois o mundo é feito de substância grosseira (kathif) e de substância sutil (latif).
O mundo é para si seu próprio véu, de modo que ele não pode ver Deus porque ele vê a si mesmo; ele não pode desfazer-se de seu véu, sabendo que ele se liga, por sua dependência, ao seu Criador. É que o mundo não participa da autonomia do Ser essencial, de tal modo que ele não O concebe de modo algum. Sob este aspecto, Deus permanece sempre desconhecido, tanto para a intuição quanto para a contemplação, pois o efêmero não tem alcance até aí [ou seja, até o eterno].
Quando Deus disse a Iblis: “O que te impede de te prosternares diante daquele que Eu criei com as Minhas duas Mãos?”[34], a menção às duas mãos indica uma distinção para Adão; Deus faz assim alusão à união em Adão de duas formas, a saber a forma do mundo [análoga às Qualidades divinas passivas] e a “forma” divina [análoga às Qualidades divinas ativas], que são as duas Mãos de Deus[35]. Quanto a Iblis, ele não passa de um fragmento do mundo; ele não recebeu a natureza sintética em virtude da qual Adão é o representante de Deus. Se Adão não tivesse sido manifestado na “Forma” d’Aquele que lhe confiou Sua representação diante dos outros, ele não seria Seu representante; e se ele não contivesse tudo aquilo de que necessita o rebanho que ele deve guardar – é dele que este rebanho depende, e ele deve atender a todas as suas necessidades – ele não representaria Deus para as outras [criaturas].
A representação de Deus não se manifesta senão no Homem universal, cuja forma exterior é criada a partir das realidades (haqaiq) e das formas do mundo, e cuja forma interior corresponde à “Forma” de Deus [ou seja à “soma” dos Nomes e das Qualidades divinas]. Por causa disto, Deus disse dele: “Eu sou seu ouvido e sua vista”; Ele não disse: “sua orelha e seus olhos”, mas distinguiu as duas “formas” uma da outra[36].
O mesmo acontece com qualquer ser deste mundo sob o aspecto de sua própria realidade [transcendente]; entretanto, nenhum ser encerra uma síntese parecida com a que distingue o Representante; e é só por esta síntese que ele ultrapassa os demais.
Se Deus não penetrasse com sua “Forma”[37] a existência, o mundo não existiria; da mesma forma, os indivíduos não seriam determinados se não existissem as Idéias universais. Segundo esta verdade, a existência do mundo reside na sua dependência em relação a Deus. Na realidade cada qual depende [do outro: a “Forma divina” depende da forma do mundo e vice-versa]; nenhum é independente [do outro]; é a pura verdade; nós não nos exprimimos em metáforas. Por outro lado, quando eu falo daquilo que é absolutamente independente, todos saberão o que eu entendo por isto [ou seja, a Essência infinita e incondicionada]. Cada qual [tanto a “Forma divina” quanto o mundo] está assim ligado ao outro, e um não pode ser separado do outro; entendam bem o que eu digo!
Ora, sabemos agora o sentido espiritual da criação do corpo de Adão, ou seja sua forma aparente, e da “criação” de seu espírito, que é a “forma” interior. Adão é assim Deus e criatura. E compreendemos qual é seu grau [cósmico], a saber aquele da síntese [de todas as qualidades cósmicas], síntese em virtude da qual ele é o representante de Deus.
Adão é a “Alma única” (an-nafs al-wahidah) da qual foi criado o gênero humano, segundo a palavra divina [corânica]: “Ó vós, homens, temei vosso Senhor que vos criou de uma alma única, que criou dela sua esposa, e que desdobrou desta dupla muitos homens e mulheres” (Corão, IV, 1). A expressão “temei vosso Senhor” significa: fazei de vossa forma aparente uma salvaguarda de vosso Senhor, e fazei de vosso interior – vale dizer, de vosso Senhor – uma salvaguarda para vós mesmos; todo ato [ou ordem divina] consiste em vergonha e louvação [em negação e afirmação]; sejam pois Sua salvaguarda quanto à vergonha [ou seja, enquanto criaturas limitadas] e tomem-n’O por salvaguarda na louvação[38], para que tenham, dentre todos os seres, a atitude mais justa [perante Deus].
Após havê-lo criado, Deus fez ver a Adão tudo aquilo que colocou nele; e Ele tomou o todo em Suas duas Mãos: uma continha o mundo, a outra Adão e seus descendentes; depois ele mostrou a estes os lugares que eles ocupariam no interior de Adão[39].
Uma vez que Deus me fez ver aquilo que ele colocou no gerador primordial, eu transcrevi neste livro a porção que me foi assinalada, mas não tudo o que eu realizei; pois isto, nenhum livro nem o mundo inteiro conseguiria conter. Ora, dentre as coisas que eu contemplei e que puderam ser transcritas neste livro, na medida em que me encarregou o Enviado de Deus – sobre ele a benção e a paz! – estava a Sabedoria divina segundo o Verbo Adâmico; é dela que tratou este capítulo.


A SABEDORIA
DA INSPIRAÇÃO DIVINA
(AL HIKMAT AN-NAFATHIYAH)
SEGUNDO O VERBO DE SETH


Saibam todos que os dons e os favores [de Deus][40], que se espalham neste mundo por intermédio das criaturas ou sem seu intermédio, distinguem-se, para o homem de gosto espiritual (adh-dhawq), em dons essenciais [como o Conhecimento imediato] e em dons que advêm dos Nomes divinos [como os aspectos divinos da Beleza, da Bondade, da Vida, etc.]. Por outro lado, eles diferem segundo sejam recebidos na seqüência de uma dada demanda, ou se correpondem a demandas indeterminadas, ou ainda se são recebidos sem demanda alguma, e isto independentemente de sua distinção em dons essenciais e dons conforme os Nomes divinos. Existe uma demanda determinada se alguém diz: “Ó Senhor, concedei-me tal coisa”, e se ele só visa esta coisa. Uma demanda não determinada, ao contrário, é aquela de um homem que ora: “Ó Senhor, concedei-me aquilo que é para meu bem, e de todas as partes, sutis e corporais, do meu ser”, sem que ele vise uma coisa em particular.
Quanto àqueles que pedem, eles dividem-se em dois grupos: uns obedecem ao impulso natural de apressar a obtenção [de uma coisa desejada], - pois “o homem foi criado apressado”[41] – e outros pedem porque sabem que existem perto de Deus coisas que, segundo a Presciência divina, não podem ser atingidas senão em virtude de uma demanda; eles se dizem então: “talvez aquilo que eu peço a Deus seja desta espécie”. Seu pedido leva em conta, de uma maneira global, os modos possíveis da Ordem divina; eles não sabem o que a Ciência divina implica, nem o que resulta de sua predisposição (isti’dad) em receber; pois uma das coisas mais difíceis de conhecer é a predisposição de um ser em cada instante singular [de sua vida]; de resto, se ele não estivesse predisposto a uma dada demanda, ele não pediria. Quanto aos contemplativos que não conhecem sua predisposição, eles a reconhecem, na melhor das hipóteses, no instante mesmo em que a vivem; pois, por seu estado de presença (hudur) [com Deus] eles sabem o que Deus lhes dá em cada instante, e sabem que só recebem em virtude de sua predisposição. Eles dividem-se, por sua vez, em duas categorias: uns conhecem sua predisposição por aquilo que receberam; outros conhecem aquilo que receberão devido à sua predisposição; e é este último conhecimento o mais perfeito no interior deste grupo.
Faz parte desta categoria aquele que pede, não para acelerar a obtenção de um dom, nem para abarcar os modos possíveis [do favor divino], mas para conformar-se à ordem divina, expressa pela Palavra: “pedi-Me e Vos responderei!” Este é o adorador (al-abd) por excelência; quando ele pede, seu desejo não se liga à coisa pedida, seja ela determinada ou não, mas visa apenas a conformidade à ordem de seu Senhor. Quando seu estado espiritual exige o abandono e a tranquilidade, ele se contém; assim, Jó e outros foram postos à prova, até que seu estado espiritual exigiu, num dado momento, que eles pedissem que esta fosse levantada; então eles pediram, e Deus os aliviou.
Que o atendimento de uma demanda seja imediato ou paulatino, isto vem de sua medida (qadr) predestinada por Deus; se o pedido é feito no momento predestinado para a resposta, esta é imediata, e se o atendimento está previsto para um tempo ulterior, seja neste mundo seja no outro, a resposta será agendada; entendo o atendimento efetivo da demanda, não como a resposta divina: “Eu estou presente!” [que é sempre imediata]; compreendam bem isto!
Quanto à segunda categoria de dons, que dizemos serem recebidos sem demanda, é preciso esclarecer que entendemos por demanda a prece enunciada em palavras; pois em princípio deve sempre haver demanda, quer ela consista num estado espiritual (hal), quer ela resulte simplesmente da predisposição [íntima] do ser. Da mesma forma, louvar a Deus significa, rigorosamente, pronunciar uma louvação diante d’Ele; mas no sentido espiritual, esta louvação é necessariamente determinada por um estado espiritual, pois o que incita a louvar a Deus é [o assentimento] de um Nome divino, que exprime uma atividade de Deus ou a um aspecto de Sua transcendência. Quanto à sua predisposição, o ser individual não é consciente dela; o que ele experimenta é o estado (al-hal), pois ele conhece aquilo que o incita [a louvar ou a pedir]; a predisposição permanece a coisa mais escondida.
O que impede alguns de pedir, é saber que Deus decidiu seu destino por toda a eternidade; eles prepararam sua morada [sua alma] para acolher aquilo que vier d’Ele, e eles se desembaraçaram de seu ego (an-nafs) e de sua existência individual. Dentre estes, existem aqueles que sabem que a Ciência que Deus tem deles, em cada um de seus estados, identifica-se com aquilo que eles próprio são em seu estado de imutabilidade [principial] antes de sua manifestação; e eles sabem que Deus não lhes dará nada que não resulte desta essência (al-‘ayn), essência que é eles mesmos em seu estado de permanência principial. Eles sabem portanto de quê resulta o Conhecimento divino a seu respeito. Nenhuma categoria de conhecedores de Deus é superior àquela dos homens que realizam assim o mistério da predisposição. Eles dividem-se por seu turno em dois grupos: existem os que conhecem isto de uma maneira global, e outros de modo distinto; os últimos ocupam um grau superior, pois aquele que tem um conhecimento distinto daquilo de que se trata reconhece o que o Conhecimento divino implica a seu respeito, seja que Deus lhe revela aquilo que, pelo conhecimento, resulta de sua própria essência (‘aynuh), seja que Ele revela diretamente sua essência imutável (al-‘ayn ath-thabitah) e o desenrolar sem fim dos estados que daí derivam. É este último conhecedor que ocupa o grau superior, pois em seu conhecimento de si mesmo ele adota o ponto de vista divino, por ser o objeto do seu conhecimento o mesmo [que o objeto do Conhecimento divino]. Entretanto, quando consideramos esta identificação [do conhecimento do contemplativo com o Conhecimento divino] do lado individual, ela se apresenta como uma ajuda divina predestinada a este indivíduo em virtude de um dado conteúdo de sua essência imutável, conteúdo que este ser reconhecerá desde que Deus lhe faça ver; pois, desde que Deus lhe mostra os conteúdos de sua essência imutável que recebe diretamente o Ser[42], isto ultrapassa evidentemente as faculdades da criatura enquanto tal; pois ela é incapaz de apropriar-se do Conhecimento divino que se aplica a estes arquétipos (al-a’yan ath-thabitah) em seu estado de não existência (‘udum), sendo estes arquétipos nada mais do que puras relações essenciais (nisab dhatiyah) sem formas próprias. É sob este aspecto [vale dizer, em razão da incomensurabilidade do Conhecimento divino e do conhecimento individual] que dizemos desta identificação [com o Conhecimento divino], que ela representa uma ajuda divina predestinada a um dado indivíduo.
É sob este mesmo prisma que devemos compreender a palavra divina: “[Nós vos testaremos] até que Nós saibamos...”, [como se Deus não soubesse com antecedência o que farão as criaturas], o que é uma expressão rigorosamente adequada, contrariamente ao que pensam aqueles que não bebem desta fonte; pois a transcendência de Deus afirma-se mais perfeitamente pelo fato de que o Conhecimento parece temporal por sua relação [com qualquer coisa temporal, assim como ela se reconhece como eterna em sua conexão com um objeto eterno]. Este é o aspecto mais universal que um teólogo pode logicamente conceber a respeito desta matéria, a menos que ele considere a Ciência divina como distinta da Essência e atribua a relatividade à Ciência na medida em que ela difere da Essência. Segundo [esta última perspectiva], ele se distingue do verdadeiro conhecedor de Deus, dotado da intuição (kashf) e que realiza o ser (al-wujud).
Mas voltemos agora à distinção dos dons [divinos] em dons essenciais e dons conforme os Nomes. No que toca aos favores e dons essenciais, eles não são prodigalizados senão em virtude de uma revelação (ou irradiação: tajalli) divina; ora, a Essência não se revela senão sob a “forma” da predisposição do indivíduo que recebe esta revelação; jamais acontece de outro modo. A partir daí, a pessoa que recebe a revelação essencial não verá senão sua própria “forma” no espelho de Deus; ele não verá Deus – é impossível que ele O veja – mesmo sabendo que ele só vê sua “forma” em virtude deste espelho divino. Isto é análogo ao que acontece com um espelho corporal: quando contemplamos as formas nele não vemos o espelho, mesmo sabendo que só vemos estas formas – e também nossa própria forma – por causa do espelho[43]. Este fenômeno, Deus o manifestou como símbolo particularmente apropriado à Sua revelação essencial, para que aquele a quem Ele Se revela saiba que não O está vendo; não existe símbolo mais direto e mais conforme à contemplação e à revelação de que se trata[44]. Tente ver por si mesmo o corpo do espelho ao mesmo tempo em que olha a forma que aí se reflete: você jamais verá as duas coisas ao mesmo tempo. Isto é tão verdadeiro que alguns, observando esta lei das formas refletidas nos espelhos [corporais e espirituais], pretenderam que a forma refletida interpõe-se entre a vista do contemplante e o próprio espelho; é o que de mais elevado encontraram no domínio do conhecimento espiritual; mas na realidade a coisa acontece como dissemos [a saber, que a forma refletida não esconde o espelho, mas que este a manifesta]. Aliás, já explicamos este ponto em nosso livro “As Revelações de Meca”. Se você experimentar isto, estará experimentando o limite extremo que a criatura como tal pode atingir [em seu conhecimento “objetivo”]; não aspire além e não canse sua alma em ultrapassar este grau, pois além dele não existe, em princípio e em definitivo, senão a pura não-existência [pois a Essência é não–manifestada].
Deus é assim o espelho no qual você se vê, como você é Seu espelho, no qual Ele contempla Seus Nomes [e seus princípios]. Ora, estes não são outra coisa que Ele próprio, de sorte que a realidade se inverte e se torna ambígua. Alguns de nós implicam a ignorância em seu conhecimento [de Deus]  e citam a respeito a palavra [do califa Abu Bakr]: “Entender que somos impotentes para conhecer o Conhecimento é um conhecimento”. Mas existe entre nós um que conhece [verdadeiramente] e não pronuncia estas palavras; seu conhecimento não implica uma incapacidade de conhecer, ele implica o inexprimível; e é este último que realiza o conhecimento mais perfeito de Deus.
Ora, este conhecimento não foi dado senão ao Selo dos enviados de Deus (khatim ar-rusul)[45], e ao Selo dos santos (kathim al-awliya)[46]; nenhum dos profetas e dos enviados[47] levou-o além do tabernáculo (mishkat)[48] do enviado que é seu selo. Por outro lado, nenhum dos santos o leva além do tabernáculo do santo que é seu selo; de sorte que os enviados também levam seu conhecimento, na medida em que o levam, ao tabernáculo do selo dos santos, pois a função de enviado de Deus e a de profeta – entendo a função de profeta quando ela comporta a promulgação de uma lei sagrada – cessam, enquanto que a santidade não cessa jamais; por isso, os enviados não recebem este conhecimento, na medida em que eles também são santos, senão do tabernáculo do Selo dos santos[49]. Uma vez que é assim [para os enviados e os profetas], como poderia ser diferente para os outros santos? E isto é verdade, embora o Selo dos santos se conforme com a lei sagrada dada pelo Selo dos profetas; isto não traz prejuízo ao seu grau espiritual e não contradiz nada do que dissemos; pois é impossível que ele seja inferior de um certo ponto de vista, mas sendo-lhe superior de outro. O que entendemos por isso acha-se de resto confirmado, na história de nossa religião, pela preferência [devida a uma revelação ulterior] do julgamento de Omar [sobre aquele do Profeta] no que diz respeito ao tratamento dos prisioneiros após a batalha de Badr [tendo o Profeta pretendido aceitar um resgate por eles, enquanto Omar aconselhou a sua libertação ou condenação]; da mesma forma, ela se manifesta no episódio referente à fertilização da tamareira [em que o conselho do Profeta foi preterido, o que o fez dizer: “Vós sois mais entendidos do que eu nos negócios de vosso mundo aqui em baixo”]. Não é necessário que o perfeito ultrapasse os outros sob todos os aspectos; mas os homens espirituais consideram apenas a superioridade sob o aspecto do conhecimento de Deus; quanto às existências efêmeras, seu espírito não se liga a elas. Conscientizem-se do que acabamos de expor!
Quando o Profeta comparou a função profética com um muro de alvenaria quase terminado no qual faltava apenas um tijolo, ele identificou-se com este tijolo[50]. Ele não viu, como ele disse, senão o lugar de um único tijolo a ser preenchido. Ora, o Selo dos santos terá uma visão análoga: apenas, ele perceberá, naquilo que o Profeta simboliza como um muro inacabado, o lugar de dois tijolos a ser preenchido; os tijolos com os quais foi construído o muro parecer-lhe-ão feitos de ouro e prata; e o Selo dos santos verá a si próprio como correpondendo ao lugar que deverá ser preenchido pelos dois tijolos para terminar o muro. A razão pela qual ele se vê sob a forma de dois tijolos é que ele adere exteriormente à lei dada pelo selo dos enviados – que corresponde ao tijolo de prata – e que ele bebe interiormente de Deus aquilo mesmo que, segundo sua forma aparente, apresenta-se como uma adesão à lei que o precedeu; pois ele vê necessariamente a ordem divina (al-amr) tal como ele é – e é isto que corresponde ao tijolo de ouro, símbolo de sua natureza interior – uma vez que o Selo dos santos bebe da mesma fonnte em que bebeu o Anjo que inspirou o enviado de Deus[51]. Se você compreender isto a que eu faço alusão, terá atingido a ciência plenamente eficaz.
Todo profeta, sem exceção, desde Adão até o último, tira assim [suas luzes] do tabernáculo do Selo dos profetas; se a argila deste último não tivesse sido formada antes da dos outros, nem por isso ela estaria menos presente por sua realidade espiritual, conforme a palavra de Maomé: “Eu era profeta enquanto Adão estava ainda entre a água e a argila”. Qualquer outro profeta só se tornou tal quando foi desperto para sua função. Do mesmo modo, o Selo dos santos era santo, “quando Adão ainda estava entre a água e a argila”, enquanto que os demais santos só se tornaram santos após terem realizado as condições de santidade, que são a assimilação das Qualidades divinas que decorrem do aspecto de Deus que se exprime pelos Seus Nomes de “Santo” (al-wali) e “Louvado” (al-hamid) [este último designando o protótipo das qualidades positivas do criado]. O Selo dos enviados liga-se assim, sob o aspecto da santidade, ao Selo dos santos, do mesmo modo como os outros enviados e profetas ligam-se a ele. Pois ele é simultaneamente o santo  (al-wali), o enviado (ar-rasul) e o profeta (an-nabi). Quanto ao Selo dos santos, ele é o santo, o herdeiro (al-warith) que bebe da origem, aquele que contempla todos os graus.
Vamos agora aos dons que decorrem dos Nomes divinos: a misericórdia (rahmah) que Deus prodigaliza às Suas criaturas provém inteiramente dos Nomes divinos: ela é, seja a misericórdia pura, como tudo o que é lícito nos alimentos e alegrias naturais e que não será objeto de vergonha no dia da ressurreição [conforme a palavra corânica: “Dizei: quem então tornará ilícita a beleza que Deus manifestou para seus servidores e as coisas lícitas dos alimentos; dizei: elas são para os que crêem, neste mundo, e elas não estarão sujeitas à reprovação no dia da ressurreição...”] – e são estes dons que provêm do Nome ar-Rahman – seja a misericórdia misturada [com o castigo], como os remédios desagradáveis, mas que funcionam. Estes são os dons divinos, pois Deus [em seu aspecto pessoal ou qualificado] não dá jamais se não for por intermédio de um dos seus guardiães do templo, que são Seus Nomes. Assim, às vezes Deus gratifica o servidor através do nome O Clemente (ar-Rahman), e é então que o dom é livre de qualquer mescla que seria momentaneamente contrária à natureza daquele que o recebe, ou que contrariaria a intenção ou outra coisa [junto ao requerente]; às vezes, Ele dá por intermédio do nome O Vasto (al-wasi), prodigalizando seus dons de uma maneira global, ou do nome O Sábio (al-hakim) visando aquilo que é salutar  [para o servidor] no momento, ou por intermédio do nome Aquele-que-dá-gratuitamente (al-wahhab), dispensando bens sem que aquele que os recebe em virtude deste nome deva compensá-lo por ações de graça ou mérito; ou ainda Ele dá através do nome Aquele-que-restabelece-a-ordem (al-jabbar), considerando o meio cósmico e aquilo de que ele necessita, ou pelo nome O Perdoador (al-ghaffar), considerando o estado daquele que receberá o  perdão; se ele se encontra num estado que mereça o castigo, Ele o protegerá deste castigo, e se ele se acha num estado que não merece castigo, Ele o protegerá de um estado que mereça, e é neste sentido que o Servidor [santo] é considerado salvaguardado ou protegido do pecado. O doador é sempre Deus, no sentido de que é Ele o tesoureiro de todas as possibilidades e que Ele não produz delas senão uma medida predestinada, e pela mão de um Nome que se refira àquela possibilidade. Assim, Ele dá a cada coisa sua constituição própria em virtude de Seu nome O Justo (al-adl) e de seus irmãos [como O Árbitro (al-hakam), Aquele-que-rege (al-wali), O Vencedor (al-qahhar), etc.].
Embora os Nomes divinos sejam indefinidos quanto à sua multitude – pois os conhecemos pelo que deles decorre, que é igualmente indefinido – eles não deixam de se reduzir a um número definido de “raízes” que são as “mães” dos Nomes divinos ou as Presenças [divinas] que integram estes Nomes. Em verdade, não há mais do que uma única e mesma Realidade essencial (haqiqah) que assume todas estas relações e aspectos que designamos pelos Nomes divinos. Ora, esta Realidade essencial faz com que cada um de seus Nomes que se manifestam indefinidamente, comporte uma verdade essencial pela qual ele se distingue dos outros Nomes; é esta verdade distintiva e não a que ele tem em comum com os outros, que é a determinação própria do Nome. Assim como os dons divinos distinguem-se uns dos outros por sua natureza pessoal, embora provenham todos de uma mesma fonte – e aliás é evidente que um não é o outro – ; a razão é precisamente a distinção dos Nomes divinos. Devido à Sua infinitude, não existe na Presença divina absolutamente nada que se repita – e esta é uma verdade fundamental.
Esta é a ciência de Seth, sobre ele a Paz! Seu espírito a comunica a todo espírito que dela proferir alguma coisa, à exceção entretanto do espírito do Selo que recebe esta ciência diretamente de Deus e não por intermédio de um espírito qualquer; mais do que isto, é do próprio espírito do Selo que este conhecimento flui para todos os espíritos, embora ele não seja consciente disto enquanto subsiste em uma forma corporal. Em sua realidade essencial e em sua função puramente espiritual, ele conhece então diretamente tudo o que ele ignora devido à sua constituição corporal. Ele é assim simultaneamente o conhecedor e o ignorante, e podemos atribuir-lhe qualidades aparentemente contrárias, assim como o seu princípio [divino] que é sua própria essência (aynuh), é a um tempo terrível e generoso, o Primeiro e o Último.
É em virtude dessa ciência que Seth recebeu, seu nome que significa “o presente”, vale dizer o presente de Deus, pois ele detém a chave do dom divino em todos os seus diferentes modos e sob todos os seus aspectos. É assim, porque Deus fez de Seth um presente para Adão: ele foi o primeiro presente gratuito que Deus fez [ou seja, o primeiro presente que não exigiu, da parte de quem recebe, uma compensação qualquer], e foi o próprio Adão quem o recebeu, pois o filho é a realidade secreta de seu gerador; é dele que ele provém e é para ele que ele retorna, ele não o escolhe como uma coisa estranha a si mesmo. É o que compreenderá aquele que vê as coisas do ponto de vista divino. De resto, todo dom, no universo inteiro, manifesta-se segundo esta lei: ninguém recebe nada de Deus, ou seja, ninguém recebe nada que não venha de si mesmo, qualquer que possa ser a variação imprevista das formas. Mas poucos sabem disto, apenas alguns iniciados conhecem esta lei espiritual. Se você encontrar alguém que a conhece, pode ter confiança nele, pois um tal homem é a quintessência pura e o eleito entre os eleitos dos homens espirituais.
Cada vez que um intuitivo contempla uma forma que lhe comunica um novo conhecimento que ele não tinha podido captar antes, esta forma será uma pura expressão de sua própria essência (ayn) e nada que seja estranho a ele. É da árvore de sua própria alma que ele colhe o fruto de sua cultura, assim como sua imagem refletida numa superfície polida não é outra coisa que não ele, embora o lugar da reflexão – ou a Presença divina – que lhe apresenta sua própria forma, provoque inversões segundo a Verdade essencial inerente a tal Presença [divina][52]. É assim que, no caso de um espelho concreto, ele reflete as coisas segundo suas verdadeiras proporções, o grande como grande, o pequeno como pequeno, o alongado como alongado e o que se move em movimento, mas pode acontecer também [segundo sua constituição ou segundo a perspectiva] que ele inverta as proporções; da mesma forma é possível que um espelho reflita as coisas sem a inversão habitual, mostrando o lado direito do contemplante do seu lado direito, enquanto que em geral o lado direito da imagem refletida se ache diante do lado esquerdo daquele que se olha; podem haver exceções à regra, como nos casos em que as proporções se invertem; e tudo isto aplica-se igualmente aos diversos modos da Presença [divina] na qual há lugar para a revelação [da “forma” essencial do contemplante], e que nós comparamos ao espelho.
Aquele que conhece sua predisposição, conhece por isso mesmo aquilo que receberá. Ao contrário, aquele que conhece o que recebe não conhece necessariamente sua predisposição, a menos que a conhecesse antes de haver recebido, ainda que de uma maneira geral.
Alguns pensadores intelectualmente fracos, partindo do dogma de que Deus faz tudo o que quiser, declararam admissível que Deus possa agir contra os princípios e contra aquilo que é a realidade (al-amr) em si [ou seja, em seu estado principial – como se a manifestação de Deus não procedesse das possibilidades eternamente presentes no Ser divino e no Intelecto universal]. Devido a este fato, eles chegam a negar a possibilidade como tal e a não aceitar [como categorias lógicas e ontológicas] senão a necessidade absoluta [a saber, a da própria “existência” de Deus] e a necessidade de outrem [ou seja a necessidade relativa]. Mas o sábio admite a possibilidade, da qual ele conhece o grau ontológico; evidentemente, a possibilidade [como tal] não é o possível [no sentido daquilo que pode ou não existir]; e como poderia, se ela é essencialmente necessária em razão de um [princípio] outro que não ela? Mas enfim,  de onde vem então esta distinção entre ela e seu princípio que a torna necessária [e de que ela constitui precisamente uma possibilidade de manifestação]? Mas ninguém conhece a distinção de que se trata, salvo os conhecedores de Deus.
É sobre as pegadas de Seth que se manifestará o último nascido deste gênero humano; ele herdará os mistérios de Seth; não haverá outro ser engendrado depois dele, de modo que ele será o selo dos engendrados [como Seth foi o primeiro santo]. Com ele nascerá uma irmã; ela sairá antes dele [enquanto que a primeira mulher foi manifestada depois do primeiro homem]; ele a seguirá, com sua cabeça aos pés de irmã. Seu local de nascimento será a China [o país mais distante na direção do Oriente]; e ele falará a língua de seu país natal. Nestes dias, a esterilidade se espalhará entre as mulheres e os homens; de modo que haverá muita cohabitação sem geração. Ele chamará as pessoas para Deus, mas não haverá resposta. Quando Deus levantar seu espírito e levantar o último crente destes tempos que virão, aqueles que sobreviverem serão como feras, e não distinguirão o lícito do ilícito; eles atuarão segundo suas puras inclinações naturais, seguindo o desejo independente da razão e da lei; é sobre eles que soará a hora final.


A SABEDORIA
DA TRANSCENDÊNCIA
(AL HIKMAT AS-SUBUHIYAH)
SEGUNDO O VERBO DE NOÉ
(EXTRATO DO CAPÍTULO)


Para os conhecedores das Verdades divinas (ahl al-haqaiq) afirmar [unilateralmente] que Deus é incomparável com as coisas, equivale precisamente a limitar e tornar condicional a concepção da Realidade divina [por assim excluir dela as qualidades das coisas]; aquele que nega toda similitude diante de Deus, sem se afastar deste ponto de vista exclusivo, manifesta, seja ignorância, seja falta de “tato”(adab). O exoterista que insiste unicamente sobre a transcendência divina (at-tanzih) [à exclusão da imanência (at-tashbi)], calunia Deus e seus enviados – sobre eles a Benção divina! – sem perceber; imaginando atingir o alvo, ele erra totalmente; pois é daqueles que não aceitam senão uma parte da revelação divina e rejeitam a outra[53].
Sabemos que as Escrituras reveladas como lei comum (shari’ah) exprimem-se, ao falar de Deus, de maneira que a maioria dos homens possa captar o sentido mais próximo, enquanto que a elite compreenderá todos os sentidos, a saber todo o significado incluído em cada palavra conforme às regras da língua empregada[54].
Pois Deus Se manifesta em cada criatura de uma maneira particular. É Ele que Se revela em cada significado, e é Ele que permanece escondido a qualquer compreensão, salvo para aquele que reconhece no mundo a “forma”[55] e a ipseidade (huwiyah) de Deus, e [que que vê o mundo como] o Nome divino O Aparente (az-zahir). Da mesma forma, concebemos Deus idealmente como o espírito inerente a toda manifestação, de sorte que ele é O Interior (al-batin) sob este aspecto, e que ele está para toda forma manifestada neste mundo assim como está o espírito que rege a forma corporal que dele depende. A definição lógica do homem, por exemplo, compreende tanto o exterior como o interior; o mesmo acontece para toda as coisas definíveis. Quanto a Deus, Ele Se “define” pela soma de todas as “definições” possíveis[56];  ora, as “formas” do mundo são indefinidas, não se pode compreendê-las todas nem conhecer a definição lógica de cada qual, salvo quando elas cabem na definição de um dado mundo [ou microcosmo]. Devido a isto, ignoramos a “forma” lógica de Deus, pois só a poderíamos conhecer se conhecêssemos a definição de todas as “formas”, o que é uma impossibilidade; “definir” Deus, portanto, é impossível.
Da mesma forma, aquele que compara Deus sem ao mesmo tempo afirmar sua incomparabilidade, atribui-Lhe limites e não O reconhece mais. Mas aquele que une em seu conhecimento de Deus os pontos de vista da transcendência e da imanência, e que atribui a Deus os dois “aspectos” globalmente – pois é impossível concebê-los em detalhe, pelo fato mesmo de que não se pode abarcar todas as “formas” do universo – conhece-O verdadeiramente, vale dizer que O conhece globalmente e não apenas distintivamente; e é por isso, aliás, que o Profeta liga o conhecimento de Deus ao conhecimento de si mesmo, ao dizer que “aquele que conhece a si mesmo conhece seu Senhor”. Por outro lado, Deus diz no Corão: “Nós lhes mostraremos Nossos sinais nos horizontes” – a saber no mundo exterior – “e neles mesmos” – em sua essência – “até que se lhes torne evidente que [tudo] é Deus (al-haqq)” (XLI, 53), no sentido que somos Sua forma e que Ele é nosso espírito, de sorte que somois [em nossa totalidade] para Ele aquilo que é a forma corporal para nossos corpos, e que Ele está para nós assim como o espírito que rege a forma de nossos corpos.
Nossa definição implica a um tempo nosso exterior e nossa realidade interior; pois a forma [corporal] que resta, quando o espírito que a regia a deixa, não é mais um homem; falamos dela como de uma forma que tem aparência humana, mas que não se distingue [essencialmente] de uma forma feita em madeira ou pedra, e que só porta o nome de homem por extensão do termo e não no sentido próprio. Ora, Deus jamais pode abstrair-Se das formas do mundo [pois elas cessariam imediatamente de existir], de sorte que elas estão necessariamente compreendidas na “definição” da Divindade (uluhiyah), enquanto que a forma exterior do homem apenas o define acidentalmente, enquanto ele permanece nesta vida. Assim como a forma exterior do homem “louva com sua língua” o espírito e a alma que a regem, também as formas do mundo “glorificam” a Deus, embora não compreendamos seu louvor [conforme o Corão: “não há nada que não O glorifique, mas vós não compreendeis seu louvor” (XVII, 44)], e isto para que não abarquemos todas as formas deste mundo. Cada uma delas é uma língua que pronuncia o louvor a Deus; e é por isso que [o Corão] diz: “Glória a Deus, o Mestre dos mundos” (I,2), o que significa que toda louvação em última instância refere-se a Ele, de sorte que Ele é simultaneamente O que louva e O que é louvado.
Se afirmarmos a transcendência divina, condicionaremos [nossa concepção de Deus], e se afirmarmos Sua imanência, a delimitaremois; mas se afirmarmos simultaneamente um e outro ponto de vista, seremos isentos de erro e um modelo de conhecimento.
Aquele que afirma a dualidade [de Deus e do mundo] cai no erro de associar qualquer coisa a Deus; e aquele que afirma a singularidade de Deus [excluindo de Sua realidade tudo o que se manifesta como múltiplo] comete a falta de restringi-la a uma unidade [racional]. Guardemo-nos da comparação quando considerarmos a dualidade; e guardemo-nos de abstrair a Divindade quando considerarmos a Unidade!
Não somos Ele; e entretanto somos Ele; nós O veremois nas essências das coisas, soberano e condicionado ao mesmo tempo[57]...



A SABEDORIA SANTA
(AL HIKMAT AL-QUDDUSIYAH)
SEGUNDO O VERBO DE ENOCH (IDRIS)
(EXTRATO DO CAPÍTULO)


...Um dos Nomes de perfeição de Deus é O Elevado (al-‘ali). Mas em relação a que é Ele elevado, pois não há nada [no universo] além d’ Ele? [As existências relativas não podem ser tomadas como termo de comparação com o Ser supremo]. É Ele essencialmente O Elevado ou o é em relação a alguma coisa? Ora, tudo não é senão Ele. Ele é portanto elevado em relação a Si mesmo. Por outro lado, como Ele é o Ser de tudo o que existe, as existências efêmeras são, elas também, elevadas em sua essência, pois elas são essencialmente  idênticas a Ele.
Deus é O Elevado sem relatividade; pois as essências [dos seres] (al-a’yan) que não passam [em si mesmas] de não-existência (‘adam), e que são imutáveis neste estado, não chegam nem a sentir o odor da existência (al-wujud)[58]; elas permanecem tais como eram, apesar da multiplicidade das formas nas realidades manifestadas. Quanto à determinação essencial (al-‘ayn) do Ser, ela é única entre todas e em todas. A multiplicidade não existe senão nos Nomes, que não passam de relações e realidades não-existentes (umurun’adamiyah). Não há mais que a determinação única da Essência, que é a Elevada em Si mesma, sem relação com o quer que seja. E sob este aspecto não existe elevação relativa; mas como os aspectos do Ser comportam uma hierarquia entre si, a elevação relativa acha-se implicada na determinação única [do Ser] em virtude de seus aspectos múltiplos. Por esta razão dizemos do relativo que ele é Ele [ou seja, Deus] e que ele não é Ele, e que nós somos nós e não o somos.
Abu Sa’id al-Kharraz, que é ele próprio um dos múltiplos aspectos de Deus e uma de Suas línguas, diz que Deus não pode ser conhecido [ou “definido”] senão pela síntese de afirmações antinômicas; pois Ele é o Primeiro e o Último, o Exterior e o Interior; Ele é a essência daquilo que se manifesta e a essência daquilo que permanece oculto quando de Sua manifestação. Não há ninguém fora d’Ele que O possa ver, e ninguém de quem Ele possa se esconder; é Ele que Se manifesta a Si mesmo, e Ele que Se esconde de Si mesmo. É Ele que se chama Abu Sa’id al-Kharraz e outros nomes efêmeros. O Interior diz “não” quando o Exterior diz “Eu”; e o Exterior diz “não” quando o Interior diz “Eu”. O mesmo acontece com todas as antinomias; entretanto, não existe senão um que fala, e Ele é Seu próprio ouvinte.
Assim, as realidades se misturam: a unidade produz os números segundo sua série conhecida; e os números por sua vez subdividem a unidade. O número não é manifestado sem aquilo que é contado; e aquilo que está sujeito ao número comporta de um lado a não-existência e de outro a existência; pois uma coisa pode ser ausente sobre o plano sensível e existente de uma maneira inteligível. Existe necessariamente polaridade entre o número e aquilo que está sujeito ao número; e existe necessariamente uma produção dos números a partir da unidade, de modo que cada número representa uma idéia única. Cada número, de fato, abaixo da dezena ou acima dela, até o indefinido, é em si mesmo único; sua realidade essencial (haqiqah) não é concebível quantitativamente, pela adição de unidades; o binário, por exemplo, é uma idéia única, assim como o ternário, e da mesma forma toda a série indefinida dos números; ora, se cada número representa uma verdade única, nenhum deles pode essencialmente compreender os outros, mas a adição os toma a todos pela ordem e os afirma a todos em virtude desta ordem, que comporta vinte graus [as unidades e as dezenas] que se combinam. Assim, não se cessa de afirmar aquilo mesmo que se nega a priori [ou seja, afirma-se continuamente a composição sucessiva da série dos números partindo da idéia única e indivisível que cada número comporta]. Aquele que compreende o que dizemos dos números, e que sua negação é ao mesmo tempo sua afirmação, sabe que Deus, que é transcendente no sentido de tanzih, é [também] criatura “comparável” no sentido de tashbih – embora a criatura seja diferente do Criador.
A Realidade é Criador criado [ou seja o Criador imanente à criatura]; ou bem, a Realidade é criatura criadora [pois Deus não se manifesta senão em vista da criatura]. Tudo isto não passa da expressão de uma só essência; não, é a um tempo a essência (al-‘ayn) única e as essências (al-a’yan) múltiplas. Considerem portanto aquilo que vêem!
[Isaac disse a seu pai Abraão que se preparava para sacrificá-lo:] “Ó meu pai, faz o que te foi ordenado”. Ora, a criança é [simbolicamente] a essência de seu gerador. Quando Abraão viu num sonho [inspirado] que ele imolaria seu filho, ele viu na realidade sacrificar a si mesmo. E quando ele trocou seu filho pela imolação de um cordeiro, ele viu a realidade, que se manifestara sob a forma humana, manifestar-se sob a forma do cordeiro. É portanto assim que a essência do gerador se manifestou sob a forma da criança, ou mais exatamente sob o aspecto da criança.
“[É Ele quem vos criou de uma só alma] e que dela criou sua companheira...” (Corão, IV, 1). Em outros termos, Adão desposou sua própria alma; dele sairam tanto sua mulher como seu filho. É assim que a Ordem [divina] é única dentro da multiplicidade.
O mesmo acontece com a Natureza (at-tabi’ah) e com aquilo que dela procede [produção que é inversamente análoga à manifestação da Essência]. A Natureza jamais diminui devido às suas produções, nem aumenta devido à sua reabsorção. Aquilo que ela produz não é outra coisa que ela mesma, embora ela não seja, como tal, idêntica às suas produções de variadas formas. Uma, por exemplo, é fria e seca, outra quente e seca[59]; elas são então homogêneas pela secura, mas distintas por uma outra qualidade. É a qualidade comum que é a Natureza – ou antes: a determinação primordial [de todas essas qualidades]. O mundo da Natureza consiste em formas [variadas que se refletem] num espelho único; ou melhor, é uma única forma [que se reflete] em espelhos diversos.
É assim que não existe perplexidade (hayrah) nas perspectivas contraditórias. Mas aquele que compreende o que dissemos não cai na perplexidade, mesmo quando ele passa de um estado de conhecimento a um outro; pois [a mudança de perspectiva] não provém senão da condição inerente ao “lugar”  [mahall, que significa a parada espiritual, o estado receptivo interior]; e o “lugar” [neste sentido] não é senão uma determinação imediata da essência (al-‘ayn ath-thabitah) [do ser que contempla a Deus]. É em virtude desta [determinação] que Deus Se diferencia no “teatro” de Sua revelação, de modo que Ele assume uma por uma diversas condições; aquilo que O determina [aparentemente] não é senão a determinação essencial na qual Ele Se revela. Não há nada além disto. Sob um certo aspecto, Deus é criatura – então, interpretem! – e Ele não é criatura sob outro aspecto – portanto, lembrem-se!
Quanto ao Elevado em Si mesmo, Ele é aquele que possui a perfeição [ou a infinitude, al-kamal] na qual “mergulham” todas as realidades existenciais e todas as relações não-existentes [em si mesmas], no sentido de que nenhum destes “atributos” Lhe faz falta, seja ele positivo, lógica ou moralmente, ou negativo, segundo o ccstume, a razão ou a moral. Ora, esta infinitude não pertence senão Áquele que é designado pelo nome de Allah [que é o nome da Essência] exclusivamente; quanto ao que é designado por um outro nome, é, seja um de Seus “lugares de revelação” (majla), seja uma “forma” que Lhe é inerente; se é um “lugar de revelação”, ele comporta um grau hierárquico, pelo fato mesmo que existe distinção entre aquele que se revela e aquele em que ele se revela; ao contrário, se se trata de uma “forma” [no sentido de uma síntese de Qualidades, contida] em Deus, esta “forma” será a expressão imediata do Infinito, por ser ela essencialmente idêntica ao que se revela nela [de sorte que toda distinção hierárquica provém, deste ponto de vista, da substância receptiva (al-qabil). Tudo o que pertence a Allah, pertence assim igualmente a esta “forma” [qualitativa]. Entretanto, não dizemos desta forma que ela é Ele; mas não dizemos que ela seja outra coisa do que Ele.
É a isto que o imam Abu-l-Qasim ibn Fasi aludiu em seu livro “Tirando as sandálias” [de Moisés diante da sarsa ardente] ao dizer: “em verdade, cada Nome divino é qualificado por todos os Nomes divinos”. Isto é exato: cada Nome, de fato, afirma as essências ao mesmo tempo que a Essência, conforme seu significado: na medida em que ele demonstra a Essência, todos os outros Nomes estão implicados nela, e na medida em que ele afirma um significado particular, ele se distingue dos outros, como “O Criador” distingue-se de “Aquele-que-dá-a-forma”, e assim por diante. O Nome é assim uma parte essencialmente idêntica ao Nomeado e, por outro lado, é distinto d’Ele por seu significado particular.


A SABEDORIA DO AMOR APAIXONADO
(AL HIKMAT AL-MUHAYMIYAH)
SEGUNDO O VERBO DE ABRAÃO


Abraão é chamado [no Corão] de “Amigo íntimo” [de Deus: khalil Allah][60] porque ele “penetrou” e assimilou as Qualidades da Essência divina, como a cor que penetra um objeto colorido, de modo que o acidente confunde-se com a substância, e não como algo extenso que ocupa um dado espaço; ou ainda, seu nome significa que Deus (al-haqq) penetrou essencialmente a forma de Abraão. Cada uma destas duas afirmações é justa, pois cada qual visa um certo aspecto [do estado de que se trata], sem que estes dois aspectos sejam cumulativos.
Não vemos que Deus Se manifesta nas qualidades dos seres efêmeros, como Ele prórpio o afirma [nas palavras divinas][61], que Ele Se manifesta mesmo nas qualidades de imperfeição e nas qualidades reprováveis [ou que são tais quando reportadas ao homem, como a inveja e a cólera por exemplo]? Por outro lado, a criatura se manifesta com as Qualidades divinas, atribuindo-as a si mesma, da primeira à última; elas pertencem verdadeiramente à criatura; da mesma forma, as qualidades dos seres efêmeros pertencem verdadeiramente a Deus. “A louvação é para Deus” (Corão, I, 2): vale dizer que, em definitivo, toda glória, de tudo o que louva e de tudo o que é louvado, dirige-se apenas a Deus. “A Deus retorna toda realidade (amr)” (Corão, XI, 123): esta palavra compreende tanto o louvável quanto o reprovável; um não existe sem o outro[62].
Quando uma coisa penetra outra, a primeira é contida pela segunda; pois o penetrante se esconde no penetrado, de modo que este último é o aparente, e o primeiro é o interior, o latente; o penetrante é também como que o alimento do penetrado, assim como a água que é absorvida pela lã e a torna mais pesada e volumosa. Se é a Divindade que aparece e a criatura é quem nela se esconde, esta é assimilada a todos os Nomes de Deus, ao Seu ouvido, à sua visão, a todos os Seus atributos e Seus modos de conhecimento; ao contrário, se é a criatura que aparece e a Divindade lhe é imanente e se acha oculta nela, Deus é o ouvido do ser criado, sua vista, suas mãos, seus pés e todas as suas faculdades, como está dito nesta palavra divina seguramente transmitida: “Meu servidor não pode aproximar-se de mim com nada que Me agrade mais do que aquilo que Eu lhe impus. E Meu servidor aproxima-se sem cessar de Mim através de obras espontâneas até que Eu o ame; e quando Eu o amo, Eu sou o ouvido com o qual ele ouve, a vista com a qual ele vê, a mão com a qual ele pega, o pé com o qual ele anda...”
Se a Essência fosse isenta destas relações [universais, que são os Nomes e as Qualidades divinas], Ela não seria divindade [ilah; ou seja, Ela não seria Criadora]. Ora, estas relações atualizam-se em virtude de nossas próprias determinações [que são de certa forma seus objetos ou seus conteúdos passivos], de sorte que nós tornamos a Divindade tal como é por nossa dependência em relação a Ela. Deus portanto não pode ser conhecido como tal [ou seja como Criador e Senhor] antes que conheçamos a nós mesmos, o que corresponde à palavra do Profeta: “Aquele que conhece a si mesmo [ou: que conhece sua alma] conhece seu Senhor”; e o Profeta era certamente quem melhor conhecia a criatura de Deus. Pois alguns sábios, e dentre eles Abu Hamid al-Ghazzali, pretenderam que Deus podia ser conhecido abstraindo-se o mundo; mas isto é falso[63]. É claro que a Essência eterna Se conhece; mas Ela não é conhecida como Divindade antes que seja conhecido aquilo que dela depende, e que é assim o símbolo que A demonstra. Apenas então, num segundo estado de conhecimento, será possível ter-se a intuição de que o próprio Deus é o símbolo de Si mesmo e de Sua natureza divina, que o mundo não passa de Sua própria revelação nas formas das essências imutáveis, que não existem de modo algum fora d’Ele, e que Ele assume diversos modos e formas segundo as realidades implicadas nestas essências, e segundo os seus estados. Mas nós não recebemos esta intuição senão depois de havermos reconhecido através de Deus que dependemos de uma Divindade. Depois [destes dois estados de conhecimento consecutivos] abre-se ainda uma última intuição, segundo a qual nossas formas aparecem em Deus, de modo que os seres se manifestam uns aos outros em Deus, reconhecem-se uns aos outros em Deus e distinguem-se um do outro em Deus. Alguns de nós sabem deste conhecimento recíproco em Deus, e outros ignoram a Presença divina na qual revela-se este conhecimento de nós mesmos. Que Deus me proteja da ignorância!
Tanto de uma quanto de outra destas duas intuições [que sucedem à primeira], segue-se que Deus não nos julga senão por nós mesmos, ou mais exatamente somos nós que nos julgamos, mas n’Ele. E é por isso que se diz no Corão: “a Deus pertence o argumento decisivo” (VI, 50), a saber contra os iludidos, quando eles dirão a Deus: “porque Tu nos fizestes isto ou aquilo”, [pensando no que] era contrário aos seus interesses; “então uma perna lhes será desnudada”[64], o que significa precisamente a realidade que é desnudada aos conhecedores de Deus desde esta vida. E eles verão que não foi Deus que fez com eles o que eles pretendem que Ele tenha feito, mas que aquilo veio deles mesmos; pois Ele os fará simplesmente conhecer quem eles são em si mesmos [em suas possibilidades pemanentes]. A partir daí, seu argumento se dissolverá, e subsistirá apenas o “argumento decisivo” de Deus.
Dirão talvez: qual é então o sentido da palavra divina: “se Ele quisesse, Ele vos teria guiado” (Corão, LXVIII, 41)? Ao que nós respondemos: a proposição law [que se traduz por “se”, na frase “se Ele quisesse, etc.], possui o sentido de abolição imaginária de um impedimento, portanto, Deus não quis senão aquilo que realmente aconteceu. Segundo sua definição lógica, uma possibilidade é algo que pode ou não atualizar-se; mas na realidade, a solução efetiva desta alternativa puramente racional acha-se já implicada naquilo que é esta possibilidade em seu estado de imutabilidade principial. Quanto à expressão “...Ele vos teria guiado”, ela significa: Ele teria demonstrado a todos [sua ilusão]; apenas, não está na possibilidade de cada ser deste mundo que Deus abra-lhe o olho de sua inteligência [intuitiva] para que ele veja a realidade tal qual ela é; existem alguns que conhecem, e outros que a ignoram. Assim, Deus não quis guiar a todos e não os guiou, nem quis fazê-lo; da mesma forma, se Ele quisesse – mas como poderia Ele ter desejado algo que não aconteceu?
O querer divino é um em suas relações [com seus objetos; sua aparente diversidade provém da diversidade das possibilidades que ele abarca]. Como relação essencial, ele depende do conhecimento [assim como o homem concebe previamente aquilo que ele quer]; e o conhecimento depende de seu objeto; ora, este objeto somos nós e nossos estados. Não é o conhecimento que age sobre o conhecido, mas este que age sobre o conhecimento, no sentido em que ele comunica-se sozinho a este, segundo aquilo que ele é em sua essência própria[65].
Quanto ao discurso divino [revelado no Corão e em outros livros sagrados, onde Deus Se manifesta como uma Pessoa], ele foi revelado em conformidade com a compreensão daqueles aos quais ele estava endereçado e em conformidade com o raciocínio, e não segundo os modos da intuição; é por isso, de resto, que existem muitos crentes e poucos conhecedores intuitivos. Mas “cada um de nós tem sua estação determinada”[66], o que quer dizer: tal como estamos em nosso estado de permanência [ou seja como possibilidade pura], manifestar-nos-emos em nossa existência [relativa], supondo que existamos; ao contrário, se a existência é atribuível apenas a Deus, e não a nós, então somos nós, sem dúvida, que julgaremos a nós mesmos [ou que nos determinaremos] na Existência divina [por que agora somos pura determinação, e nada além disto]; mas se admitamos que somos nós o existente [e que não somos apenas determinação pura], o julgamento pertence a nós [em virtude do que somos], mesmo se o Juiz é Deus. De Deus não provém mais que a efusão do Ser sobre nós [que não somos senão pura possibilidade]; enquanto que nosso próprio julgamento [ou vossa determinação] vem de nós.
Não louvemos assim senão nós mesmos, e não condenemos senão a nós mesmos. A Deus não é devido senão o louvor por Sua efusão de Ser [ou de Existência], pois isto só provém dele e não de nós  [que somos não-existentes enquanto tais]. A partir daí, nós somos Seu alimento porque nós Lhe emprestamos nossas condições; e Ele é nosso alimento pela Existência (al-wujud) que ele nos comunica, de sorte que Ele é determinado por aquilo mesmo que nos determina. A Ordem (al-amr) vai d’Ele para nós e de nós para Ele, embora sejamos “obrigados” [pela Lei revelada], e embora Ele não seja “obrigado” [por Sua própria Lei]; de resto, Ele não nos imporá [a Ordem] senão porque nós Lhe pedimos, por nosso estado e pelo que somos.
Ele me louva, e eu O louvo;
Ele me serve, e eu O sirvo;
Por minha existência eu O afirmo
E por minha determinação eu O nego;
É Ele que me conhece, enquanto que eu O nego,
Depois eu O reconheço e O contemplo.
Onde então está Sua independência,
Se sou eu quem o Glorifica e auxilia?[67]
Da mesma forma, desde que Deus me manifesta,
Eu Lhe empresto uma ciência e eu O manifesto.
É o que nos ensina a mensagenm divina.
E é em mim que Sua vontade se cumpre.
Desde que Abraão atingiu este grau de conhecimento em razão do qual ele foi chamado de “Amigo íntimo” [de Deus], ele fez da hospitalidade um costume sagrado[68]; também Ibn Masarra[69] o associa [em sua função cosmológica] a Miguel, o anjo que supervisiona o alimento [físico e espiritual dos seres][70]. Pois o alimento penetra o corpo todo daquele que se nutre, até ser assimilado pelas menores partes do corpo. Claro que não existem partes na Divindade [à qual aplica-se o símbolo do corpo penetrado]; aqulo que é penetrado, neste caso, são as “estações” (maqamat) divinas que chamamos de Nomes[71] e pelas quais a Essência divina se manifesta.
Estamos n’Ele, como estabelecem nossas provas,
E estamos em nós;
D’Ele não é mais que a minha existência,
De modo que estamos n’Ele, como em nós mesmos.
Eu tenho duas faces: Ele e eu;
E Ele não é Seu Eu em mim,
Mas Ele encontra em mim Seu lugar de manifestação.
Somos para Ele como recipientes.
Deus diz a verdade e guia pelo caminho direito[72].


A SABEDORIA DA VERDADE
(AL HIKMAT AL-HAQQIYAH)
SEGUNDO O VERBO DE ISAAC


A redenção de um profeta [Isaac foi profeta] pela imolação de um animal como oferenda:
Como o balido do cordeiro e a palavra humana se compensam?
Deus o Magnífico [ao dizer no Corão: “e nós o perdoamos com uma grande imolação”] magnificou o bezerro,
Ajudando-o através de nós ou ajudando-nos através dele[73] – não sei em virtude de qual balança[74]...
O camelo e os bovinos são sem dúvida maiores corporalmente,
E no entanto eles cederam seu lugar a um cordeiro imolado como oferenda.
Como posso eu saber como um cordeiro substitui
Com sua pequena pessoa o representante do Clemente sobre a terra?
Mas não vês que o comando [de imolar o cordeiro no lugar de Isaac] implica uma ordem lógica que assegura o ganho e compensa a perda?[75]
Pois não há criatura [terrestre] superior ao mineral
Depois ao vegetal, segundo seus graus e posições;
E é depois desta planta que vem o animal na hierarquia[76];
Cada qual [dos seres destes três reinos] conhece seu criador por intuição direta (kashf) e por sinais evidentes[77];
Enquanto que o homem é condicionado [em seu conhecimento de Deus] pela razão, o pensamento e o dogma de sua crença.
É o que afirma Sahl at-Tostari e o conhecedor da realidade[78], como nós,
Pois todos – nós e vós – estamos todos na estação da virtude contemplativa (al-ihsan)
Cada um que contempla a realidade que eu contemplei,
Dirá o mesmo, em segredo e abertamente.
Não te voltes para aqueles que nos contradizem,
E não semeies o grãos em terra de cegos!
Pois são eles os surdos e os cegos de que falou – para nossos ouvidos –
O isento de pecados [o Profeta] no Corão.
Saibam – que Deus nos ajude, a todos nós – que Abraão, o Amigo de Deus, disse a seu filho: “Em verdade, eu vi num sonho [profético] que eu te imolaria” [79]. Ora, o sonho provém da Presença imaginativa [hadarat al-khayal, ou seja a Presença divina nas formas ou imagens sutis]; entretanto, Abraão não transpôs seu sonho [do símbolo à realidade simbolizada, como convém fazer com o que se manifesta neste estado]: foi um cordeiro que apareceu no sonho sob a forma do filho de Abraão, e Abraão acreditou neste sonho; mas Deus liberou a criança da ilusão (wahm) de Abraão pela “grande imolação” [do cordeiro], que era a transposição divina de sua visão, transposição da qual Abraão não estava consciente[80].
Pois não se pode compreender a revelação formal na Presença imaginativa senão com a ajuda de uma outra ciência que permite discernir aquilo que Deus que nos dar a entender através de uma dada forma. Lembremo-nos como o Enviado de Deus – sobre ele a Bênção e a Paz! – disse a Abu Bakr, quando este interpretou um certo sonho: “Tu adivinhaste bem uma parte, e perdeste o sentido da outra parte”. Então Abu Bakr pediu ao Profeta que lhe fizesse saber o que ele havia dito de correto e no que ele havia se enganado; mas o Profeta não lhe respondeu[81].
Deus disse a Abraão, quando o interpelou: “Em verdade, ó Abraão, tu acreditaste na visão!”[82], o que não quer dizer que Abraão, crendo dever imolar seu filho, tenha sido fiel à inspiração divina; pois ele havia tomado sua visão ao pé da letra, enquanto que todo sonho exige uma transposição ou interpretação. É por isso que o senhor de José no Egito disse: “... se sabes interpretar os sonhos...”[83]; interpretar significa transpor a forma percebida a uma outra realidade; [no caso mencionado de José] as vacas significavam anos férteis ou anos magros. Se Deus louvasse Abraão por ter sido fiel à sua visão, Ele teria feito com que ele matasse realmente seu filho, pois ele acreditava que ela indicava a imolação da criança, enquanto que ela simbolizava, do ponto de vista divino, a “grande imolação” [do cordeiro][84].
Existe assim analogia entre a forma corporal do cordeiro e a forma imaginária do filho de Abraão. Se Abraão visse um cordeiro no seu sonho, ele poderia ter interpretado como significando seu filho ou outra coisa. Deus disse a seguir a Abraão: “Em verdade, esta é a prova [tornada] evidente”[85], o que quer dizer que Deus o pôs à prova em seu conhecimento, testando se ele tinha ou não aquilo que a perspectiva própria à visão imaginativa exige de interpretação[86]. Pois Abraão sabia bem que o estado cósmico da imaginação exige uma interpretação, mas não levou isto em conta, considerando apenas a condição inerente ao estado [de que se trata]: ele acreditou na visão tal como ela se lhe apresentara[87], como o fez Taqi ibn Mukhallad, o transmissor das tradições orais, que aprendeu por via certa que o Profeta havia dito: “Quem me vê em sonhos, me vê como em estado de vigília, pois Satanás não reveste minha forma”;  ora, Taqi ibn Mukhallad viu em sonhos o Profeta que lhe deu um copo de leite para beber; ele acreditou em sua visão, mas forçou-se a vomitar [para verificá-la], enchendo um copo com leite. Se ele houvesse interpretado seu sonho, teria sabido que o leite significa o conhecimento; [mas agindo desta forma], ele perdeu a chance de um grande conhecimento, na medida daquilo que ele bebeu. Não vemos como o Enviado de Deus – sobre ele a Bênção e a Paz! – recebeu em sonhos uma bacia de leite, que ele contou ter bebido “até que a saciedade me saiu pelas unhas; e é assim que me foi dado aquilo com que cumulei Omar”. Disseram-lhe: “E por qual coisa tomaste [este  leite], ó Enviado de Deus?” Ele respondeu: “Pelo conhecimento”. Ele não o tomou simplesmente como leite, sabendo que o estado em que teve a visão exigia uma transposição.
Ora, sabemos que a forma corporal do Profeta – que Deus o abençoe e lhe dê a Paz! – esta enterrada em Medina, e que sua forma espiritual – assim como sua forma sutil – jamais foi vista por ninguém; pois não podemos sequer ver nossa própria forma espiritual, e o mesmo vale para todo espírito. Mas o espírito do Profeta reveste, quando ele aparece em sonhos a alguém, a forma de seu corpo tal como era antes da morte, sem que nada falte[88], de sorte que ele é realmente Maomé – sobre ele a Paz! – surgindo por seu espírito em um corpo sutil (jasad) semelhante ao seu corpo sepultado, pois Satanás não pode revestir a forma sutil do Profeta, e Deus assim salvaguarda aquele que a vê. Aquele que vê o Profeta nesta forma recebe assim as ordens que o Profeta possa lhe dar ou as novas que ele lhe comunicar, assim como foram recebidos os ensinamentos do Profeta enquanto ele vivia, conforme o sentido imediato, figurado ou implícito das palavras, ou de qualquer outra forma de expressão. Mas se ele lhe dá qualquer coisa [em sonhos], é esta coisa que será sujeita à transposição, a menos que a coisa se manifeste no estado de vigília tal como era no sonho, pois neste caso não há transposição a ser feita. Foi neste aspecto do sonho que acreditaram Abraão, o Amigo de Deus, e Taqi ibn  Mukhallad.
Uma vez que a visão [em sonho] comporta estes dois aspectos [um direto e outro sujeito à interpretação], e que Deus nos ensinou qual deve ser nossa atitude, pelo que Ele fez e disse a Abraão – [sendo que este conhecimento] provém precisamente da função profética [de Abraão] – sabemos que ao vermos Deus – exaltado seja! – em uma forma que o racioncínio refuta [como sendo Deus, pois é a razão que conclui pela transcendência], devemos interpretar esta forma como sendo a Divindade condicionada, seja pelo estado daquele que A vê, seja pelo “lugar” cósmico (al-makam) em que Ela é vista, ou ainda pelas duas coisas.  Ao contrário, se o raciocínio não a recusa, nós a tomamos diretamente por aquilo que ela é, como quando virmos a Deus no além... Ao Único, o Clemente (ar-rahman), pertencem, em cada estado de existência, todas as formas ocultas ou manifestas. Se dizeis: isto é Deus!, direis a verdade; mas quando afirmais outra coisa, então estais interpretando. Seu princípio [de manifestação] não muda de um estado de existência a outro; mas Ele produz a Verdade para as criaturas. Quando Ele se revela aos olhos, as razões O recusam através de provas insistentes; ao contrário, Ele é aceito em Sua revelação intelectual e naquela a que chamamos imaginação (khayal); mas a verdadeira [visão] é a “visão” direta.
Abu Yazid (al-Bustami) disse desta última estação espiritual: “Mesmo se o Trono divino e tudo o que ele contém estivessem cem milhões de vezes contidos em um canto do coração do conhecedor [de Deus], ele não o sentiria”. Esta é o alcance de Abu Yazid no mundo das formas “corporais” [pois o Trono é aqui simbolicamente concebido como uma forma extensa]; mas eu digo: mesmo se o indefinido de tudo o que existe pudesse ser concebido como definido e que ele pudesse ser contido, com a essência (al-‘ayn) que o une, em um dos cantos do conhecedor [de Deus], este não seria consciente disto; pois diz-se que o coração contém a Deus – exaltado seja! – e no entanto ele não se sacia; e se ele estivesse cheio, ele estaria saturado. E isto Abu Yazid também afirma[89].
Já aludimos a esta estação espiritual quando dissemos: ó Tu, que criastes as coisas em Ti mesmo, Tu englobas tudo o que Tu criaste; ora, Tu criaste aquilo cuja existência não tem fim em Ti, de sorte que és o Estreito e o Vasto! Se aquilo que Deus criou estivesse em meu coração, Sua aura resplandescente não brilharia aí; ora, aquele que contém Deus não exclui nenhuma criatura; como então isto é possível, ó Tu que ouves?
Todo homem cria por conjectura (wahm), em sua faculdade imaginativa, aquilo que não tem existência fora dela. Isto é uma coisa comum. Mas o conhecedor [de Deus] cria por sua vontade espiritual (al-hummah) aquilo que adquire uma existência fora do lugar desta faculdade[90]. Entretanto, a vontade espiritual não cessará de conservar como existente aquilo que ela criou, sem que ela seja alterada por esta conservação; cada vez que o conhecedor esquecer de manter assim em existência aquilo que ele criou por sua vontade espiritual, sua criatura deixará de existir; a menos que o conhecedor tenha realizado todas as Presenças [divinas] e que ele não esqueça nenhuma; certo, sua consciência se colocará necessariamente sobre uma das Presenças [e não sobre todas de uma vez, pois então ela mesma deixaria de existir]; mas, se o conhecedor criou por sua vontade espiritual aquilo que ele criou, e que ele possui este conhecimento total [que engloba em princípio todas as Presenças divinas], sua criatura manifestará sua “forma” [a saber, a “forma” do conhecedor] em cada uma destas Presenças, de modo que as “formas” [análogas, que aparecem nos diferentes estados] mantém-se umas às outras existentes[91]; se o conhecedor se torna consciente de qualquer uma destas Presenças – ou de muitas delas – ao mesmo tempo em que sustenta, na Presença [divina] que ele continua a contemplar, a existência da “forma” que ele criou, todas as “formas” [análogas] serão conservadas pela manutenção desta “forma” particular de cuja Presença ele permanece consciente. Pois a inconsciência jamais é total, nem entre os homens comuns, nem entre a elite. Com esta explanação, eu expus um segredo da natureza daquilo que os iniciados guardaram sempre cuidadosamente, porque comporta uma refutação de sua pretensão à identidade com Deus; pois Deus – exaltado seja! – jamais é inconsciente de seja lá o que for, enquanto que o servidor é forçosamente inconsciente de uma coisa em favor de outra; ora, na medida em que este servidor mantém ele próprio em existência aquilo que ele criou, ele pode dizer: eu sou Deus; apenas, ele não o mantém no sentido da conservação divina; já explicamos a diferença. Na medida em que o servidor permanece consciente de uma das “formas” numa dada presença particular, ele se distingue de Deus; ele se distingue de Deus necessariamente, embora todas as “formas” [análogas] sejam mantidas em existência pela manutenção de uma delas que apareça na Presença da qual o conhecedor permanece consciente – o que é uma conservação com garantia implícita – pois a conservação divina em relação ao criado não é assim, mas Deus conserva cada “forma” em particular. Esta questão que expus não foi mencionada por ninguém até o momento; é a única vez em que se fala disto, tanto hoje como antes; lembrem-se de não esquecer!
Ora, esta Presença [divina] da qual permanecemos conscientes ao mesmo tempo em que da “forma” que lhe corresponde, compara-se ao Livro no qual Deus escreve todas as coisas: “Nós não negligenciamos nada neste livro”[92];  de modo que ele integra a um tempo aquilo que é manifestado e o que não é[93]. Mas ninguém compreenderá o que dissemos, exceto aquele que se tornou ele próprio Corão[94]. Por outro lado, aquele que “teme” a Deus será dotado da “discriminação” (al-furqan)[95] [que distingue o absoluto do condicionado] segundo a palavra divina [“Ó vós que crêdes, se temeis a Deus, Ele vos dotará de discriminação” (VIII, 29)]. Ora, esta discriminação aplica-se precisamente àquilo que dissemos da maneira como o servidor se distingue do Senhor. Esta é a “discriminação” mais elevada que se pode conceber.
Neste momento o servidor será senhor [pela união], sem dúvida;
E neste momento, o servidor será servidor [pela discriminação] certamente.
Se ele é servidor, ele é vasto como Deus;
E se ele é senhor, ele está numa vida apertada.
Enquanto servidor, ele vê sua prórpia essência, e suas esperanças alargam-se a partir dele; mas enquanto senhor [pela extinção de sua individualidade na pura luz intelectual], ele Vê todo o cosmo, da terra até os anjos, que lhe demandam, e ele se vê impotente para atender às suas demandas por si só [na medida em que ele permanece servidor apesar de sua reabsorção na Luz divina]. É por isso que vemos alguns contemplativos chorarem. Sejamos nós portanto servidores [por nossa consciência manifesta, ao mesmo tempo que] senhores [por nossa identificação essencial com Deus] e não sejamos [em nossa consciência distintiva] senhores do próprio servidor, para que não nos tornemos a vítima do fogo [do Rigor divino], e que não sejamos atirados à fusão[96].


A SABEDORIA ELEVADA
(AL HIKMAT AL-‘ALIYAH)
SEGUNDO O VERBO DE ISMAEL
(EXTRATO DO CAPÍTULO)


Saibam que Aquele que é chamado de Allah é um na Essência e tudo em Seus nomes, e que todo os seres condicionados não se ligam [a Deus] senão exclusivamente através de seu próprio Senhor (rabb); pois é impossível que a totalidade [dos Nomes ou dos aspectos divinos] se refira a um ser particular. No que diz respeito à Unidade (al-ahadiyah) divina, ninguém dela participa, pois não se pode designar aspectos nela; ela não está sujeita à distinção. A unidade de Deus integra a totalidade [dos Nomes e das Qualidades] na indiferenciação principial.
O “bem-aventurado” (as-sa’id) é aquele “cujo Senhor está contente”[97]; ora, não existe ninguém cujo Senhor não esteja contente, pois é por causa dele [ou seja, do ser relativo] que sua senhoridade subsiste; todo ser é, assim, “acolhido” por seu Senhor e [sob este aspecto] cada qual é “bem-aventurado”. É por isto que Sahl at-Tostari diz: “a Senhoria [divina, ar-rububiyah] comporta um segredo, e este segredo és tu mesmo” – ele dirige-se a todos os indivíduos – “ se ele pudesse manifestar-se [ou seja, se ele pudesse ser conhecido por outrem], a Senhoridade seria abolida”; ele diz: “se ele pudesse manifestar-se”[98] porque de fato ele não se manifesta jamais, de sorte que a Senhoridade não será abolida. Pois nenhum indivíduo existe independentemente de seu Senhor [que é a “polarização” do Ato divino a seu respeito]; por outro lado este indivíduo existe perpetuamente [ou seja através de todas as existências formais, até o indefinido, mas não eternamente], de sorte que a Senhoridade [que se fundamenta nele] subsiste igualmente à perpetuidade.
Aquele que é [em princípio] acolhido por seu senhor é amado por ele; e tudo o que faz o amado é igualmente amado; pois o indivíduo não poderia agir sem que a ação pertencesse ao Senhor que age através dele. É por isso que o indivíduo [que conhece seu Senhor] fica “apaziguado”, confiante que nenhuma ação lhe será atribuída, e que ele se contenta com aquilo que aparece nele das ações do seu Senhor[99], o qual acolhe estas ações, pois ele perfaz sua obra segundo o que ela exige por sua natureza; [é assim que é dito no Corão} “Aquele que dá a cada coisa a sua natureza, e depois Ele a guia”[100], ou seja: depois Ele revela que foi Ele quem deu a cada coisa sua natureza, de modo que ela não poderia ser nem mais nem menos [do que ela é].
“Ismael foi acolhido pelo seu Senhor”[101], porque ele havia reconhecido isto que explicamos. Do mesmo modo, todo ser existente é [em princípio] acolhido por seu Senhor, sem que isto implique necessariamente que cada um seja acolhido pelo Senhor do outro, pois a Senhoridade só se define em relação a cada um em particular [pois ela consiste na relação “pessoal” do indivíduo para com Deus], de sorte que ela não se refere a Deus senão por um de Seus aspectos, que correponde à predisposição (isti’dad) do indivíduo; este é o “Senhor” do indivíduo particular. Nenhum [ser particular] como tal liga-se a Deus em virtude de Sua Unidade [suprema]. É por causa disto que os homens de Deus não podem receber “revelação” (tajalli) na Unidade (al-ahadiyah); pois se O contemplamos n’Ele mesmo, é Ele que contempla a Si próprio; se O contemplamos em nós, a Unidade deixa de ser a Unidade, por nossa causa; e se O contemplas n’Ele e em nós, a Unidade cessa igualmente de ser o que ela é, porque o pronome da segunda pessoa supõe que existe outra coisa além do único contemplado; haverá aí necessariamente uma relação qualquer e por conseguinte uma dualidade do contemplante e do contemplado, donde ocorre a cessação da Unidade, embora não exista [em princípio] mais do que Ele que contempla a Si mesmo, pois sabemos bem que tanto o contemplante como o contemplado não são “outro senão Ele”.
Por este motivo, não é possível que o indivíduo “acolhido por seu Senhor” seja acolhido absolutamente [por Deus][102], a menos que tudo o que ele manifesta provenha do Senhor que o acolhe, que age nele[103].
É assim que Ismael distingue-se de outros indivíduos, pois dele se diz que “foi acolhido pelo seu Senhor”.
O mesmo acontece com toda alma apaziguada, à qual está endereçada a palavra [corânica]: “Ó tu, alma apaziguada! Volta para o teu Senhor, contente e em paz; entra para os Meus servidores, entra em Meu paraíso!”[104], ou seja: volta para o Senhor que já a chamava e que ela reconheceu em meio à totalidade [dos aspectos divinos] – “contente, em paz; entra para os Meus servidores” – adorando-Me nesta estação espiritual; pois dentre o número dos servidores de que se trata está qualquer um que reconheça seu Senhor, que se contente d’Ele e que não se volte para o Senhor de um outro servidor[105], ao mesmo tempo em que reconhece eminentemente a Unidade essencial [de todos os seres]; – “e entre em Meu paraíso” (jannah) – ou seja em meu Véu[106], pois este paraíso não é outra coisa que a própria alma apaziguada, pois é ela que Me oculta com esta natureza humana; Eu só sou conhecido por ela, como ela só existe por Mim; quem a conhece, conhece-Me, embora ninguém [fora Eu] Me conheça [essencialmente], de sorte que também ela não é conhecida por ninguém. Ora, se ela entra em Meu paraíso, ela entra em si mesma, e conhecerá a si mesmo através de um outro conhecimento, diferente daquele que a fez conhecer seu Senhor [ao conhecer a si mesma], de modo que ela possuirá dois conhecimentos: conhecerá Deus em relação a si, e O conhecerá por si mesmo na medida em que ela é Ele, não na medida em que ela existe.


A SABEDORIA LUMINOSA
(AL HIKMAT AN-NURIYAH)
SEGUNDO O VERBO DE JOSÉ


A sabedoria luminosa espalha sua luz na Presença imaginativa (hadrat al-khayal), e este é o primeiro começo da inspiração (al-wahi) entre os homens da Assistência divina [ou seja, entre os enviados e os profetas]. Aishah [esposa do Profeta] – que Deus a acolha! – disse: “o primeiro indício de inspiração divina no Enviado de Deus foi o sonho verídico; a partir daí, todo sonho que ele teve parecia o dia que se levanta, nada era obscuro”; e este estado, ela acrescentou, durou seis meses; depois veio o Anjo [que lhe revelou o Corão]. Isto é tudo o que ela compreendeu com sua ciência; ela não sabia que o Enviado de Deus dissera: “as pessoas dormem, e quando elas morrem elas acordam”, e que tudo o que ele via no estado de vigília era desta natureza, malgrado a diferença entre os estados [de sonho e de vigília]. Ela falou em seis meses; mas na realidade, toda a existência terrestre do Profeta passou-se assim, como em um sonho dentro de um sonho[107]. Ora, tudo o que se revela desta maneira constitui o mundo imaginativo (alam al-khayal); e é por isso que existe o simbolismo: a realidade (al-amr) que possui  em si mesma uma dada “forma”[108], aparece sob uma outra forma; e por sua vez o inérprete opera uma transposição da forma percebida pelo sonhador à “forma” própria da realidade implicada, supondo-se que ele a adivinhe; assim, por exemplo, o conhecimento manifesta-se sob a forma do leite; pois, segundo o que foi reportado, o Profeta considerava o leite como o símbolo do conhecimento[109].
Quando o Profeta recebia a inspiração divina, ele se tornava inconsciente do mundo sensível comum; ele era coberto [com um pano], e [seu espírito] ausentava-se dos presentes; depois, quando isto cessava, ele retornava a este mundo. Ele recebia assim a inspiração divina na Presença imaginativa, sem que se pudesse dizer dele que estivesse dormindo[110]. Da mesma forma, quando o Anjo lhe apareceu sob a forma de um homem, esta aparição provinha igualmente da Presença imaginativa, pois na realidade não estava ali um homem mas um anjo revestido da forma humana, e o espectador que possuía o conhecimento ultrapassaria esta forma até perceber a “forma” real. Assim, disse o Profeta [a respeito de um misterioso estrangeiro que veio questioná-lo diante dos seus companheiros]: “era Gabriel que veio para vos ensinar vossa religião”; por outro lado, ele havia dito: “respondam à saudação deste homem!”. Ele o chamou de “homem” devido à sua forma aparente, e depois disse dele: “era Gabriel”, transpondo a forma deste homem imaginário ao seu original; ele falou a verdade tanto num caso como noutro, pois a aparição era visualmente verdadeira, e era verdadeiramente Gabriel.
José – que a Paz esteja com ele – disse [a seu pai]: “eu vi onze estrelas com o sol e a lua prosternarem-se diante de mim”[111]; ele havia visto seus irmãos sob a forma de estrelas e seu pai e sua madrasta sob a forma do sol e da lua; é assim que eles apareceram do ponto de vista de José; pois se a aparição tivesse sido real do ponto de vista das pessoas que apareceram sob a forma de estrelas, do sol e da lua, seria preciso que ela tivesse sido voluntária da parte delas; mas como elas não tinham consciência disto, a visão de José aconteceu apenas dentro dos domínios da sua imaginação; é por isso que seu pai Jacó – sobre ele a Paz! – disse, quando José lhe contou sua visão: “ó filho meu, não contes esta visão aos teus irmãos, para que eles não conspirem contra ti...”[112]; depois, absolvendo seus filhos da conspiração, ele responsabilizou Satanás – que não é outra coisa que a  própria essência da conspiração e do engano – dizendo: “em verdade, Satanás é o inimigo declarado do homem”[113]. Na seqüência, ao final da história, José diz [ao receber seus pais e seus irmãos no Egito]: “Isto é a interpretação de meu sonho de antes, que meu Senhor tornou real”[114], ou seja: que Ele manifestou na ordem sutil antes que aparecesse sob a forma imaginativa. Ora, a isto o Profeta responde: “as pessoas dormem [e quando elas morrem elas acordam”]... José falou então como alguém que sonha que despertou de um sonho e que interpreta o sonho sem estar consciente de que se acha ainda sonhando, de modo que ele dirá depois, quando despertar verdadeiramente: eu sonhei com tal e tal coisa; depois, acreditando que despertava, eu sonhei que interpretava meu sonho de tal e  tal maneira... Isto é análogo ao que disse José; observem a diferença entre a compreensão de Maomé e a de José, quando este diz, ao final de sua aventura: “isto é a interpretação de meu sonho de antes, que meu Senhor tornou real”, ou seja sensível; ora, ele sempre foi sensível, pois a imaginação não concerne senão aos objetos sensíveis e a nada mais[115]. Vejam portanto como o conhecimento e a altura de Maomé são excelentes!
Eu direi ainda mais a respeito da Presença [imaginativa] segundo o espírito de José – sobre ele a Paz! – concebida no espírito maometano, como verão a seguir, se Deus permite. Saibam que a realidade supostamente não-divina, ou seja o mundo, relaciona-se com Deus como a sombra está para a pessoa. O mundo é assim a sombra de Deus; esta é propriamente a maneira pela qual o Ser (al-wujud) atribui-se ao mundo; pois a sombra existe incontestavelmente na ordem sensível, com a condição de que haja aí qualquer coisa sobre a qual esta sombra seja projetada; de modo que, se fosse possível retirar todo e qualquer suporte para a sombra, ela não seria mais sensivelmente existente, mas apenas inteligível; ou seja, ela estaria potencialmente contida na pessoa da qual ela depende. O lugar de manifestação desta sombra divina que chamamos de mundo é o rol das essências permanentes (a’yan) das possibilidades (mumkinat); é sobre elas que a sombra se projeta. A sombra é conhecida na medida em que o Ser divino projeta [sua sombra] sobre as essências permanentes das possibilidades, e é pelo Nome divino A Luz (an-nur) que a percepção da sombra acontece. A sombra que se projeta sobre as essências imutáveis das possibilidades é “à imagem” do Mistério desconhecido; pois não é verdade que as sombras tendem para o negro, o que indica o caráter insondável que lhes é próprio segundo uma certa correpondência entre a sombra e a pessoa que a projeta[116]? Mesmo se a pessoa for branca, sua sombra é assim [como eu disse]. Não é verdade que as montanhas muito distantes do espectador lhe parecem ensombradas, no mínimo pelo distanciamento, apesar das cores que lhes são próprias[117]? Não é verdade que o céu parece azul? Tudo isto não passa do efeito do distanciamento sobre os corpos não-luminosos. Da mesma forma as essências das possibilidades não são luminosas, por serem não-existentes; elas são imutáveis, mas elas não são qualificadas de ser ou de existência; pois o ser é luz. Quanto aos corpos luminosos, o distanciamento espacial os faz parecer menores; deste modo o olho vê os astros como corpos muito pequenos, embora eles sejam imensamente grandes em realidade; assim, por exemplo, sabemos por provas que o sol possui um volume 166 vezes e um quarto e um oitavo maior do que o volume da terra[118], embora ele apareça ao olho como sendo do tamanho de uma moeda; este é um outro efeito do distanciamento [análogo à natureza a um tempo existente e inexistente da sombra].
Não se pode conhecer o mundo senão na medida em que se conheçam as sombras; e ignoramos a Deus na medida em que ignoramos a pessoa de quem depende esta sombra [que é o mundo]; na medida em que Ele faz uma sombra, nós O conhecemos; e na medida em que ignoramos aquilo que esta sombra oculta da “forma” da pessoa que a projeta, ignoramos Deus, exaltado seja! Daí dizermos que Deus nos é conhecido sob um certo aspecto, e que nos é desconhecido sob outro aspecto. “Não vês teu Senhor, como Ele projeta a sombra? Se Ele quisesse, a tornaria permanente...”[119], ou seja potencial em Si mesmo[120]; é como se Ele dissesse: Deus não se revela às possibilidades antes de que Ele haja projetado Sua sombra, de sorte que fica nelas o que permanece sempre verdadeiro [em princípio] para elas, a saber que elas não aparecem como tais na existência; “...depois Nós fizemos do sol aquilo que a demonstra [a saber a sombra]...”[121]; é ele o Nome divino A Luz (an-nur) de que falamos, o que é confirmado na ordem visual, pois as sombras não existem na ausência da luz; “...depois Nós a recolhemos paulatinamente...”[122]; Deus recolhe para Si a sombra, porque ela se manifesta a partir d’Ele e porque “toda realidade retorna para Ele”. Assim ela é Ele, e é outra-do-que-Ele, exaltado seja! Tudo aquilo que percebemos não passa do Ser de Deus nas essências permanentes das possibilidades; na medida em que a ipseidade (huwiyah) [daquilo que vemos] é Deus, é Ele que é seu ser, e na medida em que existe diferenciação, são as essências das possibilidades; assim como sempre permanece uma “sombra” em virtude da diferenciação das formas, permanece sempre, devido a esta mesma diferenciação, o “mundo” ou “outro-do-que-Deus”. Por sua unidade existencial, a sombra é o próprio Deus, pois Deus é único (al-wahid), o Um (al-ahad); e sob este aspecto da multiplicidade das formas sensíveis, ela é o mundo – compreendam e realizem o que estou explicando! Uma vez que a realidade é como eu disse, o mundo é ilusório (mutawahham), ele não possui existência verdadeira; é isto o que entendemos por imaginação [que engloba o mundo inteiro]; vale dizer que imaginamos que [o mundo] é uma realidade autônoma, separada de Deus e acrescentada, enquanto que ele não é nada em si[123]. Não é verdade que na ordem sensível a sombra está ligada à imagem da qual ela se projeta e que é impossível que ela se separe desta? Pois é inconcebível que uma coisa se separe de sua própria essência (dhat). Reconheçamos então nossa própria essência (‘ayn), que é o que somos, que é nossa ipseidade, reconheçamos qual é nossa relação diante de Deus – exaltado seja! –, pelo quê somos Deus e pelo quê somos o “mundo” ou o “outro”, ou o que corresponde a essas expressões – pois tal é a nossa natureza. É em função disto [deste conhecimento de si mesmo] que os sábios são superiores uns aos outros.
Deus está em Sua relação para com uma sombra em particular, maior ou menor ou mais ou menos pura, como a luz está para um filtro de vidro colorido que tinge a luz com sua própia cor, enquanto que esta é incolor em si mesma; é assim que vemos a Luz divina; e este é um símbolo de nossa realidade em relação ao nosso senhor. Ora, se dizemos, ao vê-Lo: “é uma luz verde”, porque o filtro é verde, teremos razão, como o demonstra a experiência visual; mas se dissermos que que Ele não é verde e que ele não possui cor [em Si mesmo], como o demonstra o raciocínio[124], diremos a verdade, e o argumento [tirado da experiência sensível] o confirmará[125].
É assim que a luz se projeta através da sombra, que não é outra coisa que o filtro, e que é luminoso por sua transparência. Assim é também o homem que realizou Deus: a “forma” de Deus manifesta-se nele mais diretamente do que em outros. Pois existem entre nós alguns para quem Deus é o ouvido, a vista, as faculdades e os órgãos, conforme os sinais que o Profeta indicou em sua mensagem proveniente de Deus; e apesar disto a determinação da sombra subsiste, porque o pronome possessivo do ouvido [e das outras faculdades] a ela se refere [em conformidade com a mensagem sagrada: “... Eu serei seu ouvido, com o qual ele ouve, sua vista, pela qual ele vê, etc.”]. Os outros servidores de Deus não são assim; o servidor de que se trata possui uma relação mais imediata em relação ao Ser de Deus do que os demais.
Ora, como a Realidade é assim como dizemos, saibamos que somos imaginação e que tudo o que percebemos e que designamos como “não-eu” é imaginação; pois toda a existência é imaginação na imaginação [ou seja uma imaginação “subjetiva” ou micro-cósmica dentro de uma imaginação “objetiva”, coletiva ou macro-cósmica], enquanto que o Ser verdadeiro é Deus única e exclusivamente, sob o aspecto da Sua Essência (dhat) e da Sua determinação essencial (‘ayn), mas não sob o aspecto dos Seus nomes, pois Seus nomes possuem um duplo significado: de um lado eles comportam uma determinação única, a saber a determinação essencial de Deus, que é o “nomeado”, e de outro seus significados fazem com que cada Nome se distinga dos demais, o Perdoador do Aparente, o Aparente do Interior, e assim por diante; ora, qual é então a relação de um Nome para com outro? Pois é preciso que se compreenda que cada Nome é a determinação essencial de cada outro; na medida em que um Nome é a determinação essencial do outro, ele é Deus na medida em que difere do outro, ele é o Deus “imaginário”, como dissemos. Exaltado seja Aquele que só é demonstrado por Si mesmo e que não subsiste senão por Sua própria essência imutável! Não há na existência senão aquilo que designa a Unidade; e não há na imaginação senão aquilo que designa a multiplicidade. Portanto, que se apega à multiplicidade, está no mundo, com os Nomes divinos e com os nomes do mundo; e quem se atém à Unidade, está com Deus sob o aspecto de Sua Essência “independente dos mundos”. Se a Essência é “independente dos mundos”, é preciso que Deus seja essencialmente independente das “relações nominais”, pois os Nomes não designam apenas a Essência, eles designam ao mesmo tempo outras realidades, que definem a sua manifestação. “Diga: Ele, Deus, é um (ahad)” – em Sua Essência – “Deus é absoluto” – o independente do qual tudo depende – “Ele não engendra” – nem em Sua ipseidade, nem em Sua relação para concosco [ou seja para com nossa não-existência principial] – “e Ele não é engendrado” – sob o mesmo aspecto – “e não há nada que seja semelhante a Ele” – sob este aspecto[126]. Esta é Sua qualidade própria; conforme Sua palavra: “diga: Ele, Deus, é um”, Ele abstrai Sua Essência de toda e qualquer multiplicidade; por outro lado, esta se manifesta em virtude dos atributos divinos conhecidos. Somos nós que engendramos e somos engendrados, e somos nós que dependemos d’Ele – exaltado seja! –; também nós somos semelhantes uns aos outros, enquanto que o Único, o Transcendente, é independente em relação a seus atributos como é independente de nós. Não existe outra descrição adequada de Deus do que esta surata, a surata da Pureza (al-ikhlaç), e é como tal que ela foi revelada [ou seja em resposta à questão dos judeus: “descreve-nos teu Senhor, como Ele é!”].
A Unidade de Deus que se revela sob o aspecto dos Nomes divinos que postulam nossa existência é a unidade do múltiplo (ahadiyat al-kuthrah), e a Unidade de Deus pela qual Ele é independente de nós e dos Nomes, é a Unidade essencial; uma e outra estão compreendidas no Nome “O Um” (al-ahad).
Saiba portanto que se Deus manifestou sombras, e se Ele fez com que elas se prosternassem para a direita e a esquerda [“Não vêem tudo o que Deus criou, como sua sombra se inclina para a direita e para a esquerda, prosternando-se diante de Deus...” (Corão, XVI, 48)], é porque Ele quis fornecer sinais sobre você e sobre Ele próprio, para que você saiba o que você é, qual é a sua relação para com Ele e qual a d’Ele em relação a você, a fim de que você saiba por qual ou em virtude de qual realidade divina, este que é “outro-que-Deus” é qualificado de completa indigência (faqr) diante de Deus e também de indigência relativa, ou seja de uma mútua dependência de suas próprias partes, e para que você saiba por qual e em virtude de qual realidade essencial Deus Se qualifica de independência em relação aos homens e de independência em relação aos mundos, enquanto que o mundo é qualificado de independência relativa, ou seja que cada uma de suas partes é num certo sentido independente das outras, assim como ela é, segundo um sentido diferente deste, dependente das outras; pois o mundo depende incontestavelmente de causas, sendo sua causa suprema sua causalidade divina; e não existe outra causalidade divina da qual dependa o mundo, que não os Nomes divinos; o mundo depende de cada um dos Nomes divinos, tanto em virtude daquilo que é análogo a  um dado Nome no mundo, tanto porque todo Nome está compreendido na determinação essencial de Deus, pois ele é Deus e nada mais. Por isso Ele disse: “vós sois os indigentes (fuqara) diante de Deus, e é Ele, Deus, o Rico, o Glorioso”[127]. Por outro lado, é evidente que nós dependemos uns dos outros.
Nossos próprios “nomes” não passam na realidade de Nomes divinos, porque tudo depende d’Ele. Quanto às nossas próprias essências (a’yan), elas são na verdade Sua “sombra”, nada mais. Pois Ele é a nossa ipseidade, como também não é a nossa ipseidade. Eis que nós preparamos o seu caminho!



A SABEDORIA DA PROFECIA
(AL HIKMAT AN-NUBUWIYAH)
SEGUNDO O VERBO DE JESUS


O espírito [ar-ruh, ou seja o Cristo] foi manifestado a partir
da água de Maria e do sopro de Gabriel,
Sob a formas de um homem feito de argila,
Num corpo depurado da natureza [corruptível]
Que ele chamou de “prisão” (sijin).
Assim ele permaneceu aí por mil anos[128].
Um “espírito de Deus”[129], de nenhum outro:
Por isso ele ressuscitou os mortos e criou o pássaro de argila[130].
Sua relação para com o Senhor é tal,
Que ele age por ela nos mundos superiores e inferiores.
Deus purificou seu corpo e o elevou em espírito
E fez dele um símbolo de Seu ato criador[131].
Saibam que os espíritos tem a virtude de comunicar vida a tudo que tocam. É por esta razão que as-Samiri[132]  [de quem se diz no Corão ter feito o bezerro de ouro que os Israelitas adoraram na ausência de Moisés[133]] tomou a poeira das pegadas do enviado [divino], o [arcanjo] Gabriel; pois as-Samiri conhecia esta virtude dos espíritos, e quando ele soube que o enviado era Gabriel, ele soube que a vida tinha sido comunicada aos lugares que ele tocou com os pés; ele então juntou um pouco de poeira[134] e a colocou dentro do bezerro [de ouro] que imediatamente “mugiu” como fazem os bovídeos; a estátua teria emitido a voz de qualquer outro animal, e mesmo do homem, se tivesse a forma correspondente. Este poder vem da vida infundida às coisas, vida a que chamamos lahut (natureza divina), enquanto que o recipiente que o espírito vivifica é chamado de nasul (natureza humana); e este nasul [que compreende a forma corporal] é por sua vez considerado como um espírito devido àquilo que o mantém em existência[135].
Quando o “Espírito fiel” (ar-ruh al-amin), que é Gabriel, apareceu a Maria “sob a forma de um homem harmonioso”, ela imaginou tratar-se de um homem que buscava conhece-la carnalmente, e sabendo que isto não era permitido, ela “buscou refúgio em Deus contra ele”[136] com todo o seu ser, e por isso ela foi invadida por um estado perfeito de Presença divina, estado que identificava-se ao espírito intelectual (ar-ruh al-manawi). Se Gabriel houvesse lhe transmitido seu sopro naquele instante, enquanto ela se encontrava neste estado, Jesus teria nascido tal que ninguém poderia suportá-lo devido à sua natureza cortante, conforme ao estado de sua mãe no momento da concepção. Mas desde que Gabriel disse a Maria: “em verdade, eu sou o enviado de teu Senhor, e vim para te dar um filho puro”[137], ela deteve seu estado de contração e seu peito alargou-se; e foi então que Gabriel insuflou-lhe [o espírito de] Jesus. Gabriel – sobre ele a Paz! – foi assim o veículo da palavra divina transmitida a Maria, da mesma maneira como o enviado (ar-rasul) transmite as palavras de Deus a seu povo, segundo o Corão: “[Jesus foi] Sua palavra que Ele projetou em Maria, e Seu espírito”[138]. A partir daquele instante, o desejo amoroso invadiu Maria, de sorte que o corpo de Jesus foi criado pela verdadeira “água” (ou semente) de Maria e a “água” (ou semente) puramente imaginária de Gabriel, transmitida pela umidade principialmente inerente ao sopro – pois o sopro dos seres animados contém o elemento água. Assim o corpo de Jesus foi constituído de “água” imaginária e de “água” verdadeira, e ele foi gerado sob forma humana devido à sua mãe e devido à aparição de Gabriel sob forma humana; pois não há geração nesta espécie humana fora da lei comum[139].
Da mesma forma, Jesus ressuscitou os mortos por que ele era Espírito divino – somente Deus dá a vida; enquanto que o sopro [que transmite a vida] era de Jesus; da mesma forma como o sopro inspirado em Maria era o sopro de Gabriel, enquanto que o Verbo vinha de Deus. Por isso, a ressurreição dos mortos é verdadeiramente uma ação de Jesus porque ela emanava de seu sopro, como ele próprio emanou da forma de sua mãe; por outro lado, foi apenas aparentemente que a ressurreição foi operada por ele, visto que ela é essencialmente um ato divino. Jesus unia em si estas duas realidades, em virtude da sua constituição, da qual dizemos ter saído simultaneamente de uma semente imaginária [ou criada pelo poder de sugestão: al-wahm] e uma semente real; de modo que a ação de ressuscitar os mortos provém dele de uma maneira efetiva, de um lado, e de uma maneira suposta de outro. Segundo o primeiro destes aspectos, diz-se dele: “ele vivifica os mortos”[140], e conforme o segundo aspecto: “ele soprou nele [no pássaro de argila] e ele se tornou um pássaro, com a permissão de Deus”[141], sendo o agente, neste caso, logicamente ligado à expressão: “com a permissão de Deus”; quer dizer que a transformação do pássaro de argila em pássaro real foi feita pela intervenção de Deus; entretanto, podemos também relacionar a permissão divina ao ato de soprar e não à transformação [da forma de argila] em pássaro, [cuja alma específica] seria assim devida apenas à forma aparente [do objeto que recebeu o sopro vivificante]. O mesmo acontece com a cura do cego de nascença, do leproso e de todas as outras ações milagrosas atribuídas [segundo o Corão] a Jesus de uma parte, e à permissão de Deus de outra parte, permissão relacionada à primeira ou à segunda pessoa, segundo as palavras corânicas: “com Minha permissão” ou “com a permissão de Deus”[142]. Assim, se a permissão de Deus refere-se ao ato de insuflar, o pássaro foi criado, com a permissão divina, por aquele que soprou [no objeto de argila]. Ao contrário, se a ação de soprar não dependia [diretamente] da permissão divina, é a transformação do pássaro [de argila] em pássaro [real] que dela dependia, e o agente desta transformação está então implicada na expressão: “ele tornou-se”. Se o ato de que se trata não comportasse em si mesmo algo de efetivo e algo de imaginário, o evento não poderia assumir indiferentemente os dois aspectos. E isto acontece assim porque a constituição de Jesus comporta em si tanto um como outro aspecto.
Jesus manifestou humildade até o ponto de ordenar à sua comunidade que pagasse o dízimo humilhando-se, e que qualquer um que fosse agredido numa face oferecesse a outra sem se revoltar e sem buscar vingança. Isto Jesus tirou do lado de sua mãe, pois é do feminino submeter-se assim naturalmente, pois a mulher é legal e fisicamente sujeita ao homem. Seu poder vivificante e curador, ao contrário, veio-lhe do sopro de Gabriel revestido sob forma humana. É por isso que Jesus pode vivificar os mortos mesmo tendo uma forma de homem. Se Gabriel não houvesse aparecido [a Maria] sob forma humana, mas sob não importa qual outra forma sensível, animal, vegetal ou mineral, Jesus não teria ressuscitado os mortos sem antes revestir-se desta forma não-humana, manifestando-se através dela; da mesma forma, se Gabriel tivesse aparecido em forma de luz [espiritual] isenta de elementos e qualidades sensíveis – embora ainda contida na Natureza universal (at-tabi’ah) – Jesus não teria ressuscitado os mortos sem aparecer, nesta ação, sob a forma de luz suprassensível, ao mesmo tempo em que revestia a forma humana que ele recebeu do lado de sua mãe. Devido a isto [ou seja, devido à sua identificação com Gabriel, quando da ação milagrosa], diz-se dele que, quando ressuscitava os mortos, era e não era ele, e os espectadores ficavam consternados ao ver, do mesmo modo como aquele que reflete sobre esta ação fica consternado que uma pessoa humana vivifique os mortos, enquanto que é uma propriedade divina vivificar os seres dotados de palavra – não os outros animais [que participam de certa forma da vida do homem perfeito]; o pensamento fica confuso de ver uma ação divina emanando de uma forma humana. É isto que levou alguns a postular a “localização” (hulul) de Deus [na natureza humana de Jesus], e outros a dizer que Jesus era Deus na medida em que ele ressuscitava os mortos, e é por isso que o Corão lhes atribui a incredulidade (kufr), palavra que significa literalmente o véu (sitr), porque eles “velam” Deus, o qual ressuscita realmente os mortos pela forma humana de Jesus. Deus diz [no Corão]: “estes são os descrentes que dizem: em verdade, o próprio Deus é o Messias, filho de Maria”[143], pois eles acumularam o desvio e a descrença em sua afirmação, não porque digam que o Messias era Deus, nem nomeando-o como filho de Maria, mas porque identificaram Deus, enquanto vivificador dos mortos, com a forma humana terrestre designada expressamente como o filho de Maria. Jesus era filho de Maria; e aquele que entende a frase de que se trata poderia crer que eles atribuem a Natureza divina (al-uluhiyah) à forma de Jesus no sentido que a Divindade é a essência da forma; mas não é isto, porque eles fizeram da Ipseidade (al-huwiyah) divina o sujeito da forma humana designada como o filho de Maria [pela expressão: “o próprio Deus é o Messias, filho de Maria...”]; eles distinguem assim a forma [humana] como tal do princípio [do qual ela é uma manifestação] e não identificam a forma [crística] essencialmente a este princípio [que se manifesta pela vivificação dos mortos][144], assim como distinguimos a forma humana que revestiu Gabriel do sopro que ele inspirou em Maria; pois embora o sopro emane desta forma, ele não provém dela essencialmente.
Devido a isso, as diversas comunidades religiosas se contradizem a respeito da identidade de Jesus – sobre ele a Paz! – ; alguns, considerando-o em função de sua forma humana terrestre, afirmaram que ele era o filho de Maria[145]; outros, considerando nele a forma aparentemente humana, ligaram-no a Gabriel; e outros ainda, em razão do fato que a vivificação dos mortos emanava dele, ligaram-no a Deus pelo Espírito, dizendo que ele era o Espírito de Deus, ou seja que era ele quem comunicava a vida àquilo que recebia seu sopro. Assim, conforme o caso, pode-se ver nele ou Deus, ou o Anjo, ou a natureza humana; de sorte que ele é para cada espectador aquilo que se impõe a este espectador: ele é o Verbo de Deus, ele é o Espírito de Deus, e ele é o servidor [a criatura] de Deus. Isto é algo que não aconteceu a nenhum outro homem, na medida em que consideramos sua forma aparente. Pois toda pessoa liga-se naturalmente ao seu pai formal e não àquele que insuflou seu espírito na forma humana. Pois quando Deus “forma”, como Ele diz, o corpo humano, e que Ele “sopra” a seguir Seu Espírito[146], este Espírito liga-se, tanto pela sua existência quanto pela sua Essência, apenas a Deus. Ora, no caso de Jesus não foi assim, pois a preparação de seu corpo e de sua forma estava implicada no sopro espiritual [que Gabriel projetou sobre Maria]. Não é o que acontece com os outros seres humanos [quando a preparação do corpo antecede a inspiração do espírito], como já dissemos.
Todas as existências são “as Palavras de Deus que não se esgotam jamais”[147]; pois todas não passam da palavra “seja!” (kun) que é o Verbo de Deus. Ora, devemos acreditar que a Palavra liga-se imediatamente a Deus em Seu estado principial? Se for assim, será impossível que conheçamos sua qüididade; ou então Deus “desce” para a forma daquele que diz: “seja”, de modo que esta palavra “seja” é a realidade essencial (al-haqiqah) da forma para a qual Deus “desce”, ou na qual Ele Se manifesta. Alguns conhecedores de Deus afirmam a primeira coisa, outros a segunda, e outros ficam consternados com a ambiguidade dos aspectos. Esta questão só pode ser sondada por intuição. Abu Yazid, que soprou sobre a formiga que ele havia matado [por distração] e a fez reviver, sabia bem por que ele soprava e que era por Ele que ele soprava; sua contemplação era crística.
Quanto à vivificação pelo conhecimento, ela é o Caminho divino, essencial, superior, luminoso, do qual Deus diz [no Corão]: “...aquele que estava morto e o reanimamos á vida, guiando-o para a luz, para conduzir-se entre as pessoas..”[148]. Qualquer um que vivifique uma alma morta, pela via do conhecimento em não importa qual domínio ligado ao conhecimento de Deus, vivifica-a verdadeiramente, porque este conhecimento específico é para esta alma como que uma luz com a qual ela marchará no meio das pessoas, ou seja entre aqueles que lhe são semelhantes pela forma.
Sem Ele [como princípio ativo] e sem nós [como receptáculos de Seu ato]
nada existiria.
Eu O adoro verdadeiramente;
e Deus é nosso Mestre.
Mas eu sou Ele próprio (‘aynuh)
desde que consideres [em mim] o Homem Universal.
Não te deixes cegar pelo véu do homem individual,
e ele será para ti um símbolo evidente.
Sejas a um tempo Deus [em tua essência] e criatura [pela tua forma],
e serás por Deus o dispensador da Sua misericórdia.
Alimente Sua criação por Ele,
serás um “repouso libertador e um perfume de vida”
(rawhan wa raihana)[149].
[Como determinações] nós Lhe damos aquilo
pelo que Ele se manifesta em nós;
Enquanto que Ele nos dá o Ser
de modo que o Ato (al-amr) provém a um tempo d’Ele e de nós.
Aquele que conhece por meu coração,
no momento em que Ele nos dá a vida,
vivifica-o [pelo conhecimento][150].
Nós somos n’Ele as existências, as determinações e as relações de tempo.
Este estado [de contemplação de nossas possibilidades permanentes
em Deus] não persiste em nós,
mas é o que nos vivifica.
 O que dizemos do Sopro espiritual que age através da forma humana terrestre acha-se corroborado pelo fato de que o próprio Deus atribui a Si mesmo a “Expiração de Clemência” (an-nafas ar-rahmani), Ora, a atribuição de uma qualidade entranha necessariamente tudo o que comporta [o simbolismo de] esta qualidade; no caso presente, sabemos bem o que a expiração [animal] comporta [de caracteres elementares como a dilatação, a propagação, a produção do som, etc.]. É por isso que dizemos que a Expiração divina engloba todas as formas do mundo: com efeito, ela está para estas como a Materia prima (al-jawhar al-hayulani), a qual não é outra coisa que a determinação primeira da Natureza universal (at-tabi’ah). Os quatro elementos[151] não passam de formas, dentre outras, de todas as que ela contém; o que está acima dos elementos e acima de tudo o que é constituido pelos elementos faz parte igualmente, enquanto “formas” da Natureza universal; vale dizer que não apenas os espíritos e as essências das sete esferas celestes[152], mas também os “espíritos superiores” (al-mala al-a’la) saem da Natureza universal;  é por causa disso, aliás, que Deus os descreve como se rivalizassem uns com os outros; pois a Natureza comporta a polarização; a oposição dos Nomes divinos – que são as relações [universais] – uns em relação aos outros vem precisamente da “Expiração de Clemência”, enquanto que a Essência (adh-dhat), que não está submetida a esta condição [polarizante], é “independente dos mundos”. Quanto ao mundo, ele foi produzido “na forma” do princípio que o manifesta, e que não é outro que a Expiração divina[153].
A Expiração divina “eleva-se” em virtude do calor que lhe é inerente, e “desce” em virtude do frio e da umidade, e “fixa-se” e “solidifica-se” em virtude da secura. A “precipitação” [do mundo grosseiro] provém assim do frio e da umidade [vale dizer, daquilo que corresponde a estas qualidades na ordem universal]; é assim que podemos constatar na medicina: para administrar um remédio que acelere a digestão, o médico espera até que haja uma precipitação na água do doente, precipitação que se produzirá por uma predominância, no organismo, do frio e da umidade naturais.
De resto, [a polarização primordial que qualifica a Natureza universal acha-se simbolizada pelo fato de que Deus] deu consistência à argila do homem “com Suas duas mãos”, que são evidentemente opostas uma à outra; embora cada uma delas seja num certo sentido, como se diz, uma “mão direita”, sua distinção não é menos real, quanto mais não seja por serem duas. Pois a Natureza, que comporta a oposição, só é regida por aquilo que lhe corresponde. De resto, é devido a este endurecimento pelas Suas duas mãos que Deus chamou ao homem bashar,[154] palavra que alude à “suavidade” (al-mubasharah) que foi prodigada ao homem pelas duas Mãos divinas que o conformaram; isto significa um favor divino especial para com o gênero humano, pois [segundo o Corão] Deus disse àquele que recusou prosternar-se diante de Adão: “O que te impede de prosternar-te diante deste que Eu criei com Minhas duas mãos? Tu és orgulhoso (para com aquele que é teu semelhante, ou seja, que é feito de elementos como tu), ou és tu um dos seres superiores (al-‘alin)[155], que ultrapassam o domínio dos elementos, o que não é teu caso!”. Entendemos por espíritos superiores aqueles que, por sua essência e em sua natureza luminosa, elevam-se acima dos elementos, mesmo dependendo ainda da Natureza universal. O homem não ultrapassa as outras espécies do domínio elementar senão por ter sido “endurecido” pelas “duas Mãos” divinas; é por isso que sua espécie é mais nobre do que todas as espécies formadas de elementos sem este duplo aperto divino [que corresponde à natureza “central” do homem]; vale dizer que o homem possui uma dignidade superior à dos anjos terrestres [de que fazem parte os gênios], assim como dos anjos celestes [que povoam as sete esferas celestes, formadas das modalidades sutis dos elementos], enquanto que os Anjos superiores são melhores do que o gênero humano, segundo o texto sagrado [pois eles não tiveram que prosternar-se diante de Adão].
Aquele que quer conhecer a Expiração (nafas) divina deve considerar o mundo; pois, [segundo a palavra do Profeta] “aquele que conhece sua alma (nafashu), conhece seu Senhor” que se manifesta nele; eu entendo que o mundo manifesta-se na Expiração do Clemente, pela qual Deus “dilata” (naffasa) as possibilidades implicadas nos Nomes divinos, aliviando-as (naffasa) por assim dizer da contração de seu estado de não-manifestação; ao fazer isto, Ele foi generoso para consigo mesmo (fi nafsihi), de sorte que é deste lado que se afirma a primeira ação da Expiração (an-nafas) divina. Por conseguinte, o Ato divino não cessa de descer gradualmente pelo “alívio (tanfis) das angústias”[156] até a última das manifestações.
Tudo está contido na Expiração divina
como o dia no alvorada da manhã.
O Conhecimento transmitido por demonstração
é como a aurora para o sonolento;
de sorte que ele vê o que eu disse, como um sonho,
símbolo da Expiração divina, que, desde as trevas,
o alivia de toda angústia.
Ele já Se revelou àquele que veio buscar uma tocha,
 e que o viu como fogo, enquanto que Ele é uma luz
para os reis [espirituais] e os “viajantes”.
Se compreendes minhas palavras, saberás que tens necessidade
[da forma aparente]:
se [Moisés] houvesse procurado outra coisa [do que o fogo]
ele O teria visto nela, e não inversamente.
Quanto às palavras com que [segundo o Corão] Jesus respondeu a uma certa questão que Deus lhe propôs (sobre o mesmo tema que O fez dizer em outra parte: “Nós o provaremos até que saibamos” – eu entendo, como se ele quisesse saber se algo que havia sido atribuído a Jesus era verdadeiro ou não, embora Ele já o soubesse desde a eternidade), dizendo: “É verdade que dizes às pessoas que elas tomam a ti e tua mãe por divindades ao lado de Deus?”[157], foi preciso que sua resposta fosse conforme a relação e ao aspecto sob os quais se revelou o interlocutor; ora, a Sabedoria exigia, neste caso, que a resposta respeitasse a dualidade essencialmente contida na Unidade; e é por isso que Jesus disse – primeiramente exaltando a Deus acima das formas e ao mesmo tempo definindo-o com o pronome da segunda pessoa, que indica o confronto –: “Exaltado sejas, não está em mim” – vale dizer em meu ego, que se distingue de Ti – “dizer o que não me compete segundo a verdade” – pela minha identidade ou pela minha essência individual – , “se eu o disse, Tu sabes” – pois em realidade és Tu quem fala, e quem fala sabe o que diz; Tu és a língua com a qual eu falo (como nos ensinou o Enviado de Deus, sobre ele a Paz, ao reportar a mensagem divina: “...e Eu sou a língua com a qual ele fala, etc.”, pois Deus identifica-Se assim essencialmente com a língua do eleito que fala, e a palavra vem do indivíduo). Por conseguinte, o servidor santo [Jesus] disse, continuando sua resposta: “Tu sabes o que está em mim” – e é Deus [implicitamente] quem fala, – “e eu não sei o que está em Ti” – ou seja, eu não sei o que está no Si: esta expressão nega apenas o conhecimento da Ipseidade (al-huwiyah) como tal [em sua infinitude] e não na medida em que ela é a autora das palavras e dos atos [de Jesus]. “Em verdade, és Tu [o conhecedor dos segredos]”; pelo pronome Tu ele sublinha a distinção, pois apenas Deus [em Sua infinitude] conhece todos os segredos. É assim que ele separou [o indivíduo da essência divina] e uniu [os dois, dizendo: “se eu o disse, Tu o sabes...”]; ele afirmou a unicidade de Deus e a multiplicidade [que ela implica]; ele considerou o universal e o particular ao mesmo tempo.
Ele disse ao terminar sua resposta: “Eu não lhes disse senão o que me ordenastes dizer”; ele começou com uma negação, aludindo ao fato de que ele não tinha uma existência [própria]; a seguir, ele compensou esta negação com sua afirmação em relação ao seu interlocutor;  se ele não tivesse agido assim, é porque ele teria ignorado as Verdades divinas – e longe dele uma tal ignorância! –. Ele disse então: “senão o que me ordenastes”, por seres Tu que falas com a minha língua, porque Tu és minha própria língua! Observem esta consideração da polarização espiritual e divina [do Ato divino e daquele que o recebe]; o que poderia haver de mais sutil? – “[Eu não lhes disse senão o que me ordenastes dizer]: adorai a Deus”; ele empregou o nome de Deus (Allah) por causa dos diferentes pontos de vista dos adoradores e devido à diferença de cultos, pois este nome (Allah) compreende todos os aspectos divinos sem afirmar nenhum deles em particular; e ele acrescentou: “meu Senhor e vosso Senhor”, pois é certo que a relação que faz da Divindade o senhor de um dado ser manifestado é qualquer coisa de exclusiva; e é por isso que ele distinguiu entre “meu Senhor” e “vosso Senhor” pelos respectivos pronomes. Com as palavras: “...senão o que me ordenastes” ele descreveu a si mesmo como aquele que recebe a Ordem (al-amr), o que corresponde ao seu estado de servidor [perfeito], pois ninguém recebe ordens que não se espera que execute, mesmo se por acaso não o fizer.
Uma vez que a Ordem [ou o Ato] divino revela-se em conformidade com a hierarquia da Existência, tudo o que aparece aí em um ou outro grau desta hierarquia matiza-se segundo a realidade própria deste grau. O grau de quem recebe a Ordem [ou o Ato] implica uma certa condição que aparece em tudo o que recebe uma ordem; da mesma forma, o grau da Ordem [ou do Ato] implica uma condição que aparece em tudo o que ordena [ou age]. Assim, Deus diz: “cumpram a oração!”, e nisto Ele é o que ordena, enquanto que quem está obrigado ao culto recebe a ordem; por outro lado, o adorador diz: “Senhor, perdoai-me!”, e desta vez é ele quem ordena, enquanto que Deus recebe a ordem. Ora, aquilo que Deus exige com sua ordem da parte do adorador não é outra coisa do que aquilo que o adorador pede com sua ordem da parte de Deus; e é por isso, aliás, que toda prece é atendida, mesmo se a resposta é tardia. Da mesma forma, acontece  que alguns adoradores, que receberam a ordem divina de cumprir a oração numa dada hora, atrasam o cumprimento e só o fazem na hora em que podem; neste caso igualmente, a obediência da ordem é postergada, embora ela deva certamente acontecer [de parte do adorador verdadeiro], nem que seja na simples intenção [de cumprir o rito ordenado].
Na sequência, Jesus diz: “eu fui o testemunho deles” – ele não se inclui, como o fez dizendo: “meu Senhor” e “vosso Senhor” – “enquanto permaneci entre eles”, pois os profetas são os testemunhos das suas comunidades enquanto vivem;  “mas quando Tu me recolheres” – ou seja, quando Tu me elevares até Ti e me esconderes deles e eles de mim – “serás Tu o observador” – não mais através da minha substância, mas nas suas próprias substâncias, pois será Tu o olhar interior que os observará; pois a consciência que o homem tem de si mesmo é a consciência de Deus a seu respeito. Jesus designa Deus pelo nome de observador (ar-raqib), após ter designado a si mesmo como testemunho (ash-shahid), para frisar a diferença entre ele e seu Senhor, a fim de que saibamos que ele considerava a si mesmo como servidor e a Deus como seu próprio Senhor. Ora, saibam que a Deus, o Observador, pertence também o nome que Jesus, em suas palavras “eu fui seu testemunho”, atribui a si mesmo, pois Jesus diz também: “e Tu és o testemunho de todas as coisas”; ele diz “coisa” (shay’) no sentido de uma negação das negações, de modo que a expressão “todas as coisas” compreende absolutamente tudo; e ele empregou o Nome divino O Testemunho no sentido que Deus contempla a realidade própria e essencial de todas as coisas. Com isto ele indicou que o próprio Deus era o Testemunho da comunidade de Jesus, da qual ele dissera: “eu fui seu testemunho enquanto permaneci entre eles”; trata-se do Testemunho divino na substância de Jesus, segundo o sentido da mensagem divina bem conhecida, que afirma que Deus é a língua, o ouvido e os olhos [do eleito]. Depois ele pronunciou uma palavra que é tanto de Jesus quanto de Maomé: ela é de Jesus, porque é atribuída a ele na Escritura divina; e é de Maomé porque este a pronunciou numa certa ocasião e a recitou por toda uma noite, sem passar a outra coisa até a aurora: “se Tu os castigas, eles são Teus servidores; e se Tu os perdoas, és Tu o Poderoso, o Sábio”. O pronome “eles” exprime a ausência atual daquele de quem se fala; e neste caso, a ausência daqueles de quem Jesus diz: “se Tu os castigas, etc.” é como o véu que lhes esconde Deus. É assim que Jesus os lembra a Deus antes que eles se apresentem diante d’Ele, para que o fermento aja sobre a massa, no momento em que se mostrarem diante de Deus, e que a massa [sua substância receptiva] esteja então à altura do fermento [sua consciência espiritual]. Ao dizer: “eles são Teus servidores”, ele afirma que é apenas a Deus que eles adoram; ao mesmo tempo, ele demonstra seu extremo estado de humilhação, pois ninguém é mais humilde  do que o servidor ou escravo (al-abd)  que não dispõe de si mesmo mas depende inteiramente da lei que lhe impõe seu senhor único. Ao chamá-los “Teus servidores” (ou escravos), ele exprime a exclusiva  Senhoridade [de Deus sobre eles]; ora, o castigo significa humilhação; [é como se ele dissesse:] Tu não os humilhas senão pelo fato de que eles são Teus escravos. “E se Tu os perdoas” – ou seja, se Tu os cobre e os protege do castigo que atraíram - “Tu és o Poderoso (al-aziz)” – ou seja, o Protetor. Quando Deus confere este nome al-aziz [que significa também “o amado”, “o querido”, “o precioso”] a um dos seus servidores, Deus torna-se o amante em relação a este servidor e o preserva da interferência do Nome O Vingador, de onde provém o castigo.
Por outro lado, Jesus distinguiu a Divindade da criatura, recapitulando aliás esta distinção por afirmações análogas, como: “pois és Tu o Conhecedor dos segredos”, “és Tu o seu observador”, e: “és Tu o Poderoso, o Sábio”.
A expressão: “Se Tu os castigas, etc.”, torna-se, nos lábios do Profeta, um pedido insistente, pois ele o repetiu a seu Senhor por toda uma noite,  até o levantar da aurora, implorando uma resposta. Se ele tivesse escutado a resposta logo na primeira demanda, ele não teria insistido; mas Deus lhe mostrou de modo cabal as razões pelas quais eles mereciam o castigo, e o Profeta Lhe respondeu cada vez: “Se Tu os castigas, eles são Teus servidores; e se Tu os perdoas, Tu és o Poderoso, o Sábio”; se ele tivesse reconhecido para qual lado pendia a decisão divina, ele teria pedido o perdão para eles no sentido indicado; entretanto, Deus não lhe mostrou, conforme o versículo citado, senão sua dependência do perdão divino. Segundo o dizer do Profeta, Deus, quando lhe agrada a voz de Seu servidor que ora, retarda o atendimento à oração, para que o servidor repita sua prece, e Ele age assim por amor e não porque tenha se afastado dele. Por esta razão, Jesus mencionou o Nome O Sábio (al-hakim), pois este nome designa aquele que coloca cada coisa em seu lugar e não fica indiferente àquilo que a realidade de cada coisa exige em virtude de suas qualidades [particulares]; o sábio é portanto aquele que conhece a ordem das coisas.
Ao repetir este versículo do Corão, o Profeta contemplou um conhecimento imenso que Deus lhe havia dado; que aquele que recite este versículo esteja consciente disto, ou se retire! Quando Deus obriga alguém a persistir numa prece, Ele só o faz tendo em vista atender e satisfazer o pedido. Que ninguém relaxe a prece que lhe foi assinalada, mas insista com a perseverança que teve o Enviado de Deus ao recitar esse versículo, em todos os estados,  até que ele ouviu a resposta com sua orelha – como você verá, ou como Deus  o fará compreender. Se Deus aceitar a prece da tua língua, Ele fará com que você escute Sua resposta com a orelha; e se Ele aceitar a sua prece do espírito, ele fará você escutar Sua resposta com  seu ouvido.




[1]              Traduzimos aqui a’yan por “essências”, porque trata-se das essências dos Nomes por oposição com suas formas verbais ou ideais. O objeto da “visão” divina reside nas possibilidades essenciais que correspondem aos “Nomes perfeitíssimos”, a saber os “aspectos” universais e permanentes do Ser. Quando falamos da Essência una e única de todos os Nomes ou Qualidades divinas, empregamos o termo adh-dhat.
[2]              O termo al-‘ayn (singular de a’yan) comporta os significados de “determinação essencial”, “essência pessoal”, “arquétipo”, “olho”, “fonte”. Esta frase significa assim que Deus quis ver-Se, com a restrição de que Sua “visão” não se refere à Sua Essência absoluta (adh-dath), que transcende toda determinação, mesmo principial, mas à Sua determinação imediata (‘aynah), Seu “aspecto pessoal”, que é caracterizado precisamente pelas Qualidades perfeitas expressas pelos Nomes.
[3]              Ou do Ser, pois o termo al-wujud tem os dois sentidos. Alguns manuscritos trazem a variante: “...sendo dotado de faces (al-wujuh)...”, ou seja de múltiplos “planos de reflexão” que diferenciam a irradiação (at-tajalli) divina.
[4]              A Ordem divina é simbolizada pela palavra “seja!” (kun); ela identifica-se assim ao princípio da Existência.
[5]              Alusão à palavra divina (hadith qudsi) revelada pela boca do Profeta: “Eu era um tesouro escondido; Eu quis ser conhecido (ou: conhecer), e Eu criei o mundo.”
[6]              O ato visual é tomado aqui como símbolo do Conhecimento em sua natureza universal.
[7]              Literalmente: “a coisa” (ash-shay). Ibn’Arabi emprega às vezes este termo “coisa” para designar uma realidade que ele não quer definir de nenhuma maneira; ele não diz “a Essência” (adh-dath), para não afirmar a transcendência e a não-manifestação daquilo que se trata, e ele também não diz “o ser” ou “a Existência” (al-wujud), para não sublinhar a imanência e a manifestação.
[8]              Ou “homogênea” (musawwi), vale dizer que não possui ainda a marca qualitativa e diferenciada do Espírito.
[9]              Rawh: “graça”, “liberdade”; alguns lêem ruh, “espírito”.
[10]             Trata-se do caos primordial, ou das possibilidades de manifestação, ainda virtuais, confundindo-se na indiferenciação da materia.
[11]             “Quando Eu o formei e Eu assoprei nele Meu Espírito...” (Corão, XV, 29).
[12]             A imagem de uma “efusão”, de um “transbordamento” ou de uma “emanação” do Ser (al-wujud) ou da Luz divina (an-nur) nas “formas” receptivas do mundo não deve ser entendida como uma emanação substancial, pois o Ser – ou a Luz divina incriada – não procede de fora de Si mesmo. Esta imagem exprime ao contrário a superabundância soberana  da Realidade divina, que desdobra e ilumina as possibilidades relativas do mundo, de tal modo que Ela seja “rica em Si mesma” (ghani binafsih) e que a existência do mundo não acrescente nada à Sua infinitude. O simbolismo da “efusão” divina refere-se a esta palavra do Profeta: “Deus criou o mundo nas trevas, depois Ele despejou (afada) sobre ele a Sua Luz”.
[13]             Al-tajalli significa “revelação” (em sentido geral), “desvelamento” e “irradiação”; quando o sol, coberto por nuvens, se “revela”, sua luz “irradia” sobre a terra.
[14]             Do ponto de vista cosmológico, este receptáculo corresponde à substância passiva, a materia prima ou princípio plástico de um mundo ou de um ser. Do ponto de vista puramente metafísico, o receptáculo que se opõe – de um modo inteiramente principial e lógico – à “efusão” incessante do Ser, reduz-se à possibilidade principial, o arquétipo ou “essência imutável” (al-a’yn  ath-thabitah) de um mundo ou se um ser.
[15]             O sufi persa Nur ad-din ‘Abd ar-Rahman Jami explica assim esta passagem: “A majestade de Deus (al-haqq) revela-se de duas maneiras: uma delas, que corresponde à revelação interior, puramente inteligível, que os sufis chamam Efusão santísima, consiste na auto-revelação de Deus manifestando eternamente a Si mesmo sob a forma dos arquétipos e daquilo que eles implicam em termos de caracteres e capacidades; a segunda revelação é a manifestação exterior, objetiva, que é chamada de Efusão santa (al-fayd al-muqaddas); ela consiste na manifestação de Deus mediante a imprimadura desses mesmos arquétipos. Esta segunda revelação é consecutiva à primeira; ela é o teatro onde aparecem as perfeições que, segundo a primeira revelação, estão virtualmente contidas nos caracteres e capacidades dos arquétipos” (Lawaih, cap. XXX; edição do texto persa e tradução inglesa por E.H. Whinfield e Mirza Muhammad Kazvini; Oriental Translation Fund, New Series Vol. XVI, Royal Asiatic Society). Neste texto, as expressões “formas” ou “caracteres” que se referem aos arquétipos, devem ser compreendidas como simples “alusões”, porque os arquétipos ou “essências imutáveis” estão evidentemente além de toda e qualquer individuação ou distinção formal.
[16]             O termo amr significa em primeiro lugar “ordem”, “comando”, mas comporta também o sentido de “realidade” e de “ato”. A Ordem divina “seja!” corresponde ao ato puro.
[17]             “Dele é o reino dos céus e da terra. A Deus retornarão as realidades” [al-umur, ou seja as realidades incriadas das criaturas] (Corão, LVII, 5).
[18]             No texto original, todo o início do capítulo até este ponto forma uma única frase com múltiplas proposições incidentes; é um conjunto lógico que descreve todos os aspectos essenciais da Manifestação divina.
[19]             “E quando teu senhor disse aos Anjos: Em verdade, Eu colocarei um vigário [um preposto] sobre a terra, eles responderam: Colocarás alguém ali que irá semear a corrupção e verterá o sangue, enquanto nós celebramos Tuas glórias e Te proclamamos Santo? Ele disse: Em verdade, Eu sei o que vós não sabeis. E Ele ensinou a Adão todos os nomes, e depois os mostrou  aos Anjos e lhes disse: Anunciai-Me os nomes destes, se sois verdadeiros! Eles responderam: Louvado sejas, não temos ciência fora daquilo que Tu nos ensinastes, pois Tu és o Conhecedor, o Sábio! Ele disse: Ó Adão,  faze-os conhecer seus nomes! E quando ele os tinha feito conhecer seus nomes, Ele disse: Não vos disse Eu que Eu conheço os segredos dos céus e da terra e que Eu conheço o que escondeis e o que mostrais? E quando Nós dissemos aos Anjos: Prosternai-vos diante de Adão, eles prosternaram-se todos menos Iblis (o diabo), que recusou,  tomou-se de orgulho e se tornou infiel” (Corão, II, 28 ss).
[20]             A expressão “forma” (çurah) é uma das que os autores sufis utilizam de maneira bastante livre, pois ela é susceptível de diversas transposições além do seu significado mais próximo, o de “delimitação”; a forma de uma coisa comporta um aspecto puramente qualitativo, sendo a qualidade de natureza essencial; por outro lado, na medida em que a forma de um ser opõe-se ao seu espírito, ela conduz simbolicamente à função receptiva da materia.
[21]             Segundo o adágio sufi: “O homem é um pequeno cosmo, e o cosmo é como um grande homem.”
[22]             A unicidade divina, em virtude da qual todo ser é único.
[23]             O “lado divino” é a soma das Qualidades divinas, a Divindade na medida em que Ela produz e domina o mundo (o “lado criatural”).
[24]             A “Realidade das realidades” ou “Verdade das verdades” corresponde ao Verbo (Logos) enquanto “lugar” de todas as possibilidades de manifestação. Ela é o mediador eterno, a “Realidade Maometana” (al-haqiqat al-muhammadiyah), o “istmo” (barzakh) entre o Ser puro e a existência relativa, assim como entre a não-manifestação e a manifestação. Ela é o protótipo de tudo; nada existe que não traga a sua marca.

[25]             A Natureza universal é o poder receptivo universal, a “matriz” do cosmo. Segundo os cosmólogos helenizantes, a Natureza se reduz ao princípio plástico do mundo formal, à raiz dos quatro elementos e das quatro qualidades sensíveis, que regem todas as mudanças de ordem física. Ibn’Arabi, ao transpor os elementos para a ordem cósmica total, atribui à Natureza uma função bastante mais vasta, coextensiva a toda a manifestação, incluido-se aí os estados angélicos. Ela é assim análoga àquilo que os hindus designam como Maya ou como a Shakti universal, aspecto maternal e dinâmico de Prakriti, a Substância ou Materia Prima. Acrescentemos no entanto que este princípio não desempenha, no ensinamento de Ibn’Arabi, o mesmo papel fundamental que ele assume na doutrina advaita, uma vez que o Islam considera as funções produtivas do universo de uma maneira eminentemente “teocêntrica”.
[26]             A criatura tem “pretensão” à totalidade em virtude de sua origem divina, de seu protótipo universal e de sua raiz  natural.
[27]             ‘Abd ar-Razzaq al-Qashani esclerece que a razão, que é o elemento engendrado pela polaridade ativo-passivo, da Ordem divina (al-amr) e da Natureza (at-tabi’ah), não pode ultrapassar esta polaridade e compreendê-la “desde cima”.
[28]             Trata-se dos dois aspectos de toda palavra revelada, e aos quais se reportam as duas designações do Corão como “Recitação” (al-qu’ran) e como “Discriminação” (al-furqan).
[29]             Os “universais”, segundo a terminologia escolástica.
[30]             Segundo a linguagem que aqui utiliza Ibn’Arabi, a idéia de “existência individual” (wujud ‘ayni) pode ser transposta simbolicamente para além da condição formal, que é o domínio da individuação propriamente dita. Assim, por exemplo, um Anjo não é um “indivíduo”, porque ele não representa uma variação no interior de uma espécie; no entanto, o argumento enunciado acima aplica-se igualmente aos Anjos.
[31]             Al-mawjudat al-‘ayniyah: as existências – ou realidades – individuais ou substanciais; ver nota precedente.
[32]             Ou seja, não-manifestada.
[33]             Segundo a palavra do Profeta: “Deus Se esconde atrás de sessenta e quatro mil véus de luz e de trevas; se Ele os erguesse, as fulgurações de Sua Face consumiriam qualquer um que O olhasse”.
[34]             Corão, XXXVIII, 75.
[35]             O simbolismo das duas Mãos de Deus encontra-se também na Cabala, notadamente no Zohar, onde elas são comparadas ao Céu e à Terra enquanto princípios ativo e passivo da manifestação.
[36]             Segundo a palavra divina revelada pela boca do Profeta: “Meu servidor não pode aproximar-se de Mim com nada que Me agrade mais do aquilo que Eu lhe impus. Meu servidor aproxima-se sem cessar de Mim com obras gratuitas até que Eu o ame; e quando Eu o amo, Eu sou o ouvido através do qual ele ouve, a vista pela qual ele vê, a mão com a qual ele pega e o pé com o qual ele caminha; se ele Me pede, Eu lhe dou certamente, e se ele busca Minha ajuda, Eu o socorro certamente” (citado por al-Bukhari conforme Abu Hurayrah).
[37]             A expressão “forma” é aqui análoga à noção peripatética de forma (eidos), ou seja uma marca qualitativa; lembramos que a qualidade pode ser transposta ao universal puro. Em referência à palavra do Profeta: “Deus criou Adão em sua forma (çurah)”, o Sufismo chama de “Forma divina” o conjunto de Qualidades perfeitas pelas quais Deus Se revela no universo.
[38]             Segundo al-Qashani: “Tomai-o por salvaguarda na louvação atribuindo as limitações a vós e todas as qualidades positivas a Deus, conforme a palavra corânica: “Todo bem que te acontece vem de Deus, e todo mal que te fere vem de ti mesmo”. (Corão, IV, 81).
[39]             Segundo o relato corânico: “E quando teu Senhor tirou dos rins de Adão sua semente e os tomou como testemunho diante deles: Não sou Eu vosso Senhor?, eles responderam: Sim, nós o atestamos; isto, para que digais no dia da ressurreição: em verdade, nós o negligenciamos” (Corão, VII, 171).
[40]             Seth era o dom de Deus para Adão. Pelo seu nascimento, a morte de Abel foi compensada e a ordem destruída foi restabelecida. Como primeiro profeta dentre os descendentes de Adão, ele foi o verdadeiro filho, corporal e espiritual, de seu pai. Ora, como escreve Ibn’Arabi no capítulo sobre Enoch, “o filho é o segredo de seu pai”, ou seja ele simboliza seu aspecto interior. Conforme este simbolismo, este capítulo apresenta uma perspectiva espiritual inversa em relação àquela representada no capítulo precedente. Enquanto que o capítulo sobre Adão descreve a manifestação universal de Deus, ou a “visão” que Deus tem de Si mesmo no Homem universal, o capítulo sobre Seth tem por objeto a revelação interior de Deus ou o conhecimento que o homem tem de si mesmo no “espelho” divino.
[41]             Corão, XVII, 12.
[42]             A essência imutável ou o arquétipo não possui um ser como tal, pois ela não passa de uma possibilidade não-manifestada contida na Essência divina. É de um modo simbólico que o arquétipo pode ser considerado como um receptáculo (qabil) ou um “molde” que se “opõe” ao Ser divino – ver o início do capítulo sobre Adão.
[43]             Segundo a terminologia advaita, Deus é o Sujeito – ou o Testemunho (sakshin) – absoluto que jamais se torna “objeto” de conhecimento. É n’Ele e por Ele que todas as coisas são percebidas, enquanto Ele permanece sempre como o pano-de-fundo intangível. “Os olhares não o atingem, mas é Ele que atinge os olhares”, diz o Corão (VI,3)
[44]             Na “Divina Comédia”,  Adão explica a Dante sua visão intemporal da natureza dos seres em Deus: “Porque eu a vejo no espelho verdadeiro / que faz por si mesmo de paredro as outras coisas / e que nada faz de paredro”. (Paraiso, XXVI, 106 ss.)
[45]             Título do Profeta Maomé, último dos legisladores inspirados por Deus.
[46]             O papel de “Selo dos profetas” corresponde a uma função cíclica aparente, enquanto que a função de “Selo dos santos” é necessariamente intemporal e oculta; ela representa o protótipo da espiritualidade, independentemente de qualquer “missão” (risalah)
[47]             Todo “enviado” (rasul) é profeta (nabi) por seu grau de inspiração; entretanto, só é chamado de “enviado” aquele que promulga uma nova lei sagrada.
[48]             O simbolismo do tabernáculo (al-mishkat) ou do “Nicho das Luzes” refere-se à seguinte passagem corânica: “Allah é a Luz dos céus e da terra; o símbolo de Sua Luz é como um tabernáculo [ou nicho], no qual está uma lâmpada; a lâmpada está num vidro; o vidro é como uma estrela brilhante. Ela é acesa [com o óleo] de uma oliveira abençoada, que não é do Oriente nem do Ocidente, e cujo óleo é quase luminoso, mesmo quando o fogo não o toca. Luz sobre Luz. Allah conduz para Sua Luz a quem lhe apraz; e Allah propõe parábolas aos homens; e Allah conhece todas as coisas” (XXIV, 35). No Sufismo, o “Nicho das Luzes” é identificado ao foro interior do Homem Universal.
[49]             Nas “Revelações de Meca” Ibn’Arabi fala também do “Selo da santidade dos profetas e dos enviados” (IV, 57); ele entende por isto o Cristo quando da sua segunda vinda antes do final dos tempos. Esta função, que pode parecer contraditória em si mesma, explica-se da seguinte maneira: o “enviado” que “selará” o presente grande ciclo da humanidade e que salvará os eleitos fazendo-os passar para o ciclo futuro, não pode evidentemente trazer uma nova lei sagrada, que não teria sentido para uma coletividade que deve subsistir como tal, mas fará ao contrário transparecer as verdades intrínsecas comuns a todas as formas tradicionais; ele irá dirigir-se à humanidade inteira, o que ele só poderá fazer situando-se de certo modo no plano esotérico, que é o do santo contemplativo (al-wali); entretanto, ele será profeta e enviado, de uma maneira implícita, devido à sua função eminentemente cíclica, mas ele será explicitamente um “santo”, enquanto que foi o inverso que aconteceu com quase todos os profetas precedentes. Lembremos aqui que o Cristo, de quem o Corão fala como um “enviado” (rasul), manifesta desde a sua primeira vinda esta “extroversão” da “santidade” (wilaya) e do esoterismo, o que faz dele, aos olhos dos sufis, o modelo do santo por excelência; e é preciso que seja assim para que haja, fora de qualquer questão de ordem cosmológica, uma verdadeira identidade espiritual entre o Cristo anterior a Maomé e o Cristo “retornando” no final dos tempos. Na mesma passagem das “Revelações”, Ibn’Arabi fala do “Selo da santidade maometana”, que ele distingue do “Selo da santidade dos profetas e enviados”; o primeiro é também o “Selo da santidade universal”.
[50]             “Meu lugar entre os profetas é assim: um homem construiu um muro, e ele o terminou, à exceção de um único tijolo faltante; eu sou este tijolo; depois de mim não haverá mais enviados (rasul)  nem profetas (nabi)”. (Hadith)
[51]             Cf. a palavra do Cristo: “Antes que Abraão existisse, eu existia” (Jo, VIII, 58).
[52]            Os estados contemplativos podem ser concebidos como “Presenças”  (hadarat) divinas, ou como modalidades diversas da Presença única de Deus. Existe um número indefinido de Presenças divinas; entretanto, distinguem-se geralmente cinco Presenças fundamentais, conforme diversos esquemas dos quais mencionaremos o seguinte: à “Presença da não-manifestação absoluta” (hadarat al-ghayb al-mutlaq) opõe-se – não dentro da Realidade divina  mas segundo um ponto de vista estritamente humano e provisório – a “Presença da manifestação acabada” (hadarat ash-shahadat al-mutlaqah), ou seja o mundo “objetivo”. Entre estas duas Presenças situa-se a “Presença da não-manifestação relativa” (hadarat al-ghayb al-mudafi)  que se subdivide por sua vez em relação a duas regiões cósmicas distintas, das quais uma, a da existência supra-formal (al-jabarut), está mais próxima da “não-manifestação absoluta”, enquanto que a outra, a do mundo das formas sutis (alam al-mithal) aproxima-se da “manifestação acabada”. Estas quatro Presenças estão todas englobadas numa quinta, a “Presença total”  (al-hadarat al-jam’iyah) que identifica-se ao Homem universal (al-insan al-kamil). Acrescentaremos que esta distinção das “Presenças” é solidária de uma perspectiva por assim dizer “prática”, ou seja em conexão com a via contemplativa e não com a pura doutrina metafísica.

[53]             A teologia islâmica, como a dos padres gregos, distingue duas maneiras de encarar a natureza divina: a “exaltação” ou “distanciamento” (at-tanzih), que nega toda e qualquer similitude de Deus com as coisas e afirma assim Sua transcendência, e a “comparação” ou “analogia” (at-tashbi), que ao contrário descreve Deus por meio de símbolos  e manifesta com isto Sua imanência às coisas. As duas perspectivas são na verdade complementares, e o erro doutrinal consiste em manter uma à exclusão da outra;  o “distanciamento” é superior à “comparação”,  no sentido de que a negação de toda determinação limitativa, portanto a negação de toda  negação,  é a afirmação mais universal; entretanto, o “distanciamento” unilateral acaba por excluir o mundo da natureza divina e por conseguinte a limitá-la opondo Deus ao mundo; quanto ao ponto de vista da “comparação”, ele é teoricamente inferior ao primeiro, mas superior em sua realização contemplativa, pois ele corresponde ao assentimento direto do incriado dentro do criado; por seu turno, ele implica o risco de limitar a natureza divina.
[54]             As línguas arcaicas, como o árabe, comportam uma pluralidade de sentidos em uma mesma expressão.
[55]             Ou seja, o conjunto das Qualidades divinas.
[56]             Esta maneira de se exprimir é intencionalmente paradoxal; com efeito, as Qualidades divinas não podem ser “definidas” no sentido próprio do termo, assim como não podem ser delimitadas. Também a expressão “forma”, nas passagens seguintes, deve ser transposta.
[57]             Traduzimos aqui apenas a primeira parte do capítulo sobre Noé, pois a continuação, uma exegese das passagens corânicas que tratam da história deste patriarca, apoia-se sobre um simbolismo verbal impossível de se transpor para outra língua. Segundo o Corão, Noé revelou a unidade e a transcendência divinas a um povo idólatra. A idolatria resulta de uma afirmação unilateral do ponto de vista da “comparação”, ou da imanência, em detrimento da transcendência divina. Segundo Ibn’Arabi, os ídolos adorados pelo povo que pereceu no dilúvio, não eram outra coisa que personificações dos Nomes divinos – de “aspectos” do Ser supremo – cuja realidade transcendente e cuja unidade essencial haviam sido esquecidas por este povo. O erro dos idólatras suscitou a prédica de Noé, no sentido que ele teve que afirmar a transcendência e foi impedido de afirmar explicitamente a imanência de Deus, pois a função cósmica da profecia comporta a compensação dos desequilíbrios e se acha de certo modo ligada por esta lei. De seu lado, os idólatras permaneceram determinados pela verdade que seu erro deformava, de modo que a fala de Noé os acirrou ainda mais em sua atitude. Toda revelação profética produz assim, pelo que ela nega e pelo que ela afirma, oposições sobre o plano terrestre e provoca finalmente, na economia das formas tradicionais, afirmações e negações complementares.
[58]             An-Nabulusi comenta: “... porque elas não passam de possibilidades puras, que como tais jamais passarão ao estado de ser necessário”.
[59]             A Natureza possui quatro determinações fundamentais que se exprimem na ordem sensível pelo calor, o frio, a secura e a umidade, qualidades que podemos chamar de “agentes” de todas as mudanças naturais.
[60]             A palavra khalil comporta a idéia de “penetração”.
[61]             O comentador an-Nabulusi cita como exemplo a palavra, transmitida como haddith qudsi (“palavra divina”): “Eu estava faminto, e tu não me alimentastes; Eu estava doente, e tu não me curastes, etc.”.
[62]             Al-Qashani explica que o mal não passa de uma privação relativa do Ser, portanto do bem, pois o mal não tem existência em si mesmo. São Denis o Areopagita já havia exposto esta verdade. Como exemplo particularmente claro, al-Qashani menciona a má paixão amorosa, que é reprovável  não na sua essência, que é o amor, mas como acidente, ou seja quando ela contradiz sua própria essência, o amor integral.
[63]             Trata-se de uma diferença de perspectivas, portanto de uma incompatibilidade extrínseca de pontos de vista,  pois ambos os sábios não estão errados.
[64]             Expressão árabe que significa que a realidade de uma coisa é posta a nu (Corão, LXVIII,41)
[65]             Em seu livro “O Homem Universal”, o sufi Abd al-Karim al-Jili escreve a respeito: Não é exato dizer que os objetos do conhecimento afirmam-se neste por si mesmos, porque resultaria daí que Deus coloca algo em outro que não Ele. O imam Ibn’Arabi expressou-se de uma maneira defeituosa ao dizer que os objetos do Conhecimento divino comunicam-se por si mesmos a este. Nós o desculparemos e não diremos que isto é tudo o que ele conhece. Quanto a nós, achamos que Deus conhece tudo em princípio, sem que Seu conhecimento resulte da natureza de seus objetos como tais; apenas, estes objetos implicam enquanto tais aquilo que Deus já conhecia deles principialmente, e sob este segundo aspecto eles afirmam suas essências próprias n’Ele...” (capítulo sobre o Conhecimento).  A divergência dos dois pontos de vista explica-se da seguinte maneira: para Ibn’Arabi, os objetos do Conhecimento divino são as “essências imutáveis” (al-a’yan ath-thabitah) que não tem existência própria, mas que não passam de possibilidades inerentes à Essência infinita. O equívoco, na expressão de Ibn’Arabi, vem portanto daquilo que ele fala destas essências como realidades distintas, e neste sentido Jili tem razão em contestá-lo. Mas a “visão” intelectual de Ibn’Arabi comporta a seguinte síntese: o Conhecimento divino preenche as possibilidades essenciais, que não são outra coisa que Deus; ele “concebe” ao mesmo tempo estas essências enquanto tais e tudo o que elas implicam de desenvolvimentos relativos, e, pelo fato mesmo de que ele é absoluto em sua identificação com o absoluto, ele aparece como relativo em sua identificação com o relativo.
[66]             Corão, XXXVII, 164.
[67]             Trata-se sempre de Deus (al-haqq) em seu aspecto “pessoal” correlativo da criação, e não a Essência absoluta, em face da qual a criatura é nula.
[68]             Sua hospitalidade para com os três Anjos do Senhor é o modelo de toda hospitalidade.
[69]             Sufi andaluz que ensinou a cosmologia.
[70]             A cosmologia sufi é ligada à angelologia, assim como o mundo “natural” é ligado ao mundo espiritual.
[71]             Desde que os Nomes ou as Qualidades divinas comportam necessariamente uma ordem hierárquica, podemos também chamá-los de “graus” ou de “estações” da manifestação principial de Deus.
[72]             O que Ibn’Arabi ensina neste capítulo é expresso por Maitre Eckhart nestas palavras: “No princípio, eu era, eu  meditei sobre mim  mesmo, eu quis de minha vontade produzir este homem que sou, eu sou minha própria causa a partir de minha essência eterna, como depois de minha aparição no tempo. Aquilo que eu era na eternidade, eu o sou agora, e continuarei para sempre, enquanto que aquilo que eu sou no tempo passará e desaparecerá com o próprio tempo. No ato de meu nascimento eterno, todas as coisas foram engendradas comigo, e eu me tornei minha própria causa e de todo o resto, e se eu o quisesse, eu não seria mais nem eu, nem tudo; se eu não fosse, Deus não seria” (cf. Emmanuel Aergertes, Le Mysticisme, Paris, 1952, pg. 78)
[73]             Ao substituir a vítima humana, o animal sacrificado “ajuda” o homem em sua reconciliação com o Céu. Por outro lado, o sacrifício favorece o animal fazendo-o participar da função sacerdotal do homem, mediador entre o “Céu” e a “terra”. Como o judaísmo, o Islã perpetua ritualmente o sacrifício de Abraão pela imolação de um cordeiro. Para os cristãos o sacrifício de Abraão prefigura o sacrifício do Cristo, por sua vez perpetuado no rito da Eucaristia.
[74]             O objeto a sacrificar não pode ser substituído senão por aquilo que ele contém essencialmente.
[75]             Se o homem é superior ao animal por sua participação ativa na Inteligência, o animal de seu lado é superior ao homem por sua natureza primordial, ou seja por sua fidelidade à norma cósmica; é neste sentido que o animal nobre revela um aspecto interior e supra-racional da própria essência do homem, e é isto que constitui a “ordem lógica” do sacrifício, assegurando o ganho para o homem e “compensando a perda”  para o animal.
[76]             Esta afirmação parece contradizer a doutrina revelada segundo a qual o homem é o representante de Deus sobre a terra, enquanto os demais seres terrestres lhe estão submetidos. Entretanto, se é assim segundo uma certa perspectiva, a saber aquela que considera as possibilidades espirituais dos seres, a ordem inversa é igualmente real segundo outro ponto de vista, pois a perfeição “substancial” dos seres é de certa forma oposta às suas virtualidades essenciais; o mundo – diz Ibn’Arabi no capítulo sobre Seth – é como um espelho “onde as realidades se invertem e se tornam ambíguas”. É em virtude desta lei de inversão que o diamante, por exemplo, é a imagem mais perfeita do Espírito – ou do Intelecto – embora este seja ato puro e que o mineral é o que há de mais passivo em nosso mundo. A superioridade do homem sobre os outros seres terrestres – que foram criados antes dele – é de natureza relativamente “interior”, enquanto que a superioridade do animal sobre o homem, ou da planta sobre o animal, ou do mineral sobre a planta, consiste numa maior “exteriorização” das perfeições essenciais.
[77]             Vale dizer por uma contemplação de certo modo natural, que se confunde com a “forma” essencial da espécie.
[78]             O sufi Abu Yazid al-Bustami.
[79]             Corão, XXXVII, 102.
[80]             No capítulo sobre Enoch, Ibn’Arabi indica um outro aspecto do sacrifício, de ordem ainda mais “interior”: a criança é o símbolo da alma –  ou da realidade interior – de seu gerador; assim, a imolação do próprio filho significa o sacrifício de si mesmo; assim, o cordeiro é o símbolo da alma de Abraão. Este viu sua alma, de um lado, em sua visão interior, sob a forma de seu filho; ela lhe apareceu, no mundo exterior, sob a forma de um cordeiro. É  preciso esclarecer que o Corão fala de uma visão (ruya) ou de um sonho profético que havia determinado a Abraão imolar seu filho. O episódio comentado mostra a dupla refração das realidades eternas no mundo das formas, que se distingue em um domínio “subjetivo” e outro “objetivo”, englobados ambos na “imaginação” (al-khayal) cósmica: a aparição da alma sob a forma de um filho provém de uma projeção “subjetiva”, enquanto que a transposição da criança num cordeiro baseia-se no complementarismo entre o macro e o microcosmos: neste último o animal sacrificial ocupa o lugar que está reservado simbolicamente ao “filho do homem”.
[81]             O episódio de que se trata é o seguinte: um homem chegou ao Profeta e lhe disse: “esta noite eu vi em sonhos uma nuvem da qual chovia gordura e mel; eu vi pessoas que recolhiam com as mãos o que caía; alguns receberam mais, outros menos. E eu vi uma corda que descia do céu à terra; tu a agarraste e foste levado ao céu; um homem a agarrou depois de ti e foi levado ao céu; depois um outro homem a agarrou e foi levado; depois um outro homem a agarrou e foi derrubado; depois a corda veio a ele de novo e ele foi levado”. Então Abu Bakr disse: “Ó enviado de Deus, por meu pai, por ti e por Deus, se me permites eu vou interpretá-lo”. O enviado de Deus disse: “Interpreta-o”. Abu Bakr disse: “Quanto à nuvem, ela é a nuvem do Islam; quanto à chuva de gordura e mel, isto significa a doçura e a unção do Corão, que as pessoas recolhem mais ou menos. A corda que desce do céu à terra é a verdade à qual te agarras; tu a pegaste e Deus ergueu-te por ela; um homem a tomou depois de ti e foi elevado; depois outro homem a agarrou e foi elevado, e depois outro a agarrou e foi derrubado; a seguir ela chegou novamente a ele e o elevou igualmente. Dize-me então, ó enviado de Deus,  por meu pai, o que eu disse foi verdadeiro ou falso?” O enviado de Deus respondeu: : “Tu adivinhaste bem uma parte, e perdeste o sentido da outra parte” Ele disse: “Por Deus, ó enviado de Deus, conta-me aquilo cujo sentido eu perdi.” Ele respondeu: “Não me obrigues!” – An-Nabulusi, que conta esta história a partir de Muslim, observa que a visão de três  homens que agarraram a corda depois do Profeta provavelmente trouxe à história os três califas, dos quais o primeiro foi o próprio Abu Bakr e o terceiro foi Othman, contra quem os muçulmanos se revoltaram, e que foi assassinado pelos revoltosos e reconhecido como santo após a morte.
[82]             Corão, XXXVII, 105.
[83]             Corão, XII, 42.
[84]             Assim, a visão de Abraão indicava de fato a imolação ritual do cordeiro, sem o que ela não teria sido sequer profética. Acrescentemos que tratava-se de uma “grande imolação” porque doravante ela deveria substituir a imolação ritual de vítimas humanas.
[85]             Corão, XXXVII, 106.
[86]             Segundo a interpretação comum da história sagrada de que se trata aqui, Deus testou a fidelidade de Abraão,  não seu conhecimento, e este sentido parece impor-se como o mais religioso; entretanto, toda “prova” divina remete em definitivo a uma limitação do conhecimento daquele que a sofre, podendo esta limitação ser substancial, como entre a maior parte dos mortais, ou a um tempo acidental e providencial, como acontece com os profetas; a prova resulta sempre de uma aparente contradição das promessas divinas ou mais geralmente das revelações divinas; aquele que se situa intelectualmente acima do plano relativo em que estas contradições aparecem,  não as sofre mais. Por outro lado, a prova tem precisamente por objetivo fazer ultrapassar o domínio dos contrastes “imaginários”. No caso de Abraão, a aparente ordem de imolar o filho contradizia a promessa de posteridade que Deus lhe fizera antes do nascimento da criança. De outro ponto de vista, a resignação de Abraão diante do sacrifício de sua posteridade era a condição intrínseca para a “sacralização” desta. Do ponto de vista cristão, diríamos que o sacrifício intencional de Abraão preparou a vinda do Cristo. Lembraremos assim que a fé nas promessas divinas,  malgrado sua aparente obscuridade, substitui provisoriamente o conhecimento que elas implicam, até trazerem afinal o seu desnudamento.
[87]             Pois existem certas aparições no mundo do sonho que é preciso tomar ao pé da letra, sem aplicar-lhes a lei da analogia inversa, como veremos adiante. Estas aparições são de certa forma soberanamente simbólicas, e não acidentalmente submetidas às condições do estado imaginativo; tal é o caso, no Islam, das aparições do Profeta.
[88]             Uma vez que o Profeta é ele mesmo o símbolo por excelência, sua aparição em sonho não pode sofrer uma refração que inverta a forma. Diremos que no mundo cristão, as aparições da Virgem tem um caráter igualmente direto, enquanto que as do Cristo não cabem nesta lei,  porque para o cristão o Cristo identifica-se com a Divindade, a qual se manifesta sob todos os aspectos possíveis. Os grandes mestres do hesiquiasmo, por exemplo, jamais deixaram de se colocar em guarda contra as aparições satânicas que imitavam a imagem do Cristo; não é preciso dizer que tais aparições comportarão sempre algum sinal de sua falsidade. A pessoa do Profeta – como a da Virgem – comporta uma “qualidade de servidor” (‘ubudiyah) perfeita, que Satanás não consegue imitar.
[89]             Tendo Sahl at-Tostari lhe enviado a mensagem: “eis aqui um homem que bebe uma bebida que o deixa para sempre sem sede alguma”, Abu Yazid respondeu: “aí está um homem que bebe todas as existências, mas cuja boca está seca e queima de sede”.
[90]             Vale dizer que a forma assim criada não possui apenas uma realidade subjetiva, mesmo quando ela é de natureza sutil. Para esta “criação”, a faculdade imaginativa (al-khayal) só desempenhará o papel da substância passiva; a forma qualitativa da “criatura” será determinada pela “vontade espiritual” (al-himmah) ou a “força de decisão espiritual”, que não tem uma impulsão puramente individual,  mas corresponde ao raio de atividade divina no homem. Lembraremos a antinomia entre a conjectura (al-wahm, palavra que significa também opinião e suspeita) e a vontade espiritual (al-himmah).
[91]             Pelo fato de que esta “criatura” é o objeto de uma incessante concentração espiritual, ela só pode ser um símbolo da Essência. É preciso então aproximar esta passagem do que Ibn’Arabi diz no capítulo sobre Maomé, da impossibilidade de “contemplar” a Essência sem um suporte. – Abd al-Karim al-Jili escreve em seu livro Al-Insan al-kamil (“Do Homem universal”): “Se a imaginação configura uma forma qualquer no mental, esta forma imaginária está criada; ora, em toda criatura o Criador está presente; por outro lado, esta imaginação está em ti, de sorte que tu és, em relação a ela, como Deus (al-haqq). A configuração das formas [mentais] compete necessariamente a ti, mas em Deus, e Deus (al-haqq) aí está presente” (capítulo sobre ar-rahmaniyah). A Presença divina nas formas mentais, tal como a considera al-Jili, é puramente principial; mas se a forma mental corresponde a um símbolo revelado, a Presença será aí virtual, e se o ato integral do homem, al-himmah, coincide com o símbolo, a Presença divina será atual; é este último caso que Ibn’Arabi considera. Por sua atualização espiritual, o símbolo adquire uma realidade independente da esfera individual do contemplativo, e como ela implica realmente aquilo que ela exprime, ela resume todas as modalidades da Presença divina ou todos os estados do Ser; por outro lado, como o contemplativo identifica-se, por seu ato integral, a esta forma simbólica, esta se “desdobra” por sua vez em todos os estados do Ser.
[92]             Corão, VI, 38.
[93]             Quer dizer que a “Presença real” que tem como suporte a forma do símbolo, atualizada pela concentração espiritual, implica toda a realidade de uma maneira global e indiferenciada.
[94]             Aquele que se encontra num estado de conhecimento global. Al-qur’an, literalmente “a leitura” ou “a recitação” designa o aspecto unitivo da revelação e por conseguinte o conhecimento unitivo em geral, vale dizer o conhecimento da unidade essencial entre o incriado e o criado.
[95]             Al-furqan, “a discriminação”, designa o aspecto legislativo da revelação e por conseguinte o conhecimento distintivo, ou  mais exatamente a discriminação entre o criado e o incriado. O conhecimento unitivo reflete-se no amor, enquanto que a discriminação tem por corolário psíquico o temor. Na via espiritual, estes dois aspectos do conhecimento devem se equilibrar.
[96]             Toda esta passagem refere-se à economia espiritual regida pelos dois aspectos, unitivo e discriminante, do Conhecimento.
[97]             Corão, XIX, 55.
[98]             O “senhor” de um dado indivíduo não é assim outra coisa que a “pessoa”, segundo o sentido do termo escolástico persona, ou seja a realidade essencial da qual o indivíduo é a expressão efêmera.
[99]             O que equivale a dizer que a beatitude da alma consiste na sua conformidade consciente para com a sua essência.
[100]                  100 Corão, XX, 50.
[101]            Corão, XIX, 55.
[102]            Pois ele só existe em virtude de uma “relação” divina particular, que é sua razão de ser como indivíduo; também o termo humano desta relação é negado por outras “relações” divinas, assim como o finito como tal é negado pelo Infinito.
[103]            De modo que ele seja inteiramente integrado em sua qualidade essencial, a qual não pode estar em contradição com as outras Qualidades divinas, pois as Qualidades divinas não se contradizem senão em seus efeitos. Al-Qashani explica que o indivíduo assim conforme ao seu senhor é por isso mesmo conforme ao Senhor universal e identificado com o Homem perfeito [universal].
[104]            Corão, LXXXIX, 27.
[105]            Porque a Senhoridade divina pressupõe uma relação pessoal única, que por definição situa-se fora de qualquer comparação “horizontal” com outros seres.
[106]            A palavra jannah, que significa “jardim” e “paraíso”, implica também o sentido de “esconder”.
[107]            Seus sonhos propriamente ditos superpunham-se ao sonho macrocósmico, que é o estado de vigília. Ou antes, sua vida se desenrolava como um sonho profético dentro do quadro do sonho coletivo que é o mundo.
[108]            Aqui, como em toda parte, o termo “forma” é susceptível de uma transposição para além do mundo propriamente “formal” ou individual.
[109]            Quando os mestres sufis afirmam que “o mundo é imaginação” (al-kawnu khayal), eles entendem por isto que ele é ilusório, que ele não possui realidade própria, mas também que ele é constituído de “imagens” ou reflexos das realidades eternas; pois a imaginação (khayal), considerada como uma função cósmica corresponde ao meio formal; o “mundo das analogias” (alam-al-mithal) que compreende a manifestação sutil e a manifestação corporal, é também chamaddo de “mundo da imaginação” (alam al-khayal). Dizer que o mundo é imaginação não significa portanto, segundo o espírito do Sufismo, que sua realidade se reduza àquela do sujeito individual, do qual ela seria como que uma projeção, mas ao contrário é preciso entender que a imaginação, que se manifesta “subjetivamente” na alma individual, possui, senão em sua assignação ao menos em sua estrutura, um caráter cósmico, portanto de certa forma “objetivo”. É preciso que seja assim para que a imaginação “subjetiva” possa reproduzir a continuidade do “grande mundo”; pois é pela imaginação que realizamos este mundo como um ambiente contínuo. Apenas quando reconhecermos este caráter cósmico da imaginação, veremos ao mesmo tempo que todo o mundo formal está “tecido com o mesmo pano”, e que por conseguinte ele é ilusório em relação ao Intelecto que transcende a “imaginação” macro-cósmica assim como transcende a imaginação “subjetiva”.
[110]            Abu Hamid al-Ghazali afirma que os profetas possuem uma faculdade imaginativa incomparavelmente mais poderosa do que a dos outros homens, o que não significa evidentemente que eles sejam particularmente sujeitos à ilusão, mas que a sua imaginação está na medida da função intelectual e espiritual que os qualifica como profetas: a revelação se “fixa” na ordem sensível e mais exatamente na imaginação que a ela corresponde interiormente. É preciso saber que a revelação (nuzul) propriamente dita comporta um aspecto “cósmico” que a distingue da “revelação” (tajalli) no sentido de um estado de conhecimento: este é uma pura “enstase”, enquanto que a revelação de um texto sagrado, por exemplo, é uma “descida” (nuzul) cujo modo é de certa forma “objetivo” e análogo à criação de um mundo.
[111]            Corão, XII, 3.
[112]            Corão, XII, 4.
[113]            Ibid.
[114]            Corão, XII, 99.
[115]            Segundo a psicologia árabe, o mundo imaginativo faz parte da ordem sensível, porque ele é concebido segundo as assignações sutis dos cinco sentidos e dos elementos correspondentes.
[116]            Esta descrição da “sombra de Deus” lembra a de Maya segundo os comentadores do Vedanta, por ser Maya também aquilo que manifesta o Absoluto como múltiplo ao mesmo tempo em que esconde sua verdadeira natureza; “dela [Maya] não se pode dizer nem que ela é, nem que ela não é” (Shankaracharya), pois ela é insondável e só pode ser conhecida por seus efeitos. “Considerada sob o aspecto ajnana (ignorância), ela tem como suporte Atma (o Si supremo), ao mesmo tempo em que o esconde, assim como uma câmara escura está oculta pela própria obscuridade da qual ela é o suporte... O que está escondido é o caráter de única realidade e de beatitude suprema de Atma. Apenas seu caráter de pura luz intelectual permanece, para nos fazer perceber a própria ajnana...” (G. Dandoy, L’Ontologie du Vedanta). Lembraremos que aqui, como no simbolismo exposto por Ibn Arabi, a “Sombra” precede logicamente a Luz (an-nur).
[117]            Segundo a concepção árabe, a cor azul aproxima-se do negro; ela é, de fato, por sua qualidade cósmica, a cor da profundidade insondável.
[118]            A ciência atual considera o volume do sol como sendo 1.300.000 vezes maior do que o da terra, mas estas considerações quantitativas não invalidam o argumento de Ibn’Arabi.
[119]            Corão, XXV, 45.
[120]            A bem dizer, não existe “potencialidade” na Essência, visto que a potencialidade possui um caráter a um tempo passivo e ininteligível; trata-se então aqui da indiferenciação principial da qual a potencialidade é como que a imagem invertida e “material”.
[121]            Corão, XXV, 45.
[122]            Corão, XXV, 46.
[123]            Aqui Ibn Arabi estende o sentido de al-khayal para além do mundo imaginativo no sentido rigorosamente cósmico, pois ele afirma que o cosmo inteiro é “imaginação” (khayal), para significar que ele é “ilusório” (mutawahham), que ele não é nada que esteja realmente fora de Deus. Neste caso, o sentido dos dois termos khayal e wahm corresponde de bem perto àquilo que o Vedanta designa como Maya, a “imaginação” correspondente à idéia de “arte divina” que Maya implica e o “poder conjectural” (al-wahm) ao seu aspecto de avidya, ou seja de “ignorância” ou de adhyasa, de falsa “superposição”.
[124]            Lembremos que a percepção sensível corresponde ao ponto de vista da analogia e do simbolismo (tashbih), enquanto que o raciocínio corresponde ao ponto de vista da transcendência (tanzih).
[125]            Este simbolismo corresponde exatamente à teoria advaita da luz pura (bimba) do Si (Atma) decomposta pelo filtro de Maya em luz colorida (pratibimba).
[126]            Corão, surata da Pureza, CXII.
[127]            Corão, XXXV, 15.
[128]            Ou seja, o tempo decorrido entre a ascenção de Cristo e o momento em que este livro foi escrito por Ibn’Arabi; ele permanecerá aí até seu “retorno” no final do ciclo.
[129]            “...o Messias, Jesus, filho de Maria, é o enviado de Deus e seu Verbo que Ele projetou sobre Maria, e espírito d’Ele...” (Corão, IV, 170).
[130]            “[Jesus lhe dirá:] Eu vim mostrar-vos os sinais de vosso Senhor; eu formarei com argila a figura de um pássaro, soprarei sobre ela e ela se tornará um pássaro [vivo] com a permissão de Deus...”  (Corão, III, 43). A história do menino Jesus dando vida ao pássaro de argila acha-se também nos evangelhos apócrifos.
[131]            Pois o Cristo ressuscitou dos mortos.
[132]            O significado deste nome corânico não é claro; alguns o traduzem como “samaritano”, o que é uma evidente anacronismo.
[133]            “[Os Israelitas disseram a Moisés:] Nós não violamos nossas promessas por nossa vontade, mas nos ordenaram que reuníssemos o peso de nossos ornamentos... As-Samiri os atirou [ao fogo] e de lá retirou um bezerro corpóreo, mugindo...” (Corão, XX, 90).
[134]            [Moisés disse:] E tu, ó as-Samiri, qual foi teu desígnio? Ele respondeu: eu vi o que eles não viram. Eu peguei um pouco de poeira das pegadas do enviado e a joguei dentro do bezerro fundido; minha alma sugeriu-me isto” (Corão, XX, 96).
[135]            Esta passagem parece aludir às duas naturezas do Cristo, que podem ser consideradas como dois aspectos de seu Espírito ou de sua Essência.
[136]            “..Nós enviamos a ela nosso Espírito, e ele revestiu-se da forma de um homem harmonioso. Ela disse: Eu busco refúgio em Deus contra Ti; se tu O temes...” (Corão, XIX, 17-18)
[137]            “Ele respondeu: Eu sou o enviado de teu Senhor, e vim para te dar um filho puro. Como, respondeu ela, terei eu um filho? Pois nenhum homem tocou-me, e eu não sou transgressora. Ele respondeu: É assim que diz teu Senhor: Isto é fácil para mim. Ele será Nosso símbolo para os homens, e uma misercórdia de Nossa parte. Foi uma ordem inexorável...” (Corão, XIX, 19-21).
[138]            Corão, IV, 170.
[139]            Vale dizer que o milagre não cancela a ordem natural mas a resume incidentalmente em seu princípio superior; aqui, o poder espiritual de Gabriel resume a ordem corporal em seu princípio sutil, sem que a polaridade da geração específica seja por isso destruída. Toda esta explicação cosmológica da concepção de Jesus não se presta para relativizar a intervenção divina; ela busca fazer compreender a própria constituição do Cristo, a relação excepcional que liga seu elemento “paternal” à sua substância “maternal”, como veremos a seguir.
[140]            Corão, III, 48.
[141]            Id.
[142]            Corão, V, 110.
[143]            Corão, V, 19.
[144]            Ou seja, eles definem a forma de Jesus como forma humana terrestre, pelas palavras: “filho de Maria”, mas identificando Deus com esta forma. Trata-se evidentemente da confusão entre as duas naturezas, divina e humana, do Cristo.
[145]            Ibn’Arabi não considera Maria sob seu aspecto de Theotokos, “Mãe de Deus”; esta expressão seria inteiramente ininteligível do ponto de vista do Islam, que distingue sempre claramente entre o criado e o incriado; a idéia do “Deus manifestado”, no sentido direto e “concreto” do termo, acha-se entretanto no Sufismo, a saber na identificação do Nome de Deus ao próprio Deus.
[146]            “Quando Eu o formei e soprei nele Meu Espírito...” (Corão, XV, 29).
[147]            “Diga: se o oceano fosse de tinta para as palavras de meu Senhor, o oceano se esgotaria antes que se esgotassem as palavras de meu Senhor, mesmo se Nós produzíssemos uma quantidade igual a mais de tinta” (Corão, XVIII, 109)
[148]            Corão, VI, 122.
[149]            Corão, LVI, 88.
[150]            Este versículo também pode ser traduzido assim: “Aquele que O reconhece por meu coração, no momento em que Ele nos deu a vida, Lhe empresta a vida individual”.
[151]            Considerados como quatro fundamentos “naturais” tanto do mundo sutil quanto do mundo corporal.
[152]                  Que são “elementares” porque participam das modalidades sutis dos quatro elementos.
[153]                  Segundo esta concepção, a Natureza universal – ou Expiração divina – é análoga àquilo que a doutrina hindu designa como a Shakti ou como Maya.
[154]            Corão, XV, 28.
[155]            Corão, XXXVIII, 75.
[156]            Segundo a doutrina dos Padres gregos, o mundo foi criado “pelo Filho (o Verbo) no Espírito Santo”, que é também chamado de “consolador”.
[157]            “E quando Deus disse a Jesus: Alguma vez dissestes aos homens: Tomem a mim e a minha mãe por divindades além de Deus? Ele respondeu: Exaltado sejas! Não está em mim dizer aquilo que não tenho direito de dizer [ou: aquilo que não está em mim segundo a verdade]. Se eu o disse, Tu o sabes; Tu sabes o que está em mim, e eu não sei o que está em Ti, pois és Tu o Conhecedor dos segredos. Eu não lhes disse senão o que me ordenastes dizer: Adorai a Deus, meu Senhor e vosso Senhor. Enquanto permaneci entre eles, fui seu testemunho, mas quando me recolhestes para Ti  foste Tu que os observastes,  pois Tu és o testemunho de todas as coisas. Se tu os punires, eles serão Teus servidores; se Tu os perdoares, serás o Poderoso, o Sábio. – Deus disse: Este dia será um dia em que os justos receberão sua justiça; os jardins regados pelos rios serão sua morada perpétua. Deus estará contente com eles e eles contentes com Deus. Esta é a imensa beatitude.” (Corão, V, 115-118). – É preciso lembrar que a expressão “divindades além de Deus” no início da passagem corânica, define muito bem o erro que, sem ser justificado pela doutrina cristã, pode na prática introduzir-se no culto do “Filho de Deus” e da “Mãe de Deus”. Em razão do abuso que sobreveio no seio da cristandade, o Corão afirma a transcendência divina. O simbolismo da Theotokos está no entanto implicitamente afirmado na passagem corânica: “Nós fizemos do filho de Maria e de sua mãe [ou seja a mãe de Jesus] um símbolo. Nós lhes demos como moradia um lugar elevado, tranquilo [ou: imutável] e abundante de fontes” (XXIII, 49).

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