APRESENTAÇÃO
Albert Puyou, conde de Pouvourville, nasceu em Nancy
(França) em 1862. Participou de expedições francesas à China, aonde ocupou
diversas funções militares e a administrativas. Sua prolongada permanência no
Tonkin e em diversas províncias lhe permitiu penetrar no espírito chinês. Logo
ele encontrou um mestre taoísta que o preparou para receber a iniciação em uma
sociedade secreta chinesa, o que aconteceu logo em seguida. Albert de
Pouvourville tomou o nome de Matgioi, que significa “olho do dia”. Ele voltou
ao Ocidente e dedicou-se a difundir, na medida do possível, os ensinamentos
taoístas. Em suas obras A Via Metafísica
e A Via Racional, ele expôs as doutrinas
taoístas, tanto do ponto de vista principial como em suas aplicações diversas.
Foi também autor de diversos ensaios sobre a China e sobre as colônias
francesas na Ásia. Faleceu em 1939.
Assim, não é de estranhar o modo como ele se refere aos
povos do Oriente, que na ocasião ainda se distinguiam dos ocidentais pela
obstinada defesa de seu antigo modo de vida e pela conservação de seus valores
tradicionais, malgrado a opressão exercida pelas potências coloniais da época.
Esta condição opressiva explica também, em parte, a aversão que o autor
demonstra pelas instituições políticas, religiosas e intelectuais européias da
época em que o livro foi escrito.
NOTA EXPLICATIVA
Isto não é um prefácio aonde, pronto para a discussão,
eu apresento a Tradição oriental à crítica ocidental; pois, no que concerne às
coisas do espírito, seria mais polido, lógico e normal apresentar o Ocidente ao
Oriente, desde que este último assim o permita.
Eu não quis desde o início colocar em oposição duas
doutrinas, ou, melhor dizendo, dois ensinamentos humanos sobre uma doutrina. Eu apenas pensei
que, numa época onde todos se esforçam em voltar às fontes da ciência humana, a
fim de encontrar aí a verdade ainda não poluída, seria bom apresentar a fonte
primordial e tradicional de todo o conhecimento, o veio inicial do qual toda a
Humanidade é tributária; eu a resgatei do limbo numa operação delicada, em
primeiro lugar porque hoje em dia as temporadas obrigatórias no Extremo-Oriente
são feitas mais com o intuito de cortar cabeças do que para decifrar e
compreender os textos; depois, porque a ideografia em que está encerrada a
Tradição é incompreensível, ou quase, para a raça branca; e enfim porque, se
ainda sei contar, existem precisamente cinco europeus, dos quais um acaba de
morrer, e que receberam, ao mesmo tempo que os meios materiais para ler, a
capacidade intelectual de chegar ao fundo de sua leitura.
Eu dividi este trabalho em três partes: uma – que eu
apresento aqui – relata, sob o título de “A Via
metafísica”, os princípios da Tradição e seu movimento filosófico e
cosmogônico; a segunda, sob o título de “A Via
racional”, relatará a sistematização da Tradição, com o Taoísmo, ou “O
Caminho e a virtude da Razão”, de Lao Tsé; a terceira, com o título de “A Via social”, relatará a adaptação da
Tradição, com a filosofia política e comunista de Kong Tsé (chamado de Confúcio
pelos missionários cristãos).
Esta tarefa delicada, e da qual posso dizer que me
desimcumbi, senão com felicidade, ao menos com escrúpulo, sem dúvida não trará
frutos agradáveis ao paladar europeu. E no entanto devo confessar que, com o
objetivo, mais prático do que louvável, de permitir a compreensão dos textos
sagrados da antigüidade oriental, eu empreguei muitas vezes a fraseologia
ocidental, e mantido, mais do que o raciocínio adequado a estes textos, o
raciocínio adequado aos cérebros dos leitores, sempre que ambos conduzissem a
uma conclusão idêntica.
Eu tomei a liberdade de agir assim, para que os
ensinamentos da “Via metafísica” possam ser acessíveis sem comentários; assim,
eu adaptei imediatamente à mentalidade ocidental os comentários que fiz, em
lugar de conduzir a uma tradução, sempre fatigante, em linguagem ocidental, das
teorias em língua oriental, que me teria sido mais simples expor.
Não agirei assim na “A
Via racional”, nem na “A Via social”;
pois não existem aí raciocínios a acrescentar aos ensinamentos de Lao Tsé e de
Confúcio, mas apenas alguns esclarecimentos. Além do meu próprio gosto, eu fui
levado a esta rigidez de transposição, ao ver os resultados cômicos obtidos por
alguns recentes pseudo-tradutores, que acreditaram poder embelezar e
aperfeiçoar o “Livro do Caminho” e que,
ao fazê-lo, não tinham sequer a desculpa de serem membros do Instituto.
E se, após a leitura árdua ou a rejeição pura e simples
destas difíceis mas maravilhosas doutrinas, me for negado o mérito de ter sido
elegante, interessante e agradável, ao menos eu terei dado o testemunho de ter
sido sempre um intérprete respeitoso da tradição, e um filho exato e piedoso
dos mestres que a ensinaram a mim.
Este testemunho libera minha consciência. É somente dela
que eu sempre fui, e permaneço sendo, zeloso. Pois o sucesso desta pequena
contingência, que é a exposição local de uma doutrina, não importa a um verbo
que se sabe eterno.
Matgioi
I
A TRADIÇÃO
PRIMORDIAL
As religiões atuais dos
povos amarelos compõem-se de uma mistura de elementos diversos. Não vemos aí
mais do que um emaranhado popular, saído de três fontes geradoras: a religião
primitiva, o Taoísmo e o confucionismo. Estas três influências, amalgamadas de
modo mais ou menos feliz ao longo dos séculos, constituem a religião
tradicional do império: a essas três influências correspondem três liturgias,
que formam o conjunto das cerimônias oficiais e populares.
Os viajantes, os
missionários, todos os estrangeiros às raças amarelas, que julgaram o status tradicional chinês desde o exterior, tomaram a
aparência pela realidade: tivessem aliás eles – que jamais mostraram nem tempo
nem disposição para tanto – tentado penetrar mais, e teriam sido impedidos
pelos detentores da Tradição Primordial, esta que não se encontra vulgarizada
entre o povo amarelo[1], e que a fortiori é escondida aos bárbaros vindos de longe.
É fácil desconhecer
aqueles que querem permanecer desconhecidos. É o que fizeram os sábios
ocidentais brancos diante dos sábios orientais amarelos, e com tanto mais
impunidade quanto menos havia quem se apresentasse para lhes dar a réplica;
acreditando poderem passar sem eles, ignoraram-nos: e é assim que a mui
venerável tradição ocidental, para voltarmos ao começo dos tempos, subiu a
Escada de Jacó, e, na falta de melhor, apegou-se a este judaísmo, que não passa
de uma sangrenta paródia de antigos cultos hindus, e a este mosaísmo, que não é
senão uma adaptação egípcia lavada no Mar Vermelho.
Hoje temos conhecimento
de melhores e mais nobres origens; e se as conquistas coloniais da Europa não
tivessem mais do que este resultado, elas ainda seriam dignas da gratidão do
espírito humano, ao qual elas revelaram, inconscientemente bem entendido, as
tradições cuidadosamente escondidas atrás das Grandes Muralhas, abrigadas pelas
civilizações mais fechadas e mais antinômicas à nossa mentalidade.
Quero tentar aqui abrir
para o vigésimo século ocidental este tesouro guardado desde cinco mil anos
atrás, e ignorado por alguns de seus guardiães. Mas primeiro quero estabelecer
as principais características dessa tradição, graças às quais ela aparece como
a Tradição Primeira (e por conseguinte verdadeira), e sobretudo determinar,
pela prova humana e tangível que nos deixaram seus autores, como os monumentos
desta tradição remontam a uma época na qual, nas florestas que cobriam a Europa
e mesmo a parte ocidental da Ásia, os ursos e lobos mal se distinguiam dos
homens, como eles cobertos de pelos e se alimentando de carne crua.
Quando Fo Hi, este
enigmático imperador, escreveu, há três mil e setecentos anos antes de Cristo,
ou seja dois mil anos antes de Moisés, os arcanos metafísicos e cosmogônicos
que serviram de trama ao Yi Ching, ele
declarou retirar respeitosamente seu ensinamento do passado, declarando-o
sábio, prudente e muito difícil de determinar.
E, disse ainda, ele
compreendia que algum dia, para as raças futuras, seu tempo seria também um
passado igualmente obscuro e difícil de precisar.
Ele então data a sua
obra, não por meio de uma época convencional ou com o nome de um soberano cuja
celebridade e memória o tempo apagaria, mas através de um estado solar e
estelar, que ele descreveu em todos os detalhes, e para o qual, sem erro
possível, os astrônomos do futuro poderiam assinalar uma cronologia. Assim,
enquanto os patriarcas hebraicos deram, em meio a grossos livros e vetustos
escritos, um inútil trabalho aos beneditinos, é bastante, para conhecermos a
data exata de Fo Hi e seu I Ching,
colocarmos uma luneta nas mãos de um dos inumeráveis discípulos do Sr. Camille
Flammarion[2]. Sem dúvida Fo Hi não temia nem o controle nem o
desmentido da posteridade. Se insistimos nesta maravilhosa precaução, foi não
só para mostrarmos a que perfeição chegara, já nesta época, a ciência da
astronomia, mas para fazermos compreender, de uma tirada, o espírito prático,
engenhoso, lógico e sem névoas, que possuíam os sábios[3] chineses de cinco mil anos atrás, espírito que os
distingue de todos os reformadores de povos, que, chegados bem depois à terra,
não viveram senão nas lendas e não escreveram senão parábolas.
Para os milhões de
indivíduos que povoam o Extremo-Oriente, qualquer que seja a forma exterior de
suas crenças, nunca houve, no que diz respeito à origem das coisas, à essência
divina, às relações do céu com a terra e com os homens, nunca houve, em época
alguma, histórica ou lendária (e a história da China é autêntica desde há cinco
mil anos), nem revelação divina, nem intervenção do alto. Nos livros, nas
glosas, nas tradições, não há nada de “sobrenatural”: a idéia nunca foi lançada;
a palavra nunca foi pronunciada. Nenhum patriarca viu o Senhor, como Moisés;
nenhum homem entreteve conversas com os anjos, como Maomé; nenhum santo atingiu
em vida a perfeição eterna, como Buda; nenhum Deus desceu sobre a terra, como o
Messias.
Para acompanharmos sua
severa lógica, para compreendermos a inegável claridade da tradição chinesa, é
preciso frisar com todas as letras esta distinção original: é que ela se diz
humana, e não reclama senão as luzes humanas, à exclusão de todo mistério divino
e mesmo de todo postulado metafísico.
Apesar de um erro muito
generalizado da lingüística, uma revelação é exatamente o contrário de um
esclarecimento: revelar é o oposto de desvelar, como recobrir é o posto de
descobrir; uma revelação é uma nuvem colocada sobre a verdade, nuvem cujas
formas convém à estética moral do momento; é, para falarmos sem rodeios, um
engano adequado aos sentimentos e às necessidades do momento em que é
formulado, e destinado a ser, no futuro, controvertido, negado e substituído, na
medida em que os sentimentos que o fizeram nascer vão se transformando.
Trata-se de uma
brincadeira de Deus? Ou, ao contrário, não convém destacar que a suposta
“revelação” feita por um deus que fala, anda e vive, não passa de uma
conseqüência do antropomorfismo inconsciente que foi e continua sendo o mestre
soberano das concepções teogônicas de uma boa porção do gênero humano?
Mas os mestres do
pensamento extremo-oriental não tiveram necessidade do concurso do céu para
dissipar os erros ou para criar símbolos.
Seus povos, satisfeitos
com a verdade que eles jamais perderam, não reclamavam ornamentos para
cobri-la; eles não pediam a manifestação de Deus, pois achavam-se ainda muito
próximos d’Ele ainda para esquecê-lo ou confundi-lo. Na Tradição intacta e nas
palavras daqueles que a transmitiam, eles viam com clareza o próprio céu e suas
obras; e contentes por compreenderem o Pai de quem descendiam, não sentiam
urgência alguma de que uma divindade surgisse aos seus olhos, sob uma forma
mais ou menos tangível, para lhes impor uma doutrina feita por homens mas cheia
de mistérios que espantam o bom senso e invertem a lógica humana.
E pelo fato de que a
tradição primordial pode perpetuar-se entre os povos amarelos – a quem devemos
os primeiros monumentos da escrita e da ciência – sem que tivesse tido a
necessidade, para triunfar, da violência de um deus ou da intervenção celeste,
é por isso mesmo que devemos reconhecê-la como sendo a mais apropriada ao
gênero humano, além de ser intacta e verdadeira.
Esta tradição, que não
foi desvelada nem revelada por um deus, que não foi dogmatizada nem decretada
pelos representantes, oficiais ou oficiosos, de alguma divindade, não se
reveste de nenhum dos caracteres próprios às coisas que estão a priori acima da natureza humana e, por isso mesmo, fora da
discussão dos homens.
Coloquemos a seguir as
conseqüências práticas, na vida cotidiana dos povos amarelos, desta origem
indiscutível da Tradição Primordial: e também reconheçamos que, mesmo fora
satisfazer a lógica e tornar possível seu estudo racional, os chineses tiveram
uma felicidade inusitada devida à modéstia de seus primeiros sábios, que foram
também seus primeiros imperadores, e que não consideraram necessário, para
serem ilustres e obedecidos, fazer saírem seus decretos do antro de alguma
sibila, ou caírem de uma montanha coberta de nuvens. Felizes povos, sem dúvida,
aqueles que não foram constrangidos a uma luta perpétua entre sua razão e seu
coração, que tiveram sempre o auxílio e a voz do Céu ao seu alcance, que encontraram
em sua tradição sagrada o meio para alcançar tanto sua prosperidade imediata
quanto sua felicidade futura, a quem nenhum poder misterioso inculcou o temor
de um soberano das alturas terrível e vingador, e para quem o pensamento da
morte, natural e inevitável, não envenenou a vida terrestre com os terrores do
desconhecido.
De fato, esta Tradição,
à qual todo homem amarelo, mesmo sem a compreender bem ou sem aprofundá-la,
está tão ligado como à sua família, sua terra e seu sangue, por ser ela, em
resumo, toda a herança intelectual e moral dos Ancestrais, esta Tradição não
reclama para si uma origem divina (pelo menos não direta nem especial para uma
dada raça); ela ignora a doutrina teocrática imposta; ela não constitui dogmas
religiosos. O corolário é imediato: todas as religiões, todas as liturgias, que
florescem mais ou menos no Extremo-Oriente, não possuem origem tradicional;
elas não participam do caráter absoluto e indestrutível de uma herança
transmitida; elas não passam de “faculdades”: elas não podem pretender a
obediência que devemos às coisas legadas como certas, nem o respeito que
devemos às coisas legadas como antigas. A Tradição em pessoa não se impõe senão
por sua clareza e a virtude poderosa de seu passado. Como as religiões,
traduções mais ou menos puras desta tradição, com a finalidade de mais
facilmente adaptá-la ao vulgo, ousam tomar este caráter de certeza obrigatória,
que em nenhuma parte é imposta pela própria Tradição?
*********
“Amem a Religião;
desconfiem das religiões”. Esta máxima,
inscrita no frontão dos templos e no espírito dos homens, é o único conselho
dado à raça amarela; e este conselho não é uma ordem. Mas ele define, com uma
concisão inigualável em sua clareza, como a Religião é precisamente a Tradição
Primordial, exclusivamente humana, e como as religiões, com suas intervenções
celestes, são maneiras mais fáceis, mas menos exatas, de se alcançar a
Religião. E podemos ver de imediato, a partir deste sistema tão lógico, simples
e natural, ou, melhor dizendo, tão anti-sobrenatural, as conseqüências
profundas que decorrem para toda a vida intelectual, moral e mesmo material dos
povos sábios o bastante para segui-lo.
“A Religião não
possui obrigações”. Pois, a partir do momento
em que, aplicada em conhecer a Essência da Via de todos os seres, a razão
puramente humana dos primeiros Sábios deduziu seus símbolos e seus ritos,
tornou-se impossível obrigar os homens a crer neles e praticá-los: aquilo que
saiu de um cérebro humano não é a priori
obrigatório para outros cérebros humanos. Os mestres mais reverenciados
procuraram esclarecer os dogmas tradicionais da forma mais brilhante e
definitiva; mas aquele que não compreende não está obrigado a nada; e aquele
que não tem tempo para tentar entender não está obrigado a nada. E, assim como
os letrados mais sábios e mais estudiosos, ele será igualmente arrastado na
evolução geral, da qual felizmente não poderá escapar uma vez que existe.
“A Religião não
possui sanções”. Pois não é senão em nome de um
Deus, invocado mais ou menos logicamente, que os homens podem ameaçar seus
semelhantes com penas ou represálias, se outros não crêem em tudo o que eles
dizem, por incompreensíveis que sejam suas colocações; e, para que suas ameaças
tenham um efeito ativo, é preciso que estes homens se declarem e sejam aceitos
como os ecos de um Deus ausente e rigoroso. Portanto aqui ninguém é obrigado a
nada; cada qual é simplesmente engajado ao esclarecimento segundo suas aptidões
e seus meios, e, qualquer que seja o resultado do trabalho intelectual assim empreendido,
nenhuma pena, nem na vida terrestre nem nas outras, estará suspensa sobre as
cabeças daqueles que não seguiram em seu coração os ensinamentos tradicionais.
“A Religião não
tem exclusividade”. É perfeitamente lícito,
desde que as leis não sejam infringidas, praticar o Taoísmo, o budismo, o
confucionismo, ou qualquer outro culto exterior; é permitido mudar; é permitido
não pertencer a nenhum: não existe anátema contra a pessoa. Como o Céu
constitui, ao final da evolução, a universalidade dos seres, reprovar ou
condenar uma parcela necessária desta universalidade eqüivale a retardar esta
evolução (se isto fosse possível).
“Não existe
religião de Estado”. Nem culto do Estado ou de
sacerdotes funcionários; o Estado não protege nem proscreve nenhum culto; não
existe proselitismo. O estudo das religiões é feito à vontade por ouvintes
voluntários junto a mestres gratuitos; todos os cultos acontecem lado a lado,
sob o olhar indiferente do Estado, com a única condição de que permaneçam
dentro do domínio das consciências, que não disputem os adeptos uns dos outros
e que, por ambição ou turbulência de seus representantes, não fomentem no
Império nem problemas nem rebelião contra a lei. Não existe perseguição: as
medidas tomadas no curso da história contra certos cultos novos foram sempre
respostas e nunca ataques.
“Não existe culto
pago”. Cada seita ou cada crença mantém seus
templos e seus sacerdotes, segundo o número e a generosidade dos adeptos;
ninguém se importa com o que acontece no fundo desses edifícios – nos quais, em
geral, não se passa nada – uma vez que as religiões são sobretudo metafísicas e
as liturgias não pertencem especificamente a nenhuma delas. E se o Estado
determina o local e a época das honras confucionistas nos pagodes
comemorativos, é porque as cerimônias instituídas em honra a Confúcio nunca
constituíram, nem de perto nem de longe, uma religião, mas apenas um rito
civil.
A Religião, ao menos no
que concerne a estas traduções a que
chamamos religiões, e sobretudo no que diz respeito ao culto exterior, não é
sequer um assunto de família; o nascimento, o casamento e a morte não são
assuntos religiosos, precisamente porque são assuntos naturais; e é o chefe da
família que é aí o único sacerdote. No pagode do bonzo como no altar da
família, coloca-se, com todo seu respaldo legal, a autoridade soberana do pai,
e com todo seu poder antigo, o culto familiar dos Ancestrais, imagem, reduzida
a cada geração, da Tradição primordial e geral da Humanidade. A religião é
assim uma questão de consciência pessoal e de liberdade individual; os
princípios da metafísica e da filosofia tradicionais são transmitidos, dentro
da família, pelos letrados que fazem parte dela. Nada transpira para fora dos
muros que encerram o recinto patriarcal; e ninguém teria a temeridade, de resto
inútil, de romper a barreira moral que protege assim a independência e a
dignidade dos cidadãos.
As liturgias não exigem
nenhum sinal exterior. Os ritos, determinados por séries de leis e
regulamentos, fazem parte dos princípios do Império; e como a prática religiosa
fica assim reduzida a nada, as teorias não são objeto, entre aqueles que
observam os diferentes ritos, senão de discussões corteses e sorridentes, onde
não brilha a cólera nos olhares nem o fogo das fogueiras.
Quanto à conduta moral
dos povos, que parece ser o objetivo terrestre e imediato das religiões, o
filósofo naturista que foi Confúcio dela se encarrega, fora de qualquer
intervenção divina; e sabemos de que maneira magistral este doce letrado educou
seus discípulos, e como ele conquistou a alma de sua raça, ao contrário do que
fizeram os profetas da Judéia e do Islam, recebidos em meio a carnificinas e
maldições.
Assim, o primeiro dos
homens, Fo Hi[4], cristalizou a Tradição Primordial, Lao Tsé tirou
dela um corpo doutrinal e Confúcio deduziu um sistema moral. Podemos dizer que
uma destas heranças intelectuais ou que sua amálgama formam uma Religião no
sentido que o Ocidente dá ao termo? É impossível; nada seria mais contrário à
verdade. E no entanto não existe outra coisa, nas raças amarelas, para religar
o homem a Deus; não existe país no Universo aonde a crença no Ser Supremo seja
mais universal e pareça mais razoável do que nos países de raça amarela. De
onde vem esta aparente contradição? Ela vem da própria essência da Tradição.
Não existe necessidade de religião para religar o homem ao Céu[5], basta a tradição: ela é o cordão metafísico através
do qual a Humanidade permanece atada à Essência; nada a rompeu; nada a relaxou;
e será assim ao longo do tempo. A Humanidade jamais cessará de nascer: e, se
ela parar de nascer, ela terá se tornado, precisamente então, Aquele que a
engendrou. Esta é a pedra angular da Tradição.
Protegidas pelas melhores leis e pela mais calma história, as raças amarelas
jamais perderam de vista esta pedra angular; uma intervenção celeste não lhes
acrescentaria nada; e é por isso que esta intervenção não se produziu, e que
nenhum sábio ou imperador achou útil simulá-la. É por isso que a crença no Céu
é universal, natural e lógica. Para um chinês, crer em Deus é crer em si mesmo.
Nestas condições, não existem ateus.
Para a prática
cotidiana, a conseqüência é que, se o Ser Supremo está interessado nas
evoluções da criação, e notadamente da Humanidade, ele é indiferente a que a
Humanidade se ocupe dele. Assim, não existem sacrifícios, nem temores, nem
esmolas, nem doações feitas em nome desse temor: o Senhor do Céu coroa esta
criação saída de si, esperando que ela se aperfeiçoe até o ponto de entrar
novamente nele. Ele, que é a fonte da qual nasce o rio e o mar aonde ele se
espalha e se perde, não poderia ser o inimigo das ondas que o compõem, em
nenhum momento do seu curso. E assim, sem negar as imperfeições que são o
inevitável cortejo da divisibilidade, o homem amarelo tem de si mesmo, de seu
espírito e de suas concepções, uma idéia de dignidade, que lhe vale sua
continuidade celeste, e que em nada lembra o rebaixamento no qual as religiões
reveladas precipitam a criatura humana.
A ausência de ideal
religioso nos motivos de suas ações é, para as raças amarelas, a causa da
estagnação secular em que sua civilização se nutriu? Ninguém poderia afirmá-lo.
Mas esta ausência de religiosidade, ao suprimir um poderoso fermento da
discórdia, evitou muitos conflitos ao longo de sua história. E esta falta de
sentimentalismo, que lhes deu esta falta de curiosidade em relação ao além e
voltou seus olhares e seus desejos para a terra paternal e nutris, as tornou
mais facilmente e imediatamente felizes.
Em todo caso, é preciso
ter sempre presente no espírito, quando estudamos ou penetramos a Tradição
Primordial, estas duas fórmulas que são a base de toda a ciência
extremo-oriental: o rebaixamento do homem não é um elemento necessário para a
grandeza do céu; e o sofrimento do homem não é um elemento necessário para a
sua evolução.
II
O PRIMEIRO
MONUMENTO
DO
CONHECIMENTO
Não é apenas por um
raciocínio cronológico que fomos conduzidos a buscar na raça amarela o mais
antigo monumento do conhecimento: foi um
raciocínio psicológico e lógico que nos levou a constatar entre eles o
monumento mais exato deste conhecimento.
Como os povos amarelos
são essencialmente tradicionais, a essência de sua filosofia deveria residir
nos livros mais antigos: estes, escritos em épocas longínquas, quando as
necessidades do homem eram menores e quando o ardor dos desejos ainda não os
levavam a obscurecer, consciente ou inconscientemente, a verdade, deveriam ser
a fonte de todos os ensinamentos ulteriores. A piedade filial dos chineses
considerava assim que tudo o que pudesse interessar ao homem estava contido
virtualmente nos primeiros livros, e que todas as respostas a todos os
problemas ali estavam potencialmente presentes: as soluções e os
esclarecimentos, necessários às ciências novas, deveriam ser encontrados nas
leis antigas, em germe, e deveriam ser desenvolvidas num sentido analógico às
soluções dadas pelas ciências da época em que eles foram compostos. A convicção
desta síntese, tão poderosa que continha no ovo todos os esforços concebíveis
do espírito humano, forma o fundamento e a certeza de toda a filosofia
asiática, e desenvolveu o espírito analógico e dedutivo da raça amarela.
Esta manifestação do
espírito, que venera as instituições e as doutrinas do passado até subordinar a
elas os atos do presente e as especulações do porvir, é também uma maneira de
honrar, até a mais primitiva parcela, o Ancestral comum de onde saiu toda a
raça. O resultado disto é duplo: em primeiro lugar, consistiu em conservar,
através das vicissitudes das eras, os livros da mais alta antigüidade,
integralmente, e com uma fidelidade perfeita; depois, impediu as divisões dos
espíritos, os antagonismos dos sistemas, e criou, numa só corrente de
ensinamento, uma escola única, ligada a um mesmo autor, e aplicada ao mesmo
objetivo, pelos mesmos meios, toda a engenhosa tenacidade da raça. Este duplo
resultado foi atingido; veremos quais conseqüências isto trouxe para a vida
intelectual, política e histórica da raça.
O primeiro livro da
China – e que é também, de longe, o primeiro livro do mundo – remonta ao
imperador Fo Hi, o primeiro dos soberanos do ciclo histórico dos amarelos. Por
mais que tenha sido cercada de lendas, acrescentadas por um respeito ingênuo e
popular, sua existência não é nem contestável nem contestada. Ele reinou sobre
aquilo que então se chamava China, a partir do ano 3468 antes da era cristã.
Esta cronologia assenta-se, como dissemos, não sobre cálculos modernos mais ou
menos fantasistas, mas sobre a descrição precisa do aspecto do céu da época em
que reinou Fo Hi[6].
Diremos agora que não se
deve atribuir a Fo Hi as doutrinas transmitidas à posteridade sob seu nome. Fo
Hi, como todos os soberanos destas épocas longínquas, foi um sábio, um mago, um
chefe de escola: foi aliás por isso que ele foi escolhido soberano por sua raça
(de fato, a China só possuirá dinastias hereditárias depois do ano 2199 a.C.).
Fo Hi tinha amigos, discípulos, ministros. Todos fizeram glosas e
interpretações de suas doutrinas, necessárias aos hexagramas imperiais; e toda
esta bagagem, amalgamada e misturada, tornou-se a “Doutrina de Fo Hi”: “Fo Hi”
é a razão social de uma escola metafísica, e de alguns séculos de pensamento
humano.
A obra de Fo Hi consiste
em três tratados, dos quais perderam-se dois; os escritos contemporâneos só
lhes mencionam os títulos; eles são: o Lienshan (“cadeias de montanhas”), ou seja o Livro dos Princípios Inalteráveis,
contra os quais nada pode prevalecer; e o Koueitsang (“o retorno”), ou seja o Livro ao qual todas as
questões devem ser levadas para encontrar suas soluções.
O terceiro tratado, que é
o “primeiro monumento do conhecimento humano”, leva o título de Yi Ching (“mutações na revolução circular”). Este título
lembra-nos que todas as modalidades aparentes do criador na criação são
estudadas em sessenta e quatro símbolos (os hexagramas), que formam um círculo,
e dos quais o último está intimamente ligado ao primeiro (temos aqui a ocasião
de lembrar que os amarelos empregam freqüentemente o desenho no lugar da
palavra, para permitir a amplitude sintética de uma dada idéia).
Não há dúvida – frisemos
– que existiram monumentos escritos anteriores aos tratados dos quais o Yi
Ching é o terceiro. Estes monumentos foram
escritos, ou desenhados, ou esculpidos, sobre o “Teto do Mundo”, berço único da
Humanidade, com a ajuda de signos que toda a Humanidade compreendia, antes de
se dividir em migrações diversas, perdendo assim a consciência de sua
totalidade. O que foi esta escritura única, jamais saberemos a não ser por
apreciações aproximativas: pois um paleógrafo não reconstruirá uma escrita a
partir de um único traço, como Cuvier[7] reconstrói um mamute a partir de uma perna. Mas foi
desta escrita única que surgiram, em épocas concordantes e por processos de
deformação paralelos, os ideogramas chineses e os hieróglifos caldeus (ou
sumério-acádicos). É possível aliás determinar as influências, todas físicas,
que presidiram a estas deformações.
Neste Pamir[8], que foi nosso berço comum, uma mesma língua, uma
mesma grafia, ambas perdidas, reinaram. Um dia, seja porque um cataclismo levou
a estas altitudes o frio que lá reina hoje em dia, seja porque, à força de
pender das bordas rugosas dos platôs, a raça humana tomou-se da vertigem das
planícies desconhecidas, um dia chegou em que os homens, através dos rios que
nasciam nos primitivos planaltos, desceram aos níveis inferiores. Assim fizeram
os do Sul, os futuros Vermelhos, pelo Dzangbo e o Sindh, assim fizeram os do
Oeste, os futuros Brancos, pelo Syr e o Amou, assim os do Leste, os futuros
Amarelos, pelo Hoangho e o Yangtsé, todos, sem olhar para trás, deixaram a
montanha ancestral que foi o umbigo do mundo. Em meio a eles, os anciãos e os
sábios levaram a Sabedoria e a Tradição.
Ora, nas margens férteis
dos rios, sob o benévolo e quente sol do Extremo-Oriente, os povos do Leste,
educados pouco a pouco, encontraram o bac-chi (cay gio, phaongmoc), fibras das quais eles tiraram um papel fino, leve,
e pincéis mais macios do que a seda, instrumentos maravilhosos entre seus dedos
ágeis de artesãos e artistas. Com estes meios sutis de transmissão, os rabiscos
primitivos tomaram a figura de desenhos ornamentados de cheios e vazios, sob a
leveza do pincel e a habilidade da mão. Mas nos espaços tortuosos que se
estendem a oeste das montanhas Thianshan, sob o sol devorador da Mesopotâmia,
os povos encontraram na superfície do solo os granitos, as dioritas, os
mármores, as pedras brilhantes e duras, que, amontoadas em muralhas, assentaram
sobre bases quase indestrutíveis os monumentos do poder e da ciência caldaica.
Então, tomando de martelos, os povos deste Oriente talharam, com a ajuda de
pontas de aço, os caracteres primitivos, que, erguendo-se do cinzel sobre a
superfície dos mármores, estrelaram-se em triângulos agudos e alongaram-se em
linhas rígidas.
Logo estas diferenças,
devidas inicialmente apenas às dificuldades gráficas encontradas na natureza,
penetraram na essência dos hieróglifos e constituíram, pela deformação
progressiva dos caracteres e na medida em que as civilizações divergiam,
diferentes escritas. Mas apesar de tudo, o caráter essencial das representações
permaneceu o mesmo; um espírito sintético pode reconstituir o tipo primitivo, e
descobrir, sob o véu das aparentes diversas, o mesmo signo hieroglífico,
luminoso e triunfante.
Ora, foi precisamente
por saber que os hierogramas do 35o. século a.C. não passavam de
deformações da escrita primitiva, sendo portanto insuficientes para representar
pensamentos abstratos e gerais, que Fo Hi empregou, para fixar a Tradição da
única maneira conveniente (ou seja, sintética e universal), os símbolos
lineares dos Trigramas.
Pois a escrita do Yi
Ching é de dois tipos: o trigrama para o
próprio texto de Fo Hi e o hierograma (caracteres primitivos de Koteou) para as glosas e paráfrases da Escola de Fo Hi.
A trama do Yi Ching
consiste assim em sessenta e quatro hexagramas, ou trigramas duplos; estes
sessenta e quatro tipos provém, por uma revolução em sentido inverso de dois
círculos concêntricos, de oito trigramas; estes trigramas provém de quatro
digramas; e estes digramas, das diferentes posições de um traço cheio – e de um traço truncado --.
Estes dois traços são as
figuras simbólicas representativas mais simples que jamais existiram. Aonde o
imperador Fo Hi encontrou um simbolismo tão ingênuo? Neste caso como em outros,
e tanto para a escrita que traduz um pensamento quanto para este pensamento
mesmo, Fo Hi não se dirigiu nem às intervenções celestes nem às potências
invisíveis, mas antes à natureza que cercava e encantava sua raça. Foi da sua
altura de homem que, com lógica indiscutível, ele assumiu a tradução da Tradição
que deveria esclarecer e guiar a Humanidade. Com efeito, o livro histórico dos
“Ritos de Tsheou” diz: “Antes de traçar os trigramas, Fo Hi olhou para o céu,
depois baixou os olhos para a terra, observando suas peculiaridades e
considerando as características do corpo humano e de todas as coisas
exteriores”. Vale dizer que os dois traços indicam um duplo estado, ou melhor,
a igualdade entre dois estados, comuns a toda a criação. Convém aproximar deste
símbolo em linha reta o mesmo símbolo em linha circular, conhecido por toda a
antigüidade oriental e renovado pelos taoístas, o Yin-Yang, representação do
princípio duplo, ativo-passivo, positivo-negativo, masculino-feminino,
luminoso-obscuro, etc., que quando dividido em suas duas partes por um
observador analítico produz o erro fatal do Bem e do Mal, mas que,
indissoluvelmente um em essência (malgrado o aspecto que a representação
material é obrigada a lhe dar) constitui o Tai Chi ou Grande Extremo, símbolo enérgico e absoluto,
gravado no frontão de todos os templos, e que Lao Tsé colocou à frente de todas
as doutrinas asiáticas.
O traço sem solução de
continuidade representa o ativo; o traço com solução de continuidade representa
o passivo; e sendo os traços como os princípios, Fo Hi reconhecia assim a
essência e a unidade da perfeição, da qual eles não passam de aspectos.
Cuidemos bem, aqui mais do que em qualquer outro lugar do mundo, de não
confundirmos a coisa com a forma deteriorada sob a qual podemos representá-la,
e talvez mesmo compreendê-la: pois os piores erros metafísicos, os piores
cataclismos morais nasceram da compreensão insuficiente e da má interpretação
dos símbolos. E lembremo-nos sempre do deus Janus, que é representado com dois
rostos, mas que não possui senão um, que não é nem um nem outro que podemos
tocar e ver.
Esta é a interpretação
do simbolismo dos traços dos hexagramas de Fo Hi; ela demonstra que o Yi
Ching é um livro universal e não um tratado de
astronomia, como quiseram os japoneses e os latinos niponizantes[9].
Os ideogramas que constituem
as glosas e paráfrases da Escola de Fo Hi (dos quais os mais importantes são as
“fórmulas” de Wen Wang) estão escritos em caracteres primitivos chamados Koteou; estes caracteres são a origem das “chaves” que
existem ainda hoje na escrita ideográfica chinesa. Não temos mais, nos
documentos do Extremo-Oriente, a escrita da Escola de Fo Hi; e poder-se-ia
duvidar de seu valor e de suas formas, se esta escrita, que não sobreviveu nas
pinceladas dos manuscritos, não tivesse, como as rochas, e esculpida nas rochas,
resistido ao tempo e às revoluções. Os hierogramas em questão acham-se na
célebre inscrição de Yu, sobre a montanha de Heng Chan, conservada em
Singan-Fou, primeira capital da China histórica e uma cidade que permanece
sendo, não apenas uma épica lembrança da antigüidade chinesa, mas até hoje um
refúgio sagrado que abrigou vitoriosamente os soberanos da China moderna contra
as tentativas guerreiras da coalizão européia.
Além de seu valor
escultórico, esta inscrição é bastante interessante para que a mencionemos
textualmente, ao menos em parte. Ela é, de fato, contemporânea do dilúvio
hebreu, e o menciona. Ela remonta exatamente a 2276 a.C., ou seja é cinco
séculos mais antiga que os mais antigos hieróglifos egípcios.
“Ajudem-me, meus
conselheiros, na administração dos negócios. A oeste e além das montanhas, as
grandes e pequenas ilhas, os planaltos habitados, as moradias dos pássaros e
dos quadrúpedes, estão inundados. Atentem para isso, façam escorrer as águas e
levantem os diques para impedir uma nova inundação”. E mais adiante: “Há muito
tempo que eu esqueci completamente os meus, para reparar os males da inundação;
mas agora eu posso repousar: a confusão da natureza cessou; as grandes
correntezas que vinham do Sul escorreram para o mar”.
Evidentemente faz tempo
que sabemos que o dilúvio bíblico foi uma inundação parcial e um cataclismo
bastante medíocre; mas como cada qual estima as coisas conforme o bem ou o mal
que elas lhe provocam, o imperador Yu não viu mais do que um transbordamento
provincial, aonde o historiador hebreu enxergou a destruição da natureza, e
portanto o dedo de seu Jeová; alguns diques poderiam prevenir uma inundação
análoga, e é o ministro dos trabalhos públicos que substitui aqui a pomba da
arca de Noé. Mais uma vez, a inscrição de Yu nos convida a não tomarmos ao pé
da letra as afirmações grandiloqüentes das pequenas nações, e a nos lembrarmos,
por exemplo, que no 22o. século antes de Cristo, não era preciso
muita água para afogar a raça e o poderio judaicos[10].
As glosas que acompanham
o hexagramas de Fo Hi – e que estão todas transcritas hoje em dia na escrita
ideográfica moderna – compreendem: as
fórmulas do príncipe Wen Wang, fundador da dinastia dos Tsheou (1154 a.C.); as
fórmulas de Tsheou Kong (1122 a.C.); os “Dez golpes de asa” de Confúcio (aprox.
500 a.C.); o “comentário tradicional” de Tcheng Tsé (1150 d.C.); e o “sentido
primitivo” do célebre Tsou Hi (1182 d.C.). cada um destes comentadores
esclareceu o texto de Fo Hi e de Wen Wang com as luzes preferidas de seu espírito.
E como esse texto é sintético e universal, nós veremos passar, um após outro,
os sentidos metafísico, político, mágico, moral, social ou divinatório,
conforme as tendências particulares dos exegetas.
Apenas sua audácia
tranqüila iguala a simplicidade de seus raciocínios. Lembremo-nos que Fo Hi e
Wen Wang – sobretudo Fo Hi – consideravam-se como intérpretes do Verbo Eterno,
sem necessidade de imaginar um intermediário divino entre este Verbo e eles.
É por isso que o Yi
Ching, cuja análise direta iremos começar, abre com o estudo tangível da
Unidade e da Perfeição, ou seja pelo estudo humano do céu. E nós não obedecemos
ao amor do paradoxo, mas ao da verdade, ao colocarmos, no início deste estudo,
os “Gráficos de Deus”.
Que o sentido da fórmula
esteja envolto em trevas, disto não se duvida: estas trevas são devidas, por um
lado, ao hábito sintético do raciocínio chinês, e ao caráter ideogramático de
sua forma gráfica. Para citarmos Philastre: “O caracter chinês não possui
jamais um sentido absolutamente definido e limitado; o sentido resulta de sua
posição na frase, e também no seu emprego neste ou naquele livro, e da
interpretação admitida no caso. A palavra não tem valor fora de suas acepções
tradicionais”. Aqui a obscuridade do texto e dos comentários aparece, ademais,
como uma vontade contida de fornecer, no mesmo conjunto de caracteres, sentidos
paralelos e igualmente verossímeis, que podem ser lidos e compreendidos de
tantas maneiras quanto graus há no entendimento, quanto ciências existem na
Humanidade, quanto mundos existem no universo intelectual. Por estas
características específicas é que reconhecemos que o Yi Ching é bem o “Livro”, sem epíteto, ao mesmo tempo
sintético e abstrato, lógico e divinatório, político e metafísico, ontológico e
moral, e que as escolas da China não erram ao consultá-lo e citá-lo em todos os
campos.
A via de estudos dos
filósofos chineses não é traçada como a dos filósofos ocidentais; é impossível
separar o pensamento chinês de uma certa ambigüidade; nossa inteligência vê aí,
não esta ambigüidade voluntária, mas uma certa confusão, indicador de uma
impotência do raciocínio. Nada mais falso do que este ponto de vista. A ciência
oriental difere da nossa, não apenas devido à raça e ao país, mas também por
causa da época. Não devemos esperar encontrar, nos descendentes de Fo Hi e nos
contemporâneos de Lao Tsé, estas afirmações claras e francas, que nos
envaidecem singularmente, afirmações que são sem dúvida exatas, mas que, por
força de serem estreitas e estritas, não encerram senão uma mínima parte da
verdade; todas estas porções infinitesimais, afirmadas umas ao lados das
outras, e independentemente umas das outras, por nossos espíritos analíticos,
escondem a inteireza da verdade aos nossos olhos delicados e míopes. É assim
que um rosto se reproduz, com as piores deformações, num espelho talhado em mil
facetas justapostas em planos diferentes. As discussões microscópicas nos
tornaram inaptos a experimentar e captar as grandes sínteses. Eu comparo de bom
grado o sentimento do ocidental transportado à China, ao de um camponês das
planícies levado subitamente ao alto do Monte Branco; os sentidos
desacostumados às profundidades e aos horizontes longínquos, o arrepio
desconhecido da vertigem, tudo o impediria de saborear o esplendor da paisagem.
É um sentimento de inquietude análogo, que nos toma diante dos sistemas e dos
modos de raciocínio chineses, mal preparados que estamos, por falta de costume,
a captar, nesta ordem inalterável que rege o universo, outra coisa que não seja
uma teoria complicada, em cujos espaços e profundidades nossos espíritos pouco
perspicazes impacientam-se, recusam-se e se perdem, antes de chegar à
compreensão.
Aquele que pretende
iniciar-se na Tradição Primordial, que nos oferece o primeiro monumento do
conhecimento, deve estar prevenido: ele se sentirá invadido por uma confusão
vaga e singular, não apenas devido à universalidade da síntese, mas também por
causa da generalidade dos termos empregados, da impropriedade forçada das
interpretações, e da falta total de preparação, em que se encontram os
ocidentais, em ler e escrever, numa linguagem analítica, aquilo que só possui
sentido perfeito e valor integral nos ideogramas. Qualquer um que queira
penetrar profundamente no íntimo desta ciência e deste pensamento, é nos livros
originais, e não nos resumos escolásticos – e menos ainda nas adaptações
estrangeiras – que ele deverá buscar auxílio e luzes. Este é o grande defeito
das obras dos sinólogos mais distintos, como Stanislas Julien e tantos outros,
para quem uma longa permanência no país chinês, em meio a letrados chineses,
teria fornecido, sem contestação nem hesitação, as soluções que eles procuraram
em vão, entre trabalheiras ingratas, na Sorbone ou no Collège de France; foi
uma permanência assim que permitiu a Philastre seu trabalho sobre o Yi
Ching; foi sua estada no Extremo-Oriente que
teria possibilitado aos missionários, e dentre eles aos Padres Huc e Prémare,
ir fundo no entendimento dos arcanos mais obscuros, se a idéia religiosa
romana, em vista da qual eles trabalhavam, não houvesse conduzido seus
espíritos sobre um único caminho, forçando-os a tirar conclusões singulares em
seus trabalhos, com as quais eles não teriam sonhado se seu estado não lhes
tivesse criado uma necessidade inelutável.
Por essas razões e
nessas condições, é impossível elucidar o Yi Ching senão através dos filósofos e dos raciocínios
amarelos. Mas ainda é preciso ver como pedir e obter esta ajuda. Não se pode
fazê-lo da modo como, por exemplo, os comentadores ocidentais, através de fórmulas
estritas e deduções imperturbáveis, iluminaram todos os belos aspectos do gênio
grego, por exemplo, precisamente porque este gênio, de onde saiu o gênio das
raças latinas, acomoda-se perfeitamente aos nossos modos de argumentação e de
dissecação intelectuais. Mas, pela mesma razão pela qual o gênio dos chineses
nos parece, à primeira vista, vago e abstruso, a vasta síntese chinesa foi, por
tais meios, não dividida e esclarecida, mas despedaçada e destruída, não
deixando diante de nós mais do que um corpo morto e enregelado. A aplicação de
um livro para o esclarecimento de um outro não pode estender-se de maneira
absoluta, nem quanto às idéias, nem quanto à terminologia. Explicar um texto
por um contexto seria aqui o cúmulo da ingenuidade, e também do erro. Mas, após
haver captado o fundo do ensinamento de um filósofo – de Lao Tsé, por exemplo –
inteirar-se do valor que ele atribuía aos termos do Antigo Estudo, e, a seguir,
colocando-se diante do texto confuso e de múltiplas interpretações de um dos primitivos
Ching, induzir a maneira como Lao Tsé o teria entendido, tal é a única maneira
válida de esclarecer os textos orientais uns através dos outros, e de encontrar
seu pensamento em meio aos símbolos. Eles parecem divergentes; eles são apenas
diferentes. Mas todos apontam para a verdade única, assim como as ondas do mar,
que parecem diferentes na altura, na cor e na direção, caminham para o mesmo
fim, sob as influências constantes das monções e das marés.
III
OS GRAFISMOS
DE DEUS
Como uma criança, a quem
melhor ensinamos a nadar atirando-a bruscamente na água do que sustentando-a
pela cintura e dando-lhe lições com mestres mergulhadores, melhor é
precipitarmo-nos, arriscando-nos a perder pé talvez, na metafísica sagrada dos
povos amarelos. Depois de algum aturdimento e muita atenção, todo espírito
sensato e refletido encontrará seu caminho.
A diferença entre as
concepções, ocidental e oriental, de Deus e da origem dos deuses, e da idéia de
Deus, é primordial e absoluta. No Ocidente, nossas línguas alfabéticas dão ao
nosso objeto de estudos o nome de quatro letras, Deus, que é de um concretismo
maravilhoso e tão preciso, que vemos por toda parte seus limites; e, ainda
insatisfeitos com esta designação, os ocidentais a ilustram por meio de um
ancião barbudo tendo nas mãos um leque de raios, ou por um triângulo em cujo
centro está um olho. Aqui, o que chamamos Deus não possui um nome; ele é
representado por um caracter denominado Tien (que, em mandarim falado traduz-se por: céu); este caracter supõe e
compreende uma quantidade de propriedades específicas, não do céu, mas daquilo
que está no céu e além do céu. Assim, o Deus dos amarelos, em sua denominação,
não tem um nome particular; é uma idéia geral. E no entanto Fo Hi, o primeiro sábio
histórico da China, julgou que esta “idéia geral” era insuficiente, injusta e
geradora de erro; e ele substituiu o caracter por um desenho geométrico,
inespecífico, tão generalista quanto possível, e cuja forma seria
representativa dos raciocínios necessários para a aproximação a uma idéia que
não é possível conceber; assim este desenho geométrico tomou o valor de um
arcano metafísico.
A ambição do ocidental é
de ser compreendido; a ambição do oriental é de ser verdadeiro; em teogonia
como em metafísica, como em toda ciência transcendental, estas duas ambições
são excludentes. Não podemos captar a verdade se estamos cercados e como que
embrulhados em erros. Nosso dever é o de sempre distinguir este erro,
inconsciente e necessário, da verdade que ele cobre; e também o de diminuir sua
espessura e quantidade a fim de que, através deste envelope cada vez mais
delgado, a verdade resplandeça enfim.
Foi neste estado de
espírito que os sábios amarelos construíram os grafismos de Deus. Estes
grafismos carregam a denominação genérica de “Perfeição”. São enumeradas duas
perfeições (e portanto dois grafismos de Deus): a perfeição ativa e a perfeição
passiva[11]. Mas não existe, em realidade, senão uma única
perfeição; e livremos desde já a metafísica chinesa da acusação de dualismo que
lhe foi feita, a respeito, por espíritos insuficientemente documentados.
Não existe mais do que
uma única perfeição, uma só idéia de Deus, uma só “causa inicial de todas as
coisas”, Esta perfeição, chamada de “ativa”, é geratriz e reservatório
potencial de toda atividade; mas ela não age. Ela é e permanece em si, sem
manifestação possível; ela é assim ininteligível ao homem, no estado presente
do composto humano.
Desde que esta perfeição
manifestou-se, ela – sem deixar de ser ela mesma – sofreu a modificação que a
tornou inteligível ao espírito humano; pouco importa que esta manifestação
tenha sido um ato simples de vontade, ou uma ação verdadeira; pelo simples fato
de que esta perfeição agiu, ela se torna passível de conceituação e recebe a
denominação de “perfeição passiva”(Khouen).
A Perfeição é uma e ininteligível ao homem: para que se possa falar dela, é
preciso que ela se torne, ou ao menos que possamos supor que ela se possa se
tornar inteligível. E assim nos a representamos por dois grafismos diferentes.
Mas não existe senão uma só e mesma perfeição, e uma só causa inicial.
Lembremo-nos que nosso
espírito não capta senão o número, que ele não está apto para captar a Unidade,
e menos ainda o zero, que é a unidade antes de qualquer manifestação.
Lembremo-nos também que não se pode dizer que haja dualismo senão aonde existem
dois princípios contrários ou diferentes; e que dois ou cem aspectos de um
mesmo princípio não podem constituir nem dualismo nem multiplicidade. Aqui,
como em toda parte, o Grande Princípio é um, e é para situar sua unidade
não-manifestada acima de todas as tentativas possíveis da inteligência humana,
que o sábio propõe, para nossa contemplação e nosso estudo, não o princípio em
si – que não poderia sequer ser nomeado sem
ser desfigurado –, mas o aspecto do Grande Princípio, manifestado e refletido
na consciência humana.
Sou obrigado a insistir
nisto acima de modo quase excessivo, e o farei também para o Yin-Yang, ou símbolo do Grande Extremo. Pois é espantoso e
quase ridículo ver espíritos excelentes, diante de um sistema metafísico ou de
uma tradição oculta, acusarem-na de um dualismo que só foi introduzido nela
pela imperfeição atual da mentalidade humana, e para que ela se aproximasse
desta mentalidade. Há uma censura a fazer, de fato: mas é a si mesmos que estes
excelentes espíritos devem dirigi-la, repreendendo-se por ainda continuarem
sendo homens. É preciso nos resignarmos: jamais saberemos, enquanto homens, a
verdade, e aquilo que cremos como verdade não é a verdade, exatamente porque
compreendemos que ela o é, ou que ela pode sê-lo[12]. É assim com uma precaução infinita, que a Tradição
comporta um aspecto da verdade – ou de Deus – capaz de enfim ser captada pela
nossa inteligência. E a fim de que este aspecto não seja pronunciado (e não dê
lugar, portanto, a uma frase falsa ou a interpretações errôneas), ele não
possui um caracter, nem mesmo uma idéia: é um desenho. Este é o arcano, linear
e metafísico, da Perfeição Passiva (Khouen).
E, para penetrarmos no
fundo desta questão e não voltarmos mais a ela, este aspecto não é um reflexo.
A Perfeição Passiva não é um reflexo da Perfeição Ativa, como seria, na água, o
reflexo de um astro, ou seja a metade de uma ficção. A Perfeição Passiva é de
modo absoluto uma entidade idêntica, ou melhor, que deve ser idêntica à
entidade da Perfeição Ativa, salvo por esta circunstância, que é o podermos nos
aproximar dela. Dito de outra maneira, a Perfeição Ativa, captada pelo nosso
entendimento imperfeito, torna-se a Perfeição Passiva; entretanto ela permanece
a Perfeição, e é aí que aparece sua misteriosa realidade abstrata.
Se transpusemos a
verdade numérica para o plano divino (ou metafísico transcendental), podemos
dizer que a Perfeição Passiva está para a Perfeição Ativa assim como o um está para o zero,
sendo que ambos, mesmo sendo cifras
diferentes, não passam do mesmo número,
o primeiro dos números e o único número.
Nunca é demais combater
este erro instintivo e formidável do Espírito humano, que atribui à Verdade
esta multiplicidade – sem a qual ele não compreende nada e da qual ele é o
único exemplo na universalidade dos Espíritos – e que, por um orgulho
inconsciente, projeta sua imperfeição mental sobre a própria face da divindade.
Este dualismo está na base de todos os erros metafísicos. O espírito humano,
esquecido de proceder à necessária justaposição de dois princípios
absolutamente idênticos (justaposição necessária para que, pela compreensão da
existência do segundo, ele possa admitir, mesmo sem compreender, a existência do
primeiro), levado à divisão e à diferenciação, atribuiu então, a estes
princípios justapostos, propriedade diferentes, de aparências diversas, e logo,
sentidos contrários e de conseqüências inconciliáveis. A partir daí o mal
estava feito; ele é irreparável, e pôs a perder, desde as raízes, as ciências e
as religiões. E pior: o homem, que não pode permanecer constantemente um
metafísico, um lógico e um racionalista, torna-se rapidamente um sentimental,
um sensitivo, um sensual. Ele carrega consigo, neste novo domínio, o erro que
ele criou no plano mental, e do qual ele é o único responsável. E sobre este
plano inferior, ele criou, à imagem monstruosa de seu dualismo metafísico[13], as relatividades do Bem e do Mal; e ele criou leis;
e erigiu convenções, e martiriza-se com seus preconceitos, e com as lágrimas e
o sangue que ele faz derramar, e consolida sua obra detestável: ele coloca esse
dualismo moral sob a proteção do dualismo metafísico inventado pela sua
ignorância e seu orgulho; e assim, guardião de sua própria prisão, ele
constrói, com suas mãos ilógicas, o inferno incompreensível, estúpido e
enganador, que é o agregado social contemporâneo.
A representação gráfica
da Perfeição, como vemos no início deste capítulo, é concebida através do
simbolismo mais simples. Como o desenho da idéia de infinito é indefinido, nada
melhor que ele comporte um elemento sem começo nem fim: e assim é a linha reta
que se prolonga indefinidamente de um lado e de outro; ela termina no desenho,
bem entendido, pela limitação da necessidade material, mas ela não termina no
pensamento, nem na suposição. É nisto que, malgrado as aparências, o simbolismo
da linha reta é superior ao da linha curva fechada, ou da circunferência: esta,
semelhante à serpente que morde a própria cauda, popular e falsa aparência da
Eternidade, parece nunca terminar de circunvalar indefinidamente sobre si
mesma; mas, em realidade, e com precisão, ela encerra um espaço, ela determina
uma superfície, que é o círculo, que possui uma medida, e que portanto é finito.
E nada pode impedir esta determinação, vale dizer esta inferioridade e
insuficiência notórias do símbolo.
Ao contrário, na medida
em que prolongamos a linha reta, por uma suposição perpétua, ela se despersonaliza e se torna a própria imagem do indefinido, pois ela não determina, não encerra, não
define nada. Melhor ainda: se imaginarmos um
plano qualquer engendrado por esta reta, teremos a indefinição do espaço; e se
imaginarmos simultaneamente todos os
planos engendrados por esta reta indefinida, teremos o “volume universal”, ou seja o símbolo do Infinito. E é por isso que
consideramos a superioridade, quase sempre ignorada, da linha reta em relação
ao círculo, enquanto representação simbólica daquilo que se trata.
Se agora pensarmos na
Perfeição, vale dizer, se nosso pensamento faz da Perfeição Ativa a Perfeição
Passiva, reconheceremos a identidade absoluta destas entidades quanto ao fundo,
senão quanto à forma; e ligamos, apenas por pensarmos, à esta Perfeição
Passiva, a idéia de nossa multiplicidade e de nossa divisibilidade
(característica específica da modificação humana e do pensamento, específico do
estado humano).
Assim, o símbolo da
Perfeição Passiva deve ser em tudo o mesmo da Ativa, e deve engendrar ainda a
idéia de multiplicidade (o “mais” determinativo é um “menos” metafísico). É por
isso que o símbolo da Perfeição Passiva será a linha reta indefinida, mas com
uma série indefinida de soluções de continuidade. Tal é o significado do traço
truncado do ponto de vista da divisibilidade do Ser, ou seja do ponto de vista
das ações e das formas. E assim possuímos dois simbolizamos justos, poderosos,
simples: é sobre eles que são construídos os trigramas de Fo Hi, os hexagramas do Yi Ching, e os sessenta e quatro arcanos da Evolução[14].
Como já dissemos, a
Perfeição Ativa não age, mas ela é a “partida” de toda ação, e, do ponto
de vista humano, o princípio ação é a prova de sua perfeição, e o começo da
possibilidade de sua intelecção. É por isso que, dirigindo-se a seres humanos,
e desejando fazê-los compreender o mais alto alcance humano da Metafísica, o
sábio chinês colocou na primeira linha a atividade[15]: e a suprema marca da atividade, para a perfeição, é
a faculdade de engendrar perfeitamente,
ou seja, de reproduzir a si mesma sem ajuda. Esta idéia, natural – e que, sem o
menor jogo de palavras, podemos chamar de idéia-mãe – traduz-se no simbolismo gráfico, duplicando o
signo da perfeição (ativa ou passiva, traço contínuo ou traço truncado) com um
traço semelhante. Assim se forma o digrama. Este digrama é precisamente a
representação simbólica do Pai e da Mãe, ou seja dos meios de concepção; assim
os dois traços concebem o terceiro; o Pai e a Mãe engendram o filho; e, no
simbolismo, o trigrama imediatamente sai do digrama, que não é um estado
permanente, mas uma passagem da Unidade à Tríade. Esta é a gênese dos trigramas
de Fo Hi.
Guardemos este fato, de
uma profunda conseqüência metafísica e moral, que é o estado digramático não
existir senão como um instante. Na obra formidável do Yi Ching e de todos os seus comentários, a existência do
digrama é mencionada uma vez, e não ocupa mais do que uma linha em tipos
ocidentais. Assim fica claro, por um silêncio voluntário, que este não é um
estado lógico, mas apenas um instante necessário entre a Unidade e a Trindade.
Somente o Pai existe, e o andrógino eterno só se separa para fecundar a si
mesmo. E o instante é matemático: o pai
e a mãe não existem senão para criar: no momento da criação, eles estão unidos
e não formam mais do que um; no momento em que eles se separam, o germe já
existe, e eles são três[16]. Pode ser interessante levar este princípio a todos
os mundos: assim, não existe bem e mal fora da atividade humana; assim, não
existe união da alma e do corpo sem o espírito. Assim, para falarmos em termos
católicos e cabalísticos, não existe Pai e Filho sem Espírito Santo: o mistério
da Trindade tornou-se um axioma; e as sociedades e religiões que negligenciam o
Verbo de São João e o Paráclito, não passam de ilógicas e monstruosas
aglomerações. Deixamos aos leitores, que estão evidentemente informados sobre
todas estas questões, o prazer, delicado e fácil, de tirar deste teorema
metafísico todas as deduções que ele comporta.
Naturalmente os
trigramas compostos dos mesmos traços são aqueles da Perfeição. Colocando
juntos, em todas as posições possíveis, o traço comum e o traço truncado,
obtém-se oito trigramas, que são os “Trigramas de Fo Hi” e a base de todo o
simbolismo metafísico dos povos amarelos.
Destes trigramas saem os
hexagramas que constituem a trama do Yi Ching. Praticamente, mecanicamente, por assim dizer, eles “evoluem” uns para
os outros. Dobrando os trigramas iniciais, ou seja escrevendo-os duas vezes um
sobre o outro, e inscrevendo-os como se inscreve um octógono num círculo,
obtém-se um quadro mágico, chamado pelo povo de Hado. Se, ao redor deste centro único, fazemos girar da
esquerda para a direita o círculo dos trigramas exteriores, e simultaneamente,
da direita para a esquerda, o círculo dos trigramas interiores, obtemos
sessenta e quatro situações de seis traços, todas diferentes entre si, que
constituem os sessenta e quatro arcanos da Evolução, sendo a sexagésima quinta
situação exatamente a primeira, reproduzindo os dois hexagramas da Perfeição. A
explicação, as fórmulas e os comentários destas séries formam precisamente o Yi
Ching, que assim justifica, mesmo graficamente,
o título de “Mutações na revolução circular”,
ao mesmo tempo em que simboliza, em todas as suas modificações e na sua
transformação final, o dogma fundamental da Tradição extremo-oriental.
Desenvolveremos a tempo em outra parte este simbolismo tão simples e tão
perfeito.
Existe uma razão
profunda para o desdobramento dos trigramas e sua conversão em hexagramas; esta
razão, a um tempo humana e metafísica, é familiar a qualquer pessoa. O trigrama
– ou, para generalizar, a idéia ternária que ele representa – é a imagem de uma
entidade metafísica realmente existente, mas distante do horizonte da
Humanidade até o infinito, e nos confins e acima de seu horizonte intelectual.
Ele reflete-se em nosso entendimento como um objeto reflete-se na água que
banha sua base, ou como, em pleno mar, a lua reflete-se no oceano ao se por.
Assim, o trigrama celeste e seu reflexo em nossa razão produzem o hexagrama, E
aqui ainda aparece o princípio ternário; pois o céu não se reflete sobre a
terra senão através do coração do homem; pois o monumento não se reflete na
água senão graças à luz do dia; pois a alma não influi sobre o corpo senão
através do Espírito; pois o Filho não comunica a graça ao Pai, e o Pai não
derrama os méritos do Filho senão em virtude do Espírito Santo – três fazem um,
pelo efeito de um dois fugitivo e
latente. E o hexagrama é um eneagrama,
do qual o trigrama celeste é real, o trigrama humano é um reflexo, e o trigrama
espiritual inscreve-se nos meandros tão finos e fluídos que ele não deixa traço
nem testemunho, e apenas a lógica indica a necessidade de sua existência.
Frisemos desde já, e
frisaremos ainda a seguir, a quantos pensamentos universais a tradição
extremo-oriental, por distante e recuada que seja, deu origem. A cada instante,
no decurso deste estudo, que parecem mais rebarbativos do que o são na
realidade, a aplicação do antigo princípio surgirá, clara e indubitável, nos
nossos próprios métodos e em nossas tradições ocidentais, que séculos de
civilização branca transformaram, acreditando aperfeiçoar ou expurgar. E será
ao mesmo tempo uma grande facilidade para a compreensão da doutrina, como será
um grande conforto para as inteligências sintéticas às quais nos dirigimos, perceber
que o laço não foi rompido, e que jamais poderá sê-lo, que ele nos religa à
origem comum, de onde viemos nós e o próprio Fo Hi, e para onde retornaremos,
assim como os mais respeitosos seguidores de Fo Hi. Nós não temos nada que
criar, nada a inventar, nem mesmo a explicar por novos meios; tudo o que temos
a fazer é não perdermos o que resta, e encontrarmos o que foi perdido. E
permitam-nos dizer em alto e bom som aquilo que pensam em surdina, e que sabem
todos os metafísicos e todos os ocultistas de todos os países. No
obscurecimento e no esquecimento das ciências sagradas, existe uma questão de
raça e de latitude. Os sábios da China e da Índia jamais esqueceram nada, mas
nós ficamos separados deles por bárbaros. Somente os ninivitas, destruidores das
ciências védicas, e os semitas, copistas insuficientes e cruéis das ciências
egípcias, criaram um hiato entre a antigüidade e a contemporaneidade, entre a
ciência oriental e a busca ocidental. É
passando ao lado, através ou por cima destas raças medíocres, que
reencontraremos nossa via, e que a Humanidade moderna poderá ligar-se
dignamente aos seus ancestrais do ciclo de Ram. Se a continuação desses estudos
chegar a provar estas proposições ao maior número possível de pessoas, teremos
começado nossa obra pelo melhor.
Mas agora, depois desta
simples determinação dos “grafismos de Deus”, sublinhemos quão admirável é a
ciência que seguimos, quão simples é o método que empregamos. Dissemos que o
Ser-Deus, a Perfeição, é ininteligível ao homem. E ele é, na realidade. Nós
constatamos como os sistemas religiosos, honrados pelo grosso da Humanidade,
buscaram desfigurar a Deus, aproximando-o de nós, a fim de fazê-lo penetrar por
nosso entendimento. Esses sistemas destruíram voluntariamente a idéia
metafísica, e não nos oferecem senão o erro; quando não, ao estabelecer o
antropomorfismo, eles nos apresentam uma tese tão grosseira quanto o fetichismo
das raças incultas. E apesar destas deformações, eles não conseguem nos
satisfazer.
Para seguirmos a
Tradição Primordial, não quisemos, nem poderíamos aliás, imitar estas
transformações mediocrizantes. Deus – a Perfeição – nos é e nos será
ininteligível enquanto permanecermos homens. Mas esta perfeição que não pudemos
compreender, que não pudemos sequer discutir, nem racionalizar, nem nomear,
pudemos desenhar; e ao desenhá-la, nós não lhe demos contornos; não a fizemos finita; mas a conhecemos com os olhos. Por uma seqüência de raciocínios
lógicos e metafísicos, sem havermos estabelecido uma proposição a priori, sem exigirmos a aceitação de um postulado, sem
havermos imposto a crença no menor mistério, nós simbolizamos perfeitamente,
com seis linhas, sem a destruir nem diminuir, esta noção de Deus que ninguém,
salvo o próprio Deus, poderia nomear e compreender. Este traçado simples, esta
abstração linear, este arcano metafísico, nós sentimos profundamente que ele é
o que é, e não poderia ser outra coisa do que apresentamos aqui. E temos em
mãos este instrumento maravilhoso, com o qual podemos colocar com segurança a representação ideal,
inteira e axiomática do ininteligível. Nós não a compreendemos; nós não a
nomeamos; nós não a escrevemos – nós a vemos.
E é ele, este símbolo
mais admirável do que as mais magníficas idéias concebidas pelo cérebro humano,
que será aqui a base e a partida de todas as nossas proposições, assim como
aquilo que ele representa é o objetivo inevitável de nossa existência e de
nossos esforços.
IV
OS SÍMBOLOS DO
VERBO
Como já dissemos, o espírito de generalização, que foi o espírito
filosófico da Humanidade, antes da invenção das análises e dos métodos de
dissecação pelo espírito científico e mecânico dos modernos, este espírito
permaneceu intacto entre as raças orientais; e foi o método sintético,
matemático e lógico, que conformou os livros tradicionais mais antigos, que o
respeito dos povos depositários nos transmitiu incorruptos e intangíveis até a
nossa época extremamente civilizada e individualista.
Este espírito
generalizador produziu, com uma multiplicidade indefinida, aplicações de um
mesmo axioma ou de u m mesmo princípio a todas as ciências, a todos os estados
sociais, a todos os mundos intelectuais, a tudo o que podia ser feito, dito ou
pensado em todos os lugares e em todas as épocas da estase humana e universal.
E quanto mais um axioma
parece fundamental, quanto mais um princípio parece eterno em seu conceito e
justo em sua tradução gráfica, mais as aplicações são pesquisadas com ardor e
determinadas com precisão.
É assim que os “Grafismos
de Deus” estabelecidos com um cuidado de
síntese universal no pensamento e com rigor matemático na execução, são
considerados, pelos comentadores dos Livros Tradicionais, como a chave de todas
as idéias e de todas as situações humanas, como exórdio e conclusão de todas as
ciências, e como arcano aonde é preciso buscar ao mesmo tempo a explicação de
todo o desconhecido, a solução geral de todos os problemas, as regras de todas
as políticas, as prescrições de todas as economias sociais e de todas as morais
individuais.
Os “Grafismos de
Deus” não são apenas o “desenho” perfeito, de
uma idéia geral abstrata e de uma entidade
inconcebível para o homem atual. Eles constituem, com suas seis linhas
indefinidas, como que a dimensão metafísica em que se inscrevem a harmonia
eterna, e aonde vêm se colocar, para adquirir seu significado adequado no
conjunto do universo, os acordos específicos a cada conhecimento do espírito
humano. Para usarmos uma comparação mais fácil e grosseira, mas igualmente
exata do ponto de vista gráfico, cada conhecimento do espírito humano é
semelhante a uma dessas correspondências diplomáticas, aonde se escondem, em
meio a inutilidades e desvios destinados a enganar e desencaminhar os
indiscretos e os vulgares, a solução de problemas do qual podem depender a vida
e a glória dos povos. Caídas em mãos de ignorantes, estas missivas permanecem
incompreensíveis: elas só tem efeito para aqueles que as escrevem e para
aqueles a que são destinadas. Assim também os conhecimentos humanos são
abstrusos mesmo àqueles que os estudam profundamente, se eles seguirem estudos
individualizados e se particularizarem seus esforços.
Assim os “Grafismos
de Deus” são a “grade” que, colocada sobre o
texto informe, sublima as partes úteis, destrói as partes inertes, e faz, nos
seus intervalos, sempre arrumados do mesmo modo para todos os textos, saltar aos olhos daqueles que sabem, as verdades
necessárias, os arcanos diretores de todas as ciências e motores de todas as
ações humanas.
Entremos pois
resolutamente neste simbolismo. Os “Grafismos de Deus” nos ajudarão poderosamente, se soubermos relacionar
tudo a este princípio, e se nos lembrarmos que todas as interpretações, todas
as imagens, todas as determinações precisas são bordados lançados sobre a trama
eterna, sobre o urdume metafísico sem o qual nenhum tecido pode ser tecido, sem
o qual nenhum sistema pode se sustentar.
Ao compormos umas com as
outras as “situações” dos Grafismos de Deus,
ao estudarmos, isolada e depois paralelamente, os traços que os compõem,
obtemos todas as idéias contidas no cérebro e todas as luzes da consciência.
Nas aplicações que podem ser feitas a partir deles, estas situações se
modificam, estes traços mudam de personificação e de objeto; neles e entre eles
manifesta-se o movimento perpétuo, que é o resultado da atividade primordial e
a conseqüência da atividade potencial da Perfeição. Assim este movimento
contínuo representa perfeitamente a série das modalidades transformadoras, que
constituem, umas após outras, a existência do universo tangível e perceptível, modalidades
cuja causa profunda e cuja explicação formal são dadas pela fórmula
tetragramática (que estudaremos no próximo capítulo). Assim, cada um dos
ideogramas e cada traço de cada ideograma, por participar do Princípio da
Atividade, possui uma atividade própria, pela qual ele se move livremente, em
conformidade com uma via livremente consentida, da qual ele é uma das
expressões (a única expressão imediata, no momento em que falamos dela).
Resulta daí que cada um
dos traços, na medida e enquanto o consideramos, adquire uma personalidade,
devida à manifestação de sua atividade específica. Parece então lógico e
sensato que o simbolismo intelectual e fonético (veremos adiante a razão destes
adjetivos justapostos) lhes tenha dado a figura expressa da Plenipotencialidade
e da Pleniatividade, ou seja a figura do DRAGÃO, “mestre onisciente dos
caminhos da direita e da esquerda” (Phan-Khoatu, I).
A lenda do Dragão. “Os
dragões e os peixes têm a mesma origem; mas como o destino é diferente para
cada qual! O peixe não pode viver fora de seu elemento; mas basta que uma
ligeira nuvem desça à terra, e veremos o dragão lançar-se aos ares”. Assim
canta a décima primeira estrofe da célebre balada A Vida feliz, ao som da qual, nos Extremo-Oriente, os velhos
letrados sorriem e as criancinhas adormecem.
Ela alude à lenda do
Dragão, que citamos porque nela encontraremos a origem da gênese mosaica, a
ficção sinaítica da lei, e talvez mesmo o símbolo da síntese alquímica.
A água que corre sobre a
terra, dizem os velhos contadores de histórias, é semelhante à nuvem que voa no
céu: a natureza de ambas é semelhante; apenas sua aparência é diferente. E isto
é importante, porque a umidade fecunda o universo, assim como a via do céu
fecunda o pensamento dos homens. Nada é melhor, mais fugidio, mais ativo, mais
universal que a água; mas se suas ações não estão unidas, a água do céu não
pode nada sobre a terra, a água da terra não pode nada sobre a nuvem do céu.
Assim, o peixe na água da terra e o pássaro Hac[17] na água do céu vivem separados e são imperfeitos.
Mas se a tempestade ergue as águas ou se o calor do dia as evapora, ou se uma
suave neblina abaixa-se sobre a terra, ou se uma grande ventania precipita as
nuvens ao chão, então a união entre as duas águas terrestres e celestes acontece:
o pássaro Hac desce à terra na forma de
nuvens, o peixe eleva-se para os céus como água de rio; quando eles se
encontram, o pássaro Hac empresta suas
asas ao peixe, que empresta a ele seu corpo e suas escamas; em meio aos
relâmpagos da tempestade e entre as águas que rugem aparece o Grande Peixe
sobre cujo dorso estão escritos os preceitos secretos da Lei. E tão logo seu
dorso toca as nuvens baixas, ele se torna o Dragão Long e desaparece nos ares com as nuvens que o cobrem e
carregam.
Eu fico em dúvida de
fornecer uma explicação a esta lenda popular, que é mais clara que todas as
parábolas mosaicas e do que a lenda judaico-cristã da maçã. Os alunos mais
novos, nas escolas extremo-orientais, comentam-na e despojam-na de seu caráter
de fábula com a maior facilidade. Imagino que não passe de um jogo para os
pesquisadores ocidentais atentos, que ficarão mais contentes de terem sido
convidado a este pequeno trabalho de apropriação analógica, que de haverem, por
esclarecimentos ociosos, duvidado injuriosamente de sua perspicácia.
Apontarei entretanto
alguns pontos dignos de meditação; o céu e a terra não formam senão uma só
coisa, na realidade. Aos nosso solhos eles estão unidos por um veículo
universal; e o sábio chinês tomou, como símbolo deste veículo, aquilo que
parece ser a matéria mais sutil, ou seja
a água evaporada. Infinitamente sutil, mas sempre material, esta é a
característica do veículo universal; e o sábio chinês reencontra-se aqui com o
dogma teosófico[18] (o que não é de se estranhar, pois ambas as doutrinas
são irmãs) e com a doutrina platônica, e também com as assertivas da escola
gnóstica de São Clemente de Alexandria sobre a materialidade da alma humana.
Frisemos também que a
Perfeição não existe senão pela união do Céu e da Terra, que é apenas nesta
união que o Dragão se manifesta, e que, uma vez manifestado, ele desaparece nos
ares. Este símbolo pode ser entendido de duas maneiras: uma é que o universo
está sempre numa extrema atividade; a outra é que a Perfeição não é visível aos
olhos humanos nem inteligível ao espírito humano; ela desaparece, se vista , e
se compreendida por nós ela não é mais a Perfeição. Assim o Dragão é um símbolo
que o homem representa, mas que não existe para ele. Mas que existe realmente
na união total realizada graças ao veículo universal.
Tomemos então o símbolo
do Dragão, mesma achando sua linguagem infantil; mas conservemo-la como uma
imagem excelente, e como uma abreviação, cômoda para nossas proposições
metafísicas.
Dissemos acima que ele
era um perfeito símbolo intelectual e fonético. A explicação da lenda aplica-se
ao intelectual; a questão fonética é mais curiosa ainda, e generaliza e
esclarece todos os dados precedentes. O que é no fundo, na metafísica dos povos
amarelos, este Dragão simbólico? O que é este veículo universal, que é como a Aura do símbolo? É exatamente o Verbo, não apenas no espírito dos sábios e dos
comentadores, mas na própria demonstração filológica.
Sabemos com efeito o que
é o LOGOS platônico e alexandrino. O radical LOG é pronunciado com acento
longo. É exatamente o nome do ideograma do Dragão. Este é LONG[19], com o O longo e o N breve e surdo, e ele se
pronuncia LOGUE (E mudo) nos vice-reinos da Ásia central. Assim a filologia traz seu testemunho
esclarecedor à metafísica. Jamais houve senão uma verdade; os símbolos desta
verdade diferem, mas a pronúncia do seu nome é por toda parte a mesma. E tanto
o Logos platônico como o Verbo do apóstolo João, que, sem aprofundar, os
cristãos exaltam ao final de todos os seus sacrifícios, não possuem representação
mais imediata, nem simbolismo mais exato por toda a Humanidade, do que este
universal e invisível dragão, que, do alto do Céu, cobre todas as filosofias
orientais com sua sombra misteriosa.
Khien: a ação do céu é a
atividade. O homem dotado imita-o sem cessar (Yi Ching: Comentário tradicional de Tsheng Tsé e Confúcio
sobre o primeiro hexagrama).
O homem dotado, ou homem
superior, que é mencionado ao longo de todo o Yi Ching, e para quem os
preceitos do Yi Ching foram formulados, constitui uma expressão típica das
raças amarelas. Seria fácil – e outros o fizeram – encher volumes de
comentários sobre esta expressão, para determinar seu valor exato. É assim que
encontramos, em outras línguas, os iniciados, os sábios, os grandes sacerdotes,
os juizes, os santos, os bem-aventurados, os mahatmas, e outros ainda. Mas fiquemos, no que se refere ao
homem dotado, com a definição simples e sábia da Tradição chinesa. O homem
dotado, diz ela, é um termo escolástico que corresponde a um estado de
aperfeiçoamento do estágio inferior ao estágio superior e perfeito da
sabedoria. Saibamos contentar-nos, ao menos do ponto de vista da expressão, com
esta definição elástica; lembremos que existem muitas estações no estado do
homem dotado; e só indaguemos daquilo que as circunstâncias podem nos dizer,
para cada caso particular, a qual etapa, intelectual ou psíquica, o homem
dotado chegou na rota da perfeição.
A razão de ser, diz
Tsheng Tsé, não possui forma visível, e assim empregamos uma imagem para
esclarecer seu sentido. É assim que, como diz a lenda, o Dragão, através do
veículo universal, sobre pelos seis traços de Khien, onde ele ocupa seis posições diferentes, e fornece
a cada um, em sua passagem, um sentido, exatamente como uma série acústica, no
momento em que a inscrevemos sobre um pentagrama musical, fornece um acorde
harmônico, do qual ela é, como expressão, a única proprietária, mas de que as
linhas da pauta são a tradução e o veículo.
Existem então tantas
pautas humanas quanto hexagramas, ou seja sessenta e quatro. Examinemos em
detalhe a “passagem do Dragão” através de Khien, hexagrama da perfeição em si. Não apenas será um exemplo analógico
bom para seguir nas explicações metafísicas dos outros hexagramas, mas,
sobretudo, é do primeiro hexagrama que os sábios e os filósofos chineses
tiraram, em todos os campos do saber humano, seus principais e melhores
ensinamentos[20].
O Dragão, “inteligência
cujas modificações são ilimitadas, símbolo das transformações da via racional (Tao) da atividade expressa por Khien” [21] coloca-se sobre o primeiro traço (traço inferior e
positivo, por ser, como todos do arcano, sem descontinuidade); e ele representa
o “ponto de partida do começo dos seres”. É o “Dragão oculto”.
A extrema atividade da
Perfeição não se produz, não se revela ainda por nenhum ato de vontade, sequer
por um pensamento que seja; ela é oculta, ou seja ininteligível ao homem. É o
período do não-agir. E pelo o termo
“período” é preciso entender a idéia do estado metafísico, como, pelo termo
“situação” é preciso entender “lugar geométrico”, sendo todas estas concepções
independentes das relatividade de tempo e espaço.
Pousado sobre o segundo
traço, o Dragão emerge: a atividade começa a se fazer sentir sobre a superfície
da terra: é o “Dragão no arrozal”. A
extrema atividade do céu ainda não se manifesta, mas o homem percebe que ela
existe, assim como um ser no arrozal está escondido pelo arroz e não o vemos,
mas sabemos que ele está lá pelas ondulações do arroz à sua passagem. Frisemos
aqui que o segundo traço é o traço mediano do trigrama inferior, e que ele é,
por assim dizer, o resumo de sua expressão geral; frisemos também que existe um
sentido a extrair desta comparação com o traço mediano do trigrama superior,
que é seu simpático (sistema de correspondências). Este sentido fornece a
tendência geral do hexagrama. Sendo aqui os dois traços correspondentes
positivos, resulta que o sentido de Khien
é reforçado, ou seja que a atividade do
céu é extrema, contínua, eterna, e que o Céu não é concebível sem a
idéia de sua atividade. É o que já havíamos
ressaltado no capítulo precedente; e, aqui como sempre, os significados da
pauta simbólica dos seis traços vem corroborar os princípios, já conhecidos, da
metafísica e da experiência.
Essa segunda situação é
resumida perfeitamente nesta comparação de Shiseng: “O éter positivo começa a
engendrar, assim como a luz do sol começa a clarear todas as coisas, antes que
ele apareça no horizonte”.
Colocado sobre o
terceiro traço, o Dragão se manifesta: ele está sobre a situação superior do
primeiro trigrama: é o momento da lenda quando, subindo ao alto das águas
tormentosas, ele vai lançar-se, e aparecer tal como ele é. Se as escamas do
Dragão saem da água, então o homem conhece a ciência e a lei. É o “Dragão
visível”. A incessante atividade, chegada ao
alto do trigrama, escala o abismo que separa do segundo trigrama. Existe aí
matéria de grande circunspecção. E aplicaremos imediatamente o conselho tal
como foi dado. Existe delicadeza e perigo em “ver o dorso do Dragão, ou seja,
em conhecer a Ciência e a Lei, se não estivermos suficientemente preparados
pelos estados anteriores[22]. Esta é a vontade de expansão de todos os seres,
perfeitíssima, por ser o coroamento da atividade, mas muito perigosa, pois ela
pode desembocar na multiplicidade, ou seja nas formas e na desunião.
Colocado sobre o quarto
traço, o Dragão tende a deixar o mundo, ou seja a desaparecer, pois, tendo se
manifestado, ele se tornaria, se ele permanecesse, inteligível ao homem, e não
seria mais a Perfeição em si; mas ele não voa ainda; “ele é como o peixe que
salta fora d’água, com vontade, mas ainda sem meios de desaparecer: é o “Dragão
que balança”, igualmente pronto a sumir no éter
dos espaços celestes ou nas profundezas dos abismos, onde se acha seu lugar de
repouso”[23].
A incessante atividade,
na iminência do salto, pode tomar as asas do Dragão e desaparecer nas alturas,
ou conservar as nadadeiras do peixe e sumir-se embaixo; existe portanto
liberdade para avançar ou para recuar. È o símbolo da liberdade e da
independência com as quais o universo se move e
entra na Via (Tao). A situação é
indeterminada; mas qualquer que seja sua solução, vemos que o verdadeiro
objetivo do movimento da atividade é o repouso absoluto, que está além das
forças humanas[24].
Pousado sobre o quinto
traço, o Dragão, inteiramente manifestado, atua em sua plenitude e rege o
mundo. Ele deixou a terra para desaparecer, mas quase chegando ao limite, ele
ainda não sumiu , e sua influência benéfica espalha-se por toda parte; é o Dragão
que voa, que, neste instante, procura por sua
visão única, a idade de ouro da Humanidade. É a expansão feliz do
Universo na Totalidade que não cessa de ser a Unidade. A extrema atividade produz esta totalidade: a presença do Dragão
produz esta unidade; e, para usarmos uma linguagem menos metafísica, a criação
toda existe, mas ela ainda não possui formas.
Lembremos aqui que o
quinto traço é o traço mediano do trigrama superior, e que ele é o
correspondente simpático do segundo traço: e frisemos que o segundo traço é uma
vontade de ação não formulada, enquanto
o quinto traço é esta ação não formal.
Pousado sobre o sexto
traço, o Dragão desaparece; “a altura
conveniente, diz Tsouhi, foi ultrapassada, a extrema unidade foi
atingida, existe um excesso de elevação”. Bem entendido, este comentário não
deve ser visto em relação ao universo visível. É o Dragão que plana que começa a desaparecer; e com ele começa a
desaparecer também esta estação de perfeição absoluta, que carrega com ela esta
mácula pela impossibilidade de sua permanência (devido tanto à perfeição
relativa quanto à extrema atividade do céu). “O que está completamente acabado,
diz Confúcio, não pode durar muito tempo”. E assim o homem é tão imperfeito que
a própria idéia de perfeição acarreta consigo o
temor pela sua perda. Aqui está a criação tangível, ou melhor a divisibilidade
da unidade pela multiplicação das formas, e o
estabelecimento da dualidade relativa da perfeição passiva, inteligível do
homem, pela desaparição do Dragão que simbolizava a Unidade através do veículo
universal.. É a estação atual que atravessamos, no ciclo ao qual pertence nossa
Humanidade. E o descontentamento desta humanidade engendra seu desejo único,
que os psicólogos podem chamar de necessidade de idealismo, e que é em suma o
desejo de reentrar no estado de unidade, de substituir a perfeição passiva pela
ativa que não compreendemos, mas cuja existência sabemos necessária, o desejo,
em uma palavra, de rever o Dragão[25].
Tal é a harmonia
metafísica inscrita sobre a parte formada pelo primeiro hexagrama do Yi Ching.
Seria preciso todo um volume para deduzir dela, mesmo sobre este plano, todos
os dados das ciências derivadas, como a Gênese, a Criação, a Cosmogonia, a
Teogonia, a Teologia, a Ontologia, a Síntese universal, a origem das Leis
humanas, etc. Não temos como nos estendermos nestes assuntos . Um trabalho com
este, que, uma vez estabelecida a base do conhecimento, é relativamente fácil,
deve ser deixado, como um interessante exercício e também como uma ginástica
meritória, à intelectualidade dos pesquisadores, cuja mentalidade se tornará,
com a ajuda dessas pesquisas, mais adequada à mentalidade requerida para
compreender todo o objeto, e mais apta a acompanhar, em seu método sintético,
os desenvolvimentos que virão.
Mas, como dissemos no
começo, somente o entendimento metafísico pode ser aplicado ao alcance do
hexagrama da perfeição. Existem muitas ciências fora da metafísica e de suas
irmãs menores: a política, a economia social, a moral, a adivinhação; e cada
uma, por um trabalho análogo, encontra, ao longo deste alcance, e seguindo a
“marcha dos seis Dragões”, soluções próprias a satisfazer todas as necessidades
intelectuais de nossa Humanidade.
Vejamos, por exemplo, em
algumas linhas, como o iniciado encontra aqui as regras para sua conduta de
mago, para sua ascese particular.
Dragão oculto: o homem
superior deve regrar sua conduta segundo a atividade do céu; não sendo ainda
bastante instruído, a vontade do céu não se mostra ao seu olhar insuficiente:
ele permanece encerrado em sua concha de mortal imperfeito. O homem superior
deve então meditar, conter-se, e tratar de desenvolver-se no estudo e na
contemplação. Se ele agisse enquanto o Dragão está oculto, ele não alcançaria
sua medida, e cairia num erro que seria prejudicial ao seu porvir.
Dragão no arrozal: o
homem dotado está consciente de sua virtude, mas ainda não pode deixar a terra[26]. Ele aperfeiçoa pouco a pouco os seres com seus
ensinamentos; mas ainda não lhe é permitido, nem comandar, nem manifestar-se.
Ele deve apenas seguir a sorte e os exemplos dos Sábios que o precederam.
Dragão visível: o homem
dotado, colocado em uma situação que é inferior aos seus méritos, corre perigo;
ele deve agir com circunspecção; pois ele atrai com sua virtude a simpatia do
universo, e, com esta simpatia, a inveja dos superiores. Mas retirando-se ou
permanecendo, ele deve ter o cuidado de seguir sempre a via normal (Tao).
Dragão que balança:
quando o homem superior age, jamais é sem relação com o momento. Ele assim
aumentou seus méritos e sua virtude para ser distinguido em um momento preciso
e determinado; ele é livre para avançar ou recuar; ele conservou toda a sua
liberdade; ele pode crescer por sua virtude brilhante, como pode rebaixar-se
por uma humildade meritória; nesta situação, ele deve inspirar-se nas circunstâncias.
Dragão que voa: o homem
dotado ocupa a situação superior que lhe convém; chegado aos altos cumes da
inteligência, ele é gentil ao olhar, abaixo de si, um homem igualmente dotado
de virtude, a quem ele auxilia pelo exemplo e associa ao seu poder. Quando se
está na plenitude destes meios, é preciso atuar.
Dragão que plana: a
beleza infinita é difícil de conservar. Também o homem superior deve saber
avançar e recuar em tempo para jamais expor-se à perda. Jamais se deve cometer
excessos nas ações, mesmo nas boas.
Da mesma forma, pela
marcha dos Dragões, determinam-se, em política, o caminho do Príncipe e o do
vassalo. Reservamos esta explicação para considerações ulteriores. E, para
terminarmos uma exposição que poderia estender-se indefinidamente, daremos, sem
comentários, os seis apoftegmas curtos, simples e plenos, com os quais
Confúcio, com sua clareza e concisão, determina sobre a marcha dos Dragões a
conduta normal do homem comum. Esta situação dará uma idéia perfeita do modo
como os sábios chineses entendem a lei moral:
1)
Não mudar
conforme o século; não se prender ao renome; fugir do mundo; não angustiar-se
por não ser apreciado ou conhecido dos homens;
2)
Boa fé nas
menores palavras; circunspecção nos atos; estar em guarda contra a mentira;
melhorar, sem vangloriar-se, seu século, por sua virtude transformadora;
3)
Ocupar uma
posição elevada sem orgulhar-se; ocupar uma posição inferior sem reclamar ;
4)
Aperfeiçoar suas
aptidões; aproveitar o momento oportuno;
5)
Agir e, com sua
ação, ajudar a salvar o universo;
6)
Evitar de se
tornar demasiado nobre para ter uma ocupação, e demasiado importante para ter
amigos.
V
AS FORMAS DO
UNIVERSO
Eu não ignoro que, em
sua extrema generalização, os “Símbolos do Verbo” podem ter parecido ainda mais
vagos do que abstratos. Mas além de que seu brilho não se manifesta se não o
provocarmos consultando o texto geral, em vista de uma adaptação específica e
precisa[27], pudemos esclarecer imediatamente o Khien e a marcha dos Dragões, pelo estudo da fórmula tetragramática
que o príncipe Wen Wang, genro de Fo Hi, instaurou no frontispício do Yi
Ching, sob o próprio ideograma Khien.
O tetragrama de Wen Wang
fornece, com grande concisão, a chave do fenomenismo universal, que se
convencionou chamar “criação do mundo”. Esta denominação, que enuncia um fato[28], prepara, às raças que a empregam, uma inconsciente
petição de princípios[29] e uma inumerável quantidade de problemas metafísicos
e lógicos. Haver inventado essa palavra, antes de provar que ela responde a uma
concepção intelectual ou a um evento material, é um sintoma característico do
estado do cérebro ariano deformado pelo soco semítico, sabe Jeová dado com que
força!
Preparemo-nos
imediatamente para não sacrificarmos nossa lógica a este apriorismo inédito e totalmente discutível. O tetragrama de Wen
Wang, cuja generalidade única não permite abstração, não nega (nem tampouco
afirma, aliás) o fato em si; parece que a realização ou a não realização
material da idéia importa pouquíssimo à Tradição; mas o tetragrama situa o
evento fora do tempo e do espaço; isto significa que ele lhe retira toda
objetividade, e o mantém neste domínio de onde nós, ocidentais, não tínhamos o
direito de retirá-lo: o domínio da idéia pura e da lógica metafísica.
Talvez todas a
cosmogonias, inclusive a sinaítica, poderiam ser resumidas em uma só doutrina,
se nós não arrastássemos, para o plano da criação universal, o antropomorfismo
com o qual entulhamos o plano divino, e se, sob o pretexto de render homenagem
a um criador que nós fizemos homem, não instalássemos o materialismo mais
concreto no coração de nossas modernas e singulares religiões.
É preciso tratar de
esquecer a mediocridade convencional que embalou a infância das nações
ocidentais. E, se seguirmos a partir de agora este conselho, é certo que
extrairemos, para aplicação, o melhor fruto da subida dos Dragões através dos
Grafismos de Deus.
Mas sobretudo estaremos
preparados para captar, em toda sua abstração metafísica, o tetragrama de Wen
Wang, a causa inicial, a modificação e a transformação final do Universo.
O tetragrama, arcano do
Universo, possui ainda um outro alcance. E talvez ele não seja menos
considerável, do ponto de vista da unificação dos sistemas filosóficos do
Oriente. É de fato do tetragrama de Wen Wang, ou seja do próprio cerne do Yi
Ching, que nasce todo o Taoísmo. Quando
estudarmos este sistema admirável de lógica e moral pura, voltaremos a esta
filiação. Por ora bastará afirmar, e inclusive frisar que, ao formular seus
tetragramas, Wen Wang foi o precursor de Lao Tsé. Toda a cosmogonia taoísta
esta aí contida, e tudo o que se seguirá é puro Taoísmo.
Já vimos por três vezes
este misterioso ideograma do Tao, que há tanto tempo permanece incompreensível.
Digamos desde já, e sem entrar em desdobramentos que caberão melhor em outra
parte, que devemos entender como Tao
(que se traduz comumente e com bastante exatidão por “Caminho”) a série, a soma
e o resultado de todas as modificações do Universo, ou , se se preferir, os
diversos estados de Khien manifestado,
independentemente de todas as relações objetivas.
UYAN, HENG, LI, TCHENG:
Causa inicial; liberdade; bem; perfeição.
Este é o tetragrama
ideogramático de Wen Wang. E o Yi Ching
acrescenta estas simples palavras, que são o “comentário tradicional” da
fórmula: “Quão grande é a causa inicial da atividade! Todas as coisas lhe devem
o começo de seu éter constitutivo; é todo o céu. As nuvens caminham: a chuva
estende seu efeito; os germes dos seres perpetuam-se na forma. A vida universal
age num movimento sem fim. O fim e o começo são iluminados por uma grande luz.
O caminho é a modificação e a transformação: cada coisa se conforma exatamente
à sua natureza e ao seu destino, e mantém, com sua concordância, a extrema
harmonia; eis o bem e a perfeição”.
A tradição explicativa destes
arcanos que acabamos de expor é obra de Tsheou Kong, filho de Wen Wang; ela foi
recolhida, codificada por assim dizer, por Tsheng Tsé e por Tsouhi. Como
dissemos: a qualidade objetivamente predominante de Khien é a atividade; e a
atividade irradia a energia e a vontade, graças às quais o Ser começa a mostrar
que ele é. Estão aí todo o Universo visível atualmente em nosso círculo
evolutivo e nesta estase humana a que chamamos de “criação”.
A fórmula determinativa,
assim precisada por Wen Wang em seus quatro ideogramas, manifesta e “acompanha”
o Universo, desde o germe-vontade, que foi sua Gênese, até seu desabrochar
completo.
A.
A causa
voluntária (começo) de todos os seres.
B.
A possibilidade
de criação (crescimento) de todos os seres.
C.
A faculdade de
satisfação (ação) das condições de todos os seres.
D.
O
desenvolvimento normal e perfeito (evolução) de todos os seres.
Estes quatro ideogramas,
que abrem e encerram em si mesmo os ciclos do Universo, são tão populares como
o crescente na Turquia ou a cruz entre os cristãos. Eles têm, sobre os demais
símbolos da Humanidade, a vantagem de conter em si, de um modo explícito, o
resumo de toda doutrina aplicável à Humanidade atual. Eles têm sua expressão sigilar
plana no símbolo gráfico do Yin-Yang (Tai Chi ou
Grande Extremo) cuja explicação daremos no capítulo que trata da condição
humana.
Os quatro estados
assinalados na fórmula do tetragrama de Wen Wang são chamados de qualidades
da substância (Khien), mas qualidades inerentes, e que integram a
entidade da substância[30]. Não há nenhum inconveniente nisto, pois, segundo o
excelente método chinês, esta qualidade integrante é tomada como a própria
substância e identifica-se com ela, ao menos momentaneamente, para facilitar a
compreensão: esta identificação é, de resto, absolutamente justa.
Não utilizaremos nenhum
terminologia nova no sistema cosmogônico que estudamos aqui. É inútil
tentar familiarizar o leitor com os
enunciados dos ideogramas; e, por imprecisas que sejam, adotaremos sua tradução
na linguagem comum: causa inicial: liberdade, bem, perfeição[31].
A Causa inicial
da Perfeição (Khien-yuan) é, diz Tsouhi, o
Grande Princípio de onde brota a virtude do céu; considera-se sobretudo a
onipotência deste princípio; nela estão incluídas potencialmente a Vontade e a
Força. Como o princípio é ativo, a possibilidade de nascimento de todos os
seres constitui a potência e a grandeza; e é esta grandeza que constitui o
começo. O começo do Ser é o ponto de partida de seu objeto, vale dizer o
princípio da causalidade, primeira manifestação da Perfeição, gênese de tudo e
em especial dos três termos seguintes do tetragrama. Ademais, é o princípio da
causalidade considerado em sua grandeza suficiente, ou seja a Causa
Universal. A partir daí, a Liberdade não é senão a livre expansão: o Bem e a Perfeição
não passam da justa conseqüência. É a um tempo a pureza da substância, a
universalidade da causa e a infinitude do efeito. Esta é a doutrina metafísica.
Do ponto de vista cosmogônico, é a posição
(constatação) da possibilidade do Universo.
Haveria aqui – como em
outras passagens, como se verá – volumes de deduções e considerações a
escrever. Mas não temos o tempo nem os meios, e sobretudo não temos vontade de
fazê-lo. É no espírito do leitor, repetimos, que se devem fazer estas deduções
e estas reflexões. Nós o convidamos aqui a não ser um leitor comum, mas um
estudioso atento. É preciso que ele seja, como diz a tradição o próprio mestre
de sua educação pessoal, e um colaborador para os seus guias. O trabalho que,
voluntariamente, deixamos aqui de cumprir, é uma garantia segura desta
colaboração indispensável, e da frutífera excelência de suas disposições.
Assim a causa
inicial é o primeiro atributo da Perfeição (Khien), e existe identidade entre a Perfeição e a causa
inicial. Da causa inicial saem potencialmente todos os universos, que nela
estão contidos em germe. Tentemos colocar estes princípios um contra o outro:
deduziremos disto a impossibilidade metafísica da existência do mal em si.
Veremos multiplicações, divisibilidades, divisões: daí as insuficiências, as
obscuridades objetivas, as ausências relativas. Em nenhuma parte veremos o mal como
princípio. E por toda parte, como prova de
nosso dado metafísico, reconheceremos que ele não existe. E assim, junto com
este vergonhoso dualismo, este erro funesto, este mal-entendido inicial,
desaparecem todos os sistemas inventados para aboli-lo, e todas as
representações celestes imaginadas para puni-lo.
Não existe paradoxo
nisso. Nós acreditamos ver o mal nas coisas que sofremos: é uma prova de nosso
egoísmo e uma marca de nossa insuficiência. O mal só existe na idéia que
fazemos dele, pela crença que temos nele: ele não existe senão em nós. E nós
vemos o mal relativo aonde somos incapazes de ver mais um elo na corrente do
Bem universal. Todo erro provém de nossa insuficiência e de nossa incapacidade.
Esta insuficiência nasce de nossa relatividade, ou seja de nossa forma, ou seja
de nossa divisão analítica, ou seja da multiplicidade dos seres. Veremos que
esta multiplicidade escoa continuamente, que ela está no tempo, que ela é
objetiva. Todas as concepções criadas em seu meio e em seu plano não são,
assim, puras Idéias, nem aspectos da Verdade.
Elas são fugidias,
instáveis, errôneas. E, dentre elas, a concepção do mal é a concepção-tipo do
estado de consciência deficiente em que nos encontramos. E, para especificar
metafisicamente um estado mental, que só é perigoso por ser muito difundido, é
preciso dizer que nosso conceito da existência do mal é criado unicamente por
este non-sense intelectual e este erro fundamental, que nós atribuímos
inconscientemente ao objetivo, às relatividades, o caráter e as funções do
subjetivo e do absoluto[32].
Aplicada à Humanidade
existente, a causa inicial, tal como nós
a desenvolvemos em sua expressão metafísica, não é outra coisa que a Idéia
de Vida, princípio em virtude do qual os seres
são engendrados. “A idéia de vida, diz Tsouhi, é precisamente a Humanidade (Jen) no sentido de “Solidariedade da espécie”. Este termo jen,
que implica, do mesmo modo que a perpetuidade, a comunidade da existência dos
seres, é a palavra mais repetida, mesmo nas conversas comuns.
Todos aqueles que
percorreram a China lembram com espanto como esta noção impessoal, delicada, e contrária
ao individualismo, ocupa espaço no espírito de
todos os chineses. Não se deve crer portanto que se trate de uma simples
observação ou de uma lembrança pessoal, sem amparo prático.
Com seu hábito de
aplicação estrita, os povos amarelos extraíram, dessa noção, sua conseqüência
imediata e mais alta, a da solidariedade humana, da qual jen tornou-se a
expressão direta, e cujos preceitos fraternais são aplicados diariamente por
toda parte, como o primeiro e mais natural dos deveres.
É assim que, de um dogma
metafísico, colocado no plano psicológico e posto em prática no plano social –
de uma maneira tão contínua que esta prática tornou-se um hábito e uma
necessidade – decorre a prosperidade relativa e a fecunda estabilidade do povo
e das instituições. Seria curioso provar a constatação desta verdade aplicada
até seus últimos corolários, e demonstrar assim uma solução original, mas
também tão simples e perfeita quanto possível, dessas questões sociais que
agitam o Ocidente atual.
Eis como, a este
respeito, fala a Tradição[33]: “Se, diante da Idéia de Vida, apresentamos os males
de outrem, a piedade surge imediatamente; se se trata da repulsa que o vício
inspira, o dever se ergue; se se trata da modéstia, é a civilidade e a
obediência aos Ritos; se se trata do pró e do contra, é a Razão”.
Essas alternâncias,
assim colocadas, dão a explicação das conseqüências lógicas e maravilhosas que
delas se deduzem naturalmente. Nós as estudaremos quando abordarmos a filosofia
confucionista; mas diremos por ora que a conduta geral do povo e dos cidadãos
deduz-se da seguinte maneira: estando reconhecidas as necessidades relativas da
existência e da coabitação dos seres, bem como da conexão dos interesses,
aplica-se o mesmo princípio, que se transmuta, segundo cada particularidade, em
qualidades especiais, tendo todas elas por base essencial a virtude do
tetragrama.
Assim o homem sábio determina sua ação apreciando as objetividades materiais e
sociais através do subjetivo científico e metafísico. É então do Jen (ou Khien-uyan
social) colocado em face dos estados da vida humana, que dependem o nascimento
e o exercício das qualidades que tornam o homem bom, ou seja feliz.
Enquanto que o primeiro
termo do tetragrama indica a “Origem ou dom do ser”, o segundo termo (heng) exprime a “Liberdade de Ação do céu”. Os seres, diz
o Grande Comentário, começam a entrar na corrente das formas. Não existe
distinção entre eles, mas eles vão apropriar-se, primeiro da existência uniformal, depois das formas exteriores que os distinguirão
aos nossos olhos. Existe portanto uma existência uniformal, e a seguir existências multiformes; quanto à existência informal, ela não é mencionada aqui, por estar precisamente
dentro da perfeição, e só poder ser mencionada na perfeição. É a Eternidade. A
existência em si não faz parte, nem pode logicamente fazer parte de nenhuma espécie
de criação; não se pode supor, sem cair no absurdo, uma “geração espontânea”
sobre o plano metafísico, e talvez também sobre qualquer outro plano que seja.
A “raiz” do Universo é eterna, e por conseguinte inelutável; tudo o que existe,
existe fora das formas. Aqui aparece como um axioma esta verdade, obscurecida e
mal-entendida tantas vezes: tudo o que é imortal é eterno.
Se não fosse empregar um
termo impróprio para exprimir a imagem falsa de uma idéia justa, poderíamos
dizer que esta “Liberdade” representa o instante da vontade criadora que
precede imediatamente o instante da criação efetiva; entre o primeiro e o
terceiro termo do tetragrama, o segundo é humanamente impalpável, mas
necessário à lógica dos conceitos.
Uma comparação grosseira
mostrará melhor o valor do símbolo: a água de um canal, retida de três lados
por paredes de pedra, e pelo quarto lado pelas portas de uma eclusa, é estável
e imóvel. Se a eclusa é subitamente aberta, a água muda de equilíbrio e cai
bruscamente no nível inferior. Ora, podemos supor que a porta da eclusa seja
erguida em um instante matemático; este instante não é aquele em que a água
começará a correr, mas o precederá de um mínimo: porque a água só cai porque o
obstáculo desapareceu, e o efeito não pode jamais coincidir exatamente com a
causa que o produziu. Existe assim um momento imperceptível e fugidio, em que a
água já não está em equilíbrio, mas ainda não caiu: ela vai cair. É este o momento que, no tetragrama da
Formação do Universo, constitui a Liberdade
(heng) entre a potencialidade da vontade
criadora e a aparição das formas.
Mas, sobre o plano
metafísico, este momento, que é ao mesmo tempo um lugar geométrico e um “estado
de consciência universal”, é ilimitado. Se nos parece curto e contido a ponto
de ser impalpável, é apenas porque a força que o preenche nos é ininteligível,
e que nossos sentidos impotentes confundem, a esta altura, as noções de ser e
do tempo, separadas das imperfeições da ação.
O terceiro termo (li) e o quarto (tsheng), bem, perfeição, parecem conexos de imediato. O terceiro termo
exprime a modificação que a forma traz aos seres; o quarto termo exprime a
vantagem que deve resultar desta modificação, se aqueles que a recebem
conformam-se cada qual com a sua via: “O caminho da autoridade, diz Tsouhi, é a
modificação e a transformação progressiva; a transformação é o cumprimento
perfeito (ou o fim) da modificação”.
Antes do terceiro termo,
a criação, o estado volitivo, estava identificado ao Ser (vontade criadora,
Perfeição ativa, Khien) e não saía dele;
depois do terceiro termo, ela continua sendo o Ser (Khien), mas escorre para a corrente das formas, e, por
conseguinte, nos diferentes seres que conhecemos. A vantagem que resulta da
aparição das formas, segundo a vontade do céu: aí está o quarto termo.
“A obra da criação, diz
Tsouhi, é a razão de ser da vida”. A vida não é, com efeito, um corolário
inevitável mas antes apenas uma variação, um acidente da criação[34]. O ato da criação não comporta, essencialmente ao
menos, o ato de dar a vida; pois devido à Perfeição ativa (o Ser em si) não há
espaço para uma existência análoga e paralela; dar vida é uma tradução grosseira de criar forma. Uma das formas, nas quais o Ser e os seres fluem,
pode ser a vida, tal como nós, terrestres, a entendemos. Mas ela não passa de
uma das inumeráveis formas da criação (modificações). Portanto a criação não
contempla apenas todos os seres vivos: ela compreende também todos os
não-vivos, ou seja todas as formas. E notemos de passagem que a consciência não
é absolutamente inerente à vida.
A forma é o meio direto
da modificação; a transformação é o objetivo definitivo, ou seja a reintegração
fora das formas (unidade). É seguindo esta via e atingindo sua culminação, que
a vontade do céu se cumpre, e que o quarto termo do tetragrama é realizado.
O sábio Shi Pingweng
expressou de forma precisa, bem rara no Extremo-Oriente, toda a obra
compreendida no tetragrama. “A modificação, diz ele, é o mecanismo que produz
todos os seres; a transformação é o mecanismo pelo qual são reabsorvidos todos
os seres”. Eis aí toda a gênese oriental. Não existe criação no sentido
mecânico e material normalmente ligado a esta expressão; mas existe a produção
dos Seres pela modificação do Ser, nada além disto; uma modificação constitui o
momento presente, do qual vemos uma parcela infinitesimal na vida
terrestre; a transformação indica o
retorno dos seres em modificação ao Ser imutável, e ela é o mecanismo que
preside a esta reabsorção. A via do céu compreende assim a um tempo a emissão
das formas e o retorno para fora das formas.
Do ponto de vista
humano, a morte é assim um dos momentos da criação, sem que possamos afirmar se
ela é o vestíbulo da transformação, ou apenas uma modificação que, na seqüência
normal da atividade, segue-se imediatamente à modificação da vida.
Do ponto de vista da
“marcha” segundo a vontade do céu, o texto de Shi Pingweng estabelece o
princípio da involução e da evolução, talvez não no sentido da descida e da
subida, nem mesmo explicitamente no sentido da desintegração e da reintegração,
mas no sentido de “viagem para fora e retorno para dentro” para a corrente de
formas, cuja fonte e desembocadura se confundem – lembrando que isto não é uma
circunferência, se quiséssemos usar uma imagem matemática.
Ora, a modificação e
transformação comportam, desde a emissão da vontade do céu (causa
inicial), todos os fenômenos, materiais ou
imateriais, da criação: a primeira modificação é o começo dos fenômenos; o
cumprimento da transformação, pelo terminação da última modificação, é o objetivo,
o fim da criação. Tudo isso está compreendido no terceiro termo do tetragrama;
e a seqüência normal, conforme à causa inicial e seguindo a Liberdade, das
modificações e transformações (terceiro termo) produz a perfeição (quarto termo) prevista na obra do céu.
O quarto termo é assim a
emanação imediata, e como que iminente, do terceiro termo não impedido, ou seja
que, no plano humano, o homem não tem mais que desenvolver-se seguindo seu
caminho, para que seja feliz. É por isso que se diz que os dois últimos termos
da fórmula estão intimamente ligados um ao outro, e devem ser estudados juntos.
A conseqüência das
palavras de Shi Pingweng é visível e desejada; aliás ela está explícita nos
textos de outros comentadores; após o cumprimento perfeito da transformação, e
tendo sido efetuada a reabsorção das modificações, ocorre o retorno ao
princípio da fórmula, ou seja antes da causa inicial. Ora, tendo todos os seres
retornado à Perfeição ativa (Khien) e
sendo esta essencialmente a Atividade do céu, a Via que permitiu atravessar os termos da fórmula
continua a existir e existirá eternamente. Acontece então a partida para um
novo ciclo, que se modifica e se transforma como vimos para um ciclo qualquer
tomado ao acaso; mas em nenhuma parte é dito que os seres devem fluir para a
mesma parte da corrente de formas. Traduzido ao plano humano, esta verdade fica
assim: que as formas subsistem, modificadas e transformadas pelo mesmo
mecanismo, mas que os seres formais não podem se prevalecer de suas formas
passadas ou presentes para pressentir suas formas futuras: ou que a criação não
muda, mas que as partes formais, que a revelam para nós, são objeto de
mudanças, ou , se preferirmos, de progressões; e que a essência subsiste uma, sob aparências diversas, na eterna
sucessão dos ciclos, como ela era uma, antes que a causa inicial abrisse às formas do Universo as portas da Via.
Coloquemos
matematicamente a fórmula, e digamos que concebemos a transformação como o
último ciclo, que os quatro termos do tetragrama franquearam, sem que em nenhum momento saíssem do seio da Perfeição. E assim tocamos na verdade total sobre os destinos
finais do Universo e da Humanidade, suprema e triunfante aplicação da Tradição
Primordial.
VI
AS LEIS DA
EVOLUÇÃO
Algumas das considerações
precedentes já permitiram prever em que direção deve ser resolvido este
problema dos destinos do Universo e, nestes, o destino de nossa Humanidade
presente – destino total daquilo que, na modificação atual, recebe o nome de
Humanidade – problema que não é dos mais consideráveis, mas que, do nosso ponto
de vista, é o mais interessante.
A atividade metafísica
da Perfeição (Khien) estende-se a tudo;
nossos destinos saem daí como uma conseqüência direta. Tão estreitamente quanto
as formas do Universo ou outros conceitos e entidades, nossa sorte está
regulamentada pela Via universal, e pela
subida simbólica dos Dragões, à aplicação da qual nada escapa.
Mas consideremos a
seguir de que modo geral devemos entender os destinos do Universo, e como a
necessidade de nossa existência terrestre, daquilo que a precedeu e daquilo que
a seguirá imediatamente, não passa de uma necessidade específica, e uma tamanha
particularização da questão, que nem a idéia, nem o próprio termo dessa
existência merece figurar e não figurará na exposição geral.
Não existe aí mais do
que uma aplicação de detalhe que estudaremos à parte, porque atualmente
dependemos da estase humana; mas isto não passa de um pequeno lado do problema,
que não merece desenvolvimentos especiais, e que só está aqui para satisfação
que acreditamos dar à curiosidade natural do ser hominal sobre o fim imediato
de sua modificação atual, e sobre sua passagem à modificação seguinte, fora e
acima deste estado hominal.
Vamos repetir aqui com
mais ênfase aquilo que esboçamos mais acima: o ato da criação não comporta
expressa e inelutavelmente o ato de dar a vida, seja ela terrestre ou análoga à
vida que vemos sobre esta terra. Dar a vida é uma das traduções de “fluir na
corrente das formas”: uma das formas nas quais os seres escoam, pode bem ser a
vida tal como nós, terrestres, entendemos, mas esta não passa de uma das
inumeráveis faces de nossas modificações; a vida não é assim de um corolário
indispensável, mas apenas um acidente da
criação.
É preciso tomar o
cuidado, naquilo que se segue, de negligenciar as impressões e os sentimentos
provindos do nosso atual estado de consciência, e reportar os raciocínios à
sucessão das formas na existência geral, e não à existência particular sob uma
única forma. Somente assim será possível compreender inteiramente o valor do
sistema dos sábios chineses, e captaremos sua solução em toda sua amplitude
sintética.
********
Nós vimos: a Perfeição é
ativa; sua atividade é sem fim, livre (vale dizer como conseqüência de seu
princípio de causalidade) e boa (vale dizer regular e harmônica). Assim, todos
os destinos (passados, presentes e futuros, pois aqui a palavra “destino” não
implica a noção de devir) do Universo são compostos de atividade, perpetuidade,
causa e harmonia.
A Humanidade é uma das
formas da corrente por onde fluem os seres (atividade) ao se diferenciarem do
Ser, formalmente e não essencialmente. Ela é assim um dos aspectos da Perfeição
passiva, e uma das modificações pelas quais o Universo tende à Perfeição, vale
dizer ao mecanismo de reintegração. Assim a Perfeição é a geratriz da
Humanidade (causalidade) como a matéria una – e por conseguinte eterna e sem
forma – é a geratriz da matéria divisível, diversa e temporária. Trata-se aí de
modos objetivos da subjetividade.
A Humanidade,
considerada mesmo antes de seu nascimento e também depois de sua morte
terrestre é, com grande exatidão metafísica, uma das Formas do Universo – e a
Humanidade terrestre é uma das modificações desta forma. Do mesmo modo e tão
escrupulosamente quanto todas as outras formas, e sem a menor possibilidade de
um tratamento especial, esta forma sai da Perfeição graças ao Princípio da
causalidade eficiente, atravessa todas as modificações, e atinge a
transformação, pela qual ela se reintegra na Perfeição. Nenhuma forma escapa a
esta lei geral, e aí reside a Harmonia:
trata-se da harmonia da Via, do Tao, da
qual encontramos aqui a primeira e perfeita definição, e que estudaremos mais a
fundo no sistema filosófica de Lao Tsé[35].
Esclareçamos, em
linguagem comum, este dado inelutável: a Humanidade vem do Infinito; a
Humanidade retorna ao Infinito. Devemos mesmo dizer que ela não o deixa jamais,
e que todas as modificações se produzem ao longo do Infinito; não apenas a lei
de Harmonia, mas o próprio bom senso, exigem que seja assim. Pois se uma
parcela da Humanidade não seguisse as demais desta maneira em toda as suas
modificações, e na transformação final e comum a todo o Universo, esta parcela
não poderia senão sair fora do Infinito, existir fora dele e estar situada a
seu lado. Ora, se eventualmente é possível sair do infinito matemático, não se
pode, essencialmente, sair do Infinito metafísico, sob pena de destruir a noção
e a própria idéia deste Infinito. Esta demonstração por absurdo pode não
satisfazer inteiramente a clarividência; mas nem por isso ela deixa de ser
invencível.
Somos todos como pontos
na superfície de um cilindro, que podem parecer pertencer a uma reta ou a um
plano que tangenciam a sua superfície, mas que não deixam de fazer parte
integrante, não apenas da superfície, mas do volume no cilindro enquanto
funções deste volume.
Todos nós, formas
visíveis e invisíveis do Universo, todos emanamos do Infinito: não podemos sair
dele, estamos para sempre ligados a ele pela essência; e permaneceremos, depois
das formas, neste Infinito, do qual jamais deixamos de ser moléculas
impalpáveis, infinitesimais, mas imperativamente necessárias.
Esta doutrina nos retém
como um axioma, e nenhuma revelação poderá pretender impor uma crença
contrária; e nenhuma argúcia, empurrada pelo valor das conseqüências, poderá
prevalecer contra esta verdade, tão evidente que sua própria demonstração é por
assim dizer impalpável.
********
Não pretendo entrar em
discussão aqui; e no entanto é preciso esclarecer um ponto, não tanto para
tentar o esforço inútil de convencer adversários resolvidos a não ceder jamais,
mas para aliviar a hesitação de certas consciências. A doutrina que expusemos
não é uma doutrina panteísta. É a objeção que a ciência, a consciência e as
religiões ocidentais fazem, com eloquência fácil, às tradições sagradas da
Índia; os adeptos desta tradição sem dúvida não terão dificuldade em se
defender desses ataques passionais e desarrazoados. Mas no que nos concerne,
não nos deixaremos deter por esta acusação de um idealismo grosseiro, e vamos
rechaçá-lo desde já.
Não somos panteístas,
nem temos o direito de nos proclamar Deuses, assim com o braço perdido da Vênus
de Milo não tem o direito de proclamar-se a Vênus de Milo. O Universo não
possui mais do que sua Essência; a matéria não possui mais que seu substrato; e
existem também a natureza e a qualidade; com o substrato, elas são aspectos da
tríade metafísica, que é tão verdadeira quanto a existência da Trindade
terrestre, ou quanto as hipóstases da Trindade celeste. Voltaremos a isto em
detalhe quando se tratar de psicologia. Saibamos, por ora, que a Tríade
metafísica não é a Trindade celeste, menos ainda a Unidade divina, e que não é
proclamar-se Deus quando se afirma que retornaremos ao seio de Deus, sem o que todos
os cristãos seriam os mais grosseiros panteístas. Na Tríade metafísica, somente
a Essência prevalece sobre a Perfeição; mas a natureza e a qualidade dependem
da corrente das modificações; como estas, elas são temporárias e proteicas, e
não podem pertencer ao Infinito; e os seres, para os quais elas representam
condições e funções contingentes, mas objetivamente indispensáveis, não
poderiam ser confundidos com o Infinito.
Assim falamos por um
instante em linguagem ocidental; pois convém aqui perfeitamente ao dogma
oriental, e se torna por assim dizer a linguagem universal: o que nos distingue
de Deus não é a essência, pois somos de essência divina (e o próprio
cristianismo confessa e preconiza esta extração), mas sim a natureza e a
qualidade, segundo e terceiro termos da tríade metafísica. Esta natureza e esta
qualidade são precisamente o apanágio dos seres que fluem na corrente das
formas; são estes termos que, na sucessão das modificações, especificam a
forma. Podemos dizer que, aos nossos olhos, eles são a própria forma. Mas o que
é, afinal, a forma? Geometricamente falando (e filosoficamente), ela é o
contorno: é a aparência do Limite.
É o limite, como a
forma, o que nos determina, nos especializa, nos divide. Esta divisibilidade ao Infinito, que o escoamento
nas formas, eis o que nos separa de Deus. Entre Deus e nós, existe o
Limite, vale dizer a própria determinação de
toda a criação. E entre Deus e nós não existe outra coisa senão o Limite, pois, se este for suprimido, toda a criação
desaparece e só permanece a Unidade Universal.
Busquemos aprofundar
este teorema; pois ele contém a explicação completa do Universo, se nos
lembrarmos que o Limite ou as Formas, ou
a Corrente das Formas não comporta
apenas, como pensam as crianças, os lineamentos e os contornos, mas também as
funções de peso, volume, densidade, e todas as noções e percepções que
constituem as diferenciações superficiais e aparentes das moléculas da matéria.
Empregamos
voluntariamente aqui uma terminologia inferior; mas o fizemos a fim de tornar
mais evidente aquela que é a mais essencial das verdades inteligíveis ao homem.
Esta demonstração nos
determinará imediatamente no espírito daqueles que querem por toda parte as
classificações, os gêneros e as espécies, e que pensam que as matérias científicas
devem ser absolutamente arrumadas por capítulos e ao longo de fórmulas. Nós não
somos panteístas; menos ainda “naturistas”. Mas, eqüidistantes dos místicos
puros, que só vêem evidência no mistério, e dos materialistas, que só vêem
evidência quando sob o controle dos cinco sentidos humanos, somos idealistas
positivos.
Sabemos que nossa razão
e nosso entendimento são reconhecidamente imperfeitos; e malgrado isto,
reconhecemos, no controle que eles exercem sobre as percepções e sensações que
nos dão nossa forma humana, que não devemos aceitar, como o fazem os
materialistas, aquilo que o exame dos nossos sentidos declara serem verdades ou
evidências; somos mesmo levados a declarar que estas verdades e estas
evidências contingentes não podem ser realmente nem verdades nem evidências,
pela razão precisa que é assim que eles aparecem aos instrumentos limitados e
aos registradores insuficientes.
Mas, mais ainda que às
experiências dos nossos sentidos, não podemos confiar a priori e inteiramente nas afirmações de nossa razão, pois o
primeiro efeito de nosso raciocínio é o de demonstrar que nossa razão é
limitada e seu desenvolvimento é incompleto. E ela é limitada expressamente
porque ela age sobre um ser que está em modificação, na corrente das formas, ou
seja dentro de limites. Não devemos nos insurgir contra aquilo que os
materialistas chamam de ininteligível, e que eles rejeitam como tal. Não
existem coisas ininteligíveis, mas
apenas coisas atualmente incompreensíveis.
E, a partir do momento em que nos sabemos imperfeitos, e que estamos num
escalão indeterminado, mas não superior, da evolução, sabemos que não podemos
ser universalmente compreensivos. Nosso entendimento está no nível cíclico das
outras partes do composto humano; e, por conseguinte, longe de rejeitar o
incompreensível, devemos declarar que, no estado presente de nossa estase, um
incompreensível aparente é filosoficamente necessário, e que a presença deste
incompreensível relativo é um critério – e o melhor – para reconhecermos que
caminhamos conforme a verdade. Eis como não somos materialistas, e com, ao
contrário, somos essencialmente idealistas.
Mas não temos a fé dos
carvoeiros nessas noções abstrusas. E sobre essas abstrações, misteriosas por
ora, nós nos recusamos a construir seja um sistema psicológico, seja uma regra
moral, seja uma religião sentimental. Este desconhecido não nos enche de
esperança nem nos desencoraja, mas apenas nos traz curiosidade e ardor.
Sentimos, ou melhor sabemos, que não há nada de temível neste desconhecido porque
este mistério não jaze nele, mas apenas em nossa contingência, e que, por
conseguinte, trata-se de um mistério relativo, destinado a ser deslindado por
nós, no dia em que o órgão – que hoje é nosso olho físico – for sublimado até
alcançar a altura de sua visão. Todo nosso espírito deve tender a “diminuir as
distâncias”, ou seja a ver desaparecer o limite. Nós não dobramos o joelho
diante do mistério: nós elevamos nosso conhecimento até ele. Neste dia nós
teremos nos tornado ele; e desde já não podemos senão rir dos terrores e das
ameaças que são proferidas em seu nome. E malgrado tudo isso, pretendemos que
esta audácia é o melhor meio de chegar ao conhecimento, e que, mesmo na
doutrina cristã – que nos querem vender como a doutrina da genuflexão – o
céu pertence aos violentos. Tentar penetrar o
mistério é a única maneira que nossa inteligência tem de honrá-lo. Ele não
respeita seu pai, que lhe deu as costas por medo de seu rosto e seu olhar. Nada
construir sobre o mistério, mas abraçá-lo para compreende-lo, sabendo que
nossos esforços, incapazes de sucesso em nosso estado atual, contarão através
das sucessivas modificações até a transformação final – esta é a nossa regra.
Nisto não somos
místicos, mas resolutamente positivos. E este método não se opõe em nada à
nossa doutrina idealista. Bem ao contrário, ele a faz caber melhor em nosso
espírito. E pensamos que, como isso acontece todos os dias nos progressos
indefinidos da ciência (desde as rãs de Volta até as ondas elétricas solares),
o progresso indefinido da Humanidade – que mudará de nome, de natureza e de
qualidade, e conservará apenas sua Essência, através de todas as modificações –
a colocarão no nível de todos os desconhecidos, cuja modificação final é o
devir dos axiomas.
Assim passa o Universo,
até a transformação definitiva, por todas as modificações atravessadas pela
corrente das formas. Determinemos as leis desta corrente. Elas são conformes
aos princípios da atividade, da harmonia e também por aqueles pelos quais se
manifesta a Perfeição na fórmula tetragramática de Wen Wang. E devemos aplicar
estes princípios às leis da corrente das formas, para especificar nela os dados
e os elementos com uma exatidão que provém mais da matemática do que da
filosofia.
Os seres caminham, eles
evoluem; este é o corolário do princípio inicial, da causalidade, que é a
manifestação única da Perfeição, ou seja a vontade do céu. Podemos conceber que eles parem? Não, pois seria
preciso, para causar esta parada, supor uma vontade do céu contrária àquela que
os mantém em movimento, pois é impossível que o céu manifeste duas vontades
opostas uma à outra. E é assim que, a partir do instante em que o movimento
acontece – e esta é uma coisa que, mesmo objetivamente, não se pode negar – o
movimento prosseguirá para sempre, e poderá ser definido como a Manifestação
Eterna da Perfeição. Assim o princípio da
causalidade está satisfeito. Mas a fim de que não haja erro possível, diremos
que não se deve confundir o Movimento Eterno com uma “criação eterna” ou com
uma “passagem eterna na corrente das formas”. Definiremos adiante o que é o
Movimento Eterno e o Eterno Agir, mas seria pueril pretender dar uma direção à Totalidade
do movimento, ou um móvel à Totalidade das ações. E assim podemos compreender desde já,
antes mesmo da definição, o objetivo final ao qual leva o princípio da
causalidade.
Como a lei da atividade
faz evoluir os seres? A continuidade da evolução apenas satisfaz à causalidade;
a atividade pede uma ação; uma ação, qualquer que seja, satisfaz a atividade;
mas a repetição de uma ação, qualquer que seja, constitui realmente uma ação?
Somos forçados a responder negativamente; pois, do ponto de vista da própria
ação, sua repetição constitui a monotonia;
e, do ponto de vista dos motores da ação, vemos que uma mesma ação é engendrada
pelos mesmos motores, agindo sob o mesmo impulso, com a mesma força; a
continuidade de uma ação não é portanto a atividade; ela é, ao contrário,
depois que o movimento começa, a imobilidade do princípio motor. Consequentemente, o princípio da atividade fica
satisfeito, não por uma ação ou pela mesma ação repetida duas ou mais vezes
indefinidamente, mas antes por uma série indefinida de ações, devidas a
diferentes motores, e que, assim, não podem ser absolutamente idênticos.
Portanto, em nome do princípio da atividade, não se passa duas vezes
pela mesma corrente das formas. E não podemos
crer na metempsicose brutal e grosseira que foi extraída das doutrinas budista
e pitagórica e que, na realidade, não se encontra nelas[36].
Mas, ao contrário,
depois de termos esgotado uma forma, e todas as circunstâncias de uma
modificação, passamos inevitavelmente a uma outra modificação, com a certeza
lógica de que jamais voltaremos àquela que acabamos de deixar.
Como pode o movimento contínuo e variado
concordar com a lei de harmonia, que é o terceiro termo da fórmula de Wen Wang?
Notemos de passagem que a lei de harmonia não pode ser satisfeita senão por
ações variadas, pois não existe harmonia na repetição: as relações harmônicas
não podem se estabelecer, como as relações algébricas ou geométricas, se não
for entre quantidades diferentes. A harmonia é satisfeita pelas proporções (no
sentido matemático) das variações; ou seja que uma forma qualquer é
invariavelmente distante daquela que a precede e daquela que a sucede, e todas
as modificações são invariavelmente distantes umas das outras. Assim, a série
de modificações pode traduzir-se matematicamente por uma progressão (aritmética
ou geométrica) que tende para um “lugar metafísico” que não se pode pensar
atingir objetivamente. Assim transparece verdadeiramente a lei de harmonia.
Ela tem uma outra
conseqüência, que toca imediatamente aos seres em modificação: é a
invariabilidade do sentido e da seqüência das modificações pelas quais todos os
seres passam. Pois, assim como a atividade impede que se passe duas vezes pela
mesma forma, a harmonia impede de não passar por todas as formas, de modo que
existem muitas correntes de formas. Dentro desta necessidade lógica,
encontramos, entre nós humanos, uma garantia de fraternidade de nossos
espíritos e do paralelismo de nossos esforços. A união é por isso mesmo
indefectível, quer nos lembremos, quer esqueçamos, entre nós que, no decurso de
uma modificação, unimos nossas tendências; nós nos encontraremos de forma
análoga lado a lado nas modificações que virão.
Enfim, a quarta lei
exige que o movimento contínuo, variado e harmônico,
seja benéfico e conduza o Universo à Perfeição. A lógica inflexível dos sábios
chineses nos leva aqui à melhor clarividência dos nossos destinos. Pretendida
pela Perfeição, determinada pelas conseqüências precisas desta vontade, a
Evolução não pode ser senão boa, e só pode produzir um resultado excelente para
os seres que são a sua matéria. Não existe, lembremo-nos, reintegração fora da
Perfeição. Não existe assim outra coisa que a feliz reintegração final. Esta é
a necessidade da quarta lei. Mas, se casamos seus efeitos com os efeitos da
terceira lei, conceberemos imediatamente que não existe diferença essencial na
sorte dos seres em modificação, que não há lugar para quedas, quaisquer que
possam ser, que contrariariam a lei do bem, se fossem gerais, e contrariariam a
lei de harmonia, se fossem parciais e temporárias. A passagem dos seres através
das modificações do Universo é portanto uma ascensão regular, contínua,
harmônica e bem-aventurada, da qual a Perfeição, de que somos parcelas
infinitesimais e emanações contínuas, não pode nos impedir de participar.
Eis, expostas de forma
sumária – pois os chineses escreveram volumes a respeito, e os ocidentais deveriam
fazer o mesmo – as geratrizes da Evolução Universal. Elas são tão
características, tão inelutáveis, tão precisas que, de um lado, é impossível a
um intelecto humano leal subtrair-se a elas, e, de outro, seguindo o melhor dos
métodos, torna-se tão fácil reduzir os Destinos do Universo a um desenho
geométrico, como foi fácil reduzir a seis linhas, sem diminui-lo, aquilo a que
o Ocidente chama de “incomunicável Eterno”[37].
O princípio de
causalidade manifesta-se pelo movimento; todo movimento, em mecânica, traduz-se
essencialmente por uma linha; como o princípio da atividade manifesta-se por
uma diversidade indefinida, esta linha não pode ser uma circunferência, nem uma
linha truncada; ela só pode ser uma linha com elementos hiperbólicos ou
parabólicos, como os cometas descrevem no espaço e cujos lados separam-se no
infinito; esta hipótese supõe é claro que não consideremos senão um plano do
espaço: mas o princípio de harmonia – que satisfaz aqui a idéia cíclica e simboliza em todos os pontos a idéia de retorno e o princípio da reintegração – exige que as
modificações sucedam-se a intervalos iguais e sejam igualmente distantes umas
das outras: assim, toda possibilidade de uma linha plana deve ser descartada,
pois existem relações de distância entre
as suas partes; a linha do movimento universal inscreve-se portanto sobre uma
superfície de revolução; as relações de distância entre os elementos desta
linha estão em progressão aritmética para satisfazer a lei de harmonia. Enfim,
a lei do bem exige que as modificações procedam a uma ascensão contínua, e
assim os elementos da figura se superpõem inevitável e invariavelmente um ao
outro.
As necessidades da
representação podem ser resumidas assim: uma linha (princípio de causalidade);
indefinida e que não passa jamais pelos mesmos pontos (princípio da atividade);
que determina curvas e interseções de superfícies de revolução, girando umas
sobre as outras (princípio do bem); e onde os pontos de um elemento estão
igualmente distantes dos pontos correspondentes do elemento superior e do
elemento inferior (princípio da harmonia).
Não existe outra
superfície que satisfaça a estes dados necessários do que uma superfície
helicoidal cilíndrica; vale dizer que a linha do movimento universal será
precisamente a interseção da hélice (superfície de revolução) com a superfície
lateral do cilindro representativo da Evolução cíclica, ao longo da qual
movem-se todos os seres. Deve ficar bem entendido que o cilindro da Evolução só
é representativo do ponto de vista da necessidade que existe, para o nosso
olho, de interceptar a superfície de revolução indefinida para obter a hélice:
mas a superfície ao longo da qual a hélice se desenvolve não é um lugar nem
físico nem geométrico: ela pode ser transportada ao infinito, ou pode ser reduzida
à simples altura do cilindro; assim, o raio da base do cilindro é indiferente
e, na realidade, ele é igual ao zero metafísico dos números.
O único elemento da
hélice que ainda falta determinar é o seu passo, ou seja a distância, ao longo
da altura do cilindro, entre dois pontos correspondentes da curva (a curva
compreendida entre estes dois pontos constitui uma das revoluções da hélice, e
todas as revoluções são iguais entre si); este passo da hélice é constante
(princípio da harmonia) e é o único dado que podemos determinar
matematicamente, porque estamos no curso de uma revolução e perdemos a memória
da passagem ao longo das revoluções precedentes.
Vamos construir uma
representação simples, e que deverá ser satisfatória. Por um ponto qualquer da
hélice passaremos, sobre a superfície lateral do cilindro, uma paralela à
altura do cilindro. Determinaremos assim um momento da Evolução e uma
modificação completa.
O Universo (todos os
seres) está, pelo princípio da causalidade, posto em movimento e lançado ao longo
da hélice inscrita no flanco do cilindro (cilindro hipotético, repetimos, e que
representa a vontade do céu, detida por um instante, vontade esta que inclui
todos os movimentos saídos dela), Vamos tomá-la no ponto dado acima, e
suponhamos este ponto como o começo de uma modificação. No momento em que o
Universo entra nesta modificação, se ele fosse abandonado a si mesmo, ele
seguiria uma trajetória representada pela tangente à hélice no ponto dado. Mas
ele é aspirado pela vontade do céu (princípio de atividade) e empurrado para o
céu (princípio do bem): assim, ele descreve a hélice indicada, e o passo da
hélice é precisamente a medida matemática da “força atrativa da
Divindade”. Não existe meio direto de avaliar
esta medida; só poderíamos conhecê-la por analogia (princípio da harmonia), se
o Universo, em sua presente modificação, se lembrasse de sua modificação
passada, e se ele pudesse assim julgar a quantidade metafísica adquirida, e,
por conseguinte, medir a força ascensional. Não se diz que isto seja coisa
impossível, pois ela é facilmente compreensível; mas ela não cabe nas
faculdades da presente Humanidade[38].
Durante todo o curso do Universo ao longo da revolução da
hélice que representa sua modificação atual, os elementos que o regem são
análogos (harmonia) mas não idênticos àqueles que o regeram nas modificações
anteriores, como àqueles que o regerão em suas modificações ulteriores. O
estudo da modificação presente do Universo pode assim, se bem empreendido,
buscar, por analogia, dados preciosos sobre os destinos (passados e futuros) de
todos os seres. É um trabalho útil para aqueles que quiserem se dedicar a ele.
Chegado ao fim da
revolução considerada na hélice, o Universo tende ao fim de sua modificação, e
passa para a modificação seguinte, que lhe é superior, conforme o princípio do
bem. Mas a hélice é regular, em todos os seus segmentos e todos os seus pontos;
entre o fim de uma modificação e o começo da que a segue, não existe nem desvio
nem mudança brusca: a passagem de uma modificação a outra faz-se de forma tão
lógica e tão simples como a passagem de uma situação a outra no interior de uma
mesma modificação: o universo move-se sempre normalmente e num movimento igual
(lei de harmonia). A passagem é insensível;
não há nada de surpreendente nem de doloroso.
O Universo, portanto,
passa para a modificação seguinte, onde ocupará sucessivamente posições
análogas (harmonia) em uma superfície de revolução superior (bem). E este
movimento dura assim ao longo de toda a Evolução; será ele eterno, ou seja as
modificações suceder-se-ão sempre umas às outras? A hélice girará sem fim suas
revoluções ao redor do cilindro sem bases? Isto está apoiado no princípio que
diz que a vontade do céu, uma vez manifestado o movimento, não pode mais
detê-lo. Mas é falso conceber o movimento da vontade celeste como sendo
inerente à passagem de um lugar a outro, ou seja, a um deslocamento, seja lá em
que mundo se queira considerar este deslocamento. Veremos no livro de Lao Tsé,
explicativo do Yi Ching, que o “movimento celeste” concorda perfeitamente,
sobre o plano metafísico, com aquilo que chamamos, no plano das modificações,
de repouso. E isto não é então uma
objeção séria.
Quando se esgotará a
série de modificações? O Universo que as percorre o saberá, quando souber, não apenas
a medida do passo da hélice, vale dizer a força atrativa da Divindade, mas
também a distância que, do alto do cilindro, o separa da Perfeição.
Mas que importa que não
possamos fazer atualmente esta determinação, se sabemos como a iremos fazer
mais tarde, pela apreciação desses elementos e pela aquisição das faculdades
que faltam à estase humana? Mais uma vez: que a lógica da matemática nos
console de nossa pouca inteligência.
O cilindro figurativo ao
redor do qual gira a hélice evolutiva, segundo o mesmo princípio de atividade,
leva ao infinito. Ora, como as paralelas se encontram no infinito, a superfície
lateral e a altura do cilindro encontram-se num único ponto, e o limite do
cilindro é um cone. É esta figura que a matemática nos apresenta quando consideramos
o fim das modificações, ou seja o momento da Transformação, a Idéia de
Reintegração. E a matemática é aqui de uma precisão absoluta e gritante. É
exatamente para um lugar no alto do cilindro (que agora se tornou a ponta do
cone), que convergem num único ponto todos os elementos da superfície lateral
do volume, e por conseguinte a hélice que se desenvolve aí: a extremidade
hipotética no alto do cilindro é, como vimos, o centro de atração da vontade do
céu; é exatamente assim que, no
infinito, o Universo evoluído confunde-se com a Perfeição. O Universo não pode, mesmo matematicamente, passar além, nem escapar à Perfeição por uma outra
corrente de formas. A reintegração ao seio da Perfeição é a sorte total e
inevitável de todos os seres.
Se levarmos mais longe o
simbolismo analógico apresentado pela figura geométrica, podemos imaginar que,
após haver se confundido com a Perfeição, o Universo se distingue dela
novamente. Pois um cone, mesmo gerado por um cilindro suposto ao infinito,
comporta outra figura cônica, oposta pelo cume à primeira; e assim o Universo
parte ao longo de uma nova hélice cônica, cujas bordas separam-se no infinito.
Nada se opõe a esta verdade matemática. Mas ela pode ser transposta
simbolicamente à metafísica. Pois o infinito matemático supõe superfícies
riemanianas[39] e números transfinitos; e a cada instante, nas
discussões algébricas, somos levados a conceber noções além do infinito. É a
melhor demonstração de que o infinito matemático não é o infinito, mas apenas o
indefinido metafísico; a Perfeição celeste não se assenta no indefinido, mas no
Infinito; e se podemos tomar o indefinido como imagem do infinito, não podemos
por outro lado aplicar ao infinito os raciocínios do indefinido. O simbolismo
desce, mas não sobe.
Saudemos com confiança
os desígnios, desconhecido ainda, mas lógicos e inteligíveis da vontade do céu;
e sigamos sem temor a marcha e o fim, inevitavelmente felizes, dos Destinos do
Universo.
VII
OS DESTINOS DA
HUMANIDADE
Se nos reportarmos ao
cilindro e à hélice representativos dos destinos do Universo, regidos pelas
leis da Evolução, veremos que os destinos particulares da Humanidade são
regidos pelas mesmas leis, de modo exato e imprescritível, e que não há nada
senão fazer, para a estase humana, uma aplicação lógica e adequada destas leis,
para obtermos a solução dos problemas que inquietam nossa espécie.
O ciclo humano é um dos
elementos da hélice, provavelmente uma de suas espiras; e a vida humana pode
ser determinada como começando e terminando na espira considerada, ou seja
limitada às suas extremidades pelas duas interseções da espira com a paralela à
altura do cilindro tomada em um ponto qualquer da superfície lateral.
Este corolário de nossas
proposições anteriores mostra imediatamente que a modificação humana não
possui, dentre as demais modificações, nada de surpreendente ou de maravilhoso,
e que não existem soluções ou transformações particulares que lhe possam ser
aplicadas.
Pois, é preciso frisar,
não há nada de extraordinário na Humanidade, assim como na sorte que a espera;
a única coisa extraordinária que poderia ocorrer seria ela não ser o que é. Ela
faz parte, em seu lugar natural, das modificações do Universo; ela é um dos
elementos normais dessa Evolução. Nada foi “criado” para o homem; nada aguarda
o homem especialmente; ele veio de onde tudo veio e vai para onde tudo retorna;
e a estase em que ele se encontra não tem importância maior do que as outras.
Nós lhe atribuímos muita
importância, porque é aonde nos encontramos; e isso é bastante razoável, se
levarmos em conta apenas a curiosidade. Mas será uma vaidade ingênua, se
deixarmos esta curiosidade conduzir à exigência de um tratamento especial; é
preciso nos convencermos – o que é difícil, tanto pelo nosso orgulho quanto por
aqueles que vêem vantagens nisto – de que o homem não está nem numa situação
inferior, nem numa situação privilegiada, que ele é apenas como deve ser; que
ele é um ser que não é nem especialmente feliz, nem infeliz, e que ele não
merece nem as interjeições laudatórias nem as execrações piedosas, com as quais
os textos religiosos o incensaram ou rebaixaram.
O homem é o único a
possuir uma alma, dizem alguns aduladores, que procuram tirar partido disto.
Esta proposição é manifestamente falsa tanto no seu sentido geral quanto na sua
pretensão. O homem possui certamente algo que lhe é específico, como veremos
mais adiante: esta é propriamente a característica da estase humana. Mas os
seres modificados, que nos precederam e que nos seguirão, possuem igualmente
características pré e pós-humanas, e ninguém tem direito de orgulhar-se disto,
pois foi a lei da atividade que deu a todos aquilo que eles não poderiam deixar
de adquirir sucessivamente.
Mas a característica
humana, como qualquer outra, não é composta por nenhum elemento que só se
encontre no homem. É um composto cujas
quantidades só se encontram no homem em determinados coeficientes, mas cujos
elementos consecutivos acham-se em uma ou mais estases adjacentes; elas não são
do homem; é apenas a sua
associação que faz o ser humano.
O desenho matemático nos
mostra de resto uma hélice perfeitamente regular e coordenada; nenhum ponto é
excêntrico; todos são regulares e decorrentes dos elementos geradores da
figura; a Humanidade está sobre um destes pontos, ou melhor sobre uma das espiras
compostas por estes pontos. Ela é assim inteiramente normal; ela não possui preferências
da Divindade, e devemos relegar ao arsenal
envelhecido de nossos orgulhos e terrores os elogios e as ameaças que nos foram
solenemente impostos em nome desta situação privilegiada que não passa de uma concepção tola e inteiramente
contrária ao princípio da Evolução e da própria Perfeição.
Coloquemo-nos sobre a
hélice da Evolução em um ponto de interseção fornecido pela paralela à altura
do cilindro sobre a face lateral; esta paralela corta todas as revoluções da
hélice; entre dois pontos de interseção consecutivos está representada a espira
da Humanidade; o ponto de interseção inferior é o do início da espira, e de
nossa observação atual. É o momento em que nasce a Humanidade[40].
Ela nasce, ou seja: ela
vem da modificação precedente, sem choque nem sobressalto, subindo pela doçura
da curva, por um movimento giratório contínuo, devido à força atrativa da
Perfeição. A lei da causalidade é a origem deste nascimento, e da perpetuidade
deste nascimento, ao menos enquanto durar a corrente das Formas: pois a forma
humana pode confundir-se no Universal: ela irá fundir-se aí, certamente; mas
ela não pode perecer no sentido negativo que nossa objetividade dão a este
termo gramatical, ou seja que ela terminará docemente quando sua forma
expirar e for substituída por outra, mas
ela não terminará, em plena marcha, por um brutal cataclismo que romperia o
curso uniforme de seu destino. Deixemos assim, sem mais delongas, o fim
do mundo ao bom rei Roberto, e o congelamento
de nosso globo ao Sr. Camille Flammarion: estas hipóteses são gratuitas, e,
mesmo que as consideremos como material e psicologicamente realizáveis, elas
não influirão em nada na Forma humana nem nos destinos da Humanidade. O globo
terrestre, enquanto veículo, só pereceria se se tornasse inútil. Vale dizer que
a Humanidade não perecerá com o planeta, mas que o planeta perecerá quando não
mais servir de teatro à Humanidade. E tudo isto não passa de contingências
supérfluas e redundantes.
A lei da atividade
empurra a Humanidade, desde seu nascimento, sobre a espiral de sua evolução
particular; a Humanidade não permanece jamais imóvel sobre um ponto desta
espiral, e jamais passa duas vezes pelo mesmo ponto. Isto quer dizer que o
ciclo humano compõe-se apenas da vida terrestre, e que após a morte jamais
voltaremos a este planeta? Seria bom se houvesse uma resposta definitiva, em
qualquer sentido que seja, a esta questão. Certamente não retornaremos jamais à
estase humana, tal como a atravessamos hoje, pois a lei da atividade, a lei da
harmonia e a lei do bem seriam violadas simultaneamente por isso. Mas não
existem outras coisas além do “composto humano” sobre a terra? E só existe a
terra, aonde possam modificar-se os “compostos humanos”? Tentemos responder por
analogia a estas perturbadoras questões.
Nos três reinos que
conhecemos sobre nosso globo, o reino animal vê e sente os reinos vegetal e
mineral; o reino vegetal pressente e não vê; o reino mineral nem pressente nem
vê – este, ao menos, o estado da ciência experimental atual. Este é o conjunto
daquilo que cabe em nossos sentidos. Mas nós pressentimos, sem ver, uma outra
matéria diferente da que está catalogada naqueles três reinos. Tudo o que é
eletricidade, psiquismo, forças errantes, eis a matéria que não cai sob nosso
controle sensorial, e diante da qual a Humanidade está, como estão as plantas
diante da Humanidade. É impossível levar a analogia mais adiante. O mineral não
sente que o conformamos e que nos servimos dele: assim, podemos perfeitamente
ser os instrumentos inconscientes de seres terrestres que ignoramos, que não
possuem nenhum de nossos cinco sentidos, e que utilizam nosso espírito sem que
ele o saiba, assim como nossa vontade serve-se do mineral. Nós governamos os
animais, as plantas e os minerais; porque, senão por um orgulho ridículo,
pretendemos não sermos governados por ninguém, e que não haja nenhuma forma no
Universo entre Deus e nós? Isto é ilógico, e inclusive é contrário às recentes
descobertas das ciências mentais e psíquicas. Estes entes superiores, estas
entidades indiscutíveis, embora desconhecidas, estas formas, absolutamente
normais, do Universo, são ou não são Humanidades sublimadas? Quem poderá impor
que assim seja, e quem ousará dizer que é impossível?
Por outro lado, será o
ciclo humano inevitavelmente limitado ao papel que o vemos desempenhar sobre
esta terra? Será indispensável, para que o homem permaneça na humanidade, que
ele pise o solo com seus pés, que ele colha o trigo com suas mãos, que ele
corte a carne com seus dentes? Ninguém pode pretender que a essência da
Humanidade esteja na sua forma, ou, para
usarmos uma linguagem mais física: na posse e uso dos cinco sentidos, e no
habitat de nosso atual planeta. A Humanidade pode desenvolver-se fora do
planeta, com uma aparência e meios apropriados às condições formais de
existência que lhe serão reservados. Isto é perfeitamente lógico e plausível.
Assim, para a
Humanidade, estar sobre esta terra com outros elementos orgânicos, com uma outra
Vida, ou passar a outra modificação com
órgãos análogos, mas aperfeiçoados, são duas variações, igualmente aceitáveis,
da lei dos Renascimentos. E esta é a metempsicose budista e pitagórica, que
toda a antigüidade admite, e que nós admitimos também, como um corolário,
perfeitamente lógico e demonstrado, das leis da Evolução. Esta lei dos
Renascimentos afeta a Humanidade em todo o ciclo humano; uma de suas aplicações
está na espécie humana terrestre; e é por isso que fazemos sempre a distinção
entre o Homem coletivo e o individual.
A Humanidade é uma das
espiras da hélice; a espécie humana atual é um dos pontos da espira[41]. Tomemos sempre o cuidado de não confundir nem tomar
a parte pelo todo, para não cairmos nas ilusões mais nebulosas ou no
transformismo mais grosseiro. A vida humana terrestre é um dos pontos do ciclo
humano; é uma das formas da Humanidade; e a Humanidade, pela lei dos
Renascimentos, atravessa a estase humana presente, sem manter-se nela e sem
retornar a ela. Mas se a espécie humana está perdida para o homem após sua
morte individual, a Humanidade pertence ao Homem coletivo. E veremos mais
adiante como se comporta o agregado humano nestas diferentes situações. E
veremos também que, antes ou depois do ciclo humano, subsiste, daquilo que caracteriza
a Humanidade, um elemento constitutivo imanente e eterno.
A lei de harmonia
empurra a Humanidade ao longo de seu ciclo com um movimento geral e uniforme. O
movimento é geral, pois nenhuma das parcelas que constituem a Humanidade
poderia escapar casualmente ou subtrair-se voluntariamente; ele é uniforme,
porque a causa inicial (o movimento devido à manifestação da vontade do céu) se
exerce sobre toda a Humanidade de modo sempre igual a si mesma, e que esta se
move ao longo de sua espira sem descontinuidade ou parada. Esta lei de harmonia
tem uma tripla conseqüência: na sorte da Humanidade, não existe acaso; não
existe diferenciação essencial; e não existem surpresas nem exceções.
Não existe acaso: o
acaso é o efeito produzido pela concordância entre a inconsciência do elemento
com a ausência de seu motor inicial. Nós admitimos de boa vontade a
inconsciência do elemento, enquanto impotência no decurso de uma modificação, e
a inintelecção impotente, se considerarmos a série das modificações. Mas como admitir
a ausência do motor, ou seja o esquecimento aonde a Vontade do céu deixasse a
menor das parcelas que o princípio da causalidade lançou no movimento, ou seja
na existência objetiva? Isto é impossível; pois se o elemento parcial
considerado estivesse entregue ao acaso fora do Universo manifestado, seria preciso negar a infinitude da Vontade
do céu; e se o elemento fosse entregue ao acaso dentro do Universo manifestado, seria preciso negar a
Perfeição onisciente desta Vontade. Isto eqüivale a dizer que a Vontade do céu
não existe. O acaso e o céu são contraditórios e mutuamente excludentes. E como
o Universo é o céu manifestado, seria preciso negar, seja o acaso, seja o
Universo, até o mais concreto testemunho dos nossos sentidos. Somos assim
conduzidos a esta proposição verdadeira: o Acaso não existe. E ficamos felizes de constatar que esta proposição
está há longo tempo inscrita nos umbrais da alta ciência puramente ocidental, e
chancela as obras dos mestres que se ocupam dela. No Cristianismo, e em todos
os sistemas religiosos e filosóficos que dele emanam ou dos quais ele emana,
esta parte eficiente do princípio da harmonia leva o nome de Providência, termo
cujo significado radical constitui a própria negação do acaso.
Não existe
diferenciação, na Humanidade, entre os destinos dos diversos elementos que a
compõem. Os elementos que, num dado ponto, entram simultaneamente –
harmoniosamente – em uma modificação, saem juntos desta modificação e entram
juntos numa outra. Ademais, todos os elementos percorrem todas as modificações
na mesma ordem. Enfim, tanto quanto sua origem, o fim será o mesmo para todos.
Isto é o que manda estritamente a lei de Harmonia; é impossível que esta lei
seja violada em qualquer de seus pontos. Veremos, na seqüência destes estudos, quando
tomarmos os textos do Kang-Yng, ou das Sanções, como o dogma grosseiro das
recompensas e das penas eternas se transforma, quando aqueles que os ensinam
não precisam retirar, dos terrores que ele inspira aos crentes, lucros
materiais ou influência. Devemos afirmar desde já que o Princípio, igualmente
inalterável, da Justiça, fica integralmente satisfeito. Mas é próprio dos
atributos do céu conformarem-se uns aos outros e de não se prejudicarem mesmo
nas suas conseqüências mais longínquas; o princípio da Justiça concorda
perfeitamente com a lei de Harmonia, da qual ele é uma manifestação metafísica;
e a Harmonia, como seu corolário – a Justiça – implica que a sorte final da
Humanidade e do Universo seja um destino comum e único.
Lembremos de passagem que,
pela aplicação da lei de Harmonia, tanto quanto pela aplicação da Atividade,
não é permitido admitir a brutal metempsicose dos medíocres sucessores de
Pitágoras. Alguns elementos não podem permanecer em uma modificação –
conservando ou mudando suas formas – enquanto outros elementos, que ingressaram
nesta modificação ao mesmo tempo, a atravessam e abandonam; uns não poderiam
avançar, enquanto outros recuariam, sob pretexto de sanções; pois, de uma vez
por todas, sanções ligadas a atos temporários são forçosamente objetivas, e não
poderiam ser aplicadas a leis conseqüentes da subjetividade. Todos os seres
seguem, na corrente das formas, um movimento harmônico e regular; e somente a
lei do bem determina a direção deste
movimento.
Enfim, não existe, neste
movimento, descontinuidade, detenção ou imprevisto; vale dizer que a marcha é metódica. A Harmonia afeta todos os seres em sua passividade,
e regulariza sua emissão nas formas. Não existe assim nenhuma criação
imprevista; não existe geração espontânea; todos os seres existem ao mesmo
tempo, e o primeiro dia em que nós constatamos sua existência não é o dia de
seu nascimento; esta pretensão é mais uma baforada do orgulho de cérebros
humanos servidos por uma inteligência imperfeita e por órgãos sensoriais na realidade
bastante medíocres; ela não é mais sustentável do que a opinião de um astrônomo
(em honra da astronomia, creio que este astrônomo nunca existiu nem existirá)
que declarasse ter sido criada uma estrela que acabara de avistar pela primeira
vez no campo de seu telescópio, enquanto que, na realidade, este astro está tão
afastado de nosso globo que apenas a luz emitida teria nos alcançado então.
Seria ridículo recusar aos princípios da metafísica e às manifestações do
subjetivo aquilo que atribuímos às leis de uma ciência contingente. Não existe,
assim geração espontânea. Mas a regularidade da emissão das formas vai mais
longe: ela pede a transmissão regular da forma, mesmo nos menores detalhes.
Assim a forma humana será sempre a forma humana; e não é possível um homem
engendrar um boi, ou um boi engendrar um homem, ou uma planta engendrar um
pedaço de metal. Este enunciado parece ridículo; ele parecerá menos, quando
compreendermos que ele pressupõe a impossibilidade de que, através de não
importa quantos aperfeiçoamentos e
escalões se queira, um macaco engendre um homem, o que condena
irremediavelmente esta bizarra teoria, à qual se deu o apelido de Darwinismo.
Os últimos a sustentar estas proposições sem sustentação possível, física ou
metafísica, não admitem que um casal de negros possa ter um filho branco, mas
acham plausível que um casal de orangotangos, nos confins das selvas de
mistérios impenetráveis, tenham um dia procriado um ser humano.
Bem entendido, nós
admitimos que, assim como não existe por assim dizer um limite claro entre os
mais animais dos vegetais e os mais vegetais dos animais, existem também, entre
a forma humana e as outras formas animais mais próximas, tantas formas quanto
se queira, e que elas sejam, por categorias, e organizadas em ordens, o mais
semelhantes possível aos seus vizinhos. Entre o símio mais humano e o homem
mais simiesco, nós admitimos mil formas, se quisermos, de antropóides (embora
jamais se tenham encontrado, tanto na geologia quanto na zoologia, pistas
absolutamente convincentes); e assim, para maior satisfação de alguns sábios,
tão orgulhosos de si mesmos quanto modestos em relação aos seus antepassados, a
distância entre o homem e o símio será preenchida. Isto é verdade, quanto à
similitude das aparências; mas a diferenciação entre as categorias, indefinida
ou infinitesimal, subsiste com o mesmo rigor; os antropóides produzirão
antropóides; os símios, símios; e os homens, homens; e isto continuará assim,
enquanto fluir, no Universo, a corrente das formas.
Enfim, a esta
Humanidade, que sabemos ainda ativa, móvel, e, segundo seus movimentos,
destinada a uma sorte geral e comum, a lei do bem designa esta sorte e
especifica a um tempo a direção e o fim de sua atividade. Este fim é excelente,
pois o desígnio supremo e único da vontade do céu é essencial e invencivelmente
bom. Não existem nem terrores nem sofrimentos eternos; vamos prová-lo, na
linguagem mais simples e mais infantil.
Se existisse eternamente
um sofrimento, fora de Deus, Deus não conteria tudo; ele não seria infinito;
ele não seria Deus. Se existisse eternamente um sofrimento dentro de Deus, Deus
não seria infinitamente bom; ele não seria Deus. O sofrimento eterno não
existe, portanto, nem em Deus, nem fora de Deus. Significa que ele não existe,
e que não pode existir. As ameaças mais eloqüentes, os vitupérios mais
interessados não poderão sair deste dilema simples, onde toda razão se acha
encerrada.
De resto, é
expressamente a vontade do Céu que joga os seres na corrente das formas; sem
esta vontade eterna, nem o movimento nem a forma, nem a menor parte da
“criação” existiria; como supor que esta vontade, que se exerce desde o
nascimento e durante todas as modificações dos seres, não estivesse mais
presente no momento da transformação final? Como supor que esta vontade,
exercendo-se eternamente, conduziria os seres saídos dela, e apenas por ela, a
um fim de sofrimento e infelicidade? Como supor que ela não os guia? Como supor
que ela os guia para fora de si mesma, ou seja a um fim idêntico ao começo?
Estas são pretensões sem lógica, sem justiça, sem bondade, revoltantes, e que
denotam precisamente sua origem humana, ou seja medíocre e particularista.
Somente um ser limitado pode conceber uma solução contrária ao bem, ou seja
negativa. E pelo fato de ser uma solução negativa e limitada, ela não pode sair
da contingência na qual foi engendrada, e ela é inaplicável aos problemas que
dizem respeito ao subjetivo.
Eis assim estão os
destinos da Humanidade perfeitamente dirigidos pelas quatro leis inelutáveis
que presidiram o nascimento e que presidem a marcha do Universo. Mas o que se
torna, com tal inelutabilidade, a liberdade das coisas? Explicaremos melhor
quando tratarmos das condições do indivíduo. A liberdade humana existe: e ela
existe em condições que satisfarão à justiça subjetiva e que contemplam, do
ponto de vista da sanção prevista, nossas responsabilidades pessoais.
Mas uma vez afirmado
isto que iremos desenvolver mais adiante, a liberdade dos seres não
existe, enquanto parcelas lançadas na corrente
pela vontade do céu, e que serão recolhidas por esta mesma vontade. Não
esqueçamos a que mundo pertence a série da qual falamos, e que é sobre o plano
metafísico – ou seja divino – que se mantém nosso raciocínio. Estamos aqui
diante da Vontade Divina. Não há nenhuma vontade que exista que não emane desta
vontade; nenhuma vontade pode igualá-la, pois se uma vontade igualasse a
Divina, seria ela a Divina, e não sua emanação.
Toda vontade que iguala
a Divina é idêntica a ela; portanto nenhuma vontade pode, com igualdade, voltar-se contra a vontade Divina. Não existe assim
vontade que triunfe sobre a vontade Divina; portanto não existe
liberdade contra a Atividade do Céu. Os
desígnios do céu não podem ser invertidos, nem atravessados, nem retardados:
nada pode prevalecer contra eles; e todas as doutrinas religiosas – e a própria
doutrina de Roma, expressa no pior latim do mundo (et portae inferi non
praevalebunt, etc.) – estão aqui de acordo com
a metafísica e a lógica natural. A Liberdade Total só existe no Infinito, só
age pelo Infinito e na vontade do Infinito. Um ser fluindo na corrente das
formas não pode ser dotado de liberdade total, ou ele seria imediatamente Deus.
E o Universo é regido invencivelmente, e marcha invencivelmente para o seu
destino. E assim como o homem não nasce quando quer e não escolhe o momento de
sua morte, a Humanidade nasce numa modificação e a deixa, em condições
previstas pela vontade do céu. E ela chega aonde a vontade do céu, por toda a
eternidade, a encaminhou.
A Liberdade Total é ao
mesmo tempo o mais perigoso e o mais ridículo presente que se poderia dar à
Humanidade: perigoso, porque ele poderia se opor a destinos felizes; ridículo,
porque aqueles que pretenderam fazê-lo, não perceberam que, ao permitirem que a
Humanidade se igualasse a Deus, criaram a Humanidade Deus. Mas esta invenção do
orgulho e da cupidez humana pouco se preocupa com tamanho contra-senso e
impiedade. A Liberdade Total, que a
espécie humana aceita por orgulho, conduziria à responsabilidade total, à falta total
e à pena eterna, a única reparação
possível desta falta total. E os inventores do teorema e de suas conseqüências
inventaram, ao mesmo tempo, que, por serem ministros de Deus sobre a terra, eles poderiam, por
meio de preces, dinheiro e vantagens de toda espécie, preservar da pena eterna,
perdoar a falta total, dirigir a responsabilidade total, e fariam assim, por um
engenhoso choque de retorno, pagar esta liberdade total, com o qual teriam
presenteado a Humanidade benévola.
Sabemos que destruímos
aqui o mais vivo preconceito da espécie, por levantarmos, com um perigo que ele
não imaginava, as proteções criadas contra este perigo, e porque, se fôssemos
entendidos, destruiríamos o fácil ganha-pão com que os protetores prosperam, e
a fácil influência com a qual eles reinam há séculos. Sabemos que estamos
atacando uma convicção, profundamente arraigada na consciência de nossos
ancestrais e nossos educadores ao longo dos anos; e nos damos conta da
dificuldade desta tarefa, na medida em que, em nós próprios, mesmo após termos
atestado irrevogavelmente esta certeza, levanta-se às vezes o fermento dos
terrores antigos e se ergue o medo hereditário que assombrou nossa infância.
Dificilmente se consegue libertar o espírito e a razão dos entraves mais
inaceitáveis, quando eles são seculares e trazem a autoridade daqueles que nos
ensinaram e a quem amamos. Mas na verdade, nos é impossível admitir, mesmo uma
vez, a vitória do sentimento irrazoável sobre a lógica, e que Deus tenha
consentido em igualar-se ao homem, precisamente para infelicidade deste, e que
o “criador” tenha se declarado impotente
em tornar inevitavelmente feliz sua “criatura”, nesta “eternidade”, que Ele
lhe deu e que ela não Lhe pediu[42].
Claro que não
discordamos de um ponto: sobre o plano relativo e no mundo das contingências,
restam muitas liberdades para agradar ao orgulho, muitas sanções para contentar
a justiça, muitas penitências para satisfazer aos amantes das piores emoções –
como veremos proximamente. Mas que a vontade do céu tenha por toda a eternidade
regido e preparado as modificações e a transformação do Universo, que todos os
seres que conhecemos, da molécula mais material aos astros que giram nas
profundezas do céu, obedecem às Leis desta Vontade Previdente, e que somente a
Humanidade seja capaz de reagir, de destruir a harmonia do plano universal, de
contrapor-se à vontade do céu, com o único objetivo de escapar ao bem geral, e
de ser, em todo o Universo, a única parcela eternamente infeliz, eis o que nem
a lógica, nem a metafísica, nem a concepção ideal que fazemos de Deus, nos
permitem admitir, e nem mesmo discutir por um instante que seja.
De resto, quando
estudarmos as condições da espécie humana, teremos uma prova ainda mais
decisiva a respeito disso. Mas guardemos também, como demonstração de pura
moral e bastante convincente, que não existe um único sistema teocrático que
tenha incluído esta temível pretensão entre seus dogmas primordiais.
Brahmanismo, Budismo, Cristianismo, todos foram regimes de amor e harmonia,
saídos da boca de apóstolos iluminados e bem-aventurados: somente as aplicações
puramente humanas, políticas e sociais, fizeram deles instrumentos de
intimidação e dominação. Apropriados à ambição dos indivíduos, estas adições
são características da pretensiosa cooperação terrestre à obra divina; e aos
olhos do sábio, elas não tem mais valor intrínseco do que aqueles que as
criaram para seu benefício particular. Criadas por homens, elas não têm
conseqüências para além da Humanidade.
Não insistiremos mais,
diante de provas tão claras, em que a lógica deve corroborar nossas maiores
esperanças para não parecermos apaixonados. Mas lembremos que, em nome da
própria Vontade do céu, nada do que está contido no Universo tem o poder de
alterar seja o que for no Universal.
Uma vez que a Humanidade
chegar, ao longo da curva sobre a qual está, à extremidade da espira que
constitui sua modificação no Universo, ela se transformará, ou seja, ela
desaparecerá – ou, numa linguagem grosseira, ela morrerá. Mas considerando a
curva do Universo em suas revoluções sucessivas, percebemos imediatamente que
aí não pode haver nem desaparição, mesmo que momentânea, nem nenhum fenômeno
negativo do gênero que chamamos de morte;
existe uma passagem normal de uma estase a outra; esta passagem, nas operações
do Universo, não comporta nem descontinuidades nem imprevistos, assim como a
passagem entre dois momentos consecutivos dos seres dentro do ciclo humano. Não
existe assim nenhuma irregularidade, de espécie alguma, no movimento, assim
como na lei de Harmonia; e a passagem de uma espira a outra, ou a passagem da
Humanidade à modificação que se seguirá a ela, não é marcada senão por uma
mudança na natureza da constituição dos seres em modificação. Veremos de modo mais preciso, mais humano, e que nos toca mais de perto, no capítulo referente
às Condições do Indivíduo. Mas é preciso saber desde já que o fenômeno da
transmodificação reside essencial e exclusivamente nesta única mudança – que é
necessariamente uma melhoria – que é um aumento e não uma diminuição, e que
representa mais um nascimento do que uma
morte. Na realidade, não se trata de um
nem de outro; e é tão tolo querer ver aí um fim, como seria tolo chamar de
parada súbita ou descarrilamento, a passagem de um trem expresso diante de uma
estação em que o horário o impede de parar. Estas mudanças da modificação se
fazem sempre normalmente, calmamente e com benefício; e elas devem, em
decorrência desta absoluta certeza, perder aquilo que elas podem ter tido de
temporariamente doloroso para o indivíduo. A coletividade dos seres passa de um
existência a outra, por diferentes modalidades e mecanismos sempre semelhantes
a si mesmos, sem que haja um só instante de morte, de desaparição, ou apenas de
eclipse.
A essência divina que
banha as parcelas do Universo e a atração divina que é o regente de seus
movimentos são as garantias de sua perpetuidade. E a Humanidade participa, como
todo o Universo, desta perpetuidade, no seu nível de modificação, e naquilo que
esta transformação comporta de Eterno.
A Humanidade, que é um
dos ciclos do Universo, não é necessariamente seu último; ele nos parece muito
elevado, porque é nele que nos encontramos, e porque compreendemos melhor os
ciclos inferiores do que os superiores; mas nós percebemos muito bem, e temos
mesmo a convicção de que não somos nós os seres cuja perfeição relativa precede
imediatamente à Perfeição Total. Mesmo na mitologia antiga, existem gigantes,
semideuses, e todo um time de intermediários entre o Olimpo e nós; mesmo na
hagiografia cristã, existem os Santos, os Anjos e os nove coros celestes entre
Deus e suas criaturas. As aparências de universalidade das opiniões concorda
com as prescrições do sentimento e com as deduções da lógica, para nos fazer
entender que nós compomos uma modificação qualquer na corrente das formas, e
que evoluímos ao longo de uma espira qualquer da hélice cilíndrica indefinida.
Mas, se a Humanidade não
constitui a última espira, ao menos a existência desta última espira é
concebível, mesmo atualmente. A vontade do Céu que colocou os seres na corrente
das formas é a mesma que atrai todos os seres para si e, por conseguinte, tudo
deve confundir-se nela. É assim que, considerado ao infinito – que é
precisamente o lugar metafísico da Perfeição – o cilindro da criação torna-se
um cone, e a espira que evolui sobre a sua superfície lateral confunde-se
infalivelmente, na extremidade do cone, com a altura do volume, sendo
precisamente esta altura, como já vimos, o lugar geométrico da atração da
vontade do céu, e seu cume o lugar metafísico da própria vontade do Céu.
Podemos então
considerar, como um caso especial e supremo, o fim da última espira, ou seja
seu encontro com a altura do cilindro, vale dizer o término da última
modificação, que os sábios Chineses chamam de “mecanismo último da
transformação”, e que é, como a lógica, a metafísica e a matemática concordam,
a reentrada do Universo na Vontade que o colocou em movimento, o retorno dos
seres à Perfeição que os produziu. Este retorno não é uma “vitória sobre os
elementos contrários”, assim como não é uma transformação extraordinária; ele
é, como todas as demais passagens que o precederam, uma passagem insensível e
normal. Se nos reportarmos ao capítulo sobre as Leis da Evolução, veremos que o
“mecanismo transformador” não muda em nada a essência dos seres que compõem o
Universo; ele comporta simplesmente a ablação das Formas, ou seja o Fim do Limite; e é isto que o texto tradicional explicita ao dizer
que a “corrente das formas” está terminada.
Teremos nós, neste
último ciclo, o conhecimento perfeito de todos os ciclos precedentes? Teremos a
presciência da transformação final? Ou, em outros termos, os seres do último
ciclo considerarão como um bem serem privados de suas formas? Ou verão nisto
uma morte, como nós mesmos acreditamos
ver uma morte no fim da individualidade humana? Não podemos impor aqui uma
opinião; mas a analogia faz pensar que a última modificação causará nos seres a
mesma impressão que o fim de todas as modificações precedentes. E nós só
quisemos colocar aqui esta questão para estabelecer mais uma vez como é falso
chamar de morte a passagem em questão e
como é irrazoável temê-la.
Este retorno à Perfeição
Total, que é determinado pelo Fim do Limite, tanto moral como físico, ou seja,
tanto pelo fim da corrente das formas quanto pelo fim da individualidade das
parcelas, sabemos bem, por sua própria determinação, o que é: é o “retorno ao
seio de Deus”, a “Perda no Grande Todo”, o “Céu”, o “Paraíso”. É, numa palavra
que resume todo o pensamento humano a respeito, o Nirvana, que as raças amarelas chamam de Nibban.
O maior dos místicos
chineses, talvez o primeiro filósofo do mundo, Lao Tsé, diz claramente o que é
o Nirvana, lugar metafísico da Perfeição
Ativa, ou da Vontade do Céu não-manifestada (e, de fato, ela deixa de ser
manifestada, quando seca a corrente de formas). Veremos, nas profundas obras de
Lao Tsé, como devemos entender o Nirvana,
ou seja como o entendem os textos antigos da Índia, que são também os nossos, e
os de toda a Humanidade pensante. A polêmica e a crítica ocidentais tentaram
desfigurá-lo, e transformá-lo numa negatividade; a compreensão e os ataques
modernos teriam se arranjado melhor. Mas os sábios incompletos não imaginaram
que, ao fazê-lo, eles igualaram o Nada à atividade total; e assim eles
cometeram, em metafísica, o mesmo erro grosseiro que teria cometido o aluno de
matemática, ignorante ou inconsciente, que tomasse, voluntariamente ou não, o
zero como uma ausência de cifra, ou como
uma cifra, esquecendo-se de que se trata de um número.
Podemos conceber que os
seres, uma vez confundidos no Nirvana, possam sair daí novamente, para entrar
em outra corrente de formas, e eternizar assim seu movimento particular? Vimos
que a matemática responde pela afirmação necessária: pois, tomando nossa
representação gráfica, o cilindro cíclico permanece um cilindro, e a hélice do
destino enrola-se eternamente sobre sua superfície lateral; ou o cilindro,
considerado no infinito matemático, torna-se um cone, e todo cone supõe uma
outra figura cônica oposta pelo cume, cujos lados afastam-se indefinidamente
nos espaços transfinitos. E assim a hélice não tem fim de um lado como de
outro. Mas esta necessidade não existe
em metafísica, primeiro porque o infinito metafísico não admite, como o
infinito matemático, um além qualquer,
nem em espaço, nem em volume, nem em pensamento; depois porque a eternidade da
ação (necessária para a manifestação da Perfeição não exige irrevogavelmente
uma corrente de formas; o movimento coletivo é tanto um movimento quanto a soma
indefinida de movimentos individuais; a forma não é necessária ao movimento. Não é preciso deslocar-se para haver
movimento, assim como não é preciso agir para querer ou pensar.
Não existe assim nenhuma
necessidade. Mas, no estado presente de nossa razão, devemos declarar que a
possibilidade subsiste. Pois o que é possível hoje é possível de modo
indefinido. Apenas concebemos mal que a atração da Vontade do Céu, após haver
integrado tudo, desintegre tudo novamente. E, repetimos, não é indispensável
aceitar esta concepção como se ela fosse útil à Atividade Eterna; o movimento não é mais essencial à atividade do que a forma é essencial ao ser. E este é
o único ponto em que a Tradição primordial permanece muda, como
se fosse inútil à espécie humana ter uma opinião a respeito. É por isso que existem duas opiniões, ambas
válidas: uma que o ser reintegra-se à Unidade e aí permanece eternamente;
outra, que a emissão na corrente das formas é eterna, mas que, sendo as
parcelas individuais infinitamente numerosas, a mesma parcela jamais penetra
duas vezes na corrente das formas. Isto indica perfeitamente bem como é
indiferente à espécie humana escolher entre estas duas opiniões.
Podemos então, com toda
liberdade, considerar, segundo sua sentimentalidade própria, a “Transformação”,
ou o mecanismo final do Universo. Pois todos os caminhos levam ao fim único. E
este fim, a Reintegração bem-aventurada e Total, é apontada a um tempo pela
Tradição escrita, pela razão metafísica, pela razão matemática e pela
satisfação dos três atributos que todas as religiões atribuem essencialmente
aos seus Deuses: a Bondade, a Justiça e a Glória.
VIII
AS CONDIÇÕES
DO INDIVÍDUO
Vimos o que são, e o que
prometem os Destinos da Humanidade, considerados como uma espira do cilindro
evolutivo, como um ciclo na modificação do Universo. Mas sabemos, por
conseqüência, que o ciclo humano compreende toda a Humanidade, ou seja toda a
espécie humana que conhecemos, e todas as suas variedades possíveis, anteriores
e posteriores à espécie. E determinamos as leis que regem, invariável e inexoravelmente,
o ciclo humano, que é um ciclo normal, sem nada de especial – exceto para nós,
porque é nele que estamos presentemente.
Este interesse natural
que temos pelo ciclo no qual evoluímos, que conhecemos um pouco melhor que os
outros, e que desejamos conhecer profundamente, nos leva a estudar o movimento
da espécie humana no ciclo, e as condições do indivíduo na espécie.
Estes dois estudos são
perfeitamente análogos, e compreendem fenômenos, todos contingentes, da mesma
natureza. Precisemos aqui que, deixando o domínio da metafísica pura, estaremos
no entanto obrigados pela lógica e pelo simples bom senso, a não adotar, para o
fenomenismo objetivo, senão as soluções que estejam em concordância com as
soluções demonstradas dos problemas metafísicos. É assim que entraremos, com um
guia certo e perfeito, nas questões que parecem as mais palpitantes e mais
obscuras ao ser humano. E não nos desviaremos do caminho que nos aponta nosso
guia mental, seja pela sensibilidade pessoal, pronta a assustar-se com as soluções
lógicas que parecem feri-la, seja por não levarmos o bastante em conta o
egoísmo nativo e inconsciente do indivíduo.
Ao dizermos que a
espécie está para o ciclo assim como o indivíduo está para a espécie,
mostramos, com esta relação matemática, que podemos nos contentar em estudarmos
as condições do indivíduo, estudo bem mais fácil, por ser nosso estudo pessoal;
bastará generalizá-lo analogamente para permitir sua aplicação à espécie. Este
é um trabalho simples o bastante para que o deixemos ao leitor. De resto, o
começo e o fim dos indivíduos, sobre os quais estamos informados, ao menos
fisicamente, nos fornecem excelentes esclarecimentos sobre o começo e o fim da
espécie. O estudo desta, encerrado entre o estudo experimental dos indivíduos e
o estudo metafísico do ciclo de modificação ao qual ela pertence, não pode ter,
para nossa lógica, nada de obscuro ou aleatório.
A espécie humana é um
instante do ciclo; o indivíduo é um instante da espécie. Mas qualquer um, do
ponto de vista do estudo que empreendemos, pode ser tomado como unidade básica.
Esta unidade básica
obedece, em seu plano, às quatro leis fundamentais do tetragrama, e ocupa o
lugar que correspondente ao seu momento no cilindro evolutivo. Convém situá-la
imediatamente sobre a hélice e sobre sua espira, de tal modo que o desenho,
como de hábito, nos fornecerá, por analogia, os dados ao exame.
O indivíduo que
consideramos faz parte da espécie, e ele é necessário à constituição da
espécie; seus atributos relativos e suas qualidades essenciais formam as
características da espécie: apenas uma coisa não importa: é o número dos
indivíduos; podemos conceber uma espécie representada por um único indivíduo,
ou por indivíduos inumeráveis; desta forma, o número de indivíduos não conta;
e, qualquer que seja o número, este pode ser maior ou menor, sem nada modificar
na espécie. É o que chamamos inumerabilidade matemática. E vemos que o
indivíduo está para a espécie como o ponto para a linha, que se caracteriza por
possuir um número indefinido de pontos. E assim a representação gráfica
expressa de um indivíduo será um ponto sobre a espira que representa sua
espécie.
Se a estação do
indivíduo sobre a espira é um ponto, a evolução do indivíduo, em relação ao
cilindro evolutivo universal, será representado por uma superfície.
Mas isto não é
absolutamente verdadeiro; primeiro por uma razão metafísica, pois se a evolução
individual fosse representada por uma superfície, o ponto de chegada seria
semelhante ao ponto de partida, e assim não haveria atividade (mas monotonia e
imobilidade pelo recomeço) e não haveria bem, pois a atração em direção à
perfeição não se faria sentir; depois, por uma razão matemática, pois se a
evolução “A” fosse uma superfície exata, ela voltaria ao seu ponto de partida
para iniciar a evolução “B”, e assim os momentos dos indivíduos não
percorreriam a espira. Vale dizer que o número de pontos que a compõem seria
infinito.
Ora, este número não é
mais que indefinido, e assim a evolução que partiu do ponto “A” da espira chega
ao ponto “B”, que é o ponto seguinte, indefinidamente próximo, mas
matematicamente distinto.
Assim, na realidade, a
evolução individual é uma espira, uma função da hélice, mas cujo passo é
infinitesimal. É por isso que, dado que nós
vivemos, agimos e raciocinamos sobre contingências, podemos e devemos mesmo
considerar o gráfico desta evolução como uma superfície. E, na realidade, ela
possui os mesmos atributos e qualidades, e só difere da superfície quando
considerada desde o Absoluto. Assim, em nosso plano, o círculo vital é uma verdade imediata, e o círculo é bem a
representação do ciclo individual humano.
Voltamos assim aqui à concepção ocidental, que não chega a ser falsa, como
fizemos prever, mas é mal aplicada aos movimentos do Universo, embora adequada
ao homem só.
O círculo do destino
individual de cada um é, nas raças amarelas, representado pelo símbolo do Yin-Yang.
Algumas breves
explicações são necessárias. O Yin-Yang é um círculo, e vamos dizer porque. Trata-se de um
círculo representativo de uma evolução, individual ou específica, e ele só
participa em duas dimensões do cilindro cíclico universal. Não possuindo
espessura, ele não tem opacidade, e é representado como diáfanos ou
transparente, ou seja, os gráficos das evoluções, anteriores ou posteriores ao
momento dado, são vistos através dele.
A espiral que divide em
forma de “S” o círculo do Yin-Yang não é
apenas um símbolo da hélice universal; ela é o traço descritivo, segundo a
linguagem matemática, da própria hélice. Consideremos o Yin-Yang do único ponto de vista válido, ou seja, em relação
à Perfeição, e “do alto do lugar geométrico e metafísico da vontade do céu”[43].
Um dos braços da curva
em “S” é a projeção matemática, sobre o plano horizontal (geometria descritiva)
do trecho da hélice que, ao longo do cilindro universal (que se torna um cone
ao infinito) vai desde o ponto da espira tangente ao Yin-Yang até a reintegração na Perfeição. O outro braço da
curva é a projeção (devido à transparência do círculo do Yin-Yang) do trecho da hélice que vai desde a Perfeição ativa
até o mesmo ponto de tangência da espira com o círculo do Yin-Yang. É o traçado completo da curva universal, desde a
vontade que a emite até a vontade que a reintegra.
Uma metade do Yin-Yang é negra: é a que representa a evolução abaixo do círculo; a outra é branca: é a que representa a
evolução acima do círculo considerado.
Estas duas metades são iguais: pois, como o ponto de partida e o final estão
ambos no Infinito, o ponto considerado da espira pode, em relação ao Infinito,
ser considerado, sempre e veridicamente, a igual distância entre o ponto de
partida e o ponto de chegada. Os dois pequenos círculos internos,, um negro na
superfície branca e outro branco na superfície negra, estão aí, primeiro para
lembrar a “transparência” do símbolo, e depois para mostrar que essas oposições
de cores não constituem uma realidade, e que tanto o branco existe sob e com o
negro, como o negro sob e com o branco, e que, na realidade, o Yin-Yang é todo branco ou todo negro, conforme o virmos em relação
à sua partida ou à sua chegada. De resto, para aqueles que ainda se deixariam
enganar pelas aparências mesmo depois deste esclarecimento, é preciso lembrar
que o Yin-Yang é o símbolo da evolução
humana individual, ou seja uma atividade. Este símbolo deve assim ser tomado
como sendo ativo em si mesmo; e para considerá-lo tal como ele deve ser, é
preciso fazê-lo girar em torno do seu eixo. Veremos aí que ele é unicolor, e
que portanto jamais se deve buscar nele, ainda que superficialmente, o menor traço
de dualismo.
Por existir, o Yin-Yang satisfaz o princípio da causalidade; ao mover-se ao
redor de seu centro com a velocidade da evolução humana específica, ele
satisfaz à lei da atividade; por ser circular, ele satisfaz a lei da harmonia;
por ser precedido e seguido por um número indefinido de círculos concêntricos,
ele satisfaz a lei do bem. Mas lembremos aqui – e devemos refletir sobre isto
profundamente – que os três primeiros princípios são satisfeitos no interior do
próprio Yin-Yang, enquanto que a
satisfação do quarto princípio (princípio do bem) acha-se fora do Yin-Yang, ou seja que, para procurar esta satisfação, é
preciso considerar a situação dos círculos imediatamente vizinhos. No interior
de um único círculo considerado, a lei do bem não é satisfeita. Vale dizer que,
no interior de uma evolução humana individual, a atração da vontade do
céu não se faz sentir. Esta espantosa
constatação deriva da consideração matemática do gráfico, e nos conduzirá a
conseqüências metafísicas, senão imprevistas, no mínimo de grande destaque[44].
Lembremo-nos do que foi
demonstrado: a liberdade dos seres não existe, enquanto parcelas e funções da
evolução universal. A liberdade absoluta, que contém a de contrariar os
desígnios da vontade do céu, é exclusiva desta vontade, assim como de Deus. Mas
nós deixamos pressentir uma certa liberdade do indivíduo. E eis que a
matemática nos mostra que dentro do círculo vital da espécie e do indivíduo, a
atração do céu não se faz sentir, ou seja que, no interior de sua evolução particular,
o indivíduo desfruta de sua liberdade de ação. Vejamos os limites e as
condições desta liberdade.
A entrada e a saída no Yin-Yang
não estão à disposição do indivíduo: pois são
dois pontos que pertencem, embora também ao Yin-Yang, à espira inscrita na superfície lateral do
cilindro, e que estão submetidos à atração da vontade do céu. E na realidade,
de fato, o homem não é livre para nascer nem para morrer. Quanto ao nascimento,
ele não é livre nem para aceitá-lo nem para recusá-lo, nem para escolher o
momento. Quanto à morte, ele não é livre para subtrair-se a ela; e tampouco ele
deve poder escolher o momento de sua morte, e é por isso que o suicídio é o ato
mais anormal e contrário aos interesses do indivíduo.
Em todo caso, ele não é
livre em relação a nenhuma das condições desses dois atos; o nascimento lança-o
irremediavelmente sobre o círculo de uma existência que ele não pediu nem
escolheu; a morte retira-o deste círculo e lança-o invencivelmente em outro,
prescrito e previsto pela vontade do céu, sem que ele possa modificar isto em
nada. Assim o homem terrestre é escravo, quanto ao seu nascimento e quanto à
sua morte, ou seja em relação aos dois principais atos de sua vida individual,
os únicos que resumem em suma sua evolução particular em relação ao Infinito.
Mas entre seu nascimento
e sua morte, sobre este círculo sem espessura, sobre esta superfície
imponderável do volume universal aonde a atração da vontade do lato não se
exerce, o indivíduo é livre. Ele é
absolutamente livre, na emissão e no sentido de todos os seus atos terrestres.
Ele não tem por senhor a vontade do céu: ele tem como guia a consciência
obscura, espécie de instinto mental, que não é o mesmo para todos os
indivíduos, que evolui, espessa-se ou afina-se com cada um, e que está em
relação aritmética com as faculdades intelectuais do indivíduo e com o valor do
meio social aonde ele se coloca. É esta consciência que é a geradora dinâmica
dos seus atos pessoais.
É no fenomenismo moral
em que se exerce esta consciência, instrumento medíocre, que nascem as
contingências do bem e do mal. E é a crença pessoal no bem e no mal, limitados
um pelo outro, que faz, do bem e do mal, uma realidade objetiva no espírito
humano. É a consciência do homem que cria o bem e o mal, e é a liberdade
do homem que, permitindo-lhe seguir a um ou outro, cria as responsabilidades.
Nunca é demais
apoiarmo-nos em evidências racionais: a consciência, que gera o bem e o mal, é
uma particularidade específica, temporária e protéica, mesmo no interior da
espécie; a liberdade de agir é extremamente limitada no tempo e nas
contingências individuais; os atos emitidos por esta liberdade e qualificados
por esta consciência, são assim atos relativos, exclusivos à espécie e ao
indivíduo, que não possuem nenhum valor senão nas e pelas objetividades de que
nasceram, sendo indiferentes em relação ao Infinito. Os méritos e os deméritos,
os benefícios ou as ofensas são da mesma qualidade que os atos que os
produziram; e as sanções que são ligadas a eles pela justiça cuja essência está
no Infinito, são do mesmo valor, grau e repercussão que os atos que as
motivaram.
O homem é um ser
limitado e relativo; ele só pode cometer atos relativos, geradores de méritos
relativos, e capazes de sanções relativas. Aquilo que age no tempo só pode ser
apreciado no tempo: a figura que se inscreve no espaço de duas dimensões não
pode possuir três dimensões; estamos aqui encerrados na evidência axiomática da
mais simples geometria. Assim, o ato de um homem, que é um ato temporário e
finito, por culpado que possa considerá-lo a consciência geral, não pode
suscitar-lhe uma punição eterna e infinita. Assim, as penas eternas – como o
inferno, não cristão, mas católico e romano – não existem.
Mas os ilógicos
sentimentais insistem em que a falta, endereçada a um Ser Infinito, Deus,
necessita uma pena infinita. Este é um duplo absurdo. Uma contingência não pode
afetar o Absoluto. De que se imagina ser feito Deus, para que possa ser
injuriado por um homem? É preciso ser Deus para ofender a Deus; e aqueles que tentam
nos convencer de um poder tão terrível jamais pensaram nisto.
Mas existe ainda outra
coisa. A liberdade relativa do homem, como vimos e demonstramos, supõe o
não-exercício da atração, ou seja, a indiferença da vontade do céu. E, na
verdade, o homem não poderia agir livremente se a vontade do céu não o
permitisse fazer. Ela é desinteressada do assunto: ela não pode assim ser
ofendida por uma coisa da qual não se interessa, e que ela não guia, unicamente
por não querer guiá-la.
Nós não negamos a sanção,
assim como não negamos a responsabilidade, ou a liberdade; mas os limites
impostos à liberdade mitigam de outro tanto a sanção, que sabemos temporária,
relativa e contingente. E agora que a sabemos objetiva sob todos os aspectos,
nós a reconhecemos necessária. Esta sanção se exerce, segundo a vontade do céu,
no círculo individual em que o ato foi cometido, ou no círculo seguinte; não
importa, porque nossos atos “vibram” e
se inscrevem ao longo de nossa personalidade, de uma maneira indefinida – mas
não infinita. E a sanção, que, como o ato, se produz no tempo, pode ser
retardada indefinidamente ao longo dos ciclos. É assim que o produto dos atos
de uma existência é um dos elementos constitutivos das existências ulteriores.
Mas há um ponto que não
se deve esquecer: este elemento, puramente objetivo, de alegria ou de dor, em
nada pode influir na marcha da evolução geral. Tenhamos nós agido bem ou mal, o
ciclo que nos aguarda é o mesmo para todos; uns o percorrem felizes, outros em
lágrimas; mas o degrau que iremos subir no fim de cada círculo vital é o mesmo,
e nos aproxima a todos invencível e paritariamente do Infinito a que estamos
destinados.
É um problema puramente
taoísta, e que estudaremos no tratado de Kan Ying, que é inteiro dedicado a
ele, determinar a soma das vibrações de nossas ações e as sanções resultantes
delas. Mas o princípio está colocado: ele satisfaz, como dissemos, nossa
consciência e nossa idéia de liberdade; ele responde a um tempo à Bondade e à
Justiça do céu; e ele deixa intactas as leis inquebráveis da tradição. Ele
coloca em seu verdadeiro lugar o dualismo contingente do bem e do mal, assim
como os méritos e as sanções das ações humanas. E ele prova, de modo tão
peremptório que não precisaremos retornar, que a crença, ingênua ou interessada,
em sanções eternas, é ao mesmo tempo um barbarismo moral, um contra-senso
metafísico e uma injuriosa negação dos atributos essenciais da Divindade.
Entre seu nascimento e
sua morte, o homem é, portanto, livre; vimos as razões e os modos desta liberdade
objetiva; vemos seus atos todos os dias; veremos em outra parte as
conseqüências, na parte correspondente da Via Racional, daquilo a que chamamos
no ocidente de Moral. Mas, fora de todo fenomenismo, veremos o que são este
nascimento e esta morte, cujas épocas, circunstâncias e resultados são
independentes da vontade daquele que os vive.
Segundo todas as
fórmulas precedentes, e de acordo com a irrefutável lógica da geometria, o
nascimento é a entrada de uma parcela evolutiva no ciclo humano; a morte é a
saída desta parcela para fora do ciclo humano; mas, para entrar no ciclo
humano, e surgir aí como indivíduo dentro da espécie, é preciso que esta
parcela saia fora do ciclo inferior para o ciclo humano, ou, para empregarmos a
grosseira linguagem de costume, é preciso que ele morra para este ciclo. Mas, ao sair do ciclo humano e
perder a individualidade da espécie, a parcela em evolução entra no ciclo
superior ao ciclo humano e, para empregarmos nossa linguagem vulgar, ela nasce
neste novo ciclo; o nascimento e a morte acompanham-se e complementam-se um ao
outro; o nascimento humano é a conseqüência imediata de uma morte; a morte é a
causa imediata de um nascimento. Jamais uma destas circunstâncias se produz sem
a outra. E, como o tempo não existe aqui, podemos afirmar que, entre o valor
intrínseco do fenômeno nascimento, e o valor intrínseco do fenômeno morte,
existe uma identidade metafísica. Quanto ao seu valor relativo, e devido ao
imediatismo das conseqüências, a morte na extremidade do ciclo “X” é superior
ao nascimento no mesmo ciclo “X” no montante do valor de atração da vontade do
céu sobre o ciclo sobre o ciclo “X”, ou seja, matematicamente, do valor do
passo da hélice evolutiva[45]. Isto pode parecer paradoxal porque, para nos
fazermos entender, empregamos os termos nascimento e morte para
designar as passagens entre os ciclos, e que a tola vaidade humana atribui um
sentido de aumento à entrada na Humanidade (nascimento) e um sentido de
diminuição à saída desta Humanidade (morte), como se esta ocupasse o ápice de
uma parábola, além da qual não se pode senão descer. Não existe erro mais
funesto nem mais ridículo. Nós vimos que, metafisicamente, a morte é um avanço
em relação ao nascimento, porque a entrada no ciclo “X+1” é superior à entrada
no ciclo “X”. Nós o vimos geometricamente sobre a curva evolutiva do Universo.
Vamos vê-lo psicologicamente, considerando, no espécime humano, os elementos
trazidos pelo nascimento e aqueles tocados pela morte[46].
Não é o tempo de indicar
quais são os sete elementos que a tradição reconhece como pertencentes à
espécie humana. Nós o veremos na parte destes estudos que dirá respeito às
ciências fisiológicas e psíquicas, saídas diretamente da doutrina de LaoTsé.
Mas desde já podemos afirmar – e esta afirmação não espantará aqueles que
perscrutaram os arcanos do ternário e do septenário hindus – que os sete
elementos humanos da Tradição Primordial podem ser resumidos em um ternário, no
qual cabem perfeitamente: corpo, alma e espírito,
tais como os conhecem e definem os adeptos da Alta Ciência. E é sobre este
ternário, familiar a todos, e que o próprio catolicismo romano reconhece – de
acordo com os seus textos fundamentais – que faremos nossas investigações e
nossa demonstração.
O ser humano não é uma
entidade: ele é um agregado, e, na realidade, um agregado de elementos bastante
díspares entre si, por diferirem em essência uns dos outros. Estes três
elementos, que fazem o homem que conhecemos, existem independentemente uns dos
outros: existem corpos sem alma nem espírito, como a matéria terrestre; existem
almas, sem espírito nem corpo, como os fluídos invisíveis emanados pelos corpos
físicos, celestes ou errantes; e existem espíritos sem corpos, como aquilo que
os católicos chamam de “coro dos anjos”, e que correspondem a uma realidade
absoluta.
Não estamos dizendo nada
de novo, mas apresentamos, sob um novo ângulo, a percepção das coisas arcaicas.
Os elementos que compõem o homem não precisam estar juntos para existir; mas é
a sua reunião que constitui o homem.
Antes de sua reunião, não havia ainda Humanidade; depois de sua dissociação,
não haverá mais Humanidade. A Humanidade é formada pela sua coerência
temporária.
É, portanto, não sobre
os elementos em si mesmos, mas sobre seu conjunto e sua coesão, que se exercem
os fenômenos do nascimento e da morte, específica de nossa espécie. Lembramos
que estes elementos, tomados em particular, são indiferentes ao nascimento e à
morte, que não podem afetar suas modalidades – ou suas qualidades protéicas.
Esta verdade já pode ser
entrevista e sentida – senão demonstrada – para o espírito e a alma. Ela não é
menos precisa no que diz respeito à matéria. Seria tolo dizer que o ato da
geração cria a matéria da qual o corpo é formado: pois o germe apenas fecunda,
ou seja, provoca o desenvolvimento da forma humana sobre parcelas condensadas
de matéria. É tolo dizer que o ato da morte destrói a matéria: ele a desagrega,
ou seja, libera-a do composto humano, retira-lhe a forma com a qual ela fazia
parte de um homem, e a devolve à corrente das formas, aonde ela não ficará
ociosa, enquanto o Universo estiver sob o reinado do Limite.
O nascimento humano é,
portanto, a fórmula da composição de um agregado (diríamos quimicamente: a
fórmula de produção de um precipitado).
Como estamos em evolução, ou seja, falando segundo as contingências, em
progresso, por meio de círculos, ao longo das revoluções da hélice que nos
conduz à vontade do céu, este nascimento é benéfico, ou seja, o agregado assim
formado contém elementos superiores àqueles do agregado precedente, cuja
dissociação foi provocada pelo nascimento na estase humana. A saída da estase pré-humana corresponde à dispersão, na
corrente universal, de um elemento inferior ao último elemento humano, ou da
parte mais massiva e mais rudimentar da matéria. A entrada na estase humana, que coincide com esta saída,
corresponde à aquisição de um elemento superior, o Espírito, ou de uma parte do
Espírito que a outra estase não possuía. Estamos sempre falando, bem entendido,
de uma maneira contingente, pois se torna a cada dia mais provado pela ciência,
e mais indispensável à metafísica, que os diversos elementos dos quais são
compostos os seres, são diferentes estados de uma só e mesma Coisa (coloquemos:
de uma única Matéria) depurada e sublimada, através dos indivíduos, sob a
atração benfazeja da vontade do céu, pelos esforços contínuos da personalidade.
O fenômeno da morte é
idêntico, absolutamente, e parece determinar em nós fenômenos análogos, mas em
sentido inverso, apenas porque temos o mau hábito de tudo considerar sob o
ponto de vista da estase humana. A saída deste estado (morte) corresponde à
dispersão do corpo, à perda da forma material humana, que é a parte mais baixa
de nosso composto. Mas a entrada na estase supra-humana (nascimento), que
coincide com a morte humana, comporta o acesso a um elemento espiritual, cujo
valor não conhecemos, mas que é melhor do que o melhor dos nossos elementos
humanos, É por isso que a morte humana, coincidindo com um nascimento melhor, é
metafisicamente superior ao nascimento humano.
Eis assim colocado o
agregado humano. Nenhum de seus elementos pertence-lhe propriamente, pois todos
fazem parte de outros agregados, superiores e inferiores. Nenhum deles é
essencialmente afetado pelos fenômenos humanos. O agregado é assim constituído
apenas pela associação temporária destes elementos independentes. E a
característica humana é que em nenhum outro lugar estes elementos se acham
reunidos assim, na ordem e com os coeficientes que eles possuem em nossa
estase. A especialização humana não é, portanto, uma especialização de
essência, nem de natureza: é uma especialização de grau e de método. Este grau
e este método, em uma palavra, este agenciamento particular, é o indivíduo.
Mas isto não é tudo
quanto ao homem; e aqui tocamos no fundo da questão metafísica no que concerne
ao nosso estado presente. Os elementos do agregado humano, para cuja
condensação consideramos três principais, são independentes uns dos outros, e
revestem, na evolução do Universo, qualidades diversas e mesmo díspares, cujo
balanço tende a afastar uns dos outros; já vimos isto antes. Entretanto, o
agregado humano, se não é tão coerente quanto desejamos, é sólido; ele possui
assim internamente uma força de coesão à qual ele obedece.
Poderíamos dizer que
esta força de coesão seria a vontade divina; poderia ser, evidentemente, como
uma conseqüência dela; mas não a vontade do céu em si mesma. Lembremo-nos das
concepções geométricas indiscutíveis dos capítulos precedentes; veremos que, na
estase humana, a vontade do céu não se faz sentir, e que é precisamente por
isso que o homem possui uma liberdade relativa, e que o símbolo gráfico desta
estase pode ser um círculo e não uma revolução da hélice. Esta força não é a
vontade do céu; e tampouco é a força dos elementos constitutivos da Humanidade,
a qual é uma força pessoal, independente, e por conseguinte centrífuga, em
relação ao composto humano.
Esta força, que é uma emanação da vontade do céu, nos pertence
propriamente: esta força que mantém o agregado humano, e que faz nascer e anima o indivíduo, é a Personalidade.
Individualidade e
Personalidade: estados diferentes, que não estão no mesmo plano, que não
possuem a mesma organização, a mesma existência, e dos quais o segundo é
superior ao primeiro assim como a eternidade é superior ao tempo: termos os
quais, no entanto, o hábito tornou sinônimos, ou em todo caso análogos, e cuja
confusão criou, nos raciocínios científicos e na imaginação popular, os mais
detestáveis erros; quando virmos que a pessoa é a fonte de todos os indivíduos
sucessivos que representaram a força de coesão de que falamos, compreenderemos
como se harmonizam e se arranjam as proposições e os sistemas completos, que
parecem adversos, devido a uma falta de definição, ou a uma confusão de
objetos.
A individualidade é, na
aparência, a personalidade considerada num ciclo; na realidade, ela não é
sequer isto; pois a personalidade existe inteira independente do indivíduo, e
não é afetada nem pelo seu nascimento, nem pela sua morte, nem por nenhuma
mudança no interior do ciclo. A individualidade é exatamente a resultante de um
esforço da personalidade sobre um composto, o composto humano por exemplo. Em
conseqüência, a individualidade é estritamente ligada ao composto, e se
transforma com ele; a personalidade subsiste sempre igual a si mesma.
Assim, o indivíduo
humano, que é o resultado das influências fisiológicas e psicológicas dos
elementos do composto humano uns sobre os outros, aparece, desenvolve-se e
desaparece junto com o composto do qual ele é a expressão. A personalidade, na
medida em que se exerce sobre este composto, é chamada de personalidade humana;
mas ela não passa de um avatar, uma medida temporária de seu valor; ela
aplica-se hoje ao composto humano, ontem ao composto que o precedeu, amanhã ao
composto que o seguirá; e ela é sempre igual a si mesma, pois a natureza e as
determinações de uma força são independentes de seu ponto de aplicação. O
indivíduo é assim protéico e contingente; a personalidade é imortal: e ela
contém a indefinida sucessão dos indivíduos.
Vemos assim claramente
do que se compõe a “personalidade humana”, parcela da personalidade universal.
Ela se compõe de um agregado humano, que constitui o indivíduo; ela se compõe
também dos movimentos gerados entre si pela aproximação dos elementos do
indivíduo; ela se compõe enfim dos movimentos que a personalidade imprime, em
seu esforço de coesão sobre o indivíduo.
Podemos, por uma
analogia aceitável, inferir que, desta trindade humana, o primeiro termo
corresponde ao corpo, o segundo à alma, o terceiro ao Espírito, não em sua
essência, mas em sua manifestação. Mas não se deve, sob pena de erro, levar
muito longe as conseqüências desta analogia, feita sobretudo com o objetivo de
simplificação, nem criar novas categorias.
Assim fica esclarecida,
provada e vingada de todas as injúrias a lei búdica e pitagórica dos
Renascimentos, que muitos de seus adeptos interpretam mediocremente. Não se
deve aplicá-la aos indivíduos, pois ela é contrária à sua condição; é preciso
colocá-la para a personalidade, a qual, uma vez desaparecido um indivíduo (ou
um campo de aplicação e de esforço), toma outro indivíduo, ou seja que um
indivíduo morto renasce em outro indivíduo. Notemos que a escolha do indivíduo
é tal que satisfaça sempre as quatro leis primordiais de atividade, liberdade,
harmonia e bem, de modo que a metempsicose animal aparece, aqui também, como um
ridículo contra-senso e uma verdadeira barbaridade. E assim a personalidade –
que em um dado momento foi, é ou será a personalidade humana, segundo o momento
dos ciclos que for considerado – irá de existência em existência até a “reintegração
na existência suprema, em Deus”. Em nenhuma
outra parte, melhor do que aqui, poderia ficar demonstrado como, uma vez
acordadas as definições, só existe uma maneira de expressar a verdade; em
nenhuma outra parte ficaria melhor colocada esta frase que sublinho de bom
grado, de um ocultista que foi exclusivamente ocidental, meu caro amigo e irmão
Stalislas de Guaita.
É nesta imutabilidade da
pessoa que fica satisfeito nosso vago desejo do infinito; e é a ela que se deve
confiar a bem mais precisa afeição que temos por nós mesmos, através dos nossos
semelhantes: ela nos bastará, se soubermos sublimar estas afeições, e nos
separar das aspirações inferiores, que são por demais pesadas para nos seguir
na ascensão indefinida da hélice evolutiva. É ela que está presente no
cristianismo, a imortalidade da alma. É ela que é, a um tempo, o testemunho e a
garantia de nossa eternidade.
Assim como esta
distinção, tão profunda e necessária, e que só parece sutil por ter estado
tanto tempo esquecida, nos esclarece a lei dos Renascimentos, da qual podemos
ser os fiéis dentro de qualquer culto tradicional, também ela nos esclarecerá o
fenômeno racional da morte humana, e a causa do trágico sofrimento e do horror
que ela nos inspira.
Já demonstramos
amplamente como toda morte (e a morte
humana não é exceção) é uma passagem benéfica de um estado qualquer a um estado
superior. Muitos pensadores profundos desejaram esta morte como o único meio de
seu aperfeiçoamento. Mas toda a Humanidade, e mesmo estes pensadores,
revoltam-se com todo seu ser no momento da passagem. E, quando vemos morrer
diante de nós um dos nossos, malgrado todos os raciocínios metafísicos que
possamos fazer, somo tomados de horror e tristeza; e choramos tanto pelo
desaparecido quanto por nós, que no entanto o seguiremos. Como explicar esta
impressão universal, que seria uma demência, se outros fatores, além dos que
assinalamos, não entrassem em jogo?
É precisamente porque
somos afetados, nesta passagem, pelos elementos que ela toca e afeta da maneira
mais considerável. E consideremos psiquicamente o papel da morte humana na
evolução de nossa personalidade.
O corpo – ou seja a
forma, a forma característica da espécie – não tem mais razão de ser, e com
efeito desaparece, mais ou menos rapidamente, para esposar outros contornos,
para tornar-se uma outra forma, que nos é indiferente, assim como nos é
indiferente uma forma humana qualquer não animada. Não é aí que nasce o transe
e a causa da dor.
A personalidade – já
vimos – subsiste: e ela subsiste, aumentada e aperfeiçoada através das
existências que ela percorreu e dos indivíduos que ela animou; ela cresceu por
seu próprio esforço, que a individualidade na qual ela se esforçou lhe proporciona
no momento da dissociação. E esta bagagem que a personalidade leva consigo para
os outros ciclos, é a herança sagrada de nossas idéias, de nossas concepções,
de nossos trabalhos e nossos sofrimentos. E, como a personalidade sobe um
degrau para individualizar-se novamente, não é aí, também, que reside a
tristeza.
Mas nós demonstramos que
o composto humano compreende ainda os movimentos causados entre si pela
colocação em cena dos seus elementos constitutivos, e da soma de seus elementos
em face de sua personalidade.
Estão aí – não suas
idéias, que são as filhas de sua personalidade e da vontade do céu – suas
impressões, seus afetos, numa palavra, os sentimentos do homem. Serão levados com a personalidade? Não, porque são
do homem. Nós os encontraremos algum dia? Sentiremos algo semelhante algum dia?
Não. Seria preciso, para tanto, reencontrar todos os elementos constitutivos
destas impressões, ou seja os elementos do composto humano, associados da mesma
forma e com os mesmos coeficientes; vale dizer que seria preciso reencontrar,
em um outro ciclo, as características do ciclo humano. Eis o que é impossível.
Alguns elementos humanos poderão se encontrar, mas não todos, e não no mesmo
valor; eles não influirão assim da mesma forma uns sobre os outros; e a personalidade
não se exercerá sobre eles com os mesmos resultados. Os “sentimentos do
homem” são assim específicos do homem e
desaparecem com ele. E, enquanto que seu corpo retorna à matéria para entrar
novamente na corrente das formas, enquanto seu espírito inalterável conduz a
personalidade em sua ascensão, sua alma, que é a mais tênue das matérias – mas
que é matéria, no próprio dizer dos príncipes da Igreja católica[47] – sua alma dissolve-se no mundo psíquico, no éter
das vibrações, no domínio das forças errantes, que conhecemos tão mal, mas cuja
energia sabemos ser literalmente astral. Isto, que era a característica anímica
do homem, não reencontraremos jamais.
Razoavelmente, não
poderíamos lamentar este fato, pois sua desaparição é imediatamente compensada
por um elemento de essência análoga e de qualidade superior. Mas,
impulsivamente, preferimos o que temos e conhecemos ao que ignoramos; e estamos
ligados a este feixe de impressões e de sentimentos tanto mais na medida em que
são característicos de nosso estado de homens. Esta sensibilidade
exclusivamente humana, cordão afetivo pelo qual estamos ligados uns aos outros,
é o que temos de mais caro. E é isto, apenas isto que se funde, sem retorno
possível à individualização, no universal.
E notemos que este sofrimento
é tanto mais grave na medida em que o lugar do sofrimento pela perda deste
elemento está neste mesmo elemento. Não é nem com nossa sensualidade, nem com
nossa razão, é com nossa sensibilidade que deploramos a desaparição da soma
sentimental que era representada pelo homem que morreu junto a nós. E isto é
tão mais verdadeiro na medida em que nossas maiores lamentações se dirigem, não
ao homem de gênio, que nos cativava pelo cérebro, nem aos nossos parentes, que
nos estavam ligados pelo sangue, mas àqueles cujas vidas foram paralelas à
nossa, cujas ações foram vizinhas de nossas ações, e cuja sensibilidade, por
conseguinte, penetrava a nossa, e nela determinava a maior parte dos
movimentos.
Desta dor irracional mas
natural, que é o altruísmo humano, vale dizer o egoísmo generalizado, bem
poucos podem se dizer imunes: pois a própria razão se diz impotente. E os
anseios de nossa sensibilidade não podem ser vencidos sequer pelo freio da
vontade mais poderosa. Mas a coisa ainda não está aí. Contentemo-nos de haver
dissecado a morte, e de tê-la dissecado de modo exato, até os próprios
sentimentos que ela provoca em nós.
Entretanto, após
havermos dito o que é o nascimento e o que é a vida humana, não deixemos assim
o estudo da última condição do indivíduo. Pois, como dissemos, a personalidade
eterna gira sobre a hélice evolutiva acrescida, em seus modos, da soma
sublimada das idéias conhecidas e das impressões percebidas. E assim, mesmo no
que concerne ao estado humano sensível, este não perece por inteiro, tanto
quanto os estados que o precederam. Nossa personalidade, individualizada
humanamente, com seus movimentos próprios, é a herança, da qual somos
inconscientes, de ciclos anteriores. Como não temos memória deles, não os
podemos negar. Temos um claro apetite pelo porvir: temos lembranças obscuras,
como brilhos velados, do passado: este apetite e estas vagas lembranças são
próprios do nosso estado humano. É lógico que, subindo através dos ciclos, o
conhecimento do futuro e a memória do passado iluminem nossa inteligência. E
podemos conceber agora como axiomas estas verdades profundas, cuja concepção
temos que atribuir hoje à síntese analógica.
Saibamos então que, não
apenas para nossa evolução, mas para a formação definitiva da nossa entidade, a
passagem pela estase humana nos é proveitosa, e que o melhor nos fica, através
destes renascimentos, cuja lei antiga corroboramos. Saibamos que nada do que
fazemos, dizemos, pensamos, será perdido de modo absoluto. Saibamos que, mesmo
esta sensibilidade, que nos faz considerar como o pior dos males nossa partida
da estase terrestre, encontrará, ao final, sua plena satisfação. Pedimos
perdão, ao término deste estudo tão rigoroso, por este retorno voluntário ao
domínio sentimental. Não tivemos outro objetivo do que provar a excelência da
lógica tradicional, e a previdente onipotência da Vontade do céu.
Uma vez que o objetivo
da Evolução é a unidade, todos os sentimentos suscitados pelas belezas físicas,
todas as idéias suscitadas pelas belezas sentimentais, inscritas na série das
modificações, tendem ao lugar metafísico aonde todas as belezas tornam-se
esplendor, e todas as idéias, tornadas Verdade, desaparecem, conscientes, na
Perfeição.
Assim, as
personalidades, que, através de tais individuações, aproximaram-se no decurso
dos ciclos, aproximam-se a cada instante desde o princípio: estas uniões
terrestres, como quer que as chamemos, que acreditamos não serem dissolvidas
com a morte, juntam-se cada vez mais
através das modificações, à medida em que nossos elementos se aperfeiçoam;
de tal modo que – e embora nossos laços humanos nos pareçam estreitos – estamos
agora mais afastados uns dos outros do que jamais o seremos nos ciclos futuros.
Nossa seca e severa lógica nos conduz assim a um resultado inevitável, que
satisfaz a sentimentalidade, desembaraçada, bem entendido, de seu egoísmo
nativo, melhor do que todos os sonhos e mistificações. As afinidades que
constatamos no meio humano são o resumo dos esforços de outros ciclos que
precederam ao nosso; elas são, também, a preparação e a promessa de laços
futuros mais estreitos e desinteressados entre aqueles mesmos que os formaram,
e deles fizeram os modos de sua personalidade. Assim as idéias puras, aqueles
que as conceberam, aqueles que as provocaram, e que se deliciaram com elas,
todos, sublimados e levados pela corrente da Evolução benfazeja, subimos, eternamente
reunidos, para o Universal[48].
Terminamos aqui este
resumo da Via Metafísica, que foi seguida e guardada pela Tradição
extremo-oriental, que é – a menos de novas descobertas – a única Tradição
conservada até os nossos dias sem interpolação, supressão ou obnubilação.
Teríamos sido mais sucintos, se não fosse o temor de obscurecer a compreensão
destas matérias delicadas. Em outros estudos veremos, com a filosofia de Lao Tsé,
a Via Racional, e, com a filosofia de Confúcio, a Via Social, todas saídas
direta e estreitamente da mesma Tradição.
Mas gostaríamos de
deixar, nestas últimas linhas, um corolário prático da perspectiva metafísica
que esboçamos. Gostaríamos de extrair deste ensinamento um método conseqüente e
adequado de trabalho para os que tiveram a curiosidade, não apenas de ler as
linhas precedentes, mas de começar o trabalho que elas preconizam e deixam em
aberto.
Este método de trabalho
deduz-se logicamente dos princípios que estabelecemos: vamos colocá-lo em
rápidas palavras.
O destino da atividade
do homem aparece na atividade que lhe dá a modificação cíclica da qual a
Humanidade atual faz parte. Não somos os mestres desta atividade, nem de sua
finalidade, nem mesmo de seus meios. Ora, para obedecer à vontade do céu,
devemos conformar nosso movimento ao seu, e assim, como diz expressamente
Tsheou Kong, fazer calar os desejos humanos que se contrapõem ao bem resultante
da atividade. Este movimento pessoal e cerebral do ser humano não pode
consistir em nada melhor do que no estudo da atividade do céu, nosso modelo,
estudo que nos fará participar, na medida do possível, desta atividade.
A atividade do céu faz
com que tudo se modifique e se transforme; o estudo jamais poderá ser completo;
ele não poderá ser exato, dificilmente poderá ser expresso, mesmo que tenha
sido por um instante. O estudo do céu jamais será terminado; ele nem ao menos
começou. E não devemos temer consagrar a ele todos os movimentos de nossa razão.
Como deve ser feito este
estudo? Ele deve ser feito com um objetivo de atividade, em paralelo e sob a
atividade do céu; este é o corolário da grande fórmula simbólica; vale dizer
com todos os princípios, toda a liberdade, toda a harmonia, todo o bem. Com todos
os princípios, ou seja, apoiando-se sobre o princípio da atividade do céu e
sobre aqueles que decorrem dele; com toda a liberdade, ou seja, despojando-se
de todas as cadeias da paixão; com toda a harmonia, ou seja deduzindo
logicamente e normalmente todas as conseqüências de todos os princípios; com
todo o bem, ou seja seguindo a regra da razão perfeita que nos vem do céu.
Nestas condições, o trabalho do homem esclarecido lhe será favorável. De resto,
não existem, neste estudo, erros dos quais possamos ser inteiramente culpados
diante do céu; e as responsabilidades que poderíamos ter sobre eles remontarão
a outros momentos do que o momento atual; elas não poderão nos ser imputadas,
se não vierem de nossa vontade imediata, ou seja se, ao estudarmos, observarmos
os princípios segundo os quais o céu se move, e se elas vierem apenas da
imperfeição relativa de nossa modificação presente.
A esta altura, toda
concepção, mesmo falsa, mesmo tola, é um mérito, e uma homenagem prestada.
Idéias insuficientes, termos detestáveis, eis do que são feitos nossos estudos,
devido à nossa natureza e à mediocridade de nossos meios. Isto significa que
devemos renunciar a eles, e nos contentarmos com a fé das crianças e das
pessoas simples? Certamente não: a inteligência separada do homem, da qual ele
não pode orgulhar-se se não se servir dela, o acusaria de crime de imobilidade,
condenando-o por sua indiferença. Ou então poderia ser que, buscando a verdade,
temeríamos não encontrar nada além do erro, e ligando-nos a ele, perder a
confiança no céu e no destino que ele nos conferiu. A visão, sem tremores,
daquilo que está acima de nós, é o dever da modificação de nosso espírito, para
que ele atinja sua transformação definitiva.
Para este centro, que é
Um e Tudo, não existem erros; diante da Essência, não existe divergência
apreciável entre duas afirmações opostas pronunciadas por nós, nem entre aquilo
a que chamamos verdadeiro ou falso. O verdadeiro e o falso humanos estão tão
longe da Verdade que, considerando-os em relação a esta, eles confundem-se no
infinito numa única e mesma inexatidão, que nos é meritório cometê-la, se o
fizermos com o coração puro e ardente, segundo a vontade do Céu.
Seja qual for o caminho
tomado, caminhamos sempre para o Centro, inevitavelmente. Todo passo dado, em
qualquer direção, pelo estudo, nos aproxima dele. Os conceitos, naturalmente
falsos, que emitimos hoje, vibram por toda nossa personalidade, além dos
limites que nossos sentidos impõem ao mundo atual. Ao subirmos, de espira em
espira, através das modificações que nos aguardam, eles se despem do erro, ao
mesmo tempo em que rejeitam os termos ridículos com os quais os havíamos
vestido.
Todo trabalho, todo
pensamento, todo sonho são propícios. Não devemos temer passos em falso nem
perturbações, dos quais só somos responsáveis por causa de nossa natureza e
nosso destino atuais. E não é senão acumulando erros que o homem esclarecido
chegará um dia à altura da verdade.
IX
OS
INSTRUMENTOS DE ADIVINHAÇÃO
Venho dar aqui alguns
textos e documentos extraídos do Yi Ching
e de diferentes comentários ou paráfrases filosóficas dos apoftegmas de Fo Hi e
de Wen Wang. Vimos que o Yi Ching abarca
todas as condições da existência humana, assim como todas as ciências
contingentes e o próprio estudo da metafísica e do subjetivo. O Yi Ching possui ainda um sentido divinatório. Juntamente com
o simbolismo político, é certamente esta parte do texto primordial a mais
popular.
Digamos desde já que é a
parte mais mal interpretada e mal compreendida. Pois os sábios e filósofos do
Extremo-Oriente jamais se interessaram por empirismos, e jamais conduziram seus
estudos favoritos à face divinatória do Yi Ching. Somente os monges ambulantes, denominados taosse, e que vivem no século – embora nem sempre no justo
meio – entre mendicantes e ilusionistas, fizeram deste estudo sua paixão, e
também seu ganha-pão. Abandonado aos espíritos medíocres, a tradição
divinatória do Yi Ching não tardou a
obscurecer-se, e podemos dizer que hoje em dia ela está completamente perdida.
Não seremos nós a ter a
ingênua audácia de tentar reconstituí-la; pois os textos do Livro são quase
ininteligíveis sem a Tradição Oral, no mínimo, e seu sentido é tão vago, que
deles é possível tirar todas as interpretações que se queira. E devemos
reconhecer que, depois de alguns séculos (podemos precisar melhor, dizendo em
torno de vinte e um séculos), a Tradição Oral faz falta.
Lao Tsé e Confúcio
conheceram a parte divinatória; Lao Tsé a desdenhou, como sendo um jogo
inferior. Confúcio a transmitiu aos seus discípulos; mas não encontramos mais
nenhum traço dela depois da destruição dos Livros e da execução dos Letrados,
ordenadas pelo Imperador Tshin Chi Hoang-ti (213 a.C.).
Nossa necessidade de
precisão nos leva a confessar que não encontramos em parte alguma explicações
escritas nem comentadores autorizados da adivinhação. Se eles existem, estão
ocultos no fundo dos santuários, ou guardam tão zelosamente seu depósito que
mesmo os iniciados extremo-orientais do mais alto grau sequer suspeitam de sua
existência.
Esta opinião era também
a de Philastre, de quem eu emprestei, por não poder fazer melhor, algumas
passagens de sua excelente tradução do Yi Ching, que já assinalei. Não se deve estranhar que, nessas condições,
apresentemos textos quase incompreensíveis e tabelas quase indecifráveis; é
entretanto útil que estes textos e estas tabelas não desapareçam inteiramente
da memória dos homens; talvez algum cabalista ou algum sábio, profundamente
versado nas ciências ocidentais, poderá encontrar aí pontos de semelhança e traços
comuns com a adivinhação, tal como a Grécia e a Idade Média nos transmitiram.
Em todo caso, não acreditamos que a luz se faça, pelos raios extremo-orientais,
aonde o próprio Philastre declarou estar perdido nas trevas.
Philastre, de fato (e é
esta a razão pela qual escolhemos suas traduções sempre que não precisamos
traduzir um texto em primeira mão), não era
apenas um emérito sociólogo, como raramente se vê em nossos diversos
Institutos. Ele passou uma grande parte de sua vida na China e na Indochina:
bom oficial de marinha, filósofo distinguido, ele aproveitou sua longa
permanência entre o povo amarelo para penetrar seu espírito, sua tradição e sua
sociedade. Ele chegou, graças à sua alta cultura e a uma força de assimilação
pouco comum, a vencer a desconfiança dos prudentes mandarins do Império, e
franquear os umbrais que são normalmente fechados, e que pouquíssimas vezes
abriram-se a homens de outras raças. Ele recolheu assim os mais preciosos
ensinamentos; e, ao mesmo tempo que recebeu algumas sérias vantagens, ele
recebeu instruções e cooperou com seus interlocutores de tal modo que sua
tradução da “Tradição Primordial” é o melhor monumento que se pode imaginar
erguer em honra dos filósofos chineses numa língua ocidental.
Estas vantagens não
vieram sem alguns deveres para com a raça que o acolheu, e para com os sábios
que elevaram assim seu espírito.
Estes deveres tomaram,
no Extremo-Oriente, uma forma particularmente expressa e coercitiva. Philastre
percebeu tarde demais, quando, após a morte do heróico Garnier no Tonkin, ele
aceitou a missão de tratar como agente plenipotenciário, em nome da França, com
o Império de Annam. As obrigações de seu coração estavam em contradição com seu
cargo; ele tentou em vão conciliá-los, e foi vítima de uma situação inextricável.
Por um espírito de veneração e obediência aos seus mestres, ele tentou concluir
um tratado que não lhes fosse desvantajoso. Assim, ele deu a impressão de
desconhecer os interesses de seu país e, ao mesmo tempo, malgrado seu, acabou
por trair os desejos mais secretos de sua consciência. Ele foi destituído de
suas funções, deixou o Extremo-Oriente sem o menor espírito de retorno, e teve
que se contentar, na França, com um posto pedagógico ínfimo, onde acabou por
falecer, pobre, ignorado, não tendo retirado de seus trabalhos e de sua ciência
nada além da constância de sua resignação.
Eu quis dar relevo a
estes traços de uma existência verdadeiramente trágica, a fim de ressaltar este
ensinamento: engajar-se num impasse intelectual leva à ruína social do
indivíduo.
OS NÚMEROS
A.
O céu é um,
três, cinco, sete, nove. A terra é dois, quatro, seis, oito, dez. Estes são os
números do céu e da terra. A posição dos números 1 e 6 é embaixo; 2 e 7, no
alto; 3 e 8, à esquerda; 4 e 9, à direita; 5 e 10, no centro.
B.
O número cinco
indica a extensão daquilo que engendra; o número dez, a extensão do que é
engendrado. Um, dois, três, quatro, representam a situação dos quatro símbolos:
seis, sete, oito, nove, são os números que lhes correspondem.
C.
Existem cinco
números celestes e cinco números terrestres; em cada série os números concordam
dois a dois. A soma do primeiro é vinte e cinco; a soma do segundo é trinta;
seu total é cinqüenta e cinco. É o que cumprem as estases de expansão e de
contração. Os números celestes são ímpares; os números terrestres, pares. 1 e
2, 3 e 4, 5 e 6, 7 e 8, 9 e 10, formam grupos concordantes. Do mesmo modo nas
cinco situações, dois números correspondentes concordam, ou seja: 1 e 6, 2 e 7,
3 e 8, 4 e 9, 5 e 10. A unidade se modifica e engendra a água; 6 a transforma;
2 engendra o fogo; 7 o transforma; 3 engendra a madeira; 8 a transforma; 4
engendra o ouro; 9 o transforma; 5 modifica a terra; 10 a transforma. Assim os
cinco agentes e os cinco planetas sofrem os fenômenos de contração e de retomada,
de ir e de voltar.
D.
Segundo o centro
secreto da tábua do rio, o número cinco multiplica o número terrestre, e
dele obtém cinqüenta. Mas quando se consulta a sorte por meio deste número, seu
emprego é limitado a quarenta e nove.
A ADIVINHAÇÃO PELO EMPREGO DA ERVA SHI
Suspenda um entre o dedo
mínimo da mão esquerda e o dedo seguinte; separe o que resta após haver contado
de quatro em quatro. Reuna nos dois intervalos do dedo médio da mão esquerda.
Assim que a operação estiver terminada, deixe o todo; reuna e separe como
depois da primeira vez, de modo a fazer agrupamentos nas duas mãos, e recomece
a mesma operação.
E.
As sortes
relativas à positividade são duzentas e dezesseis, as relativas à negatividade
são cento e quarenta e quatro: o total é trezentos e sessenta, equivalente aos
dias de uma revolução.
F.
A tábua
do rio tem quatro faces: a grande positividade
é 1, seguida do número 9; a pequena positividade é 3, seguida de 6; a pequena
negatividade é 2, seguida do 8. A regra para contar e eliminar as hastes (as
hastes da erva shi, que representam os
traços dos hexagramas na adivinhação) consiste em contar junto o que resta após
três modificações, em descartar a unidade desde o início, em contar cada grupo
de 8 como uma dualidade. A unidade é envolvida circularmente por 3; a dualidade
é envolvida em quadrado por 4; 3 emprega a totalidade; 4 emprega a divisão.
Reunindo tudo, isto dá os números 6, 7, 8, 9, e depois de três eliminações tudo
se acha ainda reunido. Restam de sobra três unidades que, repetidas três vezes,
dão 9. As hastes são então 4 x 9 = 36, número que constitui a extrema
positividade =1. 36 = 3 + 6 = 9; 9 + 1 =
10.
Se, ao contrário, restam
três dualidades, isto faz 6, e o número de hastes será de 4 x 6 = 24, que
constitui a extrema negatividade – 4. 24
= 2 + 4 = 6; 6 + 4 = 10. Este é o
mistério da transformação; isto tem o intuito apenas de mostrar a transformação
dos números.
Os hexagramas contém 192
traços positivos e outros tantos negativos. Ora, 192 x 36 = 6.912, e 192 x 24 = 4.608, num total de 11.520 fórmulas de adivinhações.
Fazer as quatro operações: divisão em dois grupos:: suspensão de uma haste:
eliminação por quatro: recolher o resto. Três modificações determinam uma
fórmula; dezoito determinam um hexagrama.
Estando os seis traços completos,
e considerando uns como movimento e outros como repouso, resulta disto que um
único hexagrama pode se tornar sucessivamente qualquer dos sessenta e quatro
traços, e servir para determinar presságios. Estas modificações apresentam-se
de 4.096 modos diferentes, pois 4.096 = 642.
Todas estas questões
estavam completas e desenvolvidas nas instruções de Tcheou Li, hoje perdidas,
aos funcionários encarregados da adivinhação; atualmente, é impossível
controlar[49].
AS PROVAS
A.
O homem
pergunta; é pelos signos que ele recebe a resposta; ele recebe, como por um
eco, a ordem que prescreve seu destino. Não há para ele nada distante, nada
obscuro, nada escondido. Ele tem conhecimento e consciência dos seres que
chegam.
B.
Após haver
contado de três em três para a modificação, conta-se ainda de cinco em cinco:
buscam-se os números 7, 8, 9, 10, para determinar o símbolo do movimento e do
repouso. É preciso perscrutar as analogias e as diferenças nas palavras, a fim
de conhecer as distinções entre os membros das associações; depois vêm a prova
por três e por cinco, a fim de comparar os seres e as palavras (estes dois
textos são extraídos das obras de Wei Fei).
OS SIGNOS
A.
Yi comporta a
extrema origem, é aí que está o que engendra as duas regras: os dois engendram
os quatro símbolos, que engendram os oito trigramas. Assim a ordem é sempre bem
traçada, quando se trata de adivinhação.
B.
Os instrumentos
de adivinhação são as hastes da erva e a tartaruga; por elas são determinados
os presságios felizes ou infelizes do universo. O céu mostra os símbolos, o
sábio deduz deles os presságios. Do rio sai a tábua, do lago sai o livro, e o
santo formula suas regras. As fórmulas anexas aos símbolos servem para
determinar a advertência
C.
Os presságios
felizes ou infelizes são sempre o resultado do destino traçado pelas fórmulas;
é pelo movimento das modificações que os presságios se tornam evidentes. Fo Hi
viu os símbolos no céu, e as fórmulas sobre a terra. Quando dois olhos trocam
olhares, os seres existem.
D.
Fo Hi fez nós de
corda para a caça e a pesca. Ele tirou isto do trigrama Ii. Shen Nong cortou a madeira para fazer uma carroça;
ele tirou isto do trigrama Yi. Ele
constituiu o mercado para que os homens de todo o universo aí fizessem suas
trocas; ele tirou isto do trigrama Shi Ho.
Hoan Ghi, Yao e Shouen Shi governaram; eles dirigiram o povo para que este não
se tornasse ocioso; eles o esclareceram a fim de que o povo se conformasse ao
bem; eles tiraram isto dos dois trigramas da Perfeição. Eles cortaram uma
árvore para fazer uma piroga, eles talharam a madeira para fazer um leme; eles
tiraram isto do trigrama Hoan. Eles
amarraram os bois para o transporte; eles montaram os cavalos; eles tiraram
isto do trigrama Souei. Eles reforçaram
as portas para acolher hóspedes perigosos; eles tiraram isto do trigrama Yu. Eles cortaram uma árvore para fazer uma mão de
pilão e cavaram a terra para fazer um pilão; eles tiraram isto do trigrama Siae
Kio. Eles cortaram e talharam a madeira para
fazer um arco e flechas; eles tiraram isto do trigrama Kouei. Eles ergueram colunas e inclinaram as formas, para
construir habitações; eles tiraram isto do trigrama Tatsheng. Eles utilizaram círculos interiores e exteriores;
eles tiraram isto do trigrama Tae Kuo.
Eles inventaram os caracteres da escrita e as tabuinhas; eles tiraram isto do
trigrama Koue[50].
AS CONCORDÂNCIAS
Outrora, o homem santo
percebeu secretamente as causas misteriosas da luz, e criou a adivinhação. Ele
triplicou o céu, duplicou a terra, e apoiou-se nos números; ele esgotou a razão
de ser, e abarcou completamente a natureza do homem, a fim de chegar ao
destino. O céu e a terra determinam as situações; a montanha e o pântano
misturam livremente seus éteres; o raio e o vento entram em contato, a água e o
fogo não se destróem. Conhecer o que se passou é conforme ao caminho comum;
conhecer o que virá está acima do caminho comum.
O raio estremece; o
vento dispersa; a chuva embebe; o sol vaporiza; o obstáculo detém; a satisfação
diverte; o céu rege; a passividade abraça.
O ser supremo resulta do
movimento; ele se iguala no universo; ele se vê na transformação; ele age na
passividade; ele fala na satisfação; ele combate na atividade; ele se esforça
no deslocamento; ele termina a palavra na detenção final (ver Anexo 1).
O movimento, que é o
Dragão, eis a causa misteriosa de todos os seres.
Khien, atividade; khouen, passividade; tshen, movimento; souen, entrada; khan, queda; li,
vibração; ken, detenção; touei, satisfação.
Khien, cavalo; khouen, jumento; tshen,
Dragão; souen, galinha; ken, porco; li,
faisão; ken, raposa; touei, carneiro. Tomamos os exemplos distantes. Khien, cabeça; khouen,
ventre; tshen, pés; souen, coxa; khan,
orelha; li, olho; ken, mão; touei,
boca. Tomamos os exemplos do corpo. Khien,
o céu é o pai; khouen, a terra é a mãe; tshen, princípio masculino; souen, princípio feminino; khan, esposo; li,
esposa; ken, filho; touei, filha.
Khien: é o sol, o que é
redondo, a pedra preciosa, o príncipe, o ouro, o frio, o gelo, o vermelho, o
cavalo rápido, o cavalo branco, a árvore seca, o que é reto, a vestimenta, a
palavra.
Khouen: é a terra, o
tecido, o machado, a economia, a igualdade, a mãe do boi, o carro, a aparência,
o povo, o cabo do utensílio, o negro, o que é quadrado, a obscuridade, o saco,
o cachimbo, a mosca.
Tshen: é o dragão, o
raio, o amarelo, a influência causadora, o grande caminho, o filho mais velho,
o machado, o bambu, o canto harmonioso, a crina, o retorno à vida, a repetição,
o corvo.
Souen: é a madeira, o
vento, a filha mais velha, a trama, o branco, o trabalho, o comprimento, a
elevação, o ramo, o odor, a frente ampla, o benefício, a árvore, a busca.
Khan: é a água, o
segredo escondido, o teto, a corda do arco, a doença, a circulação do sangue, o
vermelho pálido, o ardor, o pé, o baixeiro, a calamidade, a lua, o ladrão, a
dureza do coração, o antro, a música, o cacto, a raposa.
Li: é o fogo, o sol, o
raio, a filha mais nova, a posteridade, a arma, a tartaruga, o ventre, o
réptil, o fruto, o cálice da flor, a vaca.
Ken: é a montanha, o
atalho, a pedra, a porta, o religioso, o dedo, o sorriso, a solidez, o nariz, o
tigre, o lobo.
Touei: é o pântano, a
criança, o adivinho, a língua, a ruptura, a dureza, a concubina, o carneiro, a
permanência[51].
Nota: podemos
inferir dos textos precedentes:
1)
que a
adivinhação foi, de fato, determinada por Wen Wang e Tsheou Kong;
2)
que as regras da
adivinhação estão na ciência dos números e que a numeração se faz com as hastes
da erva shi;
3)
que a
manipulação das hastes da erva shi
conduz ao exame de qualquer um dos sessenta e quatro hexagramas;
4)
que este exame
deve ser feito tomando como diretriz mental uma das posições hexagramáticas,
segundo a fórmula da pergunta, e que assim existem 64 maneiras de fazer o exame
do hexagrama indicado pela manipulação, e que existem 4.096 maneiras de
responder a uma questão dada;
5)
enfim, que,
segundo a pergunta feita, o sentido de cada um dos trigramas que compõem os
hexagramas, é indicado nas concordâncias.
Podemos, analogamente,
encontrar outras coisas nos textos que precedem. Mas o estado da Tradição,
apenas do ponto de vista divinatório, não nos permite apreciar senão o que
podemos encontrar nestes textos, que é verdadeiramente aquilo que queriam que
fosse encontrado aqueles que os escreveram.
[1] Matgioi refere-se frequentemente aos povos orientais
simplesmente como “amarelos”, sem precisar suas nacionalidades. (N.T.)
[2] Astrônomo francês (1842-1925), um dos fundadores da
Sociedade Astronômica da França (1887). Converteu-se ao espiritismo em 1861,
tornando-se grande amigo de Allan Kardec. (N.T.)
[3] Matgioi utiliza o termo “sábio” no sentido da
expressão chinesa “homem dotado” ou “homem superior”, conforme esta se encontra
no I Ching. (N.T.)
[4] Convém frisar desde já que Fo Hi não é um homem nem um
mito, mas a designação de uma agregado intelectual, como o foi aliás Hermes.
[5] A palavra Céu e a tradução do caracter metafísico Tien, com o qual a escrita ideográfica
representa a idéia total que o Ocidente chama de Deus.
[6] Os chineses tem isto em comum com os hindus, os
egípcios e todos os povos que, detentores de uma Tradição, quiseram conservar
dela um cronologia séria.
[7] Georges Cuvier (1769-1835), filósofo, naturalista,
anatomista e zoólogo francês. (N.T.)
[8] A Cordilheira Pamir, situada na Ásia
Central, é formada
pela união das cordilheiras Tian Shan, Karakorum, Kunlun, e Hindu
Kush. Os Pamir
estão entre as montanhas mais altas do mundo. Também são conhecidas pelo
nome chinês Congling (N.T.).
[9] Embora esta seja um pouco a opinião de
Paul-Louis-Félix Philastre (1837-1902), aproveitamos a ocasião para recomendar
sua tradução do Yi Ching, que é
única, devido ao conhecimento que o autor possuía da escrita e do caráter dos
chineses. A causa profunda que deu a ele uma imensa erudição foi a mesma que
destruiu sua carreira diplomática.
[10] A inscrição de Yu contém coisa bem diferente, se
soubermos lê-la como convém, em três planos sucessivos. Voltaremos a isto mais
tarde, num artigo especial em que analisaremos, fora desta observação sobre o
dilúvio bíblico, as instruções do imperador Yu aos seus conselheiros e
discípulos, nos três mundos.
[11] Khien e Khouen. Estes dois termos genéricos são
empregados para designar a idéia de Deus; continuamos empregando para ela a
Perfeição, termo inferior. Mas não queremos carregar a metafísica
transcendental com uma nova terminologia, lembrando que as terminologias são
objeto de discussões, erros e descrédito; aqueles que as criam, pela necessidade
aparente de suas demonstrações, lotam com elas seus textos de forma
incompreensível, e agarram-se a elas com tanto amor que muitas vezes estas
terminologias, áridas e inúteis, acabam por ser a única novidade do sistema
proposto.
[12] Pois, se a verdade é perfeita e nós a possuímos, nós
então participamos da perfeição, e somos deuses; esta suposição parece
ridícula; ao contrário, se somos imperfeitos e possuímos a verdade, então é a
verdade que não é perfeita; e, desta vez, a suposição é verdadeiramente
ridícula.
[13] Melhor seria: “dualismo anti-metafísico”, pois não há
dualidade na metafísica (N.T.)
[14] Matgioi utiliza o termo “evolução” no sentido de
“transmutação”, sem absolutamente nenhuma ligação com o “evolucionismo” de
Darwin e sucessores. (N.T.)
[15] O caracter Khien
que representa ideogramaticamente a Perfeição traduz-se, na linguagem, pelo
termo: Atividade do Céu.
[16] E na prática, os amarelos calculam sua idade
acrescentando dez meses ao dia do seu nascimento.
[17] O grou simbólico e lendário.
[18] Não confundir com o Teosofismo, doutrina inventada e
difundida por Helena Blavatsky e seguidores a partir do século XIX.
[19] Recomendo aos curiosos de filologia o próprio texto do Yi Ching, na tradução de Philastre (Annales du Musée Guimet) e os gráficos e
gramática do Pe. Couvreur, S.J., missionário em Tcheou-Li, impressos em
Hokien-Fu em 1884.
[20] A cada situação do Dragão, lembremo-nos da viagem da
Lenda.
[21] Yi Ching: cap. I, #8,
comentário de Tcheng Tsé.
[22] Cf. o estado edênico e a lenda do fruto proibido.
[23] Yi Ching,
cap. I, #14; comentário de Tsouhi.
[24] É o Nirvana,
inteligível, mas inacessível ao ser humano que conhecemos.
[25] Fique claro que o simbolismo do Dragão, tal como
explicado aqui, está fora do tempo e do espaço, acima dos indivíduos, e só pode
ser aplicado às sínteses. O próximo capítulo indicará o simbolismo de sua
marcha, em relação àquilo que no Ocidente é chamado de criação do Universo
visível.
[26] Podemos dar a esta proposição o valor psíquico que se
quiser.
[27] É preciso lembrar esta frase, pois ela é o começo de
toda a ciência divinatória do Yi Ching
entendida naturalmente do ponto de vista mágico [N.T.: ver Nota 3 a respeito do
sentido que Matgioi dá ao termo sábio e correlatos] , e não do ponto de vista
“horoscópico”, do qual os praticantes do Extremo-Oriente, assim como seus
confrades no Ocidente, extrair bons rendimentos.
[28] A criação, ou seja, vulgarmente, a saída a partir do
nada.
[29] Petição de princípios: raciocínio no qual se toma como
ponto de partida aquilo que deve ser demonstrado., ou seja, a verdade da
conclusão é assumida pela premissa.
[30] Nisto elas diferem do sentido ocidental atribuído à
palavra qualidade, que entretanto não pode ser substituída por nenhuma outra.
[31] Toda vez que estas expressões indicarem uma das partes
do tetragrama, elas serão grafadas em itálico.
[32] Trataremos disto no estudo sobre o confucionismo. Mas
vamos repetir aqui uma comparação grosseira, medíocre mesmo, mas muito clara. A
luz existe; nós a vemos; as trevas não existem: existe mais ou menos luz, mas
não existe obscuridade. Nas noites mais profundas, existe um termo de
comparação com as noites menos profundas. Este termo de comparação é
precisamente a luz que subsiste, difusa, mesmo na pior opacidade. Mas as trevas
absolutas não existem; elas são mesmo inconcebíveis, pois só poderiam existir
se não as víssemos, ou seja se elas escapassem ao único sentido que as poderia
conhecer; e isto é um contra-senso no domínio objetivo.
[33] Tsouhi, Temas de
dissertações.
[34] Ver os intuitivos ocidentais: “...e o mal que se dizia
vivo foi vencido” (Edgard Poe).
[35] Convém lembrar desde já que a doutrina de Lao Tsé é
extraída diretamente do Yi Ching e da
Tradição Primordial.
[36] A lei dos renascimentos é outra coisa, mas não queremos
afirmar agora que ela é real e lógica, com todas as conseqüências felizes que a
Humanidade pode esperar dela, tanto do ponto de vista do seu fim quanto do
ponto de vista da sua personalidade.
[37] Será fácil, mais adiante, demonstrar como o livre
arbítrio da espécie humana acompanha
estas leis gerais estabelecidas acima.
[38] Vemos assim que aqueles que tomam o círculo como símbolo da Evolução apenas
esqueceram-se da causa primeira.
[39] Georg Friedrich Bernhard Riemann (Breselenz, 1826 - Selasca, 1866) foi um matemático alemão que fez contribuições importantes
para a análise e a geometria diferencial, algumas das quais abriram caminho para o
desenvolvimento da relatividade geral, mais tarde. O seu nome está
ligado à função zeta, à integral de Riemann, ao lema
de Riemann, à dobra de Riemann e às superfícies de Riemann.
[40] Dizemos Humanidade
e não homem; nós estudamos aqui o homem coletivo. É o livre arbítrio da
espécie que, do homem coletivo, faz os indivíduos.
[41] É ela, assim, que pode ter como símbolo o círculo da vida, caracterizado pelo
Yin-Yang.
[42] Empregamos voluntariamente aqui a linguagem mais
concreta, a fim de tornar claro aos olhos de todos o que queremos dizer.
[43] Ver esta frase no capítulo sobre as “Leis da Evolução”.
[44] É preciso não perder de vista jamais que, se, tomado à
parte, o Yin-Yang pode ser
considerado como um círculo, ele é, na sucessão das modificações individuais,
um elemento da hélice: toda modificação individual é essencialmente um vortex de três dimensões; não há mais do
que uma estase humana; e jamais se passa duas vezes por ela pelo caminho já
percorrido. Isto é para cortar desde já qualquer tentativa de adaptação da
Tradição Primordial a certas teorias panteístas ou mesmo espiritualistas (no
sentido particular que dão a este termo alguns experimentadores ocidentais).
[45] Repetimos que só sabemos o valor essencial deste
elemento geométrico, porque não temos lembrança dos estados cíclicos pelos
quais já passamos, e que não podemos medir a altura metafísica que nos separa
hoje daquele de onde saímos.
[46] Vejamos um pequeno jogo algébrico. Representemos os
dados da seguinte maneira: morte=M; nascimento=N; o ciclo humano=H...; o ciclo
inferior ao ciclo humano=H-1; o ciclo superior ao ciclo humano=H+1. Isto pode
ser feito para qualquer ciclo. Coloquemos algebricamente numa equação as
proposições enunciadas acima, e teremos:
M.H = N(H+1) e N.H = M(H-1)
Desenvolvendo
o raciocínio, teremos:
M.H = N.H+N E N.H=M.H-M
Vamos
substituir M.H por seu valor, teremos:
M.H = M.H-M+N
Ou
seja,
M=N
Ou
seja, como todos os coeficientes e índices eliminam-se mutuamente, os fenômenos
de nascimento e morte, considerados em si mesmos e fora dos ciclos, são
perfeitamente iguais.Suponhamos ainda que X é igual ao valor desconhecido do
aperfeiçoamento obtido no decurso de uma modificação qualquer, e teremos:
M(H-1) + N.H + X = M.N + N(H+1)
ou
M.H – M + N.H + X = M.H + N.H + N
donde
X=M+N
Também
aqui os coeficientes se eliminam; e obtemos que X (o aperfeiçoamento) é devido
expressamente à soma de um nascimento e uma morte e à coincidência entre este
nascimento e esta morte. E, coisa estranha, percebemos que, mesmo
algebricamente, este X, do qual conhecemos a substância e o funcionamento, é
impossível de ser quantificado.
[47] Anima: materia prima (São Tomás de Aquino: cap.
75). Cf. também a bula do papa Clemente V sobre o mesmo tema.
[48] Lembremos que, neste estudo metafísico, tratamos da
estase humana, considerando-a à parte de todas as demais estases. Aquilo que
dissemos dela pode ser generalizado para qualquer outra estase particular, para
qualquer outro vortex individual Frisaremos apenas, uma vez mais, que o
indivíduo não passa senão uma vez pela mesma espécie, e que seu vortex não
passa da aplicação, ao seu indivíduo, da espira figurativa da evolução da
espécie. Quanto ao estudo das relações dos vortex entre si e das estases entre
si, a Tradição chinesa envia a outra parte de sua filosofia. De fato, a sucessão
das estases tem algo de regular e coordenado, que é do domínio da Razão. As
modificações que emanam do ser, a transformação que reintegra os seres, e o Nirvana, que é o coroamento e o fim das
séries, devem ser estudados de acordo com seus movimentos e suas influências
recíprocas. O próprio texto de Wen Wang afirma expressamente: “A modificação e
a transformação são a Via Racional da atividade”; nós o encontraremos na
exposição sobre a Filosofia da Via Racional, ou seja no sistema taoísta de Lao
Tsé.
[49] Os parágrafos A, C e E foram traduzidos das fórmulas
determinativas de Wen Wang e de Tscheou Kong; o parágrafo B, do comentário de
Tcheng Tsé; os parágrafos D e F, da obra de Tsou Hi, intitulada A Dissipação das Trevas.
[50] Os parágrafos B e D foram traduzidos das fórmulas de
Wen Wang e de Tsheou Kong; o parágrafo A, do Kimong de Tsou Hi; o parágrafo C, do comentário do mesmo autor.
[51] Todo este texto foi extraído do Capítulo VI dos “Dez golpes de asas” de Confúcio.
Grato!
ResponderExcluirMuito obrigado!
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