APRESENTAÇÃO
Albert Puyou, conde de Pouvourville, nasceu em Nancy
(França) em 1862. Participou de expedições francesas à China, aonde ocupou
diversas funções militares e a administrativas. Sua prolongada permanência no
Tonkin e em diversas províncias lhe permitiu penetrar no espírito chinês. Logo
ele encontrou um mestre taoísta que o preparou para receber a iniciação em uma
sociedade secreta chinesa, o que aconteceu logo em seguida, em outubro de 1890.
Albert de Pouvourville tomou o nome de Matgioi, que significa “olho do dia”.
Ele voltou ao Ocidente e dedicou-se a difundir, na medida do possível, os
ensinamentos taoístas. Em suas obras A Via
Metafísica e A Via Racional, ele
expôs as doutrinas taoístas, tanto do ponto de vista principial como em suas
aplicações diversas. Foi também autor de diversos ensaios sobre a China e sobre
as colônias francesas na Ásia. Faleceu em 1939.
Assim, não é de estranhar o modo como ele se refere aos
povos do Oriente, que na ocasião – a primeira edição de A Via Racional data de 1907 –
ainda se distinguiam dos ocidentais pela obstinada defesa de seu antigo
modo de vida e pela conservação de seus valores tradicionais, malgrado a
opressão exercida pelas potências coloniais da época. Esta condição opressiva
explica também, em parte, a aversão que o autor demonstra pelas instituições políticas,
religiosas e intelectuais européias da época em que o livro foi escrito.
I
LAO TSÉ
O orgulho individual é a
coisa, entre a raça amarela, mais desconhecida, e aos seus olhos, a mais
incompreensível. O respeito aos ancestrais mortos aos quais se está ligado, a
solidariedade entre os vivos, que são todos parcelas de um mesmo grande ser
social, distanciam os chineses de qualquer procura por particularização. Assim
manda o ensinamento tradicional, a que nenhum espírito escapa, e do qual todos
levam a marca, tanto mais forte e clara quanto mais trabalhada, e na medida
mesma em que a herança cultural torna mais sábia a pessoa. O orgulho coletivo
da raça é de uma braveza louvável, mas o orgulho particular de um indivíduo é
uma vaidade ridícula e repreensível. Do mesmo modo, na casta filosófica, que é
como que a cabeça deste grande corpo de letrados, busca-se menos a temerária
autoria de novos conceitos do que a incorruptível e pia guarda das concepções
primitivas e tradicionais.
Como veremos adiante,
esta disposição de espírito, obrigatória como um rito – a tal ponto que uma
tendência contrária pareceria criminosa e sacrílega – faz com que todos os
sistemas filosóficos, em qualquer plano da filosofia geral que se possa
imaginar, saiam do primeiro sistema filosófico que foi expresso, ou seja do Yi
Ching de Fo Hi e Wen Wang, que estudamos e
resumimos em nosso estudo A Via Metafísica.
Mas, e antes de tudo,
esta disposição de espírito faz com que todos os filósofos, todos os chefes de
escola, ao invés de se colocarem como iniciadores, ao contrário de tentarem
singularizar-se, declaram-se modestamente como “irmãos caçulas” dos grandes
mestres do passado, e como os respeitosos continuadores dos seus ensinamentos.
Assim, em lugar de
pretender apresentar uma doutrina nova, moralizando as antigas, em meio a
turbulências e negações, eles declaram trazer uma adaptação adequada à época, e
se defendem da menor inovação. É por isso que, conforme o espírito dos mais
antigos dogmas, eles aparecem todos como encarnações intelectuais sucessivas de
uma mesma doutrina, a qual, não tendo jamais variado desde o início dos Tempos,
constitui natural e simplesmente a Verdade.
A modéstia desta
atitude, uma tal ausência de pretensões, transporta-se na vida cotidiana e na
função social dos filósofos. Em geral simples agentes de um Estado
governamental e administrativo, fora do qual estabeleceram suas teorias e
especulações, viveram e morreram tranquila e simplesmente, num distanciamento
calculado do barulho, das honras e das tragédias; e sua existência foi tão
plana, tão conforme à média da existência dos homens de sua época, tão
desprovida de brilho e de circunstâncias especiais, que sua biografia cabe em
dez linhas, e sua glória, imortalizada em seus escritos, esquece sua pessoa.
Mas os poucos
discípulos, raros e voluntários, que estes filósofos tiveram consigo, e que
foram mais ardentes e convencidos na medida em que nenhum proselitismo ou
encenação os atraiu, sobrevivendo ao Mestre não se contentaram em conservar
cuidadosamente uma doutrina que se tornou sagrada no próprio dia do passamento
daquele que lhes ensinou; também eles obedeceram a essa modéstia pessoal e a
esse respeito pelo passado nos quais se esmeraram todas as gerações.
E, por todos os meios
possíveis, eles exaltaram o Mestre, que foi modesto e silencioso enquanto
esteve presente, mas que, desde sua morte, tornou-se para eles o Passado, e o melhor monumento do
Passado, porque eles o ouviram e o amaram. Através dos seus cuidados, ele salta
bruscamente da obscuridade ao pináculo, e sua pessoa é envolta na luz e no
brilho que suas idéias merecem.
É assim que, ao lado da
biografia exata e monótona, e imediatamente após, ergue-se a lenda, brilhante,
dourada, maravilhosa, divina, em cuja trama fulgurante os discípulos precavidos
encaixam , como pérolas negras, os símbolos ou as paráfrases dos eventos
importantes da vida do Mestre – importantes, bem entendido, apenas em relação à
doutrina, pois todas as demais contingências de sua vida não deixam traço.
Nenhum filósofo, nenhum
grande espírito da raça escapa a este costume, que se tornou uma espécie de lei
étnica, e Lao Tsé não faz exceção. É por isso que apresentamos aqui sua vida,
tal como ela está escrita na Cronologia do Império, e que acompanhamos esta biografia,
curta e indiferente, pela lenda que foi fabricada em torno do Mestre pela
imaginação e o reconhecimento de gerações.
“Lao Tsé nasceu no 14o.
dia do 7o. mês do 3o. ano do imperador Ting Wang, da
dinsatia Tcheou, ou seja durante o 54o. ano do 34o. ciclo[1]. Ele era originário da vila de Khio-Jin, comuna de
Lai, distrito de Khoukien ou Khouyang, reino de Tshou[2]. Seu nome de família era L; seu prenome, Eul; seu
nome honorífico, Peyang; seu nome póstumo, Tan. Lao Tsé é o nome que seus
discípulos lhe deram[3]. Ele ocupou o cargo de guardião dos arquivos. Ele se
esforçou por viver em retiro e permanecer desconhecido. Ele serviu durante
muito tempo a dinastia Tcheou; vendo-a entrar em decadência, ele demitiu-se de
seu cargo, e retirou-se para a extremidade do reino, no vale do Hankouflouan,
cujo chefe era um certo Inhi[4]. Lá, para ensinar Inhi, ele compôs um livro sobre a
Via e a Virtude, que compreendia pouco mais de seis mil caracteres. Após isto,
ele se retirou. Não se sabe nem onde nem como ele terminou seus dias. Lao Tsé
era um sábio que amava a obscuridade”.
Assim fala o Sseki, cronologia oficial do Império, redigida pelo chefe
dosn historiadores do imperador Wou Ti, dos Han, o célebre Sse Ma Thien (104
a.C.).
Não conhecemos mais do
que cinco gerações da família de Lao Tsé. Seu filho, chamado Tsong, foi general
do vice-rei de Wei; o filho de Tsong foi Tchou; o filho de Tchou foi Kong; o
filho de Kong foi Hia, que o imperador Hiao Wen Ti, dos Han, chamou à corte
(179 a.C.) . Hia teve um filho, Kiai, que foi ministro do vice-rei Khiang, de
Kiaosi. Depois disto a descendência de Lao Tsé desaparece dos comentários.
Lao Tsé tinha setenta
anos quando começou seu livro sobre o Tao; ele teve doze discípulos, a maior
parte discípulos intelectuais que não o conheceram diretamente, e que viveram
entre 100 e 150 anos após sua desaparição; o mais célebre dentre eles foi o
filósofo Si Choei.
A extrema simplicidade
desta biografia nãopode ser ultrapassada; ela foi composta três séculos e meio
após a presumida morte de Lao Tsé. Ela encerra tudo o que se conhece de exato
sobre a vida do filósofo. É tão fácil cercar seu nascimento, sua vida e sua
morte de fenômenos extraordinários, quanto as de Buda, Moisés, Elias e tantos
outros. De fato, uma lenda estabeleceu-se sobre Lao Tsé. Mas, na própria China,
pede-se que não se acredite nela, considerando-a apenas como uma soma de
símbolos um pouco exagerados. E a versão primitiva que demos subsiste ao lado e
acima da fábula, inventada pelas necessidades psicológicas que já vimos.
É bem possível que Lao
Tsé, após haver passado a porta de Hankou, tenha viajado pela Pérsia, na
Bactriana, e, segundo uma tradição local bastante crível, terminado sua vida
solitária nos platôs tibetanos. Mas não é útil, admitindo a possibilidade,
manter esta suposição. Pois é preciso lembrar que o Tao e o Te (a Via
e a Virtude), únicos livros saídos diretamente de Lao Tsé em pessoa, foram
escritos antes que ele deixasse o
Império, e sem que ele o tivesse jamais
deixado antes.
O sistema filosófico de
Lao Tsé – e é isto que importa determinar – não foi portanto inspirado nem no
Budismo, nem no Lamaísmo, nem mesmo no Cristianismo, como quiseram alguns
zelosos missionários, dentre eles o excelente Abel Rémusat, membro do
Instituto. O ensinamento de Lao Tsé foi extraído unicamente da tradição
primordial, piamente conservada pela raça amarela, e cuja expressão mais exata
é o Yi Ching. Esta é a verdade. Podemos
agora nos distrair um pouco com a lenda.
A lenda de Lao Tsé é
obra de um certo mitólogo, chamado Ko Hong, que viveu por volta de 350 a.C. e escreveu, com o título de
Chin Tsien Tchouen, uma história dos
Deuses e dos Imortais. Esta história é bastante semelhante às “vidas dos
Santos” da hagiografia cristã. Eis um resumo dos prodígios com os quais Ko Hong
cercou a vida oculta e obscura, de Lao Tsé: “A mãe de Lao Tsé engravidou em
decorrência da emoção que ela experimentou ao ver uma estrela cadente; foi do
céu que ela recebeu o sopro vital; aliás, os sábios dizem que ele nasceu do céu
e da terra, e que recebeu uma alma pura emanada do céu. Sua mãe levou-o no
ventre por setenta e dois anos. Ao nascer, ele possuía os cabelos brancos, e
por isso foi chamado de Lao Tsé. Sua mãe concebeu-o assim, sem o concurso deum
esposo, e ele sabia falar desde o instante do seu nascimento. Sua tez era
branca e amarela, com belas sobrancelhas, longas orelhas, olhos bem fendidos,
dentes separados e lábios espessos. Sua testa era atravessada por um grande
vinco; o alto da cabeça mostrava uma saliência pronunciada; seu nariz era
sustentato por uma dupla arcada óssea. Desde o moento de seu nascimento, ele
foi dotado da penetração divina; a vida com que o céu o animava não era a mesma
dos homens comuns. Ele compôs novecentos
e trinta livros para ensinar a viver. Ele discorreu sobre as nove ambrosias, as
oito pedras maravilhosas, o vinho de ouro, o suco de jade, sobre os modos de
guardar a pureza primitiva, sobre como conservar a unidade, como economisar a
força, como purificar o corpo, dissipar as calamidades, domar os demônios, como
triunfar sobre o mal e vencer com o poder da magia, submetendo à sua vontade os
espíritos malfeitores. Ele escreveu também sobbre os talismãs. Ele viveu por
mais de trezentos anos, e teve ao seu serviço, durante quase dois séculos, um
discípulo de nome Siou Kia, a quem ele comunicou, como fez mais tarde ao
mandarim Inhi, o segredo da imortalidade”.
O ditirambo de Ko Hong
continua longamente por este estranho e às vezes contraditório tom. Seria
ocioso segui-lo através destas historietas, mais adequadas à imaginação do povo
e à credulidade das crianças. Apesar de algumas passagens aonde, em meio à
grosseria do texto e das figuras (cf. a idade do “nascimento” de Lao Tsé com a
época de publicação do Tao, e também no
que é dito sobre o segredo da imortalidade), podemos perceber os arcanos
metafísicos e sociais ilustrados, não parece que os amigos e sucessores de Lao
Tsé tenham jamais testemunhado reconhecimento ao infeliz adulador. De resto,
como se a China fosse o país aonde, apesar de tudo, o bom senso e a razão ainda
predominam sobbre a ignorância e a vaidade humanas, o próprio Ko Hong termina
seu apanhado maravilhoso com a seguinte declaração: “Doutores de espírito
estreito[5] querem fazer Lao Tsé passar por um ser divino e
extraordinário, e estimular as gerações futuras a segui-lo; mas, por isso
mesmo, eles impedem que se acredite na aquisição do segredo da imortalidade
pelo estudo. De fato, se Lao Tsé foi apenas um sábio que adquiriu o Tao, os
homens devem fazer todos os esforços para seguir seu exemplo; mas, se dissermos
que ele foi um ser extraordinário e dotado de uma essência divina, é impossível
imitá-lo”.
No que acreditaremos
então, quanto à pessoa de Lao Tsé? É talvez o caso de aplicarmos aqui ao chefe
da doutrina taoísta o famoso princípio do Yi Ching, que faz uma distinção,
clara e objetiva, entre a personalidade e a individualidade. É admissível
imaginar, com todas as precauções que a sorridente indiferença dos letrados
chineses mostra nestes casos, que a “personalidade” encarnada por Lao Tsé sobre
esta terra foi precisamente uma destas personalidades estranhas, sobre-humanas,
que vemos aparecer, no decurso da história, quando, nas voltas do Destino, a
Criação parece ter necessidade de uma ajuda sobrenatural, de um empurrão
inesperado no sentido de sua evolução; e, neste caso, a tese taoísta coincide
tanto com a tese muçulmana quanto com a tese gnóstica dos primeiros tempos do
Cristianismo[6].
Mas não estamos aqui no
domínio dos sonhos da Ásia menor, nem da sentimetnalidade do Ocidente. O que
distingue a tradição amarela de todos os outros sistemas que o pensamento
humano recebeu ou forjou, é sua extrema simplicidade na ausência de toda e
qualquer fabulação mítica, e sua perfeita homogeneidade na organização de todos
os seus logicismos. Esta característica, que faz sem par a Tradição
Extremo-Oriental, só se mantém na medida em que se conserva em todos os campos.
E seria um bizarro contra-senso pretender elevar um de seus melhores mestres,
talvez o maior de todos, aplicando a ele procedimentos de engrandecimento que ele
desaprovaria tanto para sua obra quanto para a de seus Ancestrais. Desprovido e
desdenhoso de qualquer espécie de maravilha – que ele deixava ironicamente aos
empulhadores taosse e aos
pseudo-doutores – Lao Tsé nasceu, viveu e morreu como um homem. Sua inquebrantável
simplicidade, sua humildade acima de tudo, ligaram-no imperiosamente à
normalidade de seu destino; e ele teria se envergonhado de atribuir a si mesmo
os esplendores que só pertenceram à sua doutrina. Não pretendemos aqui que uma
tal conduta seja fácil de ser seguida, nem que ela tenha sido seguida pela
maior parte dos reformadores e salvadores da espécie humana. Mas é preciso
deixar ao filósofo chinês o privilégio original desta atitude, reconhecendo
que, com o passar dos séculos, esta obscuridade voluntária reveste-se de uma
beleza mais completa e segura do que a daqueles que forçaram a credulidade
geral, ornamentando-se com os adereços da lenda e da divindade.
Lao Tsé sabia que ele
era um homem, e jamais quis passar por outra coisa. Mas ele sabia também do
poder de transformação, iniciática e superior, que o labor intelectual produz
sobre o homem, na busca ardente e contínua do conhecimento total. Ele
esforçou-se por esta transformação, e a obteve; quando ele reconheceu tê-la
obtido, ele desapareceu. Assim, ele pediu à ciência e à sua própria vontade as
qualidades sobre-humanas que ele negou sempre ter recebido por nascimento da
fantasia de Deus ou do capricho de um deus. E, para justificar o admirável
princípio esotérico segundo o qual, de um plano para outro, a extrema humildade
se transforma em extrema grandeza, ele atribuiu ao seu próprio esforço os dons
supremos que lhe valeram seus méritos e sua virtude, ao invés de colocá-los
como originais e inerentes a uma missão específica. E reencontramos aqui o
pensamento, simples e encorajador, do bom mitólogo Ko Hong: o que Lao Tsé fez,
qualquer homem pode tentar fazer, e o objetivo que Lao Tsé atingiu está aberto
à boa vontade de todos os homens. Pois, em vez de descer à Humanidade por meios
divinos, ele subiu à divindade por meios humanos. Este é um ensinamento que
podemos extrair de sua vida obscura, e que podemos também tentar colocar em
prática.
Dissemos, e a história
oficial confirma com sua costumeira secura: quando Lao Tsé obteve o estado de
conhecimento, ele desapareceu do meio de seus semelhantes, e terminou sua vida
no silêncio e na solidão completa de um retiro ignorado por todos. Parece que,
a partir deste momento, ele se considerou inúitil para o povo. De fato, aquele
que atingiu o ápice da sabedoria não é mais exatamente um homem, para poder ser
aproveitável com os outros homens. E é aqui que devemos abrir espaço para um
resumo da histórica conversa entre Lao Tsé e Confúcio. Veremos que uma
sabedoria mediana pode ganhar com a propoaganda e o ensinamento, que aquele que
a possui adquire uma grande reputação no mundo e entre os seus governantes, mas
que esta própria expansão de si mesmo é um obstáculo intransponível para o seu
aperfeiçoamento interior e sua ascese definitiva; e veremos ao contrário que
uma sabedoria total não se ensina nem se difunde, que ela só pode ser adquirida
no isolamento e através de um trabalho pessoal; que seus adeptos permanecem
voluntariamente desconhecidos, podendo assim utilizar para sua evolução própria
e para a evolução consecutiva da posteridade os ardores e o tempo que eles não
consagram para ofuscar as multidões.
A entrevista de Lao Tsé
e Confúcio é absolutamente histórica: ela é relatad, em termos idênticos, pelos
escritores chineses mais dignos de fé, da época dos dois filósofos, e, em
especial, por Sse Ma Thien, o historiador do Celeste Império:
“Khong Tsé, tendo ouvido
falar de Lao Tsé, quis conhecer por si mesmo quem era este homem
extraordinário; ele procurou-o e interrogou-o sobre o fundo de sua doutrina. Em
lugar de responder-lhe, Lao Tsé censurou Khong Tsé, dizendo-lhe que ele era
demasiado conhecido em toda parte; que a conduta que ele mantinha cheirava a
fastio e vaidade, e que a maior parte dos seus discípulos estava mais
propensa a desenvolver o orgulho em seu coração do que fazer nascer aí o amor
pela sabedoria. O sábio, disse ele, ama a
obscuridade; longe de ambicionar os cargos, ele foge deles; persuadido de que,
ao término da vida, o homem não deixa mais do que as boas máximas que ele
ensinou àqueles que poderão retê-las e praticá-las, ele não as entrega a
qualquer um; ele estuda o tempo e as circunstâncias; aquele que possui um
tesouro esconde-o com cuidado, de mêdo que alguém o leve; ele cuida de não
proclamar tê-lo à disposição; aquele que é verdadeiramente virtuoso não faz
propoaganda de sua virtude; ele não anuncia a todos que é sábio; isto é tudo o
que tenho a dizer; faça bom proveito. E ele acrescentou: eu ouvi dizer que o
homem rico despede-se de seus amigos com presentes, e que o sábio despede-se
com conselhos; eu não sou rico, mas acredito ser sábio, com toda humildade”.
Este remédio severo, que
Confúcio aliás recebeu com uma paciência e uma gratidão que fazem honra às suas
virtudes domésticas, indica profundamente a reserva quase selvagem e a
austeridade dogmática em que Lao Tsé se colocou e de onde ele não sairia
jamais. É preciso lembrar, para confundir os cronistas que têm a ingenuidade de
fazer passar por adeptos de Lao Tsé os curandeiros, prestidigitadores e
pseudo-doutores que praticam a taumaturgia pelos caminhos do Império, que Lao
Tsé nunca quis ter discípulos, mas apenas alguns amigos escolhidos, e que ele
condenava acima de tudo o proselitismo barulhento e a propaganda irresponsável.
O ensinamento, tal como queria Lao Tsé, restrito quanto ao número dos que o
recebem e quanto à porção da doutrina que lhes pode ser comunicada, apresenta
características comuns com o ensinamento sagrado e oculto da Índia, do Tibet,
do Egito e de todos os centros misteriosos e iniciáticos em que se conservaram
cuidadosamente os raios da Grande Luz.
O fim deste homem
extraordinário e glorioso deu continuidade à solidão e à dignidade de sua vida.
Contemplado a partir de então – por sua ciência, sua vontade e pelos felizes
resultados de sua ascese pessoal – com os maiores poderes que um espírito
revestido por uma alma e colocado num corpo pode possuir aqui embaixo, ele
reconheceu a inutilidade da prática egoísta destes poderes; e, para fazê-los
participar, seja do interesse geral, por sua ação, seja do aumento da herança
intelectual dos sábios, por sua conservação, ele deixou sua pátria natural e
retirou-se, ignorado por todos e perdido para sempre, para uma dessas
comunidades longínquas do Alto Tibet, que são a pátria intelectual daqueles que
ultrapassaram os últimos degraus do saber. E lá, ele começou e terminou uma
vida verdadeiramente sobre-humana, que ele escondeu de todos e cujo exemplo não
ofereceu a ninguém, porque este exemplo não poderia ser de nenhuma utilidade
aos homens.
Lá morreu ele, e ninguém
conhece sua sepultura, nesses santuários aonde se confundem num emaranhado
anônimo e indiferenciado, os restos humanos que foram habitados pelos mais
sublimes pensamentos. Assim ele justificou e levou ao limite extremo seu amor
lógico pela discrição até o desaparecimento. E, por um justo e inevitável
retorno, a doutrina deixada por este sábio, em um livro de capítulos breves e
misteriosos, rege, passados mais de dois mil anos, todos aqueles que, na raça
amarela, possuem um pensamento dotado de reflexão; e é esta doutrina que, no
momento das expansões futuras, intelectais ou materiais, governará as
sociedades do amanhã na direção de um objetivo prático e melhor, e verá pender
os pratos desta balança onde, junto com as necessidades das coisas e as leis contingentes
da corrente das formas, acumula-se a herança da consciência e da vontade
humanas.
O que representou a
doutrina de Lao Tsé em relação às coisas exteriores, que destino teve seu
ensinamento, qual sua influência nos negócios do Império e sobre os atos dos
imperadores, eis um ponto sobre o qual devemos nos deter um pouco, dado o pouco
que se conhece a respeito, ao menos no Ocidente. Os sábios da raça branca, e em
especial os missionários europeus, ocuparam-se quase exclusivamente das
doutrinas de Confúcio, concretas, fáceis de determinar, e cujas aplicações
contínuas e fáceis concorriam a cada instante com a propaganda cristã.
O ensinamento de Lao
Tsé, encerrado em algumas fórmulas gerais por seu criador, confiada por Lao Tsé
a apenas dois adeptos (que por sua vez instruíram dez outros), e que continha
apenas a expressão mais exata possível das verdades tradicionais e dos
princípios imutáveis, não deveria ter senão uma influência oculta, pois, em
função de sua própria dificuldade, o número de adeptos só poderia ser muito
restrito. Mas esta influência oculta e lenta deveria tornar-se soberana e
profunda, porque, negligenciando os interesses materiais e imediatos, ela
endereçava-se ao que há de mais elevado no homem e, na realidade, de menos
humano. É por isso que, no que concerne aos negócios políticos e à economia
social, a influência da escola de Lao Tsé foi rara; mas, quando exerceu-se, ela
foi enérgica e total.
Pelo simples relato da
famosa entrevista que Lao Tsé teve com Confúcio, podemos ver as diferenças dos
espíritos dos dois filósofos, divergência, não nos pontos primordiais, mas nos
planos de aplicação das idéias, e a incontestável superioridade de Lao Tsé, à
qual o próprio Confúcio rendeu humilde homenagem. Passando do domínio das
idéias puras ao da prática, e saindo do espírito dos criadores frios e
impecáveis para entrar na alma dos discípulos orgulhosos e apaixonados, a
colocação na prática política e social dos dois sistemas, dos quais um deveria
sempre permanecer acima do outro, trouxe consigo muitas dificuldades e erros,
na medida em que as duas escolas se distinguiam pelo exagero de suas qualidades
originais, os Confucionistas por sua verborragia e pusilanimidade (excesso de
propaganda), e os Taoístas por sua energia e intransigência (excesso de
isolamento). Aberto à opinião, o Confucionismo teve como primeiros prosélitos e
apóstolos letrados menores, finos dissertadores, eloquentes, seguros de si
mesmos e ávidos em desempenhar um papel no Estado e, na falta de melhor, em
suas cidades (correspondem àquilo que no século XX se chamam no Ocidente de
“intelectuais”). Estes letrados, ágeis e populares, espalharam no povo os
preceitos sábios e amáveis dos quais souberam sempre tirar um proveito pessoal.
Reservado a uma minoria
cuidadosamente selecionada, o Taoísmo teve como adeptos sábios prudentes,
desinteressados, solitários e de pouca verve (que o Ocidente chama de
“pensadores”, para distingui-los dos “intelectuais”), que, determinando – sem
pregar nem recomendar – leis superiores e idéias gerais, não possuiam ambições
nem temores; estes sábios levaram suas convicções aos letrados e mandarins do
primeiro escalão, de onde elas chegaram até o trono imperial.
Durante muito tempo as
duas doutrinas lutaram, os Taoístas esquecendo-se de que não foram feitos para
a luta, os Confucionistas esquecendo-se, malgrado o ilustre exemplo do prórpio
Confúcio, que foram feitos para obedecer aos Taoístas, de quem não passavam de
uma emanação sobre um plano de mentalidade inferior. Resulto disto o que
acontece sempre com sociedades fracas o bastante para se deixar conduzir por
intelectuais e retóricos como mestres e como conselheiros predominantes, ou
seja uma era de dificuldades egoístas e confusas da qual somente os pequenos
letrados souberam tirar vantagem.
A eloquência paradoxal,
a retórica amável, o sentimentalismo, e todos os outros meios pelos quais se
concretizam a ambição e o egoísmo dos homens, em uma palavra este
intelectualismo instintivo e sem bases, que já havia dado fim ao gênio e à
própria existência da Grécia, foi felizmente detido na China, em sua tarefa
parcelária e destrutiva. Os imperadores taoístas dos séculos II e II a.C.
talvez não tenham tido razões muito elevadas para tanto: eles perceberam, sem
dúvida, nas teorias desviadas do confucionismo, o gosto confesso por dividir o
império em principados e estados feudatários, que deveriam ser distribuídos
entre os letrados, na medida da ciência que eles tivessem mostrado e dos
volumes que houvessem escrito; e viram, sem dúvida, nas doutrinas taoístas, a enérgica
consagração do sistema libertário e comunista do tronco e da família chinesa,
defendidos por um princípio de autoridade única, emanada da autoridade celeste,
que concretisasse sobre a terra as leis gerais tradicionais da evolução dos
ciclos.
Guiados por motivos que
não eram evidentemente os mais nobres, estes governantes agiram em benefício da
felicidade de sua raça e da conservação integral do pensamento, ao dissipar as
interpretações errôneas e destruir os escritos de pretensões e intenções equívocas.
Após esta explicação, é preciso entender como eles foram caluniados por seus
eloquentes adversários, e como a tenacidade e a perseverante loquacidade dos
letrados menores, ao longo dos vinte e dois séculos que se passaram desde
então, fizeram estes soberanos taoístas passar por simples bárbaros e por
inimigos do desenvolvimento intelectal da Humanidade. Eles eram simplesmente –
é preciso devolver-lhes sua verdadeira fisionomia – os inimigos do
despedaçamento da Doutrina e do Poder, e não toleraram, nem que inimigos
tocassem o cetro, nem que aventureiros alcançassem o Conhecimento, para
desfigurá-lo, dividi-lo e se apoderarem dos despojos.
Saibamos restituir a
verdadeira figura do soberano Tsin Chi Hoang Ti, que os falsos discípulos e os
intérpretes desviados de Confúcio chamaram de incendiário de livros e
perseguidor dos letrados. Este autocrata taoísta deixou falar os que pensavam,
e calou os que falavam sem pensar. Este “chefe bárbaro” tinha como primeiro
ministro – que ele conservou até a morte – o célebre Li Sse, doutor e mandarim
do mais alto grau. E, antes de julgar sobre as afirmações sem provas dos
sucessores daqueles a quem ele perseguiu, seria bom ler na fonte os famos
Editos de proscrição e incêndio.
O dito de proscrição
restringiam as penas aos letrados que fomentassem desordens, e que tentassem
criar, no interior do Império, governos e estados feudatários dos quais eles
seriam os chefes, contra a concordância do imperador. Na realidade, de centenas
de milhares de letrados de todos os graus que existiam no imenso império,
precisamente quatrocentos e oitenta e sete foram executados, e eles foram
presos em plena rebelião, acusados de desordens e de mortes.
O Edito de incêndio
excetuava do rigor imperial todos os livros da doutrina de Lao Tsé, todos os
livros da Tradição Primordial, todos os livros sagrados e dogmáticos, todos os
livros que não tratavam de política, e todos os livros do próprio Confúcio, à
exceção do Chou King. Foram queimados todos os comentários, todos os panfletos,
todas as glosas paradoxais, todos os escritos que se perdiam em minúcias,
tendenciosos e analíticos, que não passavam de simples provocações, e cuja
perda só foi sentida pelos seus autores. Restou ainda muita coisa, e os amantes
da quintessência puderam, rapidamente, encher vinte vezes o vazio relativo
aberto neste amontoado inútil e indigesto, pelo Edito liberador de Tsin Chi
Hoang Ti. Na verdade, nem um pensador foi incomodado, nem um texto foi perdido.
Apenas o Império desembaraçou-se, um pouco energicamente sem dúvida, daqueles
que, com a desculpa de fazerem ciência, eram, dentro do edifício intelectual e
social da raça amarela, elementos de alteração, discórdia e dissociação.
O que se tornou este
Taoísmo, tão cruelmente sustentado, posto e mantido no pináculo tão energicamente?
Ele permaneceu virtualmente, durante dois séculos, como a doutrina imperial;
depois, os editos de proscrição foram abandonados; isto foi um grande bem, pois
a liberdade de escrever é quase tão cara ao homem quanto a liberdade de pensar,
e, certamente, a faculdade de poder escrever com independência e impunidade
valeu à China algumas obras-primas de moral e política. Mas os retóricos
reapareceram e retomaram seu fácil domínio; e, como se a presença destes
intelectuais improdutivos não bastasse para empurrar até a última degradação os
soberanos que se deixaram levar por sua perniciosa e enfraquecedora influência,
seu retorno ao poder coincidiu com a escandalosa entrada nos negócios de
improdutivos físicos artificiais; e, enquanto a alma chinesa estava à mercê de
aventureiros, o governo caiu em mãos dos eunucos, e a introdução concorrente,
em uma raça que não estava preparada para o sentimentalismo, do Budismo –
desprovido de tudo o que o Budismo tem de superior e de maravilhosamente
adequado à evolução humana – precipitou no abismo o país e a dinastia. Os
sábios taoístas, aos quais se juntaram os verdadeiros filósofos confucionistas,
ultrajados com tal estado de coisas, fundaram sociedades secretas, que
subsistem até hoje e que receberam seu batismo de sangue na morte violenta de
oitenta mil adeptos de Lao Tsé.
Assim decidiram os
eunucos, o imperador que eles inspiraram, e os falsos letrados que dirigiam os
eunucos. Vemos que estamos longe das 487 execuções do terrível Tsin Chi Hoang
Ti. A dinastia não deixou de afundar sob os esforços conjuntos do povo e dos
sábios: os Tsin reinaram, e o Taoísmo fez desabrochar sua mais bela flor, a Wou
Wei Kiao, ou “Sociedade do Grande Vazio”, que
considerava as honras e afeições da terra como coisas vãs e indignas do homem
imortal, e que reuniu uma aadmirável plêiade de estóicos.
A partir desta época, e
após os tempos conturbados em que quatro dinastias paralelas reinaram sobre a
China dividida em quatro reinos, os soberanos e seus conselhos compreenderam
como a doutrina de Lao Tsé e a doutrina de
Confúcio, complementar da primeira, deveriam ser ensinadas. Os altos
mandarins permaneceram ligados, cada um em seu particular, ao “dogma da Suprema
Razão”, e renderam a Confúcio e sua doutrina as honras oficiais, públicas e
numerosas, que convinham a uma ciência concreta, fácil, proveitosa a todos,
popular e respeitável. E, durante toda a dinastia Thang, a doutrina e mesmo o
culto exterior a Lao Tsé (a quem o imperador Kao Tsoung construiu um templo
sobre a montanha do Cordeiro) foram a doutrina e o culto dos sábios e dos
grandes (de 600 a 905 da era Cristã).
Esta concepção respondia
perfeitamente ao princípio universal que diz que a ciência integral – ou a que
supomos tal – não seja comunicada senão a um pequeno número, e que a multidão
seja brindada apenas com as consequências felizes e com osbenefícios terrestres
que os adeptos desta ciência possam extrair dela. Ninguém duvida que a difusão
irresponsável do ensinamento interior taoísta foi inútil e mesmo perniciosa, no
sentido que ela levou intelectuais despreparados – que são sempre a maioria – a
sentimentos anárquicos totalmente estranhos à doutrina de Lao Tsé. Não há
perigo maior do que apresentar o conhecimento sem véus: assim como o sol queima
e cega os olhos fracos da humanidade, a ciência total estupefaz os espíritos
medíocres; e, quando eles tentam se aproximar, eles tombam, em sua cegueira
mental, nos últimos abismos, que eles tomam, em sua ingênua vaidade, pela
incomensurável profundidade da Verdade. Lao Tsé percebera muito bem que o
perigo é tanto maior quanto mais sintética a doutrina, e quanto mais curiosa a
raça. É por isso que ele considerava seu ensinamento por demais sutil para a
massa de pequenos letrados, e é por isso que ele recusava a propaganda e o apostolado.
Seus sucessores não foram todos tão inspirados; mas é preciso dizer, em sua
defesa, que eles foram sempre levados a um impetuoso proselitismo pela inércia
dos soberanos e pelos vícios da administração imperial[7].
Assim, não devemos
economizar elogios à dinastia que compreendeu como os dogmas de Lao Tsé e as
idéias de Confúcio deveriam ser ensinadas paralelamente, umas a um pequeno
número, outras às massas, cada qual aos seus ouvintes particulares e adequados,
e como a concordância deste duplo ensinamento deveria levar simultaneamente a
luz da sabedoria às altas classes do espírito, e a satisfação da felicidade às
classes de nteligência mediana.
A doutrina de Lao Tsé
viu sem inveja ou temor chegar ao Celeste Império sacerdotes da doutrina de Fo
(Budismo indiano), a filosofia da natureza (Confucionismo materialista), o
Lamaísmo primitivo (ensinamentos de Pa sse Pa)
e o culto de Tathsin (religião de Zoroastro). Estas formações, ou estas
deformações diversas da Tradição única não se endereçavam ao mesmo plano
intelectual do Taoísmo. Mas, se estas propagandas eram indiferentes, o mesmo
não se pode dizer da desaparição da última dinastia chinesa e de sua
substituição violenta por uma dinastia mongol, cujo primeiro soberano foi
Kubiali, neto de Gengis Khan. Este autocrata, que foi um grande conquistador, e
também um homem cheio de experiência e manipulador dos homens, comprendeu que a
doutrina taoísta firmemente ancorada nas mentes dos sábios e dos mestres
espirituais da raça, seria o grande obstáculo à dominação nova, e, de 1280 a
1286, dedicou-se a fazer desaparecer todas as escolas e todos os livros do
Taoísmo, com exceção dos escritos pelo próprio Lao Tsé; seu cálculo mostrou-se
acertado, porque assim ele obteve a submissão da raça e a rendição dos seus chefes.
O que é trazido pela
força não é jamais durável, e desaparece quando esta força se esgota; o
autocratismo hierático que o Lamaísmo primitivo impôs durante a dinastia
mongol, não apenas na China, mas em todos os territórios comandados pelos
mongóis[8], abateu a raça chinesa e levou, após uma era à qual
não faltou glória, a dinastia mongol à decadência e ao esquecimento. A dinastia
nacional dos Ming sucedeu-a, e logo o Taoísmo recuperou, junto ao trono e nos
conselhos do Império, o lugar discreto, ignorado e todo-poderoso que lhe
agradava. Durante duzentos e cinquenta anos deste período verdadeiramente
nacional de sua história, a China só conheceu a prosperidade (1368-1616). E,
malgrado o que dizem os missionários europeus, o Taoísmo foi o guia benfeitor e
o segredo inspirador da melhor dinastia que jamais reinou sobre a terra[9]. À época da extinção dos Ming, havia no território
chinês 272 bibliotecas imperiais, classificadas, bem providas e frequentadas,
90.000 letrados de primemiro grau e 13.600 mandarins letrados. Os tártaros
Mandchus, vencedores sucessivos das armadas chinesas, instalaram então a
dinastia Tshing, atualmente reinante, a qual, sem conservar aos discípulos de
Lao Tsé sua influência preponderante, manteve ao menos suas dignidades e suas
honrarias.
A introdução, durante
esta dinastia, e em especial sob o reino do famoso Kanghi, do elemento
propagandista cristão não mudou mais a face das coisas, do ponto de vista das
doutrinas tradicionais, do que o fizeram os diversos proselitismos já
enunciados. E quando, negligenciando imitar o Budismo, que soube dobrar-se às
tradições, o Cristianismo tentou levantar-se contra a herança intelectual de
Lao Tsé e de Confúcio, ele foi expulso, em um acordo comum entre o soberano e o
povo, de tal forma que ele jamais conseguirá retornar no futuro, e que a
religião cristã não será jamais, no Extremo-Oriente, senão uma curiosidade para
alguns letrados indolentes, um refúgio para alguns recalcitrantes contra as
leis de seu país natal, e um meio de penetração política mais ou menos hábil,
segundo o valor dos diplomatas que o empreguem.
Derrubados de seu antigo
poder, e reconhecendo, como seus ancestrais, que a raça amarela é a única capaz
de aproveitar seu ensinamento, os discípulos de Lao Tsé, exilados da corte e
dos seus cargos depois do reinado de Kiaking, colocaram todo seu ardor na
criação de sociedades secretas, cujo valor, cujo papel importante e oculto,
cujos desígnios futuros estudaremos adiante. É da “Razão Celeste” que nasceram
todos os grandes movimentos que, mantendo a alma chinesa na Via tradicionala,
mostraram-lhe seus deveres futuros. É esta Via – a Via Racional – que, depois
de ter mantido, em uma imobilidade bemaventurada e então possível, a raça
chinesa independente e separada das demais raças humanas pelas distâncias e
pela antinomia das civilizações, é esta Via que, pelos mesmos e profundos
motivos, guiará a raça na direção do progresso ativo que pede a vizinhança
(impossível de evitar hoje em dia) de outras entidades etnográficas, a fim de
garantir a esta raça a perpétua supremacia que lhe garantem a altura ancestral
de sua doutrina, a beleza de sua moral prática e a inumerabilidade de seus
filhos.
II
AS
CONCORDÂNCIAS TAOÍSTAS
A doutrina de Lao Tsé é
um Cristianismo primitivo, diz o orientalista Pauthier. O autor de Essai
sur la philosophie des Hindous declara que a
grande reforma do Brahmanismo, propagada pelo Buda na Índia, teve uma grande
reverberação na China, e não foi desconhecida de Lao Tsé, que encontrou
elementos seus na bibluioteca do reino de Tcheou.
O comentador Sou Tong
Po, ilustre sob o nome de Sou Tsé Yeou, exilado em Yuntcheou, entre religiosos
samoneus, expressou a convicção de que “não há uma só proposição de Lao Tsé que
não possa concordar com a doutrina de Buda”.
Por outro lado, um
missionário cristão, o Pe. Huc, representa Lao Tsé como “um precursor dos
essênios, dos quais Jesus Cristo foi o revelador”, e dos gnósticos filosóficos
ao estilo de Clemente de Alexandria. Lao Tsé teria sido o continuador do
ensinamento do princípio “zoroastriano” que se tornou o princípio cristão na
Europa, e cujo primeiro fruto foi o anacoretismo contemplativo; e este
abnacoretismo, vindo da Índia e da China, teria se prolongado, igual a si mesmo
e pouco a pouco ocidentalizado, na Pérsia, na Caldéia, na Ásia Menor, no sul do
Egito e por toda a Europa.
Mais audacioso, Montucci
declara que “muitas passagens de Lao Tsé são tão claras, que qualquer um que
tenha lido este livro não poderá duvidar que o mistério da Santíssima Trindade
tenha sido revelado aos chineses mais de cinco séculos antes da vinda de Jesus
Cristo”. Enfim, o Pe. Amyot acreditou
ter encontrado mais ainda, ou seja os nomes dos três personagens da Santíssima
Trindade. E, encobrindo tudo, Abel Rémusat, membro do Instituto, que trabalhou
muito e viajou pouco, que não falava chinês mas traduziu as suas obras mais
difíceis e abstrusas, reconheceu o nome de Jeová na 14a. página do Tao
Te King. E ele acrescenta triunfalmente: “a
palavra trigramática i-hi-wei (que foi
tomada por Rémusat, sílaba por sílaba, em três frases diferentes desta página
14), é materialmente idêntica ao tetragrama que, segundo Deodoro de Sicília, os
judeus atribuem a Deus como nome sagrado. Achar-se a transcrição mais exata
deste nome célebre em um livro chinês é um fato bem singular. Eu o vejo como
uma marca incontestável do caminho que as idéias pitagóricas ou platônicas
seguiram para chegar à China”.
Assim, os Cristãos
pretendem que Lao Tsé foi inspirado por Cristãos; os Budistas, por Budistas; os
Gnósticos e os Essênios, pelos Terapeutas; e os Católicos, pelos judeus, por
Pitágoras e por Platão. Bem entendido, a cronologia não entra nestas
considerações, e a filologia oficial incomoda-se bem pouco, em suas
especulações, com as datas mais precisas da história.
Não vemos, nesta pressa
em despedaçar a herança intelectual de um homem, senão uma homenagem solene,
universal e imprevista à inteligência deste homem; e humildemente, para
estarmos o mais próximo possível da verdade, que é mais simples e menos
estupefaciente, lembraremos a confissão sem artifícios do próprio Lao Tsé: “Eu
não faço senão ensinar aquilo que os homens ensinaram antes de mim” (Tao, pg. 42).
Lembraremos que Lao Tsé
escreveu seus preceitos no reino de Tcheou, e que foi antes de deixar a China
que ele lhe deu a forma sob a qual nós os conhecemos hoje. Quanto ao resto,
remetemos os amantes de sonhos às tábuas sinópticas da história universal.
Existem outros
comentadores e tradutores de Lao Tsé que, não contentes em haver desfigurados
seus versos com adições ocidentais, e seus próprios pensamentos com as
observações de alguns retóricos e compiladores chineses (pois a China, como
qualquer outro chão, produz também este tipo de sábios), pretendem que Lao Tsé
inventou tudo por si mesmo. G. Pauthier, que é entretanto, de todos os
europeus, aquele que até hoje mais se aproximou do espírito do Mestre e de seus
livros, diz que “suas doutrinas não se ligam ao passado de seu país por nenhum
laço tradicional, nenhum antecedente histórico”. Stanislas Julien vai no mesmo
caminho.
Acreditamos, lendo o
sábio e sobretudo intuitivo estudo que Pauthier dedicou a Lao Tsé, que ele
pretendia com isto fazer ao filósofo que ele comentava, o maior dos elogios.
Nisto ele enganou-se por completo. Quando dizemos a um sábio hinês que ele
rompeu todos os laços tradicionais, fazemos a ele a pior das injúrias, e além
disso provavelmente estamos errados; pois não existe um chinês que possa –
mesmo que mereça – adquirir a glória, se ele não remontar seu ensinamento ao
dos seus ancestrais; se algum escritor chinês pretender tal coisa, será entre
eles considerado como um louco bizarro; ao seu redor cria-se a conspiração do
silêncio; e assim nós não o conhecemos, quer estejamos na Europa, quer tentemos
descobri-lo na China. O respeito pelos ancestrais e a piedade por suas idéias
são as pedras angulares da filosofia e da erudição chinesas, e ninguém
sonharia em edificar um sistema sobre
outras bases. Mesmo na sociologia, na política, os reformadores e os
revolucionários chineses de hoje – que suspeitamos sejam pouco entusiastas da
antiga imobilidade – não apresentariam como uma novidade seus projetos de
reforma, pois não encontrariam nenhum simpatizante. Eles os apresentam, ao
contrário, como um retorno ao antigo estado de coisas, e um “recuo” para tempos
melhores passados; e, se estudarmos a história das velhas dinastias, veremos
que esses revolucionários não estão errados, e que eles conhecem tão bem o
passado de sua raça como a alma de seus contemporâneos.
É preciso assim
convencer-se de que Lao Tsé jamais teria se tornado o educador da inteligência
amarela, se ele não estivesse referido aos ancestrais, e se ele não tivesse
falado a verdade quando disse que não fazia mais do que repetir o que havia
sido ensinado antes dele. Aqueles que lêem seus livros reconhecem ali, sob
novos véus, a Tradição primordial; e é assim que elevaram Lao Tsé às nuvens, ao
lado dos primeiros transmissores desta Tradição primordial, a que ele deu
continuidade.
Eis a prova moral do
tradicionalismo de Lao Tsé. Existe ainda uma prova histórica. Ela reside na
tranquilidade pacífica com que foi recebida sua doutrina. Quando aparece um
culto novo, ou idéias novas aparecem, costumam sucitar em torno de si violentos
combates entre os portadores da nova chama e os guardiães do fogo antigo. Não
existe exemplo de que um ensinamento tenha sucedido a outro, seja no domínio
religioso, seja no social, sem provocar choques retumbantes, que deixam traços
sangrentos ao longo da história. Assim o Cristianismo e o Islamismo nasceram do
sangue dos seus apóstolos, e cresceram com o sangue de suas vítimas. E, no
interior das religiões, simples cismas geraram execuções e massacres.
Abramos a história da
China, esta história tão exata, fria e imparcial, em que o historiador não
hesita, quando acha necessário, em criticar os próprios atos do soberano que o
paga para escrever os eventos de seu reinado: não encontramos nada de parecido
na eclosão do Taoísmo. Nem em seu triunfo nem em seus revezes.
Todas as perseguições
que ele sofreu foram da parte de invasores estrangeiros que queriam estabelecer
na China uma dinastia nova e conquistadora, o que prova o quanto o ensinamento
taoísta é, ao contrário, um ensinamento tradicional e nacional. Mas não houve
suplícios coletivos, nem deportações em massa, templos incendiados e
destruídos; o Taoísmo, depois deste posto de fronteira a cujo guarda Lao Tsé
confiou seu livro antes de desaparecer para sempre, fez docemente seu caminho
até o trono imperial, sem barulho, sem molestar ou contrariar quem quer que
fosse, e, soberanamente, instalou-se na alma chinesa, como se ela precisasse
dele precisamente nesta época, e como se ela estivesse, há muito tempo,
preparada para recebe-lo.
E, na realidade, esta
preparação existia: ela existia porque o ensinamento taoísta era respeitoso e
consequencial à tradição; depois de muitos séculos, esta tradição era o pivô da
ciência; suas decisões eram o critério das consciências; seu estudo era o arado
com o qual trabalhavam incessantemente os cérebros; os preceitos curtos e
misteriosos do Taoísmo foram as sementes aptas a germinar nos sulcos largos
abertos, justamente porque era neles que o trabalho estava feito, ou antes
porque Lao Tsé as lançara no cérebro chinês com a polpa e o gesto convenientes,
ou seja envelopando-as no dogma tradicional e fazendo as reverências rituais
aos Ancestrais. É por isso que a colheita foi rápida e ampla. E podemos levar até o fim esta
parábola sem medo de vê-la falhar, e acrescentamos que o solo era tão fecundo e
bem preparado, que ele teve, quase ao mesmo tempo em que germinava o bom grão,
forças suficientes para brotar o joio; e os curandeiros surgiram junto com os
doutores, e os taumaturgos com os Sábios, e este joio floriu tanto, que até
hoje é difícil impedi-lo de diminuir e poluir a qualidade da colheita verdadeira.
Mas é na própria
doutrina de Lao Tsé que encontramos o modo de sua filiação intelectual à
tradição; é estudando a Via e a Virtude e as Reações, que brilha a cada
instante seu tradicionalismo. E, antes de penetrar no fundo da doutrina,
podemos ministrar a prova de que, não apenas o sistema taoísta, mas o próprio
nome Tao e seu princípio foram extraídos
inteiros da melhor fonte da Tradição. Esta será a prova metafísica irrefutável
que demonstrará peremptoriamente que os sinólogos do século XVIII, e mesmo os
da primeira metade do sécuilo XIX, não conceberam senão devaneios teóricos, e
que as descobertas científicas e filosóficas – que nos trouxeram nossa expansão
colonial ao Extremo-Oriente – derrubam tudo o que se pensava saber. Temos aqui
uma nova dívida de reconnhecimento para com os exploradores, os viajantes, aos
colonos que, não contentes em haver descoberto, ilustrado e enriquecido esta
partes do domínio asiático, aí se instalaram para estudar no local a língua, a
escrita, os livros e as almas, e nos forneceram assim as bases mais sólidas
para nossa instrução e nossos raciocínios. E, quando se sabe que eu, modesto
trabalhador, pude constatar, depois de longos anos passados no Extremo-Oriente,
a dificuldade de tarefas assim, não será espanto que eu coloque à frente de
todos os sábios oficiais, Francis Garnier, Luro e Philastre, que não se
contentaram em ser heróicos franceses, prudentes e pacientes, mas que souberam
ao mesmo tempo, durante sua permanência entre os chineses, decifrar os arcanos
de suas doutrinas e penetrar no fundo de sua inteligência.
É preciso reportarmo-nos
ao que dissemos, em nosso livro precedente, sobre a concepção metafísica do Khien
ou da Vontade celeste não-manifestada[10]: Khien é o
primeiro hexagrama de Fo Hi; é a representação gráfica do Eterno Infinito; é a
base de todo o Yi King, o rochedo
primordial sobre o qual foi erigida toda a tradição das raças amarelas. Na
ciência dos numeros, ele é o zero. Ele é o Ser e o Não-Ser, ou seja ele é a
perfeição, que tem naturalmente o poder de gerar (princípio da atividade), mas
que não gera. Não podemos conceber isto; mas, quando o poder de gerar é
colocado em atividade pela Vontade do Céu,
percebemos a Perfeição manifestada (perfeição passiva), e entendemos que nossa
concepção mais alta da Perfeição tem como causa a Vontade do Céu. E assim, por
alteração, damos ao Khien ininteligível
este nome de Vontade do Céu, da qual não
captamos senão os efeitos, mas através dos quais podemos perceber que há uma
Causa primeira.
No mesmo livro[11], vimos também que a Vontade do Céu nos manifesta a Perfeição Khouen (princípio de passividade, ou perfeição agida pelo
princípio de atividade). É esta Perfeição, dupla de personas, no sentido latino do termo, mas de essência única,
na qual a Vontade ou Atividade Celeste provoca o nascimento dos seres, fora do
Ser, e os precipita indefinidamente na corrente temporária e contingente das
formas. A Vontade do Céu age segundo um certo mecanismo, e a atividade do céu
se manifesta segundo um certo movimento (mecanismo e movimento metafísicos e
ontológicos, bem entendido). Este mecanismo, atravessado pelo movimento, eis o
que constitui as diretrizes divinas da Criação Universal.
Nós determinamos os
órgãos deste mecanismo e os elementos deste movimento, e deduzimos daí a espiral
helicoidal da evolução. Esta espiral é a absoluta condensação matemática de
todas as modificações e de todas as transformações finais do Universo, ou seja,
conforme as palavras de Shi Ping Weng, dos mecanismos que produzem e aonde são
reabsorvidos todos os seres.
A fonte destes
mecanismos, é o Tao ou a Via de Lao Tsé.
Não nos basta apoiar esta afirmação peremptória nos textos tão claros e
definitivos do filósofo: o Tao
manifestado é a mãe do Universo... a multidão dos seres passa pela porta do Tao... o Tao é o
termo, mas também o meio (o rio) onde os dez mil seres têm sua fonte... o Tao reintegra os homens no Não-Ser... a espiral, eis o
movimento do Tao... o Tao criou o um; o um criou o dois; o dois criou o três;
o três criou os dez mil seres. Quem segue o Tao progride, progride e progride ainda, e assim até que não aja mais; mas
quando ele não age mais, ele não deixa de agir. O Tao produz; a virtude une; os seres se formam; eles
tornam-se modos.
Poderíamos nos contentar
com estes poucos aforismos; eles indicam claramente seu tradicionalismo e sua
filiação ao Yi King.
Mas é preciso estarmos
convencidos de que os filósofos da China, ao contrário dos filósofos europeus
que, depois deles, acreditaram ter descoberto e aperfeiçoado Lao Tsé, sem,pre
ensinaram que seu Mestre havia recebido sua doutrina da antiguidade. Confúcio
disse: “Todas as coisas são devedoras do princípio Khien pela criação de sua constituição, pela aquisição da
vida formal; entretanto, o Tao é a porta
pela qual todas as coisas passam para receber seu nascimento”.
Sou Tseu Yeou disse: “É
do Tao que todos os seres obtiveram
aquilo que constitui a sua natureza”. Tsouhi, mais expressivo ainda, declara:
“O sentido de Khien só pode ser esclarecido pelo celeste Tao.” E o que dá a esta afirmação um alcance definitivo,
é que Tsouhi a escreveu em seu Comentário,
que hoje em dia faz parte das glosas da Tradição e que está inscrito, no
próprio capítulo sobre Khien, no Yi
King, com a fórmula tetragramática de Wen Wang.
É absolutamente
necessário reconhecer que a doutrina de Fo Hi e a doutrina de Lao Tsé são uma
única emesma doutrina, malgrado as pretensões de analistas europeus
insuficientes, cujos sentimentos não podem, de modo algum, prevalecer sobre as
certezas dos letrados amarelos. Aonde Fo Hi expressou-se com o cuidado da
síntese universal, Lao Tsé expressou-se com o cuidado do esoterismo ascético.
Mas os dois sábios marcham com passo igual na mesma Via do Céu.
Acrescentemos alguns
textos que, melhor ainda do que o comentário de Tsouhi, fazem parte do Yi
King e
de seu ensinamento clássico: “Quando se trata do Céu, se falamos dele de
um modo absoluto, é o céu que não se opõe: á a Via racional do Tao; é a atividade ou o começo de todos os seres” [12].
Os Julgamentos, ou glosas imperiais da edição oficial dos Ming,
dizem: “Wem Wang esclarece o sentido do termo Khien, simplesmente por meio do imutável Tao do céu. Trata-se do céu inteiro”.
“O fim e o começo do Tao são iluminados por uma grande claridade, de modo que
vemos aí seis situações (os seis traços do hexagrama Khien) apresentarem-se cada qual a seu tempo. O primeiro e
o último traço são o começo e o fim do Tao.
O Tao é a modificação e a transformação,
devidas à atividade; ele engendra todos os seres; aquilo que o céu confere, é o
destino; aquilo que os seres recebem, é a sua natureza; o Tao do céu e da terra é permanente; ele mantém a extrema
Harmonia[13].
Continuar com estas
citações de analogias seria pedante e difuso; as que apresentamos bastam para
demonstrar peremptóriamente que a doutrina de Lao Tsé é uma emanação direta e
uma aplicação profunda da Tradição primordial, voltada para um estado
intelectual e social. Veremos, no decurso de nosso exame, os traços desta
filiação. Saibamos então que iremos prosseguir através do estudo de textos
concisos e misteriosos do chefe do Taoísmo, e que encontraremos aí, junto com o
ensinamento divino dos Ancestrais, o mais belo, mas também o mais difícil
método de ascese que jamais foi ofertado à Humanidade.
III
O TAO
A obra direta deixada
por Lao Tsé, que influenciou e influenciará por muito tempo ainda os
espíritos dos homens com uma força toda
própria, é, materialmente, uma das menos consideráveis que existem.
Ela comporta três
opúsculos, ou tratados sucintos, dos quais apenas os dois primeiros são obra
direta do mestre: são eles o Tao, ou
“livro da Via”; o Te, ou “livro da
Virtude” (ou “da Retidão”); o terceiro, que é uma tradição oral, é o Kan
Ing, ou “livro das Sanções”[14]. Estes três tratados estão redigidos na forma de
fragmentos ou apoftegmas que os letrados chineses de todos os tempos sempre
apreciaram. Os fragmentos sucedem-se frequentemente de modo silogístico; eles
são também máximas, axiomas, provérbios ou, no caso, exclamações; eles são
sempre muito curtos; os hezagramas que os compõem foram cuidadosamente
escolhidos dentre aqueles que comportavam as mais consideráveis “essências de
idéias”. Eles impõem-se fortemente à memória, e muitos passaram para a
linguagem usual do cotidiano. É evidentemente o objetivo que tinha Lao Tsé ao
empregar esta forma de redação especial.Os amantes da filologia e da
controvérsia encontrarâo muito com que se satisfazer nos estudos de Pauthier,
Rémusat e Stanislas Julien. Esses senhores, a partir de traduções, que não
saberíamos, francamente, como elogiar, estabeleceram discussões e bibliografias
muito recomendáveis. A eles enviamos nossos leitores, no que concerne a esses
objetos didáticos.
No que concerne às
traduções de Lao Tsé, podemos dizer que a primeira, de Pauthier, é a mais
meritória, e que seu autor só não atingiu a perfeição por tentar cristianizar,
contra tudo e todos, o mestre chinês. Devemos assinalar ainda uma tradução mais
recente, certamente inexata do ponto de vista apenas linguístico, mas muito
apropriada, por sua extensão e suas lacunas talvez propositais, para fazer
penetrar as concepções de Lao Tsé no espírito dos ocidentais modernos[15].
Enfim, nós produzimos,
em dois fascículos, uma tradução exata dos liovros sobre o Tao e o Te, sobre
as quais não faremos nenhuma observação, senão que ela foi vista e aprovada, no
Extremo-Oriente, pelos sábios que detém a herança da Ciência taoíosta, e que o
filho de um deles, vindo à França especialmente com este objetivo, colaborou
até o último dia com nossa tradução e com os comentários e notas que a seguem[16].
Reproduzimos aqui a
tradução do Tao, seguida da doutrina,
até agora inédita no Ocidente, com a qual os mestres taoístas acompanham
oralmente o ensinamento do texto. Encontraremos aí toda a Via e toda ab
tradição.
I.
A via, que é uma via, não é a Via. O nome, que tem um
nome, não é um Nome. Sem nome, é a origem do céu e da terra; com nome, é a mãe
dos Dez Mil seres. Com a faculdade de não-sentir, chegamos perto de concebê-lo;
com a faculdade de sentir, atingimos sua forma. Isto verdadeiramente constitui duas
coisas. Aparecendo juntos, seu nome é fácil; para explicá-los juntos, sua
origem é obscura; obscura, ela contínuamente obscurece. É a porta por onde
passa a inumerabilidade dos seres.
Não podemos determinar o
Tao, nem dando-lhe um nome, nem
aplicando-lhe uma concepção ontelectual da Humanidade. O fato de alguém crer
que tem o Tao determinado em seu
espírito (na medida, ao menos, em que não se recebeu, indagou e digeriu em si a
doutrina) é uma prova de que não o compreendeu, e que não é capaz de segui-lo:
este é o sentido profundo da entrevista entre Lao Tsé e Confúcio relatada mais
acima.
Quando o Tao não possui um nome, ou seja, quando, do ponto de
vista da estase humana, ele não existe, então ele é verdadeiramente ele, ou
seja a origem única e poderosa do Céu e da Terra (ou das duas perfeições: Céu,
perfeição ativa, e Terra, perfeição passiva). Esta origem é única, pois o céu e
a terra não estão separados pelo dom da existência; esta origem é poderosa, pois nada pode não
originar-se dela; esta origem é obscura, pois nada originou-se senão dela; é
preciso acrescentar que a plenipotência da origem só é tal na medida em que ela
não está ainda manifestada, pois então ela é plenipotente para produzir Tudo, e
no momento da Concepção da Idéia, ela produz Nada; e não poderemos dizer o
mesmo quando ela tiver começado a produzir.
Ela começa a produzir
quando ela tem um nome, qualquer que seja, que lhe possa convir, e ela produz
Tudo; mas ela é a Mãe, ou seja que a consequência da Vontade do Céu feminilizou
a Potência. A partir daí, ela É e ela não É.
No entanto, essas
verdades não são compreensíveis à natureza sensível do homem; ele não é capaz
de começar a concebê-las a menos que possua a faculdade de não-sentir, ou seja
se ele perder a forma que lhe dá a sensibilidade; a partir daí, ele não concebe
estas verdades, mas ele se torna de uma receptividade adequada à sua concepção.
Ao contrário, se o homem conserva a capacidade de sentir, ele não atinge mais a
possibilidade da concepção, mas ele atinge a realidade da concepção exterior,
ou seja, ele compreende as formas nas quais escoam as intenções da Vontade do
Céu. Isto está certo, sem dúvida, mas pelo fato mesmo de que ele eprcebe as
formas, fica-lhe interditado conceber a Idéia única que essas formas múltiplas
revestem.
Entretanto, a vontade do
Céu e seus efeitos são uma única e mesma coisa, e nos aparecem como sendo duas
coisas, porque só as vemos por reflexos[17], que são dois reflexos visíveis e inteligíveis de
uma Coisa única, invisível e inconcebível. Quando estes dois reflexos aparecem
juntos, o nome é fácil, pois damos um nome a cada um deles, e assim o espírito
do homem se compraz na dualidade e na diversidade; mas, explicados
paralelamente, sua origem se torna obscura, por ser única; e, à medida em que
tentamos explicá-la, e que a cobrimos de caracteres e apreciações, ela se
afasta e se torna cada vez mais obscura. Mas podemos dizer que a origem é a
porta por onde passa a Universalidade daquilo que É.
II.
Os seres do universo conhecem o bem; eles desejam fazer
o bem; no momento fixado para o bem, surge o mal[18].
Os seres conhecem a probidade; eles desejam fazer a probidade, então surge a
improbidade. Uma coisa e o seu contrário nascem juntos; o difícil e o fácil
produzem um ao outro; o grande e o pequeno aparecem um pelo outro; o alto e o
baixo determinam um ao outro; o tom e o som concordam. O antes e o depois
comandam-se mutuamente. É assim que o homem perfeito não age, por não ser
inferior: fazer e deter-se, esta é a sua doutrina. Os dez mil seres trabalham,
e ele não os esquece; ele os produz e não os possui. Ele os desenvolve e não
tira vantagens disto; eles têm méritos, mas ele não participa deles. Não,
evidentemente. Tendo construído a casa, ele não habita nela.
A consciência dos seres
não é determinada senão pela apreciação e a diversidade de suas ações. Os seres
pensam conhecer e desejem o Bom do Bem, ao menos segundo as concepções que
fazem deles. Mas, se eles provocam uma coisa, existe uma outra coisa, que é o
contrário da primeira, e que eles não provocaram; esta coisa, sendo o contrário
daquilo que é chamado de o Bom do Bem, é o Ruim do Mal; donde deriva que é a
ação que diferencia e especializa os estados de consciência dos seres, e que é
a bela ação que cria o Ruim, e a boa ação que cria o Mal. Assim, essas noções
são dependentes uma da outra, determinadas uma pela outra, inexistentes uma sem
a outra; equivale a dizer que na verdade elas não existem em relação ao que É,
e não tomam sua aparente realidade senão dos estados de consciência, o que é
ilusório do ponto de vista do Ser.
Todas as outras
relatividades do Universo determinam-se assim umas às outras, e não possuem
existência real, mas apenas relações artificiais, que só duram enquanto dura a
ação que as criou.
Assim, a ação, porque
ela determina, e devido às especializações que ela atribui às coisas que ela
determina,, é algo inferior; assim, o sábio, que não é nem quer tornar-se
inferior, não age. Mas esta não-ação, similarmente à da Via, não é uma inação;
pois a Via, que não participa, nem dos movimentos, nem das idéias, nem dos
trabalhos, nem dos méritos dos seres, produziu-os todos; vale dizer quer ela
é o mecanismo graças ao qual os seres
podem se mover, pensar, trabalhar e merecer. Do mesmo modo, enquanto que os
seres, graças à Via, se desenvolvem, ela não se desenvolve e permanece
imutável. Ela forneceu a causa, e desinteressa-se dos objetos; os seres estão
sujeitos às causas e dispensam os seus efeitos na Duração. Esta é a verdadeira
distinção das Coisas. É por isso que se diz que a Via é semelhante àquele que
forneceu os planos, os materiais e a energia para construir uma casa, mas que
não pode habitá-la.
III.
Não exaltar os sábios, é querer que os homens não
lutem; sem riqueza, e com dificuldade para enriquecer, é querer que os homens
não combatam por seus ineteresses; não buscar as coisas do desejo e do
sentimento, é querer que os homens tenham um coração tranquilo. Eis o que o
homem perfeito ordena: coração vazio, beleza externa; fracas aparências, corpo
vigoroso. É querer que os homens não saibam, nem desejem. É querer saber agir,
mas não chegar a agir. Agir consiste também em não-agir. Assim, nunca se está
sem agir.
Este é o meio de atenuar
as consequências da ação, e o sentimento dualista provocado pela ação na
consciência humana. O Mestre captou a ação e suas consequências nos três
mundos: no material, é a riqueza; no sentimental, o desejo; no intelectual, o
saber. Ora, a perspectiva de riqueza conduz à luta entre aqueles que não a
possuem, o apetite do desejo conduz à paixão os homens que não têm o coração
tranquilo, a exaltação dos sábios conduz à revolta dos que não possuem o saber.
Luta material, paixão
sentimental, revolta intelectual, tais são os três deploráveis estados criados
pela ação – mesmo aquela considerada boa
pela consciência – , e pela repetição da ação. Assim, se estamos em um estado
humano de consciência, é preciso atenuar suas consequências: é preciso não
possuir riquezas, é preciso desprezar as coisas do desejo, é preciso não
exaltar os sábios. Assim, e apesar da ação, será possível conservar a paz,
mantendo segredo das sempre fatais con sequências da ação. Portanto, a norma do
homem perfeito e a regra de sua conduta é de possuir um coração isento de
paixão e vazio de sentimentos, sob um espírito amável e sob uma inteligência vasta;
é também de possuir, junto com um temperamento vigoroso e um caráter forte, o
mínimo de paixões possível.
Todas as riquezas, tanto
morais como materiais, permanecem assim escondidas sob a “beleza exterior”. O
povo, que não as conhece, não as deseja, e assim seu coração permanece
tranquilo.
Entrtetanto, que faz o
homem sábio, dotado em segredo de toda a vontnade e de toda a potência? Ele
aplica-se em não agir. E, querendo não agir, ele na realidade age; é por isso
que sua não-ação não é uma inação, mas uma ação verdadeira. Ao mesmo tempo, ele
age e não age. E ele é assim semelhante à Via, que produziu todos os seres sem
participar dos seus movimentos. A vontade de permanecer não-agente, esta é a
soma de todas as ações; a vontade de ser imóvel, esta é a soma de todos os
moviemntos; a vontade de ser sem paixões, esta é a soma de todos os desejos. E
assim, o homem superior possui, total e realmente, todas as coisas que ele não
quis, na aparência e em particular.
IV.
A Via é o termo, mas também o meio. Sem dúvida, ela é
sem fundo; é o rio no qual os dez mil seres possuem sua fonte. O homem superior
fala manso, ele determina a sorte; ele equaliza seu esplendor; ele equaliza as
trevas; ele é semelhante a um filho piedoso. Mas, eu, eu não conheço aquele
único do quel ele é filho. Ele é a imagem do Ancestral do Mestre.
A Via é o termo, quando
é o homem que fala dela; a Via é o meio, quando o homem a considera do ponto de
vista do universo. Este fragmento é o resumo da situação da Via em relação às
condições do indivíduo[19]. O homem, enquanto indivíduo lançado no círculo
vital do Yin-Yang, tem a Via como fim,
porque é sobre a espiral evolutiva universal que terminam todos os ciclos
particulares. Mas a personalidade, separada do indivíduo, vê a Via como meio,
pois é utilizando todos os pontos da espiral que ela atinge, com e por meio
desta espiral, a transformação última e reintegradora. É assim que todas as
personalidades, que são as flores eternas da Via, e todas as individualidades,
que são as colorações passageiras e os perfumes fugidios destas flores, tem na
Via sem fundo sua fonte. De tudo isto, o sábio, “que abriu a sorte”, ou seja
que conhece a sucessão benéfica dos destinos do universo, fala com
tranquilidade. Ele se mantém a igual distância do esplendor e das trevas, e
assim ele é o filho piedoso da Via. Mas é impossível saber de quem ele é o
filho espiritual. Mas ele representa os traços do Grande Ancestral, que é o
Ancestral do Mestre (Lao Tsé).
V.
Serão o céu e a terra sem beleza? Então os dez mil
seres são vazios. O homem perfeito é sem beleza? Então as cem famílias são
vazias. O céu e a terra são regulares; como os homens são irregulares no agir?
Eles são vazios, e não sabem; eles se agitam, e agitando-se afastam-se. Eles
discutem, e discutindo perdem-se. Não é assim quem retém seu pensamento em seu
coração.
Se o céu e a terra não
estivessem unidos (a beleza é o apelo à união), o universo não existiria (a
união do Céu e da Terra é o produto por excelência da Vontade). Se o homem perfeito não existisse, a Humanidade não
teria nenhum exemplo a seguir, e ela seria inerte, como que não-existente. Mas
o céu e a terra estão unidos, e o homem perfeito existe, ou seja, tudo está em
ordem no universo.
Como é possível que os
indivíduos que compõem a Humanidade ajam como se não tivessem exemplos sob seus
olhos? Suas ações os afastam da verdade. Como é mais feliz, como está mais
próximo da Via aquele que se detém e não age, e conserva dentro de si todos os
pensamentos e toda a sua potência.
VI.
Os subterrâneos do espírito não morrem; ele está nas
trevas profundas. Profundo e tenebroso é o Tao; o céu e a terra formam sua
raiz. Pensar, pensar ainda como um filho piedoso, é o meio de triunfar. Inútil
tocar.
Quando o espírito pensa
verdadeiramente, no fundo de si mesmo, aquilo que ele deve pensar, ele pensa na
vontade do céu e no seu meio, o Tao; e,
pensando neles, ele se identifica a eles. Assim, ele é eterno, mesmo nas trevas
profundas, como a própria raiz do Céu e da Terra[20]. Estas são coisas nas quais se deve pensar sempre e
sem cessar, para atingir sua concepção verdadeira; é assim que o filho piedoso
pensa continuamente no seu pai morto e nos ancestrais desaparecidos, embora não
os possa ver, e sua invisibilidade não diminui em nada a intensidade de seu
pensamento. Assim pensa o sábio; e, se ele acreditar tocar ou poder tocar no
objeto de seu pensamento, é porque seu pensamento não se dirige para o
objetivo, que é inatngível, da mesma forma como os espíritos ods mortos,
reintegrados no mesmo objetivo.
VII.
O céu e a terra estão no infinito; o céu e a terra
vivem eternamente no infinito. Certamente eles não engendraram a si próprios; é
por isso que sabemos que eles são eternos. Assim os homens não podem ainda
tomar como modelo o homem perfeito; porém mais tarde os homens se tornarão
todos como o céu; para o homem perfeito os homens são estrangeiros, mas ele os
trata afetuosamente. Ele não perde nada; ele não engana. Sozinho, ele pode
adquirir.
Estando e vivendo no
infinito, o céu e a terra estão fora do alcance dos homens. O ceú-terra, ou seja
a Vontade original que os emitiu, não engendrou a si mesma, nem foi engendrada
por outros (por ser original). Assim, ela é eterna. O Sábio que segue os
desígnios desta Vontade está hoje bem acima dos homens; no futuro, não apenas
todos os homens serão sábios, mas eles serão até confundidos com o céu.
Esperando, o homem sábio ama os homens, dos quais no entanto ele não espera
nada; ele não perde nada de sua força, porque ele não age; ele não mente,
porque ele não fala. A afeição pelos seres, a contração da vontade e o
silêncio, são estes os meios para se tornar um sábio.
VIII.
A água pura é superior; a água é pura? Os dez mil seres
são perfeitos, mas eles não são perturbados. Aonde está a multidão dos maus, é
lá que serve o método da Via. A terra é pua? Os corações são puros como um rio.
Todos os homens são puros? Eles agem em pura confiança. Eles agem com pureza,
retamente; eles trabalham com pureza; eles têm o costume de serem influenciados
com pureza, embora eles não sejam perturbados. É por isso que não há necessidade
do método.
Este trecho indica a
época em que o estudo e o método da Via são necessários. Quando os homens são
maus – ou seja, quando, ao contrário do preceito anterior, eles não possuem a
afeição universal e diluem-se em atos vãos e palavras enganadoras – o método é
necessário.
Mas, quando o coração do
Sábio e quando o coração dos homens é semelhante à água pura, ou seja são
límpidos e simples, então a confiança e o direito reinam; somente a influência
da Via age sobre todos, sem lhes provocar emoções; pois a natureza simples está
acima das emoções; a sentimentalidade e a sensibilidade humanas, únicas causas
das perdas da vontade (atos e discursos vãos), desapareceram, e os homens
obedecem apenas à razão. A partir daí , não há necessidade de método.
IX.
Tomar muito e guardar não se parece com o que é
suficiente. Agir bruscamente, depois repousar: situação impossível de
conservar. Ouro e diamantes escondidos na família: impossível conservar. Rico e
vão: a riqueza se mostra sozinha ao exterior. O homem que tem mérito e cujo
nome é ilustre só se dedica a tornar seu espírito superior: eis a Via.
Este é o primeiro trecho
sobre a ascese moral, o preceito do desligamento das coisas exteriores, que é a
consequência natural da contração interior do espírito. Não se deve guardar
além do necessário; não se deve agir além da ação necessária e do repouso
necessário, sem brusquidão.
X.
Os homens carregam o corpo e o sangue como um invólucro
que eles não podem abandonar. O espírito se transmite idêntico, nas crianças
até as extremidades das raças; ele é, até o fim, obscuro e claro. O Céu ama
todas as coisas e comanda tudo. Mas nem todos agem igual. A porta do Céu abre e
fecha; então o Céu experimenta. Os homens vêem com clareza dos quatro lados,
mas não distinguem bem. Aqueles que nascem, colhem os méritos dos pais. Eles
querem engendrar, eles não podem. Eles trabalham e não produzem. Eles querem
crescer, e não trazem nada de novo. Esta também é uma via, mas uma via
inferior.
Este trecho indica o
estado humano contrário ao trecho VIII, para quem foram escritos os preceitos
do trecho IX. É preciso – e isto é inerente à Humanidade – que o homem carregue
seu corpo e seu sangue (segundo movimento inferior do setenário humano: o
movimento material) até o fim de sua modificação atual; da mesma forma, o
espírito de uma raça perpetua-se hereditariamente nas crianças, com as
qualidades fundamentais deste espírito. Sendo estas qualidades um dom do Céu,
sejam elas obscuras ou claras, o Céu não levará isto em conta. O Céu conta
apenas os esforços que fazemos para conhecê-lo, e não os resultados destes
esforços.
Estes esforços não são
iguais em todos os homens, e sobretudo não se exercem sobre o mesmo plano.
Embora, graças ao Céu, eles possam ver a luz, não sabem ainda servir-se dela,
ou seja, eles nãoa utilizam para ver os objetos – para determinar as condições
da Sabedoria. Evidentemente, eles colhem os méritos de seus pais; mas, ao
colher estes méritos, els herdam também sua natureza medíocre.
E assim eles agem de
modo inferior. Eles compreendem o que deve ser feito, mas não chegam a fazê-lo.
Permanecendo como homens, eles possuem o desejo, e apoiam-se no desejo para
agir; mas eles não têm a razão, e assim não se apoiam na razão para ter
sucesso. Portanto eles não produzem nada, e seu espírito não cria nada de novo
para aumentar seus conhecimentos, o que é o verdadeiro preceito da Via. Não
obstante, eles têm mérito, porque se esforçam. E seu trabalho é uma via para a
Via; mas ele não é a própria Via.
XI.
Trinta raios reunidos formam o conjunto de uma roda;
isolados, eles são inúteis; se sobre o
conjunto houver um carro, podemos nos servir dele. Tomar diretamente uma
propriedade, não convém; mas se possuímos uma propriedade, podemos nos servir
dela. Construir uma casa, reformar ou reparar uma casa, não convém; mas, se
possuímos uma casa, podemos nos servir dela. Por isso a possessão é uma coisa
má; a utilização é uma coisa conveniente.
Este capítulo tem um
sentido exotérico e um esotérico; a tradução acima é o sentido exotérico; ela
prega simplesmente o desinteresse e o desprezo pelas riquezas, do ponto de
vista moral: o Sábio deve utilizar e não possuir; ele deve, no mundo
contingente, usar o que existe, e não constituir o que não existe; pois o uso
não pressupõe a propriedade, por mais tempo que passe; e assim o Sábio jamais
está ligado àquilo de quê se serve, enquanto que ele poderia estar tentado a
esta ligação, se a coisa lhe pertencesse.
Podemos extrair daí um
ensinamento político bastante lógico, que é a condenação da propriedade
particular, quando ela ultrapassa a satisfação das necessidades normais do
homem. Se ninguém deve possuir, e todos podem utilizar, a propriedade torna-se
coletiva, e cada cidadão privado voluntariamente do direito de possessão
adquire um direito legal e geral de uso. Na prática, não se trata do socialismo
de Estado, que só pode germinar nas sociedades previamente formadas no
monarquismo hereditário e autocrático; mas trata-se, e a China pratica-o há
mais de quatro mil anos, o comunismo, ou propriedade coletiva de raiz, geradora
etnográfica da entidade social, que chamamos de comuna (ou vila), sendo que
todos os membros da comuna (ou habitantes da vila) são imprescritivelmente
iguais no emprego e no desfrute do bem comum.
Existe neste capítulo um
sentido esotérico e metafísico profundo, do qual damos aqui a tradução; esta
tradução é tão exata quanto a primeira, bastando transpor os caracteres ao
plano metafísico:
Trinta raios reunidos formam um conjunto de rodas;
isolados, eles são inúteis: é o vazio que os une, que faz deles uma roda da
qual podemos nos servir. Uma propriedade que podemos tocar e tomar é inútil: é
o ar que a envolve que faz dela um bem que podemos utilizar. Construir,
reformar, reparar os materiais de uma casa, isto é inútil; é o vazio entre os
materiais que faz com que uma casa possa servir: é por isso que a matéria sua posse são más; só o que não é matéria ou
posse é utilizável.
Assim, o princípio
primordial é exposto novamente: o que é material é contingente; apenas o
imaterial existe; o Ser apenas se manifesta, o Não-Ser é. Mas, por um corolário
arriscado, o que é material só é utilizável em função do imaterial. A
contingência que percebemos só é perceptível por causa do absoluto, que não
podemos perceber. O Ser que compreendemos só nos é inteligível devido ao
Não-Ser, que não compreendemos. A comparação taoísta, transportada para o
domínio do divino, forneceria a mais irrefutável prova da “existência de Deus”.
O sentido esotérico do fragmento XI do Tao
não pode ser aprofundado muito além disso. Saibamos apenas que nada do que
vemos, pensamos ou concebemos não é isento de uma cooperação expressa ee
continua daquilo que nãopodemos nem ver, nem perceber, nem conceber, e que, por
conseguinte, todos os nossos atos, mesmo os mais materiais, todos os nossos
pensamentos, mesmo os mais sutis, são um involuntário e invencível
reconhecimento do Grande Mistério.
XII.
As cinco cores, o homem inteligente as distingue pelo
olho. Os cinco tons, o homem inteligente percebe-os com o ouvido. Os cinco
sabores, o homem inteligente degusta com a boca. Rapidamente, como a corrida do
rato no arrozal, tudo se espalha pelo espírito do homem inteligente. O homem
inteligente trabalha com perseverança as coisas difíceis de adquirir. Assim, o
homem trabalha, mas não em público; é por isso que ele faz a primeira coisa em
público, e a segunda em segredo.
O Mestre indica aqui
como é preciso agir para obter a ciência; enquanto que a ciência física se
adquire mecanicamente, por assim dizer, pela existência ativa dos cinco
sentidos, a ciência intelectual não se adquire senão por um trabalho obstinado
e assíduo; enquanto que os resultados da percepção são rápidos, como a corrida
do rato no arrozal, os resultados das concepções são lentos e obscuros. Da
mesma forma, a primeira destas ciências pode ser obtida no meio da multitude; a
outra só se obtém no isolamento.
É preciso notar também
que, conforme a época, as coisas difíceis não
podem ser adquiridas a não ser depois das coisas fáceis, e por meio das
próprias coisas fáceis – vale dizer, na realidade, nãopor elas mesmas, que não
servem de nada, mas pelo canal intelectual que sua compreensão abriu no cérebro
do homem assíduo.
XIII.
O tremor dos lábios é indício de se estar tomado pelo
temor. Porque o rico e o ilustre estão inquietos, assim como eu que sou pobre?
E como o tremor dos lábios do rico é um indício de seu temor? Ele treme com
medo de cair. Quando ele possui, ele também é tomado de temor. De que modo o
rico e o ilustre são tomados de temor, assim como eu que sou pobre? Nós vivemos
uma grande inquietude, e eis porque: o céu nos fez com uma personalidade; se
ele não nos tivesse feito com uma personalidade, porque estaríamos inquietos? É
por isso que o homem rico deve pensar em ajudar todos os homens; convém que ele
seja seu depositário; assim, ele terá a fidelidade piedosa de todos os homens;
convèm que isto seja claramente dado a conhecer a todos os homens.
O Mestre sempre fornece
primeiro as provas tangíveis do seu raciocínio. É assim que, para provar a
diferença que existe entre o homem rico e o sábio, ele especifica que o rico
está perpetuamente em temor, temor de perder suas riquezas, enquanto ele ainda
as possui; e, quando ele as perde, temor de não poder viver sem elas, pois ele
não aprendeu a assegurar a sua sobrevivência por si só. E esta vida,
verdadeiramente insnuportável, não lhe serve de nada, pois suas preocupações só
se dirigem a coisas materiais, que um dia o abandonarão.
O homem sábio, este
também inquieta-se com a personalidade eterna que o Céu lhe fez, da qual não
pode despir-se, mas que ele, com sua inquietação contínua, aperfeiçoa e cobre
de méritos.
O Mestre tem como axioma
– e a experiência universal o confirma – que a posse de riquezas é contrária à
clareza de espírito, e que assim sendo o rico não pode, a menos que pratique o
abandono das riquezas, obter os mesmos méritos que obtém o homem sábio e
assíduo, cujas preocupações são mais altas. Não obstante, o rico pode obter
outros méritos; e ele pode obtê-los, segundo o teorema inclupido no capítulo
XII, através dos meios inferiores de que dispõe. Ele pode obtê-los se ajudar os
homens e se se tornar seu depositário. Assim, as riquezas serão perdoadas e
justificadas pelo seu objetivo; e o rico participará dos méritos intelectuais
dos Sábios que tenham trabalhado para ele, se os ajudar a cumprir sem distração
seu trabalho, fazendo-os participar de seus bens materiais. Existe aí uma
reciprocidade que convèm reter, e cujos benefícios vão para o rico; pois, se o
sábio pode dispensar as riquezas, o rico não pode dispensar os méritos dos
sábios. E assim os sábios dão mais do que recebem.
Guardemos também que, do
ponto de vista social, o Mestre considera os ricos como depositários diante dos
outros homens, e que assim ele estende aos indivíduos e aos bens móveis a
teoria comunista que rege as coletividades e a repartição dos bens da terra.
XIV.
Olhamos, e não vemos a Via: seu nome se pronuncia
Ausente. Coocamos o ouvido a postos, mas não escutamos a Via: seu nome se
pronuncia Sutil. Buscamos, mas não tocamos a Via: seu nome se pronuncia Vazio.
Estas três coisas nãopodem se tornar claras; é porque, embora múltiplas, elas
são uma só coisa. Sua parte superior não é evidente; sua parte inferior não é
oculta. A Via Eterna não possui um nome que lhe convenha. Ela reintegra os
seres no não-ser. Assim portanto, nãopossuir forma é a sua forma; nãopossuir
exterior é seu exterior; assim, os homens sofrem continuamente buscando-a.
Diante da Via, não vemos sua cabeça; atrás, não vemos seu dorso. Estudando
longamente a Via, podem existir Sábios; o Sábio ensina o passado e o presente:
portanto, ele conhece a Via.
O Mestre dá aqui uma
definição do Tao, que participa de todas
as qualidades do não-ser; no plano intelectual, ele não pode ser compreendido
pela razão: é o Ausente; no plano sentimental, ele não pode ser percebido pelo
amor: é o sutil; no plano físico, ele não pode ser captado pelos sentidos: é o
vazio. Assim, o Tao escapa aos três
planos sobre os quais a Humanidade é capaz de assimilar uma noção. É por isso
que, não podendo conceber esta noção, nós ulgamos sua essência negativa. O Tao é três em um: ele é três na sua tríplice afirmação
do não-ser; ele é um em sua identificação com o não-ser. E todas as coisas não
podem deixar de permanecer obscuras para os homens. Em nenhuma parte a
determinação da essência do Tao, e
daquilo que o espírito humano pode inferir dela, está inidicada de modo mais
expresso. Mas o que faz o Tao, se ele
não é o não-ser? E qual é o objetivo de sua diferenciação destas duas entidades
idênticas? É que o Tao reintegra os
seres no não-ser. Mas lembremo-nos que o Tao não age: ele não é uma força, ele é um mecanismo. Em uma palavra, ele
é agido no Tao. Lembremo-nos da
definição do filósofo Shi Ping Wen, em seu comentário do Yi King: a transformação é o mecanismo que reintegra todos
os seres depois da série das modificações. O Yi King contemplou assim todo o Tao, mais de dois mil anos antes que Lao Tsé lhe desse a
denominação que permaneceu. O que age no Tao? A vontade do céu. Que devem fazer os seres? Conhecer o Tao e, uma vez conhecendo-o, não mais agir.
Assim é o Tao, sem forma, sem limites, sem exterior, e n o entanto
ele deve reger seres que possuem formas, limites, exterior, e que assim não
podem compreender, perceber e sentir senão o exterior, o limite, a forma. É por
isso que a Via é difícil, e que, para conformar-se a ela, o Sábio deve
violentar sua natureza, e por conseguinte sofrer... Não podemnos ver a Via, nem
por diante quando caminhamos com ela, nem por trás quando retornamosa ela:
portanto, se nos achamos seguros por vermos, percebermos ou compreendermos
alguma coisa, é, ao contrário, a prova de que não estamos em conformidade com a
Via[21].
XV.
Antigamente, os Sábios ocupavam-se em ensinar; eles
eram pouco numerosos, profundos, misteriosos e penetrantes. Herméticos, não era
possível compreendê-los; embora não os possamos compreender, tentemos
determinar sua aparência. Eles eram circunspectos, como quem atravessa um rio
gelado; prudentes, como quem tem medo dos quatro lados; indiferentes, como o
estrangeiro. Quanto a nós, somos como coisas que se afogam e desaparecem,
grosseiros como coisas duras, vazios como buracos. Entre nós e os Sábios,
existe como que uma água revolta. O Sábio, que se recorda, detém o movimento da
água, e a torna clara; o Sábio, que se recorda e que obteve a paz, consegue uma
vida longa. É assim que ele observa a Via; ele não se expande, nem quer se
expandir; desta forma ele se preserva, e não tem necessidade de se renovar.
Esta página, muito
simples, nãoprecisa de nenhuma explicação. Ela coloca a diferença de atitude
exterior que existe entre os sábios e os que não o são, mesmo os que se
esforçam por imitá-los e segui-los. Lembremos que as qualidades interiores
positivas do Sábio traduzem-se em qualidades exteriores negativas, e na
diluição do indivíduo tangível em proveito da personalidade intangível.
XVI.
Um homem que está impedido em seu objetivo caminha do
mesmo modo no sentido da declividade natural; os dez mil seres caminham e
trabalham, os homens se conformam e seguem. Todas as coisas, obscuras quando
juntas, retornam à sua origem. Retornar à sua origem, é estar em paz; estar em
paz, é conformar-se. Conformar-se, é lembrar-se; saber lembrar-se, é tornar-se
clarividente. Não saber lembrar-se conduz a agir mal inconscientemte. Saber
lembrar-se, é adquirir méritos duráveis. O mérito durável faz o rei; um rei é
feito durável pelo céu; o céu é durável pela Via. A Via é durável na
eternidade; assim, as raças não terminam nunca.
O Mestre diz seu
pensamento oculto sobre a incessante evolução; ela é necessária e natural como
é necessário e natural que o oblíquo
desça pela declividade da montanha; mesmo impedido por suas limitações enquanto
espécie, o homem caminha para a evolução; a universalidade das coisas,
dispersas na corrente das formas, evolui: os homens seguem este movimentoe
conformam-se a ele.
Conformando-se a este
movimento – que é o movimento helicoidal da evolução universal – os homens
retornam à sua origem. O Mestre aplica, a este retorno à origem, uma dupla
série de textos silogísticos, uma sobre o plano metafísico universal, outra
sobre o plano benéfico da ascese pessoal.
O retorno à origem
constitui a paz, pela e na normalidade dos destinos; esta paz é conforme aos
desígnios iniciais da Vontade do Céu. Mas a paz em conformidade com estes
desígnios permite àquele que a desfruta de lembrar-se, e lhe dá a clarividência
do passado, o conhecimento do presente a a intuição do porvir analógico.
Que vantagem pessoal
conferem estes graus da escala metafísica? O conhecimento dos seres e a
consciência de seu ser faz com que sejam adquiridos méritos duráveis. E estes
méritos duráveis conduzem o indivíduo à realeza, o rei ao céu, o céu à Via, e a
própria Via à Eternidade. É por isso que a conformidade de perspectivas que os
homens têm com o Céu, conduz ao infinito.
XVII.
O Grande Chefe, os homens abaixo dele sabem que ele
existe. Algumas vezes, eles o amam e pensam nele; outras eles o temem, outras o
injuriam. Ter pouca confiança, é não ter confiança. Assim portanto, para falar
sabiamente, e para que méritos pessoais possam ser adquiridos, é preciso que
todos os homens ajam naturalmente.
Esta progressão da
individualidade, que corresponde a uma regressão intelectual e moral, aplica-se
tão bem à transcendência metafísica quanto à contingência social. Quando a
Humanidade está unida ao Céu, ela o ama; quando se separa dele, o teme; quando
se opõe a ele, injuria-o. Quando os reis não fazem sentir sua autoridade[22], eles praticam o não-agir; os cidadãos, não sentindo
sua administração, o amam. Quando os reis, separados do Céu, pretendem agir com
ações paralelas ao Céu, os cidadãos conhecem seupoder, e, mesmo que ele lhes
seja vantajoso, o temem. Quando os reis, opostos ao Céu, e definitivamente
individualizados, agem sem se preocupar com a conformidade ao Céu, os cidadãos
sofrem sob seupoder, e o detestam. E assim engendra-se, apenas pela ação, uma
inferioridade geral e uma desconfiança recíproca. O ensinamento da Via leva a
agir naturalmente, ou seja sem motivos, mesmo louváveis, pois um motivo
louvável supõe a existência de um motico contrário, que é reprovável. Não ter
motivos para agir conduz o sábio a não agir, e este é o objetivo indicado pela
Via.
XVIII. Os
homens que praticam a Grande Via possuem a justiça e a humanidade. Praticando a
inteligência, eles possuem o respeito que é trazido pela reflexão. Os homens
desunidos possuem o egoísmo. O império está perturbado e confuso? Eis aqui os
oficiais Hoan[23].
Na Via, a justiça e a
humanidade existem inconscientemente; mas é como se elas não existissem, pois
não há ninguém que seja nem justo nem humano, e não podemos dizer que um homem
é justo e humano, a menos que haja a seu lado, ao mesmo tempo, um homem que não
tenha justiça nem humanidade. A justiça e a humanidade só são louvadas para
converter aqueles que não as possuem; elas não existem, a não ser que a Grande
Via esteja perdida.Isto necessita inteligência, e a inteligência humana pratica
e respeita a reflexão; é o que faz a
perda da Via, segundo a qual é preciso agir naturalmente e sem raciocínios.
Da mesma forma, a
desunião entre os homens cria os indivíduos, e os indivíduos não podem possuir
senão o egoísmo. Da mesma forma, a desunião entre os reinos do Império produz a
confusão, e os problemas só podem ser reprimidos pela força. Assim, de todos os
modos, o homem está distante da Via.
XIX.
O espírito penetrante do Sábio possui méritos e
ciência; então os homens são perfeitos de cem maneiras. O espírito penetrante
possui méritos da humanidade; então os homens obedecem e têm piedade filial. O
espírito penetrante possui méritos e poder; assim desaparecem os ladrões e os
piratas. Eis aqui verdadeiramente três coisas: trabalharemos o bastante para
compreendê-las? O Sábio as retém; ele vê o bem oculto; ele quer aprofundar
ainda mais a verdade.
No domínio intelectual,
assim como no sentimental e no material, o espírito do Sábio domina; num ele
tem a ciência, e, comunicando-a aos hoemns, eles se tornam perfeitos. No
sentimental existe a humanidade, e impregnando com ela os homens, estes se
tornam maleáveis e piedosos. No material, enfim, está o poder, e, fazendo os
homens sentirem-no, o mal e os bandidos desaparecem. Isto parece bom, mas é
cada vez mais menos bom; pois o Sábio age nos três planos, mas pode ele prever
o resultado de sua ação? Que aconteceria se os homens fossem demasiado
limitados para receber sua ciência, demasiado duros para sentir sua humanidade,
demasiado perversos para aceitar seu poder? E, se supomos que uma ação
intelectual torna os homens sábios, que uma ação moral os torna piedosos, que
uma ação material os torna tementes e honestos, é porque é possível que homens
não sejam nem sábios, nem piedosos, nem honestos. Enquanto que, na realidade,
se a ação não se produzisse, a alternativa não se colocaria. Não existiriam
homens perfeitos, nem limitados, nem piedosos, nem bárbaros, nem honestos, nem
ladrões; haveria uma Humanidade imóvel, sem ação direta ou reflexa, e seguindo
sua Via. A dedução desta consequência é delicada, e por isso o Mestre se
pergunta se haverá reflexão suficiente para a compreensão do fundo daquilo que
ele quis expressar.
XX.
O espírito que estuda não está inquieto. Sendo todos
iguais, os homens marcham pelo mesmo caminho.Os bons caminham junto com os
maus. Embora caminhem juntos, eles não se confundem. Os homens são inquietos;
não é possível não ser inquieto. Os dissolutos não sofrem ainda as calamidades;
e esta multidão regozija-se, feliz e inconsideradamente, como se subisse ao
Templo no m~es de Xuan. Eles pensam: eu sou jovem, ainda não é tempo de ser
infeliz; eu pareço uma criança que não deixou de mamar. Eu digo: sim, sim, mas
eu pareço com a criança que não se comporta segundo a ordem. Todos os homens
possuem o supérfluo, só eu não me ligo a ele. A estes homens, de coração
estúpido, os males acon tecem. Mas eles são ligeiros. Eles dizem possuir o
espírito esclarecido; mas só eles são confusos. Eles dizem que seu espírito é
assíduo; mas só eles são angustiados e vagos; eles são como o mar, confusos
como aquilo que não tem repouso. Os homens tentam adquirirpensando: só nós
somos importantes; nos é fácil sermos homens; nossa mãe é rica para nos
alimentar.
Todo este trecho só
contém considerações para levar os homens a desconfiar que uma mesma aparência
acompanha aqueles que sabem e aqueles que, voluntariamente ou não, ignoram. A
alegria fácil, agradável de se sentir, e que é permitido a todos procurar, que
consiste numa vida charmosa, na contemplação das belezas naturais, na
utilização das vantagens que estão ao alcance, esta alegria fácil não é mais
favorável à aquisição da sabedoria do que as riquezas importantes e perigosas
por sua própria importância.
Contar com a intervenção
dos pais ricos para alimentar-se e prosperar, é uma prova de lascidão, inércia
e impotência; contar apenas com a necessidade evolutiva do universo e com as
condições mecânicas da ascese humana para progredir, é uma prova de estupidez,
de insuficiência intelectual e de uma incompreensão total da Via.
XXI.
A virtude brilhante e superior busca a Via. A via
fornece a abundância de todas as coisas; embora o sábo espere muito, ele ganha
paciência; ele obtém paciência, pois, em seu coração, ele já possui um apoio;
da mesma forma ele espera, obtém paciência, ele já possui a abundância; ele
compreende e ele chama, pois em seu coração ele tem o espírito, e este espírito
é fiel e direito. Em seu coração ele tem esperança; jamais ele esqueceu estes
nomes. Ele instrui, dirige, ama a Humanidade. Como sabemos nós intruir e
dirigir os homens? Faça-o por si mesmo e conserve isto.
Esta página é uma
daquelas, tão frequentes, em que o sentido do texto pode ser entendido em dois
planos: a tradução acima refere-se ao
plano moral e sentimental, ao plano individual e humano. O Sábio obtém a
paciência esperando os bens definitivos que traz a Via, porque, um após outro,
ele recebe dela um apoio (material), uma abundância (sentimental), um espírito
fiel e direito (intelectual). E, como ele jamais esquece o nome da Via, a
consciência de si lhe fornece a esperança da Via. É neste sentido que ele
dirige a humanidade por suas afeições e por seus exemplos.
Eis agora a paráfrase
desta mesma página, dando aos caracteres seu sentido filosófico, ou seja
transpondo-a ao plano metafísico:
As formas da Virtude, eis a única maneira de se ver
a Via. A Via é a totalidade eterna e imutável: dentro dela, podemos supor pelas
imagens, ela é eterna e imutável; dentro dela, podemos ver seres inumeráveis,
ela é eterna e profunda; dentro dela, podemos conceber a essência, esta
essência imutável e rígida. Dentro dela, existe continuidade; seu nome jamais
passou. Ela dá a todos os seres nascimento, direção e aspiração. Como pode ser
isto? Por ela própria.
Assim, a Humanidade
distingue na Via (na criação) as imagens físicas, os seres animados
individuais, e uma essência geral eterna. As três concepções que a Humanidade
pode fazer da Via correspondem aos três planos em que ela pode ser concebida, e
às três situações nas quais (pela primeira interpretação do texto) o Sábio
obtém a paciência. Mas, seja a essência, sejam os seres formais, sejam as
imagens, estas coisas jamais passam de aparências imperfeitas. As imagens
correspondem ao plano material, e são as formas da corrente das criações; os
seres correspondem ao plano sentimental, e são os indivíduos que animam as
formas; a essência corresponde ao plano metafísico, e ela é a personalidade
totalizada dos indivíduos e liberta das formas. Na realidade, a Via não pode
ser concebida senão com a Personalidade reintegrada, e, por conseguinte,
destruída em benefício da Unidade. É por isso que ela está verdadeiramente a um
tempo no Ser e no Não-Ser, e é por isso que ela permanece ininteligível aos
homens, que não passam de parcelas indefinidamente divisíveis do Ser, e que
permanecem abaixo do conceito do Não-Ser idêntico.
XXII.
Curvo, para ser intacto; reto, para ser quebrado;
destruído, para ser preenchido; oculto, para ser novo. Com poucas vantagens, é
conservado; com muitas vantagens, perde-se. O homem perfeito reune tudo num
mesmo conjunto; ele é o modelo de todos os homens. Ele não se vê; entretanto,
ele brilha. Ele não agita; entretanto, ele age. Ele não é zeloso; entretanto,
ele possui méritos. Ele não é excessivo; entretanto, ele dura muito tempo. Ele
não é agitado; por isso os outros não se agitam contra ele. Assim, desde longa
data, o que era curco permaneceu intacto. Falar assim, é ensinar os ignorantes.
O que é intacto alcança a Via.
Os seis primeiros versos
desta página são aforismos transformados em provérbios populares. Aqueles que
são encurvados, ou seja que vivem desconhecidos e modestos, não correm nenhum
perigo; aqueles, ao contrário, que levantam a cabeça e possuem orgulho de si
mesmos ou de sua situação são destruídos; assim orientaliza-se o passeio de
Tarquínio em seu jardim de papoulas. Da mesma forma, aqueles que são humildes
diante da Via alcançam a Via; os demais a ignoram e afastam-se dela.
Na mesma ordem de
idéias, o Sábio, que não encheu seu espírito com mil noções humanas, pode ser
preenchido com a noção da Via: é preciso que seu espírito seja livre para
atingir esta concepção, e também, é preciso que o Sábio esconda-se
modestamente, para que seu espírito esteja sempre novo e pronto para servir à
sua ascese; pois, se o Sábio não se oculta, ele será empregado, em alguma das
mil funções que só tem por finalidade os interesses passageiros e medíocres; e
ele não terá, para ocupar-se da Via, senão uma inteligência fatigada, e um
espírito ensombrecido por mil cuidados inúteis.
A conduta exterior do
Sábio deve ser conforme a esses preceitos de sua vida interior. Ele deve, de
fato, uma vez que ele é constrangido a viver, viver o mínimo possível, ou seja, não entrar em luta, nem com os demais, nem
consigo mesmo; não entrar em luta com outros, é não se deixar notar (para
deixar-lhes o lugar); não entrar em luta consigo mesmo, é não ter paixões.
Para o Sábio, sua luz,
sua ação, seus méritos, seu ardor, são interiores; e ele deve mostrar aos
outros um exterior que é exatamente o oposto; assim, ele não faz sombra a
ninguém; e, não sendo invejado nem utilizado por ninguém, ele pode empregar
todas as suas forças e todo seu espírito em conformar-se com seu destino. Assim,
ele o atinge inevitavelmente. É deste modo que tudo o que escolheu ser curvado
permanece inacto, e que tudo o que é intacto alcança a Via.
XXIII. Quem
fala pouco age como quer. Ele chama o vento, mas não diz de que lado. Ele chama
a chuva e não avisa o dia. Ele sabe agir segundo isto: o Céu e a Terra não
podem durar para sempre; não é o mesmo que acontece com os homens? É por isso
que seguir a Via é estar junto (assimilar-se) com a Via. Seguir o bem, é estar
junto com o bem. Seguir a perda, é estar junto com a perda. Estar junto com a
Via, é ganhar a Via; estar junto com o bem, é ganhar o bem; estar junto com a
perda, é ganhar a perda. Ter pouca confiança, é não ter confiança.
Este capítulo indica
primeiro a vantagem material e depois a vantagem moral da ação rara e
refletida. Aquele que fala muito, mesmo que seja sábio, engana-se muito. Assim,
o Sábio que chama o vento de um certo lado e a chuva para um certo dia tem mais
chances de errar, e, por conseguinte, é menos sábio do que o Sábio que apenas
chama o vento e a chuva. Aquele que faz ações precisas é portanto inferior
àquele que faz apenas ações gerais.
De resto, é exato dizer
que quem faz ações gerais age segundo o Céu e a Terra; aquele que inquieta-se
com os detalhes (o lado do vento, o dia da chuva) engana-se, porque não é mais
guiado pelas leis gerais, e porque tem – em sua parte individual – a pretensão
de comandar as relatividades. É assim justo que ele se engane, e que perca o
título de sábio. Pois o Sábio não conhece as leis (imutáveis). E não
existem leis para as coisas que mudam.
Aqueles que agem pouco,
e de modo refletido, estão com a Via. Mas o Mestre insiste neste ponto: que
basta querer seguir a Via para estar com ela, basta desejá-la para adquiri-la.
Da mesma forma, basta não querer segui-la para se estar junto com a perda. Está
aqui a consequência mais evidente deste princípio – que é universal e, em todo
caso, extremo-oriental – que diz que a intenção vale pelo ato, ou seja que o
pensamento voluntário basta para que um homem se torne melhor do que um outro.
XXIV. Quem
se coloca na ponta dos pés não fica em pé. Quem se põe de joelhos não caminha.
Quem olha não vê sempre tudo claro. Quem possui não pode sempre usufruir. Quem
faz reprimendas não possui sempre méritos. Quem tem o supérfluo não pode durar
para sempre. Isto é falar conforme a Via. Todos os seres podem ser maus às
vezes; assim onde está o que segue a Via?
Tudo o que o Mestre
defende, em nome da Via, no plano intelectual e metafísico, é ao mesmo tempo
ruim do ponto de vista material. Deste modo, assim como é o orgulho quem
designa ao príncipe suas vítimas, também erguer-se na ponta dos pés
desequilibra o homem em pé. Assim, da mesma forma que a dureza e a teimosia
conduzem à cegueira e ao erro, postar-se de joelhos impede de caminhar e avançar.
Aquele que olha muito gasta sua faculdade de ver; só vê quem tem os olhos
fechados; aquele que possui muito não desfruta, por temer perder sua riqueza;
só é feliz quem possui pouco o suficiente para poder dispensar tudo o que tem.
Assim, aquele que critica uma ação medíocre tem às vezes tão poucos méritos,
que em circunstâncias idênticas talvez fizesse pior. Estes são os ensinamentos
da Via. Eles são o contrário dos sentimentos apaixonados dos homens. Então,
podemos nos perguntar se existe um homem que possua a Via em seu coração. Vemos
assim como a mais alta doutrina taoísta propõe uma prática cotidiana.
XXV.
Possuir coisas permite fazer algumas coisas; antes de
tudo, o céu e a terra nasceram; ei-los unidos, ei-los profundos. A coisa, ela,
aparece só[24],
mas não muda. Ela está em toda parte, e não se detém. Convém que ela (a coisa)
seja a origem de todos os homens. Quanto a mim, não conheço seu nome; seu
caracter se escreve “Via”. Sendo imensa, seu nome se traduz como : ser grande.
Ser grande traduz-se: estar em toda parte. Estar em toda parte traduz-se:
atravessar. Atravessar traduz-se: retornar. Também a Via é grande; o Céu é
grande; a Terra é grande; o Iperador também é grande. No meio, existem assim
quatro coisas grandes, mas só o Imperador é visível. O homem obedece à Terra; a
Terra obedece ao Céu; o Céu obedece à Via; a Via obedece ao seu Mestre[25].
O Mestre indica, por
meio de fórmulas veladas que se tornaram provérbios, os modos mais gerais da
formação organizada do Universo. Nada se faz sem nada; antes mesmo que esta
constatação fosse feita, havia o Céu e a Terra, ou seja o Ativo e o Passivo, ou
as duas manifestações da causa primordial. Mas, antes ainda, havia a Coisa,
“ela” (o Neutro), ou seja o Ser-Não-Ser. Ninguém a conhece nem a compreende;
“ela” é a origem: não se pode captar a origem de onde se saiu, antes que se
saia. É por isso que o Ser-Não-Ser é ininteligível aos homens; quando queremos
falar dele, escrevemos um caracter que leva o nome de “Via”.
A Via dá nascimento ao
ternário das grandezas. Estas três grandezas, afirmadas e possuídas pela Via,
formam o quaternário da realização (aqui a ciência dos números proclama sua
unidade e sua ubiquidade). A primeira grandeza que sai da Via infinita é a
positividade – a atividade –, o Céu, que “está em toda parte”, ou seja que
impregna tudo com sua essência. A segunda grandeza é a negatividade – a
passividade ou manifestação –, a Terra, cuja influência atravessa todas as
coisas; todas as coisas são tributárias desta influência . A terceira grandeza
é a criação sintética, o “Homem Universal” – o Imperador –, cuja função é de
retorno, ou seja que a função do homem é a de devolver à criação, por uma
contínua ascese, sua perfeição primitiva, ou de fazê-la retornar e
devolvê-la à sua origem. Do quaternário
realizado destas grandezas, somente o Homem é visível, e as ações das quatro
grandezas são comandadas e refletidas pela hierarquia crescente, que desemboca
na Via primordial, que só obedece a si mesma.
Esta página contém em
germe toda a ciência da Via metafísica do Extremo-Oriente, tal como a expusemos
precedentemente (ver A Via metafísica).
E vemos também que a doutrina da ascese universal, por meio do raio divino
incluído no Homem, encontra-se integralmente na Gnose primitiva.
XXVI. O
pesado possui uma raiz leve. A perfeição dos cidadãos conduz conduz à derrocada
dos reis. O Sábio prepara-se diariamente; ele não separa o pesado do leve. Eis,
dizem, que os grandes homens são felizes, verdadeiramente os homens pensam que
isto é certo; para prescrever da forma que eles entendem, os reis dizem dez mil
“sim”. Mas seu coração trata com descuido todos os homens. Ser descuidado faz
perderem-se os grandes; ser sacudido faz perderem-se os reis.
Vimos no Yi King, veremos na doutrina de Confúcio, e vemos aqui no
pensamento profundo do mestre taoísta: malgrado a aparência de autocracia
absoluta coroada por um trono no alto da hierarquia, o espírito amarelo é um
espírito comunista e anti-monárquico. Veremos alhures outras marcas disto, esta
é apenas a primeira. A árvore, que é pesada, possui uma pequena raiz leve
invisível; no entanto, é esta que a nutre, e, sem ela, a árvore não poderia
existir. Assim, é o “povinho” que alimenta os grandes e que é a razão de ser
dos poderes públicos e visíveis. Os grandes tendem a negligenciar o “povinho”,
esquecendo-se de que só existem por sua causa, e para ele. Isto faz os grandes
perderem-se. Mas, quando o povo é sábio e perfeito, ele sabe conduzir-se e não
tem necessidade de quem o guie, aconselhe ou comande. É por isso que a
perfeição dos cidadãos deve levar à desaparição dos reis; é por iso também que
o sábio, cauteloso, não separa jamais os reis do povo.
Certamente, podemos
extrair desta página um sentido metafísico, como o fizeram muitos letrados e
cortesãos. Mas é preciso ter claro que Lao Tsé, como consequência absoluta de
seu sistema filosófico, buscava a felicidade dos povos em sua liberdade e
auto-governo, e só oferecia esta liberdade como recompensa, e também como
corolário inevitável, da perfeição que eles deveriam adquirir seguindo seus
ensinamentos.
XXVII. O
homem probo age sem fazer mal, fala sem mentir, explica sem exagerar; enquanto
que o homem que sabe fechar, por forte que seja, não pode abrir, e o homem que
sabe atar não sabe livrar. O homem perfeito é sempre hábil em salvar os homens.
Se não existem homens, ele é hábil em salvar todos os seres. Se não existem
seres, sua própria habilidade o cobre de esplendor. Assim são os homens probos.
Se um homem improbo for o mestre, todos os homens se tornarão improbos. Não
honrar seu mestre, é não ter amor em prosperar. Os Sábios, que já são sérios e
esclarecidos, desejam ser mais profundos e mais sutis.
XXVIII. Quem se conhece
bem e age com clemência é o primeiro entre os homens. A quem é o primeiro de
todos os homens, a virtude não falta; ela retornará em seguida sobre seus
filhos. Quem se sabe brilhante e se mantém obscuro, este é o modelo de todos os
homens. A quem é o modelo de todos os homens, sua virtude constante não
enganará; ela retornará a ele sem fim. Quem se sabe sábio e guarda os lábios
fechados é o primeiro entre todos os homens. A quem é o primeiro entre os
homens, sua virtude basta em qualquer lugar: ela chegará até o final da raça.
Esgotada esta extremidade, ela retornará em sualembrança. Assim age o homem
perfeito; assim ele age bem e duradouramente. Estas grandes leis não são
fáceis.
Estas duas páginas
explicam o papel do homem perfeito neste mundo, e as vantagens que ele aufere
para si e para sua raça. O papel do homem sábio é inteiro feito de
solidariedade (que se traduz, no Ocidente, por “altruísmo recíproco”). É
preciso notar que esta solidariedade é conforme à lei natural, e deve ser
instintiva e também expressar-se principalmente através de atos negativos[26]. Pelo emprego desta solidariedade natural, de justo
meio, o Homem pode salvar todos os homens, todos os seres; é a isto que tendem
os sábios quando procuram progredir sem cessar. Mas, que resultadi. Mesmo
pessoal, de tal renúncia à sua personalidade! A doçura do forte, a obscuridade
do ilustre, o silêncio do Sábio, quando são perpétuos e voluntários, sãoa fonte
da virtude mais constante e da felicidade perfeita. Virtude e felicidade
estendem-se aos filhos do Sábio, à sua raça toda, remontam aos seus ancestrais,
e imortalizam suas ações. E assim, virtude e felicidade unificam em uma mesma
perfeição toda a raça (e toda a Humanidade), esta alcança inteira a Via e
conforma-se a ela.
XXIX. Cada
um quer governar todos os homens. Quanto a mim, eu vejo que nenhum consegue:
ninguém tem o meio de chegar ao espírito de todos os homens. Quem trabalha por
aí, se perde; quem quer, é vencido. De fato, dentre todos os seres, uns
caminham, outros seguem; uns invejam outros renunciam; uns são fortes, outros
são fracos; uns se deixam conduzir, outros dirigem. Assim o homem perfeito
deixa a grandeza, deixa a humanidade, deixa tudo.
Sob uma forma bastante
vaga e ampla, e própria para desdobrar todos os desenvolvimentos possíveis, eis
aqui a condenação da autocracia e de todos os sistemas monarquistas. Os
comentadores são muito expressos em suas paráfrases, que podemos resumir assim:
a sociedade é uma soma de indivíduos; estes indivíduos possuem cada qual
(contrariamente aos princípios da Via) uma vontade e uma energia próprias;
estas vontades e estas energias não se somam, pois elas não concordam; elas são
apenas concomitantes no tempo e no
lugar. Ora, a monarquia, ou a direção de um só, é uma tentativa de totalizar
estas vontades e levá-las ao mesmo objetivo; isto não apenas é impossível, como
é mesmo uma coisa anormal, enquanto a sociedade for compsta de indivíduos; a sociedade é uma série de energias
individuais, e, como tal, impossível de ser dirigida por um indivíduo.
Para atingir a
possibilidade da autocracia, é preciso suprimir a individualidade das energias
e substituí-las por uma energia coletiva; neste dia, não haverá mais
indivíduos, mas um total humano, que será a “Unidade Humana”. Apenas então, o
governo de um só será posível. Mas quem será este Um? Não será um homem, porque
toda a Humanidade terá então se tornado uma unidade; também não será um ser falível,
porque, tendo atingido a perfeição da Unidade, a Humanidade não terá mais
necessidade de ser governada pela força e o comando, e se conformará sozinha à
suprema Razão. Este Um será portanto a Via, que é, por definição, o mestre que
não comanda.
Assim a autocracia só se
torna materialmente possível no dia em que se torna logicamente inútil. Não
existe, em nenhum sistema filosófico, uma demonstração mais triunfante da
vaidade do governo de um só.
XXX.
Os chefes que a Via esclarece não se utilizam dos horrores
da violência dos exércitos; eles têm para si a fidelidade dos seus povos; os
maus existem há muito tempo: mais tarde a balança os pesará. É verdade que
existem anos cruéis; mas se os homens simplesmente forem probos, não será
preciso usar violência. Verdadeiramente, eles não se salvam; verdadeiramente,
eles não ferem mais; verdadeiramente, eles não ofendem mais; verdadeiramente,
eles não pecam mais; verdadeiramente, eles não são violentos. Ainda que sem a
Via, eles já agiam assim; mas, na aurora dos tempos, não existia uma Via para
eles.
Esta página é
inteiramente exotérica, e não necessita nenhuma paráfrase; ela indica a conduta
dos sábios que, nos primeiros tempos, foram os condutores do povo, ou seja, não
como chefes, mas como conselheiros que os povos procuravam, e assim todos
solicitavam e seguiam livremente seus conselhos.
Mas é preciso guardar a
frase final desta página. Os homens primitivos agiam segundo a Via sem
conhecê-la, porque eram primitivos e adeptos da única lei natural, e não havia
necessidade de Via para eles. Mas, a partir do dia em que eles souberam que
existe uma Via, e procuraram segui-la, cada qual a seu modo, eles a perderam,
pelo fato de terem-na buscado a partir de suas individualidades
XXXI. Os
chefes que a Via auxilia não publicam seus talentos.Os seres às vezes são maus;
então eis a Via; não há lugar aonde ela não esteja. Os homens que são direitos
adoram a esquerda; os que se servem das armas adoram a direita. Quando se
possui exércitos, não se deve publicar sua força: o que não é vantajoso, não
deve ser feito. A língua e a inteligência são em princípio preferíveis. As boas
ações tomam a esquerda; as más ações tomam a direita. Os grandes chefes
misericordiosos tomam a esquerda; os grandes chefes orgulhosos tomam a direita.
Sua palavra pode levar a morte a todos os lugares. Eles matam uma grande
multidão de homens, pensando que estes homens não são do seu sangue. Mas o Céu
os irá ferir, porque eles levaram a morte a todos os lugares.
Aqui se faz a crítica e
a indicação da sorte daqueles que empregam as armas e a violência para
assegurar o poder e chegar aos seus fins. O texto é bastante claro para
necessitar explicação. Os comentadores chineses extraem daí todas as
consequências políticas possíveis.
XXXII. Certamente,
a Via não possui um nome.Frágeis como folhinas, os homens não ousam por si
mesmos. No futuro, que os reis sejam atentos e cuidadosos em ver se, para todos
os seres, foi dita a verdade. Quando o céu e a terra estão juntos e unidos, o
orvalho cai com doçura. O povo não é esclarecido, mas tem desejos. A nova lei
tem um nome; este nome tem um caracter. Nós a conhecemos; nós não a praticamos
o bastante. Uma face da Via permanece
entre os homens. Estes fazem como o curso dos ros, que correm para o mar.
Esta página indica o
resultado da união do céu e da terra: o orvalho desce, é a manifestação
metafísica, a secreção e a cópula. Este dogma, que é um dos principais dos
ritos tibetanos, é, no Taoísmo, uma consequência de valor secundário, como
todas as contingências. Com a realização, que sintetiza o simbolismo gerador,
uma face da Via desce em meio aos homens; é o reflexo da Via verdadeira, a
única que os homens podem ver, e pela qual eles conhecem a existência da
initeligível Via, para a qual eles são arrastados invencivelmente, como os rios
que vão para o mar.
XXXIII. Quem conhece os
homens é sábio; ele conhece com clareza. Da mesma forma, quem pode conhecer os
homens tem a força, com a qual pode ser poderoso. Quem sabe limitar-se é rico;
quem age fortemente tem a vontade. Quem não se divide dura muito; quem morre e
não é esquecido, este é imortal.
Sob uma nova forma, esta
página repete a mais cara lei do Mestre, que é o fundamento de seu sistema e
que foi comentado na página XXIII.
XXXIV. A Via segue
ao mesmo tempo pela direita e pela esquerda; ela engendra os dez mil seres e
não esquece nenhum; ela tem a justa medida dos méritos, e não marca seu nome.
Ela ama e alimenta os dez mil seres; mas ela não quer comandá-los. Por hábito,
os homens não querem agir assim, então eles convencionam que seu nome seja
obscuro. Os dez mil seres chegam à Via, e ela não quer ser se mestre; convém
então que seu nome seja grande. É por isso que o homem perfeito não age, e é
grande; é por isso que ele pode realizar grandes ações.
A sorte metafísica da
qual a Via se serve para atrair os homens para si, influenciá-los e lhes
dispensar a alegria que corresponde à estase humana, é ofertada aos homens como
um modelo ao qual eles devem conformar o modo individual, para, por meio deste,
obter méritos para se aproximarem da Via. Esta é a “Liberdade” sobre o plano
político (a Via ama os seres, sem querer ser seu mestre). É também, e
sobretudo, a Solidariedade sobre o plano místico e divino (a Via não esquece
nenhum ser e não marca seu nome). É daí que provém sua perfeição original, e o
homem sábio não se torna perfeito senão imitando-a na medida em que puder
faz~e-lo.
XXXV. O
homem perfeito apresenta a imagem da Via: todos os homens chegam-se a ele; eles
chegam e não cessam nunca de vir. A paz reina em toda parte; de boa vontade é
ouvida esta palavra agradável. Aos estrangeiros, o silêncio basta; para os
outros, a Via fala por sua boca. Quem fala depressa, fala sem fruto. Olhamos a
Via e não a enxergamos bem. Escutamo-la e não a ouvimos bem. Quremos imitá-la,
mas não a observamos o bastante.
Esta página contém uma
dupla recomendação. A primeira é a de calar-se diante de estrangeiros (aqueles
que os primeiros cristãos chamavam de Gentios): veremos como esta prescrição
foi severamente observada na constituição do colégio dos Sábios e de seus alunos,
e na transmissão, mais ou menos restrita, da doutrina.
A segunda recomendação é
este aviso de que, não importa o que façam,os, jamais atingiremos a Via.
Devemos, para nos conformarmos com isto, tentar atingi-la; mas nosso estado de
humanidade atual não nos permite identificarmo-nos com ela. É por isso que não
devemos nos desencorajar com as imperfeições e com os insucessos, dos quais não
somos os responsáveis.
XXXVI. O homem
probo vai diminuir? Certamente, a Via o faz aumentar. Estará ele fatigado?
Certamente, ela lhe dará a força. Desejará ele progredir um grau? Certamente,
ela lhe dará o título. Desejará ele reunir-se? Certamente, ela lhe dará a
assembléia. Ela faz isto para uns poucos seres que foram esclarecidos. O fraco
torna-se forte; o fatigado fica alerta. O peixe não pode sair do fundo das
águas. Agora o império atinge a perfeição por si mesmo; ele governa os homens
sem perscruar seus interesses.
Aqui são enumeradas
rapidamente as vantagens que a Via confere àqueles marcados para conformar-se a
ela naturalmente: a primeira é a melhoria; a segunda é o poder; a terceira é a
sabedoria; a quarta é a desindividualização (ou a reunião de muitas parcelas
numa soma). Uma vez atingido este resultado, o homem fez pela Via todo o
esforço que seu estado atual lhe permite fazer. E, em retorno, assim como o
peixe não pode sair do fundo dos rios, também o homem não pode deixar a Via; a
partir daí, ele permanece nela naturalmente e sem esforço. Neste caso, o
império atingiu seu mais alto grau de perfeição; ele governa a si próprio na
coletividade dos cidadãos, sem olhar os interesses das individualidades
dirigentes, cujo papel é aliás ilusório e limitado.
XXXVII.
A Via parece não agir; no entanto, ela jamais deixa de
agir. No futuro, se os reis a guardarem rigorosamente, os dez mil seres se
transformarão por si mesmos. Transformados, talvez eles ainda queiram agir, mas
serão preservados disto. Pois a Via não tem um nome, mas é poderosa. Que os
homens aspirem à reunião, mas que não tenham desejos. Sem desejos, eis a paz.
Então os homens estarão com a Razão.
Esta é a fórmula geral,
que encerra o tratado do Tao, e com a qual o Mestre afirma mais uma vez a
quintessência da Vontade e da Existência no Não-Ser imóvel. E, a exemplo do
Não-Ser imóvel, que os homens se abstenham de desejos; assim, eles não terão
paixões; eles não cometerão ações individuais para satisfazê-las; assim, eles
estarão em paz e identificar-se-ão com seus destinos.
IV
O TE
O segundo livro sagrado
do Taoísmo forma um todo completo com o primeiro; mas é tão distante dele como
pode uma aplicação ser distante do seu princípio.
Lao Tsé fez, destes doi
slivros, um tratado único, ou, como se diz na China, um único King; pois ele pensava com razão que o primeiro livro não
seria útil a menos que leitor se dedicasse também ao segundo; e ele sabia que o
segundo não seria inteligível e adequadamente empregado, senão depois que o
primeiro houvesse sido digerido e compreendido. Foui para especufucar esta
necessidade recíproca que ele reuniu os dois livros sob um mesmo título.
Mas o que é racional na
China, aonde verdadeiramente a compreensão do Tao primeiro e do Te em seguida
pode propiciar uma direção política geral, e mesmo uma regra para a conduta
diária dos indivíduos, torna-se anormal, segundo a tradução do texto nas línguas
do Ocidente, este lugar aonde os Sábios, os Iniciados e os Filósofos são vistos
como inúteis fora das especulações, e como totalmente incapazes de governar. O Tao e o Te devem
ser reunidos nas nações que os puderem por em prática; eles deve estar separados,
como o são por suas próprias qualdiades, nos países em que são estudados com
vistas apenas à ascese, pessoal ou coletiva, e onde eles se chocam com a mais
completa impossibilidade de realização.
É isto, acreditamos, que
não entenderam bem os primeiros tradutores de textos taoístas, Pauthier,
Rémusat, Julien e, ultimamente, Alexandre Ular, que, mesmo tendo se beneficiado
dos trabalhos de seus predecessores, não captaram, nem poderiam captar, a razão
das distinções ou dos arranjos feitos por eles.
Como puderam notar
nossos leitores de A Via Metafísica, o
primeiro livro, o Tao, a “Via”, é a
explicação racional dos problemas cosmogônicos e metafísicos, contidos nos
textos da tradiçãoprimordial, e especificamente no Yi King: a Via – que é o Tao de Lao Tsé – é precisamente o ciclo helicoidal simbólica que a
“criação” (para falarmos em linguagem ocidental) acompanha ao longo de um “dia
de Brahma”; é a série de modificações do
Yi King, incluindo a modificação final,
a Transformação, que termina e coroa a criação. Não existe nada aí de
especificamente humano, no sentido de que não existe nada que se aplique
exclusivamente ao homem. É a Via, com seu movimento imutável e eterno, ao longo
do qual, com um movimento relativo próprio, enrola-se as contingências (matéria,
vida, pensamento, força, e, entre outras coisas, humanidades), e na qual, desde
que entram, são estas contingências destruídas (enquanto formais), para se
tornarem não mais do que parcelas participantes do Absoluto.
O Te de Lao Tsé é o livro da razão, segundo a qual o
humano, conformado tal como o conhecemos hoje, pode compor suas idéias, seus
meios, e mesmo sua conduta, a partir do momento em que conheceu o Tao e sabe
para onde se dirige a vontade do Céu, e como ele pode, temporária e
merecidamente, conformar-se a esta vontade, e a se preparar relativamente para
receber seus efeitos.
Assim, se eu posso
utilizar uma expressão algo tosca, mas decisiva, o Te é a aplicação do Tao ao composto humano sobre a Terra. O Te não possui assim nenhuma das características metafísicas do Tao; ele possui todas as características racionais de um
princípio eterno e intangível, que, para os seres parciais, reduz-se às
contingências, e se encerra em limites formais.
Vemos como o Te é distinto do Tao, e como não se pode chegar ao Te
senão passando pelo Tao. Aqueles que,
sem conhecerem o Tao, tentaram
conformar-se ao Te, não produziram senão
uma obra perecível e consumiram-se em vão; eles não atingiram mais do que uma
aparência vazia de seu ideal. Assim, não é de estranhar que, mesmo sendo um
livro de prática racional, o Te se
ressinta de sua origem celeste, e esteja constantemente envolto numa atmosfera
metafísica. É nisto que a razão de Lao Tsé difere da moral de Confúcio. Estes
dois homens, dos quais o segundo não foi mais do que um sábio, traçaram regras
de felicidade que a Humandiade posia seguir; Confúcio, a partir da observação
dos homens, da psicologia analítica dos indivíduos, sobe até a felicidade. Lao
Tsé, a partir das leis ininfringíveis da metafísica, desce até ela. Assim,
estes dois espíritos, masmo quando se falaram, jamais se encontraram. Eles
pareceriam ocupar o mesmo ponto no espaço, em relação a um plano horizontal;
mas no plano vertical (esta comparação, emprestada à Geometria Descritiva, é
tão justa quanto pode ser uma comparação), Confúcio estava ao pé da montanha
cujo cume inacessível ele contemplava, e para o qual ele dirigia seu desejo;
Lao Tsé estava sobre o cume, de onde ele baixava o olhar para a terra, para
onde ele desdenhava descer, mas que ele instruía com seus conselhos divinos.
E é no próprio título do
segundo livro, e em seu significado concreto, que podemos perceber sua
diferença em relação ao Tao; pois Lao
Tsé não era menos sutil do que profundo, sob sua aparência singela; e aqui
temos uma das provas mais singulares desta sutileza. O caracter Te significa a Virtude, ou a Retidão, ou seja a Virtude pela Lógica e pela Razão. Mas,
no sentido concreto do termo, a retidão é a “linha reta”; é isto aliás que
permitiu a Alexandre Ular, que não busca o sentido profundo dos caracteres, e
que frequentemente mantém-se na casca do fruto oculto e desconhecido, intitular
sua tradução: O Livro da Via e da Linha Reta. Compreendamos como o sentido concreto do caracter Te é o símbolo preciso do Tao “terrestrizado”.
Pedimos aos leitores que
se reportem ao esquema metafísico no qual descrevemos em poucas linhas o Ciclo
taoísta, e ao raciocício pelo qual nós estabelecemos: 1) que o ciclo universal
era uma hélice formada por elementos definíveis, salvo um só; e 2) que, no
cilindro fictício da Vontade Celeste, o ciclo vital de uma humanidade qualquer
era o círculo, tangente em um ponto qualquer da corda ascendente, e
perpendicular ao passo da hélice, tomado neste ponto sobre a superfície lateral
do cilindro.
Dissemos como o esquema
cilíndrico tornava-se cônico no infinito, e como a ponta deste cone no infinito
metafísico[27] era precisamente a Vontade Celeste, e o lugar
metafísico do Nirvana. A espira
evolutiva sobre o cilindro – e sobre o cone, ao infinito – representa o Tao, ou a via transformadora. Projetemos o todo sobre o
círculo vital humano que traçamos no interior do cilindro fictício, nas
condições descritas, e que correspondem às condições metafísicas que regem a
vida humana. A Vontade Celeste é projetada no centro do círculo, a espira é
projetada em um diâmetro, que é o diâmetro tirado do ponto comum à hélice e à
circunferência. Este diâmetro, que é a imagem da espira ascencional durante a
vida, possui dois pontos sobre-humanos, o ponto que pertence à hélice do Tao, e o ponto que é a projeção da Vontade do Céu. E
este diâmetro é uma linha reta. Portanto
– e o símbolo gráfico afirma-o necessariamente – o homem que quer seguir os
ensinamentos do Tao, deve, durante sua
vida, seguir uma linha reta, ou seja, obedecer à Retidão, praticar a Virtude.
Pois, conforme os ideogramas, a linha reta, a Retidão e a Virtude são
traduzidas pelo mesmo caracter, que é o Te.
Se refletirmos
profundamente sobre este símbolo, tão simples, tão claro, que no entanto contém
o mais completo dos arcanos racionais, e se tivermos constantemente no espírito
o resultado dessas reflexões, o texto do Te
de Lao Tsé se esclarecerá com uma viva luz, e bastará, para compreendê-lo, e
mesmo para praticá-lo (na medida em que o permitam as trepidantes contingências
da raça branca), alguns comentários resumidos, que acompanharão o texto de cada
página do Mestre.
I.
Uma grande virtude não é a virtude; mas ser assim faz
vir a virtude. Uma virtude medíocre não é a ausência de virtude; mas ser assim
faz a virtude ir-se. Uma grande virtude não se manifesta, porque ela não quer
se manifestar; uma virtude medíocre manifesta-se porque ela quer manifestar-se.
Depois o homem manifesta uma grande piedade (humanidade), sem dar-se conta;
depois ele manifesta uma grande equidade, e se dá conta; depois ele manifesta
uma grande generosidade (solidariedade e convenções), mas ela não lhe serve
mais, e alivia os outros. Perdida a Via, ele guarda a virtude; perdida a
virtude, ele guarda a piedade; perdida a piedade, ele guarda a equidade;
perdida a equidade, ele guarda os ritos (generosidade, solidariedade,
convenções). Este, mesmo pequeno, é o começo do mal. Eis o que sabem desde
muito tempo ps homens que conhecem a Via; eles souberam disto em primeiro
lugar. Da mesma forma o Sábio atém-se ao Absoluto, nunca ao contingente; ele
permanece no princípio, e afasta-se do efeito. Ele negligencia esta coisa e
conserva aquela.
A Virtude, que é a
Retidão, não é em si do domínio do homem; ele se aproxima dela indefinidamente
sem atingí-la, enquanto for homem: este é seu melhor destino. Mas, se ele
possui toda a Retidão que um homem é capaz de possuir, ele participa dos mesmos
méritos que aqueles que, não sendo mais homens, podem e possuem a totalidade da
Retidão. Ademais, esta aquisição e esta possessão são os presságios
indubitáveis da conquista da Retidão, nos planos ou ciclos de revolução que a
comportam essencialmente.
Da mesma forma, e
inversamente (pois o que está em cima é como o que está em baixo, mas em
sentido contrário), aquele que se contenta com uma retidão medíocre e não faz
esforço para aumentá-la, não deixa de ter retidão; mas ele não possui o mérito
de nenhuma retidão, e desce para a ausência de retidão. Aquele que não avança
recua.
A Característica da
Retidão é de não se manifestar e de não querer se manifestar. A simples vontade
de mostrar ou de repartir sua retidão faz perder a Retidão. Ela não aparece aos
olhos dos homens senão por qualidades negativas, e pela exclusão de todos os
atos que não comportam retidão. É assim que a doutrina do não-agir consciente e
voluntário aplica-se à conduta dos indivíduos. Como consequência imediata, a
Retidão que se manifesta conscientemente, por uma série de atos refletidos, é a
retidão medíocre, ou seja o começo da ausência de toda e qualquer retidão.
Fora da Retidão, o homem
sábio manifesta, devido à sua sabedoria, a piedade, que é a bondade, a
caridade, o altruísmo desinteressado; e ele o manifesta inconscientemente, como
uma emanação mecânica e necessária de sua virtude antecedente.
Fora deste altruísmo,
ele manifesta uma grande justiça; mas ele não pode ater-se a ela a menos que se
dê conta daquilo que faz, pois a justiça é uma noção reflexa e comparativa;
então, aqui ele quer a sua manifestação. Fora da justiça, ele manifesta a
generosidade ou solidariedade; e aqui está o começo do mal, pois a manifestação
é proposital, e atrai toda uma série de manifestações.
Assim, podemos
classificar os diferentes estados de espírito do Sábio nesta gradação
descendente: a Retidão que não se manifesta, nem quer se manifestar; a
Humanidade, que se manifesta, mesmo que não a queiramos manifestar; a Justiça,
que se manifesta porque queremos que se manifeste; a Solidariedade, que se
manifesta, que queremos que se manifeste, e que exige, por definição, que outros
a manifestem reciprocamente entre si. É por isso que, embora louvável, a
Solidariedade, que é o começo das ações humanas recíprocas, é o começo do mal.
Também, para permanecer
na Via – que, sobre a Terra, é a Retidão – o Sábio atém-se apenas ao princípio das
ações, e desliga-se de todas as ções, e não considera senão a causa,
recusando-se a considerar o efeito.
II.
Quem guarda a retidão ganha a unidade ou perfeição. O
céu, por perfeição, possui a pureza. A terra, por perfeição, possui a paz. A
alma, por perfeição, posui o conhecimento sobrenatural. O vazio, por perfeição,
possui a plenitud. Os dez mil seres, por perfeição, têm o nascimento (a vida).
Os reis, por perfeição, têm os homens retos. Ora, tudo isto é precisamente a
unidade. Se o céu não estivesse em pureza, ele temeria sua ruína. Se a terra
não estivesse em paz, ela temeria seu desmoronamento. Se a alma não estivesse
em conhecimento sobrenatural, ela temeria sua desaparição. Se o vazio naõ
estivesse em plenitude, ele temeria sua negação. Se os dez mil seres não
estivessem em vida, eles temeriam seu fim. Se os reis e os grandes não fossem
retos, eles temeriam sua deposição. É por isso que os grandes vêem a prata (o
que é falso) como o remédio do mal. Os príncipes têm os pequenos como
ajudantes, e assim os reis agem sem hipocrisia. Certamente, é a prata que cria
os ladrões: não é verdade? Aquilo que é justo não é o Justo. Quem não quer que
a felicidade, igual aos diamantes, lhe caia do céu como pedras?
A Retidão dá a
perfeição, que é a unidade; e é asssim que a Via racional é o meio da Via
metafísica, e que a Via humana conforma-se à Via geral. Pois a Unidade, como
vimos, é o começo e o fim da Via.
Mas qual é esta Retidão,
que é o signo da Via racional? Esta retidão consiste precisamente em que cada
coisa possui, essencial e totalmente, a qualidade que lhe convém, e preenche
assim a finalidade colocada diante de si. É assim que a Retidão é obtida pelo
céu quando ele possui a pureza, para a qual ele é feito; pela terra, quando ela
tem a paz, em estabilidade moral e material; pela alma, quando ela possui o
conhecimento sobrenatural; pelos seres, quando eles tem a vida. E assim
sucessivamente: tudo isto é a unidade.
Ora, se essas qualidades
da unidade (que são aspectos da Unidade em relação a todas as coisas) não
preenchesse essas coisas, elas seriam destruídas devido à sua não-concordância
com a Via, por sua inutilidade geral. Assim, e para falarmos metafisicamente,
os seres objetivos não possuem existência senão para manifestar neles os
atributos do subjetivo. Vale dizer que o Céu não foi feito senão para fazer
entender a pureza; a terra, para permitir compreender a estabilidade; os seres,
para fazer entender a Vida, etc., que são aspectos da Unidade. Todas estas
qualidades são deuma necessidade essencial, como a própria Unidade; mas as
coisas concretas em que elas se manifestam não passam de uma necessidade
relativa.
Esta proposição, que é
quase um axioma metafísico, ganha uma acuidade singular quando a aplicamos
sobre o plano político, como sublinhou o Mestre e seus discípulos.
Os soberanos, de fato,
são feitos para tornar o estado social, senão harmônico, ao menos suportável;
mas, aplicando a eles o impecável raciocínio metafísico, vemos que os
governantes não são necessários, senão na medida em que existam seres para se
organizar em sociedade. O estado social suscita os soberanos; mas, desde o
começo, parece que os reis sãofeitos para as nações, e não as nações para os
reis. Uma raça permanece uma entidade de fato: o soberano desta raça é uma
engrenagem organizadora e moderadora, que não tem uma necessidade essencial,
mas uma necessidade secundária e temporária como sua própria obra. Cumprida a
obra, o órgão se torna inútil e deve ser suprimido. Pois, mesmo se o soberano
cumpre bem seu ofício, ele não deve ser conservado quando não serve para mais
nada. É por isso que o Mestre diz que o que é justo não é o Justo. O Justo não
é um ato para organizar e controlar a justiça; o Justo é um estado demasiado
perfeito para, ao contrário, não exigir nenhuma to de justiça, assim como a
existência de nenhum justiceiro.
É seguindo estes
preceitos que a felicidade, que hoje é rara como um diamante, se tornará
frequente como as pedras do caminho.
III.
O círculo, este é o movimento da Via; que os fracos o
utilizem. Os homens e as coisas nascem. Nascendo, eles desaparecem.
No que concerne à
Humanidade, a Via torna-se Retidão, e a superfície reversa evolutiva torna-se
um plano: é por isso que o movimento aparente da Via, sobre a terra, é um
círculo. É sobre este círculo e no seu interior que deve mover-se a fraqueza
humana. Dizemos que ela é fraca, porque o movimento permanece plano, e não tem
força ascensional. Deste movimento sobre um plano horizontal, a ação da Retidão
cria uma linha reta.
Esta linha reta tem seu
começo no nascimento e seu fim na desaparição dos seres vivos. Estes, de resto,
não morrem, mas desaparecem em relação ao plano da Retidão humana.
IV.
Os verdadeiros sábios escutam a Via; a seguir, fazem o
que lhes concerne. Os sábios medianos escutam a Via; eles pensam nela respeitosamente.
Os últimos sábios escutam a Via; eles pensam nela amigavelmente. Mas eles não
pensam o suficiente, e falam dela frequentemente para segui-la. Quem conhece a
Via é semelhante a um perfume. Quem sobe pela Via o faz tão comodamente como
quem desce. Quem falta à Via parece-se com um nada. A grande virtude é como um
abismo. A grande pureza é como a ordem. A virtude perfeita é como se não
tivesse fim. A virtude forte é como o aumento indefinido. O Sábio, simples e
reto, é forte como as multidões. É um grande quadrado sem ângulos. Uma grande
raiz sem fim. Uma grande imagem sem sombra. A Via brilha só por seu nome:
aquele que caminha pela Via caminha para a plenipotência.
Os sábios que foram
tocados e estão plenos de Retidão, ou seja que tendem com todos os seus
pensamentos humanos para a Via não-humana, são de três categorias, que
correspondem aos três planos do oculto. Os Iniciados assimilam-se à Via e ao
seu movimento: eles são perfeitos. Os Sábios pensam contínua e respeitosamente
na Via, como no Ancestral morto (e por conseguinte eternamente vivo); falta à
sua perfeição acreditar em seu movimento próprio não coordenado ao da Via. Os
sábios pensam com simpatia na Via, como em um amigo qualquer vivo, ou seja eles
lhe dedicam a mesma afeição que a uma contingência; e eles não têm nada da
perfeição, porque ignoram a natureza essencial da Via, e falam demais para que
pensem o bastante, pois o silêncio é a única eloquência digna da Via e dos
adeptos da Via. Quem conhece a Via é semelhante a um perfume, ou seja ao que há
no mundo de mais real e menos material, pois todos sentem o perfume, mas
ninguém o vê nem o toca. Quem sobre pela Via, com as qualidades do Sábio que
foi comparado ao perfume, age como se descesse, pois sua não-vontade de ação o
mantém imóvel entre a subida ativa e a descida ativa, e ele possui todas as
facilidades que tem aquele que obedece conscientemente à natureza essencial do
Céu. Quem falta à Via é parecido com um nada, pois, fora da Via, nada tem razão
de ser, e a contingência que não se reporta ao movimento da Via é como um eeito
sem causa. A grande virtude é como um abismo, ou seja, é insondável, mesmo para
o homem que a possui. A perfeição é como se fosse sem termo, ou seja, ela é
infinita; a virtude forte – a virtude humana – é como um aumento indefinido, ou
seja ela aperfeiçoa-se todo dia crescentemente, mas jamais será a perfeição
infinita, porque sempre se pode acrescentar-lhe algo mais.
Enfim, vemos que o
Sábio, cujo valor representa o valor das multidões, perde pouco a pouco suas
particularizações, quer guardando sua forma, quer perdendo as determinações da
sua forma, quer recue seus limites até o infinito, como faria um quadrado sem
ângulos, uma raiz sem fim, uma voz sem som, uma imagem sem sombra. Ora, aquele
que recua seus limites tende a perder sua forma, portanto a confundir-se com a
Via, da qual ele adquire, com sua desindividualização, a plenipotência
impessoal.
V.
A Via produz o Um. Um produz o Dois. Dois produz o
Três. Três produziu os dez mil seres. Todos os seres têm o princípio Am envolvendo o princípio Duong. Na verdade, o espírito que conjuga
estes dois princípios obtém o equilíbrio. Os homens que ignoram isto são
isolados e sem raízes. O rei Cong experimentou isto. Os homens, diz-se, que se
apropriam de alguma coisa tem ao menos uma vantagem: talvez eles conservem
aquilo de que se apropriaram. O vulgar age assim. Mas nós dizemos: os violentos
não tem como ganhar uma Morte Feliz. Que os pais ensinem isto aos seus filhos.
Esta página é a lei da
“Criação”, ou seja a lei das modificações dos seres que fluem, por Vontade do
Céu, na corrente das formas. Remetemos o leitor ao texto de A Via Metafísica,
para os detalhes. Mas o sublime resumo desta página tem de especial ressaltar o
princípio ternário, que, em todas as tradições da Humanidade, preside às
manifestações criadoras. É preciso assim trazê-lo à luz como o melhor documento
para determinar a síntese universal no que concerne à verdade cosmogônica.
Mas nós insistimos
também sobre a clareza com que o princípio ternário é mantido pelo Mestre no
domínio da manifestação, e não afeta o domínio puramente abstrato. As tradições
e revelações ocidentais aplicam este princípio ternário à própria Essência
divina e, obtendo assim um resultado ininteligivel, concluem necessariamente por
aquilo a que chamam “Mistério da Trindade”, do qual não se vê a solução em
parte alguma. A Tradição extremo-oriental, ao contrário, se nos apresentar um
mistério, será o mistério da Unidade, prevenindo-nos de que este axioma só
parece misterioso porque nosso estado humano fragmentário recusa a compreensão
da única Unidade existente; e é assim que o Ser-Não-Ser, idêntico a si mesmo,
nos parece nebuloso, embora o sintamos profunda e necessariamente Único. Para
esclarecer esta obscuridade, que nos é pessoal, a Tradição primordial emitiu o
princípio ternário, separando-o entretanto da Essência Una e Total, e nos deu
este princípio ternário como um esclarecimento. Assim, e mais justamente, a
Trindade não é mais um mistério, mas uma explicação. E, a partir do momento em
que ela não mais nos constrange, por qualquer artifício, a aplicar esta
tripartição à Unidade indivisível, ela se torna uma luz verdadeira. Vamos
considerá-la como tal.
A Via, que é o mecanismo
modificador e transformador, expressão da vontade do Céu (Ser-Não-Ser)
produziuo Um. Um, ou a primeira manifestação, é o princípio ativo da vontade
celeste, que, por abreviação, chamamos às vezes de Céu (Tien).
O Um produziu o Dois,
que é o princípio passivo, mãe de todas as coisas, como diz a primeira página
do Tao. Já explicamos como a simples afirmação do princípio ativo determina o
princípio passivo.
O Dois produziu o Três.
A união de Um e Dois consiste precisamente no Três, que é a manifestação da
Vontade do Céu na série de modificações.
O Três produziu os dez
mil seres; quer dizer que o fluxo dos seres na corrente das formas (ou, em
linguagem ocidental, a criação) é o resultado tangível imediato do ato
conceitual da união do Um com o Dois, ato que constitui o Três.
A condição das
modificações é a evolução, ou seja o movimento; mas a condição de cada
modificação é de ser conforme à Via, vale dizer vantajosa e racional; é por
isso que o espírito, que reune racionalmente a ação dos dois princípios, chega
ao equilíbrio, que é a Retidão inicial, e não refletida por uma ação.
Este é o mecanismo da
criação saída da Unidade, por meio do ternário.
No que concerne à
Retidão e à vida humana, convém que as vantagens conferidas ao estado humano
pelo benefício da evolução, não sejam adquiridas senão graças à marcha natural
das coisas, e não pelo esforço violento dos indivíduos. E o que é adquirido
fora da normalidade, ou seja da aquiescência voluntária ao movimento da Via e à
Retidão, não serve para nada, malgrado as aparências, ou seja que aquilo que
parece vantajoso ao homem durante a sua vida, a partir de tal aquisição, perde
toda a sua qualidade na passagem ao plano superior e a partir da desaparição do
plano humano. É por isso que o Mestre diz: “os violentos não preparam para si
uma Morte Feliz”. Este arcano da Morte Feliz será discutido mais adiante[28].
VI.
Os homens, precisamente muito doces, comandam e se
tornam muito fortes. Quem comanda penetra no intercolúnio, aonde nada lhe
pertence. Compreendemos assim que comandar é uma vantagem grave. Nós ensinamos
sem falar, chegamos sem comandar, esta é uma grande vantagem: poucos homens são
capazes disto.
É pela doçura – ou seja
pelo silêncio e a não-ação, pela concentração de energia – que o homem chega a
comandar a natureza e os outros homens. Assim, ele domina sem ter nenhuma das
características e sem fazer nenhum dos gestos do dominador. Ora, aquele que,
sem violência, chega a tal resultado, está consigo aonde quer que esteja, em
sua casa ou na casa dos outros (aonde nada lhe pertence), e mesmo aonde não há
casa (no intercolúnio). No plano metafísico, isto quer dizer que a vontade
imaterial penetra a ação e a força materiais. Isto é, de fato, uma grande
vantagem. Conforme a este princípio, o Sábio deve saber ensinar sem falar e
governar sem comandar: esta é a influência do exemplo daquele que se conforma à
Via silenciosa e toda-poderosa.
VII.
O renome da ciência permite aproximar-se do bem; o
conhecimento da ciência permite aumentar o bem. Ganhar e perder admitem
igualmente a infelicidade. É preciso, certamente, abandonar aquilo que já não
se ama. Quem possui muito perderá muito. E no entanto diz-se que nunca se tem o
bastante. Trabalhou-se muito, mas diz-se não haver trabalhado o bastante. Assim
se vai longe e duradouramente.
VIII.
À grande cidadela humana falta uma parte da muralha; e
não podemos fechar a brecha. O Sábio tem uma grande vantagem: ele não precisa
implorar. Reto, há um meio de cumprir; oblíquo, é melhor se abster. A agitação
triunfa sobre o frio; a imobiliadde triunfa sobre o calor. A pureza e a paz faz
os homens direitos.
O texto destes dois
capítulos não se manteve intacto; ele diz respeito à renúncia das qualidades da
espécie qualidades que, de resto, são insuficientes e sempre apresentam uma brecha. Mas é melhor que nos abstenhamos
de comentar estas páginas, que sabemos não serem exatas, e que alguns filósofos
chineses consideram inteiraamente remanejadas, contendo termos que são
intraduzíveis no espírito taoísta, e que deram lugar a múltiplas interpretações
e a controvérsias sem fim.
IX.
Quando os homens possuem a Via, as pegadas dos homens
violentos são pouco numerosas[29].
Quando os homens não possuem a Via, retê-los provoca sua ira. Ter aspirações
não é grande crime; o desvio não é grande por não se saber o bastante; o
estranhamento não é grande pelo desejo de adquirir. Quem sabe ter o bastante
tem o bastante.
Esta é a consequência
política da Retidão: quando os homens se conformam a ela, o império conhece a
paz (pois os homens violentos dedicam-se também às armas e às coisas
militares); quando os homens não se conformam a ela, a doçura não tem mais
lugar; a violência é exercida pelos violentos, inclusive entre eles.
O preceito que segue é
muito sutil: a aspiração a sentir, a conhecer, a possuir, não é uma grande
falta, ou melhor, uma grande mediocridade, pois está claro que estas aspirações
são naturais aos homens que somos. Mas o que seria um demérito, seria ceder a
estas aspirações por objetivos medíocres, e de nos conduzirmos como se
tivéssemos cedido. É por isso que o Mestre diz que, malgrado estes desejos
inatos, devemos nos declarar satisfeitos, pois, a força de nos vermos como
satisfeitos, tornar-nos-emos satisfeitos realmente.
X.
Sem sair de sua casa, o Sábio conhece todos os homens;
ele sabe que eles não são felizes. Ele conhece a Via do Céu; embora distante,
ele conhece as menores coisas. Assim, o Sábio não caminha, mas chega; não vê as
coisas, mas sabe seus nomes; não trabalha, mas produz.
O Sábio não sai de sua
casa, ou seja ele não se distrai de suas idéias, e não se derrama em
sentimentos fora de seu coração. Mas ele conhece todos os homens, e, sabendo
que eles agem diferentemente, sabe que eles são infelizes. Como ele conhece a
Via, ele prefere estar afastado das preocupações comuns da Humanidade, e
conhece até as menores dentre elas, sem no entanto participar delas. Ele pode
assim aproveitar-se de sua ciência das coisas, sem ter que sofrer a influência
que estas coisas teriam sobre ele, se se ocupasse delas diretamente, e fora de
sua causa. Assim então ele atinge o objetivo, porque conhece as causas, sem ter
de se servir dos meios mediatos usuais. Sua razão alcança a luz, sem que seu
coração precise bater, e por não ter batido. Seu espírito atinge o conhecimento
abstrato, sem que tenha visto o
concreto, e por não tê-lo visto. Sua inteligência produz is resultados
da causa primeira, sem que ele tenha perscrutado as causas segundas, e porque
ele não as prescrutou.
XI.
Quem estuda um dia cresce; quem segue a Via um dia
progride. Ele progride e progride, e assim até que não aja mais. Mas, mesmo
quando ele não age mais, ele não deixa de agir. Então ele protege os homens e
preserva-os das calamidades; pois às vezes as calamidades estão próximas, e os
homens quase não são capazes de se proteger.
Esta página, com este ar
ingênuo, esconde a promessa da personalidade imortal, baseada na verdade
metafísica da Via universal e da vontade do Céu. Estudar leva à Via; segguir a
Via leva ao progresso, pois a Via é uma hélice ascendente; e este progreso é
definido e dura indefinidamente, como a própria progressão da hélice.
Do ponto de vista geral,
esta verdade se diz assim: o Sábio que segue a Via chega à não-ação; mas não
agir não é ficar sem ação; pois a não-ação voluntária é uma ação; mas é uma
ação concentrada, reabsorvida, e que tem o poder de todas as forças que ela não
projetou fora da personalidade para serem gastas na manifestação.
Do ponto de vista da
personalidade, tanto sobre-humana quanto humana, esta verdade se diz assim: o
Sábio que segue a Via e que é animado por ela progride até sua morte; mas, para
ele, a morte não é uma cessação do agir; após a morte a personalidade continua
a agir segundo a Via, acima e paralelamente ao plano humano. E mesmo os atos
desta personalidade sobre-humana não são indiferentes ou inúteis à Humanidade,
que esta personalidade acabou de atravessar; as vontades de agir e de não-agir
que animam a personalidade sobre-humana têm um efeito reflexo sobre os homens,
a quem elas preservam beneficamente das angústias e dos desvios, dos quais
somente a virtude da personalidade pode preservá-los. Assim, todos os esforços
são bons para todos; e nós encntramos aqui a doutrina alexandrina e gnóstica da
ascese dos submúltiplos pelas vontades, trabalhos e mesmo sofrimentos dos seres
que lhes são superiores. Podemos aplicar este texto ao estado humano, no qual
nossas vontades e nossos atos podem ser benéficos para os seres que são
submúltiplos pessoais. Esta é a ligação entre a vida e a morte, e acima da vida
e da morte, tão bem assinalada pelas doutrinas teosóficas.
XII.
Se o Sábio não tem afeições particulares, as cem famílias
são suas afeições. A quem é bom, diz ele, serei bom com ele; a quem não é bom,
serei bom do mesmo jeito. Esta é a verdadeira bondade. Sou sincero com quem não
é sincero; e sou sincero do mesmo modo com quem não é sincero. Esta é a
verdadeira sinceridade. O Sábio vive em meio aos homens e pesa as gerações na
balança de seu coração. As cem famílias o guardam em seus olhos e ouvidos; ele
é o pai e modelo universais.
Esta é a regra do
altruísmo geral: o Sábio não conhece nem o amor nem o ódio, que são sentimentos
particulares voltados para este ou aquele indivíduo; mas ele conhece o afeto
desinteressado e geral por toda a espécie humana. Este afeto é uma vontade
racional, não um sentimento passional. Assim também o Sábio comporta-se do
mesmo modo com todos os homens, sejam quem forem; ele é bom e honesto para com
todos os homens, mesmo com os maus e desonestos; ele é assim porque a Via
oprdena que seja assim, para si mesmo e independentemente de outros homens; ele
deve então amar, socorrer e edificar os demais, independentemente de suas
virtudes ou vícios: é nisto que o altruísmo do Sábio distingue-se da caridade
do ignorante, ou da mutualidade do egoísta. Assim, todos os homens se voltam
para ele, olham-no e escutam-no como se ele fosse seu pai.
XIII.
Para cada criança que nasce, morrem oito.
Prognosticamos dez nascimentos, não chegam a três; os homens fazem nascer as
crianças; ao menor contato, elas morrem. Assim, nascem dez, restam três. Porque
este mal? Porque hoje em dia os homens querem possuir demasiado, e viver, e
produzir. Quem escuta assiduamente a Via pode criar e viver; marchando sobre o
caminho, ele não precisa desviar-se do tigre. Quem vai para a guerra sem
defesas suficientes, num piscar de olhos não sabe aonde esconder-se, morre e
não pode ser salvo. Contra o Sábio, o tigre não pode usar suas garras, nem o
soldado pode quebrar a ponta de sua espada. Porque? Seguindo a Via, o Sábio que
está sobre a terra não pode morrer.
Bem entendido, não se
trata aqui da vida e da morte humanas, materiais e animais; trata-se do homem
que segue a Via e que vive utilmente, e do homem que não segue a vida e que não
tem mais movimentos do que um cadáver, ou cujos movimentos são inúteis – vale
dizer, não trazem para ele, por ausência de retidão, as vantagens da estase humana.
Para fazer sentir quão poucos interessam-se pelo objetivo final, o Mestre diz
que, de dez que estão prestes a viver, apenas três vivem com e pela Via.
Porque? Porque, ao
receber a vida para seguir a Via, eles se enganaram; esqueceram-se do objetivo
pelo qual eles receberam a vida, prendendo-se à vida apenas, com as vantagens
(posse, produção, movimento) relativas inerentes a este dom da vida. Ora, eles
perdem estas vantagens ao mesmo tempo em que perdem a vida, e vivem sem
benefício. Assim eles chegam ao momento da passagem para uma outra modificação,
à morte, sem estar suficientemente armados para enfrentá-la; els a temem,
tentam fugir dela, não a vencem e sofrem-na sem proveito. O Sábio, ao
contrário, que não se prende à vida, porque não está ligado senão nas vantagens
que estão acima da vida, não teme a morte (aqui entram as comparações com as
unhas do tigre e a espada do soldado). A morte não pode nada contra ele, pois
ele continua a viver realmente, após a morte humana, com os objetos de seus
desejos. É por isso que o Sábiomodifica-se, mas não pode morrer.
Veremos, no final do
tratado, um capítulo consagrado ao povo, onde se diz, ao contrário, que devemos
fazê-lo amar a vida; este é um meio de direção do povo nas mãos dos Sábios que,
por seu desligamento da vida, estão acima dela.
XIV.
Aqui a Via produz; a Virtude une; os seres se formam;
eles se tornam modos.Também assim, os dez mil seres veneram a Via e respeitam a
Virtude, pois a Via é venerável e a Virtude é respeitável. Ninguém as fez: elas
existem por si mesmas. A Via produz, une, acrescenta, concede, forma,
normaliza, nutre e protege. Ela produz os seres e nãose apropria deles; ela age
e não se interessa; ela é grande e não ganha nada de novo. Esta é sua profunda
Retidão.
Esta é a grande fórmula
do Taoísmo. Ela é a explicação direta do tetragrama de Wen Wang: uyan, heng, li, tsheng, que
comentamos em A Via Metafísica, e que é
a chave que abre todo o Yi King. Mais
uma vez podemos ver como o Taoísmo é extraído diretamente da Tradição
primordial, puro e sem misturas nem adições. A Via produz: é o princípio da
atividade; é o Não-Ser querendo Ser; é o Um, a determinação positiva do Zero. A
virtude une: é o princípio da passividade, perfeição igual e de determinação
contrária à perfeição ativa; é o Ser fazendo-se criador; é o Dois, ação
feminina da Unidade. Os seres se formam: é a origem da corrente das formas; é o
criador fazendo agir sua primeira vontade; é o Três, a união do Um com o Dois.
Eles se tornam modos: é o Ser tornando-se os seres na corrente das formas, nela
recebendo limites; é a primeira manifestação da vontade criadora; é o Quatro,
produto da união representada pelo Três.
Ora, o Um, que é
oprincípio ativo masculino, saiu da Via. O
Dois, que é o princípio pasivo feminino, saiu da Retidão; o Três e o
Quatro representam a união e os resultados humanos da união da Via com a
Retidão sobre o plano humano. É o homem, saído da união do Céu e da Terra,
proclama o Yi King e, com ele, por sua
denominação, ainda hoje, a mais antiga e poderosa das sociedades secretas do
universo. É preciso, sem pensar poder escrever tudo o que pode ser dito a
respeito, meditar profundamente na Grande Fórmula. Ela esclarece todo o Taoísmo
metafísico e toda a filosofia extremo-oriental, em todas as eras.
Podemos salientar a diferença
que se deve ter nos sentimentos pela Via e pela Virtude: uma veneramos, por ser
divina; a outra, respeitamos, por ser a aplicação – e como que a tradução –
humana da primeira. Somente estas duas coisas nasceram por si mesmas, e não de
uma união; mas, como tudo saiu da Via, tudo deve reportar-se à Via. Assim, Via
produz (o princípio), une (a Retidão), acrescenta (a origem), concede (a
corrente das formas), forma (os dez mil seres), normaliza (as modificações),
nutre e protege (as passagens transformadoras).
A Via produz, mas, fora
desta produção, os seres são independentes. A Via age, mas, fora deste ato, os
ativos são responsáveis. A Via é grande, mas, fora desta grandeza, os homens
são livres. E é assim que se manifesta a própria virtude da Via. Pois, a partir
do momento em que ela se aplica ao homem, também a Via possui a sua Retidão, e,
em virtude da sua perfeição original, conforma-se a ela.
XV.
O princípio inicial dos homens, eis o modelo de todos
os homens. Quem conhece o princípio quer também conhecer as consequências: quem
conhece as crianças respeita a mãe. Assim, as gerações não cessam. Fechar a
porta, é tornar-se estável até a morte; abrir à assiduidade, igualar-se às
circunstâncias, é não precisar de ajuda para a morte. Quem compreende o mais
sutil é claro. Quem observa a bondade é mais forte. Quem aspira à brilhante Via
volta-se para a sua claridade. Jamais deixar esta claridade, é a busca contínua
da Via.
O princípio inicial é a
Via; mas o princípio inicial humano é a Retidão; este é o modelo ao qual todos
os homens devem se conformar. Aquele que conhece este princípio deseja conhecer
as suas consequências; e ele prende-se a que elas sejam convenientes e
meritórias, ou seja normais; aquele que conhece estas consequências respeita o
princípio que as engendrou (aqui, as crianças são as consequências, e a mãe, o
princípio). Esta é a condição da imortalidade para os homens.
Para um homem em
particular, fechar sua porta significa prolongar sua vida, e abri-la, ao
contrário, é lançar a si mesmo para a morte: é um símbolo pelo qual deve-se
entender que a vontade da não-ação (e o isolamento dentre as multidões) é a
condição da imortalidade; enquanto que a dispersão entre os sentimentos das
massas, simbolizado pela porta aberta, disipa as forças da vida e conduz à
morte inútil. Ora, aquele que vive desconhecido e refletidamente, atrás de sua
porta fechada, conhece o que há de mais sutil, e assim sua conduta é clara e
simples; ele observa a bondade, e no entanto é o mais forte dos homens. Ele
deve isto à Via, para a qual ele se volta sem cessar; ele reveste-se do brilho
da Via, e, jamais tirando os olhos desta claridade, ele a segue e a busca
constantemente, e comunga um dia com sua qualidade universal.
XVI.
Instruir um homem para que siga a Via, é seguir a Via,
e a Via o quer como a um filho; o povo o venera e o escuta. Mas pretender
adquirir sem trabalho, deixar a terra inculta e o corpo apaixonado, ignorar os
sinais, buscar vantagens contínuas, beber, comer, cantar, desejar o aumento dos
seus bens, ser mau e roubar, isto não é a Via.
Seguir a Via é
considerar a corrente das formas na estase humana. O composto que forma a
Humanidade está submetido à Via como todos os outros que vieram antes e que
virão depois. Assim a vontade do Céu fica satisfeita, primeiro, porque a forma
humana manifesta-se na corrente a partir da Via, e depois, se os seres
limitados por esta forma obedecem à Retidão, que é sua Via temporária no
interior desta forma, e no momento da corrente em que eles se movem.
O Mestre não diz aqui o
que é esta Retidão; mas ele indica claramente o que é contrário a esta Retidão,
para que encontremos aqui tanto a doutrina metafísica do não-agir quanto a
doutrina social do não-reger.
XVII.
Quem sabe agir fortemente não tem necessidade de ajuda;
quem sabe conservar não pode perder; seus filhos e os filhos de sua raça não
acabarão nunca. A virtude de quem dirige bem seu espírito é a retidão; a
virtude de quem dirige bem sua família é a abundância; de quem dirige bem sua
cidade, é a duração; de quem dirige bem sua província, é o brilho; de quem
dirige bem os homens, a virtude é universal. Assim, considerando a mim mesmo,
eu conheço o outro; considerando minha família, eu conheço as famílias;
considerando minha cidade, eu conheço as cidades; considerando minha província,
eu conheço as províncias; considerando os homens de minha raça, eu conheço
todos os homens. Como? Pela experiência própria.
Esta página é a primeira
que dá abertamente conselhos sociais, sob uma forma abstrata e filosófica;
encontraremos várias delas esparsas ao longo do tratado, e redigidas com menos
reserva. Pois Lao Tsé jamais foi um mestre tímido, e vai sempre até o fim de
seus pensamentos.
Aqui, ele afirma que a
observância contínua da Retidão traz a imortalidade. Mas esta retidão humana
não possui um aspecto único, como a Via celeste: conforme a quem se aplique, e
segundo suas funções e seu estatuto social, ela muda de qualidade, embora
permanecendo como Retidão, ou seja a via particular que cada ser humano deve
seguir. É assim que a retidão individual é e traz a doutrina; a retidão
familiar é e traz a prosperidade; a retidão da comunidade é e traz a
estabilidade; a retidão da raça é e traz o esplendor; e a retidão social é e
traz a unidade harmoniosa e universal. Qual é o método desta generalização? É o
de concluir, a partir do particular, não do geral, a todos os particulares, e
de um coletivo, a todos os outros coletivos. Este método, que tem para si a
experiência, não é verdadeiro a menos que os indivíduos e as coletividades
possuam caminhos paralelos e motivações análogas, ou seja se eles se conformam
cada qual à Retidão que lhe é própria.
XVIII. Quando
se conserva a virtude como os recém-nascidos, as víboras venenosas não podem
picar, os quadrúpedes ferozes atacar: não se herdam coisas ruins. Os ossos são
finos, os nervos são moles, mas existe uma beleza harmoniosa. Assim se pode ser
simultaneamente poderoso e bom; a inteligência é ágil; por conseguinte, se é
perfeito, sem medo, e pacífico. Conhecer a paz, eis a constância; conhecer a
constância, eis a claridade. Quando o espírito comanda a alma, eis a força. Mas
as coisas fortes podem morrer. Assim, isto não é o Tao; hoje em dia, isto está fora do Tao.
Esta página especifica
as vantagens humanas que a Retidão normal confere. Quando o Sábio possui a Retidão
como um recém-nascido, vale dizer de modo simples, natural e sem esforço, ele
está acima de todos os perigos e de todas as dores; vale dizer que ele pode ser
atingido por eles materialmente, mas não é afetado intelectualmente. Assim, a
doçura e a fraqueza fazem ossos finos e nervos moles, o que, na luta, não vale
diante de um esqueleto maciço e de músculos poderosos. Mas para quem não
pretende agir, a força é inútil, e, enquanto que ossos fortes e músculos
grandes são pesados, aquele que não luta possui uma beleza harmoniosa.
Nesta bbeleza
harmoniosa, a inteligência é ágil; mas, como ela renunciou voluntariamente aos
meios físicos da luta, o Sábio é pacífico; a paz lhe dá a constância, e esta
lhe traz a clareza. Assim, sempre e em toda parte seu espírito comanda sua
alma, e sua lógica comanda sua sensibilidade. Assim ele se torna imortal, pois
ele não está ligado a nada que seja perecível. Ao contrário, as coisas que
chamamos fortes podem diminuir de força, enfraquecer, desaparecer. E aqueles
que, por qualquer de seus afetos, desaparecem, não pertencem ainda à Via.
XIX.
Quem sabe não fala. Quem fala não sabe. O Sábio fecha
sua boca; ele fecha seus olhos; ele se deita para pensar ativamente; ele abre
seu coração; ele reune suas luzes interiores, mesmo misturando-se aos vulgares
do exterior. Assim ele se torna profundo. Ele não se preocupa nem com amigos,
nem com inimogos; ele desdenha tanto as vantagens como as perdas, as honras
como as desgraças. Seu exemplo faz bem a todos os homens.
Esta é a lei do
isolamento intelectual. O Sábio deve conter-se. O Sábio fecha sua boca, não
apenas para preservar sua ciência do contato contaminante da ignorância, mas
para não perder seu próprio sopro e sua força vital. O Sábio fecha os olhos,
não apenas para não dispersar inconsideradamente suas luzes, mas para não
perder sua força nervosa e voluntária prendendo-a aos objetos de sua visão. Ele
se recolhe, não paenas para evitar as distrações das massas exteriores, mas
também para não perder, em movimentos inúteis, as forças naturais que sua
ciência concentrou nele. Sopro, força pessoal, forças exteriores, ele aplica
tudo isto à atividade do seu pensamento. Assim, ele reune num feixo, cujo
brilho se volta para dentro, todas as suas luzes interiores; assim, iluminado
por dentro, obscuro por fora, ele se mistura ao vulgo exterior, e se confunde
com ele sem chocar nem espantar a ninguém. Esta é a condição da sua segurança
individual. Nestas condições, ele passa, sem amigos nem inimigos, igualmente
distrativos, pela massa indiferente; ele não cuida de honras e glórias; ele
está acima das desgraças, da obscuridade, dos enganos. Nada o emula; nada o
atinge. Este é o modelo da Retidão social.
XX.
A lealdade governa o império; o artifício comanda as
armas. A ausência do mal é propícia a todos os homens. Como sabemos que é
assim? Por isso: os homens se defendem do mal? As cidades estão empobrecidas e
tomam armas. O império está tumultuado por causa dos chefes? As pessoas se
revoltam e todas as coisas definham. Um chefe inteligente reune os homens?
Existem muitos ladrões. Os homens fazem leis? Existem muitos crimes. É por isso
que o Sábio diz: eu não ajo, e assim as pessoas das cidades se emendam; eu
procuro o repouso, e as pessoas da cidade se retificam. Eu não faço violências,
e as pessoas da cidade enriquecem. Eu não tenho ambições, e as pessoas da
cidade simplificam-se.
O capítulo XX do Te está para a Retidão assim como o capítulo II do Tao está para a Via. É o dogma das relatividades criando
umas às outras e não tendo uma existência essencial, que Lao Tsé faz passar do
plano metafísico ao plano social. Mas o que é um sistema generalizador no
primeiro – pois a negação da relatividade é uma ascese evidente no mundo
metafísico – tende a se tornar um sistema nihilista no segundo, aonde as
relatividades parecem se revestir de uma realidade objetiva. É por isso que o
Mestre envolveu seu pensamento em “trevas exteriores”, de restos fáceis de
dissipar.
A lealdade (retidão,
simplicidade) governa o império, ou seja, ela mantém a paz; o artifício
(engano, violência) comanda as armas, ou seja, empurra para a guerra e a
desordem. Este é um apoftegma do qual toda a Humanidade está convencida, embora
aqueles que a dirigem nem sempre se conformem a ele em suas condutas e
aspirações. Mas do que é feita a lealdade? Do que é feito o artifício? Do que é
feita a simplicidade? Do que é feita a compicação? Os ensinamentos orais do
Taoísmo permitem declarar que, aqui, o Mestre entende por simplicidade a lei
natural, e, por complicações, as leis que não são naturais. E é com esta luz
crua, sem a menor atenuação, que ele vai esclarecer as frases seguintes: muitas
defesas levam a muitas misérias, ou seja, quando as proibições humanas vêm
agravar as proibições naturais, não há mais prosperidade possível. Muitos
chefes, levam a muitos problemas, ou seja: quando os mestres se impõem pela
força e agravam com sua autoridade as prescrições da lei natural, não há mais
ordem possível. Quando os homens inteligentes se reunem, existem ladrões, ou
seja: quando a habilidade dos homens substitui a simplicidade da lei natural,
nada mais é possível, senão o regime da enganação. Quando os homens fazem leis,
surgem muitos crimes, ou seja: quando as leis convencionais criam, fora da
natureza, o bem e o mal, cívico ou social, nada mais é possível, senão o crime
e a transgressão perpétuos. Esta é a pura doutrina libertária, tal como a
tradição gnóstica a conservou, como Rousseau a sonhou, com Proudhon a
reintegrou. Ela é de uma lógica indiscutível; e, se surgiu uma oposição
violenta e apaixonada contra ela no Ocidente, isto não se deve tanto aos
princípios que ela professa, mas às consequências que alguns pretenderam
extrair-lhe.
Esta discussão está, sem
dúvida, fora e abaixo de nossas preocupações, mesmo aqui. Mas frisemos que esta
exposição brilhante e definitiva é seguida pelo conselho expresso dado ao
Sábio, no qual é dito qual o uso que deve ser feito desta doutrina. O Sábio não
age, e asssim os homens, submetidos apenas à ação da Retidão, emendam-se. O
Sábio repousa sem comandar, e asism os homens controlam a si mesmos, e
retificam-se pela via natural. O Sábio não comete nenhuma violência, e assim os
homens enriquecem e melhoram. O Sábio não tem ambições, e não legisla: assim os
homens, livres de todos os entraves e dificuldades, simplificam-se, fazem ações
raras, simples, sempre as mesmas, e em conformidade com seu interesse e sua
consciência individual (pois é pelas leis convencionais e sem generalidade quie
o interesse pode tornar-se ou parecer contrário à consciência da Retidão).
XXI.
Se o Sábio ensina com circunspeção, as pessoas do povo
tornam-se sinceras; se o Sábio ensina com clarividência, as pessoas do povo
descobrem-se. O bem subsiste; um bem, cumprido, leva a outro; a memória
permanece até o fim. Quem não é direito é enganador. Os homens direitos que
chegam à Via são ensinados; aqueles que sabem aproveitar são doces; aqueles que
se afastam perdem-se por muito tempo. Assim, o homem perfeito pode ensinar
logo, mas não ensina senão no crepúsculo; ele ensina perpetuamente, não durante
um tempo determinado; ele é reto, e não pretende endireitar. Ele é claro, e não
quer ofuscar.
Esta página, mais uma
das que sofreram numerosas interpolações, está sujeita, mesmo na China, a
diversas interpretações. Como de resto ela não encerra nenhum preceito que diga
respeito, seja à Via, seja à Retidão, obedeceremos à nossa reserva habitual e
não faremos nenhum comentário.
XXII.
O governo dos homens e a ação do Céu não se parecem com
a tranquilidade de uma tumba. E no entanto, quanta tranquilidade! Assim, há
muito tempo, os homens a veneram. Venerar por muito tempo, é acumular a
virtude; acumular a virtude, é concordar em paz. Concordar em paz, é recuar os
limites; recuar os limites, é o modo de governar. Quando oimpério é amado como
uma mãe, ele dura e se estende. Pois estas são razões profundas e de bela cepa;
assim vive-se muito tempo observando constantemente o Tao.
O governo dos homens
deve ter como modelo a ação do Céu: a ação do Céu, que é a tranquilidade por
excelência, não é nada parecida com a tranquilidade de uma tumba: a tumba é a
inércia material da coisa morta, o Céu é a não-ação voluntária do Ser; Lao Tsé
usa todas as ocasiões para diferenciar a não-ação da inércia, e a tranquilidade
da imobilidade. O governo ideal dos homens seria, assim, a tranquilidade, mas
uma tranquilidade atenta; e, assim como a ação do Céu é interior e invisível, a
ação do soberano deve ser a inércia no exterior (impossibilidade de ultrapassar
as fronteiras) e ação no interior (cuidado com a felicidade do povo e a
solidariedade entre todos os homens). É por esta aquiescência com a Retidão e
por esta semelhança com a Via que os homens veneram o soberano. Este é
verdadeiramente o modo de governar, não há outros. Para se identificar com a
Via, o império identifica-se com a própria imensidão e duração da própria Via.
Do ponto de vista
individual, e fora do plano social, acumular a virtude é concordar; concordar é
reunir-se, identificar-se. Os indivíduos que se identificam recuam os limites
da individualidade, e começam assim sua evolução.
XXIII. Governar
um grande império é como cozinhar um peixinho. O soberano deve servir-se do Tao
para guiar os homens. Existem muitos maus e poucos bons; não é verdade que
existem muitos maus e poucos bons? Os maus não amam aos outros homens: não é
verdade? Em toda parte, os homens não amam uns aos outros: os maus não amam os
bons, mas o Céu os reconcilia e os pacifica na virtude.
Toda esta página é de um
singular simbolismo. O peixe deve ser cozinhado em fogo baixo, assim como o
império deve ser governado com prudência; o peixe é imperceptível e imóvel no
meio da água que ferve e o joga de um lado para outro; do mesmo modo, o
soberano está só nomeio de um povo imenso, cujos movimentos o afetam e cujas
opiniões o influenciam. De resto, é melhor cozinhar um peixe numa água
bruscamente fervente, ou pouco a pouco, numa água tépida? É melhor governar o
império com os fortes e os audaciosos, ou com os doces e os mansos? A água fria
e a água fervente excluem-se; assim os fortes desdenham os mansos, e os maus
odeiam os bons. É um fato, que os homens não amam uns aos outros; os doces não
amam os fortes, a quem chama de violentos e maus; os fortes não amam os doces,
a quem chamam de inertes e fracos. E no entanto, eles só se chamam de bons,
maus, fracos ou violentos porque são homens; na realidade, eles não são nada
disso. É por isso que quando o Céu os reune, por meio desta virtude (que é a
Via) e os faz perder seu caráter humano, eles se pacificam e reconciliam.
XXIV. Um
grande país é como a água profunda: ele simpatiza com todos os homens. Este
hábito conduz à paz, à prosperidade, à força; a paz traz a doçura. É por isso
que um grande país é doce com os países pequenos, ele garante a sua segurança ; os pequenos países são
respeitosos para com os grandes, e mantém sua fidelidade; é por isso que os
pequenos ligam-se aos grandes, e os grandes retém os pequenos. Um grande país
reune muitos homens; um país pequeno reune, com dificuldade, oito. Os dois têm
os meios de fazer o que querem. Assim a grandeza identifica-se com a doçura.
A água profunda envolve
a terra, inflitra-se nos menores interstícios, fecunda-a e embeleza-a; assim um
grande país deve envolver os homens com sua simpatia benfazeja. Dela, os homens
recebem a paz; da paz, a prosperidade; da prosperidade, a força. Mas, embora
fortaleça, este método indica que a força não deve ser utilizada; e assim este
gênero de força conduz à doçura. Assim se traduz, em linguagem social, este
dogma metafísico que diz que o princípio ativo causa necessariamente a presença
do princípio passivo, e que, colcados em presença um do outro, eles se unem. Em
conformidade com esta união, o grande país une-se aos pequenos asssegurando sua
proteção, e os pequenos países unem-se ao grande assegurnado-lhe sua
fidelidade. A proteção do forte e a fidelidade do fraco são de igual virtude, e
equilibram-se. Existe uma vantagem recíproca; os dois ficam felizes, porque
ambos fazem precisamente o que podem, e o que corresponde ao seu número[30]. Cada qual está em sua Retidão, e esta Retidão
manifesta-se precisamente pela doçura, que é uma espécie de não-agir social.
XXV.
A Via é a condição de todos os homens: com ela amamos
os bons, evitamos os maus. As boas palavras e a doçura podem atrair os homens.
Quanto aos maus porventura existentes, para eles estabelecemos um rei e três
ministros. Unidos, eles são mais fortes e rápidos do que quatro cavalos
atrelados; mas eles não podem, como aquele que está tranquilo, alcançar a Via.
Desde sempre, o Sábio venerou a Via; ele a encontrou sem a buscar e, com ela,
curou os doentes. Assim, todos os homens agora amam a Via.
Para os homens bons, a
Via, que é a condição de todos, basta por sua doçura. Para os maus, que só
obedecem à força, é preciso estabelecer um rei e três ministros (quaternário
positivo das relatividades criadas). Mas, por mais unidos, fortes ou perfeitos
que sejam, estes quatro agentes do poder nãopodem fazer o que faz a Via, único
agen te da doçura. O Sábio, que conhecia a Via, e que a encontrou sem buscá-la,
conduziu outrora os maus à Via pela Via. E assim todos os homens amavam a Via
única. Mas isto deixou de ser possível, desde que existe “um rei e três
ministros”. Vale dizer que as instituições sociais, mesmo quando sua autoridade
só se exerce no sentido da Retidão, excluem a verdadeira Via, e esta só
reaparece como universal ao homem depois da desaparição das instituições
sociais e dos governos.
XXVI. Agir
como se não se agisse; trabalhar como se não se trabalhasse; experimentar como
se não se experimentasse; estimar grandes as pequenas coisas, e numerosas as
raras; tomar o mau como virtuoso; pensar as coisas difíceis como fáceis; pensar
as grandes coisas como pequenas: é assim que os homens cometem erros. Eles
pensavam que tudo era fácil; eles pensavam que as maiores coisas eram pequenas.
É por isso que o Sábio não age, e é grande; é por isso que muitas vezes ele se
torna maior ainda; ele fala com doçura, mas o que ele diz é verdade.
Certamente, as coisas difíceis lhe são fáceis. O Sábio crê que ainda existem
dificuldades; mais tarde, não há mais dificuldades.
Esta página encerra uma
curiosa singularidade dos ideogramas chineses, que merece uma pausa. Sabemos
que a pontuação, enquanto sinais, compõe-se exclusivamente de um pequeno
círculo colocado, como se fosse um “índice” algébrico,, à direita do caracter
que determina o sentido completo; sabemos, por outros lado, que os caracteres,
escritos da direita para a esquerda e de cima para baixo, constituem séries de
colunas verticais; quando uma frase, ou melhor, quando um raciocínio começa por
uma idéia condutora, o caracter que representa esta idéia condutiora é colocado
na cabeça de uma das colunas, e esta coluna, no papel, começa acima das demais
colunas da mesma págica, a fim de indicar tangivelmente a supremacia da idéia que o autor quer destacar
do restante do raciocínio. Mudando a pontuação, e fazendo sucessivamente subir
e descer – no momento da tradução fonética – a coluna de caracteres que exprime
que “os homens cometem erros”, obtemos o sentido individual ou humano, depois o
sentido geral ou metafísico desta página, conforme, por meio deste duplo
deslocamento, o elemento determinativo da frase “os homens cometem erros”, que
se encontra no meio da página XXVI, seja aplicado à primeira ou à última parte
da página. O significado que está na tradução tal como pontuada acima, é o
sentido individual humano. O mestre indica que os homens que se deixam levar
pelo individualismo, e que chegam a considerar como reais apenas os produtos ou
as vantagens do indivíduo, perdem o benefício de sua ação, de seu trabalho e de
seu sentimento; pois, ao aplicá-los a um objetivo imediato, os indivíduos, que
não passam de relatividades – e que não possuem nenhum correspondente do
universo metafísico, único real e único companheiro de nossa evolução –
aniquilam todo seu esforçio, e permanecem como se não tivessem agido, nem
trabalhado, nem experimentado. A visão próxima desses objetos esconde deles a
visão distanciada das coisas gerais, e inverte, por conseguinte, o equilíbrio e
justeza das noções; pois todas as qualidades da causa e da necessidade são
atribuídas por eles apenas aos objetos vistos, sobre os quais eles se
determinam. A partir daí, eles tomam o mau pelo virtuoso, o difícil pelo fácil, o grande pelo pequeno, e
caem num grande erro contínuo. Quanto ao Sábio, sua inação diante dos produtos
do individualismo esconde a grandeza de sua ação face ao universo coletivo: e
quanto menos ele pareça agir aos olhos abusados dos indivíduos, maior ele se
torna; e, ao contrário deles, ele estima difíceis as coisas, mesmo as mais
fáceis; ele se comporta em relação a elas como se elas fossem realmente
difíceis; e assim ele rompe todos os obstáculos, e não existem mais
dificuldades para ele.
Graças à inversão da
pontuação e à mudança na altura da coluna mediana de caracteres, o sentido
geral metafísico é precisamente o de que o Sábio, diante do sentimento errôneo
dos humanos individualizados, age do modo como os h omens não agem; trabalha de
um modo que os homens não trabalham, etc.; assim, os homens acham que ele faz o
contrário daquilo que, na realidade, ele faz. Mas sua ação lhes escapa, assim
como os motivos de sua ação, que são gerais e estão num plano supra-humano. A
partir daí, o Sábio vê todas as coisas humanas sob um mesmo ângulo, as grandes
como pequenas, as difíceis como fáceis; e ele considera o mau assim como
considera o virtuoso. Assim, ele se comporta como o quer o Tao, no qual vimos que as relatividades engendram-se
mutuamente, que uma coisa relativa não pode existir sem seu contrário, e que,
por conseguinte, tanto uma coisa como outra não existem realmente. O que é
verdadeiro para o material o é também para o moral: assim, o Sábio, em sua
concepção metafísica, considera o mau e o virtuoso como dois humanos paralelos,
cuja maldade e virtude distinguem-se uma pela outra, e que estão destinados a
desaparecer juntos, ao mesmo tempo em que os motivos contingentes que os
criaram, e que as consciências temporárias que os determinaram e que são
afetadas por eles. Extraindo um pouco mais as consequências desta página no
sentido metafísico, chegaremos ao dogma da relatividade do bem e do mal, e à
qualidade ilusória do dualismo humano e da moral que lhe foi acrescida.
XXVII. O
que é tranquilo é fácil de manter; o que está em repouso é fácil de conservar;
o que é fraco é fácil de romper; o que é tênue é fácil dispersar. É preciso
prevenir o acontecimento antes que ele chegue; é preciso apaziguar antes que a
revolta estoure. Uma árvore, que o homem derruba com dificuldade, tem uma raiz
como um fio de cabelo; uma torre de nove andares começou com um punhado de terra;
mil lis começam com um passo. Quem
trabalha pode fracassar; quem ganha uma coisa pode perdê-la. É por isso que o
Sábio não trabalha para ganhar as coisas, e portanto não pode perdê-las. Se o
povo ganha, normalmente ele chegará à perda. É preciso tomar cuidado no começo
e no fim das coisas; assim, não as perderemos. É por isso que o Sábio atém-se à
indiferença, e não quer ganhar nem adquirir nada. Ele sabe sem estudar; ele
caminha ao lado dos outros homens, mas faz seu próprio caminho só. Ele é superior
aos dez mil seres, mas ele separa-se deles, e não ousa influenciá-los.
Está aqui, no plano
filosófico e social, e reduzido a apoftegmas, o princípio metafísico incluído
nas primeiras páginas do Yi King: “ao
avançar sobre a geada, o gelo se aproxima”. Tanto nos indivíduos quanto na
coletividade, ou seja em todos os compostos e conjuntos que têm um começo ou um
nascimento relativo, é o começo, para o Sábio, a coisa mais importante. O que
está em baixo é como o que está em cima, mas em sentido contrário; assim, o
Sábio deve prestar atenção ao começo, ou seja ao princípio da Via, para
conformar-se a ela, e deve também prestar atenção ao começo contingnente das
coisas, a fim de que estas se conformem a ele. E esta prescrição metafísica é
também social e moral. Pois, desde o seu nascimento, os dez mil seres, coisas e
gentes, são fracos e tênues, e, portanto, fáceis de dirigir na direção que o
Sábio decidiu. É facil arrancar a raiz de uma árvore recém-nascida, ou destruir
uma torre que mal começou; é impossível derrubar uma árvore que um homem mal
consegue arranhar, ou destruir uma torre de nove andares. Da masma forma, o
Sábio deve tomar suas paixões no nascedouro para sufocá-las, e cativar os
homens em sua primeira assembléia, a fim de os dominar. Este é o sentido das
palavras do Mestre.
Mas ele insiste
imediatamente sobre os meios desta dominação, individual ou coletiva: é preciso
que não sejam meios de ação, mas de exemplo. É evitando adquirir desejos que o
Sábio evita possuir paixões; é dando as costas aos homens que estes se voltam
para ele para segui-lo, sem que seja preciso chamá-los. O Sábio permanece
superior à sorte; e, mesmo quando os homens e as coisas se separam dele,
perdendo-se, ele não é diminuído, porque não estava unido a eles, e nada lhes
deu de si mesmo.
XXVIII. Antigamente,
aqueles que conheciam a Via não queriam esclarecer o povo. Se eles deparavam-se
com más ações, imediatamente eles as reprimiam. É difícil governar os homens,
pois é preciso ciência. Se aqueles que comandam o império agem pela força, o
império entra em revolta. Se usarmos a doçura para governar o império, o
império torna-se feliz. Aquele que conhece estas duas coisas pode
experimentá-las; às vezes, ele consegue experimentá-las juntas. Esta é a
virtude profunda; a virtude profunda é secreta, e trespassa as intenções dos
homens. Todas as coisas se voltam para ela; ela traz a felicidade harmoniosa.
Este capítulo é muito
singular, pois ele pode ser entendido de duas maneiras; o primeiro sentido é
bastante claro: ele aponta que é muito difícil dominar os homens sem a Via.
Ora, reprimir brutalmente as más ações não é a Via; e o povo que,
inconscientemente e tradicionalmente é levado à Via, revolta-se se for
conduzido com brutalidade e obedece se é conduzido com doçura[31]. Mas é preciso frisar (e é a esta observação que se
aplica o apoftegma do final desta página, a saber, que a virtude profunda é um
mistério) que, se é verdade que a repressão brutal não é conforme à Via, os
atos maus que ocasionam esta repressão estão completamente fora da Via. Em
consequência, não seriam os governantes, mas os governados que teriam começado
a desviar-se da Via. Isto parece contrário a todo o ensinamento de Lao Tsé, e,
na realidade, La´Tsé não disse isso. Ele disse que os primeiros condutores do
povo conformavam-se à Via, mas não tinham espalhado em meio ao povo o
conhecmento da Via; assim, os povos obedeciam à Via sem conhecê-la. Mas, desde
que eles acreditaram conhecê-la, em função das divagações de alguns chefes
imprudentes, eles quiseram segui-la raciocinando; como eles a conheciam mal e
não poderiam então senão conhecê-la mal, eles seguiram mal a Via. Este
ensinamento está perfeitamente conforme à tradição esotérica, que diz que a
ciência é adquirida pessoalmente, e não através de vulgarizações coletivas, sempre perigosas. Do ponto de
vista social, isto espantará os meios ocidentais, aonde reina a crença absoluta
no benefício da instrução obrigatória.
XXIX. Os
rios e mares fazem cem abismos ao fluirem; assim também os reis; as águas só
sabem descer; assim também as cem raças de reis. O homem perfeito, que quer o
progresso do povo, fala baixo com ele. Ele fala diante do povo, e cada um
caminha atrás dele (seguindo seus ensinamentos). Assim, quando o Sábio tem um
posto elevado, o povo está feliz; quando ele tem um lugar na frente, o povo não
sofre. Assim, todos os homens ficam satisfeitos e sérios. Como o Sábio não
luta, ninguém encontra ocasião de lutar.
Quem alimenta o solo? A
água. Quem arrasta consigo o solo e o transforma em limo fecundandor? A água. A
água é assim o mestre e também o benfeitor do mundo. Mas porque ela preenche
este papel? Porque ela ocupa sempre o plano mais baixo dos vales, e não pode
fazer outra coisa do que descer. Se ela não descesse sempre para ocupar os
pontos mais baixos, as terras não a seguiriam. O mesmo acontece com os reis e
com todos os chefes, que são chamados a conduzir, reger e fazer prosperar as
nações. O Sábio, que é o melhor dos condutores, abaixa-se para o povo para
falar-lhe, e o povo só o segue na medida em que não sofre com sua
superioridade. Ora, o povo não sofrerá com esta superioridade, se o Sábio,
contentando-se com apresentá-la, não a impor. Não sofrendo, o povo não
precisará lutar. Em resumo, o Mestre ensina que o povo não segue um homem com
ardor e frutiferamente a menos que o reconheça digno de sua escolha, e que o
escolha, também.
XXX.
Os homens acham-se grandes e semelhantes com aquilo que
não diminui; se eles fossem realmente grandes, eles não diminuiriam; e no
entanto eles diminuem pouco a pouco e sem cessar. Ora, nós possuímos três
coisas preciosas, que guardamos ciumentamente: a primeira é o aumento da
virtude; a segunda é a circunspecção; a terceira é não ousarmos nos colocar à
frente dos homens. O aumento da virtude dá a força; a circunspecção dá a
generosidade; não se colocar adiante dos homens permite tornar-se seu chefe.
Pensar em agir, sem agir ainda, eis a força; guardar a circunspecção, eis a
grandeza; guardar a humildade, eis o primeiro escalão. Na morte, este aumento
prossegue, existe vantagem. Se guardarmos firmemente a virtude, o Céu protege,
e traz por si mesmo uma ligeira vantagem.
Aquele que possui
verdadeiramente o apanágio da grandeza não poderia jamais diminuir, pois a
verdadeira grandeza não é uma qualidade, mas uma essência. Do mesmo modo, os
homens, qualquer que seja sua crença a respeito, por não possuirem nada de seu
além das contingências, diminuem involuntariamente, pouco a pouco, mas de modo
constante. Os três dons preciosos que o Sábio retém evitam que ele sofra esta
diminuição; é o crescimento da virtude, a circunspecção e a modéstia social;
estas três coisas são os auxiliares graças aos quais os homens podem, sem se
diminuir, percorrer o ciclo da existência humana.
Quando estas três
qualidades são adquiridas pelo Sábio com o único objetivo de concorrer para sua
evolução, elas lhe são vantajosas, mesmo no interior do próprio ciclo humano.
Assim, ele adquire a força, a generosidade, e, como especifica a página
precedente, a humilde indiferença que lhe vale o primeiro lugar em meio ao
povo. E, depois de lhe terem sido úteis durante a vida, esses três bens
preciosos, ajudando na passagem da individualidade presente para a
individualidade superior, trazem uma vantagem verdadeiramente celeste; e esta
vantagem consiste em fazer o indivíduo ingressar numa vida mais eminente,
conscientemente, e com todo o benefício dos méritos adquiridos.
XXXI. O
sutil que conhece a ciência não é belicoso; o sutil que sabe dirigir não é
violento; o suti que sabe tomar corretamente não luta. O sutil que emprega os
homens é doce com eles. Da mesma forma, não se luta pela virtude; assim, este
emprego dos homens dá a força. Eis uma ação semelhante à do Céu: era a antiga
perfeição total.
Trata-se da utilização
dos ensinamentos da página anterior pelo homem sutil, nos três planos: no plano
metafísico, ele é paciente; no étnico, ele é pacífico; no social, ele é hábil.
Assim, não lutar pela virtude assegura a força e o triunfo do sutil. O Mestre
indica que está aí, no plano humano, a imagem da união de Khien e Khouen (ver
os dois primeiros capítulos do Yi King),
ou da perfeição certa e da perfeição primeira, aquela fecundando a esta, esta
envolvendo e excitando aquela; “a doçura conduz a tudo”. Esta era a perfeição
primordial.
XXXII. Diante
dos violentos, é preciso falar assim. Eu não quero ser o chefe, mas o
estrangeiro; eu não ouso subir uma polegada, nem descer um pé. Assim, comandar
sem parecer comandar; não disputar; ganhar sem violência. É preciso começar uma
coisa sem estardalhaço e docemente; começar docemente, é o mecanismo que é
nosso tesouro. Aquele que age assim á mais forte que os exércitos. Pensar muito
traz o sucesso.
Aqui são postos na
prática política e social os preceitos anteriores. É fácil dirigir os homens
doce e naturalmente, conforme à Via; mas, quanto mais violentos são os homens,
mais difícil é dirigi-los; convém assim apresentar-se a eles, não como o chefe
futuro e necessário, mas como um estrangeiro, hóspede de passagem, o qual,
tanto por comportamento como por cortesia, não age nas questões mais simples,
como avançar ou recuar. É assim que se chega a comandar sem parecer comandar; a
ação do chefe é fundamentada em suas palavras, e mais ainda em sua conduta, e
não se percebe a materialidade do comando. Na realidade, como na página que
falava da árvore, da torre e dos mil lis
simbólicos, é preciso começar com doçura para ir até o final; é preciso começar
docemente, a fim de que o ato do chefe, sua pessoa e seu objetivo final
permaneçam ocultos à multidão indiferente. Este é o mecanismo que tornou
poderosos Fo Hi e os Sábios tradicionais. E é assim que um só pensador é
superior aos exércitos.
XXXIII. Nossas palavras
são fáceis de compreender, fáceis de praticar. Os homens não as compreendem bem
e não as praticam o bastante. De fato, eles dizem: “as palavras são para os
grandes; a ação é para os reis; nós não compreendemos nada disto; em verdade,
nós não compreendemos nada disto”. Somos poucos os que têm cosciência de si; só
por isto, já somos estimados. O Sábio conhece tudo; seu coração é claro como o
diamante.
Simples constatação da insuportável
involução das sociedades, desde que os homens afastaram-se da Via, e não
confiam senão nos poderosos, cuja força parece necessária para manter a ordem e
a segurança, enquanto que estas coisas deveriam ser natural e inconscientemente
trazidas pela marcha normal dos acontecimentos. O povo, ignorando daí por
dianteos Sábios, vê seus chefes nos reis e nos grandes, que deveriam ser
somenste a polícia e os braços dos Sábios, deixando a eles o cuidado com as
ordens e os atos. Os Sábios, a partir daí os únicos conscientes de si mesmos,
mantém-se à parte, e este testemunho basta à sua consciência e à sua
tranquilidade.
XXXIV. Saber e não
prever; não prever (no momento em que se sabe), eis o grande prejuízo. Tentamos
evitá-lo. O Sábio não experimenta o prejuízo; quando o prejuízo afeta os
homens, ele os alivia.
Esta página, como já
mostramos numa página precedente, permite diferentes entendimentos, conforme a
disposição dos caracteres e as transposições das pausas. O Sábio deve saber – o
que faz parte da ciência geral – e não deve prever – o que faz parte da
aplicação política específica. Não prever e saber tarde demais (o que equivale
a não saber), eis um grande prejuízo; pois se o saber preserva sem previdência
e a´penas pela força natural, a imprevidência com um saber insuficiente ou
tardio leva aos piores abismos. É deste desastre que o Sábio tenta preservar os
homens.
A partir da transposição
ideogramática, o plano social torna-se o plano metafísico, e esta página pode
ser lida simplesmente assim: savber que não se sabe nada é ciência suficiente
para um homem, senão para um Sábio. Sofrer com esta consciência da própria
ignorância, é o primeiro degrau da perfeição.
XXXV. Se
o povo não teme a perda, então sobrevem sua perda total, e não há meio de
conservar os bens materiais. Se ele tem um destino ruim, ele ´pode dizer que
ele tem, apropriadamente, um destino ruim. O Sábio conhece a si mesmo, e ignora
seu destino; ele ama não ser grande. Desta forma, ele deixa isso e adota
aquilo.
Esta é a diferença entre
o Sábio, que segue a Via porque a conhece, e o povo, que conforma-se a ela sem
conhecê-la, e segundo os ensinamentos do Sábio; o Sábio não possui nada, e não
teme o que quer que seja; o povo possui; ele está obrigado a possuir, e convém
que continue a possuir; é preciso então que ele tema perder o que possui. Se
ele não tiver este temor, terá o pior destino, pois, não podendo alcançar os
móveis abstratos e não possuindo mais os móveis concretos, ele se afasta da
Via.
Quanto ao Sábio, ele se
conhece; este conhecimento lhe basta, porque lhe traz infinitamente mais do que
o presente lhe pode oferecer; ele permanece assim indiferente ao seu destino e
prefere a tranquilidade à grandeza.
XXXVI. Aquele que
tem coragem e ousa pode ferir; o que tem coragem e não ousa é incapaz. Destas duas
coisas, uma pode ser vantajosa e outra prejudicial. O Céu não ama isto, que
cada um o saiba perfeitamente. É por isso que o Sábio acha tudo isto difícil.
Esta é a Via do Céu, que o Sábio não luta, mas triunfa; que ele não fala, mas é
atendido; que não busca nada, e tudo vem até ele; que parece inerte, mas que
possui um método hábil. A rede do Céu é bem grande; mas ninguém consegue passar
através dela.
Saber, ousar, privar da
vida, de um lado; saber, não ousar, não privar da vida, de outro lado; eis os dois
métodos habituais de governo; eles correpondem, um, aos chefes violentos, que
desejariam levar os homens para a Via à força, mas não podem, e os levam a
outra parte; o outro, aos chefes tímidos, que não sabem conduzir os homens a nenhuma parte. O Céu não quer nem um nem
outro destes métodos, mesmo que seu emprego sucessivo seja susceptível de
trazer alguma vantagem. Nessas ações, que têm móveis insuficientes, autores
medíocres, meios imperfeitos, o Sábio não vê nada de simples. Pois seu método
de governo é precisamente o de não executar nenhum ato de governo. E o Mestre
indica que esta aparente inércia esconde o melhor método. Seguindo-o, ninguém
poderá passar através das malhas da rede celeste, ou seja, cada qual acomoda-se
e conforma-se com a Via, na medida em que está nela.
XXXVII.
Se o povo não teme a morte, como dirigi-lo com este
temor? Mas aqueles que comandam os homens que temem a morte, mesmo sendo cheios
de circunspecção, podem levá-los à morte. Às vezes ferimos em segredo; mas
somos feridos também; a morte do assassino compensa o assassinato. Esta é a
compensação de uma grande falta; sim, eu digo que esta é a compensação de uma
grande falta. Mas existem poucos homens que não temem fazer o mal.
O temor da morte entre o
povo é o melhor método de governo; pois assim, podemos ameaçá-lo de morte, caso
não siga as orientações indicadas. Este conselho dado aos soberanos é feito
para engajá-los – por uma razão que todos eles possam captar, ou seja por
razões de interesse – em fazer os cidadãos temerem a morte, ou seja, em tornar
sua vida feliz. Quanto aos chefes cujos comandados temem a morte, suas ameaças
devem ser medidas e cheias de circunspecção. E vemos que o Mestre, sem proibir
expressamente a execução das ameaças, prevê a “lei de Talião” àqueles que as executarem.
A ameaça de morte não
passa de uma precaução; levar à morte é um assassinato, que será vingado com a
morte do assassino. Esta é a primeira aplicação da doutrina do “choque de
retorno” das ações humanas, objeto do tratado Kan-ing. Cada ato traz consigo um germe do futuro, e a
manifestação do ato desencadeia necessariamente uma sanção que pode produzir-se
imediatamente ou muito mais tarde, mas cuja fatura acompanhará o autor da ação
ao longo de sua personalidade. É quando esta conta chega em zero que se atinge
o Nirvana. Teremos ocasião de comparar o
dogma taoísta ao dogma hindu do karma e
ao dogma cristão do pecado original.
XXXVIII.
O povo está faminto enquanto os grandes se locupletam;
sim, ele está faminto. O povo é difícil de governar quando os grandes agem;
sim, ele é difícil de governar. O povo despreza a morte quando é constrangido a
se revoltar por sua existência; sim, ele desdenha a morte. Ele não se interessa
em viver; que os homens fiéis se interessem em viver.
O Mestre desenvolve aqui
socialmente o princípio étnico estabelecido mais acima. Apenas a conduta
não-conforme dos grandes pode tornar o povo infeliz; e a infelicidade do povo
levá-o a desgostar da existência, a desdenhar a morte, e a passar uma vida
medíocre em meio a revoltas. Os grandes carregam assim imediatamente a pena por seu erro,
porque este erro, num justo contra-golpe, os faz perder o único meio de governo
que possuíam diante de homens que se afastaram da Via.
É esta página, junto com
muitas outras, que justificam a doutrina comunista de Confúcio, e também a
doutrina antidinástica dos Taoístas modernos. Os únicos soberanos que aderiram
publicamente ao Taoísmo foram precisamente soberanos filósofos, elevados e
solitários que trouxeram consigo os Sábios, não como executores de vontades que
eles tiveram o cuidado de não ter, mas como os representantes da personalidade
imperial, que eles descuidavam até de manifestar exteriormente. E o que há de
particular nisto, é que os reinos destes mestres singulares levaram ao povo
esta fidelidade sossegada e obscura, que na realidade é o supra-sumo da
felicidade sobbre a terra.
XXXIX. O homem
vivo é doce e flexível; morte, é duro e rígido. As plantas vivas são doces e
tenras; mortas, são duras e secas. Fortes e rígidos, os homens caminham para a
morte; doces e flexíveis, eles caminham para a vida. Também, os violentos e os
fortes não têm vantagens. Uma árvore é forte; mais forte é o solo debaixo dela.
Assim o que está em cima torna-se doce e flexível.
Aqui não temos mais do
que apoftegmas simbólicos: a rigidez cadavérica e a flexibilidade do corpo vivo
são imagens para indicar de que modo a dureza inflexível é o apanágio da morte
e da inércia, e que a doçura ágil é o apanágio da vida e da evolução. Portanto,
os caracteres duros e inflexíveis não fazem mais do que obras de morte. No
plano social, a árvore não é forte a menos que o solo de onde ela cresce a no
qual ela mergulha suas raízes seja mais forte e nutriente; quer dizer que os
grandes tiram todo seu poder do assentimento do povo que está abaixo deles; se
eles tiverem esta verdade em seu espírito, eles se tornarão doces e flexíveis,
não apenas pelo bom senso, não apenas para obedecer à Via, mas por interesse.
XL.
O homem que segue a Via é semelhante a um arco; ele segue os que estão acima dele;
ele protege os que estão abaixo. Ele possui bens em abundância, e os dá aos que
não tem o bastante. Assim, o homem opulento que segue a Via guarda pouco para
si, e dá àqueles a quem falta. A Via dos homens não é a mesma; aquele que a
segue dá aos que tem muito e tira dos que não tem o suficiente. Aquele que, por
ser rico, dá seu supérfluo ao povo, segue o Tao. Assim, o Sábio produz e não se
atribui; ele faz grandes coisas e não se vangloria. Ele recusa assinar as ações
de sua sabedoria.
O homem que segue a Via
é como um arco. Diantne dos superiores, ele é a corda, que, ligada às duas
extremidades do arco, segue seu movimento e sua direção; diante dos inferiores,
ele é como o arco que dirige e protege os movimentos da corda. De resto, isto é
verdade graficamente, pois o arco e a corda que o sustenta são, sobre o círculo
tangencial da raça humana, as projeções verticais da vida individual e da
evolução cíclica. Ora, quando tensionamos um arco, a flexão do arco dá à corda,
normalmente rígida, um jogo de elasticidade, e é apenas por esta elasticidade
que o arco pode cumprir sua função. Da mesma forma, é apenas quando os homens
flexíveis animem com sua flexibilidade a rigidez dos homens duros, apenas
quando os homens opulentos derem seu supérfluo aos homens que nada têm, que o
universo se comportará segundo a Via.
A pseudo-Via que os
homens seguem por hábito é precisamente o contrário: para eles, “a água vai
sempre para o rio”. Mas o Sábio produz e não atribui a si próprio suas
criações, e não quer que, por assinar suas obras, sejam reconhecidas as marcas
de sua sabedoria.
Vemos como esta página
transporta para o plano social, e inclusive para o plano da economia prática, o
princípio metafísico da imobilidade refletida e da inação voluntária.
Não-possuir é a forma social do não-agir. Mas é preciso frisar aqui uma das
raras concordâncias, ao menos no exterior, entre o Taoísmo e o Budismo, quando
se afirma que o Universo só se conformará à Via quando todos os indivíduos
comungarem da mesma flexibilidade, ou seja de uma igualdade de vidas. Está
aqui, no plano da lógica, o axioma sentimental: “O Universo não será salvo, se
apenas um homem não for salvo”.
XLI.
Os homens devem ser fracos e doces como a água; aqueles
que são duros e fortes não podem ganhar nada. Isto não é fácil de entender: o
fraco triunfa sobre o forte, e o flexível sobre o rpigido. Os homens não
conhecem isto e não podem se conformar com isto. Da mesma forma, o Sábio diz:
aquele que parece ser o último do império é mestre de si mesmo e se torna o
chefe; aquele que parece ser o último do império não se mostra e se torna o
mestre dos homens. Estas palavras verdadeiras possuem um sentido oculto.
O que existe de mais
fraco na aparência do que a água? E o que de mais forte, porque, sendo
flexível, ela é insinuante, envolvente, e sem resistência pessoal? Ela vem
depois dos rochedos mais duros e da própria terra. Os homens devem tomá-la como
modelo e adquirir suas qualidades de força lenta, acariciante e irresistível.
Mas, se o fraco triunfa sobre o forte, que os grandes se lembrem de que o povo
fraco, de onde eles saíram e de onde tiram seu poder, pode a qualquer hora
triunfar sobre eles.
O último do império
torna-se seu mestre, porque, sendo desinteressado, aprendeua ser mestre de si e
pode tornar-se mestre dos outros; porque, sendo perfeito, ele sobe
invencivelmente ao escalão a que o conduzem seu mérito e seu esforço
desinteressado, e enfim porque, sendo obscuro, ele não faz, malgrado sua
perfeição, sombra a ninguém e não encontra adversários em sua ascensão, ao
mesmo tempo imperceptível e inesperada.
XLII.
Os homens imaginam que parecer apaziguar um grande
ressentimento e guardá-lo ainda maior em segredo, esta é a tranquilidade e a
concórdia. Da mesma forma, o Sábio guarda tudo escrito em seu bolso esquerdo e
não reprova nada nos homens. Que tem a virtude concentra pouco a pouco seu
poder; aquele que não tem a virtude dispersa-o pouco a pouco com sua agitação.
O homem que segue a Via não teme nada; nela ele está unido a todos os homens
direitos.
O primeiro grau do poder
sobre si mesmo é o de guardar seus sentimentos e agir como se não existissem;
no plano passional, equivale a perdoar e não esquecer. Os homens, habituados a
ver agir logo em seguida ou após ficar um tempo mais ou menos longo retida,
conforme às paixões de outrem, consideram que este grau medíocre basta para
assegurar a tranquilidade e a concórdia. Isto é completamente falso; para agir
segundo a Via, é preciso que o ato não seja em nada modificado pelos atos dos
outros; é preciso, assim, ou nãoos conhecer, ou esquecê-los profundamente. É
que, diz o Mestre, os homens sofrem, pela Vontade do Céu, o “choque de retorno”
dos seus atos; mas eles não devem, custe o que custar, serem os juízes da
oportunidade de os impro ou não a outrem.
Esta retenção suprema
traz em si sua recompensa; pois o homem que segue os impulsos de sua cólera, ou
de qualquer outra paixão, dispersa seus esforços, e torna-se impotente durante
a vida; aquele que, por uma imobilidade refletida, concentra sua potência
ativa, torna-se o mestre dos eventos, jamais perdendo sua força e sua vontade.
Assim, o Sábio que se conforma com esta prescrição da Via não tem nada a temer
neste mundo.
XLIII. Se
eu comandasse um pequeno reino com homens direitos, eu nada tomaria de seus
numerosos bens. Eu lhes ordenaria temer a morte, e não deixar seu país; eles
possuiriam barcos e não iriam neles; eles possuiriam couraças e não as
vestiriam. Amarrar com cordas seria a única punição dos culpados. Iguarias
adocicadas eu comeria; vestiria lindas roupas; viveria num país tranquilo; todas
as coisas belas eu guardaria. Que os homens guardem este preceito, e que mesmo
os cães e os galos o escutem: até a velhice e a morte, que eles não se reúnam
num reino.
Esta página, que é a
última escrita por Lao Tsé[32], é o testamento social do fundador do Taoísmo. É
sobre os preceitos que ela contém, expressos com uma clareza e um vigor sem
iguais, bem raros no Extremo-Oriente, que foi construído todo o sistema
político e social que as dinastias nacionais encorajaram na China, e que valeu
a seus povos longos séculos de paz e felicidade. São os preceitos que formam
todo o ensinamento, tanto oculto quanto público, pelo qual os adeptos do
Taoísmo estabeleceram a tradição libertária quanto aos indivíduos e comunista
quanto ao “tronco”, tradição que os tornou suspeitos aos olhos dos soberanos
das dinastias tártaras e manchus, e fizeram deles mártires venerados pelo povo.
Confúcio e os demais filósofos práticos, economistas e políticos, que vieram
depois, conseguiram às vezes atenuar as consequências de um sistema tão rígido
e absoluto; mas não puderam suprimi-los no amor e na observância da raça; e é
duvidoso que, num futuro distante, a ascensão da raça amarela ao progresso
mundial possa fazer desaparecer este efeito até aqui todo-poderoso. Seria
previsível, talvez, que as outras raças, empurradas irresistivelmente para
concepções melhores por um surdo mas profundo apetite por bondade, altruísmo e
paz, encontrem, nestes antigos preceitos rejuvenescidos e adaptados pela
experiência de uma humanidade bimilenária, as soluções de certos problemas
étnicos e sociais cheios de disputas e de obscuridades.
A paráfrase desta página
é quase supérflua; se ela fosse completa, ela seria muito longa; ela está
inteira ao longo dos vinte e cicno séculos históricos do Celeste Império. Vamos
resumi-la rapidamente: o soberano deve ser indiferente à materialidade de seu
reino e aos bens dos cidadãos; os cidadãos devem viver aonde a sorte os colocou
para amarem a vida, que os soberanos devem facilitar ao máximo. As armas
defensivas devem existir, mas o soberano deve agir de modo a que elas
permaneçam sempre inputeis. A pena de morte deve ser abolida. E, para que o
soberano tenha o mínimo de poder possível, ou seja o mínimo de ocasiões ativas,
e para que o governo seja uma fórmula mais do que um fato, que cada um viva e
morra sem se aglomerar. Se cada família viver separadamente, não haverá
necessidade de outro soberano fora o pai. E é assim que a associação dos
interesses conduz à direção pela ambição, e que somente a agitação do povo criou
o poder dos seus mestres. Se ele sofre mais tarde por eles, terá o direito de
se lamentar por um mal cuja causa ele mesmo gerou?
XLIV. As
palavras nas quais se crê não são as boas; as boas palavras não são
acreditadas. O que é bom não é mantido; mantém-se o que não é bom; a ciência
não pode ser transmitida; o que se transmite não é a ciência. O Sábio não
guarda nada para si, mas escreve para ensinar os homens. Ele escreve para
ensinar os homens; ele já os ensinou muito. A Via do Cèu salva todos os homens
e não perde nenhum. O Sábio que segue a Via age e não se agita.
Foi depois de terminar
com tal clareza o livro mais misterioso, mais tradicional, e ao mesmo tempo
mais revolucionário jamais escrito, que Lao Tsé atravessou, sem voltar a
cabeça, a muralha que encerrava o império, e desapareceu para sempre,
silenciosamente e numa sombra definitiva, do meio desta terra, na qual ele
deixou uma marca indelével, e a qual lhe dedicou em retorno uma glória
imperecível, um culto piedoso e uma fidelidade imortal.
V
AS AÇÕES E
REAÇÕES CONCORDANTES
O Thai-Chang-Kan-ing-pien, ou Livro Kan-ing de Thai Chang é o pultimo e mais compreensível dos textos tradicionais
do Taoísmo primitivo. Malgrado Stanislas Julien e outros grandes sábios da
sinologia, que estudaram a China a partir da Pont des Arts (ou seja como
membros do Instituto, e não como cegos, como poderiam insinuar os
irreverentes), eu sou obrigado a declarar desde já que este texto não é de Lao
Tsé, ao menos não no sentido imediato de ter sido Lao Tsé quem compôs seus
caracteres.
Podemos prová-lo com uma
observação filológica, o que deve ser um peso sobre os espíritos ocidentais,
porque a filologia é uma ciência ocidental. Fala-se e escreve-se: o livro de
Thai Chang, como se fala e se escreve: o Tao de Lao Tsé, ou o Te de Lao Tsé.
Ora, Thai Chang é o sobrenome de Lao Tsé, que teve muitos sobrenomes, como
todos os ilustres filhos do Céu. Thai Chang é, na realidade, um sufixo
qualificativo que significa exatamente “o mais Elevado”, e com o qual
costuma-se designar Lao Tsé, eatamente como se designa o Deus dos cristãos
chamando-o “Altíssimo”.
Mas os chineses,
tradicionais e formalistas, que fizeram , para o ensino da cortesia e dos
costumes, um Código de ritos mais venerado e respeitado do que qualquer outro
código legislativo, civil ou penal, não atribuem a torto e a direito seus
sobrenomes. E, notadamente, eles jamais chamam de Thai Chang a uma pessoa viva.
Por conseguinte, o qualificativo Thai Chang, aplicado a qualquer pessoa, indica
sem sombra de dúvida que ela está morta. Portanto, o fato de que o Kan-ing é de Thai Chang (ou, para sermos mais exatos, do
Tai Chang Lao Tsé), indica que Lao Tsé estava morto quando o Kan-ing foi escrito em caracteres.
Lao Tsé não deixa de ser
o autor direto de uma parte do Kan-ing,
e o inspirador da totalidade do espírito do texto. Convém lembrar aqui a
frequência, a plenipotência e a pureza intacta da tradição oral entre os povos
amarelos e sobretudo entre as raças de escrita ideogramática. Uma tradição não
se conserva rigidamente, se só for conservada no fundo dos pensamentos; é
preciso também, e de um modo absoluto, que ela seja conservada e transmitida na
forma em que o mestre a moldou. Nas línguas alfabéticas, se o ouvido não retem
a ressonância das palavras a memória individual e a transmissão sucessiva
deformam os textos e os alteram com o uso, inconsciente mas inevitável, de
sinônimos e aproximações. Nas línguas de escrita ideográfica, não se retém a
palavra, mas a idéia, e a idéia só possui um modo de transmissão. A tradição
oral, mesmo após gerações, permanece assim perfeita; e assim ela é
frequentemente empregada.
É portanto absolutamente
certo que a porção do Kan-ing que
remonta a Lao Tsé foi escrita tal como este pensou e ensinou, sem esquecimento
nem alteração de espécie alguma, e é certo também que esta transcrição só foi
feita após a morte de Lao Tsé; ignoramos os motivos desta espera; eles devem
ter sido poderosos e lógicos, mas é preferível não levantar hipóteses sobre
raciocínios e fatos que escaparam para sempre à atenção dos homens.
Mas o Kan-ing, como o confessam seus próprios escritores e
comentadores primitivos, não é todo de Lao Tsé. Quase inteiro aliás, ele
pertence a doutores taoístas relativamente modernos, que herdaram seu espírito
ou acreditaram nele, e nos quais a multitude acreditava. E podemos crer que o
ensinamento incluído no Kan-ing era tão
curto, que o Mestre julgou inútil transcrevê-lo, sendo bom para a memória
auditiva. Não encontramos em nenhuma parte, nas proposições do Kan-ing, a idéia precisa, cadenciada, recíproca e
apoftegmática do Tao e do Te. Sobretudo não encontramos a contenção impessoal,
metafísica e ascética do Mestre. E os preceitos morais que ilustram, mais ou
menos adequadamente, o dogma taoísta, revelam seu modernismo e a influência das
especulações, da civilização e da sociedade budistas.
Esses preceitos morais
estão apoiados num certo número – um grande número, pois chegam a quatrocentas
– de histórias lendárias, nos quais vemos reis e sábios sendo punidos por não
terem seguido as regras do Kan-ing, e de
pessoas comuns e mendigos sendo recompensados por haverem obedecido; essa
literatura grosseira é indigna do Taoísmo tradicional; ela testemunha uma
necessidade de chocar o público, e também de distraí-lo, que é a característica
do proselitismo mais medíocre. Rémusat traduziu
dezesseis destas histórias, no que
fez bem; Julien infligiu sua tradução e infligiu ao seu público a
leitura de quatrocentas histórias completas, o que é de uma consciência
verdadeiramente exagerada; mas vamos desculpá-lo, lembrando que ele traduzia
pelo prazer de traduzir, sem grandes cuidados com as idéias e os sistemas. Seja
como for, o que importa aqui é separar, de uma vez por todas, aquilo que é de
Lao Tsé no Kan-ing, daquilo que é de discípulos seus, mais ou menos distantes e
mais ou menos inspirados.
A doce e louvável moral
com a qual o Taoísmo moderno, desfigurando-se, foi impregnado, cumpre sem
dúvida um dever de transmitir fielmente suas “ordens” do bem e do mal, pelas
quais se distinguem neste mundo os fiéis e os desviados da Via. Mas nós não
faremos aí nenhum comentário: seu simples enunciado basta em função de sua
importância filosófica e tradicional.
Ao contrário,
esclareceremos o curtíssimo texto do Mestre com longas explicações, pois havia
uma razão profunda para que o Kan-ing
fosse tão curto, seja na tradição oral, seja na transcrição ideográfica; é que
o ensinamento taoísta nesta matéria é secreto, e do melhor tipo de segredo que
existe, o tipo de segredo que aquele que possui não consegue revelar a quem não
o possui, porque este não o compreenderia vindo de um outro, mas apenas ao
descobrir por si mesmo, como um axioma, no diz em que for, não apenas capaz de
compreendê-lo com sua ciência, mas também digno, por sua virtude, de usufruir
das vantagens de sua descoberta. Levaremos assim a explicação o mais longe
possível, sem cairmos, não na indiscrição, mas nas trevas incomprensíveis,
satisfeitos por termos advertido o público de que estas trevas se tornarão
luzes para os olhos habituados a ver sem auxílio do sol exterior, mantendo,
como o Phankhouatu, as pálpebras
fechadas.
***********
Agora, devemos declarar
que, em nenhuma outra tradução do chinês para o francês, a imaginação ocidental
deu tamanho curso livre à fantasia como nas diversas traduções do Kan-ing. Não quero me perder aqui, assim como para os demais
textos taoístas, em discussões filológicas fastidiosas sem nenhum interesse a
menos de satisfazer a insuportável vaidade de certos dissertadores e seu ardor
para polêmicas azedas. No início do século XIX, a simples idéia de traduzir
textos extremo-orientais era de uma coragem louvável, que basta, para a
posteridade, para compensar todos os erros e desculpar todas as ignorâncias.
Esta é a única declaração para a qual tenho gosto e tempo, e que reconheço
dever fazer. E felicito-me hoje pelas consequências desta declaração, pela qual
vemos como a expansão colonial, as viagens cômodas e o gosto pelas ciências
longínquas facilitaram a tarefa dos trabalhadores do século XX.
Hoje em dia a humanidade
não possui mais um magazine de celebridades variadas, no qual, conforme o caso,
agrupavam-se, devidamente etiquetadas, a celebridade latina, a eslava, a
muçulmana, a germânica, a finlandesa, a grega – para ficarmos apenas na Europa.
Temos hoje uma celebridade branca – ou quase – uma celebridade americana, etc.
Tendemos ao dia em que seremos todos um único tipo, que seráo protótipo do
cérebro humano. E assim, sem compartilhá-los, compreenderemos, sem deformar, os
sistemas, as idéias, as concepções abstratas vindas de celebridades que não as
nossas. É uma grande vantagem que não possuíam os sábio de cem anos atrás.
Os esforços que eles
fizeram para assimilar o fundo do pensamento chinês, por exemplo, foram em vão;
todo o seu mérito esvaiu-se em fadigas inúteis; eles truncaram e martirizaram
este pensamento homogêneo no molde do cérebro europeu, construído diferente;
eles não chegaram a compreendê-lo senão depois de tê-lo desfigurado pela adição
de todo tipo de elementos heterogêneos, a tal ponto que os próprios chineses,
que conceberam este pensamento originalmente, são incapazes de reconhecê-lo. E
este trabalho de obnubilação e de desagregação era tão mais necessário quanto
mais o pensamento que se desejava assimilar fosse mais estranho e antinômico em
relação ao pensamento francês.
Ora, o Kan-ing é precisamente, dentro da tese doutrinal primitiva,
o antípoda daq crença ocidental no destino futuro, e parece especialmente
incompreensível à parte da raça branca que estabeleceu sua religião, sua moral
e todo seu estatuto de humanidade sobre a existência paralela e dualista do bem
e do mal iguais entre si, e sobre as penas e recompensas que o Senhor reserva
àqueles que, durante esta vida, tenham cumprido aquilo que, segundo os homens,
constitui este bem ou este mal; que Deus seja assim reduzido ao papel de
excutor das altas obras de suas criaturas, não deve espantar o espírito daquele
que não partilha da imaginação européia; mas que Julien e seus colegas tenham
tentado inserir, em suas traduções do chinês, estas teorias tirânicas e
bárbaras, que jamais estiveram incluídas aí, isto surpreende mesmo quem conhece
a vaidosa ignorância dos nossos sábios oficiais, e que, por ter estudado os
textos chineses sob o olhar e a supervisão de mestres chineses, sabe que não pode
haver nada de verdadeiro nem de semelhante em tais adaptações.
Se os sinólogos do
Ocidente ignoravam quase tudo da filosofia oriental, ao menos eles deveriam, a
partir da ciência filológica que os introduziram ao Instituto, respeitar o
sentido e a idéia dos caracteres ideográficos, mesmo quando estas idéias lhes
parecesem abstrusas. Mas estes sábios não possuíam o cuidado de uma humildade
tão modesta: eles só consentiam em traduzir os textos chineses com a condição
de parafraseá-los, esclarecê-los e melhorá-los, segundo sua prórpia opinião, ao
menos. À força destas luzes e destes aperfeiçoamentos, a França recebeu, das
mãos de muitos membros de suas Academias, uma tradução do Kan-ing, cujo contra-senso contínuo e voluntário é gritante
e sintetiza-se no próprio barbarismo filosófico com o qual o próprio título do
livro foi traduzido.
De fato, o Kan-ing foi traduzido e é ainda conhecido na Europa com o
nome de Livro das Recompensas e das Penas; como se, em lugar de ser um resumo
da mais abstrata metafísica, o Kan-ing
fosse um código penal rigoroso para uso dos conselhos de guerra, ou de qualquer
outro aparato da pretenssa justiça humana. Assim, o caracter Kan significaria “as recompensas” e o caracter ing siginifcaria “as penas”, significados que nem um nem
outro jamais tiveram, mesmo longinquamente. Não tenho a pretensão de fazer
desaparecer um erro tão grosseiro e total, mas universal, apoiado na
inquebrantável autoridade de dois sábios providos de uniformes verdes e de
múltiplas condecorações. Um engano consagrado por um uso tão extenso está perto
de tornar-se uma verdade, e é assim que o novo continente será sempre chamado
de América, mesmo que estejamos convencidos de que foi Colombo seu descobridor.
De resto, mesmo
substituindo essa designação pelo título “O Livro das Sanções”, o que se faz é
substituir um erro por uma meia verdade. Esta seria a tradução, apenas e
imperfeita, do caracter ing; para sermos
o mais verídicos possível, é preciso traduzir: O Livro das Ações e
Reações Concordantes, e escrever um tratado
apenas para explicar o que quer dizer este título. Vamos substituir este
tratado por algumas reflexões, curtas mas substanciais.
***********
Ao mesmo tempo, estas
reflexões constituirão o melhor comentário que podemos fazer para acompanhar o Kan-ing, não este Kan-ing aumentado em quantidade e diminuído em qualidade, pelos taosse que não puderam subtrair-se à influência da
sociedade confucionista e budista, mas este Kan-ing taoísta, formulário de algumas poucas linhas curtas e
obscuras, que alguns discípulos piedosos herdaram de Lao Tsé em pessoa, e que
eles consignaram em ideogramas após a desparição do Mestre.
Não se espere de mim uma
paráfrase, cheia de exegesees inúteis e redundantes, dos preceitos de moral
pura e ingênua do Kan-ing, nem das quatrocentas
histórias infantis e benévolas que suscitaram o entusiaqsmo de Stanislas
Julien. Estes textos, louváveis e claros, bastam perfeitamente a si mesmos,
podem ser compreendidos à primeira leitura e, de resto, não merecem reter a
atenção do pesquisador por muito tempo. Saudaremos de passagem os honestos
sentimentos dos comentadores do Kan-ing,
e saibamos guardar nossa fidelidade e nosso longo recolhimento aos únicos
ensinamentos autênticos, cujo valor metafísico, além do assentimento de sábios
idôneos, consagra sua verdade e sua origem altamente qualificada.
Aas Ações e Reações Concordantes – única tradução adequada do título do último livro deixado pelo
próprio Lao Tsé – contém em germe e determinam toda a doutrina taoísta sobre
aquilo que chamamos no Ocidente, e em linguagem cristá, o bem e o mal, e
também sobre a responsabilidade humana, e as sanções que são aplicadas a esta
responsabilidade. Para maiores explicações sobre o valor desta responsabilidade
e sobre o consequente valor das sanções, encaminho o leitor para A Via
Metafísica, onde o tema foi tratado
copiosamente. Fiquemos aqui apenas com os efeitos diretos e mediatos dos atos
emitidos pela humanidade dotada desta exígua respnsabilidade.
Notemos a seguir, para
nossa grande satisfação, mas para o arrepio daqueles a quem as doutrinas do
concretismo oposto confortam prática e materialmente, como o dogma taoísta
concorda aqui, no fundo como nos meios – e talvez até na forma – com os
ensinamentos secretos do Ocidente e com a mais pura Cabala. O Maniqueísmo, que
só se tornou um erro lamentável por excesso de liberdade, e por ter tentado dar
amplitude e personalidade ao inimigo que deveria combater e destruir, o
Maniqueísmo deu seus frutos sombrios e involuntários; parece que, graças à
imperfeição e à incompreensão humanas, o homem atimgiu um objetivo oposto ao
que propunha seu criador; e não é menos verdade que foi desta compreensão
invertida, que infestou a própria Igreja que a excomungara, que nasceram todas
as obnubilações ocidentais de uma verdade em si tão simples. Mas, fora desta
seita e daqueles que a destruiram sem perceber que pertenciam a ela também, a
verdadeira doutrina permaneceu no meio de grupos iniciáticos, nos colégios
secretos e nas associações de sábios piedosos e modestos; e ela permaneceu
mesmo no fundo deste maniqueísmo superficial, do qual a Ordem do Templo foi
acusada e pelo qual ela pagou tão caro. Em todos os lugares e todas as épocas
do mundo, a verdade luminosa que iremos resumir foi compreendida e
cuidadosamente guardada nos cérebros mais raros e elevados, porque devia
permanecer desconhecida da multidão agnóstica. Esta chama, que alegrou os olhos
de tudo o que é grande no universo, foi acesa pelos taoístas; e foi Lao Tsé o
primeiro que fez jorrar, para fora dos mitos prometeicos, a luz com que brilha
e ilumina esta chama. Isto é incontestável para todos os espíritos que pensam
imparcialmente e sem paixões; e é preciso dar aqui ao sábio chinês aquilo que
lhe pertence, ou seja a prioridade no conhecimento do Arcano pelo qual toda a
Humanidade age, sofre, e, conforme sua ascese, teme a morte ou a deseja.
Os atos que os homens
cometem dentro dos limites de sua responsabilidade, mas com a plena consciência
humana, não podem ser considerados apenas como fatos materiais que trazem uma modificação
temporária a uma ordem física essencialmente passaageira em si mesma.
Tampouco eles são
meramente os efeitos reflexos da vontade humana, e capazes de produzir
consequências morais e de causar confusões ou melhorias nas funções sociais ou
nas relações entre os indivíduos.
Eles são também – e
sobretudo – emissões de energia, esforços psíquicos, deslocamentos de forças
nervosas e imateriais, mudanças de equilíbrio na estática e na dinâmica do
mundo visível, desvios de corrente na aura da Humanidade. Estes fenômenos de
nossa segunda natureza são tão inegáveis, tão certos em suas consequências,
quanto os fenômenos de variações de peso, de densidade e de massa que podemos
constatar em nossa natureza imediata; mas como eles são invisíveis – pelo menos
genericamente – e estão situados em um meio no qual os cinco sentidos do homem
só exercem um controle fugidio e bastante excepcional, esses fenômenos, que não
se mostram de forma tangível à nossa atenção, são desconhecidos das massas, e
são considerados inexistentes, ou quase, pelos mesmos que suspeitaram mais
veementemente de sua existência.
Ora, são estes
precisamente os fenômenos mais importantes que poderiam suscitar a ação humana:
são os únicos que permanecem, e que, por um jogo de movimentos recíprocos e
perfeitamente coordenados, têm uma existência perpétua; apenas eles possuem
resultantes em todos os planos, ecos em todos os mundos, e apenas eles trazem
em si este caráter de perenidade que, no fundo, deve ter normalmente tudo o que
diz, pensa e age um homem, parcela infinitesimal, mas certa, deste Tudo
indizível do qual a Eternidade é apenas uma dimensão entre outras.
Esta importância capital
e preponderante dos movimentos psíquicos da ação é mais facilmente determinada
do que se pode imaginar: com efeito, as consequências materiais do ato humano
não podem ultrapassar a matéria, nem no tempo nem na extensão; elas estão assim
expressamente limitadas ao próprio plano em que o ato foi cometido; e, por
conseguinte, elas são nulas fora da perspectiva humana.
Da mesma forma, as
cosequ~encias morais ou lógicas do ato voluntário naão pdem ultrapassar os
limites dentro dos quais se move a vontade e onde a responsabilidade do autor é
conhecida. Vimos n’A Via Metafísica de
que modo o próprio status da Humanidade
atual restringe entre a vida e a morte, para o indivíduo, e entre o estado
pré-humano e o pós-humano, para a espécie, a liberdade e a responsabilidade e,
portanto, a sanção. As consequências reflexas da vontade humana têm os mesmos
limites da estase, fora da qual esta vontade não se distingue mais, ou, em todo
caso, não é mais a vontade tal como a conhecemos, e que nos determina como
homens. E estas duas constatações, além de serem o fruto lógico de raciocínios
perfeitamente claros e sem ambiguidades ou desvios possíveis, são naturais,
pois, seja no plano material, seja no plano voluntário, o homem, ao agir, só
influencia coisas que estão ao seu alcance de homem, ou que possuem sentimentos
dentro do domínio humano.
Mas, se considerarmos o
ato como dispensador de energia, e, por conseguinte, como emissor de vibrações
nervosas na atmosfera psíquica, como propulsor de uma onda no oceano fluídico
que nos banha e que banha o universo, veremos imediatamente que o movimento
assim produzido, exercendo-se fora do plano humano, escapa ao nosso controle,
ao nosso alcance e à nossa responsabilidade (ao menos enquanto a
responsabilidade limitada do estado humano). E as características típicas
destes movimentos devem ser lembradas: eles não são controláveis por nós, uma
vez emitidos, eles escapam sempre à nossa influência, enfim, e, embora na
medida das “intervenções na corrente” esta se diminua de intensidade até se
tornar imperceptível, a série de movimentos não se deixa conhecer[33].
***********
Mas, sem nos atermos a
considerar estas características, que podemos qualificar de exteriores,
veremos, no fundo, o que são estes fenômenos, ou tentemos expressar claramente
o pouco que podemos conceber deles. Pois, mesmo pretendendo permanecer claro e
exato, não é possível ao homem conhecer a fundo nem analisar completamente
fatos que provém dele, mas que, uma fez provindos dele, escapam ao domínio de
suas realidades efetivas para não mais voltar, ou, ao menos, para voltar apenas
depois de terem sofrido, de parte de agentes desconhecidos para nós, profundas
modifições de grau e até de natureza.
O ato humano,
considerado como fonte de uma energia que irradia para fora do germe voluntário
que a engendrou, afeta tudo o que possui uma natureza como a sua, ou seja, tudo
o que é Humanidade e tudo o que é energia. Isto é axiomático; e mesmo, se, por
testemunhos grosseiros como os de que dispõe a natureza humana, uma tal
correspondência passe desapercebida, não deixa por isso de ser verdade que ela
sempre existe, e que sempre a emissão, mesmo infinitesimal, de uma energia
qualquer, afetará de certo modo a energia universal, assim como o menor de
todos os números afetará o maior de todos ao se somar a ele. Isto é de uma
necessidade matamática, assim como lógica. Mas que sabemos então da energia universal
que afeta de modo tão diferente os atos humanos? Nós a conhecemos de um modo
tão genérico, que os espíritos concretos e empíricos chegam a contestar até
mesmo sua existência. Não vamos insitir muito nisso: as últimas descobertas
científicas – as ondas energéticas do éter, a energia radioativa material e
invisível – demonstraram amplamente que vivemos em um caldo de força potencial
universal, e que nós somos na realidade os sujeitos graças a quem a
potencialidade energética se torna energia real, sob certas condições, em cada
plano. Mas, ao demonstrar a existência desta plenipotência indefinida e
indefinidamente prática, a ciência, ainda inteiramente experimental, não
cnsegue medir nem o valor, nem o motor, nem as condições de ação, de aplicação
e de transformação. Conhecemos, hoje em dia, a exist~encia e alguns raros dados
do grande problema; sua discussão e resolução ainda não estão asseguradas.
É neste mundo
energético, ainda totalmente desconhecido fora da afirmação de sua existência,
para onde convergem, sem se preder ou aniquilar, todas as energias parciais
emitidas pelas séries das ações humanas. Que sabemos nós sobre o modo como se
comportam? E dos resultados produzidos pelos seus encontros e adições? Nada
ainda; mas vamos considerá-las até sua entrada neste mundo misterioros, atanor
central aonde todas as forças se elaboram; e tentemos, por um raciocínio
análogo, captá-las à sua saída.
***********
Nós agimos, seja um
simples gesto, seja uma ação mais complicada, e isto pouco importa; admitamos
ser possível agir com uma ação-tipo, uma “unidade de ação”, ou seja uma ação
que corresponde à cifra um em
todos os planos em que se manifeste.
Este ato, fora do
movimento material e da impressão moral consequente, desloca energias, utiliza
forças, e isto de dois modos, e sempre dos mesmos doi smodos, qualquer que seja
o ato. A vontade que determinou o ato é uma emissão de força, intelectual ou
espiritual, como se queira (dizemos isto para evitar discussões laterais). Uma
força, a menos que seja emitida no vazio, possui resultantes de mesma natureza,
mas com valores e direções diferentes. O movimento voluntário é assim projetado
e inscrito no plano das idéias e na aura específica criada, devido à série de
suas vontades antecedentes, pelo ser humano em questão.
Por outro lado, a
energia desenvolvida sob esta vontade para cometer a ação, não se gasta nesta
ação; ela utiliza-se dela apenas. Após cometida a ação, a fim temporário para o
q ual esta energia foi desenvolvida, e no qual ela foi empregada, desaparece,
mas a energia emitida não desaparece. Pois, se pudéssemos, como faz o aborígene
australiano com seu bumerangue, chamar de volta todas as energias que
exteriorizamos, não conheceríamos nenhuma fadiga, nenhuma fome, nenhuma
necessidade de sono; teriámos encontrado o moto perpétuo no plano psíquico, e é
bem provável que, por outro lado, tivéssemos resolvido o problema da
imortalidade do indivíduo.
Se as energias emitidas
pelo indivíduo não retornam a ele, uma vez que elas não têm mais um ponto de
aplicação fora (seja porque falharam, seja porque atingiram e preencheram seu
objetivo), e como, por outro lado, não podemos conceber nem sua perda nem sua
extinção, somos obrigados a concluir que, paralelamente à energia voluntária,
elas irão inscrever-se no oceano das forças fluídicas que envolvem toda coisa
criada, todo limite. Assim, cada uma das energias emitidas reune-se às energias
exteriores, de mesmo sentido e natureza que ela. Mas a divergência de valor e
de modo dessas massas energéticas, exteriores ao homem, manifesta-se
imediatamente. Com efeito, os influxos sucessivos da vontade individual, ao
serem projetados para fora de seu autor, permanecem vinculados à sua marca
pessoal, e constituem com ele, fora dele, um foco distinto com uma aura
própria, do qual ele é verdadeiramente o criador relativo e contingente, e que
o liga ao seu composto humano, e que o afeta, que vive acima dele e tanto tempo
quanto ele. O limite imposto à liberdade de cada indivíduo não lhe permite uma
criação exterior mais completa e mais durável; mas a liberdade idêntica do
indivíduo vizinho não permite ao primeiro ingerir, mesmo que queira, na criação
similar de um outro. E é assim que as emissões viluntárias de cada composto
humano formam auras energéticas pessoais, tão claramente distintas umas das
outras quantos os próprios compostos humanos aos quais correpondem.
Ao contrário, os
influxos sucessivos da energia psíquica, partindo de um elemento do composto
humano inferior àquele que constitui a marca de sua personalidade, não se mantém
pessoais, desde que saem do indivíduo, e destacados do objetivo para o qual o
indivíduo os guiou. Pois se as energias da vontade humana não têm equivalente
fora do homem, as energias psíquicas, saídas do homem e consideradas fora dele,
possuem dinamismos similares a todos os dinamismos psíquicos, cujo éter vibra
indefinidamente. Elas não possuem assim nenhuma marca distintiva, e vão
fundir-se naturalmente no oceano fluídico universal, ou seja, vão somar-se ao
total das energias dinâmicas condensadas em torno da raça humana, desde a
emissão do primeiro ato do primeiro representante desta raça.
Guardemos portanto que
cada ato humano possui duas vibrações, todas as duas contingentes: uma, sempre
distinta, na alma voluntária de cada indivíduo, e a outra, sempre geral, na
alma psíquica universal. A firme ligação de nosso espírito a estas duas
concepções vai nos permitir entrar com segurança num domínio até aqui pouco
explorado.
***********
A aura das vontades
individuais do homem é a soma das projeções exteriores de todos os seus atos
refletidos; ela é como uma atmosfera envolvente que abraça proximamente cada
indivíduo, adapta-se a ele, recebe a impressão de todos os seus movimentos
reflexos. Esta aura não existe senão junto com uma individualidade humana – este
fragmento de nossa personalidade – e para ela; ela nasce, não com o indivíduo,
mas com seu primeiro ato, que não coincide necessariamente com seu nascimento;
ela cresce e se alimenta continuamente ao longo da vida humana, a cada inflexão
refletida do indivíduo; ela lhe é própria, e não poderia adaptar-se a nenhum outro indivíduo da espécie; ela só
vive pelas emissões sucessivas da fonte que lhe deu existência, a vontade
individual e suas consequentes ações; ela não poderia assim subsistir depois da
desaparição de sua origem, assim como a chama, depois que se apaga a fonte.
Mas, se a contingência
original desta aura lhe confere tais limitações de tempo e espaço, ela lhe
fornece também certas condições de ressonância e de retroação. A vontade do
indivíduo, única geratriz desta aura particular, constitui nele a soma
imaterial de seus esforços e de suas direções; ela gera nele uma criação
secundária, que é sua própria e exclusiva obra, e da qual ela é direta e
completamente responsável. Esta aura, com suas limitações, é a imagem própria e
a exata representação das responsabilidades decorrentes da relativa
independência humana. Ela veste o indivíduo com uma manta dinâmica mais ou
menos densa, mais ou menos benéfica, segundo a intensidade e as direções das ações
voluntárias de onde ela saiu e da qual todos os dias ela se desprende e
aumenta. Sobre este plano da energia mental, ela é similar à aura nervosa que
se move, segundo outras leis, em nossa atmosfera psíquica, e que as antigas
imagens representam, ao redor do corpo e especialmente da cabeça, como uma
nuvem envolvente e luminosa. Guardemos preciosamente esta situação: ela
esclerece o mais profundo e mais repetido dos preceitos do Taoísmo.
Por outro lado, a aura
psíquica universal é o lugar aonde se encontram, se penetram, se influenciam
mutuamente todas as energuas fluídicas imateriais ou pseudo-imateriais (pois
ninguém pode dizer aonde começa a matéria, ou mesmo se ela começa e acaba em
algum ponto) [34]provindas das ações de todos os tipos emitidas por
todas as fontes concebíveis (razões humanas, ações cósmicas ou mesmo químicas,
movimentos animais, etc.). Esta atmosfera energética não é no entanto
constituída por todas essas energias diferentes somadas; ela não é um total,
nem uma entidade; ela é um lugar (ao
modo dos lugares geométricos). Ela é
impessoal; ela é a imagem inferior do Grande Todo energético que o Ser desdobra
no ato e no movimento universais[35]. Receptáculo de todas as forças, a menor delas que
aí penetrar altera as disposições e os movimentos daquelas que aí estão; e
delas ela recebe, em reação e pressão, o equivalente do que ela traz em ações e
impressões. Mas aqui (e o sentimos profundamente no caráter cósmico e universal
do meio) a vontade humana não vale nada; a independência e a ação humanas são
nulas; o valor e a responsabilidade do ato humano são iguais a zero. O fenômeno
da energia cósmica prossegue rigidamente, logicamente, inevitavelmente, e
aquele que, de um outro mundo ou do fundo de uma individualidade, a
desencadeou, ignora não apenas as condições, mas a própria existência desta
emissão, necessária, mas anônima, e não é nem seu autor nem testemunha. A coisa
humana não pode emergir do domínio humano, nem revestir-se de qualidades que
não sejam da natureza humana. O que está além da nossa inteligência e da nossa
condição, está acima de nossa intenção e de nosso mérito. Não há como se apoiar
aí, principalmente no mundo ocidental, onde a vaidade nos faz ver nosso valor e
nossa responsabilidade como iguais ao valor e a vontade do próprio Infinito.
***********
No estudo, tão complexo
e delicado, das energias deslocadas ou influenciadas pelo ato humano, chegamos
a este momento em que a força misteriosa assim desenvolvida foi registrada no
foco psíquico universal, no momento em que esta onda, sem se confundir nem se
aniquilar, reuniu-se ao oceano que banha o universo. Como faz um corpo que cai
na água, ou um rio com movimento próprio que atira-se no oceano dotado do
movimento planetário das marés, esta energia provoca ondulações que se propagam
em todas as direções. Mas uma ondulação que se propaga gera uma ação de
repercussão, necessária a todo tipo de equilíbrio, seja material, psíquico ou
intelectual. É por isso que a vibração ondulatória, após haver impressionado
todo o oceano psíquico, volta ao lugar onde nasceu, com um valor e uma direção
novas, sobre os quais, como humanos, não possuimos dados, nem certos, nem
sequer concebíveis, pois as influências reencontradas pela ondulação sobre o
oceano psíquico estão acima do domínio humano, e fazem parte de um conjunto
cósmico cujos elementos vitais ignoramos.
Até aqui não temos senão
elementos de raciocício e de analogia; não temos nenhum elemento de experiência
ou de observação, e é preciso nos contentarmos com o que temos, para tentar
explicar o que vemos: não podemos portanto tirar aqui, neste domínio aonde
impera ainda a contingência, senão conclusões relativas, contingentes e de uma
verdade limitada e reduzida, enquanto que, no mundo das abstrações metafísicas,
podíamos extrair conclusões firmes e clarasm cujas qualidades emprestávamos da
própria perfeição de seu objeto[36].
Seja como for, a energia
desenvolvida pelo ato humano e levada à extremidade de sua ação (kan), evolui, por um mecanismo cósmico obrigatório e
geral, ao qual nada do que existe pode subtrair-se, porque este mecanismo é a
própria substância da existência; e este retorno da energia constitui
imediatamente a reação cósmica (ing) da
ação Humana.
Esta reação é
evidentemente da mesma natureza que a ondulação de onde ela sai; ela tem as
mesmas características; os movimentos cósmicos que ela desencadeia podem ser
independentes do homem, de sua vontade, de seu mérito; ele os ignora; eles lhe
são indiferentes, e ele lhes é indiferente. Onda impessoal do oceano universal,
ela só interessa ao homem no instante e no ponto em que, retornando similar e
paralelamente, ela toca novamente a aura humana de onde ela partiu. Nós só
podemos estudar este momento e este ponto da reação; mas saibamos que este
momento e este ponto são afetados da mesma forma e com a mesma indiferença que
todos os outros pontos e todos os outros momentos do curso desta reação
cósmica. E, neste ponto e neste instante, essa reação muda de natureza: ela
pede seu caráter universal no mesmo lugar aonde ela o adquiriu, para revestir
esta forma de ação individual, pela qual, e apenas pela qual, ela pode entrar e
agir nas auras humanas. Ao perder esta característica impessoal, ela retoma as
características da contingência individual, que ela havia abandonado ao deixar
esta contingência, e que ela reencontra ao se reintegrar aí.
Vamos reentrar, junto
com esta reação (ing) no tempo e no
espaço humanos. Ela fez, durante esse período, o caminho identicamente inverso
daquele que o kan havia seguido na aura
humana, no momento em que ele saiu da concha energética da vontade. E assim o ing vem, em reação, afetar o indivíduo humano com uma
potência proporcional ao valor da emissão primitiva do kan; mas, para afetar um composto, uma energia deve
revestir-se, senão essencialmente ao menos temporariamente, das qualidades que
o composto a ser tocado possa sentir e perceber, possa apreciar em sua
natureza, e possa controlar com seu juízo. É por isso que, neste momento de
regresso ao humano, o kan empresta as
qualidades humanas com as quais ele pode apresentar-se efetivamente ao seu
sujeito. Estas qualidades são da espécie material e da espécie sentimental,
para que o resultado se produza sobre todo o composto humano[37].
Podemos conceber a
partir daí, como uma necessidade lógica, que, durante sua influência em retorno
à humanidade, o ing seja temporário e
contingente, individual e afetivo. Ele atinge o homem, não nos elementos
superiores, mas no composto característico da humanidade, e ele o agita
tangível e materialmente. E, como já estabelecemos que, na aura humana, a
responsabilidade do ato voluntário subsiste inteira e exclusiva, saberemos
agora, como um corolário fatal, que o ing se manifesta sobre o plano humano, ao longo da
respnsabilidade humana, como uma sanção,
mas como uma sanção de valor correspondente à responsabilidade, e no interior
dos mesmos limites.
Ing, conforme o caso,
manifesta-se assim como recompensa ou como pena, e esta manifestação, que lhe é
esterior, não afeta senão o objerto, e permanece independente do sujeito ing, cujo reflexo é sempre parecido consigo mesmo,
quaisquer que sejam as consequências para o homem. É aqui que jaz, em suma, o
grande segredo da viagem de kan e do
retorno de ing. Não existe, em todo este
mecanismo metafísico, uma vontade divina que reenvia ao homem uma recompensa ou
uma punição; existe uma potência cósmica que se espalha, é reabsorvida, e
depois repercute independentemente do valor moral do ato voluntário humano[38]; e é o movimento particular da aura humana que
aplica e determina como sanção os efeitos específicos desta potência. Assim, o
que é humano permanece humano, afeta apenas o humano, pela correspondência
lógica das ações e reações. Parece
insustentável daqui por diante afirmar que o finitopossa afetar o Infinito, e
que o relativo possa determinar um estado no Absoluto; sobretudo parece
monstruoso – chamemos as coisas pelo seu nome -
que o homem, capaz de desejar, mas incapaz de agir fora do plano humano,
cause, por sua agitação humana, uma contrariedade ao Deus Abstrato, e que este
Deus abstrato conceba a partir desta contrariedade uma satisfação ou uma cólera
infinitas, geradoras de sanções eternas aplicadas a este homem temporário e à
sua agitação ilusória.
Já nos manifestamos
sobre esta monstruosidade; mas nunca é demais insistir, pois, pregada por
sacerdotes ardentes por poder e dinheiro, ela aterrorizou milhões de seres, e
deteve o impulso evolutivo de uma das mais belas raças humanas com o tolo temor
da morte e as piores angústias em relação ao Além.
***********
Debrucemo-nos
rapidamente sobre duas consequências imediatas do dogma taoísta, que trarão uma
evidência absoluta a dois problemas delicados: o problema do hábito humano
(responsabilidade repetida) e do hábito depois do estado humano[39] – ou de qualquer outro estado do ciclo – e o problema
irritante da justiça social no mundo humano, ou mesmo no universo visível ou
capaz de ser visível.
Está claro que, se
quiséssemos estudar todas estas questões profundas e complexas em detalhe,
seria preciso todo um volume para cada; mas nós seríamos levados a nos perder
em comparações, exegeses e polêmicas, procedimentos que não têm nada a ver com
nosso método. Este consiste em expor, o mais brevemente possível, aquilo que é
o núcleo da Tradição primordial, e que portanto tem todas as chances de ser verdade,
se é que a verdade pode ser concebida por cérebros humanos. Mas nós achamos que
esta verdade se mostrará suficientemente bela por si mesma, àqueles cujos olhos
merecerem sua contemplação, para que tenhamos que articular e detalhar suas
perfeições maravilhosas. Deixaremos o ardor da propaganda àqueles que acham que
devem ajudar uma doutrina insuficiente em si mesma a consquistar a alma dos
adeptos, e sobretudo àqueles que têm um interesse pessoal em fazer prosélitos.
Portanto, quando as
questões, por mais áridas que sejam, por mais controversas, mais obscuras,
possam, em nossa opinião, ser respondidas com uma só palavra, ninguém deve se
espantar de ver aqui escrita esta palavra, sem que ela seja seguida de nehuma
outra mais.
A energia emitida por
todas as ações humanas é de mesma natureza, mas a energia emitida por uma ação
humana determinada é de um grau, um valor, um “fermento” específico; bem
entendido, estas qualidades são particulares à aura da humanidade, aí
permanecem e não podem afetar nada que esteja fora. Assim, no interior da aura
humana, poderíamos, pela qualidade e pelo valor vibratório da energia,
discernir qual foi o seu ato gerador. Quando, depois de haver cumprido sua
viagem pela aura universal, esta energia entra, pelo choque de retorno, de
volta na aura individual, ela se reveste das qualidades que ela possuía antes
de sair dela; e, provida destas qualidades específicas, ela vem atingir o
indivíduo, que foi sua causa mediata em função do ato gerador. E, ao atingir o
indivíduo, ela o atinge nas qualidades correpondentes às suas próprias, ou
seja, nas qualidades, nos sentimentos, nas paixões, nos móveis geradores do ato
que desencadeou todo o movimento.
Vemos aqui a
consequência. Atingido nas qualidades, nos planos que geraram uma ação, por uma
energia nascida desta mesma ação, o homem é fatalmente levado a agir como agira
antes; ele é solicitado a repetir a ação primitiva. E, se ele a repete, uma
nova série de vibrações análogas, mas de valor aumentado pela repetição,
recomeça a viagem de ida e volta que já descrevemos, e volta a atingir o
indivíduo, do mesmo modo porém com mais força, e o incita, mais ardentemente
ainda, a uma nova repetição. O mesmo ato torna-se cada vez mais fácil, natural,
psiquicamente inevitável; ele acaba por agir sobre o inconsciente. Esta é a
teoria mecânica do hábito, do hábito inveterado, e, como diz profundamente o
provérbio, da segunda natureza.
***********
Levemos o mesmo
raciocínio a um plano mais elevado. Emissor de vibrações, receptor de vibrações
análogas, todas providas de qualidades humanas no interior da aura individual,,
um belo dia, neste trabalho normal e perpétuo, o homem morre. Vale dizer que
ele deixa o plano humano, e que sua aura humana se dissolve, na medida em que
era afetada por qualidades humanas.
No plano superior aonde
foi projetado pela dissociação dos elementos humanos, o novo ser que é o homem
não traz consigo nada do homem anterior. Verifiquemos rapidamente esta
proposição, que seria axiomática se os Ocidentais não tivessem voluntariamente
deixado obnubilar seus cérebros para estas questões: os elementos do antigo
composto humano, que se acham sobre o novo plano, sãoos elementos normais deste
plano, e eram portanto os elementos superiores do plano humano; os elementos
normais e característicos do plano humano não podem sair dele, ou não seriam
característicos. Ademais, o novo plano não pode ser superior ao plano humano se
não for com a condição de não possuir os elementos normais deste último.
Admitindo-se isto – que não passa de bom senso – entenderemos que são os
elementos característicos do humano que emitem o ato, e, por conseguinte, a
energia na aura humana; pois, se a energia fosse emitida por outros elementos,
ela não teria as qualidades específicas para se inscrever na aura indicidual.
Portanto, tudo o que se inscreve na aura individual sai de elementos
caracteristicamente humanos, e todas as qualidades que estão ligadas a ela
subsistem exclusivamente nela. Assim, nem a responsabilidade, qualquer que seja
seu valor, nem a sanção, qualquer que seja seu signo, seguem os elementos
superiores do composto humano após a dissociação. Isto é pura matemática. O
homem novo não nasce para sua existência subsequente com uma carga de méritos e
deméritos.
Ao contrário, as
vibrações psíquicas, impessoais e indiferentes, mas absolutamente reais, que,
depois de sua passagem pela aura individual, atravessam o oceano universal,
estas vibrações retornam à sua emissão de origem, como dissemos mais acima: o
novo homem reencontra assim, em seu estado superior, as vibrações que ele
emitiu antes, mas depuradas, despersonalizadas, como ele mesmo, e próprias
apenas para incvitar nele o ardor pela Vida[40]. É o conjunto destas vibrações universais,
reabsorvidas num composto digno delas, que constitui, para o ser que está
nascendo em um novo estado, o potencial de sua vontade, de sua inteligência e
de seus sentimentos. Esta é uma nova consequência da teoria das repetições: é o
hábito, despersonalizado e transfigurado. Mas este não tem nada a ver com o
hábito humano.
É este potencial que as
religiões ocidentais, sempre amantes das fórmulas pejorativas, chamam de
“pecado original”. Fora o ridículo odioso de pretender tornar o novo ser
responsável por este potencial, ao qual ninguém pode escapar,, convém lembrar
que este potencial não é nem uma virtude, nem um pecado; foi gratuitamente que
os Cristãos fizeram disto um peso vergonhoso para quem nasce num mundo
qualquer; e é apenas por sua exclusiva vontade, e quando ele tiver inteira
posse dela, que o ser em questão poderá apor o sinal + ou – diante deste
potencial energético, segundo o uso que ele fizer disto na existência nova em
que ele acabou de ingressar.
***********
Enfim, consideremos, sob
esta luz – que pode parecer nova aos nossos olhos ocidentais, mas que não é a
primeira vez que brilha diante dos homens – a questão da justiça social e da
justiça universal. Mas, ao contrário dos legisladores, façamo-lo com brevidade,
e indicando suscintamente as fases destas evoluções particulares. Já afirmamos
a impossibilidade metafísica, matemática e até moral, de uma sanção qualquer
aplicada aos atos humanos para além da vida humana, e a uma outra entidade que
nãoo composto humano. Portanto, se existem méritos e deméritos, se existe
responsabilidade e sanção, se, em uma palavra, a reação concordante deve manifestar-se em alegria ou pena, isto acontece
exclusivamente sobre o plano humano; é assim ao pé da letra que “cada ato traz
em si sua recompensa ou seu castigo”[41]. É forçoso assim que seja no plano em que o ato foi
cometido, que a sanção atingirá o autor do ato. Como conciliar esta proposição,
daqui pra frente necessária, com a nosa convicção de que “a justiça não é deste
mundo”? A resposta a esta objeção infantil é ifinitamente simples.
Se considerarmos um ato
qualquer em si mesmo, independentemente de tudo o que o precedeu e de tudo o
que se seguirá a ele, estaremos concebendo-o de modo diferente daquilo que ele
é na realidade, e atribuímos às suas
qualidades valores absolutos. A partir daí, exigimos, no seu lugar, uma sanção
igualmente absoluta e correspondente apenas a este ato. Ora, este ponto de
vista é absolutamente falso. E, sem adentrarmos na lei das séries, que veremos num próximo estudo, devemos saber – e a
cada instante nos lembrarmos desta verdade que percebemos confusamente – que
nenhum ato éindependente da série precedente e da série subsequente, que seus
elementos de causalidade e de responsabilidade possuem raízes múltiplas e
longínquas; em consequência, a sanção que lhe é aplicada imediatamente é
solidária, não apenas das sanções antecedentes e subsequentes, mas de todas as
reações que não são sanções; se a sanção que parece aplicar-se a um ato parece
justa aos nossos olhos diante dete ato isolado, ela será precisamente injusta,
porque não existe ato isolado; a injustiça relativa é assim necessária; e é
toda a série de injustiças sucessivas que constitui na realidade a porção
humanamente apreciável da justiça universal.
Todo o problema social
inclui-se nisto; e os mais famosos sonhadores e os piores retóricos da anarquia
jamais conseguirão obter, no plano contingente da humanidade, a resolução geral
e definitiva da totalidade de uma evolução cíclica.
Vamos sintetizar nosso
raciocínio: ele aplicar-se-á também à teoria da justiça universal. A justiça
social, por injusta que seja, é uma parte integrante da justiça universal,
assim como a justiça individual é uma parte da justiça social. Assim, o homem é
um ator do drama da justiça universal; e ele a afeta e é afetado por ela fora
de sua qualidade de homem. Mas lembremo-nos de duas coisas: 1) as energias da
justiça universal que afetam todos os seres fora do composto humano, não são
sanções, mas apenas influências psíquicas ou cósmicas indiferentes ao estado
humano e ao que se passa nele; e 2) o
ciclo evolutivo é ascensional, vale dizer, qualquer que seja a soma das ações
humanas, quaisquer que sejam as repercussões desttes atos no oceano universal,
o ser humano sobe aperfeiçoando-se através de todas as suas dissociações, e
atinge inevitavelmente a desaparição do limite, ou, precisamente, a perfeição.
Nem na justiça
individual, nem na justiça social, nem na universal, o ser que flui na corrente
das formas é satisfeito. Pois aonde há justiça, há também injustiça; e a idéia
de justiça não se concebe senão com e pelo seu contrário e complementar. Então,
por mais que o ser busque a justiça e por mais que acredite tê-la encontrado,
ele não a encontrou; pois ela não estará aonde ele se acha; e ele só a
alcançará quando não mais a quiser, nem mais pensar nela, porque neste exato momento,
ele será, acima de todas as
qualidades e de todos os limites, e que ISTO apenas é a Justiça Infinita.
***********
Terminaremos aqui estas
considerações, que poderíamos prosseguir, até com certo interesse, por centenas
de páginas e raciocínios. Mas seguiremos humildemente o exemplo dos mestres
ilustes, apenas indicando o caminho da verdade, e deixando a cada um o cuidado
e o mérito essencial de tentar alcançá-la. Acreditamos que, se for dada atenção
suficiente aos apoftegmas que apresentaremos a seguir, será possível extrair
deles todo o fruto que se pode esperar de um texto a um tempo prático e
profundo. Veremos sem dificuldade, entre as ingenuidades morais já mencionadas,
os símbolos metafísicos nos quais se esconde o pensamento do Mestre, e como devem
ser interpretados os “obstáculos da existência” mencionados diversas vezes, e
de que “existência” se trata. Não sobrecarregaremos de glosas fáceis este
ensinamento, já bastante esclarecido pelo que precede. Daremos, assim, sem
interrupção, o texto do Livro das Ações e Reações Concordantes, tal como Lao Tsé o concebeu, e tal como o
parafrasearam os discípulos piedosos e os filósofos de todas as escolas.
[1] Ou seja, 604 a.C.
[2] Corresponde à província de Koueifou, vice-reinio de
Honan, 34O de latitude e 0o54’ de longitude Oeste de
Beijing (Pequim).
[3] Lao Tsé: velho doutor.
[4] Vale de Hankou, distrito de Lingpao: 30o42’
lat. e 108o18’ long.
[5] Note-se que Ko Hong não está falando de si mesmo aqui.
[6] Os Christos, ou “homens feitos Deus” da Gnose
primitiva.
[7] É a esta época que remonta a famosa inscrição de
Siganfou, que só foi descoberta depois de mil anos (1626), na qual o zelo dos
missionários cristãos quis ver uma alusão ao Cristianismo, enquanto que ela é
na verdade um canto de honra a Lao Tsé.
[8] Compreendendo a Pérsia, a Assíria e a Moscóvia, que o
célebre vice-rei Argoun governava em nome de Kubilai, tendo inclusive mantido
correspondência com Filipe o Belo, rei de França.
[9] Devemos colocar nesta época (1395) a eclosão dos Taosse, seita imitadora do Taoísmo, em
que taumaturgias e pseudo-milagres serviam de meio de existência a milhares de
falsos sacerdotes, cuja audácia chegou a oferecer ao próprio imperador Hung Wou
a “bebida da imortalidade”>
[10] A Via Metafísica,
cap. III.
[11] A Via Metafísica,
cps. III e IV.
[12] Yi King, I,
Comentário de Tsheng Tsé.
[13] Yi King, VII,Comentário de Tcheng Tsé.
[14] Ou melhor “das
Ações e Reações concordantes”.
[15] Le livre de la
Voie et la ligne droite, trad. A. Ular, Paris, Revue blanche, 1902.
[16] Le Tao de Laotseu,
trad. Matgioi, Paris, 1894; Le Te de
Laotseu, trad. Matgioi, Paris, 1895.
[17] Aqueles que confundem estes reflexos coma Idéia única,
e que os vêem como duas Idéias iguais, são precisamente aqueles que, no
Ocidente, são chamados de “maniqueus”.
[18] O capítulo I do Tao é a origem do mundo cósmico, e o
caítulo II é a origem do mundo da consciência.
[19] Cf. A Via
Metafísica, cap. VIII.
[20] Na realidade, a Raiz é, não apenas a origem, mas a
Vontade original.
[21] É neste texto, que é a característica metafísica do
Taoísmo, que Abel Rémusat atribuiu a Lao Tsé o conhecimento do nome de Jeová; o
ausente, em chinês, se diz I; o
sutil, se diz Hi; o vazio, Wei; I
Hi Wei, IHV, Jeová. Na Restauração, estas fantasias são escritas a
sério, e no ano seguinte a tão bela descoberta, Rémusat foi nomeado membro do
Instituto.
[22] O “Grande Chefe” do texto literal é tanto o Céu quanto
os soberanos políticos.
[23] Hoan é o
título dado aos antigos generalíssimos, nomeados temporariamente para reprimir
as revoltas, e que não eram muito estimados, devido à sua pouca ciência.
[24] A coisa inominável, o “Neutro” anterior a toda posição
de gênero.
[26] Desprovidos de violência e de manifestações; é por isso
que o texto diz que quem sabe fechar não sabe abrir e que quem acorrenta não
sabe libertar.
[27] Por oposição ao infinito matemático, além do qual o
cone evolui em superfícies inversas.
[28] Ver “As despedidas do Sábio”, Apêndice II deste livro.
[29] Os homens violentos são comparados aos cavalos, cujo
caracter está no texto.
[30] O pequeno país tem o menor número de habitantes
possível: não mais do que oito, a cifra dos trigramas primitivos; nunca pode
existir menos do que oito caracteres de transcrição gráfica. Oito é assim o
símbolo do numeral mínimo.
[31] Cf. os capítulos do Tao onde é demonstrado que os
governantes que melhor se conformam à Via são precisamente aqueles que agem
menos, e que fazem o mínimo que lhes exige seu ofício de governantes.
[32] O último capítulo consiste numa série de apoftegmas e
fórmulas gerais, formando um resumo mnemotécnico, mas sem trazer nada de novo à
doutrina.
[33] Lembremo-nos de que não temos outros termos, para
falarmos das ondas psíquicas, do que aqueles que se aplicam às forças elétricas
e às ondas hertzianas.
[34] Desde que não se reserve este termo, como faziam os
antigos, apenas ao que caía sob o domínio dos cinco sentidos.
[35] Nós só mencionamos aqui o estudo de dois focos de
energia e de forças; lembremo-nos que o dualismo, em qualquer grau ou forma, é
estranho às concepções tadicionais do Extremo-Oriente. A tradição primordial
nos mostra um terceiro oceano, ou oceano
nirvânico; de todas as coisas, não existem aí nem ações nem reações; não
existe influência da vontnade humana,
nem, anteriormente, movimentos cósmicos. E esta determinação essencial
mostra logo porque o autor do Kan-ing
não trata deste terceiro foco. Nenhum movimento do universo está refletido aí;
mas o universo, à força de desejos intensos, poderá atingi-lo e fundir-se nele;
e é aí que ele encontra sua plenitude, no absoluto conhecimento de si mesmo e
na possessão da Energia Essencial, que é o Repouso Refletido, ou,
metafisicamente, o Não-Agir, o Não-Ser consciente. É interessante, embora não
seja nosso propósito aqui, verificar as concordâncias que a Tradição primordial
oferece às teorias da Cabala. Reconheceremos facilmente, naquilo que foi dito,
o mundo incluído na espiral da Grande Serpente, a Sepher Ietzirah, o Tesouro de Luz, etc., todas as entidades
intelectuais nas quais o Extrem0-Oriente, o Oriente e o Ocidente se encontram,
se interpenetram e se apoiam.
[36] Não vamos insistir nisto. Mas que profundo objeto de
reflexão, este pelo qual nós sabemos e sentimos que podemos abordar a verdade
absoluta com aquilo que há em nós de eterno e divino, enquanto que sentimos e
consentimos que os limites, dos quais somos feitos apesar de tudo, permanecem
para nós como obstáculos à compreensão destes próprios limites. E que
constatação imprevista a de que, malgrado nossa imperfeição superficial,
estamos mais abertos ao absoluto do que ao relativo!
[37] Lembremos novamente que não estamos tratando aqui dos
elementos divinos do homem, que não poderiam, não dizemos nem mover-se, mas
sequer contentarem-se com menos do que a comunhão com o oceano nirvânico, e que
não é deste oceano que tratamos aqui, porque, como já dissemos, ele não está
submetido ao fluxo do kan nem ao
influxo do ing.
[38] Pois como uma força cósmica ou o potencial metafísico
poderiam influenciar a moral humana?
[39] O karma dos
Hindus, o pecado original dos Cristãos.
[40] Por “vida” entendemos aqui o método de ser do plano superior ao qual o homem sobe depois de sua
morte.
[41] “Aqui se faz, aqui se paga” (N.T.).
Obrigado
ResponderExcluir