RENÉ GUÉNON
O ERRO ESPÍRITA
IX
O EVOLUCIONISMO
ESPÍRITA
Entre os espíritas kardecistas, como em todas as outras
escolas que a admitem, a idéia de reencarnação está estreitamente ligada a uma
concepção “progressista”, ou, se preferirmos, “evolucionista”; no início,
empregava-se simplesmente a palavra “progresso; hoje em dia, prefere-se
“evolução”; é a mesma coisa no fundo, mas esta última tem um ar mais
“científico”. É inacreditável a sedução que as grandes palavras, com sua falsa
aparência de intelectualidade, exerce sobre os espíritos mais ou menos incultos
e “primários”; existe uma espécie de “verbalismo” que dá a ilusão de um
pensamento àqueles que são incapazes de pensar verdadeiramente, e uma
obscuridade que passa por profundeza aos olhos do vulgo. A fraseologia pomposa
e vazia que está em uso em todas as escolas “neo-espiritualistas” não é
certamente uma das suas menores razões de sucesso; a terminologia dos espíritas
é particularmente ridícula, porque ela se compõe em grande parte por
neologismos fabricados por semi-iletrados que ignoram todas as leis da
etimologia. Se quisermos saber, por exemplo, como o termo “perispírito” foi
forjado por Allan Kardec, é bem simples: “Como o germe do fruto é envolto no perisperma, assim também o espírito
propriamente dito é cercado de uma envoltória que, por comparação, chamaremos perispírito” (1). Os amantes das
pesquisas lingüísticas poderiam encontrar, nessa espécie de coisas, objeto para
um interessante estudo, lembremo-lo de passagem. Freqüentemente também, os
espíritas se apoderam de termos filosóficos e científicos que eles aplicam como
bem entendem; naturalmente, os preferidos são aqueles que se tornaram populares
por obras de “vulgarização”, imbuídas do mais detestável espírito “científico”.
Termos como “evolução”, que é um destes, podemos convir que designa algo que
está bem em harmonia com o conjunto das teorias espíritas: o evolucionismo,
mais de um século depois, revestiu-se de muitas formas, mas que são todas
derivações mais ou menos complicadas da idéia de “progresso”, tal como ela
começou a espalhar-se no mundo ocidental por volta da segunda metade do século
XVIII; é uma das manifestações mais características da mentalidade
especificamente moderna, que é a mesma dos espíritas, e de todos os
“neo-espiritualistas” em geral.
Allan Kardec ensina que “os espíritos não são bons nem
maus por natureza, mas são os mesmos espíritos que vão melhorando, e, ao
melhorarem, passam de uma ordem inferior para uma ordem superior”, que “Deus
deu a cada espírito uma missão com o objetivo de esclarecê-lo e fazê-lo chegar
progressivamente à perfeição pelo conhecimento da verdade e para aproximá-los
de si”, que “todos se tornarão perfeitos”, que “o espírito pode permanecer
estacionário, mas ele não retrograda”, que “os espíritos que seguiram a via do
mal poderão chegar ao mesmo grau de superioridade que os outros, mas as
eternidades (sic) serão mais longas
para eles” (2). É pela “transmigração progressiva” que se efetua a marcha
ascendente: “A vida do espírito, em seu conjunto, percorre as mesma fases que
vemos na vida corporal: ele passa gradualmente do estado embrionário para a
infância, para chegar através de uma sucessão de períodos ao estado adulto, que
é o da perfeição, com a diferença que não existe declínio e decrepitude como na
vida corporal; sua vida, que teve um começo, não terá fim; ele precisará de um
tempo imenso, de nosso ponto de vista, para passar da infância espírita (sic) a um desenvolvimento completo, e
seu progresso irá cumprir-se, não sobre uma única esfera, mas passando pelos
diversos mundos. A vida do espírito compõe-se assim de uma série de existências
corporais, sendo cada qual para ele uma oportunidade para progredir, como cada
existência corporal compõe-se de uma série de dias e em cada um o homem adquire
uma acréscimo de experiência e de instrução. Mas, assim como na vida de um
homem existem dias infrutíferos, na vida do espírito existem existências
corporais que são sem resultado, porque ele não soube aproveitá-las (...) A
marcha dos espíritos é progressiva e jamais retroage; eles elevam-se
gradativamente na hierarquia e nunca descem do nível em que chegaram. Em suas
existências corporais, eles podem descer enquanto homens (sob o aspecto da
posição social) mas não como espíritos” (3). Eis agora uma descrição dos
efeitos deste progresso: “À medida em que o espírito se purifica, o corpo que
ele reveste se aproxima igualmente da natureza espírita (sic). A matéria é menos densa, ele não se arrasta penosamente sobre
o solo, as necessidades físicas são menos grosseiras, os seres vivos não
precisam mais se entredevorar para se alimentarem. O espírito é mais livre e
tem percepções das coisas distantes que nos são desconhecidas; ele vê com os
olhos do corpo o que vemos com os olhos da mente. A depuração do espírito traz
ao ser em quem ele se encarna a perfeição moral. As paixões animais
enfraquecem, o egoísmo dá lugar ao sentimento fraternal. É assim que, nos
mundos superiores à terra, as guerras são desconhecidas; os ódios e as
discórdias não tem sentido, pois ninguém sonha em fazer mal ao seu semelhante.
A intuição que eles tem do seu futuro, a segurança que lhes dá uma consciência
isenta de remorsos, fazem com que a morte não lhes cause nenhuma apreensão;
eles a vêem chegar sem medo e apenas como uma simples transformação. A duração
da vida, nos diferentes mundos, parece ser proporcional ao grau de
superioridade física e moral destes mundos, e isto é perfeitamente racional.
Quanto menos material é o corpo, menos ele está sujeito às vicissitudes que o
desorganizam; quanto mais puro é o espírito, menos ele é minado pelas paixões.
Esta é mais um benefício da Providência, que assim abrevia os sofrimentos (...)
O que determina o mundo aonde o espírito irá encarnar, é o grau de sua elevação
(4) (...) Os mundos também estão submetidos à lei do progresso. Todos começaram
em um estado inferior, e a própria terra sofrerá uma transformação semelhante;
ela se tornará o paraíso terrestre quando os homens se tornarem bons (...) É
assim que as raças que hoje povoam a terra desaparecerão um dia e serão
substituídas por seres muito mais perfeitos; estas raças transformadas
sucederão a raça atual, como esta sucedeu a outras mais grosseiras ainda” (5).
Citemos ainda o que diz respeito à “marcha do progresso” sobre a terra: “O
homem deve progredir sem cessar, ele não pode voltar ao estado de infância. Se
ele progride, é porque Deus quer assim; pensar que ele possa retroceder para
sua condição primitiva seria negar a lei do progresso”. Isto é evidente, mas é
precisamente esta pretensa lei do progresso que nós negamos terminantemente;
mas continuemos: “O progresso moral é a conseqüência do progresso intelectual,
mas nem sempre o segue imediatamente (...) Sendo o progresso uma condição da
natureza humana, ninguém tem o poder de opor-se a ele. É uma força viva que
algumas leis perversas podem retardar, mas não evitar (...) Existem duas
espécies de progresso que se apóiam mutuamente, mas que não marcham juntos, que
são o progresso intelectual e o progresso moral. Entre os povos civilizados, o
primeiro recebe, no século atual, todo o encorajamento desejável; assim ele
atingiu um grau nunca visto antes. É preciso que o segundo seja elevado ao
mesmo nível, embora, se compararmos com as mazelas sociais de há alguns
séculos, será preciso ser cego para negar o progresso. Porque não haverá entre
os séculos XIX e XXIV a mesma diferença que entre os séculos XIV e XIX? Duvida
disto seria pretender que a humanidade encontra-se no apogeu da perfeição, o
que seria absurdo, ou que ela não pode ser aperfeiçoada moralmente, o que é
desmentido pela experiência” (6). Enfim, eis como o espiritismo pode
“contribuir para o progresso”: “Destruindo o materialismo, que é uma das pragas
da sociedade, ele fará os homens compreenderem onde está o verdadeiro
interesse. Se a vida futura não estiver mais velada pela dúvida, o homem compreenderá melhor que ele pode
assegurar o seu futuro pelo presente. Ao destruir os preconceitos das seitas,
das castas e das cores, ele ensina aos homens a grande solidariedade que deve
uni-los como irmãos” (7).
Vemos como o “moralismo” espírita é estreitamente
aparentado a todas as utopias socialistas e humanitárias: todas estas pessoas
concordam em situar num futuro mais ou menos distante o “paraíso terrestre”,
vale dizer a realização de seus sonhos de “pacifismo” e de “fraternidade
universal”; apenas, os espíritas imaginam que isto já se realizou em outros
planetas. Não é preciso frisar como a sua concepção dos “mundos superiores à
terra” é ingênua e grosseira; não há com que se espantar, quando vimos como
eles representam a existência do “espírito desencarnado”; assinalemos apenas a
predominância evidente do elemento sentimental naquilo que constitui para eles
a “superioridade”. É pela mesma razão que eles colocam o “progresso moral”
acima do “progresso intelectual”; Allan Kardec escreve que “a civilização
completa se reconhece pelo desenvolvimento moral”, e acrescenta: “A civilização
tem seus graus como todas as coisas. Uma civilização incompleta é um estado de
transição que engendra males próprios, desconhecidos no estado primitivo; mas
ela não deixa de constituir um progresso natural, necessário, que traz em si o
remédio ao mal que ela faz. À medida em que a civilização se aperfeiçoa, ela
faz cessar alguns dos males que ela engendrou, e estes males desaparecerão com
o progresso moral. De dois povos que tenham atingido o topo da escala social,
só poderá ser chamado de mais civilizado, no verdadeiro sentido do termo,
aquele no qual se encontrar menos egoísmo, cupidez e orgulho; no qual os
habitantes sejam mais intelectuais e morais do que materialistas; no qual a
inteligência possa desenvolver-se com mais liberdade; no qual haja mais
bondade, boa fé, benevolência e generosidade recíprocas; no qual os
preconceitos de casta e nascimento sejam menos enraizados, pois estes
preconceitos são incompatíveis como o amor ao próximo; no qual as leis não
consagrem nenhum privilégio, e sejam as mesmas para os primeiros e para os
últimos; no qual a justiça se exerça com mais imparcialidade; no qual o fraco
encontre sempre apoio contra o forte; no qual a vida do homem, suas crenças e
opiniões sejam mais respeitadas; no qual existam menos infelizes, e, enfim,
onde todo homem de boa vontade esteja sempre certo de ter todo o necessário”
(8). Nesta passagem afirmam-se ainda as tendência democráticas do espiritismo,
que Allan Kardec desenvolve a seguir longamente, nos capítulos onde ele trata
da “lei da igualdade” e de “lei da liberdade”; basta ler estas páginas para
entender que o espiritismo é realmente um puro produto do espírito moderno.
Nada mais fácil do que criticar este “otimismo” asinino
que é representada, entre nossos contemporâneos, pela crença no “progresso”;
não podemos nos estender sobre o tema, pois esta discussão nos levaria longe do
espiritismo, que aqui só representa um caso particular; esta crença é
compartilhada igualmente nos meios mais diversos, e, naturalmente, cada um
imagina o “progresso” conforme suas próprias preferências. O erro fundamental,
cuja origem pode ser atribuída a Turgot e sobretudo a Fourier, consiste em
falar da “civilização” de modo absoluto; está aí uma coisa que não existe, pois
sempre houveram e ainda existem “civilizações”, cada qual com seu
desenvolvimento próprio, sendo que, destas civilizações, algumas se perderam
completamente, sem que as que nasceram mais tarde tenham recolhido qualquer
herança. Não se pode negar que existem, no curso de uma civilização, períodos
de decadência, nem que um progresso relativo em um certo domínio possa ser
compensado por uma regressão em outros; de resto, seria bem difícil aos homens
de um povo e de uma época aplicarem-se todos com igual empenho a coisas de
ordens diferentes. A civilização ocidental moderna é, com certeza, aquela cujo
desenvolvimento aplica-se ao domínio mais restrito de todos; não é preciso ser
muito exigente para concluir que “o progresso intelectual atingiu um grau nunca
antes visto”, e aqueles que pensam assim mostram que ignoram tudo sobre a
verdadeira intelectualidade; tomar por um “progresso intelectual” aquilo que
não passa de um desenvolvimento puramente material, limitado à ordem das
ciências experimentais (ou antes de algumas delas, porque existem outras das
quais os modernos desconhecem até a existência), e sobretudo às suas aplicações
industriais, é realmente a mais ridícula de todas as ilusões. O que aconteceu
no Ocidente a partir da época que se convencionou chamar de Renascença (muito
impropriamente em nossa opinião), bem ao contrário, foi uma formidável
regressão intelectual, que nenhum progresso material poderia compensar; já
falamos disto em outra parte (9), e voltaremos em outra ocasião. Quanto ao
pretenso “progresso moral”, é assunto de sentimento, portanto da apreciação
individual pura e simples; cada um pode criar, de seu ponto de vista, um “ideal”
conforme a seus gostos, e o dos espíritas e dos democratas não convém a todo
mundo; mas os “moralistas” em geral não pensam assim, e, se eles tivessem poder
para tanto, eles imporiam a todos a sua própria concepção, pois ninguém é menos
tolerante na prática do que aqueles que se acham na necessidade de pregar a
tolerância e a fraternidade. Seja como for, o “perfeccionamento moral” do
homem, segundo a idéia que se faz disto normalmente, parece ser “desmentida
pela experiência”, antes do que o contrário; muitos eventos recentes mostram o
erro de Allan Kardec e de seus iguais, para que seja preciso insistir aqui; mas
os sonhadores são incorrigíveis e, cada vez que estoura uma guerra, sempre
aparece algum para predizer que será a última; estas pessoas que evocam a
“experiência” por qualquer propósito parecem perfeitamente insensíveis a todos
os “desmentidos” que ela lhes impõe. Quanto às raças futuras, podemos
imaginá-las ao sabor da fantasia; os espíritas tem ao menos a prudência de não
dar, a este respeito, o tipo de detalhes que permanece um monopólio dos
teosofistas; eles se apegam a vagas considerações sentimentais, que não valem
muito mais no fundo, mas que tem a vantagem de ser menos pretensiosas. Enfim,
convém frisar que a “lei do progresso” é para seus partidários uma espécie de
postulado ou artigo de fé: Allan Kardec afirma que “o homem deve progredir”, e
ele contenta-se em acrescentar que, “se ele progride, é porque Deus quer
assim”; se lhe perguntássemos como ele sabe disto, ele provavelmente teria
respondido que os “espíritos” lhe haviam dito; é pouco como justificativa, mas
nem por isso aqueles que emitem a mesma afirmação em nome da “razão” tem uma
posição mais sólida. Existe um “racionalismo” que não passa de um
sentimentalismo disfarçado, e aliás não há absurdo que não encontre meio de
apoiar-se na razão; o próprio Allan Kardec proclama também que “a força do
espiritismo está na sua filosofia, no apelo que ele faz à razão e ao bom senso”
(10). Certamente, o “bom senso” comum, do qual tanto se abusou depois que
Descartes inchou-o democraticamente, é incapaz de pronunciar-se com
conhecimento de causa sobre a veracidade ou a falsidade de qualquer idéia; e
mesmo uma razão mais “filosófica” não garante muito mais os homens contra o
erro. Podemos rir de Allan Kardec que se satisfez com a afirmativa de que “se o
homem progride, é porque Deus quer assim”; mas, que dizer do eminente
sociólogo, representante qualificado da “ciência oficial”, que declarou
gravemente (e isto ouvimos em pessoa) que, “se a humanidade progride, é porque
ela tem uma tendência a progredir”? As solenes asneiras da filosofia
universitária são às vezes tão grotescas quanto as divagações espíritas; mas
estas, como dissemos, apresenta perigos especiais, devido notadamente ao seu caráter
“pseudo-religioso”, e é por isso que é urgente denunciá-los e mostrar sua
inanidade.
Falta-nos agora falar daquilo que Allan Kardec chama de
“progresso do espírito”, e, para começar, assinalaremos aí um abuso de analogia
na comparação que ele pretende estabelecer com a vida corporal: uma vez que
esta comparação, segundo ele próprio, não se aplica à fase de declínio e
decrepitude, porque deveria ela ser válida para a fase de desenvolvimento? Por
outro lado, se o que ele chama de “perfeição”, objetivo que todos os
“espíritos” devem atingir cedo ou tarde, é algo comparável ao “estado adulto”,
trata-se de uma perfeição bastante relativa; e é preciso que ela seja realmente
relativa, para que se possa chegar a ela “gradualmente”, mesmo que tenha que
levar “um tempo imenso”; voltaremos a isto mais adiante. Enfim, logicamente, e
sobretudo metafisicamente, aquilo que não tem fim não poderá também ter começo,
ou, em outros termos, tudo o que é verdadeiramente imortal (não apenas no
sentido relativo do termo) é por isso mesmo eterno; é verdade que Allan Kardec,
que fala da “longa duração das eternidades” (no plural) não concebe nada
diferente do que a simples perpetuidade temporal, e, como ele não vê seu fim,
supõe que não exista um; mas o indefinido é ainda finito, e toda duração é
finita por sua própria natureza. Existe aí, aliás, um outro equívoco que deve
ser dissipado: aquilo que se chama de “espírito” e que se supõe constituir o
ser total e verdadeiro, não passa em suma da individualidade humana; que se
queira repeti-la em múltiplos exemplares sucessivos pela reencarnação, ela não
fica menos limitada por isso. Em um sentido, os espíritas a limitam mais ainda,
porque eles não conhecem mais do que uma pequena parte de suas reais
possibilidades, e ela não tem necessidade de se reencarnar para ser susceptível
de extensões indefinidas; mas, num outro sentido, eles dão a ela uma
importância excessiva, pois eles a tomam pelo ser do qual ela não é, com todos
os seus prolongamentos possíveis, mais do que um elemento infinitesimal. Este
duplo erro aliás não é particular aos espíritas, mas é comum a todo o mundo
ocidental: o indivíduo humano é ao mesmo tempo muito mais e muito menos do que
se acredita; e, se não se tivesse tomado indevidamente este indivíduo, ou
melhor uma porção restrita deste indivíduo, pelo ser completo, jamais teria
surgido a idéia de que este “evolui”. Podemos dizer que o indivíduo “evolui”,
se com isto entendermos simplesmente que ele cumpre um certo desenvolvimento
cíclico; mas, hoje em dia, quem diz “evolução” quer dizer desenvolvimento
“progressivo”, e isto é contestável, senão para algumas partes do ciclo, ao
menos no seu conjunto; mesmo num domínio assim relativo, a idéia de progresso
só é aplicável no interior de limites bastante estreitos, e mesmo assim ela só tem sentido se explicitarmos em que
sentido pretendemos aplicá-la; isto é verdade tanto para os indivíduos quanto
para as coletividades. De resto, quem diz progresso diz forçosamente sucessão;
para tudo o que não pode ser visto em modo sucessivo, esta palavra não
significa nada; se o homem lhe atribui um sentido, é porque, enquanto ser
individual ele está submetido ao tempo, e, se ele estende este sentido além da
conta, é porque ele não consegue conceber o que está fora do tempo. Para todos os
estados do ser que não estão condicionados pelo tempo nem por qualquer modo de
duração, não se pode falar em nada semelhante, mesmo a título de relatividade
ou de contingência ínfima, pois não é uma possibilidade destes estados; com
mais forte razão, quando se trata do ser completo, totalizando em si a
multiplicidade indefinida de todos os estados, é absurdo falar, não somente de
progresso e de evolução, mas de qualquer desenvolvimento: a eternidade, que
exclui toda sucessão e toda mudança (ou melhor, não tendo relação com elas),
implica necessariamente a imutabilidade absoluta.
Antes de terminarmos esta discussão, devemos ainda citar
algumas passagens tiradas de escritores que gozam entre os espíritas de uma
autoridade inconteste: e, em primeiro lugar, Léon Denis, que fala quase como
Allan Kardec: “Trata-se de trabalhar com ardor pelo nosso avanço. O objetivo
supremo é a perfeição; a via que conduz a ela, é o progresso. Esta via é longa,
e tem de ser percorrida passo a passo. O objetivo distante parece recuar à
medida em que se avança, mas, a cada etapa cumprida, o ser recolhe o fruto de
suas penas; ele enriquece sua experiência e desenvolve suas faculdades (...)
Não existe entre as almas senão diferenças de graus, diferenças que elas
poderão sempre superar no futuro” (11). Até aí, nada de novo; mas o mesmo
autor, a respeito daquilo que ele chama “evolução perispiritual”, traz algumas
precisões que são visivelmente inspiradas em certas teorias científicas, ou
pseudo-científicas, cujo sucesso é um dos sinais mais inegáveis da fraqueza
intelectual de nossos contemporâneos: “As relações seculares entre homens e
espíritos (12), confirmadas e explicadas pelas experiências recentes do
espiritismo, demonstram a sobrevivência do ser sob uma forma fluídica mais perfeita.
Esta forma indestrutível, companheira e serva da alma, testemunho de suas lutas
e de seus sofrimentos, participa de suas peregrinações, eleva-se e purifica-se
com ela. Formado nas regiões inferiores, o ser perispiritual sobre lentamente
na escala das existências. Inicialmente não passa de um ser rudimentar, um
rascunho incompleto. Chegando à humanidade, ele começa a refletir sentimentos
mais elevados; o espírito irradia com mais potência, e o perispírito aclara-se
com novas nuances. De vida em vida, à medida em que suas faculdades se ampliam,
que suas aspirações se depuram, que cresce o campo dos conhecimentos, ele se
enriquece de novos sentidos. Cada vez que se cumpre um encarnação, como uma
borboleta que sai de sua crisálida, o corpo espiritual se desembaraça de seus
andrajos de carne. A alma se redescobre, inteira e livre, e, observando o manto
fluídico que a recobre, em seu aspecto magnífico ou miserável, ela constata seu
próprio avanço” (12). Eis aí o que podemos chamar de “transformismo psíquico”;
e alguns espíritas, senão todos, compartilham a crença no transformismo entendido em seu sentido mais
comum, ainda que esta crença não se concilie muito com a teoria ensinada por
Allan Kardec, segundo quem “os germes de todos os seres vivos, contidos na terra,
aí permanecem em estado latente e inerte até o momento propício para a eclosão
de cada espécie (13). Seja como for, Gabriel Delanne, que se quer mais o
“científico” dos espíritas kardecistas, admite inteiramente as teorias
transformistas; mas ele pretende completar a “evolução corporal” com a
“evolução anímica”: “É o mesmo princípio imortal que anima todas as criaturas
vivas. A princípio manifestando-se sob formas elementares nos estágios iniciais
da vida, ele vai pouco a pouco aperfeiçoando-se, à medida em que se eleva na
escala dos seres; ele desenvolve, na sua longa evolução, as faculdades que se
achavam encerradas nele em estado de germes, e as manifesta de um modo mais ou
menos análogo ao nosso, na medida em que se aproxima da humanidade (...) Nós
não podemos conceber, de fato, porque Deus criaria seres sensíveis ao
sofrimento, sem lhes dar ao mesmo tempo a faculdade de se beneficiar dos
esforços que eles fazem para melhorar a si mesmos. Se o princípio inteligente
que os anima fosse condenado a ocupar eternamente esta posição inferior, Deus
não seria justo favorecendo o homem em detrimento das outras criaturas. Mas a
razão nos diz que isto não pode ser assim, e a observação demonstra que existe
identidade substancial entre a alma dos animais e a nossa, que tudo se encadeia
e se liga estreitamente no Universo, desde o ínfimo átomo até o gigantesco sol
perdido na noite do espaço, desde a ameba até o espírito superior que paira nas
regiões serenas da errância” (14). O apelo à justiça divina era aqui inevitável;
já falamos mais acima que seria absurdo perguntar-se porque tal espécie animal
não é igual a tal outra, e é inacreditável que esta desigualdade, ou melhor
esta diversidade, fira a sentimentalidade dos espíritas quase tanto quanto a
diversidade das condições humanas; o “moralismo” é realmente uma coisa
admirável! Muito curiosa também é a página a seguir, que reproduzimos
integralmente para mostrar até onde chega, entre os espíritas, o espírito
“científico”, com seu habitual acompanhamento da raiva feroz contra tudo o que
tenha um caráter religioso ou tradicional: “Como cumpriu-se esta gênese da
alma, por quais metamorfoses terá passado o espírito inteligente antes de
chegar à humanidade? É isto que o transformismo nos ensina com uma luminosa
evidência. Graças ao gênio de Lamarck, de Darwin, de Wallace, de Haeckel e de
todo um exército de sábios naturalistas, nosso passado foi exumado das
entranhas do solo. Os arquivos da terra conservaram as ossadas das raças
desaparecidas, e a ciência reconstituiu a nossa linha ascendente, da época
atual até os períodos muitas vezes seculares quando a vida apareceu sobre nosso
globo. O espírito humano, libertado das cadeias de uma religião ignorante,
tomou seu livre passo, e, desembaraçado das crenças supersticiosas que
entravavam as pesquisas de nossos pais, ousou abordar o problema de nossas
origens e encontrou a solução. Este é um fato capital cujas conseqüências
morais e filosóficas são incalculáveis. A terra não é mais este mundo
misterioso que a varinha de um encantador fez eclodir um dia, todo povoado de
animais e plantas, pronto para receber o homem que seria ali um rei; a razão
esclarecida nos faz hoje compreender quanta ignorância e orgulho testemunham
estas fábulas! O homem não é um anjo decaído, chorando um imaginário Paraíso
perdido, ele não deve curvar-se servilmente sob o jugo do representante de um
Deus parcial, caprichoso e vingativo, ele não tem nenhum pecado original que o
suje desde o nascimento, e sua sorte não depende de outrem. O dia da libertação
intelectual chegou; soou a hora da renovação para todos os seres que ainda se
curvavam ante o despotismo do medo e do dogma. O espiritismo esclareceu com sua
chama nosso futuro, desdobrando-se em céus infinitos; sentimos palpitar a alma
de nossas irmãs, as outras humanidades celestes; voltamos para as espessas trevas do passado
para estudar nossa juventude espiritual, e, em nenhum lugar, encontramos este
tirano fantástico e terrível de quem a Bíblia nos dá uma tão espantosa
descrição. Em toda a criação, nada de arbitrário ou ilógico veio destruir a
harmonia grandiosa das leis eternas” (15). Estas declarações, bastante
parecidas com as de Camille Flammaryon, tem como interesse ressaltar as
afinidades do espiritismo com tudo o que existe de mais detestável dentro do
pensamento moderno; os espíritas, temendo não parecer bastante “esclarecidos”,
excedem ainda os exageros dos sábios, ou supostos tais, de quem eles gostariam
de obter o obséquio, e eles testemunham uma confiança sem limites a respeito
das hipóteses mais arriscadas: “Se a doutrina evolucionista encontrou tantos
adversários, é porque o preconceito religioso deixou traços fundos nos
espíritos, naturalmente rebeldes, aliás, a toda novidade (...) A teoria
transformista nos faz compreender que os animais atuais não passam dos últimos
produtos de uma longa elaboração de formas transitórias, que desapareceram ao
longo das eras, para só deixar subsistir as que existem atualmente. As
descobertas da paleontologia trazem a cada dia os ossos de animais pré-históricos,
que formam os anéis desta cadeia sem fim, cuja origem se confunde com a da
vida. E como se não bastasse mostrar esta filiação pelos fósseis, a natureza
encarregou-se de fornecer um exemplo cabal, no nascimento de cada ser. Todo
animal que vem ao mundo reproduz, nos primeiros tempos de sua vida fetal, todos
os tipos anteriores pelos quais sua raça passou antes de chegar a ele. É uma
história sumária e resumida da evolução de seus ancestrais, ela estabelece
inequivocamente o parentesco animal do homem, apesar de todos os protestos mais
ou menos interessados (...) A descendência animal do homem impõe-se com
luminosa evidência a todo pesquisador sem preconceito” (16). E, naturalmente,
vemos aparecer em seguida esta outra hipótese que assimila os homens primitivos
aos selvagens atuais: “A alma humana não poderia ser exceção à lei geral e
absoluta (da evolução); nós constatamos que sobre a terra ela passa por fases
que abarcam as manifestações mais diversas, desde as humildes e mesquinhas
concepções do estado selvagem, até as magníficas eflorescências do gênio nas
nações civilizadas” (17). Mas basta de excertos desta mentalidade “primária”; o
que queremos reter é, sobretudo, a estreita ligação que existe, queira-se ou
não, entre todas as formas do evolucionismo.
Não é aqui que poderemos fazer uma crítica detalhada do
transformismo, porque nos afastaria demasiado da questão do espiritismo; mas
lembraremos o que dissemos mais acima, que a consideração do desenvolvimento
embrionário não prova nada. As pessoas que afirmam solenemente que a “ontogenia
é paralela à filogenia” parecem não se dar conta de que tomam por uma lei o que
não passa de uma simples hipótese; eles cometem um verdadeiro erro de
princípio, pois seria preciso primeiro provar que existe uma “filogenia”, e,
certamente, não foi a observação que mostrou jamais uma espécie tornando-se
outra. O desenvolvimento do indivíduo é o único que se pode constatar
diretamente, e, para nós, as diversas formas que ele atravessa não tem outra
razão de ser senão que este indivíduo deve realizar, segundo as modalidades que
forem conformes à sua natureza particular, as diferentes possibilidades do
estado ao qual ele pertence; para tanto, basta-lhe aliás uma única existência,
e é o bastante, porque ele não pode passar duas vezes pelo mesmo estado. De
resto, do ponto de vista metafísico, é a simultaneidade que importa, e não a
sucessão, que não representa senão um aspecto eminentemente relativo das
coisas; poderíamos então nos desinteressarmos inteiramente da questão, se o
transformismo, para quem compreende a verdadeira natureza da espécie, não fosse
uma impossibilidade, e não apenas uma inutilidade. Seja como for, não há outro
interesse em jogo do que a verdade; aqueles que falam de “protestos
interessados” emprestam aos seus adversários suas próprias preocupações, que
provém sobretudo deste sentimentalismo mascarado de racionalidade a que já
aludimos, e que não estão também livres de certas maquinações políticas da mais
baixa ordem, às quais muitos aliás se prestam de modo bastante inconsciente.
Hoje, o transformismo parece ter tido seu tempo, perdendo muito terreno, ao
menos nos meios científicos mais sérios; mas ele pode ainda continuar
contaminando o espírito das massas, a menos que se encontre outra máquina de
guerra capaz de substituí-lo; nós não acreditamos, com efeito, que teorias como
esta se espalhem espontaneamente, nem que aqueles que se encarregam de
propagá-las obedeçam a preocupações de ordem intelectual, pois eles colocam
nisto demasiada paixão e animosidade.
Mas deixemos de lado estas histórias de “descendência”,
que só adquiriram tal importância porque são das que impressionam a imaginação
do vulgo, e voltemos à pretensa evolução de um ser determinado, que levanta
questões mais graves no fundo. Lembraremos o que já foi dito a propósito da
hipótese segundo a qual o ser deveria passar sucessivamente por todas as formas
de vida: esta hipótese, que não é outra coisa do que a “evolução anímica” de
Delanne, é em primeiro lugar uma impossibilidade, como demonstramos; mas ela
também é uma inutilidade, e o é mesmo duplamente. Ela é inútil, em primeiro
lugar, porque o ser pode carregar em si simultaneamente o equivalente de toas
estas formas de vida; e aqui trata-se apenas do ser individual, pois todas
estas formas pertencem ao mesmo estado de existência, que é o da
individualidade humana; elas são portanto possibilidades compreendidas dentro
do domínio desta, desde que vista em sua integralidade. É apenas para a
individualidade restrita à sua condição corporal, como já frisamos, que a
simultaneidade é substituída pela sucessão, no desenvolvimento embriológico,
mas isto só concerne a uma pequena parte das possibilidades em questão; para a
individualidade integral, o ponto de vista da sucessão desaparece, e no entanto
trata-se ainda de um único estado do ser, dentre uma multiplicidade indefinida
de outros estados; se pretendermos a todo custo falar em evolução, vemos assim
dentro de que estreitos limites esta idéia pode ser aplicada. Em segundo lugar,
a hipótese de que tratamos é inútil quanto ao termo final a ser atingido,
qualquer que seja a concepção que se faça dele; e achamos necessário
explicarmo-nos aqui a respeito da palavra “perfeição”, que os espíritas
empregam de maneira tão abusiva. Evidentemente, não pode se tratar da Perfeição
metafísica, a única que merece este nome, e que é idêntica ao Infinito, ou seja
à Possibilidade universal em toda a sua plenitude; isto os ultrapassa
imensamente, e eles não fazem a menor idéia do que seja; mas admitamos que se
possa falar, analogamente, de perfeição num sentido relativo, para um ser
qualquer: esta será, para este ser, a plena realização de todas as suas
possibilidades. Ora, basta que estas possibilidades sejam indefinidas, em
qualquer grau, para que a perfeição assim entendida não possa ser atingida
“gradualmente” e “progressivamente”, segundo a expressões de Allan Kardec; o
ser que houver percorrido uma a uma, em modo sucessivo, possibilidades
particulares em número qualquer, não estará mais avançado por isso. Uma comparação
matemática ajudará a compreender o que queremos dizer: se quisermos fazer a
adição de uma indefinidade de elementos, jamais conseguiremos tomando estes
elementos um por um; a soma só poderá ser obtida por uma operação única, que é
a integração, e assim é preciso que todos estes elementos sejam tomados
simultaneamente; esta é a refutação da falsa concepção, tão comum no Ocidente,
segundo a qual só se pode chegar à síntese pela análise, enquanto que, ao
contrário, se se trata da verdadeira síntese, é impossível atingi-la deste
modo. Podemos ainda apresentar as coisas assim: se temos uma série indefinida
de elementos, o termo final, ou a totalização da série, não é nenhum de seus
elementos; ele não pode se achar dentro da série, de modo que não se poderá alcançá-lo
percorrendo-a analiticamente; ao contrário, pode-se atingir este objetivo de um
só golpe pela integração, mas para isto pouco importa que tenhamos percorrido a
série até tal ou tal de seus elementos, pois não há nenhuma medida comum entre
qualquer resultado parcial e o resultado total. Mesmo para o ser individual,
este raciocínio é aplicável, pois este ser comporta possibilidades susceptíveis
de um desenvolvimento indefinido; de nada serve fazer intervir “um tempo
imenso”, pois este desenvolvimento, se o quisermos sucessivo, não terminará
jamais; mas, a partir do momento em que ele puder ser simultâneo, não há mais
nenhuma dificuldade; só que aí será a negação do evolucionismo. Agora, se se
trata do ser total, e não mais apenas do indivíduo, a coisa é ainda mais
evidente, primeiro porque não há mais lugar para a consideração do tempo ou de
qualquer outra condição análoga (sendo a totalidade do ser um estado
incondicionado), e também porque agora existem outras coisas a considerar do
que a simples indefinidade de possibilidades do indivíduo, pois estas não serão
mais, em sua integralidade, do que um elemento infinitesimal dentro da série
indefinida dos estados do ser. Chegando a este ponto (que não se endereça mais
aos espíritas, manifestamente incapazes de conceber tais coisas), podemos
reintroduzir a idéia da Perfeição metafísica, e dizer o seguinte: mesmo
admitindo que um ser tenha percorrido distinta e analiticamente uma
indefinidade de possibilidades, toda esta evolução, se a quisermos chamar assim,
só poderá ser um rigoroso zero em relação à Perfeição, pois o indefinido,
procedendo do finito e sendo produzido por ele (como o demonstra claramente, em
particular, a geração dos números), portanto estando nele contido em potência,
não passa do desenvolvimento das possibilidades do finito, e, conseqüentemente,
não poderá ter nenhuma relação com o Infinito, o que equivale a dizer que,
considerado desde o Infinito, ou da Perfeição que lhe é idêntica, ele só pode
ser zero. A concepção analítica representada pelo evolucionismo, se vista no
universal, equivale assim, nem sequer a juntar uma a uma quantidades
infinitesimais, mas rigorosamente a juntar indefinidamente zero a si mesmo, por
uma indefinidade de adições distintas e sucessivas, cujo resultado final será
sempre zero; não se pode sair desta série estéril de operações analíticas senão
pela integração (que deverá ser aqui uma integração múltipla, e mesmo
indefinidamente múltipla), e, insistimos, esta efetua-se de um só golpe, por
uma síntese imediata e transcendente, que não é logicamente precedida de
nenhuma análise.
Os evolucionistas, que não tem a menor idéia de
eternidade, assim como de tudo o que é de ordem metafísica, chamam por este
nome uma duração indefinida, o que é a perpetuidade, enquanto que a eternidade
é essencialmente a “não-duração”; este erro é do mesmo tipo daquele que
consiste em crer que o espaço é infinito, e aliás um não existe sem o outro; a
causa é sempre a confusão entre o concebível e o imaginável. Na realidade, o
espaço é indefinido, mas, como qualquer outra possibilidade particular, ele é
absolutamente nulo em relação ao Infinito; da mesma forma, a duração, mesmo
perpétua, não é nada diante da eternidade. Mas o mais singular é o seguinte:
para aqueles que, por serem evolucionistas de um modo ou de outro, colocam toda
a realidade no futuro, a pretensa eternidade temporal, que se compõe de
durações sucessivas, e que portanto é divisível, parece acontecer em duas
metades, uma passada e outra futura. Eis, a título de exemplo (e existem muitos
outros), uma curiosa passagem que tiramos de uma obra astronômica de Camille
Flammarion: “Se os mundos morressem para sempre, se os sóis extintos não
brilhassem mais, é provável que não houvessem mais estrelas no céu. E porque?
Porque a criação é tão antiga, que podemos considerá-la como eterna no passado.
Desde a época de sua formação, os inumeráveis sóis do espaço tiveram muito
tempo para se extinguirem. Relativamente à eternidade passada (sic), só existem os sóis novos a
brilhar. Os primeiros foram extintos. A idéia de sucessão impõe-se assim
espontaneamente ao nosso espírito. Qualquer que seja a crença íntima que cada
um de nós adquiriu em sua consciência a respeito da natureza do Universo, é
impossível admitir a antiga teoria de uma criação feita de uma vez por todas.
Não é a idéia de Deus sinônimo da idéia de Criador? Desde que Deus existe, ele
cria; se ele só houvesse criado uma vez, não haveriam mais sóis na imensidão,
nem planetas tirando deles sua luz, o calor, a eletricidade e a vida. É preciso,
é necessário, que a criação seja perpétua. E, se Deus não existe, a
antiguidade, a eternidade do Universo impõe-se com mais força ainda” (19). É
quase supérfluo chamar a atenção sobre a quantidade de puras hipóteses que
existe nestas poucas linhas, e que nem sequer são coerentes entre si: é preciso
que existam novos sóis porque os primeiros se extinguiram, mas o novos não
passam dos antigos que se reacenderam; é preciso crer que as possibilidades
esgotam-se depressa; e que dizer desta “antiguidade”, que equivale
aproximadamente à eternidade? Seria lógico fazer um raciocínio semelhante: se
os homens uma vez mortos não se reencarnassem, é provável que não existisse
mais nenhum, pois, desde seu aparecimento, eles tiveram “tempo de folga” para
morrerem todos; eis um argumento que oferecemos de graça aos
reencarnacionistas, mas que não fortificará muito a sua tese. A palavra
“evolução” não se encontra na passagem citada, mas é evidentemente esta
concepção, baseada exclusivamente na “idéia de sucessão”, que deve substituir a
“antiga teoria de uma criação feita de uma vez por todas”, declarada impossível
em virtude de uma simples “crença” (a palavra está lá). De resto, para o autor,
o próprio Deus está submetido à sucessão ou ao tempo; a criação é um ato temporal:
“desde que Deus existe, ele cria”; portanto ele teve um começo, e provavelmente
deve também estar situado no espaço, suposto infinito. Dizer que “a idéia de
Deus é sinônimo da idéia de Criador”, é emitir uma afirmação mais que
contestável; ousar-se-ia sustentar que todos os povos que não tem a idéia de
criação, ou seja todos aqueles cujas concepções não são de fonte judaica, não
tem por isso nenhuma idéia que corresponda à de Divindade? Isto é
manifestamente absurdo; e veja-se que, quando se trata aqui de criação, aquilo
que se designa não passa jamais do mundo corporal, vale dizer o conteúdo do
espaço que o astrônomo consegue explorar com seu telescópio; o Universo é de
fato bastante pequeno para aqueles que colocam o infinito e a eternidade aonde
eles não cabem! Se foi preciso toda a “eternidade passada” para chegar a
produzir o mundo corporal tal como o vemos hoje, com seres como os indivíduos
humanos para representar a mais alta expressão da “vida universal e eterna”,
havemos de convir que o resultado foi pífio (20); e, certamente, não bastará
toda a “eternidade futura” para chegar à “perfeição”, entretanto bastante
relativa, com que sonham os evolucionistas. Isto nos lembra a teoria bizarra de
algum filósofo contemporâneo (se não nos falha a memória, teria sido Guyau),
que representava a “segunda metade da eternidade” como sendo para reparar os
erros acumulados durante a “primeira metade”; eis os “pensadores” que se querem
“esclarecidos” e se permitem rir das concepções
religiosas!
Os evolucionistas, como já dissemos, colocam toda a
realidade no devir; é por isso que suas concepções são a negação completa da
metafísica, pois esta tem por domínio aquilo que é permanente e imutável,
portanto aquilo cuja afirmação é incompatível com o evolucionismo. A própria
idéia de Deus, nessas condições, deve ser submetida ao devir como todo o resto,
e aí está, com efeito, o pensamento mais ou menos confesso, senão de todos os
evolucionistas, ao menos daqueles que pretendem ser coerentes consigo mesmos.
Esta idéia de um Deus que evolui (e que, tendo começado no mundo, ou ao menos
com o mundo, não poderia ser o seu princípio, e assim não representa mais do
que uma hipótese perfeitamente inútil) não é excepcional em nossa época; ela se
acha, não apenas entre filósofos como Renan, mas também em certas seitas mais
ou menos suspeitas, cuja origem, naturalmente, não remonta além do século XIX.
Eis, por exemplo, o que os Mórmons ensinam a respeito de Deus: “Sua origem foi
a fusão de duas partículas de matéria elementar, e, por um desenvolvimento
progressivo, ele atingiu a forma humana (...) Deus, não é preciso dizer (sic), começou por ser um homem, e, por
uma via de constante progressão, tornou-se aquilo que é, e ele pode continuar a
progredir da mesma maneira eterna e indefinidamente. Também o homem poderá
crescer em conhecimento e poder tanto quanto queira. Se portanto o homem é
dotado de um progresso eterno, chegará um tempo em que ele poderá tanto quanto
pode Deus hoje” (21). E ainda: “A menor criatura de Deus que existe hoje sobre
a terra, possuirá a seu tempo mais dominação, poder e glória do que possuem
hoje Jesus Cristo e seu Pai, enquanto que o poder e a elevação destes será
acrescido na mesma proporção” (22). Estes absurdos não são piores do que os que
vemos no espiritismo, do qual só nos afastamos em aparência, para assinalarmos
algumas aproximações: a “progressão eterna” do homem é perfeitamente idêntica à
concepção dos espíritas ao mesmo respeito; e, quanto à evolução da Divindade,
se eles não chegam a tanto, é pelo menos o desfecho lógico de suas teorias, e
existem mesmo alguns que não recuam diante de tais conseqüências, e que as
proclamam inclusive de modo tão explícito quanto extravagante. É assim que Jean
Béziat, chefe da seita “fraternista”, escreveu há alguns anos um artigo
destinado a provar que “Deus está em perpétua evolução”, ao qual ele deu o
seguinte título: “Deus não é imutável; Satã é Deus ontem”; podemos ter uma
idéia suficiente por estes extratos: “Deus não nos parece todo-poderoso no
momento atual, pois existe a luta entre o bem e o mal, e não o bem absoluto
(...) Da mesma forma como o frio é um grau menor de calor, o mal também não
passa de um grau menor do bem; e o diabo ou o mal, um grau menor de Deus. É
impossível retrucar esta afirmação. Existem apenas vibrações calóricas,
vibrações benéficas ou divinas mais ou menos ativas, simplesmente. Deus é a
Intenção evolutiva em permanente crescimento. Não resulta daí que Deus fosse
ontem menos avançado do que o Deus-hoje, e Deus-hoje menos avançado do que Deus-amanhã?
Aqueles que saíram do seio divino ontem são assim menos divinos do que os que
dele saíram hoje, e assim por diante. Os saídos de Deus-ontem são naturalmente
menos bons do que os que saíram do Deus-agora, e é por ilusão, simplesmente,
que chamamos de Satã o que ainda não é o Deus, mas apenas o Deus-passado e não
o Deus-atual” (23). Semelhantes elucubrações, certamente, não merecem ser
refutadas em detalhe; mas convém sublinhar o ponto de partida especificamente
“moralista”, pois no fundo trata-se apenas de bem e de mal, e também ressaltar
que Béziat trata Satã como literalmente oposto a Deus, o que não passa do
“dualismo”, que se atribui comumente (e provavelmente de forma errada) aos
Maniqueus; em todo caso, é gratuitamente que ele empresta essa concepção a
outros a quem ela é totalmente estranha. Isto nos conduz diretamente à questão
do satanismo, questão tão complexa quanto delicada, e que é ainda uma das que
não poderemos tratar completamente aqui, mas da qual não podemos nos dispensar
de indicar ao menos alguns aspectos, embora seja para nós tarefa bastante
desagradável.
NOTAS
1.
Le Livre des Esprits, pg. 38. – Um psiquista ocultista, o conde de Tromelin, inventou o
termo mansprit para designar
especificamente o “perispírito” dos vivos; é o mesmo autor que imaginou também
a “força biólica”.
2.
Le Livre des Esprits, pgs. 49-53.
3.
Le Livre des Esprits, pgs. 83-85.
4.
Lembremos que
aquilo que Allan Kardec chama de mundos são os diferentes planetas, que para
nós não passam de porções do mesmo mundo corporal.
5.
Le Livre des Esprits, pg. 79-80.
6.
Le Livre des Esprits, pg. 326-329.
7.
Le Livre des Esprits, pg. 336-337.
8.
Le Livre des Esprits, pg. 333-334.
9. Ver os primeiros capítulos de nosso Introduction générale à l’étude des
doctrines hindoues.
10.
Le Livre des Esprits, pg. 457.
11.
Après la mort,
pgs. 167-168.
12.
O autor cita,
como exemplos de médiuns “em relação com as altas personalidades do espaço” (sic), “as vestais romanas, as sibilas
gregas, as druidesas da ilha de Sein”... e Joana d’Arc!
13.
Après la mort,
pgs. 229-230.
14.
Le Livre des Esprits, pg. 18.
15.
L’Evolution animique, pgs. 102-103.
16.
L’Evolution animique, pgs. 107-108.
17.
L’Evolution animique, pgs. 113-115.
18.
L’Evolution animique, pgs. 117.
19.
Astronomie populaire, pgs. 380-381.
20.
Mlle. Marguerite
Wolff, de quem já falamos, assegurava que “Deus enganou-se ao criar o mundo,
porque era a primeira vez e faltava-lhe experiência”; e ela acrescentava que
“se ele tivesse que recomeçar, ele faria certamente melhor”!
21.
L’Etoile Millénaire, órgão do Presidente Brigham Young, 1852.
22.
Extrato de um
sermão de Joseph Smith, fundador do
Mormonismo.
23.
Le Fraterniste,
27 de março de 1914.
X
A QUESTÃO DO
SATANISMO
Não se pode falar do diabo sem provocar, da parte daqueles
que se acham mais “modernos”, ou seja da imensa maioria dos nossos contemporâneos,
sorrisos de desdém ou dar-de-ombros mais insolentes ainda; e existem pessoas
que, mesmo tendo algumas convicções religiosas, não deixam de tomar esta mesma
atitude, talvez por medo de parecerem “ultrapassadas”, talvez sinceramente.
Esses, de fato, estão obrigados a admitir em princípio a existência do demônio,
mas ficariam muito embaraçados em constatar sua ação efetiva; isto desarrumaria
o estreito círculo de idéias feitas dentro do qual eles costumam mover-se. Eis
um exemplo deste “positivismo prático” a que fizemos alusão precedentemente: as
concepções religiosas são uma coisa, a “vida ordinária” é outra, e, entre as
duas, cria-se uma trincheira tão estanque quanto possível; comporta-se, de
fato, como um verdadeiro incréu, ao menos quanto à lógica; mas, como poderia
ser diferente, em uma sociedade tão “esclarecida” e tão “tolerante” quanto a
nossa, sem ser tratado como “alucinado”? Sem dúvida, uma certa prudência é
sempre necessária, mas prudência não significa negação a priori e sem discernimento; entretanto, podemos dizer, a despeito
de certos meios católicos, que a lembrança de algumas mistificações famosas,
como as da Léo Taxil, tem a ver com esta negação: vai-se de um excesso ao
excesso contrário; se é uma astúcia do diabo fazer-se negar, devemos convir que
ele tem se dado bem. Se abordamos esta questão do satanismo com alguma
repugnância, não é por razões tais como essas, pois este tipo de ridículo, se é
que é, nos importa muito pouco, e nós temos tomado suficiente posição contra o
espírito moderno sob todas as suas formas para nos incomodarmos; mas não
podemos tratar do tema sem levantar coisas que seria melhor deixar na sombra;
no entanto, é preciso fazê-lo numa certa medida, pois um silêncio total sobre o
assunto poderia ser muito mal interpretado.
Não pensamos que os satanistas conscientes, vale dizer os
verdadeiros adoradores do diabo, tenham sido jamais muito numerosos; fala-se na
seita dos Yézidis, mas é um caso
excepcional, e que talvez não tenha sido bem interpretado; fora disto, só
encontramos fatos isolados, que são feiticeiros da mais baixa categoria, pois
não se deve pensar que todos os feiticeiros ou “magos negros” mais ou menos
caracterizados respondam igualmente por esta definição, e pode haver muitos
dentre eles que não acreditam absolutamente na existência do diabo. Por outro
lado. Existe também a questão dos Luciferianos: eles existiram, certamente,
independentemente dos relatos fantásticos de Léo Taxil e seu colaborador, o Dr.
Hacks, e talvez ainda existam, na América ou em outra parte; se eles
constituíram organizações, isto poderia parecer ir contra o que dissemos; mas
isso não quer dizer nada, pois, se pessoas invocam Lúcifer e lhe rendem culto,
não é por considerarem-no como o diabo, mas como o “portador da luz” (1), e já
ouvimos dizer que eles o chamam de “A Grande Inteligência Criadora”. São
satanistas de fato, sem dúvida, mas, por estranho que possa parecer, não são
satanistas conscientes, porque eles se enganam a respeito da natureza da
entidade à qual endereçam seu culto; e quanto ao satanismo inconsciente, em
graus diversos, este está longe de ser raro. A propósito dos Luciferianos,
devemos assinalar um erro curioso: já ouvimos a afirmação de que os primeiros
espíritas norte-americanos reconheciam estar
em relação com o diabo, a quem davam o nome de Lúcifer; na realidade, os
Luciferianos não podem de modo algum serem espíritas, porque o espiritismo
consiste essencialmente em crer na comunicação com os humanos “desencarnados”,
e nega expressamente a intervenção de outros seres que não estes na produção
dos fenômenos. Se acontece que Luciferianos utilizem procedimentos semelhantes
aos do espiritismo, eles não se tornam espíritas por isso; a coisa é possível,
mas o uso de procedimentos mágicos é mais de acordo. E se espíritas, por sua
vez, recebem uma “mensagem” assinada por Lúcifer ou Satã, eles não hesitam em
dizer que trata-se de um “espírito farsante”, pois eles fazem profissão de não
crer no demônio, e fazem esta negação com o máximo empenho; ao falarmos do diabo,
arriscamo-nos não apenas a causar entre eles o desdém, mas o furor, o que aliás
é um mau sinal. O que os Luciferianos tem em comum com os espíritas é que ambos
são intelectualmente limitados e igualmente fechados a qualquer verdade de
ordem metafísica; mas cada um é limitado de um jeito, e existe
incompatibilidade entre suas teorias; isto não quer dizer, naturalmente, que as
mesmas forças não possam estar em jogo nos dois casos, mas a idéia que se faz
dela de um lado e de outro é completamente diferente.
É inútil reproduzir as inumeráveis negativas dos
espíritas, assim como de ocultistas e teosofistas, relativamente à existência
do diabo; encheríamos todo um volume facilmente, que aliás seria muito pouco
variado e bastante sem interesse. Allan Kardec, como já vimos, ensina que os
“maus espíritos” aperfeiçoam-se progressivamente; para ele, anjos e demônios
são igualmente seres humanos, mas que se acham nas duas extremidades da “escala
espírita”; e ele acrescenta que Satã não passa da “personificação do mal sob
uma forma alegórica” (2). Os ocultistas, por sua vez, apelam para um simbolismo
que eles não compreendem bem e que acomodam à sua fantasia; ademais, eles
costumam assimilar os demônios aos “elementais” antes do que a “desencarnados”;
eles ao menos admitem seres que não sejam humanos, o que já é alguma coisa. Mas
eis uma opinião que sai um pouco do comum, não quanto ao fundo, mas quanto à
aparência de erudição da qual se reveste: trata-se de Charles Lancelin, de quem
já falamos; ele resume nestes termos o “resultado de suas pesquisas” sobre a
questão da existência do diabo, à qual ele aliás consagrou duas obras especiais
(3): “O diabo não passa de um fantasma e de um símbolo do mal. O Judaísmo
primitivo ignorou-o; ademais, o Jeová tirânico e sanguinário dos Judeus não
tinha necessidade deste artifício. A lenda da queda dos anjos encontra-se no
livro de Enoch, finalmente reconhecido como apócrifo e que foi escrito bem mais
tarde. Durante o cativeiro da Babilônia, o Judaísmo recebeu das religiões
orientais a impressão de divindades más, mas esta idéia permaneceu popular, sem
chegar a penetrar nos dogmas. E Lúcifer é aí a estrela da manhã, e Satã um
anjo, uma criança de Deus. Mais tarde, se o Cristo fala do Maligno e do
demônio, é por pura acomodação às idéias populares de seu tempo; mas, para ele,
o diabo não existia (...) No Cristianismo, o Jeová vindicativo dos Judeus
torna-se um Pai de bondade; a partir daí, as outras divindades são, perante
ele, divindades do mal. Ao se desenvolver, o Cristianismo entra em contato com
o Helenismo e recebe dele a concepção de Plutão e das Fúrias, e sobretudo do
Tártaro, que ele acomoda às suas próprias idéias introduzindo aí confusamente
todas as divindades más do paganismo greco-romano e das diversas religiões
contra as quais ele se levantou. Mas é na idade média que nasce verdadeiramente
o diabo. Neste período de convulsões incessantes, sem lei, sem freio, o clero
foi levado, para conter os poderosos, a fazer do diabo o guarda da sociedade;
ele retomou as idéias do Maligno e das divindades do mal, fundiu tudo na
personalidade do diabo e fez dele o espantalho dos reis e dos povos. Mas esta idéia, da qual ele era o representante,
lhe dava um poder incontestável; assim ele comprou rapidamente sua própria
mercadoria, e a partir daí o diabo existiu; no decurso dos tempos modernos, sua
personalidade afirmou-se e, no século XVII ele reinou como um mestre. Voltaire
e os enciclopedistas começaram a reação; a idéia do demônio declinou, e hoje em
dia muitos padres esclarecido não a vêem mais do que como um símbolo” (4). Não
é preciso dizer que os padres “esclarecidos” são sempre os modernistas, e o
espírito que os anima é estranhamente parecido ao que se afirma nestas linhas;
este modo mais do que fantasista de escrever a história é muito curioso, mas
não é pior do que o dos representantes oficiais da pretensa “ciência das
religiões”: ela inspira-se visivelmente nos métodos “críticos”, e os resultados
não são muito diferentes; é preciso ser muito ingênuo para levar a sério estas
pessoas que fazem os textos dizerem o que elas querem, e que sempre acham meios
de interpretá-los de acordo com seus próprios pré-julgamentos.
Mas voltemos ao que chamamos de satanismo inconsciente, e,
para evitar qualquer erro, diremos para começar que um satanismo deste tipo
pode ser puramente mental e teórico, sem implicar nenhuma tentativa de entrar
em relação com entidades quaisquer, de cuja existência, aliás, pode-se sequer
suspeitar. É neste sentido que podemos ver como satânica, numa certa medida,
toda teoria que desfigura sensivelmente a idéia de Divindade; e seria preciso
colocar aqui em primeiro lugar as concepções de um Deus que evolui e também as
de um Deus limitado; de resto, as primeiras são
um caso particular destas últimas, pois, para supor que um ser evolui, é
preciso evidentemente concebê-lo antes como limitado; dizemos um ser, porque
Deus, nestas condições, não é o Ser universal, mas um ser particular e
individual, e isto não pode ser sem um certo “pluralismo”, aonde o Ser, no
sentido metafísico, não tem lugar. Todo “imanentismo” submete, mais ou menos
abertamente, a Divindade ao porvir; isto pode não ser tão aparente nas formas
mais antigas, como o panteísmo de Spinoza, e talvez esta conseqüência mesma
tenha sido contrária às intenções deste (não existe sistema filosófico que não
contenha, ao menos em germe, alguma contradição interna); mas, em todo caso, é
muito claro a partir de Hegel, ou seja, em suma, depois que o evolucionismo fez
sua aparição, e, hoje em dia, as concepções dos modernistas são particularmente
significativas sob este aspecto. Quanto à idéia de um Deus limitado, ela tem
também, na época atual, muitos partidários declarados, seja em seitas como as
que mencionamos no fim do capítulo anterior (os Mórmons chegam a sustentar que
Deus é um ser corporal, a quem eles assinalam como residência um lugar
definido, um planeta imaginário chamado Colob),
seja em certas correntes do pensamento filosófico, do “personalismo” de
Renouvier até as concepções de William James, que o romancista Wells esforça-se
por popularizar (5). Renouvier negava o Infinito metafísico porque ele o
confundia com o pseudo-infinito matemático; para James a coisa é diferente, e
sua teoria tem seu ponto de partida num “moralismo” bem anglo-saxão: é mais
vantajoso, do ponto de vista sentimental, representar Deus como um indivíduo,
com qualidades (morais) iguais às
nossas; é assim uma concepção antropomórfica que deve ser tomada como
verdadeira, segundo a atitude “pragmática” que consiste essencialmente em
substituir a verdade pela utilidade (moral ou material); e de resto James,
conforme as tendências do espírito protestante, confunde a religião com a
simples religiosidade, o que equivale a dizer que ele só vê nela o elemento
sentimental. Mas existe algo mais grave ainda no caso de James, e é o que nos
fez sobretudo aplica a ele este termo de “satanismo inconsciente”, que, parece,
indignou vivamente alguns de seus seguidores, particularmente nos meios
protestantes cuja mentalidade é predisposta a receber tais concepções (6):
trata-se da sua teoria da “experiência religiosa” que o faz ver no
“subconsciente” o modo para o homem colocar-se em comunicação efetiva com o
Divino; daí a aprovar as práticas espíritas, a lhes conferir um caráter
eminentemente religioso, a considerar os médiuns como os instrumentos por
excelência dessa comunicação, convenhamos, não há mais do que um passo. Em meio
a elementos diversificados, o “subconsciente” contém incontestavelmente tudo o
que, na individualidade humana, constitui traços ou vestígios dos estados
inferiores do ser, e aquilo com que ele põe o homem em comunicação, no mais das
vezes, é tudo o que, no nosso mundo, representa estes mesmos estados
inferiores. Assim, pretender que se trata aí de uma comunicação com o Divino,
equivale na verdade a colocar Deus nos estados inferiores do ser, in inferis no sentido literal desta
expressão (7); trata-se assim de uma teoria propriamente “infernal”, uma
inversão da ordem universal, e é precisamente isto que denominamos “satanismo”;
mas, como é claro que isto não é proposital da parte dos que emitem e aceitam
tais teorias, nem eles se dão conta da enormidade de seu erro, só podemos falar
de satanismo inconsciente.
De resto, o satanismo, mesmo consciente, caracteriza-se
sempre por uma inversão da ordem normal: ele toma o contrário das doutrinas
ortodoxas, ele inverte certos símbolos ou algumas fórmulas; as práticas dos
feiticeiros não são, na maior parte dos casos, senão práticas religiosas
cumpridas ao revés. Haveriam coisas curiosas a serem ditas sobre a inversão dos
símbolos; não podemos tratar da questão no momento, mas podemos dizer que este
é um sinal que raramente engana; apenas, se a inversão for intencional ou não,
o satanismo será também consciente ou inconsciente (8). Assim, na seita “carmeliana”
fundada outrora por Vintras, o uso de uma cruz invertida é um sinal que aparece
à primeira vista como eminentemente suspeito; é verdade que este signo foi
interpretado como o indicador de que o reino do “Cristo doloroso” deveria a
partir de então ser substituído pela do “Cristo glorioso”; também é muito
possível que Vintras não tenha sido senão um satanista perfeitamente
inconsciente, a despeito de todos os fenômenos que aconteceram ao ser redor e
que provinham claramente da “mística diabólica”; mas talvez não se possa dizer
o mesmo de alguns de seus discípulos e de seus sucessores mais ou menos
legítimos; esta questão, de resto, demandaria um estudo especial, que
contribuiria para esclarecer uma quantidade de fenômenos “protonaturais”
constatados no decurso do século XIX. Seja como for, existe mais do que uma
nuance entre “pseudo-religião” e “contra-religião”, e é preciso cuidado para
evitar assimilações injustificadas; mas, de uma a outra, pode haver muitos
graus por onde a passagem se efetua quase insensivelmente e sem que se perceba;
este é um dos perigos que são inerentes a toda invasão, mesmo involuntária,
sobre o domínio propriamente religioso; quando se começa com isto, dificilmente
sabe-se aonde se irá parar, e é difícil parar antes que seja tarde.
Nossa explicação relativa ao caráter satânico de certas
concepções que não passam habitualmente por tais pede ainda um complemento que
achamos indispensável, porque muitas pessoas não sabem distinguir entre
domínios que são, entretanto, essencial e profundamente separados. Existe
naturalmente, no que dissemos, uma alusão à teoria dos estados múltiplos do
ser, e o que justifica a linguagem que empregamos é o seguinte: tudo o que é
dito teologicamente dos anjos e dos demônios pode ser dito também metafisicamente
dos estados superiores e inferiores do ser. Isto é bem claro, e existe aí uma
“chave”, como diriam os ocultistas; mas os arcanos que esta chave abre não
estão ao alcance destes. Este é um exemplo do que já dissemos (9), que toda
verdade teológica pode ser transposta em termos metafísicos, mas sem que a
recíproca seja válida, pois existem verdades metafísicas que não são
susceptíveis de tradução em termos teológicos. Por outro lado, não há aí mais
do que correspondência, não uma identidade, e nem mesmo uma equivalência; a
diferença de linguagem marca uma diferença real de pontos de vista, e, a partir
do momento em que as coisas não são vistas sob o mesmo aspecto, elas não provém
mais do mesmo domínio; a universalidade, que caracteriza a metafísica pura, não
se encontra na teologia. Aquilo que a metafísica tem a considerar, são as
possibilidades do ser, e de todo o ser, em todos os seus estados; bem
entendido, tanto nos estados superiores e inferiores, quanto no estado atual,
pode haver seres não humanos, ou, mais exatamente, seres cujas possibilidades
não incluam uma individualidade especificamente humana; mas isto, que parece
ser o que mais interessa ao teólogo, não importa para o metafísico, a quem
basta admitir que seja assim, desde que a coisa seja efetivamente possível, e
também porque nenhuma limitação arbitrária é compatível com a metafísica. De
resto, se o princípio de uma manifestação encontra-se num determinado estado,
pouco importa que, dentre dois seres que estejam neste mesmo estado, esta manifestação
deva ser reportada a tal ser antes do que a outro, e mesmo, a bem dizer, pode
suceder ser impossível reportá-la especificamente a qualquer ser determinado;
apenas o estado deve ser considerado, na medida em que percebamos, neste outro
estado onde estamos, qualquer coisa que será como que um reflexo ou um vestígio
seu, conforme se trate de um estado superior ou inferior em relação ao nosso. É
importante insistir sobre este ponto, que uma tal manifestação, qualquer que
seja sua natureza, só traduz indiretamente o que pertence a outro estado; é por
isso que dizemos que ela tem ali seu princípio e não sua causa imediata. Estas
observações permitem compreender o que dissemos a propósito das “influências
errantes”, das quais algumas podem ser consideradas verdadeiramente “satânicas”
ou “demoníacas”, quer as vejamos como forças puras e simples, quer como modos
de ação de certos seres propriamente ditos (11); tanto um como outro são
possíveis conforme o caso, e devemos deixar o campo aberto a todas as possibilidades;
de resto, isto não muda em nada a natureza intrínseca das influências em
questão. Poder-se-á avaliar por aí o quanto pretendemos permanecer fora de
qualquer discussão de ordem teológica; nós nos abstemos propositadamente de nos
colocarmos deste ponto de vista, o que não quer dizer que não reconheçamos a
sua legitimidade; e, mesmo que empreguemos alguns termos emprestados à
linguagem teológica, estaremos apenas tomando, baseados em correspondências
reais, os meios de expressão mais adequados para nos fazermos entender. Dito
isto para deixarmos claras as coisas e nos prevenirmos o possível das confusões
de pessoas ignorantes ou mal intencionadas, é verdade também que os teólogos
poderão, se quiserem, tirar partido para seu próprio ponto de vista das
considerações que iremos expor aqui; quanto aos outros, se tiverem medo das
palavras, bastará que continuem a chamar por outros nomes aquilo que, de nossa
parte, continuaremos a chamar de diabo ou demônio, porque não vemos nisto
nenhum inconveniente sério, e também porque seremos provavelmente melhor
compreendidos assim do que se quiséssemos introduzir uma terminologia
inusitada, que seria uma complicação perfeitamente inútil.
O diabo não é somente terrível, ele é freqüentemente
grotesco; cada qual entenda isto como quiser, segundo a idéia que tenha; e
aqueles que poderiam ficar chocados ou escandalizados com tal afirmação podem
reportar-se aos detalhes extravagantes que se encontram em todos os trabalhos
de feitiçaria, e fazer uma aproximação com todas essas manifestações ineptas
que os espíritas tem a inconsciência de atribuir aos “desencarnados”. Eis aqui
um trecho, entre milhares: “Lemos uma prece aos espíritos, e todos colocaram as
mãos sobre a mesa ou sobre a mesinha ao lado, e então fez-se a obscuridade
(...) A mesa oscilou um pouco, e Mathurin, desta forma, anunciou sua presença
(...) De súbito, um violento arranhar, como se um gancho de ferro arranhasse a
mesa sob nossas mãos, fez todos tremerem. Então começaram os fenômenos.
Violentos golpes foram aplicados ao
forro junto da janela, num lugar inacessível para nós, depois um dedo
materializado arranhou fortemente meu ante-braço; uma mão gelada veio
sucessivamente tocar minhas duas mãos. Esta mão tornou-se quente; ela
tamborilou sobre minha mão direita e tentou tirar meu anel, mas não chegou a
fazê-lo (...) Ela arrancou o punho da minha camisa e atirou-o sobre os joelhos
da pessoa que estava diante de mim; eu só o encontrei no final da sessão. Meu
pulso foi seguro entre o polegar e o dedo indicador da mão invisível; minha
jaqueta foi puxada por baixo, e começaram a tamborilar sobre minha coxa
direita. Um dedo introduziu-se sob minha mão direita que repousava inteira
sobre a mesa, e encontrou meio, não sei como, de arranhar a palma (...) A cada
ação sua, Mathurin, que parecia encantado consigo mesmo, fez a mesa executar,
contra nossas mãos, uma série de giros. Diversas vezes, ele pedia canções; ele
explicava, através de golpes vibrados, os trechos preferidos, que cantávamos
(...) Um açucareiro, uma garrafa d’água, um copo, uma garrafa de rum e uma
pequena colher, haviam sido colocados, antes da sessão, na sala de jantar,
perto da janela. Nós ouvimos perfeitamente a entidade aproximar-se daí, colocar
água e rum no copo, e abrir o açucareiro. Antes de colocar o açúcar na bebida
em preparo, a entidade tomou dois pedaços produzindo curiosas fagulhas, e veio
esfregá-los no meio de nós. Depois retornou à bebida após ter jogado os pedaços
de açúcar sobre a mesa, e mexeu no açucareiro para colocar açúcar no copo. Ouvimos
girar a colherinha, e pequenos golpes anunciaram que era-me oferecido beber.
Para aumentar a dificuldade, eu voltei o rosto, de modo que Mathurin, que
procurava minha boca, encontrou minha orelha. Mas o copo acabou encontrando
minha boca sem hesitação, e a bebida foi despejada de modo brusco, mas
impecável, pois nem uma gota se perdeu (...) Tais são os fatos que, há mais de
quinze anos, repetem-se todos os sábados, apenas com algumas variações...”
(12). É difícil imaginar qualquer coisa mais pueril; para acreditar que os
mortos retornam para se dedicar a estas criancices, é preciso certamente mais
do que só ingenuidade; e que pensar desta “prece aos espíritos” com a qual se
abre a sessão? Este caráter grotesco é evidentemente a marca de algo de uma ordem
muito inferior; mesmo que a fonte esteja no ser humano (e compreendemos aí
todas as “entidades” formadas artificialmente e mais ou menos persistentes),
isto provém certamente das mais baixas regiões do “subconsciente”; e todo o
espiritismo, incluindo práticas e teorias, está, em um grau mais ou menos
acentuado, repleto deste caráter. Não fazemos exceção para o que há de mais
“elevado”, no entender dos espíritas, nas “comunicações” que eles recebem:
aquelas que tem a pretensão d expor idéias são ou absurdas, ou ininteligíveis,
ou de uma banalidade tal que somente pessoas incultas não percebem; quanto ao
resto, é de uma sentimentalidade a mais ridícula. Certamente, não é preciso a
intervenção do diabo para explicar semelhantes produções, que estão bem à altura
do “subconsciente” humano; se ele consentisse em se meter nisso, ele não teria
dificuldade em fazer melhor. Diz-se mesmo que o diabo, quando quer, é muito bom
teólogo; mas é verdade também, que ele nunca pode impedir-se de deixar escapar
alguma bobagem, que é como sua assinatura; mas acrescentaremos que só existe um
domínio que lhe é rigorosamente interdito, e este é o da metafísica pura; não
cabe aqui indicar as razões, mas aqueles que compreenderam as explicações
precedentes podem adivinhá-las sem dificuldade. Mas voltemos às divagações do
“subconsciente”: basta que existam nele alguns elementos “demoníacos”, no
sentido que demos, e que ele seja capaz de colocar o homem em relação
involuntária com elementos que, mesmo não sendo mais do que forças inconscientes
em si mesmos, não deixem de ser “demoníacos” eles também; basta isso, para que
o mesmo caráter exprima-se em algumas das “comunicações” de que se trata. Estas
“comunicações” não são forçosamente daquelas que, como ocorre muito, se
destacam pela grosseria da linguagem; acontecem serem elas também as que os
espíritas mais admiram. Existem, a respeito, algumas marcas que são difíceis de
distinguir à primeira vista; também aí, pode tratar-se de uma simples
assinatura, por assim dizer, constituída pelo próprio tom do conjunto, ou por
alguma fórmula especial, ou por uma certa fraseologia; e alguns destes termos e
destas fórmulas, com efeito, acham-se um pouco em toda parte, ultrapassando a
atmosfera de tal ou tal grupo em particular, e que parecem impostas por uma
vontade que exerce uma ação mais geral. Apenas constatamos, sem tirar uma
conclusão mais precisa; preferimos deixar falar, com a ilusão de que isto
confirma a sua tese, os partidários da “terceira mística”, desta “mística
humana” imaginada pelo [protestante mal converso que foi Goerres (queremos
dizer que sua mentalidade permaneceu protestante e “racionalista” de muitos
modos); quanto a nós, se quiséssemos colocar a questão em termos teológicos,
ela não se colocaria deste modo, a partir do momento em que se trata de
elementos que são propriamente “infra-humanos”, portanto representativos de
outros estados, mesmo que estejam incluídos no ser humano; mas não é esta
tarefa nossa.
As coisas a que aludimos acham-se sobretudo nas
“comunicações” que tem um caráter especificamente moral, e que são aliás as
mais numerosas; muitas pessoas irão se indignar por fazermos intervir aí o
diabo, por indiretamente que seja, e que pensemos que ele possa pregar a moral;
este é aliás o argumento que os espíritas colocam contra seus adversários que
sustentam a teoria “demoníaca”. Eis, por exemplo, os termos em que se expressou
um espírita que é ao mesmo tempo pastor protestante, e cujas palavras, em razão
de sua dupla qualidade, merecem um pouco de atenção: “É dito nas Igrejas: os
espíritos que se manifestam são demônios, e é perigoso colocar-se em
comunicação com o diabo. Quanto ao diabo, não tenho a honra de conhecê-lo (sic); mas, enfim, suponhamos que ele
exista: o que eu sei dele, é que ele tem uma reputação muito bem estabelecida,
a de ser muito inteligente, muito manhoso, e ao mesmo tempo de não ser um
personagem essencialmente bom e caridoso. Ora, se as comunicações nos vêm do
diabo, como é possível que, muitas vezes, elas tenham um caráter tão elevado,
tão bom, tão sublime que poderiam muito bem figurar nas catedrais e nas
prédicas dos oradores religiosos mais eloqüentes? Como é possível que o diabo,
que é tão malvado e tão inteligente, se aplique em tais circunstâncias a
fornecer àqueles que se comunicam com ele os conselhos mais consoladores e mais
moralizantes? Assim portanto eu não posso crer que eu esteja em comunicação com
o diabo” (13). Este argumento não nos causa nenhuma impressão, em primeiro
lugar porque, se o diabo pode ser teólogo quando lhe é vantajoso, ele pode
também, a fortiori, ser moralista,
coisa que não demanda tanta inteligência; podemos mesmo admitir que este seja
um disfarce que ele toma para melhor enganar os homens e fazê-los aceitar suas
falsas doutrinas. Ademais, estas coisas “consoladoras” e “moralizantes” são
precisamente, aos nossos olhos, da ordem mais inferior, e é preciso estar cego
por certos preconceitos para achá-las “elevadas” e “sublimes”; colocar a moral
acima de tudo, como o fazem os protestantes e os espíritas, é também inverter a
ordem normal das coisas; isto também é diabólico portanto, sem que signifique
que todos os que pensam assim estejam por isto em comunicação efetiva com o
diabo.
A este propósito, existe ainda uma observação a fazer: é
que os meios aonde se prega a moral por quaisquer circunstâncias são muitas
vezes os mais imorais na prática; como quer que expliquemos isto, é um fato;
para nós, a explicação é bastante simples, pois tudo o que diz respeito a este
domínio coloca em jogo aquilo que há de mais baixo na natureza humana; não é à
toa que as noções morais de bem e de mal são inseparáveis e só podem existir
enquanto oposição. Mas que os admiradores da moral que não tenham sido cegados
por algum preconceito incurável, vejam ao menos se não há, nos meios espíritas,
muitas coisas que podem alimentar esta indignação que eles manifestam tão
facilmente; a crer em pessoas que freqüentaram estes meios, existem aí
profundezas bastante impróprias. Respondendo aos ataques surgidos em diversos
órgãos espíritas (14), F.-K. Gaboriou, então diretor da Lotus (e que deixaria a Sociedade Teosófica pouco depois) escrevia
o seguinte: “As obras espíritas ensinam e provocam fatalmente a passividade, ou
seja a cegueira, o enfraquecimento moral e físico das pobres pessoas a quem
elas destroem o sistema nervoso e psíquico nas sessões aonde todas as paixões
baixas e grotescas ganham corpo (...) Nós poderíamos por vingança, se a
vingança fosse admitida em teosofia, publicar uma série de artigos sobre o
espiritismo, fazendo desfilar na Lotus
todas as histórias grotescas e odiosas que conhecemos (não esquecer que nós, os
fenomenalistas, estivemos quase todos na casa), mostrar todos os médiuns
célebres pegos com a mão na massa (o que lhes retira a santidade mas não a
autenticidade), analisar cruelmente as publicações de Bérels (15), e elas são
em legião, dizer, explicando-o, tudo o que há no livro de Hucher, La Spirite, voltar às histórias do
submundo do espiritismo, copiar das revistas espíritas americanas os anúncios
espíritas de casas de prostituição, contar em detalhes os horrores de toda
espécie que se passaram e se passam ainda nas obscuras sessões de
materializações na América, na Inglaterra, na Índia e na França, em uma
palavra, fazer uma obra de limpeza útil. Mas preferimos nos abster e não
colocar em confusão maior espíritos já suficientemente perturbados” (16). Eis
aí, malgrado esta reserva, um testemunho bastante claro e do qual não se pode
suspeitar: trata-se de um “neo-espiritualista” que, tendo passado pelo
espiritismo, está bem informado. Temos outros relatos do gênero, e mais recentes, como o de
Jollivet-Castelot, um ocultista que se ocupou sobretudo de alquimia, mas também
de psiquismo, e que depois de muitos anos aliás separou-se da escola papusiana
a que pertencia inicialmente. Aconteceu no momento em que fazia um certo
barulho, na imprensa, em torno das fraudes incontestáveis que haviam sido
descobertas nas experiências de materializações que Juliette Alexandre-Bisson,
viúva do célebre empresário de vaudeville,
e o Doutor Von Schrenck-Notzing efetuaram com um médium designado apenas pelo
misterioso nome de Eva C...; Jollivet-Castelot levantou contra si a fúria dos
espíritas dando a conhecer, numa carta que foi publicada pelo Matin, que esta Eva C..., ou Carrière,
que também se chamava Rose Dupont, não era outra senão Marthe Béraud, que já
havia enganado o Dr. Richet na villa
Carmen, em Alger (e é a mesma pessoa que outros sábios oficiais querem hoje
submeter a experimentos num laboratório da Sorbonne) (17). Chevreuil, em
particular, cobriu de injúrias Jollivet-Castelot (18), que, levado ao limite,
revelou de modo brutal os males inconfessáveis de certos meios espíritas, “o
sadismo que se mistura com a fraude, a credulidade, a estupidez insondável,
entre muitos médiuns... e experimentadores”; ele chegou a empregar termos por
demais crus para que os reproduzamos, e citaremos apenas estas linhas: “É certo
que a fonte é muitas vezes impura. Estes médiuns nus, estes exames de pequenos
“segredos”, estes toques minuciosos de fantasmas materializados, traduzem mais
o erotismo do que um milagre do espiritismo e psiquismo. Eu tinha a idéia de
que, se os espíritos retornassem, eles seriam tomados de outra maneira!” (19).
Contra isto, Chevreuil escreveu: “Eu não quero mais pronunciar o nome do autor
que Psicotizado pelo Ódio (sic),
acaba de afogar-se na imundície ; seu nome não existe mais para nós” (20). Mas
esta indignação, antes cômica, não poderia servir de refutação; as acusações
permaneceram inteiras, e temos boas razões para crer que eram fundamentadas.
Por este tempo, discutia-se, entre os espíritas, sobre a questão de saber se as
crianças deveriam ser admitidas nas sessões: parece que, no Fraternismo, elas
são excluídas das sessões em que se fazem experimentos, mas que, em compensação,
foram instituídos para elas “cursos de bondade” (sic) (21). Por outro lado, numa
conferência feita diante da “Societé
française d’études des phénomènes psychiques”, Paul Bodier declarava
claramente que “nada poderia ser mais nocivo do que fazer as crianças
assistirem às sessões experimentais que se fazem por toda parte”, e que “o
espiritismo experimental não deve ser abordado antes da adolescência (22). Os
espíritas mais razoáveis temem assim a influência nefasta que suas práticas não
podem deixar de exercer sobre o espírito das crianças; mas este temor não
consiste numa verdadeira condenação destas práticas, cujos efeitos sobre os
adultos não são menos deploráveis? Os espíritas, de fato, insistem sempre para
que o estudo dos fenômenos, assim como a teoria pela qual eles se explicam,
esteja ao alcance de todos indistintamente; nada é mais contrário ao seu
pensamento do que considerá-los como reservados a uma certa elite, que talvez
pudesse estar melhor munida contra os seus perigos. Por outro lado, a exclusão
das crianças, que pode espantar aqueles que conhecem as tendências
propagandísticas dos espíritas, só se explica quando nos lembramos de todas
estas coisas mais do que duvidosas que se passam em certas sessões, e sobre as
quais trouxemos testemunhos inegáveis.
Uma outra questão que lançaria uma estranha luz sobre os
males de certos meios espíritas e ocultistas, e que de resto liga-se mais
diretamente à questão do satanismo, é sobre os íncubos e súcubos, a que
aludimos quando falamos de uma pesquisa na qual se faziam, de maneira inesperada, perguntas sobre o
“sexo dos espíritos”. Ao publicar a resposta de Ernest Bosc a respeito, a
redação do Fraterniste acrescentou em
nota: “O Sr. Legrand, do Instituto no. 4 de Amiens (é a denominação de um
agrupamento “fraternista”), nos contou, no início do presente março, o caso de
uma jovem virgem de dezoito anos que, desde a idade de doze anos, sofria todas
as noites as paixões de um íncubo. Confidências circunstanciais e detalhadas,
estarrecedoras, lhe foram feitas” (23). Não é mencionado, infelizmente, se esta
jovem havia, contrariamente à regra, freqüentado sessões espíritas; em todo
caso, ela se achava evidentemente em um meio favorável a tais manifestações;
não julgaremos se foi loucura ou alucinação, ou se é preciso ver aí outra
coisa. Mas não se trata de um caso isolado: Ernest Bosc, apesar de afirmar com
razão que não se trata aí de “desencarnados”, assegurava que “viúvas, assim
como mocinhas, haviam feito confidências absolutamente impressionantes” a ele
também; mas ele acrescentava prudentemente: “Mas nós não poderíamos falar disto
aqui, porque se trata de um verdadeiro segredo esotérico incomunicável”. Esta
última afirmação é simplesmente monstruosa: os segredos verdadeiramente
incomunicáveis, aqueles que merecem ser chamados de “mistérios” no sentido
próprio do termo, são de natureza totalmente diferente, e eles só são o que
são, porque nenhuma palavra consegue expressá-los; e o verdadeiro esoterismo
não tem nada a ver com estas coisas suspeitas (24). Existem outros ocultistas
que, a respeito, estão longe de ser tão reservados como o Sr. Bosc, pois
conhecemos um que chegou a publicar, sob a forma de uma brochura, um “método
prático para íncubos e súcubos”, onde nada se ultrapassa o campo da
auto-sugestão pura e simples; não insistiremos nisto, mas, se possíveis
contraditores quiserem pedir detalhes a nós, prevenimo-los caridosamente que
irão se arrepender; sabemos muita coisa sobre certos personagens que se passam
hoje por “grandes mestres” de certas organizações pseudo-iniciáticas, e que
fariam melhor permanecendo na sombra. Assuntos desta ordem não são daqueles
sobre os quais gostamos de nos estender, mas não podemos deixar de constatar
que existem pessoas que tem a necessidade malsã de misturar essas coisas aos
estudos ocultistas e pretensamente místicos; convém dizê-lo, nem que seja só
para dar a conhecer a mentalidade delas. Naturalmente, não se deve generalizar,
mas estes casos são por demais numerosos nos meios “neo-espiritualistas” para
que tudo seja puramente acidental; é mais um perigo a assinalar, e parece mesmo
que estes meios são propícios a produzir toda série de loucuras; mesmo quando
não se trate de mais do que isto, parecerá que o epíteto de “satânico”, tomado
no sentido figurado se o quisermos, é muito forte para caracterizar algo tão
perverso?
Existe ainda um outro caso, especialmente grave, a
respeito do qual é preciso dizer algumas palavras: em 1912, o cavaleiro Le
Clément de Saint Marcq, então presidente da Federação Espírita Belga e do “Bureau International du Spiritisme”,
publicou, sob pretexto de “estudo histórico”, uma ignóbil brochura intitulada L‘Eucharistie, que ele dedicou a
Emmanuel Vauchez, antigo colaborador de Jean Macé na “Ligue
française de l’Enseignement”. Numa carta que foi inserida à frente desta
brochura, Emmanuel Vauchez afirmava, “da parte de espíritos superiores”, que
“Jesus não era aquilo que os clericais querem fazer parecer”; podemos julgar
por aí a mentalidade destas pessoas que, além de espíritas eminentes, são também
os dirigentes de associações de livre-pensar. O panfleto foi distribuído
gratuitamente, a título de propaganda, em milhares de exemplares; o autor
atribuía ao clero católico, e mesmo a todos os cleros, práticas cuja natureza é
impossível de precisar, e que aliás ele não pretendia condenar, mas nas quais
ele via um segredo da mais alta importância do ponto de vista religioso e mesmo
político; pode parecer inverossímil, mas é verdade. O escândalo foi grande na
Bélgica (25); muitos espíritas ficaram indignados, e vários grupos deixaram a
Federação; foi pedida a demissão do presidente, mas o comitê declarou-se
solidário com ele. Em 1913, Le Clément de Saint-Marcq empreendeu uma turnê de
conferências por diversos centros para explicar seu pensamento, mas isto só fez
envenenar ainda mais as coisas; a questão foi submetida ao Congresso espírita
internacional de Genebra, que condenou formalmente a brochura e seu autor (26).
Este teve que demitir-se, e, com alguns seguidores, formou uma nova seita
denominada “Sincerismo”, cujo programa foi formulado nestes termos: “A
verdadeira moral é a arte de apaziguar conflitos: paz religiosa, pela
divulgação dos mistérios e atenuação do caráter dogmático do ensinamento das
Igrejas; paz internacional, pela união federativa de todas as nações
civilizadas do mundo numa monarquia eletiva; paz industrial, pela divisão das
empreitas entre o capital, o trabalho e os poderes públicos; paz social, pela
renúncia ao luxo e a aplicação do excedente às obras de benfeitorias; paz
individual, pela proteção à maternidade e a repressão a qualquer manifestação
de inveja” (27). A brochura L’Eucharistie
já deixava ver em que sentido o autor entendia a “divulgação dos mistérios”;
quanto ao último artigo do programa, ele foi escrito em termos propositadamente
equívocos, mas que se pode compreender sem dificuldade se nos lembrarmos das
teorias dos partidários da “união livre”.
Foi no “Fraternismo” que Saint-Marcq encontrou seus mais ardentes
defensores; sem ousar chegar a aprovar suas idéias, um dos chefes desta seita,
Paul Pillault, advogou-lhe a inocência e encontrou esta desculpa: “Devo
declarar que, sendo psicosista, não acredito na responsabilidade do Sr. Le
Clément de Saint Marcq, instrumento acessível a diversas psicoses como todo ser
humano. Influenciado, ele teve que escrever esta brochura e publicá-la; não é
na parte visível e tangível que se deve buscar a causa, que se deve encontrar a
ação produtora do conteúdo da brochura incriminada” (28). É preciso dizer que o
“Fraternismo”, que no fundo não passa de um espiritismo com tendências
protestantes, dá à sua doutrina o nome de “psicosia” ou de “filosofia
psicósica”; as “psicoses” são as “influências invisíveis” (usa-se também o
termo “influencismo”), das quais existem as boas e as más, e todas as sessões
começam por uma invocação à “Boa Psicose” (29); esta teoria foi levada tão
longe que chegou, de fato, a suprimir quase que por completo o livre arbítrio
do homem. É certo que a liberdade de um ser é coisa relativa e limitada, como
este próprio ser o é, mas não se deve exagerar; nós admitimos de bom grado,
numa certa medida, e especialmente nos casos de que se trata, a ação de
influências que podem ser de muitas espécies, e que, de resto, não são aquilo
que pensam os espíritos; mas enfim Saint-Marq não é médium, que se saiba, para
que tenha desempenhado um papel puramente passivo e inconsciente. De resto,
como vimos, nem todos, mesmo dentre os espíritas, o perdoaram tão facilmente;
de seu lado, os teosofistas belgas, diga-se em sua honra, foram os primeiros a
lançar veementes contestações; infelizmente, esta atitude não era de todo
desinteressada, porque tudo isto de passava na época dos escandalosos protestos
de Madras (30), e Saint-Marcq achou de invocar, como apoio à sua tese, as teorias que eram reprovadas em
Leadbeater; era preciso portanto repudiar uma solidariedade tão comprometedora.
Ao contrário, um outro teosofista, Theodor Reuss, Grande Mestre da “Ordem dos
Templários Orientais” escreveu a Saint-Marcq estas significativas linhas
(reproduzimos escrupulosamente seu jargão): “Eu vos envio duas brochuras: Oriflammes (31), onde vereis na Ordem
dos Templários Orientais o mesmo conhecimento que encontramos na brochura L’Eucharistie”. Na Oriflamme, de fato, encontramos o seguinte, publicado em 1912, e que
esclarece a questão: “Nossa Ordem possui a chave que abre todos os mistérios
maçônicos e herméticos: é a doutrina da Magia sexual, e esta doutrina explica,
sem deixar nada obscuro, todos os enigmas da natureza, toda a simbólica
maçônica, todos os sistemas religiosos”. Devemos dizer, a propósito, que
Saint-Marcq é um alto dignitário da Maçonaria belga; e um de seus compatriotas,
Herman Boulenger, escreveu num órgão católico: “Estará a Maçonaria tão emuée a ponto de possuir em seu seio um exegeta tão
extraordinário? Eu não sei. Mas como ele declara que sua doutrina é também o
segredo da seita (e, por minha fé, se eu não conhecesse seus métodos de
documentação, eu pensaria que ele está muito bem colocado para sabê-lo), sua
presença aí torna-se terrivelmente comprometedora, sobretudo para aqueles de
seus membros que se levantaram publicamente contra tais aberrações” (32). Não é
preciso dizer que não existe nada de fundamentado nas pretensões de Saint-Marcq
e de Theodor Reuss; é incrível que alguns escritores católicos tenham aceitado
uma tese análoga à sua, seja quanto à Maçonaria, seja quanto aos mistérios
antigos, sem se aperceber que assim eles só enfraqueciam sua posição (assim
como quando aceitam a identificação fantasista da magia com o espiritismo); não
se deve ver aí mais do que as divagações de alguns espíritos doentes, e talvez
mais ou menos “psicosados”, como dizem os “Fraternistas”, ou obcecados, como se
diz mais simplesmente. Falou-se dos “métodos de documentação” de Saint-Marcq;
estes métodos, onde fica patente a pior má fé, valeram-lhe inúmeros desmentidos
da parte daqueles a quem ele recorria impudentemente. É assim que ele assumiu a
adesão de um “sacerdote católico ainda em exercício”, citando uma frase que ele
retirou do contexto, de modo a dar-lhe uma acepção totalmente diferente da que
tinha, e chamava a isto “uma confirmação formidável” (33); o sacerdote em
questão, que era o abade J.-A. Petit, de quem já falamos, apressou-se em
retificá-lo nestes termos: “A frase é a seguinte: “Sua tese repousa sobre uma
verdade primordial que foi você o primeiro, que eu tenha conhecimento, a
mostrar ao grande público”. Assim apresentada, a frase parece aprovar a tese
sustentada por Saint-Marcq. É essencial que desapareça todo equívoco. Qual é
esta verdade primordial? Os católicos pretendem que, na Eucaristia, é o próprio
corpo do Cristo, nascido da Virgem Maria e crucificado, que é apresentado sob
as aparências do pão e do vinho. Saint-Marcq diz que não, é a meu ver ele tem
razão. O Cristo não poderia aí colocar seu corpo, sobretudo crucificado, porque
a instituição do sacramento precedeu a crucificação. O Cristo está presente na
Eucaristia pelo princípio vital encarnado na Virgem: é isto o que Saint-Marcq
foi o primeiro, que eu tenha conhecimento, a mostrar ao grande público, e é
isto que eu chamo de “uma verdade primordial”. Sobre este ponto, estamos de
acordo, mas aí termina a coincidência de idéias. Saint-Marcq faz intervir aí um
elemento humano, e eu um elemento espiritual, com todo o alcance que São Paulo
dá ao termo (34), de modo que somos os antípodas um do outro (...) Eu sou seu
adversário declarado, como o testemunha a refutação que fiz de sua pequena
brochura” (35). As interpretações pessoais do abade Petit, no caso, não nos
parecem menos heterodoxas do que quando ele pretende que a “ressurreição da
carne” signifique a reencarnação; e estará ele totalmente de boa fé ao
introduzir o termo “crucificado”, como ele o faz, a propósito do corpo do
Cristo presente na Eucaristia? Em todo caso, ele mostra muita boa vontade ao se
declarar de acordo, mesmo sobre um ponto particular, com Clément Saint-Marcq,
para quem Jesus não passa de um homem; mas sua resposta não deixa de ser um
desmentido formal. Por outro lado, o Sr. Ladeuze, reitor da Universidade de
Louvain, endereçou à Revue Spirite Belge,
em 19 de abril de 1913, a seguinte carta: “Tive conhecimento do número de 1 de
março de 1913 desta revista, onde é feita alusão a uma passagem da brochura
L’Eucharistie lançada por Le Clément de Saint-Marcq, no qual este cita uma de
minhas obras para provar a existência de práticas imundas que constituiriam o
sacramento eucarístico. Não me rebaixarei a discutir com o Sr. Saint-Marcq
sobre assunto tão ignóbil; apenas peço aos leitores desta revista que, para
interpretar meu texto como ele o fez, é preciso estar de má fé ou ignorar a
língua latina a ponto de não compreender nada. O autor me faz dizer (Escolho
este exemplo porque é possível falar dele sem se
sujar, pois o autor não introduz aqui em minhas palavras a teoria nauseabunda
em questão): “A mentira não pode jamais ser permitida, a não ser para evitar maiores males temporais”. O que eu disse
nesta passagem, na realidade, foi o seguinte: A mentira não pode jamais ser
permitida, mesmo que seja para evitar
maiores males temporais”. Eis o texto em latim: Dicendum est illud nunquam, ne ad maxima quidem temporalia mala
vitanda, fieri pose licitum. Um aluno de quarto ano de latim não poderia
enganar-se sobre o sentido do texto. Depois disto, a denominação de
“Sincerismo” chega a parecer irônica, e poderemos deixar por aí esta que Herman
Boulenger chamou de “uma história escabrosa onde o leitor que conheça um pouco
de teologia mística poderá reconhecer, no que lhe foi revelado, as
características tradicionais da ação diabólica” (35) Acrescentaremos apenas que
o barulho surgido no espiritismo belga nesta ocasião foi de curta duração: em
26 de abril de 1914 aconteceu, em Bruxelas, a inauguração da “Maison des
Spirites”; a “Liga Kardecista” e a “Federação Sincerista” foram ambas convidadas;
dois discursos foram pronunciados: o primeiro pelo Sr. Franklin, o novo
presidente da “Federação Espírita”, e o segundo por Le Clément de Saint-Marcq;
operava-se assim a reconciliação (36).
Quisemos apenas trazer aqui alguns fatos, que cada um julgará
como quiser; os teólogos provavelmente verão aí mais do que os simples
“moralistas”. Quanto a nós, não que remos empurrar as coisas ao seu limite, e
não é a nós que cabe colocar a questão de uma ação direta e “pessoal” de Satã;
mas pouco nos importa, pois, quando falamos de “satanismo”, não é
necessariamente assim que o entendemos. No fundo, as questões de
“personificação”, se podemos nos
expressar assim, são perfeitamente indiferentes de nosso ponto de vista; o que
queremos dizer é na realidade independente tanto desta interpretação particular
quanto de qualquer outra, e não queremos excluir nenhuma, bastando para isso
que ela corresponda a uma possibilidade. Em todo caso, o que vemos em tudo
isso, e mais genericamente no espiritismo e outros movimentos análogos, são
incontestavelmente as influências que provém daquilo que alguns chamam de a
“esfera do Anti-Cristo”; esta designação pode sempre ser vista simbolicamente,
mas isto não muda em nada a realidade nem torna estas influências menos
nefastas. Certamente, aqueles que participam destes movimentos, bem como
aqueles que acreditam dirigi-los, podem nada saber dessas coisas; este é o
maior perigo, pois a maior parte deles, certamente, afastar-se-ia com horror se
se dessem conta de estarem sendo servidores das “potências das trevas”; mas sua
cegueira é muitas vezes irremediável, e sua própria boa fé contribui para
atrair novas vítimas; isto não nos autoriza a dizer que a maior habilidade do
diabo, seja como for que o concebamos, é de fazer negar sua própria existência?
NOTAS
1. Mme. Blavatsky, que deu este
nome de Lucifer a uma revista que ela
fundara na Inglaterra perto do fim de sua vida, afetava tê-lo tomado igualmente
no sentido etimológico de “portador da luz”, ou, como ela dizia, “portador da
chama da verdade”; mas ela não via nisto mais do que um puro símbolo, enquanto
que, para os Luciferianos, trata-se de um ser real.
2. Le Livre des Esprits, pgs. 54-56. – Sobre Satã e o Inferno, cf. Léon
Denis, Christianisme et Spiritisme,
pgs. 103-108; Dans l’Invisible, pgs.
395-405.
3.
Histoire mythique de Shatan e Le Ternaire magique de Shatan.
4. Le Monde Psychique, fevereiro de 1912.
5. Dieu, l’Invisible Roi.
6. Fomos acusados ainda, do
mesmo lado, daquilo que chamaram de “preconceito anti-protestante”; nossa
atitude a respeito é em realidade o contrário de um preconceito, pois chegamos
aí de modo perfeitamente refletido, e como conclusão das muitas considerações
que já indicamos em diversas passagens de nossa Introduction générale à l’étude des doctrines hindoues.
7. O oposto é in excelsis, nos estados superiores do
ser, que são representados pelos céus, assim como a terra representa o estado
humano.
8. Algumas pessoas pretenderam
ver símbolos invertidos na figura do “cepo de vinha desenhado pelos espíritos”
que Allan Kardec colocou, sob suas ordens, na capa do Livre des Esprits; a disposição dos detalhes é de fato bastante
estranha para dar lugar a tal suposição, mas não há clareza suficiente para que
nos detenhamos na análise, e assinalamos isto aqui apenas para documentar.
9. Na feitiçaria, a
“contra-religião” intencional vem sobrepor-se à magia, mas ela deve sempre ser
distinta desta, que, mesmo quando é da ordem mais inferior, nunca tem este
caráter por si só; não existe nenhuma relação direta entre os domínios da magia
e da religião.
10. Introduction générale à l’étude des doctrines hindoues, pgs. 112-115.
11. Diversos ocultistas
pretendem que aquilo que nos aparece como forças, são em realidade seres
individuais, mais ou menos comparáveis aos seres humanos; esta concepção
antropomórfica é, na maior parte dos casos, exatamente o contrário da verdade.
12. Le Fraterniste, 26 de Dezembro de 1913 (artigo de Eugène Philippe, advogado da Corte
de Apelação de Paris, vice-presidente da Société
française d’études des phénòmenes psychiques). – O relato de uma sessão
parecida, com os mesmos médiuns (Mme. e Mlle. Vallée) e a mesma “entidade” (que aí é mesmo
qualificada de “guia espiritual”), foi dado em L’Initiation, outubro de 1911.
13. Discurso do pastor Alfred
Bénézech no Congresso Espírita de Genebra, em 1913.
14. Notadamente na Revue Spirite de 17 de setembro de 1887.
15. Trata-se de um médium
chamado Jules-Edouard Bérel, que se intitulava modestamente “secretário de
Deus”, e que acabava de publicar um volume repleto das piores extravagâncias. –
Um outro caso patológico análogo, embora fora do espiritismo propriamente dito,
é o de um certo Paul Auvard, que escreveu “sob o ditado de Deus”, um livro
intitulado Le Saint Dictamen, no qual
há de tudo, menos coisas sensatas.
16. Le Lotus, outubro de 1887.
17. Estas experiências,
encerradas depois que isto havia sido escrito, tiveram um resultado
inteiramente negativo; devemos acreditar que desta vez foram tomadas precauções
mais eficazes.
18. Le Fraterniste, 9 de janeiro, 1 e 6 de fevereiro de 1914.
19. Les Nouveaux Horizons de la Science et de la Pensée, fevereiro de 1914, pg. 87.
20. Le Fraterniste, 13 de fevereiro de 1914.
21. Le Fraterniste, 12 de dezembro de 1913.
22. Revue Spirite, março de 1914, pg. 178.
23. Le Fraterniste, 13 de março de 1914.
24. Deve-se mencionar também
certos casos de “vampirismo” que provém da mais baixa feitiçaria; mesmo sem a
intervenção de nenhuma força extra-humana, nada disso vale nada.
25. Existem neste país outras
coisas verdadeiramente extraordinárias neste gênero, como as histórias do Black Flag por exemplo; estas não se referem
ao espiritismo, mas existem entre todas estas seitas mais ramificações do que
se pensa.
26. Discurso pronunciado no
Congresso Nacional Espírita Belga de Namur por M. Franklin, presidente, em 23
de novembro de 1913.
27. Le Fraterniste, 28 de novembro de 1913.
28. Le Fraterniste, 12 de dezembro de 1913.
29. Sinopse do Primeiro
Congresso dos Fraternais, havido em Lille em 25 de dezembro de 1913: Le Fraterniste, 9 de janeiro de 1914. –
Cf. id., 21 de novembro de 1913.
30. Ver Le Théosophisme, pgs. 207-211.
31. Oriflamme, pequena revista redigida em alemão, é o órgão oficial dos diversos
agrupamentos da Maçonaria “irregular” dirigida por Theodor Reuss, e de que
falamos ao contarmos a história do teosofismo (pgs. 39 e 243-244).
32. Le Catholique, dezembro de 1913.
33. Id.,
outubro de 1913.
34. I Coríntios, XV, 44.
35. Le Catholique, dezembro de 1913. – A refutação em questão havia aparecido na La Vie Nouvelle, de Beauvais.
36. Le Catholique, dezembro de 1913.
37. Clément de Saint-Marcq
jamais renunciou por isso a suas idéias particulares; ele chegou mesmo a
publicar recentemente uma nova brochura, onde ele ainda sustenta as mesmas
teorias.
XI
VIDENTES E
CURADORES
Sabemos que os espíritas reconhecem diferentes tipos de
médiuns, que eles classificam e designam segundo a natureza particular de suas
faculdades e das manifestações que eles produzem; naturalmente, estas
enumerações são muito variáveis, porque pode-se dividir e subdividir
indefinidamente. Eis uma destas enumerações, por sinal bastante completa:
“Existem médiuns que produzem efeitos físicos, que provocam fenômenos
materiais, tais como ruídos e arranhões nas paredes, aparições (1),
deslocamentos de objetos sem contato, transportes , etc. (2); os médiuns
sensitivos, que pressentem, por uma vaga impressão, a presença dos espíritos;
os médiuns auditivos, que ouvem as vozes dos desencarnados, seja claras e
distintas como as das pessoas vivas, seja como sussurros íntimos em seu
interior; os médiuns que falam (3) e os que escrevem, que transmitem, pela
palavra ou pela escrita, e sempre com uma passividade completa, absoluta, as
comunicações de além-túmulo; os médiuns videntes, que, em estado de vigília,
vêem os espíritos; os médiuns músicos, os médiuns desenhistas, os médiuns
poetas, os médiuns curadores, etc., cujos nomes designam suficientemente a faculdade
dominante” (4). É preciso acrescentar que muitos tipos de mediunidade podem se
encontrar reunidos num mesmo indivíduo, e também que a mediunidade-tipo é
aquela que produz efeitos físicos, com as muitas variedades que ela comporta;
quase todo o resto pode ser assimilado a estados hipnóticos, como já
explicamos, mas existem duas categorias de que é preciso falar mais
particularmente, tanto mais que alguns lhes atribuem uma grande importância.
Os médiuns sensitivos, videntes e auditivos, que podemos reunir
num mesmo grupo, só são chamados de médiuns
pelos espíritas em razão de suas idéias pré-concebidas: trata-se de
indivíduos que são dotados de certos “sentidos hiper-físicos”, para usar uma
expressão que tem sido empregada por alguns; existem os que chamam de “sexto
sentido”, sem fazer mais distinções, enquanto que outros enumeram, como
pertencendo a sentidos diferentes, a “clarividência”, a “clariaudiência”, e
assim por diante. Existem escolas que pretendem que o homem, além dos cinco
sentidos externos, possui sete sentidos internos (5); a bem dizer, existem aí
um certo abuso na extensão do termo “sentido”, e não vemos que outro “sentido
interno” possa haver, senão aquele que antes era chamado de sensorium
comune, vale dizer, em suma, o mental em sua função centralizadora e
coordenadora dos dados sensíveis. Nós admitimos de boa vontade que a
individualidade humana possui certas faculdades extra-corporais que existem em
nós em estado latente, e que podem ser mais ou menos desenvolvidas em certas
pessoas; mas estas faculdades não constituem propriamente sentidos, e, se
falamos delas por analogia com os sentidos corporais, é porque de outra forma
seria difícil; esta assimilação, se tomada ao pé da letra, implica uma grande
dose de ilusão, devida a que as pessoas que são dotadas destas faculdades, para
exprimir aquilo que elas percebem assim, são forçadas a se servir de termos que
são feitos para designar normalmente coisas de ordem corporal. Mas existe ainda
outra causa de ilusão mais completa e mais grave: é que, nos meios espíritas e
em outras escolas “neo-espiritualistas”, tenta-se voluntariamente adquirir e
desenvolver faculdades deste tipo; sem falar dos perigos que são inerentes a
estes “treinamentos psíquicos”, próprios a desequilibrar aqueles que se dedicam
a isto, é evidente que, nestas condições, fica-se exposto a tomar como uma
“clarividência” real aquilo que não é mais do que o efeito de uma sugestão pura
e simples. Em certas escolas, como o teosofismo, a aquisição da “clarividência”
parece mesmo ser considerada como o objetivo supremo; a importância atribuída a
este tipo de coisas prova ainda que estas escolas não tem nada de “iniciático”,
apesar de suas pretensões, pois não há aí mais do que contingências que são
negligenciáveis por todos aqueles cujos conhecimentos são de ordem mais
profunda; trata-se no máximo de algo colateral, que eles cuidam de não procurar
especificamente, e que, na maior parte dos casos, representam antes um
obstáculo do que uma vantagem. Os espíritas que cultivam estas qualidades
imaginam que o que eles vêem e ouvem são os “espíritos”, e é por isso que eles
as qualificam como mediunidades; em outras escolas imagina-se ver e ouvir
coisas completamente diferentes, mas cujo caráter não é menos fantasista; em
suma, é sempre uma representação das teorias da escola aonde se produzem tais
fatos, e esta é uma razão suficiente para que se possa afirmar que a sugestão
desempenha aí um papel preponderante, senão exclusivo. Podemos ter mais
confiança no que reportam os “videntes” isolados e espontâneos, que não
pertençam a nenhuma escola e não tenham sido submetidos a nenhum tipo de
treinamento; mas mesmo aqui existem muitos casos de erros: em primeiro lugar,
pela imperfeição da linguagem que empregam; mas também pelas interpretações que eles misturam às visões,
involuntariamente e sem se darem conta, pois eles nunca estão isentos de
possuir algumas idéias pré-concebidas; e é preciso acrescentar que estes
“videntes” não possuem nenhum dos dados teóricos e doutrinais que lhes
permitiriam reconhecer-se aí e os impediriam de deformar as coisas por deixarem
intervir a imaginação, a qual, infelizmente, costuma ser muito desenvolvida.
Quando os “videntes” são místicos ortodoxos, suas tendências naturais à
divagação acham-se de certa forma comprimidas e reduzidas ao mínimo; mas em
outras partes, é dado a elas livre curso, e o resultado costuma ser uma mistura
inextricável; os “videntes” mais incontestáveis e mais célebres, como
Swedenborg por exemplo, não estão livres deste erro, e são necessárias muitas
precauções para separar o que suas obras contém de verdadeiramente
interessante; é sempre melhor recorrer a fontes mais puras, pois, acima de
tudo, não há nada neles que não se possa achar nelas, num estado menos caótico
e sob formas mais inteligíveis.
Os erros que indicamos atingem seu mais alto grau nos
“videntes” iletrados e entregues a si mesmos, sem a menor direção, como este
cidadão do Var, Louis Michel de Figanières, cujos escritos (6) são a admiração
dos ocultistas franceses. Estes vêem aí as revelações mais extraordinárias, e é
aonde se deve buscar, em boa parte, a origem da “ciência viva”, uma de suas
principais idéias fixas; ora, estas pretensas “revelações” exprimem, num jargão
terrível, as concepções ou antes as representações mais grosseiramente
antropomórficas e materialistas que jamais se fizeram de Deus, que é chamado de
“grande homem infinito” e o “presidente da vida “(sic), e do Universo, que é
denominado “omniverso” (7); tudo se resume a “redes”, “canteiros”, “digestões”,
“aromas”, “fluidos”, e assim por diante. Eis o que os ocultistas exibem como
uma cosmogonia sublime; existe aí também, entre outras coisas maravilhosas, uma
história da formação da terra que Papus adotou, adaptou e espalhou como sua;
para não nos demorarmos demasiado sobre a questão, mas ao mesmo tempo dando uma
idéia dessas elucubrações, citaremos apenas o resumo feito pelo espírita belga
Jobard (8), no qual a linguagem própria do original foi conservada: “Nosso
globo é relativamente novo; ele é construído com velhos materiais reunidos na
grande rede do omniverso, de restos de velhos planetas reunidos pela atração,
pela incrustação, pela anexação num só todo de quatro satélites de um planeta
anterior que, tendo chegado à maturidade, foi colhido pelo grande Jardineiro
para ser conservado em seus celeiros e servir à sua alimentação material. Pois,
assim como o homem colhe os frutos maduros de seu jardim terrestre, o grande
homem infinito colhe os frutos maduros de seu jardim omniversal, que servem
igualmente à sua alimentação. É o que explica a desaparição de um certo número
de astros do grande banquete dos céus, observados após dois séculos. O que é a
digestão de um fruto maduro no estômago do deículo terrestre (9), senão o
despertar e a partida de populações hominiculares caídas em catalepsia ou
êxtase de felicidades sobre os mundículos que eles formaram e levaram à
harmonia por seus trabalhos inteligentes? (...) Voltemos à formação de nosso
planeta incrustativo pela anexação simultânea de quatro antigos satélites: Ásia,
África, Europa e América, colocados em catalepsia magnética pela alma coletiva
celeste de nossa terra encarregada desta operação, tão difícil quanto a união
de pequenos reinos em um só, de pequenos empreendimentos em um grande. Só após
muitas conferências entre as almas coletivas espirituais decaídas dos quatro
satélites é que a fusão pode cumprir-se. Apenas a lua, o quinto satélite e
também o mais forte e malvado, resistiu a todas as solicitações, e fez assim
sua sina e a da aglomeração terrestre, onde seu lugar ficou reservado no meio
do Oceano Pacífico (10). Mas as almas de astros, boas e más, tem como a unidade
humana seu livre arbítrio e dispõem de seu destino para o bem e para o mal
(...) Para tornar menos dolorosa esta sublime e sensível operação de
incrustação, a alma celeste da terra, ou germe fluídico do enxerto
incrustativo, começou por cataleptizar magneticamente o mobiliário dos quatro
antigos satélites com toda boa vontade. Deste enxerto, a Ásia era a planta
material mais avançada do que as outras três, pois ela já tinha vivido muitos
séculos com sua mobília desperta, quando as demais ainda dormiam em parte. Os
homens, os animais e todos os germes vivos
foram colocados em estado de anestesia completa durante esta sublime
operação de quatro globos fundindo sob a pressão das mãos de Deus, de seus
Grandes Mensageiros, sua entranhas, suas
crostas, suas superfícies, suas águas, suas atmosferas, suas almas coletivas”.
Podemos nos deter por aí; mas esta citação é útil para mostrar aonde os ocultistas
vão buscar sua pseudo-iniciação e seu esoterismo de jornal. Acrescentemos que
Louis Michel não deve ser visto como o único responsável pelas divagações que
foram publicadas em seu nome: ele não escrevia, mas ditava o que lhe inspirava
um “espírito superior”, e suas “revelações” eram recolhidas e arrumadas por
seus discípulos, dos quais o principal era um certo Charles Sardou;
naturalmente, o meio em que tudo isso prosperava era fortemente embebido de
espiritismo (11).
Os “videntes” tem muitas vezes uma tendência a formar
escolas, e inclusive estas se formam em torno deles sem que às vezes eles
tenham nenhuma participação nisto; neste último caso, eles costumam ser
verdadeiras vítimas de suas companhias, que os exploram consciente ou
inconscientemente, como o fazem os
espíritas com aqueles nos quais julgam ver faculdades mediúnicas; quando
falamos aqui de exploração, isto deve entender-se sobretudo no sentido
psíquico, mas as conseqüências não são menos desastrosas. Para que um “vidente”
possa intitular-se “chefe de escola” na realidade e não apenas na aparência,
não basta querer; é preciso também que ele tenha, sobre seus discípulos, alguma
outra superioridade além da que lhe confere suas faculdades anormais; não era
este o caso de Louis Michel, mas aconteceu algumas vezes no espiritismo. Assim,
houve outrora na França uma escola espírita de um caráter muito particular,
fundada e dirigida por uma “vidente”, Lucie Grange, que era designada sob o
nome “místico” Habimélah, ou Hab por abreviação; este nome lhe fora dado, ao
que parece, por Moisés em pessoa. Nesta escola, havia uma veneração especial
pelo famoso Vintras, que era aí qualificado como “profeta”; e o órgão do grupo,
La Lumière, que começou a aparecer em
1882, contou entre seus colaboradores, a maior parte escondidos sob
pseudônimos, mais de um personagem suspeito. Mme. Grange ocupava-se muito com
“profecias”, e ela considerava como tais as “comunicações” que ela recebia; ela
reuniu em um volume (12) um grande número destas “produções psicográficas,
psicofônicas e de clarividência natural”, como ela designava os diversos tipos
de mediunidade que possuía, (escrita, audição e visão). Estas “comunicações”
era assinadas por Cristo, pela Virgem Maria, pelos Arcanjos Miguel e Gabriel (13), pelos principais santos do Antigo e do
Novo Testamento, por homens ilustres da história antiga e moderna; algumas
assinaturas são mais curiosas ainda, como a da “sibila Pasipéia, da “Gruta do
Crescente”, ou a de “Rafana, alma do planeta Júpiter”. Numa “comunicação”, São Luís
nos ensina que ele foi o Rei Davi reencarnado, e que Joana d’Arc foi Thamar,
filha de Davi; e Hab acrescenta esta nota: “Uma aproximação significativa: Davi
foi o tronco de uma família predestinada, e foi a dos nossos últimos reis. São
Luís presidiu aos primeiros ensinamentos espíritas e se tornou, em nome de
Deus, Pai do Cristianismo regenerado, por sua especial proteção a Allan
Kardec”. Tais aproximações são “significativas” sobretudo quanto à mentalidade
daqueles que as imaginam, e elas tem um
sentido claro para quem conhece os subterrâneos político-religiosos de certos
meios; existia uma grande preocupação quanto à “sobrevivência” de Luís XVII;
por outro lado, anunciava-se, como iminente, a segunda vinda do Cristo;
pretender-se-ia assim insinuar que este viria a reencarnar-se na “nova raça de
Davi”, e talvez se tornasse o “Grande Monarca” anunciado pela “profecia de
Orval” e outras previsões mais ou menos autênticas? Não dizemos que estas
profecias sejam, em si mesmas, totalmente desprovidas de valor; mas, como elas
são formuladas em termos quase incompreensíveis, cada qual as interpreta a seu
modo, e existem coisas bem estranhas no partido que se pretende tirar daí. Mais
tarde, Mme. Grange foi “guiada” por um “espírito” supostamente egípcio, que se apresentava
sob o nome composto de Salem-Hermes, e que lhe ditou todo um volume de
“revelações”; mas isto é bem menos interessante do que as manifestações ligadas
mais ou menos diretamente ao caso de Luís XVII, e cuja lista, começando nos
primeiros anos do século XIX, seria muito longa, mas bastante instrutiva para
aqueles que tem a curiosidade legítima de procurar as realidades que se
dissimulam sob certas fantasmagorias.
Após falarmos dos “videntes”, devemos dizer ainda algumas
coisas sobre os “médiuns curadores”: a crer nos espíritas, esta é uma das
formas mais altas da mediunidade; eis, por exemplo, o que escreve Léon Denis,
após afirmar que os grandes escritores e os grandes artistas eram quase todos
“inspirados” e “médiuns auditivos”: “O poder de curar pelo olhar, pelo toque,
pela imposição das mãos, é também uma das formas pelas quais a ação espiritual
se exerce sobre o mundo. Deus, fonte de vida, é o princípio da saúde física,
como da perfeição moral e da suprema beleza. Alguns homens, pela prece e a
força magnética, atraem este influxo, esta irradiação da força divina que
destrói os fluídos impuros, causas de tantos sofrimentos. O espírito de
caridade, o devotamento levado até o sacrifício, o esquecimento de si mesmo,
são as condições necessárias para adquirir e conservar este poder, um dos mais
maravilhosos que Deus deu ao homem (...) Ainda hoje, inúmeros curadores, com
maior ou menor sucesso, gozam da assistência dos espíritos (...) Acima de todas
as Igrejas humanas, fora de todos os ritos, de todas as seitas, de todas as
fórmulas, existe um estágio supremo que a alma pode atingir pela força da fé
(...) Em realidade, a cura magnética não exige nem passes nem fórmulas
especiais, mas apenas o desejo ardente de auxiliar o próximo, o apelo sincero e
profundo da alma a Deus, princípio e fonte de todas as forças” (14). Este
entusiasmo explica-se facilmente se nos lembrarmos das tendências humanitárias
dos espíritas; e o mesmo autor acrescenta: “Como o Cristo e os apóstolos, como
os santos, os profetas e os magos, cada um de nós pode impor as mãos e curar se
tiver amor a seus semelhantes e a vontade ardente de ajudá-los (...)
Recolham-se em silêncio, a sós com o paciente; peça ajuda aos espíritos
benfeitores que pairam sobre as dores humanas. Então, do alto, sentirão o
influxo descer em vocês e chegar à pessoa. Uma onda regeneradora penetrará até
a causa do mal, e, prolongando-a, renovando sua ação, vocês contribuirão para
aliviar o fardo das misérias terrestres” (15) Parece haver aqui uma assimilação
entre os “médiuns curadores” e o magnetismo puro e simples; mas há uma
diferença que se deve levar em conta: é que o magnetizador age por sua própria
vontade, e sem solicitar a intervenção de nenhum “espírito”; mas os espíritas
dirão que ele é um médium sem o saber, e que a intenção de curar age nele como
uma espécie de invocação implícita, mesmo que ele não creia nos “espíritos”. De
fato, a verdade é exatamente o oposto: o “curador” espírita é que é um
magnetizador inconsciente: que suas faculdades sejam espontâneas ou que tenham
sido desenvolvidas pelo exercício, não passam de faculdades magnéticas; mas, em
virtude de suas concepções particulares, ele imagina que deve apelar aos
“espíritos”, e que são eles que agem através de si, enquanto que, na verdade, é
somente dele que provém todos os efeitos produzidos. Este tipo de pretensa
mediunidade é menos nocivo do que os outros para aqueles que são dotados,
porque, por não implicar o mesmo grau de passividade (e mesmo esta é aí
ilusória), ele não acarreta um desequilíbrio semelhante; entretanto, seria
demais acreditar que a prática do magnetismo, nestas condições ou nas condições
normais (a diferença está antes na interpretação do que nos fatos), esteja
livre de qualquer perigo para aqueles que o praticam, sobretudo de modo
habitual, “profissional” de certo modo. Quanto aos efeitos do magnetismo, eles
são bem reais em certos casos, mas não se deve exagerar sua eficácia: não
cremos que ele possa curar ou aliviar todas as doenças indistintamente, e
existem temperamentos que lhe são completamente refratários; ademais, algumas
curas devem ser colocadas na conta da sugestão, e mesmo da auto-sugestão, mais
do que atribuídas ao magnetismo. Quanto ao valor relativo de tal ou tal modo de
operar, isto é discutível (e as diversas escolas magnéticas não deixam de estar
em desacordo, assim como as hipnóticas) (16), mas com certeza não é coisa
totalmente indiferente como quer Léon Denis, a menos que se trate de um
magnetizador que possua faculdades particularmente poderosas e que constituam
uma espécie de dom natural; este caso, que dá a ilusão de mediunidade
(supondo-se que se conheça e aceite as teorias espíritas) por não parecer
precisar de nenhum esforço voluntário, é provavelmente o dos mais célebres
“curadores”, salvo, bem entendido, quando sua reputação é usurpada e misturada
ao charlatanismo, o que já aconteceu mais de uma vez. Enfim, quanto à
explicação dos fenômenos magnéticos, não é assunto para tratarmos aqui; mas é
claro que a teoria “fluídica”, que é adotada pela maior parte dos
magnetizadores, é inadmissível; já observamos que é daí que provém, no
espiritismo, a concepção dos “fluídos” de toda espécie: isto não passa de uma
imagem muito grosseira, e a intervenção dos “espíritos”, que os espíritas
acrescentam, é um absurdo total.
A concepção espírita dos “médiuns curadores”, fica
particularmente clara no “Fraternismo”, aonde os médiuns desta categoria ocupam
o primeiro lugar; parece mesmo que esta seita lhes deve a sua origem, se
acreditarmos no que escreveu em 1913 Paul Pillault: “Há quase cinco anos, eu
estava me exercitando, em Auby, às vezes em meu escritório, às vezes em casa,
sobre as qualidades de curador que nosso irmão do espaço (sic), Jules Meudon, havia-me revelado, e que ele me estimulara a
praticar. Consegui muitas curas, as mais variadas, da cegueira à dor de dentes.
Feliz com os resultados obtidos, resolvi ajudar o maior número possível de meus
semelhantes. Foi então que nosso diretor Jean Béziat associou-se a mim para
fundar em Sin-le-Noble (perto de Douai) o Instituto Geral Psicósico, de onde
saiu o Instituto das Forças Psicósicas No. 1, e de onde nasceu nosso órgão Le Fraterniste” (17). Sem deixar de se
ocupar de curas, logo surgiram propósitos mais extensos (não dizemos mais
elevados, porque nisto tudo não há mais do que “moralismo” humanitário), como o
mostra esta declaração de Béziat: “Incitamos a ciência a tentar pesquisas de
ordem espírita, e, se determinarmos a ela de ocupar-se disto, ela conseguirá. E
quando ela houver encontrado e provado, toda a Humanidade terá encontrado a
felicidade. Assim, o Le Fraterniste é
não apenas o jornal mais interessante, mas também o mais útil do mundo. É dele
que se poderá esperar a quietude e a alegria da Humanidade. Quando se houver
demonstrado o fundamento do espiritismo, a questão social estará quase
resolvida” (18). Se isto é sincero, é de uma inconsciência desconcertante; mas
vamos à teoria das “curas fluídicas psicósicas”: ela foi exposta no tribunal de
Béthune, em 17 de Janeiro de 1914, por ocasião de um processo sobre exercício
ilegal da medicina contra dois “curadores” desta escola, os senhores Lesage e
Lecomtte, que de resto foram absolvidos porque não receitavam remédios; eis o
essencial de suas declarações: “Eles cuidam dos doentes pela imposição das
mãos, passes e invocações mentais simultâneas às boas forças do astral (19).
Eles não prescrevem nenhum remédio, nem receitam: não existe tratamento no
sentido médico do termo, nem massagens, mas cuidados por meio de uma força
fluídica que não é o emprego do magnetismo comum, mas do que se poderia chamar
de magnetismo espírita (psicosismo), ou seja a captação pelo curador de forças
trazidas pelos espíritos bons, e transmissão destas forças ao doente que sente
uma grande melhora, ou obtém sua cura completa, segundo o caso, e num período
de tempo igualmente muito variável (...) No curso dos interrogatórios, o
Presidente do tribunal pediu explicações a respeito do laboratório, onde se
achavam tubos de ensaio com água magnetizada, preparada pelos curadores (...) A
água magnetizada só tem, do ponto de vista da cura, um valor bastante relativo:
não é ela que cura; ela ajuda na evacuação dos fluídos nocivos, mas são os
cuidados espíritas que eliminam o mal” (20). Tentou-se ainda convencer os
médicos de que, quando eles curam seus doentes, é também aos “psicósicos” que
se deve a cura; isto foi declarado solenemente nestes termos: “É a Psicose que
cura, senhores; o curador é apenas o instrumento. Também os senhores são
objetos das psicoses; elas estão do seu lado, como vieram também a estar do
nosso” (21). Notemos ainda esta curiosa explicação de Béziat: “Podemos afirmar
que uma doença, qualquer que seja, é apenas uma das numerosas variedades do
Mal, com M maiúsculo. O curador, por seu fluído, que ele infunde ao paciente,
por suas boas intenções, liquida o Mal em geral. Resulta daí que, na mesma
ocasião, ele liquida a variedade, ou seja a doença. Eis todo o segredo” (22). É
muito simples realmente, ao menos na aparência, ou melhor muito “simplista”;
mas existem outros curadores que acham mais simples ainda negar o mal: é o caso
das seitas norte-americanas Mental
Scientists e Christian Scientists,
e esta é também a opinião dos Antonistas, de quem falaremos adiante. Os
“Fraternistas” chegam a fazer intervir a “força divina” em suas curas, e é
ainda Béziat que proclama “a possibilidade de curar os doentes pelo emprego das
energias astrais invisíveis, pelo apelo à Grande Força Dispensadora Universal
que é Deus” (23); se é assim, podemos nos perguntar porque eles sentem a
necessidade de apelar aos “espíritos” e ás “forças do astral” em lugar de se
dirigir a Deus direta e exclusivamente. Mas já vimos o que é o Deus evolutivo
no qual crêem os “Fraternistas”; a este propósito, existe ainda algo muito
significativo que devemos reportar: em 9 de Fevereiro de 1914, Sébastien Faure
pronunciou em Arras uma conferência sobre “as doze provas da inexistência de
Deus”, que ele repetia em toda parte; Béziat tomou a palavra em seguida,
declarando “perseguir o mesmo objetivo no fundo”, desejando-lhe “suas mais
sinceras felicitações”, e proclamando os assistentes a “associar-se a ele na
realização de seu programa tão humanitário”. Na seqüência da sinopse que seu
jornal publicou a respeito desta reunião, Béziat acrescentou estas reflexões:
“Aqueles que, como Sebastien Faure, negam o Deus-Criador da Igreja,
aproximam-se mais, segundo cremos, do verdadeiro Deus que é a Força Universal
que impulsiona os mundos (...) Assim, não temos receio em declarar que, se os
Sébastien Faures não crêem mais no Deus dos clérigos, é porque eles crêem mais
do que os outros no Deus real. Nós afirmamos que no estágio atual da evolução
social, estes negadores são mais divinos do que os outros, porque eles desejam
mais a justiça e a felicidade para todos (...) Eu concluo que se Sébastien
Faure não crê mais em Deus, é porque ele o conhece em maior grau, ou em todo
caso porque ele o experimenta em maior grau, porque ele pratica as suas
virtudes” (24). Pouco depois, aconteceram a Sebastien Faure confusões que
mostram bastante de que modo ele “praticava as suas virtudes”; decididamente,
os “Fraternistas”, defensores de Clément de saint-marq, tem curiosas amizades.
Existem muitas outras escolas espíritas mais ou menos
independentes, que foram fundadas ou dirigidas por “médiuns curadores”: citaremos
como exemplo ª Bouvier, de Lyon, que unia em suas teorias o magnetismo e o
kardecismo, e que possuía um órgão denominado La Paix Universelle, em que foi lançado o extravagante projeto do
“Congresso da Humanidade” de que já falamos em outra parte (25). Na capa desta
revista figuravam as seguintes duas máximas: “O conhecimento exato de si mesmo
engendra o amor ao semelhante” e “Não existe no mundo culto mais elevado do que
o da verdade”. É interessante notar que a segunda é a transcrição quase textual
(salvo em que a palavra “religião” é aí substituída por “culto”) da divisa da
Sociedade Teosófica. Por outro lado, Bouvier, que acabou por se ligar ao
“Fraternismo”, estava, contrariamente ao que em geral ocorria, em muito boas
relações com os ocultistas; é verdade que estes têm pelos curadores uma
veneração quase tão grande quanto os espírita. O famoso “Mestre desconhecido”
da escola papusiana, de quem já falamos, não era outra coisa que um “curador”,
e que não tinha nenhum conhecimento de ordem doutrinal; mas este parecia ser
mais uma vítima do papel que lhe foi imposto: a verdade é que Papus precisava
de um “Mestre”, não para si, mas para apresentar como tal e dar à sua
organização a aparência de uma base séria, para fazer crer que ele tinha por
trás de si “potências superiores” de que ele seria o representante autorizado;
toda a fantástica história dos “enviados do Pai” e dos “espíritos do
apartamento de Cristo” nunca teve outra
razão de ser senão esta. Nessas condições, não é de espantar que os ingênuos,
que são tão numerosos no ocultismo,
tenham colocado, na conta dos “doze Grandes Mestres desconhecidos da
Rosa-Cruz”, outros “curadores” igualmente desprovidos de intelectualidade como
o “Pai Antoine” e o alsaciano Francis Schlatter, de quem já falamos em outra
ocasião (26). Existem outros ainda que, sem ser colocados tão alto, são muito
louvados na mesma escola: tal é este a propósito de quem Papus colocou esta
nota em uma de suas obras: “Ao lado do espiritismo, devemos assinalar os
adeptos da teurgia e sobretudo Saltzman como propagadores da idéia da
reencarnação. Em seu livro, Magnétisme
spirituel, Saltzman abre aos espíritos pesquisadores magníficos horizontes”
(27). Saltzman não passa de um espírita um pouco dissidente, que nada tem de um
“adepto” no verdadeiro sentido da palavra; e o que ele chama de “teurgia” não
tem nada em comum com aquilo que os antigos entendiam pelo termo, e que ele
ignora totalmente. Isso nos faz lembrar de um personagem ainda mais ridículo
que foi outrora uma celebridade parisiense, e que era chamado de zuavo (*)
Jacob; este também chamava de “teurgia” uma mistura de magnetismo e
espiritismo. Em 1888, ele publicou uma espécie de revista, cujo título, apesar
do inusitado comprimento, merece ser transcrito integralmente: “Revue théurgique, scientifique,
psychologique et philosophique, traitant spécialement de l’higyène et de la
guérison par les fluides et des dangers des pratiques médicales, cléricales,
magnétiques, hypnotiques, etc., sous la direction du zouave Jacob”; isto
basta para dar uma idéia bastante clara de sua mentalidade. Limitar-nos-emos a
reproduzir, a respeito deste personagem, a apreciação de um autor, de resto
inteiramente favorável ao espiritismo: “O zuavo Jacob gozava de grande
reputação. Eu entrei em contato com ele, mas não pude me felicitar muito por
isto. Ele pretendia operar por intermédio dos espíritos, mas, quando fiz alguma
pequena objeção, ele começou com insultos e grosserias dignas de uma
carroceiro; pobres argumentos na boca de um apóstolo! Digo “apóstolo” porque
ele se dizia enviado por Deus para “curar os homens fisicamente, como o Cristo
havia sido enviado para curá-los moralmente”! Muitas pessoas recordarão esta
frase típica. Eu fui, é verdade, testemunha de melhoras impressionantes
surgidas instantaneamente em doentes abandonados pelos médicos. Eu vi, entre
outros casos, um paralítico trazido nos ombros de ajudantes, porque não movia
mais nem braços nem pernas, andar por si só, sem auxílio de muletas nem de
nada... até sair da sala do curador e de sua presença. Assim que passou da
porta para fora, o infeliz tombou inerte e teve de ser levado como viera. Do
que ouvi e vi, as curas do zuavo não passavam de pseudo-curas, e seus clientes
reencontravam invariavelmente em casa todas as enfermidades de que se viam
livres em sua presença, e com uma a mais: o desencorajamento. Em todo caso, ele
não chegou a curar-me do que ele chamava de minha “cegueira moral”, e hoje
começo a crer que o segredo de sua influência sobre os doentes residia, não na
assistência dos espíritos, como ele pretendia, mas na educação deplorável que
ele mostrava. Ele assustava seus clientes com olhares furibundos, aos quais
ajuntava xingamentos variados. Era um ilusionista, com certeza, mas não um
taumaturgo” (28). Em suma, o que havia era muito poder de sugestão, com uma
dose de charlatanismo; encontraremos algo parecido na história do Antonismo, à
qual consagraremos um capítulo especial, em razão da impressionante expansão
desta seita, e também porque trata-se de um caso típico, bem próprio a mostrar
a mentalidade de alguns de nossos contemporâneos. Não queremos dizer que todos
os “curadores” sejam como esses; existem muitos cuja sinceridade é respeitável,
e não contestamos as faculdades reais, embora lamentemos as teorias mais do que
suspeitas com que as explicam; e é curioso notar que estas faculdades acham-se
mais desenvolvidas nas pessoas menos inteligentes. Enfim, aqueles que não são
simples “sugestionadores” podem obter, em certos casos, resultados mais
duráveis do que as curas do zuavo Jacob, e às vezes basta uma encenação
apropriada para agir efetivamente sobre certos doentes; podemos mesmo nos
perguntar se alguns manifestos charlatães não chegam mesmo a sugestionar a si
mesmos e a acreditar nos poderes mais ou menos extraordinários que se atribuem.
Seja como for, devemos repetir mais uma vez que nenhum “fenômeno” prova nada do
ponto de vista teórico; é perfeitamente inútil invocar, em favor de um
doutrina, as curas obtidas por aqueles que a professam, as quais podem apoiar
as opiniões mais contraditórias, o que mostra que todos esses argumentos não
tem valor; quando se trata da verdade ou da falsidade das idéias, qualquer
consideração extra-intelectual deve ser considerada nula.
NOTAS
1. Este caso, que é dos
“médiuns de materializações”, é muitas vezes separado dos outros, que são
vistos como mais comuns e não exigindo faculdades tão desenvolvidas.
2. Seria preciso acrescentar à
lista os fenômenos de levitação.
3. É o que se chama “médiuns de
encarnações”.
4. Félix Fabart, Histoire philosophique et politique de
l’Occulte, pg. 133.
5. Aludimos aqui a algumas
organizações que se querem “rosicrucianas”, mas que não tem a menor relação
histórica ou doutrinal com a Rosa-Cruz autêntica; como já mostramos em outra
parte (Le Théosofisme, pgs. 40 e 222), esta é uma das denominações de que mais
se abusa em nossa época; os ocultistas de quaisquer escolas não tem nenhum
direito de se dizer herdeiros da Rosa-Cruz, assim como de qualquer outra coisa
que apresente, sob qualquer aspecto, um caráter verdadeiramente tradicional,
esotérico ou iniciático.
6. Clé de la Vie; Vie
Universelle; Réveil des Peuples.
7. As diferentes partes do
“omniverso” são chamadas de “universo, biniverso, triniverso, quatriverso”,
etc.
8. Este resumo encontra-se num
dos artigos que foram reproduzidos em Clé de la Vie.
9. Vale dizer, do homem: se
Deus é um “grande homem”, o homem é um “deículo”; encontramos expressões do
mesmo gênero em outras partes, em Swedenborg por exemplo, mas elas devem ser
entendidas simbolicamente, enquanto que aqui devem ser tomadas ao pé da letra.
10. Outros ainda aumentaram esta
história pretendendo que a lua, após ter ocupado seu lugar como os outros
satélites, fugiu mais tarde, mas não conseguiu escapar completamente à atração
da terra, ao redor da qual foi condenada a girar como punição por sua revolta!
11. Os delírios de Louis Michel
foram abundantemente desenvolvidas também, em numerosas obras, por Arthur
d’Anglemont.
12. Ver uma brochura intitulada Le Prophète de Tilly.
13. Prophètes et Prophèties.
14. Mlle. Couédon, a “vidente”
da Rua Paradis, que teve seu momento de celebridade, achava-se inspirada pelo
arcanjo Gabriel; sua faculdade originara-se na frequentação de sessões
espíritas junto a uma certa Mme. Orsat; naturalmente, os puros espíritas vêem o
arcanjo Gabriel como um simples “desencarnado”, e sua intérprete como uma
“médium de encarnações”.
15. Dans l’Invisible, pgs. 453-455.
16. Ibid.,
pg. 199.
17. Não queremos abordar a
questão controversa das relações entre o hipnotismo e o magnetismo:
historicamente, o primeiro é derivado do segundo, mas os médicos, que negaram o
magnetismo, não podiam adotá-lo sem lhe dar um novo nome; por outro lado, o
magnetismo é mais extenso do que o hipnotismo, no sentido em que ele opera
muitas vezes em pacientes em estado de vigília, e usa menos a sugestão. Como exemplo
das discussões a que referimos, podemos citar, entre os magnetizadores, as
disputas entre partidários e adversários da “polaridade”; entre os
hipnotizadores, a querela entre as escolas de Salpêtrière e de Nancy; de parte
e de outra, os resultados obtidos pelos pesquisadores sobre seus pacientes
concordam sempre com as teorias de cada qual, o que prova que a sugestão
desempenha aí um papel capital, ainda que muitas vezes involuntário.
18. Le Fraterniste, 26 de dezembro de 1913.
19. Le Fraterniste, 19 de dezembro de 1913. – Assinalemos que o pacifismo e o feminismo
são especialmente inscritos no programa deste jornal.
20. Lembraremos que os
“Fraternistas”, que são bastante “ecléticos”, costumam fazer empréstimos à
terminologia ocultista.
21. Id.,
23 de janeiro de 1914.
22. Le Fraterniste, 19 de dezembro de 1913.
23. Id.,
19 de dezembro de 1913.
24. Id.,
10 de abril de 1914.
25. Le Fraterniste, 20 de fevereiro de 1914.
26. Le Théosofisme, pgs. 171-173.
27. Le Théosofisme, pg. 260.
28. La Réincarnation, pg. 173. –
Poderíamos ainda falar de um agrupamento instituído recentemente por um
ocultista que pretende encerrar-se num misticismo “crístico”, como ele diz, e
no qual o pretenso tratamento “teúrgico”
dos doentes parece ser uma das preocupações dominantes. Existe ainda,
dentro da mesma ordem de idéias, uma organização auxiliar do Martinismo, criado
na Alemanha pelo Dr. Theodor Krauss (Saturnus), sob a denominação de “Ordem
terapêutica, alquímica e filantrópica dos Samaritanos Desconhecidos”; e
lembraremos enfim que existe uma “Ordem dos Curadores”, dentre as numerosas
ramificações da Sociedade Teosófica.
29. Féliz Fabart, Histoire
philosophique et politique de l’Occulte, pgs. 173-174.
(*)
Zuavo: soldado do corpo de infantaria do exército francês criado na Argélia, em
1831; inicialmente formado por locais e por europeus, ao cabo de algum tempo
compôs-se apenas de soldados franceses, embora os uniformes fossem árabes.
Havia quatro regimentos de zuavos, cada um caracterizado por uma cor: vermelho,
branco, amarelo e azul.
XII
O ANTONISMO
Louis Antoine nasceu em 1846 na província de Liège, em uma
família de mineiros; inicialmente ele também foi mineiro, depois tornou-se
metalurgista; após uma estada de alguns anos na Alemanha e na Polônia, ele
voltou à Bélgica e instalou-se em Jemeppe-sur-Meuse. Tendo perdido seu filho
único, Antoine e sua esposa tornaram-se espíritas; logo o antigo minerador,
apesar de quase iletrado, viu-se à frente de um agrupamento chamado “Os
vinicultores do Senhor”, no qual funcionava um verdadeiro escritório de
comunicação com os mortos (veremos que esta instituição não é única em seu
gênero); ele editou uma espécie de catecismo espírita, de resto feito de
empréstimos das obras de Allan Kardec. Um pouco mais tarde, Antoine acrescentou
à sua empresa, cujo caráter não parece ter sido totalmente desinteressado, um
gabinete de consultas “para o alívio de todas as moléstias e aflições morais e
físicas”, colocado sob a direção de um “espírito” que se fazia chamar Dr.
Carita. Ao cabo de mais algum tempo, ele descobriu possuir faculdades de
“curador” que lhe permitiam suprimir qualquer invocação e de “operar”
diretamente por si só; a esta mudança seguiu-se uma disputa com os espíritas,
cujos motivos não ficaram muito claros. Mas é deste cisma que iria surgir o
Antonismo; no Congresso de Namur, em novembro de 1913, Franklin, presidente da
“Fédération Spirite Belge”, declarou
textualmente: “O Antonismo, por razões pouco confessáveis, recusa-se a marchar
conosco”; podemos supor que “as razões pouco confessáveis” eram sobretudo de ordem comercial, se se pode
dizer, e que Antoine achou mais vantajoso agir inteiramente por si, fora de
qualquer controle. Para os doentes que não podiam ir a Jemeppe, Antoine
fabricou um medicamento que ele designava sob o nome de “licor Coune”, e ao
qual ele atribuía o poder d curar indistintamente todas as afecções; isto lhe
valeu um processo por exercício ilegal
da medicina, e ele foi condenado a uma pequena multa; ele substituiu então o
seu licor por água magnetizada, que não podia ser qualificada de medicamento, e
depois por papel magnetizado, mais fácil de transportar. Entretanto, os doentes
que acorriam a Jemeppe tornaram-se tão numerosos que ele foi obrigado a
renunciar a tratá-los individualmente por passes ou mesmo pela imposição das
mãos, e a instituir a prática das “operações “ coletivas. Foi neste momento que
Antoine, que até então só falara de “fluídos”, fez intervir a “fé” como um
fator essencial, nas curas que ele produzia, e começou a ensinar que a
imaginação é a única causa de todos os males físicos; como conseqüência, ele
proibiu seus discípulos (pois então ele se colocara como fundador de uma seita)
de recorrer aos cuidados de médicos. No livro que ele intitulou Révélation, ele imagina que um discípulo
lhe faz esta questão: “Alguém que pensara em consultar um médico, vem a você
dizendo: “Se eu não melhorar após esta visita, irei visitar tal médico.” Você
constata suas intenções e o aconselha a seguir seu pensamento. Porque você
agirá assim? Eu vi doentes que, após seguir este conselho, tiveram que voltar a
você”. Antoine responde nestes termos: “Alguns doentes, de fato, podem ter tido
a idéia de consultar um médico antes de me consultar. Se eu sinto que eles tem
mais confiança no médico, é meu dever enviá-los a ele. Se aí eles não encontram
a cura, é porque sua idéia de vir a mim colocou um obstáculo no trabalho do
médico, como a idéia de ir ao médico colocou um obstáculo no meu. Outros
doentes me perguntam ainda se determinado remédio não poderia ajudá-los. Esta
idéia falsifica num piscar de olhos toda a minha operação: ela é a prova de que
eles não tem a fé suficiente, a certeza de que, sem medicamentos, eu possa lhes
dar aquilo de que precisam (...) O médico só pode fornecer o produto de seus
estudos, ele tem como base a matéria. A causa então permanece, e o mal
reaparecerá, porque tudo o que é matéria só pode curar temporariamente”. Em
outras passagens, lemos ainda: “É pela fé no curador que o doente encontra sua
cura. O doutor pode acreditar na eficácia das drogas, mas estas não servem de
nada para aquele que tem fé (...) A fé é o único e universal remédio, ela
penetra aquele a quem queremos proteger, ainda que esteja distante milhares de
quilômetros”. Todas as “operações” (é o termo consagrado) terminam por esta
fórmula: “As pessoas que tem a fé são curadas ou amparadas”. Tudo isso lembra
muito as teorias da “Christian Science”, fundada na América do Norte, em 1866, por
Mme. Baker Eddy; os Antonistas, como os “Christians
Scientists”, tiveram vários desentendimentos com a justiça, por terem
deixado morrer doentes sem nada fazer para ajudá-los; mesmo em Jemeppe, a
municipalidade recusou diversas vezes permissão para enterros. Os revezes não
desencorajaram os Antonistas e não impediram a seita de prosperar e
espalhar-se, não apenas na Bélgica, mas também no norte da França. O “Pai
Antoine” morreu em 1912, deixando como sucessora sua viúva, que era chamada
“Mãe” e um de seus discípulos, o “Irmão” Deregnaucourt (que veio a falecer
pouco depois); ambos foram a Paris, em fins de 1913, para inaugurar um templo
antonista, e em seguida outro em Mônaco. Quando estourou a guerra, o “culto
antonista” estava a ponto de ser reconhecido oficialmente na Bélgica, o que
teria como efeito colocar os tratamentos de seus ministros às expensas do
Estado; a petição feita a este respeito era apoiada especialmente pelo partido
socialista e por dois chefes da Maçonaria belga, os senadores Charles Magnette
e Goblet d’Alviella. É curioso notar quais apoios encontrou o Antonismo,
motivados sobretudo por razões políticas, sendo seus aderentes recrutados quase
que exclusivamente nos meios operários; por outro lado, já citamos, em outra
parte (1), provas da simpatia dos teosofistas, enquanto que os espíritas
“ortodoxos” viam nele mais um elemento de confusão e divisão. Acrescentemos ainda
que, durante a guerra, contaram-se coisas curiosas a respeito do modo como os
Alemães respeitaram os templos antonistas; naturalmente, os membros da seita
atribuíram o fato à proteção póstuma do “Pai”, tanto mais que este havia
declarado solenemente: “A morte é a vida; ela não pode distanciar-me de vocês,
ela não me impedirá de me aproximar de todos aqueles que tem confiança em mim,
mas bem ao contrário”.
O que é admirável no caso de Antoine, não é sua carreira
como “curador”, que apresenta mais de uma semelhança como o caso do zuavo
Jacob: havia tanto charlatanismo em um como em outro, e, se eles obtiveram
algumas curas reais, elas provavelmente foram devidas à sugestão, antes do que
a faculdades especiais; é sem dúvida por isto que era preciso ter “fé”. O que é
mais digno de atenção, é que Antoine colocou-se como fundador de uma religião,
e que ele teve nisto um sucesso verdadeiramente extraordinário, apesar da
nulidade de seus “ensinamentos”, que não passam de uma vaga mistura de teorias
espíritas e de “moralismo” protestante, e que são, além disto, redigidos num
jargão quase ininteligível. Uma das peças mais características é uma espécie de
decálogo intitulado “Dez fragmentos em prosa do ensinamento revelado por
Antoine o Curador”; embora seja dito que o texto é “em prosa”, ele foi disposto
na forma de “versos livres”, como em certos poetas “decadentes”, e pode-se
mesmo descobrir neles algumas rimas; vale a pena reproduzi-los: “Deus fala: - Primeiro princípio: Se vós me amais – não direis a ninguém – porque
sabeis que não resido – senão no seio do homem. – Não podereis testemunhar que
existe – uma suprema bondade – se do próximo me afastardes. Segundo princípio: Não acrediteis
naquele que vos fala de mim – cuja
intenção seja a de vos converter. – Se respeitais todas as crenças – e aquele
que não a tem – sabereis, malgrado vossa
ignorância – mais do que ele vos poderá dizer. Terceiro princípio: Não podeis pregar a moral a ninguém – isto
seria provar – que não fazeis o bem – porque ele não se ensina pela palavra –
mas pelo exemplo – e por não ver o mal em nada. Quarto princípio: Não digais nunca que fazeis a caridade – a
qualquer um que vos pareça na miséria – isto seria dizer – que não tenho olhos,
que não sou bom – que sou um mau pai – um avaro – deixando morrer de fome o
rejeitado. – Se agirdes para com vosso semelhante – como um verdadeiro irmão –
fareis a caridade a vós mesmos – deveis sabê-lo. – Pois ninguém está bem se não
é solidário – tereis feito por ele – apenas cumprir vosso dever. Quinto princípio: Esforçai-vos sempre
por amar quem vos diz – “vosso inimigo”:
– é para que aprendais a vos conhecerdes – que o coloco em vosso caminho. – Mas
vede o mal em vós antes do que nele – este será o remédio soberano. Sexto princípio: Quando quiseres conhecer
a causa – de vossos sofrimentos – que suportais sempre com razão –
encontra-la-eis na incompatibilidade – da inteligência com a consciência – que
estabelece entre elas termos de comparação. Não sentireis o menor sofrimento –
que não seja feito para lembrar – que a inteligência é oposta à consciência –
isto é o que não se deve ignorar. Sétimo
princípio: Esforçai-vos por compreender – pois o menor sofrimento é devido
à vossa – inteligência que tudo quer possuir – ela se torna um pedestal da
clemência – que pretende subordinar-vos a ela. Oitavo princípio: Não vos deixeis dominar pela inteligência – que
só busca elevar-se sempre – mais e mais – ela atira aos pés a consciência –
sustentando que é a matéria que dá – as virtudes – enquanto que ela só encerra
as misérias – das almas a que chamais – “abandonadas” – que agiram apenas para
satisfazer – sua inteligência que as perdeu. Nono princípio: Tudo o que vos é útil – presentemente – como no
futuro – se não pecardes em nada – vos será dado em acréscimo. Cultivai-vos,
relembrareis o passado – tereis a lembrança – de que vos foi dito – “Bateis, eu
vos abrirei – eu estarei no vosso conhecimento de vós mesmos.” Décimo princípio: Não penseis fazer um
bem sempre – que a um irmão levardes assistência – podereis estar fazendo o
contrário – entravando seu progresso. Sabei que uma grande prova – será vossa
recompensa – se o humilhardes e impuserdes o respeito. Quando quiserdes agir –
não vos apoieis jamais em vossa crença – porque ela vos pode perder –
apoiai-vos sempre na consciência – que vos quer guiar, ela não pode
enganar-vos”. Estas pretensas “revelações” lembram em tudo as “comunicações”
espíritas, tanto pelo estilo quanto pelo conteúdo; certamente é inútil tentar
fazer um comentário ou dar uma explicação detalhada; é mesmo certo que o
próprio “Pai Antoine” não as compreendesse exatamente, e sua obscuridade foi
talvez uma das razões do seu sucesso. O que é preciso frisar acima de tudo, é a
oposição que ele quer estabelecer entre a inteligência e a consciência (sendo que
este último termo provavelmente deve ser tomado em seu sentido moral), e o modo
como ele pretende associar a inteligência à matéria; isto poderia alegrar os
partidários de Bergson, ainda que tal aproximação seja pouco elogiosa. Seja
como for, é compreensível que o Antonismo desdenhe a inteligência, e que ele a
denuncie mesmo como a causa de todos os males: ela representa o demônio no
homem, como a consciência representa Deus; mas, graças à evolução, tudo acabará
por se arranjar: “Por nosso progresso, encontraremos no demônio o verdadeiro
Deus, e na inteligência a lucidez da Consciência”. Com efeito, o mal não existe
realmente; o que existe, é apenas a “visão do mal”, ou seja é a inteligência
que cria o mal aonde quer; o único símbolo do culto antonista é uma espécie de
árvore chamada “árvore da ciência da visão do mal”. Eis porque é preciso “não
ver o mal em nada”, porque então ele cessa de existir; em particular, não se
deve vê-lo na conduta do próximo, e é assim que se deve entender a interdição
de “pregar a moral aos outros”, tomando esta expressão no seu sentido
estritamente popular; é evidente que Antoine não poderia proibir de pregar a
moral, porque ele próprio quase não fez outra coisa. Ele acrescentava preceitos
de higiene, o que aliás estava em seu papel de “curador”; lembremos a propósito
que os Antonistas são vegetarianos, como os teosofistas e os membros de
diversas outras seitas de tendência humanitárias; mas eles não podem ser
considerados “zoófilos”, pois entre eles é severamente proibido possuir
animais: “Devemos saber que o animal só existe em aparência; ele não passa do
excremento de nossa imperfeição (sic)
(...) Erramos ao nos ligarmos a um animal; é um grande pecado, porque o animal
não é digno de ter sua morada aonde residem os humanos”. A própria matéria só
existe em aparência, ela é uma ilusão produzida pela inteligência: “Dizemos que
a matéria não existe porque superamos a imaginação”; ela identifica-se assim ao
mal: “Um átomo de matéria é para nós um sofrimento”; e Antoine chega a declarar:
“Se a matéria existe, Deus não pode existir”. Eis como ele explica a criação da
terra: “Nada senão a individualidade de Adão criou este mundo (sic). Adão foi levado a constituir para
si uma atmosfera e a construir sua morada, o globo, tal como ele o queria”.
Citemos ainda alguns aforismos relativos à inteligência: “Os conhecimentos não
são o saber, eles só compreendem a matéria (...) A inteligência, considerada
pela humanidade como a faculdade mais invejável de todos os pontos de vista,
não é senão a morada de nossa imperfeição (...) Eu vos revelei que existem em
nós duas individualidades, o eu consciente e o eu inteligente: um é real, o
outro é aparente (...) A inteligência não é senão o feixe de moléculas a que
chamamos cérebro (...) À medida em que progredimos, demolimos o eu inteligente
para construir o eu consciente”. Tudo isto é bastante incoerente; a única idéia
que se depreende, se é que se pode chamar a isto de idéia, pode ser formulada
assim: é preciso eliminar a inteligência em proveito da “consciência”, vale
dizer da sentimentalidade. Os ocultistas franceses, recentemente, chegaram a
uma atitude quase igual; ainda que eles não tenham, na sua maior parte, a
desculpa de serem iletrados, convém notar que a influência de um outro
“curador” desempenhou aí um papel relevante.
Para ser coerente consigo mesmo, Antoine deveria ter-se
limitado a enunciar preceitos morais do tipo destes, que estão inscritos nos
seus templos: “Um só remédio pode curar a humanidade: a fé. É da fé que nasce o
amor: o amor que nos mostra Deus em nossos inimigos. Não amar a seus inimigos,
é não amar a Deus, pois é o amor que temos aos nossos inimigos que nos torna
dignos de servi-lo: somente este amor nos faz verdadeiramente amar, porque ele
é puro e verdadeiro”. Esta é, parece, a essência da moral antonista; no demais,
ela é mais elástica: “Vós sois livres, agi como bem entendeis, quem fizer o bem
encontrará o bem. De fato, gozamos a tal ponto nosso livre arbítrio, que Deus
nos permite fazer dele o que quisermos”. Mas Antoine achou bom formular também
algumas teorias de outra ordem, e é sobretudo nestas que ele atingiu o cúmulo
do ridículo; eis um exemplo, extraído de uma brochura intitulada L’Auréole de la Conscience: “Eu vos
direi como devemos compreender as leis divinas e de que modo elas podem agir
sobre nós. Sabeis que a vida está em toda parte; se o vazio existisse, o nada
teria também sua razão de ser. Uma coisa que eu também posso afirmar, é que o
amor também existe em toda parte, e assim como existe amor, existem também
inteligência e consciência. Amor, inteligência e consciência reunidos
constituem uma unidade, o grande mistério, Deus. Para vos fazer compreender o
que são estas leis, eu devo voltar ao que já vos repeti relativamente aos
fluídos: eles existem tantos quanto os pensamentos; temos a faculdade de
manejá-los e estabelecer suas leis, pelo pensamento, segundo nosso desejo de
agir. Aqueles que impomos a nossos semelhantes, impomos a nós mesmos. Tais são
as leis do interior, chamadas vulgarmente leis de Deus. Quanto às leis do
exterior, chamadas leis da natureza, elas são o instinto da vida que se
manifesta na matéria, reveste-se de todas as nuances, toma numerosas formas,
incalculáveis, segundo a natureza do germe dos fluídos ambientes. Assim
acontece com todas as coisa, todas tem seu instinto, mesmo os astros que planam
no espaço infinito dirigem-se pelo contato dos fluídos e descrevem
instintivamente suas órbitas. Se Deus quisesse estabelecer regras para chegar a
ele, elas seriam um entrave ao nosso livre arbítrio; fossem elas relativas ou
absolutas, elas seriam obrigatórias,
porque não poderíamos dispensá-las para atingir o objetivo. Mas Deus
deixa a cada um a faculdade de fazer suas leis, segundo a necessidade; esta é
mais uma prova de seu amor. Qualquer lei só pode ter a consciência como base.
Não digamos portanto “leis de Deus”, mas antes “leis da consciência”. Esta
revelação provém dos princípios mesmos do amor, deste amor que transborda de
todas as partes, que se encontra no centro dos astros como no fundo dos
oceanos, deste amor cujo perfume acha-se em toda parte, que alimenta todos os
reinos da natureza e que mantém o equilíbrio e a harmonia em todo o universo”.
À questão: “De onde vem a vida?”, Antoine responde a seguir: “A vida é eterna,
ela está em toda parte. Os fluídos existem também ao infinito e por toda
eternidade. Estamos mergulhados na vida e nos fluídos como o peixe na água. Os
fluídos encadeiam-se e são cada vez mais etéreos; eles se distinguem pelo amor;
onde quer que ele exista, existe a vida, pois sem a vida o amor não tem razão
de ser. Basta que dois fluídos estejam em contato por um certo grau de calor
solar, para que seus dois germes de vida se disponham a entrar em relação. É
assim que a vida cria uma individualidade e se torna agente”. Se pedíssemos ao
autor destas elucubrações para expressar-se com mais clareza, ele teria sem
dúvida respondido com esta frase que ele repetia sempre: “Não vedes senão o
efeito, buscai a causa”. Não esqueçamos que Antoine conservou cuidadosamente,
do espiritismo kardecista aonde ele começou, não apenas esta teoria dos
“fluídos”, que viemos expressar ao seu modo, mas também, com a idéia de
progresso, a de reencarnação: “A alma
imperfeita permanece encarnada até que tenha atingido a perfeição (...) Antes
de deixar o corpo que morre, a alma prepara para si um outro em que se
reencarnar (...) Nossos entes queridos supostamente desaparecidos só o são em
aparência, não cessamos um instante de vê-los e de estar com eles. A vida
corporal não passa de uma ilusão”.
Aos olhos dos Antonistas, o que mais importa nos
“ensinamento” do “Pai”, é o seu lado “moralista”; todo o resto é acessório.
Temos uma prova disto num panfleto de propaganda que tem este título:
“Revelação do Pai Antoine, o grande curador da Humanidade, para aqueles que tem
fé”, e que transcrevemos textualmente: “O Ensinamento do Pai tem por base o
amor, ele revela a lei moral, a consciência da Humanidade; ele lembra ao homem
os deveres que ele deve cumprir em relação aos seus semelhantes; seja ele
retardado ao ponto de não poder compreendê-los, ele poderá, ao contato com
aqueles que os difundem, encher-se do amor que daí vem; este lhe inspirará
melhores intenções e fará germinar nele sentimentos mais nobres. A religião,
diz o Pai, é a expressão do amor extraído do seio de Deus, que nos faz amar a
todos indistintamente. Não percamos jamais de vista a lei moral, pois é por ela
que pressentimos a necessidade de melhorar. Não chegamos todos ao mesmo grau de
desenvolvimento intelectual e moral, e Deus sempre coloca os fracos em nosso
caminho para os dar a ocasião de nos
aproximarmos Dele. Ele se acha no meio dos seres que são desprovidos de
qualquer faculdade e que precisam de nosso apoio; o dever nos impõe ajudá-los
na medida em que acreditamos num Deus bom e misericordioso. Seu desenvolvimento
não lhes permite praticar uma religião cujo ensinamento está acima do alcance
de sua compreensão, mas nossa maneira de agir em relação a eles lhes lembrará o
respeito que lhes é devido e os levará a buscar o meio mais vantajoso para o
seu progresso. Se quisermos atraí-los por uma moral que repousa sobre leis
inacessíveis ao seu entendimento, nós os confundiremos, os desmoralizaremos, e
a menor instrução a respeito lhes será insuportável; eles acabarão por nada
mais entender; duvidando assim da religião, então eles irão recorrer ao
materialismo. Eis a razão por que a humanidade perde todos os dias a verdadeira
crença em Deus em favor da matéria. O Pai revelou que outrora era tão difícil
encontrar um materialista quanto hoje é difícil encontrar um verdadeiro crente
(2). Desde que ignoramos a lei moral pela qual somos dirigidos, nós a
transgredimos. O Ensinamento do Pai discute esta lei moral, inspiradora de
todos os corações devotados a regenerar a Humanidade; ele não interessa apenas
aos que tem fé em Deus, mas a todos os homens indistintamente, crentes e não
crentes, qualquer que seja a categoria a que se pertença. Não creiam que o Pai
exige o estabelecimento de uma religião que restringe seus adeptos a um
círculo, obrigando-os a praticar sua doutrina, a observar certos ritos, a
respeitar certas formas, a seguir uma opinião qualquer, a deixar sua religião
para vir a Ele. Não, não é assim: nós instruímos aqueles que se dirigem a nós
sobre aquilo que compreendemos do Ensinamento do Pai e os exortamos à prática
sincera da religião na qual têm fé, a fim de que possam adquirir os elementos
morais relativos à sua compreensão. Sabemos que a crença só pode estar baseada
no amor; mas devemos sempre nos esforçarmos por amar e não por nos fazermos
amar, pois este é o maior dos flagelos. Quando estivermos cheios do Ensinamento
do Pai, não haverá mais dissensão entre as religiões porque não haverá mais
indiferença, amar-nos-emos a todos porque teremos enfim compreendido a lei do
progresso, teremos os mesmos olhos para todas as religiões e mesmo para a
descrença, persuadidos de que ninguém nos pode fazer o menor mal e que, se
quisermos ser úteis a nossos semelhantes, devemos demonstrar-lhes que
professamos uma boa religião respeitando a sua e lhes desejando o bem.
Estaremos então convencidos de que o amor nasce da fé que é a verdade; mas só a
possuiremos quando não a quisermos possuir”. E este documento termina com esta
frase impressa em maiúsculas: “O Ensinamento do Pai é o Ensinamento do Cristo revelado
nesta época pela fé”. É também por esta assimilação inacreditável que termina o
artigo, tirado de um órgão teosofista, que citamos em outra parte: “O Pai só
quer renovar o ensinamento do Cristo, por demais materializado nesta época
pelas religiões que se apropriaram deste grande Ser” (3). Esta pretensão é de
uma audácia que apenas a inconsciência pode desculpar; dado o estado de
espírito que ela denuncia ente os Antonistas, não é de espantar que eles tenham
chegado a uma verdadeira deificação de seu fundador, e isto quando ele ainda
era vivo; não estamos exagerando, e temos o testemunho disto neste extrato de
uma de suas publicações: “Fazer de Antoine um grande homem, não seria
rebaixá-lo? Vocês admitirão. Suponho, que nós, seus adeptos, que estamos a par
de seu trabalho, tenhamos a seu respeito
outros pensamentos. Vocês interpretam por demais intelectualmente, vale dizer
materialmente, nossa maneira de ver, e, julgando assim sem conhecimento de
causa, não podem compreender o sentimento que nos anima. Mas qualquer um que
tenha fé em nosso bom Pai aprecia o que ele é com justiça porque o vê
moralmente. Podemos pedir-Lhe tudo o que quisermos, ele nos dá
desinteressadamente. No entanto, nos é lícito agir como quisermos, sem recorrer
a Ele, porque ele tem o maior respeito por nosso livre arbítrio; jamais Ele nos
impõe o que quer que seja. Se queremos pedir o Seu conselho, é por estarmos
convencidos de que ele sabe tudo de que necessitamos, e que nós ignoramos. Não
seria infinitamente preferível perceber seu poder antes de querer desacreditar
nossa maneira de agir a seu respeito? Como um bom pai, ele vela por nós. Quando, enfraquecidos pela
doença, vamos a Ele, plenos de confiança, Ele nos ampara e nos cura. Se estivermos
dobrados sob o peso das mais terríveis penas morais, Ele nos perdoa e leva a
esperança a nossos corações doloridos. A perda de um ente querido deixa em
nossas almas um vazio imenso, mas seu amor nos preenche e nos chama para o
dever. Ele possui o bálsamo por excelência, o amor verdadeiro que elimina toda
dificuldade, supera todo obstáculo, cura toda chaga, e Ele o prodiga a toda a
humanidade, porque Ele é antes o médico da alma do que do corpo. Não, não
queremos fazer de Antoine o Curador um grande homem, nós fazemos Dele nosso
salvador. Ele é antes nosso Deus, porque Ele só quer ser nosso servidor”.
É o bastante sobre uma pessoa totalmente desprovida de
interesse em si; mas o que é terrível, é a facilidade com que estas insanidades
se espalharam em nossa época; em poucos anos, o Antonismo recrutou seguidores
aos milhares. No fundo, a razão de seu sucesso, como de muitas coisas
semelhantes, é porque ele corresponde a algumas tendências que são próprias ao
espírito moderno; mas são precisamente estas tendências que são inquietantes,
porque elas são a própria negação da intelectualidade, e não se pode negar que
elas ganham terreno atualmente. O caso do Antonismo, como dissemos, é típico;
dentre as múltiplas seitas que se formaram no último meio século, existem
muitas análogas, mas esta tem a particularidade de ter nascido na Europa,
enquanto que a maior parte das outras, ao menos as que fizeram sucesso,
surgiram na América do Norte. Algumas, como a “Christian Science”, chegaram a
implantar-se na Europa, e inclusive na França, nos últimos anos (4); este é
mais um sintoma do agravamento do desequilíbrio mental do qual a aparição do
espiritismo marca de certo modo o ponto de partida; e, mesmo quando estas
seitas não derivam diretamente do espiritismo, como é o caso do Antonismo, as
tendências que elas manifestam são em grande medida as mesmas.
NOTAS
1. Le Théosofisme, pgs. 259-260.
2. Não é preciso uma
“revelação” para tanto; mas os Antonistas ignoram naturalmente que o
materialismo não data senão do século XVIII.
3. Le Théosophe, 1 de dezembro de 1913.
4. Cf. Le Théosofisme, pg. 259.
XIII
A PROPAGANDA
ESPÍRITA
Já assinalamos as tendências propagandísticas dos
espíritas; é inútil apresentar provas, porque estas tendências, sempre
intimamente ligadas às preocupações “moralistas”, aparecem em todas as suas
publicações. De resto, como já dissemos, esta atitude é melhor compreendida
entre os espíritas do que entre outras escolas “neo-espiritualistas” com
pretensões ao esoterismo: proselitismo e esoterismo são naturalmente
incompatíveis; mas os espíritas, que estão embutidos do mais puro espírito
democrático, são mais lógicos em relação a isso. Não pretendemos voltar sobre o
assunto; mas é bom notar algumas características particulares da propaganda
espírita, e notar que esta propaganda sabe, hoje em dia, fazer-se tão
insinuante quanto a das seitas de inspiração mais ou menos direta do
protestantismo; no fundo, tudo procede da mesma mentalidade.
Os espíritas acreditam poder invocar a expansão de sua
doutrina como uma prova de sua verdade; Allan Kardec escrevia: “Aqueles que
dizem que as crenças espíritas ameaçam invadir o mundo, proclamam por isso
mesmo sua potência, pois uma idéia sem fundamento e desprovida de lógica não
poderia tornar-se universal; se então o espiritismo impõe-se em toda parte, se
ele recruta aderentes entre as classes esclarecidas, como se reconhece, é
porque ele tem um fundo de verdade” (1). Eis um argumento caro a alguns
filósofos modernos, o apelo a um suposto
“consentimento universal” para provar a
verdade de uma idéia; nada poderia ser mais insignificante; em primeiro lugar,
a unanimidade jamais pode se realizar, e, mesmo que fosse, não haveria como
constatá-lo; isto equivale simplesmente, de fato, a pretender que a maioria
deve ter razão; ora, na ordem intelectual, existem muito mais chances de que
aconteça precisamente o contrário, pois os homens de inteligência medíocre são
certamente muito mais numerosos, e, de resto, sobre não importa qual questão,
os incompetentes formam sempre a imensa maioria. Temer a invasão do
espiritismo, equivale a reconhecer apenas o poder da multidão, ou seja de uma
força cega e brutal; para que as idéias se espalhem tão facilmente, é preciso
que elas sejam de uma qualidade muito inferior, e, se elas são aceitas, não é
porque elas tenham a menor força lógica, mas apenas porque elas se ligam a
interesses sentimentais. Quanto a pretender que o espiritismo “recruta
aderentes sobretudo nas classes esclarecidas”, isto é com certeza falso; é
verdade que seria preciso esclarecer exatamente o que se entende por isto,
porque as pessoas ditas “esclarecidas” podem sê-lo apenas de modo bastante
relativo; nada é mais lamentável do que os resultados de uma meia-instrução. De
resto, já dissemos que a adesão de alguns sábios mais ou menos “especialistas”
nada prova aos nossos olhos, porque, nos assuntos fora de sua especialidade,
eles podem achar-se exatamente no mesmo plano que qualquer um; e ainda esses
não passam de casos excepcionais, sendo a grande maioria da clientela espírita
formada incontestavelmente por um nível mental extremamente baixo. Claro, as
teorias espíritas estão ao alcance de todo mundo, e existem alguns que vêem
nisto uma marca de sua superioridade; eis, por exemplo, o que lemos num artigo
que já mencionamos precedentemente: “Coloquem diante de um trabalhador que não
teve a felicidade de ter estudos profundos um tratado metafísico sobre a
existência de Deus, com todo seu cortejo de provas ontológicas, físicas,
morais, estéticas (2). Que entenderá ele? Nada. Com tais ensinamentos, ele
estará condenado sem remissão a permanecer na ignorância mais completa... Ao
contrário, se o fizermos assistir a uma sessão espírita, se mesmo lhe
contarmos, se ele ler numa revista o que se passa nela, ele entenderá
imediatamente, sem nenhuma dificuldade, sem necessidade de explicações (...)
Graças à sua simplicidade que lhe permite espalhar-se por toda parte, o
espiritismo colherá numerosos admiradores (...) O bem progredirá sempre, se
todos compreenderem a verdade da doutrina espírita” (3). Esta “simplicidade”
que é tão elogiada e que se acha admirável, chamamos, de nossa parte,
mediocridade e indigência intelectual; quanto ao trabalhador imaginado, na
falta de uma instrução religiosa elementar cuja possibilidade foi prudentemente
excluída, achamos que mesmo a “ignorância mais completa” vale mais para ele do
que as ilusões e tolices do espiritismo: aquele que nada sabe sobre um assunto
e aquele que possui idéias falsas a respeito são igualmente ignorantes, mas a
situação do primeiro é ainda preferível à do segundo, mesmo sem falar dos
perigos específicos do caso de que se trata.
Os espíritas, em seu delírio de proselitismo, emitem às
vezes pretensões estupidificantes: “A nova revelação, escreve Léon Denis,
manifesta-se fora e acima das Igrejas. Seu ensinamento dirige-se a todas as
raças da terra. Por toda parte, os espíritos proclamam os princípios sobre os
quais ela se apóia. Em todas as regiões do globo ouve-se a grande voz que chama
o homem ao pensamento de Deus e da vida futura” (4). Que os espíritas tentem
então pregar suas teorias aos Orientais: verão como são acolhidos! A verdade é
que o espiritismo dirige-se exclusivamente aos Ocidentais modernos, e apenas
entre eles é aceito, por ser um produto de sua mentalidade, e as tendências que
ele traduz são precisamente aquelas pelas quais esta mentalidade se distingue
de todas as outras: busca do “fenômeno”, crença no progresso, sentimentalismo e
“moralismo” humanitário, ausência de qualquer intelectualidade verdadeira; esta
é toda a razão de seu sucesso, e é em sua estupidez mesmo que reside sua maior
força (no sentido desta força bruta de que falamos há pouco) e que lhe traz um
grande número de aderentes. De resto, os apóstolos da “nova revelação” insistem
sobretudo no caráter sentimental, “consolador” e “moralizador”: “Este ensinamento
pode trazer satisfação a todos, diz Léon Denis, dos espíritos mais refinados
aos mais modestos, mas ele endereça-se sobretudo aos que sofrem, aqueles que
dobram ao peso de duras provas, a todos aqueles que tem necessidade de uma fé
viril que os sustente em sua marcha, em seus trabalhos, em suas dores. O povo
tornou-se incrédulo e desconfiado diante de todo dogma, de toda crença
religiosa, pois ele sente que foi abusado durante séculos. No entanto,
sobrevivem sempre nele confusas aspirações para o bem, uma necessidade inata de
progresso, de liberdade e de luz, que facilitará a eclosão da idéia nova e de
sua ação regeneradora” (5). Os supostos espíritos “refinados” que podem
satisfazer-se com o espiritismo não são realmente muitos complexos; mas lembremos
que é sobretudo ao povo que ele quer se dirigir, e notemos de passagem esta
pomposa fraseologia””progresso, liberdade, luz”, que é comum a todas as seitas
do gênero, e que é de certa forma uma dessas “assinaturas” suspeitas de que
falamos. Citemos ainda outra passagem do mesmo autor: “O espiritismo nos revela
a lei moral, traça nossa linha de conduta e tende a aproximar os homens pela
fraternidade, a solidariedade e a comunhão de pontos de vista. Ele indica a
todos um objetivo mais digno e mais elevado do que aquele perseguido até hoje.
Ele traz consigo um sentimento novo da prece, uma necessidade de amar, de
trabalhar pelos outros, de enriquecer nossa inteligência e nosso coração (...)
Venham saciar-se nesta fonte celeste, todos os que sofrem, todos os que tem
sede da verdade. Ela fará correr nas suas almas uma onda refrescante e
regeneradora. Vivificados por ela, vocês sustentarão mais alegremente os
combates desta existência; vocês saberão viver e morrer dignamente” (6). Não é
de verdade que tem sede as pessoas a quem se dirigem apelos como este, mas de
“consolação”; se elas acham que alguma coisa é “consoladora”, ou são
persuadidas disto, elas apressam-se em acreditar, e sua inteligência não toma a
menor parte nisto; o espiritismo explora a fraqueza humana, aproveita-se de que
os homens acham-se, em nossa época, freqüentemente privados de toda direção
superior, e funda suas conquistas sobre a pior das decadências. Nestas
condições, não vemos o que autoriza os espíritas a verberar, como o fazem
muitas vezes, contra coisas tais como o alcoolismo por exemplo: também existem
pessoas que encontram na embriaguez o alívio ou o esquecimento de seus
sofrimentos; se os “moralistas”, com suas grandes frases vazias sobre a
“dignidade humana”, ficam indignados com tal comparação, pediremos que
pesquisem os casos de loucura devidos ao alcoolismo de um lado e ao espiritismo
de outro; levando em conta o número total respectivo de alcoólatras e de
espíritas e estabelecendo a proporção, não sabemos quem levará maior vantagem.
O caráter democrático do espiritismo afirma-se por sua
propaganda nos meios operários, aos quais sua “simplicidade” torna
particularmente acessível: é aí que seitas como o “Fraternismo” recrutam quase
todos os seus aderentes, e o caso do Antonismo é também típico sob este
aspecto. É verdade também que os mineiros da Bélgica e do norte da França
constituem um terreno mais favorável do que nenhum outro; a este [propósito
reproduziremos ainda um trecho encontrado em outra obra de Léon Denis: “É um
espetáculo reconfortante ver todos os domingos afluírem a Jumet (Bélgica), de
todos os pontos da bacia do Charleroi, numerosas famílias de mineiros
espíritas. Elas se agrupam em uma vasta sala onde, após as preliminares usuais,
escutam em recolhimento as instruções que seus guias invisíveis lhes fazem
ouvir pela boca de médiuns adormecidos. É através de um deles, simples
trabalhador das minas, pouco letrado, expressando-se freqüentemente em dialeto wallon, que se manifesta o espírito do
cônego Xavier Mouls, padre de grande valor e de alta virtude, a quem devemos a
popularização do magnetismo e do espiritismo nos confins da bacia. Mouls, após
cruéis provas e duras perseguições, deixou a terra, mas seu espírito vela
sempre por seus queridos mineiros. Todos os domingos, ele se apossa dos órgãos
de seu médium favorito e, após uma citação dos textos sagrados, com uma
eloqüência sacerdotal, desenvolve diante deles, em puro francês, durante uma
hora, o tema escolhido, falando ao coração e à inteligência de seus auditores, exortando-os
ao dever, à submissão às leis divinas. A impressão produzida nesta brava gente
é imensa; o mesmo ocorre em todos os meios onde o espiritismo é praticado de
maneira séria pelos humildes deste mundo” (7). Seria desinteressante prosseguir
esta citação, a cujo propósito faremos apenas uma simples observação: sabemos
como é violento o anticlericalismo dos espíritas; mas basta que um padre entre
em revolta mais ou menos aberta contra a autoridade eclesiástica para que eles
se apressem a celebrar seu “grande valor”, sua “alta virtude”, e assim por
diante. É assim que Jean Béziat tomou outrora a defesa do abade Lemire (8);
haveriam curiosas pesquisas a fazer sobre as relações mais do que cordiais que
todos os promotores de cismas contemporâneos entretém com os
“neo-espiritualistas” das diversas escolas.
Por outro lado, os espíritas, como os teosofistas, buscam
levar sua propaganda até a infância; sem dúvida, como vimos, muitos deles não
ousam chegar a admitir as crianças nas sessões experimentais, mas eles se
esforçam para ao menos inculcar-lhes as teorias, que são, em suma, o que
constitui o próprio espiritismo. Já assinalamos os “cursos de bondade” instituídos pelos “Fraternistas”; este título
provém indubitavelmente do humanitarismo protestante (9); no órgão desta seita,
lemos ainda o seguinte: “Sabemos que a idéia das sessões infantis segue seu
caminho, e nós não negligenciamos a educação fraternista das crianças. Educar a
criança, como se diz, é preparar o Fraternista de amanhã. A própria criança se
mostra uma excelente propagandista na escola e em seu meio, e ela ajuda muito
em nossa obra. Saibamos portanto guiá-las nesta boa via e encorajemos suas boas
disposições” (10). Aproximemos estas palavras daquelas pronunciadas em outra
circunstância pelo diretor do mesmo jornal, Jean Béziat: “Não é intolerável
assistir hoje em dia inculcar nas crianças concepções religiosas, e sobretudo,
o que é mais grave, impor-lhes o cumprimento de atos religiosos antes que elas
tenham consciência do que fazem, atos que elas deplorarão mais tarde?” (11).
Assim , não se deve dar a instrução religiosa às crianças, mas deve-se dar a
elas a instrução espírita; o espírito de concorrência que anima estas seitas
pseudo-religiosas não saberia manifestar-se de modo mais evidente. Por outro
lado, sabemos que existem espíritas que, malgrado os conselhos que lhes são
dados, fazem as crianças participarem de seus experimentos e, não contentes com
isto, tentam desenvolver nelas a mediunidade e sobretudo a “vidência”; podemos
adivinhar sem dificuldade qual será o resultado de tais práticas. De resto, as
“escolas de médiuns”, mesmo para os adultos, constituem um verdadeiro perigo
público; estas instituições, que funcionam freqüentemente sob a cobertura de
“sociedades de estudos”, não são tão raras quanto se pode pensar, e, se o
espiritismo continua a estender seus estragos, as perspectivas são pouco
tranqüilizadoras: “Uma organização prática do espiritismo, diz Léon Denis,
comportará no futuro a criação de asilos especiais, aonde os médiuns
encontrarão reunidas, com os meios materiais de existência, as satisfações do
espírito e do coração, as inspirações da arte e da natureza, tudo o que pode
imprimir às suas faculdades um caráter de pureza, de elevação, fazendo reinar
em torno deles uma atmosfera de paz e de confiança” (12). Sabemos bem o que os
espíritas entendem por “pureza” e por “elevação”, e estes “asilos especiais”
correm o risco de se parecerem mais a hospícios; infelizmente, seus hóspedes
não permanecerão indefinidamente encerrados aí, e, cedo ou tarde, sairão para
espalhar fora sua loucura eminentemente contagiosa. Tais empresas de
enlouquecimento coletivo já foram realizadas na América (13), e também na
Alemanha; na França, houveram apenas ensaios de proporções mais modestas, mas a
coisa irá piorar se não for vigiada cuidadosamente.
Dissemos que o espiritismo explora todos os sofrimentos e
tira proveito deles para ganhar aderentes às suas doutrinas; isto é verdade
inclusive para os sofrimentos físicos, graças às proezas dos “curadores”: os
“Fraternistas”, notadamente, estimam que “as curas são um poderoso modo de
propaganda” (14). Vemos como isto se produz: um doente, não sabendo mais a quem
se dirigir, vai em busca de um “curador” espírita; o estado de espírito em que
ele se encontra o predispõe naturalmente a receber sem resistência os
“ensinamentos” com os quais será agraciado, e que serão apresentados a ele como
próprios a facilitar a cura. De fato, no processo de Béthune, de que falamos,
foi dito o seguinte: “Embora facilite consideravelmente a cura, porque isto faz com que eles compreendam o
mecanismo, os doentes não são obrigados a assinar o jornal Le Fraterniste” (15); mas, se eles não são obrigados, podem ao
menos ser aconselhados, e de resto a propaganda oral é ainda mais eficaz. Se
nenhuma melhora se produz, estimula-se o doente a voltar, e tenta-se
persuadi-lo de que, se é assim, é porque ele não tem “fé”; talvez ele chegue a
“converter-se” pelo simples desejo de curar-se, e isto acontecerá com mais
certeza se ele sentir o menor alívio que lhe pareça, com ou sem razão, poder
ser atribuído à ação do “curador”. Ao publicar as curas obtidas (e sempre se
pode encontrar algumas, tanto mais que o controle é pouco exigente), pode-se
atrair outros doentes, e mesmo, entre pessoas de boa saúde, existem algumas
impressionáveis por estes relatos, e que, por pouca simpatia que já tenham pelo
espiritismo, acreditam encontrar aí uma prova de sua veracidade. Eis aí o
efeito de uma estranha confusão: supondo-se um homem que tenha faculdades de
“curador”, por possantes e incontestáveis que sejam, isto não tem nenhuma relação com as idéias que ele
professa, e as explicações que ele próprio dá sobre suas faculdades podem estar
completamente erradas; é preciso uma mentalidade como a de nossa época, que,
voltada unicamente para o exterior, queira ver nas manifestações sensíveis o
critério de toda verdade, para que seja preciso insistir sobre coisas tão
evidentes.
Mas o que mais atrai as pessoas ao espiritismo, e de modo
mais direto, é a dor causada pela perda de um parente ou de um amigo: muitos se
deixam assim seduzir pela idéia de que poderão comunicar-se com os
desaparecidos. Lembraremos os casos, já citados, de duas individualidades tão
diferentes sob este aspecto, Sir Oliver Lodge e o “Pai Antoine”: foi após a
perda de um filho que um e outro tornaram-se espíritas; malgrado as aparências,
era a sentimentalidade que predominava no sábio e no ignorante, como acontece
com a grande maioria dos Ocidentais atuais. De resto, a incapacidade de se dar
conta do absurdo da teoria espírita prova suficientemente que a
intelectualidade do sábio não passava de uma pseudo-intelectualidade; pedimos
desculpas por voltarmos ao assunto, mas esta insistência é necessária para
reagir contra a superstição da ciência. Agora, que não venham gabar os
benefícios da pretensa comunicação com os mortos: em primeiro lugar, nós nos
recusamos a admitir que uma ilusão qualquer seja, em si mesma, preferível à
verdade; ademais, se esta ilusão chega a ser destruída, o que é sempre possível,
corre-se o risco de que ela deixe em seu lugar um verdadeiro desespero; enfim,
antes que existisse o espiritismo, as aspirações sentimentais encontravam com
que se satisfazer na esperança derivada das concepções religiosas, e, quanto a
isto, não havia necessidade alguma de se imaginar outra coisa. A idéia de
entrar em relação com os defuntos, sobretudo por processos como os dos
espíritas, não é absolutamente natural ao homem; ela só pode ocorrer àqueles
que sofrem a influência do espiritismo, cujos aderentes não deixam de exercer,
neste sentido, pela escrita e pela palavra, a propaganda mais indiscreta. O
exemplo mais típico da engenhosidade que empregam os espíritas, é a instituição
destes escritórios de comunicação aos quais qualquer um pode dirigir-se para
obter novas dos mortos pelos quais se interesse: já falamos dos “Vinhateiros do
Senhor”, que foi o ponto de partida do movimento antonista, mas há outro mais
conhecido, que funcionou em Londres por três anos, sob o nome de “Bureau Julia”. O fundador deste foi o
jornalista inglês W.T. Stead, antigo diretor da Pall Mall Gazette e da Review
of Reviews, que faleceria em 1912 no naufrágio do Titanic; mas, segundo ele, a idéia desta criação veio de um
“espírito” chamado Julia. Eis a notícia que encontramos num órgão que se quer
“psíquico”, mas que é acima de tudo espírita no fundo: “Julia era o prenome de
Miss Julia A. Ames; ela havia feito parte da redação do Union Signal de Chicago, órgão da Women’s Christian Temperance Union, sociedade de temperança cristã
(ou seja, protestante) e feminina. Nascida em Illinois em 1861, ela era de pura
cepa anglo-americana. Em 1890, no curso de uma viagem à Europa, ela encontrou o
senhor Stead; tornaram-se grandes amigos. No outono do ano seguinte, ela voltou
à América, caiu doente em Boston e morreu
no hospital desta cidade. Como muitas outras almas piedosas, Miss Ames
havia feito um pacto com sua melhor amiga, que fora para ela uma irmã durante
muitos anos. Combinaram que ela voltaria do além e se faria ver para dar uma
prova da vida após a morte, e da possibilidade de os defuntos comunicarem-se
com os vivos. Muitos tentaram isso, poucos conseguiram; Miss Ames, conforme
Stead, foi uma destas últimas (16). Pouco tempo após a morte de Miss Ames a
personalidade de “Julia” propôs abrir um
escritório de comunicação entre o mundo em que estamos e o outro (...) Durante
doze anos ou mais, o senhor Stead não conseguiu executar esta sugestão” (17).
Parece que forma sobretudo as “mensagens” de seu filho morto que o determinaram
enfim a abrir o “Bureau Julia”, em
abril de 1909, com a ajuda de algumas pessoas dentre as quais citaremos apenas
o teosofista Robert King, que hoje em
dia está à frente do ramo escocês da “Igreja Antigo-católica” (18). Tomamos de
um outro órgão espírita alguns detalhes, que mostram o caráter puramente
protestante do cerimonial que rodeava as sessões: “Conforme os arranjos que a
própria Julia havia feito, a cada qual tocava um turno de “serviço”, que
consistia primeiramente em preces, seguida da leitura do processo-verbal da
vigília, depois dos pedidos endereçados ao Bureau,
que afluíam de todos os pontos do globo. Após uma semana ou duas de
funcionamento, Julia pediu que a prece, no começo das sessões, fosse seguida de
uma curta leitura bíblica. O senhor Stead lia algumas passagens do Antigo e do
Novo Testamento. Outros inspiravam-se com as comunicações de Julia ou de
Stanton Moses (19), outros com Fenelon ou outros autores (...) As sessões da
manhã eram reservadas exclusivamente ao pequeno círculo que formava o Bureau. Os estranhos não eram aí
admitidos, salvo em raras exceções. O objetivo era formar um cenáculo que, como
explicava Julia, fosse composto por um grupo de pessoas que simpatizassem umas
com as outras, escolhidas por ela mesma, e que deveria produzir um centro cuja
força psíquica crescesse sem parar. Deveria, dizia ela, formar-se uma cálice ou um copo de inspiração (sic), uma pura luz, vibrando entre os
sete raios (alusão às sete pessoas que o compunham) que formavam as reuniões
místicas” (20). E eis outra coisa muito significativa quanto ao caráter
pseudo-religioso destas manifestações: “Em suas cartas, Julia recomenda o uso
do Rosário, mas do Rosário modernizado. Eis como ela o entende. Anotem o nome
de todos aqueles, mortos ou vivos, com os quais tenham estado em relação. Cada
um destes nomes representa um grão do Rosário. Percorram-no todos os dias,
enviando a cada um dos nomes um pensamento afetuoso. Esta irradiação espalhará
uma corrente considerável de simpatia e de amor, que são como a essência divina
da humanidade, como as pulsações da vida, e um pensamento de amor é como um
anjo de Deus trazendo uma bênção às almas”(21). Retomemos a seqüência da
primeira citação: “O senhor Stead declara que a própria Julia encarregou-se de
dirigir as operações do dia a dia: ela era a direção invisível do Bureau (...) Qualquer um que tivesse
perdido um amigo, um parente querido, poderia recorrer ao Bureau, que lhe faria saber em que condições se poderia fazer a
tentativa d comunicação. Em caso de adesão, o consentimento da direção (Julia)
devia ser obtido. Este consentimento era recusado para todos os que não vinham
para ouvir os seres amados e perdidos. Sobre este ponto, Julia explicava-se
positivamente (...) O Bureau de
Julia, como ela não deixava de repetir, devia manter-se em seu objetivo
original, que era o de colocar em comunicação pessoas queridas após terem sido
separadas pela mudança chamada morte”. A seguir, reproduzimos as explicações
dadas por Julia sobre o objetivo da fundação: “O objetivo do Bureau é de vir em auxílio daqueles que
querem reencontrar-se após a mudança a que chamamos morte. É uma espécie de
escritório postal de cartas, onde são triadas, com um novo exame, as
correspondências, para fazer a redistribuição. Onde não haja mensagens de amizade,
nem de desejo, de parte e de outra, de corresponder-se, não cabe dirigir-se ao Bureau. O empregado encarregado do
trabalho pode ser comparado a um delegado de aldeia que se coloca em campo para
encontrar uma criança perdida na multidão e a devolve à mãe chorosa. Uma vez
reunidas, sua tarefa está encerrada. Existe a tentação, é verdade, de tentar ir
além e transformar o Bureau num
centro de exploração do além. Mas ceder a esta tentação seria prematuro. Não
que eu tenha qualquer objeção a esta exploração. É uma conseqüência natural,
necessária e das mais importantes, do vosso trabalho. Mas o Bureau, meu Bureau, não deve encarregar-se disto. Ele deve limitar-se ao seu
primeiro dever, que é o de lançar a ponte, de renovar os laços cortados, de
restabelecer a comunicação daqueles que foram privados” (22). Este é bem o tipo
do espiritismo exclusivamente sentimental e “piedoso”; mas será tão fácil assim
estabelecer claramente uma linha de demarcação entre este e o espiritismo com
pretensões “científicas”, ou , como dizem alguns, entre o
“espiritismo-religião” e o “espiritismo-ciência”, e não será o segundo senão
uma máscara do primeiro? No início de 1912, o “Institut des recherches psychiques” dirigida pelos senhores Lefranc
e Lancelin, e cujo jornal nos forneceu a maior parte das indicações
precedentes, pretendeu constituir em Paris um “Bureau Julia” (esta havia se tornado uma denominação genérica), mas
organizado sobre bases mais “científicas” do que o de Londres; para este
efeito, foi feita “uma escolha definitiva de procedimentos de identificação
espírita”, dentre os quais figurava, em primeiro lugar, “a antropometria
digital da materialização parcial do falecido”, e chegou-se mesmo a criar um
modelo de “ficha sinalética”, com campos reservados para as fotografias e
impressões dos “espíritos” (23); os espíritas que se pretendem sábios são ainda
mais ridículos do que os outros. Ao mesmo tempo, foi aberta “uma escola de
médiuns que tinha por objetivos: 1º) instruir e dirigir na prática ,
médiuns dos dois sexos; 2º) desenvolver as faculdades especiais das
pessoas melhor dotadas com o fim de ajudar nas identificações espíritas do “Bureau Julia” de Paris”; e
acrescentava-se: “cada pessoa receberá as instruções necessárias ao
desenvolvimento de sua mediunidade particular. As pessoas serão reunidas duas
vezes por semana em horas determinadas, para seu desenvolvimento. Estes cursos
serão gratuitos” (24). Esta é verdadeiramente uma das empreitas de
enlouquecimento coletivo de que falamos; parece que a coisa não teve muito
sucesso, mas o espiritismo, na França, não tinha ainda a importância que
adquiriu nos últimos anos (25).
Esses últimos fatos merecem alguns comentários: não
existem realmente dois espiritismo, mas apenas um; porém, este espiritismo tem
dois aspectos, um pseudo-religioso e outro pseudo-científico, e, segundo o
temperamento das pessoas a quem se dirige, pode-se insistir de preferência
sobre um ou sobre outro. Nos países anglo-saxões, o lado pseudo-religioso
parece ser mais desenvolvido; nos países latinos, parece que o lado
pseudo-científico tem mais sucesso; isto, de uma maneira geral, e a habilidade
dos espíritas consiste sobretudo em adaptar sua propaganda aos diferentes meios
que ele quer atingir; de resto, cada qual encontra assim como aplicar-se segundo
suas preferências pessoais, e as divergências são muito mais aparentes do que
reais; no fundo, tudo se reduz a uma questão de oportunidade. É assim que
alguns espíritas podem, conforme a ocasião, se disfarçar de psiquistas, e
pensamos que não se deve ver outra coisa no “Institut de recherches psychiques”; o que encoraja esta prática, é
que os sábios que chegaram ao espiritismo começaram pelo psiquismo; este último
é portanto susceptível de constituir um meio de propaganda bom para ser
explorado. Estas não são simples suposições: temos como prova os conselhos
endereçados aos espíritas por Albert Jounet; este era um ocultista, mas de um
“ecletismo” inacreditável, que criou, em 1910, uma “Alliance spiritualiste”, na qual ele pretendia reunir todas as escolas
“neo-espiritualistas” sem exceção (26). Neste mesmo ano, Jounet assistiu ao
Congresso espírita internacional de Bruxelas, e pronunciou um discurso do qual
extraímos este trecho: “Por falta de organização, o espiritismo não tem, sobre
o mundo, a influência que ele merece (...) Tentemos ensaiar esta organização
que lhe falta. Ela deve ser doutrinal e social. É preciso que as verdades
espíritas sejam agrupadas e apresentadas de maneira a se tornarem mais
admissíveis ao pensamento. E é preciso q eu os próprios espíritas se agrupem e
se apresentem de maneira a se tornarem mais invencíveis para a humanidade (...)
É amargo, humilhante para os espíritas, eu confesso, quando as verdades
reveladas e propagadas pelo espiritismo só são bem recebidas nos meios oficiais
e pelo público burguês quando retomadas pelo psiquismo. Entretanto, embora os
espíritas aceitem esta humilhação, ela assegurará sua exaltação. Este recuo
aparente prepara o triunfo. Mas então, indignem-se, será preciso mudar de nome,
cessar de ser espírita, disfarçar-se de psiquista, abandonar os mestres,
aqueles que, no início do movimento, sofreram e descobriram? Não é isto que eu
aconselho. A humildade não é a covardia. Eu não os convido a mudar de nome. Eu
não digo: abandonem o espiritismo pelo psiquismo. Não se trata de uma
substituição, mas de uma ordem de apresentação. Eu digo: apresentem o psiquismo
antes do espiritismo. Vocês
suportaram a parte mais difícil da campanha e da luta. Agora é preciso terminar
a conquista. Eu os aconselho a enviar diante de vocês, para terminá-la mais
depressa, alguns habitantes do país ligados a vocês, mas que falem a língua do
país. A manobra é simples e capital. Na propaganda e na polêmica, nas
discussões com os incrédulos e com os adversários, em lugar de declarar que,
depois de muito tempo, as verdades ensinadas pelos espíritas são confirmadas
pelos sábios psiquistas, declarem que os sábios psiquistas provam tal verdade e
mostrem, só depois disto, que após algum tempo, os espíritas a resgatam e
ensinam. Portanto, a fórmula dominante da organização doutrinal é: primeiro o
psiquismo, depois o espiritismo”. Após detalhar a “ordem de apresentação” que
ele propunha para as diversas classes de fenômenos, o orador prosseguia nestes
termos: “Uma tal organização seria capaz de conferir à sobrevida experimental (sic) toda a intensidade invasora que uma
certeza tão apaixonante, e de tão formidáveis conseqüências, deveria ter. As
verdades espíritas virão à luz através das névoas espessas dos preconceitos,
das resistências das velhas mentalidades. Será uma transformação colossal do
pensamento humano. As maiores revoluções da história, povos engolidos por
outros povos, migrações de raças,
surgimento de religiões, titânicos desenvolvimentos de liberdades, parecerão
pouca coisa depois desta tomada de posse dos homens pela alma (sic). À organização doutrinal
juntar-se-á a organização social. Pois, assim como as verdades espíritas, é
urgente classificar e agrupar os próprios espíritas. Aí ainda, eu farei
intervir a fórmula: primeiro psiquismo, depois espiritismo. Vocês criaram uma
Federação espírita universal. Eu aprovo inteiramente esta obra. Mas eu
desejaria que esta Federação espírita tivesse uma sessão psiquista em que se
pudesse entrar primeiro. Ela serviria de ante-câmara. Não se enganem a respeito
deste meu projeto. O título da associação não mudaria. Ela permaneceria como
Federação espírita. Mas haveria uma sessão psiquista, ao mesmo tempo anexa e
preliminar, Eu imagino que, no domínio social, tanto quanto no doutrinal, esta
disposição contribuiria para a vitória. Um arranjo análogo seria repetido nas
Sociedades e Federações nacionais, membros da Federação espírita universal”
(27). Compreende-se a importância deste texto, que é o único, de nosso
conhecimento, onde se ousou preconizar tão abertamente semelhante “manobra” (o
termo é do próprio Jounet); esta é uma tática que é preciso denunciar, porque
ela está longe de ser inofensiva, e ela permite aos espíritas atrair, sem que
elas percebam, pessoas cujo interesse por fenômenos aproximam-nas deles, mas
que entretanto não gostariam de se dizer espíritas: sem lhes fazer nenhuma
concessão real, fazem-se as coisas de modo a não envergonhá-las, e, na
seqüência, tenta-se sutilmente ganhá-las para a “causa”, como se diz nesses
meios. O que aumenta o perigo de tentativas deste gênero, é a força do espírito
“científico” em nossa época: é a este espírito que se pretende apelar; no mesmo discurso, que foi
calorosamente aplaudido por todos os membros do Congresso, Jounet disse ainda:
“A proclamação da imortalidade, nessas condições (ou seja como conseqüência do
trabalho dos psiquistas), é um fato revolucionário, um desses golpes potentes
que obrigam a mudar o curso do gênero humano. Porque? Porque aqui a
imortalidade da alma fica estabelecida não pela fé e pelo raciocínio abstrato,
mas pela experiência e pela observação, a ciência. E a ciência manejada não por
espíritas, mas por sábios de profissão (...) Podemos bradar aos incrédulos:
vocês não querem fé, vocês não querem filosofia abstrata; eis aqui a
experiência e a observação rigorosas, eis a ciência! E podemos dizer ainda:
vocês não querem espíritas: eis aqui sábios. Os incrédulos estarão impedidos de
responder. A obra de Myers e de sua escola (a “Societé des recherches psychiques”), representará a imortalidade
penetrando no coração daquilo que existe de mais moderno no mundo moderno, no
mais positivo do positivo. É a alma ancorada no método da ciência oficial e nos
sábios de profissão. É o espiritismo vencedor e mestre, mesmo fora do espiritismo.
Reconheçam que não é uma tática ruim a de apresentar primeiro o psiquismo”. Já
vimos o que se deve pensar de uma pretensa demonstração experimental da
imortalidade, mas os incrédulos de que fala Jounet não devem ser muito difíceis
de convencer: basta invocar a “ciência” e a “experiência” para que eles sejam
“impedidos de responder”! O espiritismo recolhendo os frutos do positivismo,
eis aí algo que Auguste Comte certamente não previu; e no entanto, depois de
tudo, veremos muitos “curadores” e outros médiuns formar o sacerdócio da
“religião da Humanidade”... Repetirmos aqui o que já dissemos: o psiquismo, se
fosse bem compreendido, deveria ser completamente independente do espiritismo;
mas os espíritas tiram partido de certas tendências que os psiquistas têm em
comum com eles, e também das confusões que se estabelecem no grande público.
Esperamos que os psiquistas sérios compreendam enfim o erro de tais
aproximações, e que encontrem meios de reagir eficazmente; para tanto, não
basta protestarem que não são espíritas, é preciso que se dêem conta do absurdo
do espiritismo, e que ousem dizê-lo. Que não se diga que é preciso guardar a respeito uma imparcialidade
pretensamente científica: hesitar em rejeitar uma hipótese quando se tem a
certeza de que ela é falsa, é uma atitude que nada tem de científica no
verdadeiro sentido da palavra; e às vezes os sábios, em outras circunstâncias,
descartam ou negam teorias que, no entanto, são ao menos possíveis, enquanto
que esta sequer o é. Se os psiquistas não o compreendem, pior para eles; a
neutralidade, diante de certos erros, está muito próxima da cumplicidade; e, se
eles pretendem solidarizar-se nem que seja um pouco com os espíritas, seria
mais leal que o reconhecessem, mesmo com todas as reservas que queiram; ao menos
saberíamos com que estamos lidando. De qualquer modo, tomaremos, de nossa
parte, a posição de descrédito quanto às pesquisas psíquicas, ainda mais que
sua vulgarização é mais perigosa do que útil; se no entanto existir quem queira
retomá-las sobre bases mais sólidas, que evitem cuidadosamente qualquer
intrusão espírita ou ocultista, desconfiem de seus pacientes sob todos os
aspectos, e encontrem métodos experimentais mais adequados que os dos médicos e
dos físicos; mas aqueles que possuem qualificações para saber realmente o que é
preciso fazer num tal domínio são muito pouco numerosos, e, em geral, os
fenômenos só lhes interessam mediocremente.
É quando invocam os argumentos sentimentais que os
espíritas, em sua propaganda, mostram melhor suas tendências essenciais; mas,
como eles pretendem apoiar sua teorias sobre fenômenos, os dois aspectos que
assinalamos, longe de se opor, são na realidade complementares. De resto, a
busca de fenômenos e o sentimentalismo vão muito bem juntos, e isto não tem
nada de estranho, pois a ordem sensível e a sentimental estão muito próximas
uma da outra; no Ocidente modernos, elas unem-se estreitamente para descartar
toda intelectualidade. Um dos temas preferidos da propaganda sentimental, é a
concepção reencarnacionista: àqueles que dizem que ela ajuda algumas pessoas a
suportar com resignação uma situação penosa, podemos responder repetindo o que
já dissemos sobre os pretensos benefícios de uma comunicação com os
“desaparecidos”, e enviaremos ao capítulo onde relatamos algumas das
extravagâncias a que dá lugar esta idéia, que aterroriza mais pessoas do que
consola. Em todo caso, o simples fato de que se insista em inculcar estas
teorias “àqueles que sofrem” prova que se trata de uma verdadeira exploração da
fraqueza humana: parece que se usa o estado de depressão mental ou física para
se fazer aceitar, e isto não pesa muito a seu favor. Atualmente, a teoria da
reencarnação é a que parece mais espalhar-se entre as massas, e, para chegar a
elas, todos os meios são bons; usam-se os recursos da literatura, e esta idéia
encontra-se na produção de muitos romancistas. O resultado, é que muitas
pessoas que se crêem distantes do espiritismo e do “neo-espiritualismo” são no
entanto contaminadas pelos absurdos que emanam destes meios; esta propaganda
indireta é talvez a mais insidiosa de todas, porque é a que assegura a maior
difusão das teorias em questão, apresentando-as sob uma forma agradável e
sedutora, e porque ela não desperta a desconfiança do grande público, que não
vai ao fundo das coisas e não suspeita que haja, debaixo daquilo que vê, todo
um “mundo subterrâneo” cujas ramificações estendem-se por toda parte
entrelaçando-se de mil maneiras diferentes.
Tudo isso pode ajudar a compreender que o número de
aderentes do espiritismo venha crescendo de modo aterrador; e ainda é preciso
acrescentar, aos aderentes propriamente ditos, todos aqueles que sofrem sua
influência e sugestões de modo mais ou menos indireto, e todos aqueles que para
aí se encaminham insensivelmente, tenham começado pelo psiquismo ou por
qualquer outro meio. Seria muito difícil estabelecer uma estatística, mesmo
para os espíritas declarados; a multiplicidade dos grupos, sem falar dos
isolados, é o principal obstáculo a uma avaliação precisa. Em 1886, o Dr.
Gibier escrevia que “não seria exagero dizer que em Paris existem perto de cem
mil espíritas” (28); na mesma data, Mme. Blavatsky avaliava em vinte milhões o
número de espíritas espalhados no mundo todo (29), e mais da metade destes
estariam só nos Estados Unidos, pois Russel Wallace falava em onze milhões para
este país. Hoje estas cifras devem ter aumentado consideravelmente; a França,
onde o espiritismo tinha muito menos extensão do que na América do Norte e
Inglaterra, é talvez o país que mais ganhou terreno nos últimos anos, graças ao
estado de desequilíbrio geral e confusão causado pela guerra; a mesma coisa
pode ser dita a respeito da Alemanha. O perigo é a cada dia mais ameaçador;
para ignorá-lo, é preciso estar completamente cego e desconhecer o ambiente mental
de nossa época, ou estar sugestionado, tanto mais irremediavelmente quanto
menos se suspeite. Para remediar tal estado de coisas, não acreditamos na
eficácia de uma intervenção dos poderes públicos, mesmo admitindo que eles
quisessem, o que certas cumplicidades e afinidades parecem descartar; uma
intervenção destas só atingiria algumas manifestações exteriores, e não teria
ação sobre o estado de espírito que é a verdadeira causa; é melhor deixar a
cada um reagir por si próprio e na medida de seus meios, desde que tenha
compreendido a necessidade.
NOTAS
1. Le Livre des Esprits, pg.454.
2. Tudo isto, naturalmente, não
tem a menor relação com a metafísica verdadeira; o que o autor chama com este
nome, são as banalidades da filosofia universitária, e é fácil de ver o que são
para ele os “estudos profundos”: um manual de bacharelado representa aos seus
olhos a mais alta intelectualidade concebível!
3. Spiritisme et Métaphysique, por J. Rapicault: Le Monde Psychique, janeiro de 1912.
4. Christianisme et Spiritisme, pgs. 277-278.
5. Ibid.,
pgs. 319-320.
6. Après la mort, pgs. 417-420.
7. Christianisme et Spiritisme, pgs. 329-330.
8. Le Fraterniste, 8 de maio de 1914.
9. Já mencionamos (Le Théosophisme, pg. 230), as “Ligas de
Bondade”, de inspiração claramente protestante, e que os teosofistas apóiam
calorosamente.
10. Le Fraterniste, 19 de junho de 1914 (discurso do delegado do grupo de Anzin na
assembléia geral dos Fraternais, 21 de maio de 1914)
11. Le Fraterniste, 27 de maio de 1914 (conferência proferida em Sallaumines, 15 de março
de 1914)
12. Dans l’Invisible, pg. 59.
13. Não falamos apenas dos
Estados Unidos, mas também do Brasil, onde uma “escola de médiuns” foi fundada
em 1902.
14. Le Fraterniste, 22 de maio de 1914
15. Id.,
23 de janeiro de 1914.
16. Lembremos a propósito a
promessa feita por William James; quanto ao próprio Stead, pouco depois de sua
morte, diversos médiuns começaram a receber suas “comunicações” (Le
Monde Psychique, junho de 1912).
17. Le Monde Psychique, fevereiro de 1912.
18. Ver Le Théosophisme, pgs. 237-238.
19. Já falamos do Reverendo
Stainton Moses, conhecido também sob o pseudônimo de M.A. Oxon, e de sua
relações com a Sociedade Teosófica.
20. Echo de la Doctrine spirite (jornal da “Association
des Études spirites”), novembro de 1916.
21. Id.,
janeiro-fevereiro de 1917.
22. Le Monde Psychique, fevereiro de 1912. Cf. L’Initiation,
outubro de 1909 e março de 1910.
23. Le Monde Psychique, março de 1912.
24. Id.,
fevereiro de 1912.
25. Papus teve também a idéia de
organizar para si um “Bureau Julia”,
mas não chegou a executá-la.
26. Antes disto, P.-E. Heidet
(Paul Nord) havia tido a idéia de uma “Sociedade Eclética Universal”, que não
chegou a ter existência efetiva, e que acabou por fundir-se ao “Fraternismo”.
27. L’Alliance Spiritualiste, novembro de 1910.
28. Le Spiritisme, pg. 35.
29. Carta a Solovioff, fevereiro
de 1886.
XIV
OS PERIGOS DO
ESPIRITISMO
Já assinalamos suficientemente, na medida em que se
apresentava a ocasião, os múltiplos perigos do espiritismo, e poderíamos nos
dispensar de voltar ao assunto, se não tivéssemos a registrar alguns
testemunhos e certos avisos. E, antes de
mais nada, notemos que existem alguns perigos puramente físicos, que, se não
chegam a ser os mais graves nem os mais habituais, nem por isso podem ser
negligenciados; daremos como prova este fato que foi reportado pelo Dr. Gibier:
“Três cavalheiros, com o objetivo de assegurar se certas alegações espíritas
eram exatas, fecharam-se numa noite sem luz num quarto de uma casa desabitada,
não sem antes fazerem um juramento solene de serem absolutamente sérios e de
boa fé. O cômodo estava completamente vazio e, propositadamente, eles só haviam
colocado três cadeiras e uma mesa ao redor da qual sentaram-se. Convencionaram
previamente que se qualquer coisa de
insólito acontecesse, um deles iluminaria a cena com lanternas, de que
os três estavam munidos. Eles permaneceram quietos e silenciosos durante um
tempo, atentos aos menores ruídos, aos menores tremores da mesa sobre a qual
haviam colocado suas mãos entrelaçadas. Nenhum som se fazia ouvir; a escuridão
era profunda, e ta;vez os três invocadores improvisados estivessem já perdendo
a paciência, quando subitamente um grito estridente explodiu no silêncio da
noite. Imediatamente um estrépito assustador se produziu e uma saraivada de
projéteis choveu sobre a mesa e os operadores. Cheio de terror, um dos
assistentes acendeu a lanterna como combinado, e, quando a luz dissipou as
trevas, estavam apenas dois dos três e eles viram que o terceiro havia
desaparecido; sua cadeira estava virada em uma extremidade do cômodo. Passado o
primeiro susto, eles o reencontraram sob a mesa, inanimado e com a cabeça e o
rosto cobertos de sangue. Que teria se passado? Constataram que a capa de
mármore da lareira havia sido arrancada e teria sido projetada sobre a cabeça
do infeliz homem e feita em mil pedaços. A vítima deste acidente esteve cerca
de dez dias inconsciente, entre a vida e a morte, e recuperou-se lentamente da
terrível comoção cerebral que havia recebido” (1). Papus, que reproduz este
relato, reconhece que “a prática espírita conduz os médiuns à neurastenia passando
pela histeria”, que “estas experiências são tanto mais perigosas quanto mais
inconsciente e desarmado se está”, e que “nada impede as obsessões, as anemias
nervosas e os acidentes mais graves ainda”; e ele acrescenta: “Pessoalmente,
possuímos muitas cartas bastante instrutivas, escritas por infelizes médiuns
que se dedicaram com todas as suas forças à experimentação e que hoje são
assediadas perigosamente pelos seres que se apresentaram a eles sob nomes
falsos e se apoderando das personalidades de parentes falecidos” (2). Eliphas
Lévi já havia assinalado estes perigos e prevenido que aqueles que se dedicam a
esses estudos, mesmo por simples curiosidade, expunham-se à loucura ou à morte
(3); e um ocultista da escola papusiana, Marius Decrespe, escreveu igualmente:
“O perigo é certo; muitos enlouqueceram, em horríveis condições, por terem
tentado levar longe demais suas experiências (...) Não é apenas o bom senso que
se arrisca, é a razão inteira, a saúde, a vida, e muitas vezes a honra (...) A
descida é escorregadia: de um fenômeno se passa a um outro e, logo, já não se
consegue parar. Não é sem motivo que, outrora, a Igreja proibia todas estas
diabruras” (4). Do mesmo modo, o espírita Barthe diz: “Não nos esqueçamos que
nos colocamos por estas comunicações sob a influência direta de seres
desconhecidos dentre os quais existem alguns tão rudes e tão perversos
como nem podemos imaginar (...) Tivemos
muitos exemplos de doenças graves, desarranjos cerebrais, mortes súbitas
causadas por revelações enganosas que só se tornavam verdadeiras pela fraqueza
e a credulidade daqueles a quem eram feitas” (5).
A propósito desta última citação, devemos chamar a atenção
especial para as predições contidas em certas “comunicações”, e que agem como
uma verdadeira sugestão sobre aqueles que são seu objeto; de resto, este perigo
existe também para aqueles que, fora do espiritismo, recorrem às “artes
adivinhatórias”; mas estas práticas, por pouco recomendáveis que sejam, não
podem ser exercidas de modo tão constante como as dos espíritas, e assim elas
arriscam menos de se tornarem idéias fixas e obsessões. Existem infelizes, mais
numerosos do que se pensa, que não empreendem nada sem antes consultar sua
tábua, e isto mesmo para as coisas mais insignificantes, para saber qual cavalo
ganhará a corrida, que número sairá na loteria, e assim por diante (6). Se as
predições não se realizam, o “espírito” sempre encontra uma desculpa: as coisas
deveriam se passar como ele havia dito, mas sobreveio tal ou tal circunstância que era impossível
prever, e tudo mudou; a confiança das pobres pessoas não é alquebrada, e elas
recomeçam até finalmente se acharem arruinadas, reduzidas à miséria, ou levadas
a expedientes desonestos que o “espírito” não deixa de sugerir; e tudo isto
termina normalmente na loucura completa ou no suicídio. Às vezes, acontece
ainda de as coisas se complicarem de outro modo, e as vítimas, ao invés de
consultarem elas mesmas o pretenso “espírito” pelo qual se deixaram guiar
cegamente, dirigem-se a um médium que será fortemente tentado a explorar sua
credulidade; o próprio Dunglas Home relata um exemplo, que aconteceu em
Genebra, e ele conta a entrevista que teve, a 5 de outubro de 1876, com uma
pobre mulher cujo marido havia ficado louco após esses eventos: “Foi em 1853, disse
ela, que uma novidade muito singular veio a nos distrair de nossas ocupações
ordinárias. Tratava-se de algumas jovens que, junto com um amigo comum, haviam
desenvolvido a estranha qualidade de médiuns escritoras. Também seu pai,
diziam, tinha o dom de se colocar em relação com os espíritos, por meio de uma
tábua (...) Eu fui a uma sessão, e, como tudo o que se passava me pareceu de
bom jeito, convidei meu marido a vir comigo (...) Assim nós nos vimos na
presença do médium, que nos disse que o espírito de Deus falava por sua tábua
(...) A tábua acabou por dar a entender que deveríamos instalar em nossa casa o
médium e sua família, e partilhar com ele a fortuna que ele havia pedido a Deus
que nos desse. As comunicações feitas pela tábua eram ditas virem diretamente
de Nosso Salvador Jesus Cristo. Eu disse a meu marido: “Vamos dar-lhes uma soma
de dinheiro; seus gostos e os nossos são diferentes, e eu não ficarei feliz
vivendo com eles”. Meu marido respondeu: “A vida daquele a quem adoramos foi
uma vida de abnegação, e devemos procurar imitá-lo em todas as coisas. Supere
seus preconceitos, e este sacrifício provará ao Mestre a boa vontade que você
tem em servi-lo”. Eu consenti, e uma família de sete pessoas mudou-se para
nossa casa. Então começou para nós uma vida de despesas e prodigalidades.
Jogava-se dinheiro pela janela. A tábua nos ordenou expressamente de adquirir
uma nova viatura, quatro novos cavalos, em seguida um barco a vapor. Nós
tínhamos nove criados. Pintores vieram decorar a casa de alto a baixo. Fomos
mudando a mobília por outras, cada vez mais suntuosas. Isto com o fim de
receber mais dignamente aquele que vinha nos ver, e de chamar a atenção das
pessoas de fora. Tudo o que nos era pedido, fazíamos. Era custoso, tínhamos a
casa aberta. Aos poucos, pessoas começaram a chegar em grande número, jovens
dos dois sexos em sua maioria, a quem a tábua prescrevia casamentos, que se
faziam às nossas expensas, e se o casal tinha filhos, nos era confiada sua
educação. Chegamos a ter onze crianças em casa. Por sua vez, o médium casou-se,
e os membros de sua família aumentaram, de modo que não tardamos a contar trinta pessoas à mesa. Isto
durou três ou quatro anos. Já estávamos quase no fim de nossos recursos. Então
a tábua nos disse para irmos a Paris, e que o Senhor cuidaria de nós. Partimos.
Tão logo chegados a Paris, meu marido recebeu ordens de especular na Bolsa. Ele
perdeu o pouco que nos restava. Era a miséria, a miséria negra, mas ainda
tínhamos fé. Não sei como vivíamos. Em muitos dias eu não tinha o que comer,
senão uma torrada e um copo de água. Esqueci de dizer que em Genebra nos fomos
ordenados a administrar o santo sacramento aos fiéis. Havia às vezes quase
quatrocentos comungantes. Um monge de Argovie deixou seu convento, onde era
superior e abjurou o catolicismo para juntar-se a nós. Assim, não estávamos sós
em nossa cegueira. Finalmente, pudemos deixar Paris e voltar a Genebra. Foi
então que nos demos conta de nossa infelicidade. Aqueles com quem partilhamos
nossa fortuna foram os primeiros a nos darem as costas”. E Home acrescenta como
comentário: “Eis portanto um homem que, diante de uma tábua, debita uma série
de blasfêmias ao apelo lento e difícil do alfabeto, e isto é o bastante pata
jogar uma família piedosa e honesta num delírio de extravagância do qual ela só
emerge quando esta arruinada. E mesmo arruinadas, estas pobres pessoas nÃo
estÃo menos cegas. Quanto àquele que causou sua ruína, não é o único que já
encontrei. Esses seres estranhos, metade velhacos, metade convincentes, que encontramos
em todas as épocas iludindo os homens, terminam por levar a sério o papel que
lhes é atribuído, e se tornam mais fanáticos do que as pessoas de quem abusam”
(7).
Poderá ser dito sem dúvida que tais desventuras só podem
acontecer aos espíritos fracos, e que aqueles a quem o espiritismo enlouquece
estariam predispostos a isto; isto pode ser verdade até um certo ponto, mas, em
condições mais normais, estas predisposições poderiam não se desenvolver; as
pessoas que se tornam loucas em conseqüência de um acidente qualquer também
possuiriam estas predisposições, e entretanto, se este acidente não ocorresse,
elas não teriam perdido a razão; não é, portanto,uma desculpa válida. De resto,
as pessoas que são suficientemente equilibradas para estarem certas de não ter
nada a temer em nenhuma circunstância são com certeza bem raras; diremos mesmo
que ninguém pode ter esta segurança, a menos que esteja garantido contra tais
perigos por um conhecimento doutrinal que torne impossível qualquer ilusão e
qualquer vertigem mental; e não é entre os experimentadores que encontramos tal
conhecimento. Falamos dos sábios cujas experiências psíquicas levaram a aceitar
mais ou menos completamente as teorias
espíritas, o que, a nosso ver, já indica entre eles um certo desequilíbrio
parcial; um deles, Lombroso, declarou a amigos após uma sessão de Eusápia
Paladino: “Agora é preciso que eu saia daqui, porque sinto que estou ficando
louco; tenho necessidade de repousar o espírito” (8). O Dr. Lapponi, citando
estas significativas palavras, observa com razão que “fenômenos prodigiosos,
quando observados por pessoas despreparadas para certas surpresas, podem ter
como resultado um desarranjo do sistema nervoso, mesmo entre pessoas sãs” (9).
O mesmo autor escreve: “O espiritismo apresenta para a sociedade e para o
indivíduo todos os perigos, como também todas as conseqüências funestas, que o
hipnotismo; e apresenta muitos outros ainda mais deploráveis (...) Entre os
indivíduos que desempenham o papel de médiuns, e entre os que assistem às suas
operações, o espiritismo produz ou bem a obnubilação ou bem a exaltação mórbida
das faculdades mentais; ele provoca as mais graves nevroses e nevropatias
orgânicas. É notório que a maior parte dos médiuns famosos, e muitos daqueles
que seguem assiduamente as práticas espíritas, morreram loucos ou atingidos por
problemas nervosos profundos. Mas além destes perigos e males, que são comuns
ao hipnotismo e ao espiritismo, este apresenta outros infinitamente mais
desagradáveis (...) E que não se pretenda que o espiritismo possa ao menos
apresentar, em troca, algumas vantagens, como auxiliar no reconhecimento e na
cura de algumas doenças. A verdade é que, se às vezes as indicações assim
obtidas se mostram exatas e eficazes, quase sempre, ao contrário, elas só fazem
agravar o estado dos doentes. Os espíritas nos dizem que isto se deve à
intervenção de espíritos bufões ou zombeteiros; mas como poderíamos estar
prevenidos contra a ação destes espíritos malfeitores? Portanto o espiritismo
jamais poderá se justificar, na prática, sob qualquer pretexto que seja” (10)
Por outro lado, um antigo membro da “Societé
des recherches psychiques” de Londres, Godfrey Raupert, após ter realizado
experimento durante anos, declarou que “a impressão que restou destes estudos
foi a de desgosto, e a experiência mostrou-lhe o dever, que é o de alertar
contra os espíritas, particularmente aqueles que pedem consolo, conselhos e
mesmo ensinamentos aos seres do outro mundo (...) Estas experiências, diz ele,
acabam por enviar centenas de pessoas aos sanatórios e aos hospícios. E no
entanto, apesar do terrível perigo para a nação, nada se faz para deter a
propaganda dos espíritas. Estes estão talvez inspirados por motivos elevados,
por ideais científicos, mas, em definitivo, eles colocam homens e mulheres num
estado de passividade que abre as portas místicas da alma aos espíritos
perversos; a partir daí, estes espíritos vivem às custas destas pessoas de alma
fraca, os levam ao vício, à loucura, à morte moral” (11). Em lugar de falar de
“espíritos”, como Raupert (que de resto parece não crer que se trate de
“desencarnados”), falaremos simplesmente de “influências”, sem precisar sua
origem, porque existem muitas, e em todo caso elas nada tem de “espiritual”;
mas isto não muda em nada as terríveis conseqüências que ele assinala, e que
são bem reais.
Já citamos o testemunho de Mme. Blavatsky e de outros
chefes do teosofismo, que denunciaram
especialmente os perigos da mediunidade (12); reproduziremos ainda aqui uma
passagem de Mme.Blavatsky que havíamos apenas resumido na ocasião: “Os melhores, os mais potentes
médiuns, todos sofreram em seus corpos e em suas almas. Lembrem-se do fim
deplorável de Charles Foster, que morreu louco furioso num hospício; lembrem-se
de Slade, epilético, de Eglinton, o maior médium da Inglaterra hoje em dia, que
padece do mesmo mal. Vejam ainda como foi a vida de Dunglas Home, um homem cujo
coração estava cheio de amargura, e que caluniou todos os outros médiuns até o
fim. Este Calvino do espiritismo sofreu, durante anos, de uma terrível doença
da espinha dorsal, que adquiriu em suas relações com os “espíritos”, e ele era
quase uma ruína ao morrer. Pensem na triste sorte deste Washington Irving
Bishop. Eu o conheci em Nova York, quando não tinha mais do que quatorze anos;
ele não tinha a menor dúvida de que era médium. É verdade que o pobre homem
desembaraçou-se dos seus “espíritos”, que ele chamava de “ação muscular
inconsciente”, para grande alegria de todas as corporações de sábios e de
eruditos, e grande benefício de sua conta bancária. Mas... de mortuis nil nisi bonum! Seu fim foi bastante infeliz. Ele
conseguiu esconder seus ataques epiléticos (o primeiro e mais seguro sintoma da
mediunidade), e quem pode dizer se ele estava morto ou “em transe” quando se
fez a autópsia de seu corpo? Seus pais diziam que eles estava vivo ainda, a
acreditarmos nos despachos telegráficos da Reuters. Vejam enfim as irmãs Fox,
as mais antigas médiuns, as fundadoras do espiritismo moderno: após mais de
quarenta anos de relações com os “anjos”, elas se tornaram, graças a eles,
loucas incuráveis que declararam, em suas conferências públicas, que a obra e a
filosofia de toda sua vida não passou de engano! Eu pergunto que tipo de
espíritos as inspiraram a tal conduta... Se os melhores alunos de uma escola de
canto perdem a voz, depois de exercícios forçados, não devemos concluir que
seguiram um método ruim? Parece que podemos concluir o mesmo das informações
que temos a respeito do espiritismo, quando seus melhores médiuns são vítimas
da mesma sorte” (13).
Mas ainda há mais: espíritas eminentes confessam eles
mesmos estes perigos, mesmo tentando atenuá-los, e explicando-os a seu modo.
Eis notadamente o que diz Léon Denis: “Os espíritos inferiores, incapazes de
aspirações elevadas, comprazem-se em nossa atmosfera. Eles se intrometem em
nossa vida, e, unicamente preocupados com o que cativava seu pensamento durante
sua existência corporal, eles participam dos prazeres e dos trabalhos dos
homens aos quais se sentem unidos por analogias de caráter e de atitudes. Às
vezes eles chegam a dominar e subjugar as pessoas fracas que não sabem resistir
à sua influência. Em certos casos, seu domínio chega a tal ponto, que eles
podem levar estas pessoas ao crime e à loucura. Estes casos de possessão e de
obsessão são mais comuns do que se pensa” (14) Numa outra obra do mesmo autor,
lemos o seguinte: “O médium é um ser nervoso, sensível, impressionável; (...) a
ação fluídica prolongada dos espíritos inferiores pode ser-lhe funesta,
arruinar sua saúde, provocando nele fenômenos de obsessão e de possessão (...)
Estes casos são numerosos; alguns chegam à loucura (...) O médium Philippe
Randone, diz a Medianità, de Roma
(15), estava exposto aos maus procedimentos de um espírito, designado sob o
nome de uomo fui, que chegou, muitas
vezes, a sufocá-lo à noite sob uma pirâmide de móveis que ele se comprazia a
transportar para sua cama. Em plena sessão, ele apossava-se de Randone e o
atirava ao chão, com risco de feri-lo. Até hoje, não se conseguiu desembaraçar
o médium deste hóspede perigoso. Em revanche, a revista Luz y Union, de Barcelona (dezembro de 1902), reporta que uma
infeliz mãe de família, levada ao crime contra seu marido e seus filhos por uma
influência oculta, devido a acessos de fúria contra os quais os meios comuns
eram impotentes, foi curada em dois meses pela invocação e pela conversão do
espírito que a possuía, por meios da persuasão e da prece” (16). Esta
interpretação da cura é engraçada: sabemos que os espíritas gostam de dirigir
aos pretensos “espíritos inferiores” discursos “moralizantes”, mas isto é
verdadeiramente “pregar no deserto”, e não cremos que possa ter a menor
eficácia; de fato, as obsessões às vezes cessam por si sós, e ocorre de
impulsos criminosos como esses sejam seguidos deste efeito. Às vezes também,
toma-se como uma obsessão verdadeira o que não passa de auto-sugestão; neste
caso, é possível combatê-la com a sugestão contrária, e este papel pode ser
preenchido pelas exortações endereçadas ao “espírito”, que então é a mesma
coisa que o “subconsciente” de sua vítima; é provavelmente o que se passou no
último caso relatado, a menos que tenha havido apenas coincidência, e não
relação causal, entre o tratamento e a cura. Seja como for, é inacreditável que
pessoas que reconhecem a realidade e a gravidade desses perigos ousem ainda
recomendar as práticas espíritas, e é preciso ser verdadeiramente inconsciente
para pretender que a “moralidade” constitua arma suficiente para se preservar
dos acidentes deste gênero, o que é mais ou menos a mesma coisa de imaginar que
ela pode proteger contra o raio ou assegurar a imunidade contra epidemias; a
verdade é que os espíritas não tem nenhum meios de defesa à sua disposição, e
nem poderia ser de outro modo, uma vez que eles ignoram tudo sobre as forças com
as quais lidam.
Poderia ser, senão muito interessante, pelo menos útil,
organizar os casos de loucura, obsessão e acidentes de todo tipo causados pelas
práticas do espiritismo; não seria difícil obter testemunhos seriamente
controlados, e, como vimos, as próprias publicações espíritas trazem um grande
contingente; uma tal coleção poderia produzir sobre muitas pessoas uma
impressão bastante salutar. Mas não é a isto que nos propomos: se citamos
alguns fatos, foi unicamente a título de exemplos, e os tomamos de preferência,
na maior parte, entre autores espíritas ou que tivessem afinidades com o
espiritismo,autores que não se pode acusar de parcialidade ou exagero num
sentido desfavorável. A esses citações, poderíamos acrescentar muitas outras do
mesmo estilo; mas seria monótono, porque todas se parecem, e as que fornecemos
são suficientes. Para resumir, diremos que os perigos do espiritismo são de
muitas ordens, podendo ser classificados em físicos, psíquicos e intelectuais;
os perigos físicos são os de acidentes como o reportado pelo Dr. Gibier, e
também, de modo mais freqüente e habitual\, as doenças provocadas ou
desenvolvidas nos médiuns sobretudo, e às vezes em alguns assistentes das
sessões. Estas doenças, que afetam principalmente o sistema nervoso, são
freqüentemente acompanhadas de problemas psíquicos; as mulheres parecem ser
mais expostas, mas seria um erro imaginar que os homens estão isentos; de
resto, para estabelecer uma proporção exata, seria preciso levar em conta que o
elemento feminino é muito mais numeroso na maior parte dos meios espíritas. Os
perigos psíquicos não podem ser inteiramente separados dos perigos físicos, mas
eles aparecem como bem mais constantes e mais graves ainda; lembremos, mais uma
vez, as obsessões de caráter variado, as idéias fixas, os impulsos criminosos,
as dissociações e alterações de consciência e de memória, as manias, a loucura
em todos os seus graus; se se quisesse montar uma lista completa, quase todas
as variedades conhecidas dos alienistas estariam representadas, sem contar
outras que eles ignoram, e que são os casos propriamente ditos de obsessão e
possessão, que correspondem ao que há de mais temível nas manifestações
espíritas. Em suma, tudo se resume pura e simplesmente à desagregação da
individualidade humana; as diferentes formas de desequilíbrio mental não passam
de etapas ou fases preliminares, e, por tão deploráveis que sejam, nunca se
sabe se as coisas não irão ainda mais longe; isto, aliás, escapa em grande
parte, senão totalmente, às investigações de médicos e psicólogos. Enfim, os
perigos intelectuais resultam de que as teorias espíritas constituem, sobre
todos os pontos aos quais se referem, um erro completo, e elas não, como os
outros, restritos aos experimentadores; já assinalamos a difusão desses erros,
pela propaganda direta ou indireta, dentre pessoas que não praticam o
espiritismo, e que podem se achar inclusive muito distantes dele; esses perigos
intelectuais são portanto os que tem um alcance mais geral. De resto, é sobre
este lado da questão que mais insistimos no decurso do presente estudo; o que
quisemos mostrar acima de tudo, é a falsidade da doutrina espírita, e, em nossa
opinião, é por ser falsa que ela deve ser combatida. De fato, existem verdades
que seria perigoso espalhar, mas, se tal acontecesse, este perigo não nos
impediria de reconhecê-las como verdades; de resto, isto quase não é preciso
temer, porque coisas assim são do tipo que não se prestam à vulgarização.
Trata-se aí, bem entendido, de verdades que tem conseqüências práticas, e não
de ordem puramente doutrinal, onde não se arrisca jamais, em suma, outros
inconvenientes do que os que resultam da incompreensão a que se expõe
inevitavelmente quando se expressam idéias que ultrapassam o nível da
mentalidade comum, inconvenientes que seria um erro exagerar. Mas, para
voltarmos ao espiritismo, diremos que seus perigos particulares,
acrescentando-se ao seu caráter de erro, tornam mais urgente a necessidade de
combatê-lo; esta é uma consideração secundária e contingente em si mesma, mas
não deixa de ser uma razão de oportunidade, que, nas atuais circunstâncias, não
é possível negligenciar.
NOTAS
1. Analyse des choses, pg. 185.
2. Traité élémentaire de Magie pratique, pgs. 505-507.
3. La Clef des Grands Mystères.
4.
La Main et ses mystères, tomo II, pg. 174.
5. Le Livre des Esprits; citado por Méric, L’autre vie, tomo II, pg. 425.
6. Léon Denis reconhece estes
fatos e protesta contra tais “abusos” que provocam o que ele chama de
“mistificações de além-túmulo” (Dans
l’Invisible, pg. 410).
7.
Les Lumières et les Ombres du Spiritisme, pgs.
103-110.
8. Osservatore Cattolico, 23-24 de setembro de 1892.
9.
L’Hypnotisme et le Spiritisme, pg. 209.
10. Ibid.,
pgs. 270-272. – Este autor comete o erro de pensar que o espiritismo é idêntico
à magia (ibid., pgs. 256-257); já
indicamos como são diferentes na realidade.
11. Daily Chronicle, 15 de novembro de 1913.
12. Le Théosophisme, pgs. 127-129.
13. La Clef de la Théosophie, pgs. 272-274.
14. Après la Mort, pg. 239.
15. Reproduzido em Spiritualisme Moderne, abril de 1903.
16. Dans l’Invisible, pgs. 382-384.
CONCLUSÃO
Algumas pessoas podem nos repreender por termos discutido
tão seriamente teorias que são tão pouco sérias no fundo; a bem dizer, nós
mesmos há alguns anos, teríamos a mesma opinião, e hesitaríamos em empreender
um trabalho deste gênero. Mas a situação mudou, agravando-se consideravelmente;
é um fato que não se pode dissimular, e que nos fez refletir: se o espiritismo
se torna a cada dia mais invasivo, ele pode acabar por envenenar completamente
a mentalidade pública, e é preciso levá-lo em consideração e combatê-lo por
outros meios do que se ele fosse apenas uma aberração de algumas
individualidades isoladas e sem influência. Certamente, é uma estupidez; mas o
que é terrível, é que esta estupidez tenha conseguido exercer uma ação tão
extensa, o que prova que ela responde a tendências bastante gerais, e é por
isso que dissemos que não se pode negligenciar a questão da oportunidade; como
não se podem atacar todos os erros de uma vez, porque eles são inumeráveis, é
melhor deixar de lado os que são relativamente inofensivos e sem chance de
sucesso; ms infelizmente o espiritismo não é um deles. É muito fácil, claro,
rir-se dos “giradores de mesas” e dos “produtores de espíritos”, divertir as
pessoas sensatas mostrando todas as suas extravagâncias (das quais assinalamos
algumas), denunciar as superstições dos médiuns, descrever os personagens
grotescos que encontramos nos meios espíritas; mas tudo isso não é o bastante,
são necessárias outras armas além do ridículo, e de resto trata-se de algo que
é mais nocivo do que engraçado, embora seja cômico por mais de um lado.
Dir-se-á sem dúvida ainda que os argumentos que expusemos
são de difícil compreensão, que eles não estão ao alcance de todos; isto pode
ser verdade em certa medida, e no entanto nos esforçamos por sermos o mais
claro possível; mas não somos daqueles que acham melhor dissimular certas
dificuldades, ou simplificar as coisas em detrimento da verdade. Acreditamos,
de resto, que não se deve exagerar, que seria um erro deixar-se abater pela
aparência um pouco árida de certas demonstrações, e que cada qual poderá
compreender o bastante para convencer-se da falsidade do espiritismo; no fundo,
tudo é mais simples do que pode parecer a princípio para os que não estão
acostumados. De resto, sobre qualquer questão, não se pode exigir que tudo
esteja ao alcance de todo mundo sem exceção, pois existem necessariamente
diferenças intelectuais entre os homens; aqueles que não compreendem totalmente
devem se reportar à competência dos que compreendem melhor. Não se trata de um
apelo à “autoridade”, pois trata-se apenas de suprir uma deficiência natural, e
esperamos que cada um se esforce por ir tão longe quanto lhe seja possível; é
apenas a constatação de uma desigualdade contra a qual ninguém pode nada, e que
não se manifesta apenas no que diz respeito ao domínio metafísico.
Em todo caso, diremos, concluindo, que é apenas
colocando-nos do ponto de vista puramente metafísico que se pode estabelecer de
modo absoluto a falsidade do espiritismo; não há outro meio d demonstrar que
suas teorias são absurdas, ou seja que elas só representam impossibilidades.
Todo o resto não passa de aproximações, de razões mais ou menos plausíveis, mas
que nunca são tão rigorosas ou plenamente suficientes, e que sempre podem se
prestar a discussões; ao contrário, na ordem metafísica, a compreensão sempre
traz consigo, necessariamente, o assentimento e a certeza. Quando falamos de
aproximações, não pensamos nos pretensos argumentos sentimentais, que não são
nada, e não podemos compreender como alguns adversários do espiritismo insistem
em desenvolver estas coisas pífias; ao agirem assim, eles só provam que lhes
falta a verdadeira intelectualidade, tanto quanto àqueles que eles querem
combater. Falamos dos argumentos científicos e filosóficos; se alguns tem um
certo valor, é ainda um valor relativo, e nada disso constitui uma refutação
definitiva; é preciso tomar as coisa por cima. Podemos assim dizer, sem medo de
desmentido, que fizemos, não apenas outra coisa, mas muito mais do que o que
foi feito até agora no mesmo sentido; e estamos à vontade para afirmar que o
mérito, em suma, não é nosso pessoalmente, mas da doutrina na qual nos
inspiramos, diante da qual as individualidades não contam; o que deve ser
atribuído a nós são as imperfeições de nossa exposição, e que existem apesar
dos cuidados que tomamos.
Por outro lado, a refutação do espiritismo, além do
interesse que apresenta por si mesma, nos permitiu, como enunciamos no início,
exprimir algumas verdades importantes; sobretudo as verdades metafísicas, que,
mesmo quando formuladas a propósito de um erro, ou para responder a objeções,
tem sempre um alcance eminentemente positivo. Claro, preferiríamos, de nossa
parte, expor a verdade pura e simplesmente, sem nos embaraçarmos com as
complicações acessórias que suscita a incompreensão, mas, quanto a isto,
deve-se ainda levar em conta a oportunidade. De resto, isso pode, quanto aos
resultados, apresentar algumas vantagens: de fato, o simples fato de que a
verdade seja apresentada por ocasião de tal ou tal coisa contingente, pode
chamar para ela a atenção de pessoas que não são incapazes de compreendê-la,
mas que, não tendo feito estudos especiais, imaginam erradamente que ela não
está ao seu alcance, e que não teriam tido idéia de procurá-la em tratados de
aspecto didático. Sempre insistimos neste ponto, que a metafísica não é da
alçada de “especialistas”, que a compreensão propriamente intelectual não tem
nada a ver com um saber puramente “livresco”,
que ela difere totalmente da erudição, e mesmo da ciência comum. O que
já chamamos de “elite intelectual” (1) não é algo que nos pareça formado por
sábios e filósofos, e achamos mesmo que poucos deles teriam as qualificações
requeridas; é preciso, para tanto, ser mais completamente despido de
preconceitos do que eles o são, e muitas vezes existe mais recurso num
ignorante, que pode instruir-se e se desenvolver, do que naqueles em quem
certos hábitos mentais deformaram irremediavelmente.
Além das verdades de ordem metafísica que serviram de
princípio à nossa refutação, indicamos também outras, notadamente a respeito da
explicação dos fenômenos; estes são secundários a nosso ver, mas tem também
algum interesse. Esperamos que a aparente estranheza de algumas destas considerações
não detenham a leitura, sendo que estas só devem ferir aqueles animados do mais
deplorável espírito de sistema, e não é a estes que nos endereçamos; esperamos
que não se atribua a essas coisas uma importância exagerada, seja devido ao seu
caráter desacostumado, seja principalmente por se reportarem à ordem dos
fenômenos; em todo caso, não deixamos de mencionar a respeito todas as
precauções e advertências, e temos a convicção de termos dito o estritamente
suficiente para dissipar todas as confusões e cortar pela raiz as falsas
interpretações. Fora estas reservas que se impunham sobre certos pontos, não
tivemos a pretensão de tratar completamente os temas que tivemos que abordar;
existem questões que poderemos retomar mais tarde; existem outras sobre as quais
nossas indicações, como dissemos no início, abrirão caminhos de pesquisa
insuspeitados presentemente. A única coisa que não podemos encorajar, é a
experimentação, cujos resultados nunca valem o bastante para compensar certos
inconvenientes, e mesmo certos perigos em muitos casos; entretanto, se existem
pessoas que querem experimentar a todo custo,
é ainda preferível, certamente, que o façam sobre bases sérias, do que
partir de dados absurdos e no mínimo errados; mas, mesmo assim, estamos
persuadidos de que não há, no que expusemos, nada de que se possa tirar partido
para lançar-se em aventuras mais ou menos deploráveis, e cremos ao contrário
que há, sim, com que fazer desistir os imprudentes, fazendo-os perceber tudo o
que lhes falta para obter sucesso em tais empreitas.
Acrescentaremos apenas uma última reflexão: a história do
espiritismo, a nosso ver, não constitui senão mais um episódio do formidável
desvio mental que caracteriza o Ocidente moderno; seria preciso, então, para
compreendê-la inteiramente, colocá-la dentro do conjunto do qual ela faz parte;
mas é evidente que para isto seria necessário ir muito mais longe, afim de
chegar às origens e às causas deste desvio, e em seguida seguir seu curso com
suas múltiplas peripécias. Este é um trabalho imenso, que jamais foi feito; a
história, tal como é ensinada oficialmente, atem-se aos eventos exteriores, que
não passam dos efeitos de algo mais profundo, e que ela expõe aliás de modo
tendencioso, em que se acha claramente a influência de todos os preconceitos
modernos. Existe mais ainda: há uma verdadeira apropriação dos estudos
históricos em benefício de certos interesses partidários, políticos ou
religiosos; gostaríamos que alguém realmente competente tivesse a coragem de
denunciar, apoiado em provas, as manobras pelas quais os historiadores
protestantes asseguraram para si um monopólio de fato, chegando a impor, como
uma espécie de sugestão, seu modo de ver e suas conclusões, mesmo nos meios
católicos; seria uma tarefa muito instrutiva, e que renderia serviços
consideráveis. Esta falsificação da história parece cumprir-se segundo um plano
pré-determinado; mas, se é assim, como ela tem essencialmente como objetivo
fazer passar por um “progresso”, diante da opinião pública, o desvio de que
falamos, tudo indica que se trata da obra de uma vontade diretiva. Não
pretendemos, no momento, ser mais afirmativos a respeito; não poderia
tratar-se, em todo caso, senão de uma vontade coletiva, pois existe aí alguma
coisa que ultrapassa o campo de ação de indivíduos considerados à parte; e
mesmo este modo de dizer de uma vontade coletiva é uma representação
defeituosa. Seja como for, se não acreditarmos no acaso, devemos admitir a
existência de algo equivalente a um plano estabelecido de algum modo, e que não
tem necessidade, evidentemente, de ter sido formulado em nenhum documento; o
temor de certas descobertas desta ordem não será uma das razões que fizeram da
superstição do documento escrito a base exclusiva do “método histórico”?
Partindo daí, todo o essencial escapa às investigações, e àqueles que querem ir
mais longe, objeta-se rapidamente que isto não é mais “científico”, o que
dispensa qualquer discussão ulterior; não há nada como o abuso da erudição para
limitar estreitamente o “horizonte intelectual” de um homem e impedi-lo de ver
claramente certas coisas; isto não permite compreender porque os métodos que
fazem da erudição um fim em si são impostos com tanto rigor pelas autoridades
universitárias? Mas voltemos à questão: se admitimos um plano, sob qualquer forma
que seja, é preciso ver como cada elemento pode concorrer para a sua
realização, e como tais ou tais individualidades puderam, para este efeito,
servir de instrumentos conscientes ou inconscientes; lembremo-nos que dissemos,
a propósito das origens do espiritismo, ser impossível acreditar na produção
espontânea de movimento de qualquer importância. Na realidade, as coisas são
ainda mais complexas do que indicamos: em lugar de uma vontade única, seria
preciso ver muitas vontades diferentes, assim como suas resultantes; há toda
uma “dinâmica” especial cujas leis seria interessante estabelecer. O que
dizemos é para mostrar como a verdade está longe de ser conhecida ou mesmo
suspeitada, neste domínio como em muitos outros; em suma, quase toda a história
teria que ser refeita sobre bases inteiramente diferentes, mas, infelizmente,
muitos interesses estão em jogo para que aqueles que tentassem não tivessem que
vencer temíveis resistências. Esta não é nossa função, pois este domínio não é
o nosso; só podemos, a respeito, fornecer algumas indicações, e de resto uma
tal obra teria que ser coletiva. Em todo caso, existe aí toda uma ordem de
pesquisas que, a nosso ver, é muito mais interessante e proveitosa do que a
experimentação psíquica; ela exige aptidões que a maioria das pessoas não tem,
mas achamos que existem alguns que as possuem, e poderiam vantajosamente
dirigir suas atividades neste sentido. Quando um resultado apreciável puder ser
obtido, muitas sugestões serão tornadas impossíveis; talvez seja este um dos
meios que poderão contribuir à recondução, num tempo mais ou menos espaçado, da
mentalidade ocidental às vias normais de que ela se afastou desde há tantos
séculos atrás.
NOTAS
1.
Ver a conclusão de nosso
Introduction générale à l’étude des doctrines hindoues.
APÊNDICE
A título de curiosidade, achamos interessante apresentar
aqui uma das ilustrações mencionadas pelo autor no capítulo III, Parte I, e que
tivemos a felicidade de encontrar reproduzida numa revista de época (Eu Sei Tudo, Ano IV, No. 2, Julho de
1920). Está entre as ilustrações apresentadas num artigo intitulado A vida no planeta Marte, a respeito das
visões da senhorita Helena Smith “uma sonâmbula e médium, cuja sinceridade é
atestada pelo Sr. Flournoy, professor de psiquiatria da Faculdade de
Genebra”. Foram mantidas as legendas
originais das ilustrações.
UM DESENHO MEDIÚNICO DE VICTORIEN SARDOU. A CASA DO
PROFETA ELIAS NO PLANETA JÚPITER. O ilustre dramaturgo, cuja cerebração
era perfeitamente equilibrada, afirmava haver experimentado várias vezes
sensações semelhantes às de miss Simth. Era porém do planeta Júpiter que tinha
visões. Perfeitamente desperto, abandonando-se a uma força oculta, que lhe
guiava a mão, Sardou traçou então com gestos automáticos desenhos do gênero que
reproduzimos acima.
O PLANETA MARTE VISTO POR UM HABITANTE DA TERRA.
Desenho feito por miss Smith em estado sonambúlico.
UMA DAS VISÕES DE MISS SMITH. UMA PAISAGEM MARCIANA
DESENHADA PELA SONÂMBULA. Vegetação fantástica. Um lago verde sobre o
qual um homem vestido de branco voga em um barco de forma especial. Os
competentes, considerando que as condições físicas e especialmente as leis do
peso são no planeta Marte diversas das da Terra, afirmam que este desenho é de
pura fantasia e não pode representar de forma alguma a realidade.
Plantas e flores do
planeta Marte
UM ANIMAL DOMÉSTICO DE MARTE. Segundo miss
Smith, esse monstro horrendo de cabeça negra, com um só olho e o corpo coberto
de pelo róseos, é para os marcianos o que o cão é para nós: um animal doméstico
serviçal e dedicado.