INTRODUÇÃO
Embora o presente estudo possa parecer, ao menos à
primeira vista, possuir um caráter um pouco “particular”, ele nos pareceu útil
para precisar e explicar de modo mais completo certas noções a que recorremos
em diversas ocasiões nas quais nos servimos do simbolismo matemático, e esta
razão já é justificativa suficiente para empreende-lo. Entretanto, devemos
dizer que existem ainda outras razões secundárias, que dizem respeito sobretudo
ao que podemos chamar de lado “histórico” da questão; este, de fato, não é
totalmente desprovido de interesse do nosso ponto de vista, no sentido de que
todas as discussões que surgiram em relação à natureza e ao valor do cálculo
infinitesimal oferecem um exemplo notável desta ausência de princípios que
caracteriza as ciências profanas, ou seja as únicas ciências que os modernos
conhecem e mesmo concebem como possíveis. Já observamos muitas vezes que a
maior parte destas ciências, mesma na medida em que correspondem a alguma
realidade, não representam nada além de simples resíduos desfigurados de
algumas das antigas ciências tradicionais: trata-se da parte mais inferior
destas que, tendo cessado de estar em relação com os princípios, e tendo por
isso perdido seu verdadeiro significado original, acabou por ganhar um
desenvolvimento independente e por ser vista como uma conhecimento bastando-se
a si mesmo, embora, na verdade, seu valor próprio enquanto conhecimento foi
precisamente por isso reduzido a quase nada. Isto é visível principalmente
quando se trata das ciências físicas, mas, como já explicamos (1), os
matemáticos modernos não são exceção sob este aspecto, se os comparamos ao que
era para os antigos a ciência dos números e da geometria; e, quando falamos
aqui de antigos, é preciso compreender aí inclusive a antigüidade “clássica”,
como o demonstra o menor estudo das teorias pitagóricas e platônicas, ou como
deveria demonstrar, não fosse a extraordinária incompreensão daqueles que hoje
pretendem interpretá-las; se esta incompreensão não fosse assim tão completa,
como se poderia sustentar, por exemplo, a opinião sobre uma origem “empírica”
dessas ciências, quando, na realidade, elas aparecem ao contrário como tanto
mais distantes de todo “empirismo” quanto mais nos afastamos no tempo, como
aliás acontece também com todos os outros ramos do conhecimento científico?
Os matemáticos, na época moderna, e mais especificamente
ainda na época contemporânea, parecem ter chegado mesmo a ignorar o que é
verdadeiramente o número; e, aqui, não pensamos falar apenas do número tomado
no sentido analógico e simbólico como o entendiam os Pitagóricos e os
Cabalistas, o que é bastante evidente, mas mesmo, o que pode parecer mais
estranho e quase paradoxal, do número em sua acepção simplesmente e
propriamente quantitativa. De fato, eles reduzem toda sua ciência ao cálculo,
segundo a concepção mais estreita que se possa fazer dele, ou seja considerado
como um simples conjunto de procedimentos mais ou menos artificiais, e que não
valem em suma senão pelas aplicações práticas a que dão lugar; no fundo, isto
eqüivale a dizer que eles substituem o número pela cifra, e, de resto, esta
confusão do número com a cifra é tão comum em nossos dias que podemos
encontrá-la facilmente até nas expressões da linguagem corrente (2). Ora, a cifra
não passa, com todo rigor, senão da vestimenta do número; não dizemos seu
corpo, pois é antes a forma geométrica que, sob certos aspectos, pode ser
legitimamente considerada como constituindo o verdadeiro corpo do número, como
o demonstram as teorias dos antigos sobre os polígonos e os poliedros,
colocados em relação direta com os números; e isto aliás concorda com o fato de
que toda “incorporação” implica necessariamente uma “espacialização”. Não
queremos dizer, entretanto, que as cifras sejam signos inteiramente
arbitrários, cuja forma teria sido determinada pela fantasia de um ou mais
indivíduos; acontece o mesmo com os caracteres numéricos que com os caracteres
alfabéticos, dos quais eles não se distinguem em algumas línguas (3), e podemos
aplicar a uns e outros a noção de uma origem hieroglífica, ou seja ideográfica
ou simbólica, que vale para todas as escritas sem exceção, por escondida que
esta origem possa estar em certos casos por deformações ou alterações mais ou
menos recentes.
O que há de certo, é que os matemáticos empregam em sua
notação símbolos dos quais eles já não conhecem o sentido, e que são como que
os vestígios de tradições esquecidas; e o que é mais grave, é que eles não
apenas não se perguntam qual poderá ser este sentido, mas que inclusive eles
não querem que haja aí sentido algum. Com efeito, eles tendem cada vez mais a
ver toda notação como uma simples “convenção”, entendendo com isto algo que foi
colocado de modo inteiramente arbitrário, o que, no fundo, é uma verdadeira
impossibilidade, pois não se produz jamais uma convenção sem ter alguma razão
para faze-lo, e para faze-la assim antes do que de outra maneira; é apenas para
os que ignoram esta razão que a convenção pode parecer arbitrária, assim como é
somente aos que ignoram as causas de um evento que este pode parecer
“fortuito”; é o que ocorre aqui, e podemos ver nisto uma das conseqüências mais
extremas da falta de qualquer princípio, que chega a fazer com que a ciência
(ou suposta ciência, pois então ela não mais merecerá este nome) perca todo
significado plausível. De resto, pela própria concepção atual de uma ciência
unicamente quantitativa, este “convencionalismo” estende-se aos poucos das
matemáticas às ciências físicas, em suas teorias mais recentes, que assim
distanciam-se mais e mais da realidade que elas pretendem explicar; já
insistimos o bastante a respeito em outras obras para nos dispensarmos de
faze-lo agora, tanto mais que é apenas das matemáticas que pretendemos nos
ocupar aqui. Deste ponto de vista, acrescentaremos apenas que, quando se perde
de vista assim tão completamente o sentido de uma notação, fica muito fácil
passar de seu uso legítimo e válido para um uso ilegítimo, que não corresponde
efetivamente a mais nada, e que às vezes pode chegar a ser totalmente ilógico;
isto pode parecer extraordinário quando se trata de uma ciência como a
matemática, que deveria ter laços especialmente estreitos com a lógica, e no
entanto a verdade é que podemos encontrar múltiplos ilogismos nas noções
matemáticas tais como são vistas comumente em nossa época.
Um dos exemplos mais notáveis destas noções ilógicas, e o
que iremos considerar aqui antes de mais nada (embora não seja o único que
iremos encontrar em nossa exposição), é a do pretenso infinito matemático ou
quantitativo, que é a fonte de quase todas as dificuldades que se levantaram
contra o cálculo infinitesimal, ou, talvez mais exatamente, contra o método
infinitesimal, pois existe aí qualquer coisa que, pensem o que quiserem os
“convencionalistas”, ultrapassa o alcance de um simples “cálculo” no sentido
comum do termo; não há exceção a fazer senão para as dificuldades que provém de
uma concepção errônea ou insuficiente da noção de “limite”, indispensável para
justificar o rigor deste método infinitesimal e fazer dele outra coisa do que
um simples método de aproximação. Existe de resto, como o veremos, uma distinção a fazer entre os casos
em que o suposto infinito não exprime mais do que um absurdo puro e simples, ou
seja uma idéia contraditória em si mesma, como o do “número infinito”, e
aqueles em que ele é apenas empregado de modo abusivo no sentido do indefinido;
mas não se deve crer por isso que a própria confusão entre o infinito e o
indefinido se reduza a uma simples questão de palavras, pois ela estende-se verdadeiramente
até as idéias em si. O que é singular, é que essa confusão, que bastaria
dissipar para eliminar pela raiz tantas discussões, foi cometida pelo próprio
Leibnitz, que é geralmente visto como o inventor do cálculo infinitesimal, e
que chamaríamos antes seu “formulador”, pois este método corresponde a certas
realidades que, como tais, tem uma existência independente daquele que as
concebe ou as exprime de maneira mais ou menos perfeita; as realidades de ordem
matemática só podem, assim como todas as outras, ser descobertas e não
inventadas, enquanto que, ao contrário, é de “invenção” que se trata quando se
é levado à pura fantasia por um “jogo” qualquer de notações, como acontece
frequentemente neste domínio; mas seria com certeza bem difícil fazer
compreender essa verdade a matemáticos que imaginam de bom grado que toda sua
ciência não é e nem deve ser senão uma “construção do espírito humano”, o que,
se fossemos concordar com eles, a reduziria a bem pouca coisa na realidade!
Seja como for, Leibnitz nunca foi capaz de explicar-se claramente sobre os
princípios de seu cálculo, e é isto que mostra que existe aí algo que o
ultrapassa e que se impôs a ele sem que ele tivesse consciência; se ele tivesse
se dado conta disto, ele certamente não teria se engajado numa disputa de
“prioridade” com Newton, disputa aliás vã como todas as deste tipo, pois as
idéias, se verdadeiras, não podem ser propriedade de ninguém, malgrado o
“individualismo” moderno, e somente o erro pode ser atribuído propriamente aos
indivíduos humanos. Não nos alongaremos sobre esta questão, que poderia nos
distanciar do objeto de nosso estudo, embora talvez não fosse inútil, sob
certos aspectos, fazer compreender que o papel daqueles a que se chama “grandes
homens” é muitas vezes, em grande parte, um papel de “receptores”, embora sejam
eles geralmente os primeiros a se iludir a respeito de sua “originalidade”.
O que nos concerne mais diretamente para o momento é o
seguinte: se constatamos tais insuficiências em Leibnitz, e insuficiências tanto
mais graves na medida em que se referem a questões de princípios, que se poderá
dizer dos outros filósofos e matemáticos modernos, aos quais ele é muito
superior apesar de tudo? Esta superioridade, ele a deve, de um lado, aos
estudos que fez das doutrinas escolásticas da Idade Média, embora não as tendo
compreendido inteiramente, e de outro, a certos dados esotéricos, de origem ou
de inspiração principalmente rosicruciana (4), dados evidentemente muito
incompletos e mesmo fragmentários, e que aliás ele aplicou às vezes bastante
mal, como veremos; é a estas duas “fontes”, para falarmos como os
historiadores, que se deve reportar, em
definitivo, quase tudo o que há de realmente válido em suas teorias, e é o que
lhe possibilitou reagir, ainda que imperfeitamente, contra o cartesianismo, que
representava então, no duplo domínio filosófico e científico, todo o conjunto
das tendências e concepções mais especificamente modernas. Esta observação
basta em suma para explicar, em poucas palavras, tudo o que foi Leibnitz, e, se
quisermos compreende-lo, não se deve jamais perder de vista estas indicações
gerais, que achamos conveniente, por isso mesmo, formular desde o início; mas é
tempo de deixarmos essas considerações preliminares para entrarmos no exame das
questões que nos permitirão determinar o verdadeiro significado do cálculo
infinitesimal.
NOTAS
1. Ver Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps.
2. Existem mesmo
“pseudo-esoteristas” que sabem tão pouco a respeito daquilo de que falam que
não deixam nunca de cometer esta mesma confusão nas elucubrações fantasistas
com as quais pretendem substituir a ciência tradicional dos números!
3. O hebraico e o grego estão
neste caso, e também o árabe antes da introdução do uso das cifras de origem
indiana, que, a seguir, com algumas modificações, passaram daí à Europa
medieval; podemos lembrar a propósito que a palavra “cifra” não é outra que o
árabe çifr, embora este seja na
realidade apenas a designação do zero. É verdade que, em hebraico, saphar significa “contar” ou “numerar”,
ao mesmo tempo que “escrever”, donde sepher,
“escritura” ou “livro” (em árabe sifr,
que designa especificamente um livro sagrado), e sephar, “numeração” ou “cálculo”; deste último termo vem também a
designação das Sephiroth da Cabala,
que são as “numerações” principiais assimiladas aos atributos divinos.
4. A marca inegável dessa
origem acha-se na figura hermética colocada por Leibnitz na capa de seu tratado
De Arte Combinatoria; é uma
representação da Rota Mundi, na qual,
no centro da dupla cruz dos elementos (fogo e água, ar e terra) e das
qualidades (calor e frio, seco e úmido), a quinta
essentia é simbolizada por uma rosa com cinco pétalas (correspondente ao
éter considerado em si mesmo e como princípio dos outros quatro elementos);
naturalmente, esta “assinatura” passou completamente desapercebida de todos os
comentadores universitários!
I
INFINITO E
INDEFINIDO
Procedendo de certo modo no sentido inverso da
ciência profana, devemos, segundo o ponto de vista constante de toda ciência
tradicional, colocar aqui antes de tudo o princípio que nos permitirá resolver,
de modo quase imediato, as dificuldades a que deu lugar o método infinitesimal,
sem nos deixarmos arrastar para discussões que de outro modo seriam
intermináveis, como o são de fato para os filósofos e matemáticos modernos,
que, pela falta deste mesmo princípio, jamais puderam dar a essas dificuldades
uma solução satisfatória e definitiva. Este princípio, é a própria idéia de
Infinito entendido no único sentido verdadeiro, que é o sentido puramente
metafísico, e basta-nos aqui lembrar sumariamente o que já expusemos a respeito
em outra parte (1): o Infinito é propriamente aquilo que não tem limites, pois
finito e limitado são evidentemente sinônimos; não podemos portanto aplicar
este nome senão àquilo que não possui absolutamente limite algum, ou seja ao
Todo universal que inclui em si todas as possibilidades, e que, por
conseguinte, não pode ser de modo algum limitado pelo que quer que seja; o
Infinito, entendido assim, é metafísica e logicamente necessário, pois ele não
apenas não pode implicar nenhuma contradição, por não encerrar em si nada de
negativo, como, ao contrário, a negação é que seria contraditória. Ademais, não
pode existir evidentemente senão um Infinito, pois dois infinitos supostos
distintos limitar-se-iam um ao outro, e portanto excluir-se-iam forçosamente;
consequentemente, toda vez que o termo “infinito” é empregado em outro sentido
do que o que foi exposto, podemos estar certos a priori que este emprego é necessariamente abusivo, pois ele
eqüivale em suma, ou a ignorar pura e simplesmente o Infinito metafísico, ou a
supor outro infinito ao seu lado.
É verdade que os escolásticos admitiam aquilo a que
eles chamavam infinitum secundum quid,
que eles distinguiam cuidadosamente do infinitum
absolutum que é o único Infinito metafísico; mas não podemos ver aí senão
uma imperfeição de sua terminologia, pois, se esta distinção lhes permitia
escapar da contradição de uma pluralidade de infinitos entendidos em seu
sentido próprio, também é certo que este duplo emprego do termo infinitum pode causar múltiplas
confusões, além do que um dos sentidos é totalmente impróprio, pois dizer que
algo é infinito apenas sob um certo aspecto, que é o significado exato da expressão
infinitum secundum quid, eqüivale a
dizer que ele não é absolutamente infinito (2). De fato, não é porque uma coisa
não é limitada em um certo sentido ou sob um dado aspecto que podemos
legitimamente concluir que ela não é limitada de modo algum, que é o que seria
necessário para que ela seja verdadeiramente infinita; não apenas ela pode ser
ao mesmo tempo limitada sob outros aspectos, mas podemos dizer que ela o é
necessariamente, desde que ela é uma certa coisa determinada, e que, por sua
própria determinação, ela não inclui todas as possibilidades, pois isso
eqüivale a dizer que ela é limitada por aquilo que ela deixa fora de si; ao
contrário, se o Todo universal é infinito, é precisamente porque ele não deixa
nada fora de si (3). Toda determinação, por geral que se possa supor, e
qualquer que seja a extensão que possa receber, exclui assim necessariamente a
verdadeira noção de infinito (4); uma determinação, qualquer que seja, é sempre
uma limitação, pois ela tem por caráter essencial o de definir um certo domínio
de possibilidades em relação a todo o resto, excluindo por isso mesmo este
resto. Assim, existe um verdadeiro contra-senso em aplicar a idéia de infinito
a uma determinação qualquer, como por exemplo, no caso que iremos considerar
aqui especificamente, a quantidade ou qualquer um de seus modos; a idéia de um
“infinito determinado” é por demais contraditória para que seja preciso
insistir, embora esta contradição tenha quase sempre escapado ao pensamento
profano dos modernos, e mesmo daqueles que podemos chamar de “semi-profanos”
como Leibnitz (5). Para salientar ainda mais esta contradição, podemos dizer,
em outros termos, que é obviamente absurdo pretender definir o Infinito: uma
definição não passa no fundo da expressão de uma determinação, e as próprias
palavras dizem claramente que o que é susceptível de ser definido não pode ser
senão finito ou limitado; procurar encaixar o Infinito em uma fórmula, ou, se
se preferir, revesti-lo de uma forma qualquer, é, consciente ou
inconscientemente, esforçar-se por fazer caber o Todo universal em um dos
elementos mais ínfimos compreendidos nele, o que, certamente, é a mais
manifesta das impossibilidades.
O que dissemos basta para estabelecer, sem deixar
dúvidas e sem necessidade de outras considerações, que não pode haver um
infinito matemático ou quantitativo, e que esta expressão não tem mesmo o menor
sentido, porque a própria quantidade é uma determinação; o número, o espaço, o
tempo, aos quais se pretende aplicar a noção deste pretenso infinito, são
condições determinadas, e que, como
tais, não podem ser senão finitas; trata-se aí de certas possibilidades,
ou de certos conjuntos de possibilidades, fora das quais existem outras, o que
evidentemente implica sua limitação. Existe mesmo, nestes casos, alguma coisa
mais: conceber o Infinito em termos quantitativos eqüivale não apenas a
limitá-lo, mas ainda, por acréscimo, a concebe-lo como susceptível de aumento e
diminuição, o que não é menos absurdo; com semelhantes considerações, chega-se
depressa a considerar, não apenas múltiplos infinitos coexistindo sem se
confundir nem se excluir, mas também infinitos que são maiores ou menores do
que outros infinitos, e mesmo – tendo o infinito se tornado tão relativo nestas
condições que já não basta mais – inventa-se o “transfinito”, ou seja o domínio
das quantidades maiores do que o infinito; e é realmente de “invenção” que se
trata propriamente então, pois tais concepções já não correspondem a nada de
real; são apenas palavras e outros tantos absurdos, mesmo aos olhos da simples
lógica elementar, o que não impede que, dentre aqueles que as sustentam,
encontre-se quem tenha a pretensão de ser “especialista” em lógica, tal é a
confusão intelectual de nossa época!
Devemos lembrar aqui o que já dissemos, não apenas
sobre “conceber um infinito quantitativo”, mas também quanto a “conceber o
Infinito em termos quantitativos”, e isto pede algumas explicações: quisemos,
assim, aludir mais particularmente àqueles que, no jargão filosófico
contemporâneo, são chamados de “infinitistas”; de fato, todas as discussões
entre “finitistas” e “infinitistas” mostram claramente que tanto uns quanto
outros tem ao menos em comum esta idéia completamente falsa de que o Infinito
metafísico é solidário com o infinito matemático, quando não se identificam
pura e simplesmente (6). Ambos ignoram igualmente assim os princípios mais
elementares da metafísica, porque é ao contrário a própria concepção do
verdadeiro Infinito metafísico a única que permite rejeitar de modo absoluto
todo e qualquer “infinito particular”, se podemos nos exprimir assim, tal como
o pretenso infinito quantitativo, bem como ter a certeza de que não se trata
senão de uma ilusão aonde quer que se encontre um, restando assim apenas a
questão de encontrar sua origem, a fim de poder substituí-lo por outra noção
mais conforme à verdade. Em suma, todas as vezes em que se tratar de uma coisa
particular, de uma possibilidade determinada, teremos por isso mesmo a priori a certeza de que ela é
limitada, e, podemos dize-lo, limitada por sua própria natureza, mesmo nos
casos em que, por uma razão qualquer, não podemos atualmente alcançar seus
limites; mas é precisamente esta impossibilidade de atingir o limite de certas
coisas, e mesmo às vezes de concebe-lo claramente, que causa, ao menos àqueles
a quem falta o princípio metafísico, a ilusão de que estas coisas não tem
limites, e, repetimos, é apenas esta ilusão, e nada mais, que se formula na
afirmação contraditória de um “infinito determinado”.
É aqui que intervém, para retificar esta falsa
noção, ou antes para substituí-la por uma concepção verdadeira das coisas (7),
a idéia de indefinido, que é precisamente a idéia de um desenvolvimento de
possibilidades de que não podemos alcançar atualmente os limites; e é por que
vemos como fundamental, em todas as questões onde aparece o pretenso infinito
matemático, a distinção entre o Infinito e o indefinido. É sem dúvida a ela que
correspondia, na intenção de seus autores, a distinção escolástica entre o infinitum absolutum e o infinitum secundum quid; é certamente
espantoso que Leibnitz, que entretanto fez em outras ocasiões tantos
empréstimos à escolástica, a tenha negligenciado, pois, por imperfeita que seja
a forma de sua expressão, ela teria podido servir-lhe para responder com
facilidade a muitas objeções levantadas contra seu método. Ao contrário, parece
que Descartes havia ensaiado estabelecer essa distinção, mas sem exprimi-la ou
concebe-la com suficiente precisão, pois, segundo ele, o indefinido é aquilo de
que não vemos os limites, e que poderia mesmo ser infinito, embora não possamos
afirmar que o seja, enquanto que a verdade é que podemos ao contrário afirmar
que ele não o é, e que não é preciso ver os limites de algo para sabermos que
eles existem; vemos assim como tudo é vago e confuso, e sempre devido à mesma
falta de princípio. Descartes diz com efeito: “Quanto a nós, ao vermos coisas
das quais, segundo certos sentidos (8), não percebemos os limites, não
asseguraremos por isso que elas são infinitas, mas apenas as estimaremos como
indefinidas” (9). E ele dá como exemplos a extensão e a divisibilidade dos
corpos; ele não assegura que estas coisas sejam infinitas, mas ele não chega a
negá-lo formalmente, tanto mais que ele declara não pretender “envolver-se nas
disputas do infinito”, o que é um modo muito fácil de descartar as
dificuldades, e embora ele diga mais adiante que “ainda que observemos
propriedades que nos parecem não ter limites, não deixamos de reconhecer que
isto se deve a uma falha do nosso entendimento, e não à sua natureza” (10). Em
suma, ele pretende, com justa razão, reservar o nome de infinito ao que não
pode ter nenhum limite; mas, por outro lado, ele parece não saber, com a
certeza absoluta que implica todo conhecimento metafísico, que aquilo que não
tem nenhum limite não pode ser nada nem outro senão o Todo universal, e, por
outro lado, a própria noção de indefinido precisa ser mais explicitada do que
ele o faz; se isto tivesse acontecido, muitas confusões ulteriores não teriam
se produzido tão facilmente (11).
Dissemos que o indefinido não pode ser infinito, porque
seu conceito comporta sempre uma certa determinação, quer se trate da extensão,
da duração, da divisibilidade, ou de qualquer outra possibilidade; em uma
palavra, o indefinido, qualquer que seja e sob qualquer aspecto considerado, é
sempre finito e não pode ser senão finito. Sem dúvida, seus limites podem ser
recuados até se acharem fora de nosso alcance, ao menos na medida em que
tentamos atingi-los de um modo a que podemos chamar “analítico”, como
explicaremos a seguir; mas eles não são suprimidos por essa razão, e, em todo
caso, se as limitações de uma dada ordem podem ser suprimidas, sempre subsistem
outras, devidas à própria natureza daquilo que se considera, pois é em virtude
de sua natureza, e não apenas por qualquer circunstância mais ou menos exterior
e acidental, que toda coisa particular é finita, seja lá qual for o grau a que
pode ser levado a extensão de que ela é susceptível. Podemos lembrar a
propósito que o signo pelo qual os matemáticos representam seu pretenso
infinito, é ele próprio uma figura fechada, portanto visivelmente finita, assim
como o círculo com que alguns pretendem simbolizar a eternidade, o qual não
pode ser senão a figuração de um ciclo temporal, indefinido somente em sua
ordem, ou seja aquilo a que se chama propriamente a perpetuidade (12); é fácil
de ver que essa confusão entre a eternidade e a perpetuidade, tão comum entre
os Ocidentais modernos, aparenta-se estreitamente àquela entre o Infinito e o
indefinido.
Para melhor fazer compreender a idéia do indefinido
e o modo pelo qual este se forma a partir do finito entendido em sua acepção
comum, podemos considerar um exemplo como o da série dos números: nesta,
evidentemente, jamais se pode parar num ponto determinado, pois, após qualquer
número, sempre existe um outro que se obtém adicionando ao primeiro a
unidade; por conseguinte, é
preciso que a limitação desta série indefinida seja de outra ordem da
que se aplica a um conjunto definido de números, tomado
entre dois números determinados quaisquer; é preciso então que ela se deva, não
às propriedades específicas de certos números, mas à própria natureza do número
em toda a sua generalidade, ou seja à determinação que, por constituir
essencialmente esta natureza, faz ao mesmo tempo com que o número seja o que
ele é e que ele não seja outra coisa. Podemos repetir exatamente a mesma
observação se se tratar, não mais do número, mas do espaço ou do tempo
considerados também em toda extensão de que são susceptíveis (13); esta
extensão, por indefinida que a concebamos ou que o seja efetivamente, não
poderá jamais nos fazer sair do finito. É que, de fato, enquanto que o finito
pressupõe necessariamente o Infinito, por ser este que compreende e abarca
todas as possibilidades, o indefinido procede ao contrário do finito, do qual
ele não passa na realidade de um desenvolvimento, e ao qual ele é por
conseguinte sempre redutível, pois é evidente que não se pode extrair do
finito, por qualquer processo que seja, nada além nem de outro que o que já
esteja nele contido potencialmente. Para retomarmos o mesmo exemplo da série
dos números, podemos dizer que esta série, com toda a indefinidade que ela
comporta, nos é dada por sua lei de formação, porque é desta mesma lei que
resulta imediatamente sua indefinidade; ora, esta lei consiste em que, dado um
número qualquer, forma-se o número seguinte acrescentando-lhe a unidade. A
série dos números forma-se portanto por adições sucessivas da unidade a si
mesma indefinidamente repetida, o que, no fundo, não passa da extensão
indefinida do processo de formação de uma soma aritmética qualquer; e vemos
aqui claramente como o indefinido se forma a partir do finito. Este exemplo
deve aliás sua particular clareza ao caráter descontínuo da quantidade numérica;
mas, para tomar as coisas de modo mais geral e aplicável a todos os casos,
basta, a respeito, insistir sobre a idéia de “devir” que está implicada no
termo “indefinido”, e que exprimimos mais acima ao falarmos de um
desenvolvimento de possibilidades, desenvolvimento que, em si mesmo e em todo
seu curso, comporta sempre algo de inacabado (14); a importância da
consideração das “variáveis”, no que diz respeito ao cálculo infinitesimal,
dará a este último ponto todo seu significado.
NOTAS
1. Os Estados Múltiplos do Ser, cap. I.
2. É num sentido bastante
próximo que Spinoza empregará mais tarde a expressão “infinito em seu gênero”,
que naturalmente dá lugar às mesmas objeções.
3. Podemos dizer que ele não
deixa fora de si senão a impossibilidade, que, por ser um puro nada, não
poderia limitá-lo de nenhum modo.
4. Isto vale igualmente para as
determinações de ordem universal, em mais apenas geral, inclusive para o
próprio Ser que é a primeira de todas as determinações; mas é claro que esta
consideração não deve intervir nas aplicações unicamente cosmológicas a que
iremos nos ater no presente estudo.
5. Se a expressão
“semi-profano” que empregamos aqui pode espantar, diremos que ela se justifica,
de modo muito preciso, pela distinção entre a iniciação efetiva e a iniciação
simplesmente virtual, sobre a qual iremos nos explicar em outra ocasião.
6. Citaremos aqui, como exemplo
característico, apenas o caso de L. Couturat, que conclui sua tese De l’infini mathématique (na qual ele se
esforçou para provar a existência de um infinito em número e grandeza)
declarando que sua intenção havia sido a de mostrar assim que, “apesar do
neo-criticismo (ou seja as teorias de Renouvier e de sua escola), uma
metafísica infinitista é provável”!
7. Dentro do rigor lógico, cabe
fazer uma distinção entre “falsa noção” (ou, se se preferir, “pseudo-noção”) e
“noção falsa”; uma “noção falsa” é aquela que não corresponde adequadamente à
realidade, embora corresponda ainda numa certa medida; ao contrário, uma “falsa
noção” é aquela que implica contradição, como é o caso aqui, e que assim não
chega a ser verdadeiramente uma noção, mesmo falsa, embora tenha a aparência de
uma para os que não percebem a contradição , pois, por não exprimir senão o
impossível, que é a mesma coisa que o nada, ela não corresponde absolutamente a
coisa alguma; uma “noção falsa” pode ser retificada, mas uma “falsa noção” só
pode ser rejeitada pura e simplesmente.
8.
Estas palavras parecem querer lembrar o secundum quid escolástico e assim pode ser que a intenção primeira
da frase citada fosse a de criticar indiretamente a expressão infinitum secundum quid.
9. Principes de la Philosophie, I, 26.
10. Ibid.,
I, 27.
11. É assim que Varignon, em sua
correspondência com Leibnitz a respeito do cálculo infinitesimal, emprega
indistintamente as palavras “infinito” e “indefinido”, como se elas fossem
quase sinônimos, ou no mínimo como se fosse indiferente tomar uma pela outra,
enquanto que ao contrário é a diferença entre seus significados que, em todas
as discussões, teria que ser vista como o ponto essencial.
12. Convém ainda lembrar que,
como já explicamos, um tal ciclo jamais é verdadeiramente fechado, mas apenas
parece sê-lo quando nos colocamos de uma perspectiva que não permite perceber a
distância que realmente existe entre suas extremidades, assim como a espira de
uma hélice com eixo vertical aparece como um círculo quando é projetada sobre
um plano horizontal.
13. De nada serviria dizer que o
espaço, por exemplo, não poderia ser limitado senão por algo que ainda fosse
espaço, de modo que o espaço em geral não poderia ser limitado por nada; ele é
ao contrário limitado pela própria determinação que constitui sua natureza
particular enquanto espaço, e que deixa lugar, fora dele, a todas as
possibilidades não espaciais.
14. Cf. a observação de A .K.
Coomaraswamy sobre o conceito platônico de “medida” que já citamos (Le Règne de la Quantité et les Signes des
Temps, cap. III): o “não-medido” é aquilo que ainda não foi definido, ou
seja em suma o indefinido, e ele é, ao mesmo tempo e por isso mesmo, aquilo que
não está realizado senão incompletamente dentro da manifestação.
II
A CONTRADIÇÃO DO
“NÚMERO
INFINITO”
Existem casos em que basta, como veremos adiante
mais claramente, substituir a idéia do pretenso infinito pela do indefinido para
que desapareçam imediatamente todas as dificuldades; mas existem outros casos
em que mesmo isto não é possível, por tratar-se de algo claramente determinado,
de “congelado” de certo modo por hipótese, e que, como tal, não pode ser
chamado de indefinido, conforme a ressalva que fizemos por último: assim, por
exemplo, podemos dizer que a série dos números é indefinida, mas não podemos
dizer que um dado número, por maior que o suponhamos e seja qual for sua
posição dentro desta série, seja indefinido. A idéia do “numero infinito”,
entendido como “o maior de todos os números”, ou “o número de todos os
números”, ou ainda “o número de todas as unidades”, é uma idéia verdadeiramente
contraditória em si mesma, cuja impossibilidade subsistiria mesmo que renunciássemos
ao emprego injustificável do termo “infinito”: não pode haver um número que
seja maior do que todos os outros, pois, por maior que seja ele, podemos sempre
formar um maior acrescentando-lhe a unidade, conforme a lei de formação que
formulamos mais acima. Isto eqüivale a dizer que a série dos números não pode
ter um último termo, e é precisamente pelo fato de que ela não pode ser
“acabada” que ela é verdadeiramente indefinida; como o número de todos os seus
termos não poderia ser senão o último dentre eles, podemos dizer também que ela
não é “numerável”, e esta é uma idéia sobre a qual voltaremos adiante.
A impossibilidade do “número infinito” pode ainda
ser estabelecida por diversos argumentos; Leibnitz, que pelo menos admitia esta
impossibilidade claramente (1), empregava aquele que consiste em comparar a
série dos números pares com a de todos os números inteiros: a todo número
corresponde um outro número que é igual a seu dobro, de sorte que podemos fazer
corresponder as duas séries termo a termo, donde resulta que o número de termos
deve ser o mesmo em uma como na outra; mas, por outro lado, é evidente que
existem duas vezes mais números inteiros do que números pares, pois os números
pares se colocam de dois em dois dentro da série dos números inteiros; chega-se
assim a uma manifesta contradição. Podemos generalizar este argumento tomando, ao invés da série dos
números pares, ou seja dos múltiplos de dois, a dos múltiplos de um número
qualquer, e o raciocínio é idêntico; do mesmo modo podemos tomar a série dos
quadrados dos números inteiros (2), ou, mais genericamente, a das potências de
um expoente qualquer. Em todos os casos, a conclusão é sempre a mesma: é que
uma série que não compreende senão uma parte dos números inteiros deve ter o
mesmo número de termos que aquela que os compreende a todos, o que eqüivale a
dizer que o todo não é maior do que sua parte; e, desde que se admita que
existe um número de todos os números, é impossível escapar a esta contradição.
Entretanto, alguns acreditaram poder escapar-lhe admitindo ao mesmo tempo que
existem números a partir dos quais a multiplicação por um certo número ou a
elevação a uma certa potência não seria mais possível, porque daria um
resultado que ultrapassaria o pretenso “número infinito”; existem mesmo os que
admitiram números ditos “maiores do que o infinito”, donde as teorias tais como
a do “transfinito” de Cantor, que podem ser muito engenhosas, mas que nem por
isso são válidas logicamente (3): será concebível que se possa chamar de
“infinito” um número que, ao contrário, é de tal modo “finito” que não é sequer
o maior de todos? De resto, com semelhantes teorias, haveria números aos quais
nenhuma das regras do cálculo normal seriam mais aplicáveis, ou seja, em suma,
números que não seriam verdadeiramente números, e que só seriam chamados assim
por convenção (4); é o que acontece forçosamente quando, tentando conceber o
“número infinito” de outro modo que não como o maior dos números, admite-se
diferentes “números infinitos”, supostos desiguais entre si, e aos quais são
atribuídas propriedades que não tem mais nada em comum com as dos números
normais; assim, escapa-se de uma contradição para cair em outras, e, no fundo,
tudo isso não passa de produto do “convencionalismo” mais vazio que se possa
imaginar.
Assim, a idéia do pretenso “número infinito”, seja
lá como se apresente e seja qual for o nome com que se apresente, contém sempre
elementos contraditórios; de resto, não há necessidade desta suposição absurda
a partir do momento em que se coloca uma concepção exata daquilo que é
realmente a indefinitude do número, e quando reconhecemos que o número, apesar
de sua indefinitude, não é absolutamente aplicável a tudo o que existe. Não
vamos insistir sobre este último ponto, que já explicamos suficientemente em
outra ocasião: o número não passa de um modo da quantidade, e a própria
quantidade não é mais do que uma categoria ou um modo particular do ser, não
coextensivo a este, ou, mais precisamente ainda, ela não passa de uma condição
própria a um certo estado de existência dentro do conjunto da existência
universal; mas isto é justamente o que a maior parte dos modernos tem
dificuldade em compreender, por estarem habituados a reduzir tudo à quantidade,
e mesmo a avaliar tudo numericamente (5). Entretanto, dentro do próprio domínio
da quantidade, existem coisas que escapam ao número, como veremos a respeito do
contínuo; e, mesmo sem sairmos da consideração exclusiva da quantidade
descontínua, somos forçados a admitir, ao menos implicitamente, que o número não
é aplicável a tudo, quando reconhecemos que a multitude de todos os números não
pode constituir um número, o que, de resto, não passa de uma aplicação desta
verdade incontestável que diz que aquilo que limita uma certa ordem de
possibilidades deve estar necessariamente fora e além desta (6). Apenas deve
ficar bem entendido que uma tal multitude, seja considerada dentro do
descontínuo, como é o caso da série dos números, seja dentro do contínuo, sobre
o qual voltaremos adiante, nunca pode ser chamada de infinita, não havendo aí
mais do que o indefinido; é esta noção de multitude que iremos examinar mais de
perto a seguir.
NOTAS
1. “Apesar de meu cálculo
infinitesimal, escrevia ele notadamente, eu não admito um verdadeiro número
infinito, embora confesse que a multitude das coisas ultrapassa todo número
finito, ou antes todo número”.
2. É o que fez Cauchy, que aliás atribuiu este argumento
a Galileu (Sept leçons de Physique
générale, 3ª lição)
3. Já na época de Leibnitz,
Wallis considerava os “spatia plus quam
infinita”; esta opinião, denunciada por Varignon por implicar contradição,
foi igualmente sustentada por Guido Grandi em seu livro De Infinitis infinitorum. Por outro lado, Jean Bernoulli, ao longo
de suas discussões com Leibnitz, escreveu: “Si
dantur termini infiniti, dabitur etiam terminus infinitesimus (non dico
ultimus) et qui eum sequuntur”, o que, embora ele não o tenha explicado
mais claramente, parece indicar que ele admitia que pudesse haver numa série
numérica termos “além do infinito”.
4. Não podemos dizer que se
trate de um emprego analógico da idéia de número, pois isto suporia uma
transposição em um domínio outro que o da quantidade, e, ao contrário, é
exatamente à quantidade, entendida em seu sentido mais literal, que todas estas
considerações se reportam exclusivamente.
5. É assim que Renouvier
pensava que o número é aplicável a tudo, ao menos idealmente, ou seja que tudo
é “numerável” em si mesmo, mesmo que sejamos incapazes de “numerá-lo”
efetivamente; ele também enganou-se completamente sobre o sentido que Leibnitz
dá à noção de “multitude”, e ele jamais compreendeu como a distinção entre esta
e o número permite escapar à contradição do “número infinito”.
6. Dissemos entretanto que uma
coisa particular ou determinada, seja
ela qual for, é limitada por sua própria natureza, mas não existe aí nenhuma
contradição: com efeito, é pelo lado negativo desta natureza que ela é limitada
(pois, como diz Spinoza, “omnis
determinatio negatio est”), ou seja enquanto esta exclui as outras coisas e
as deixa fora dela, de sorte que, definitivamente, é a coexistência com estas
outras coisas que limita a coisa considerada; é por isso aliás que o Todo
universal, e apenas ele, não pode ser limitado por nada.
III
A MULTITUDE
INUMERÁVEL
Leibnitz, como vimos, não admite o “número
infinito”, pois ele declara expressamente que este, em qualquer sentido que o
entendamos, implica contradição; mas, ao contrário, ele admite aquilo que ele
chama uma “multitude infinita”, sem sequer precisar, como faziam os escolásticos,
tratar-se aí de um infinitum secundum
quid; e a série dos números é, para ele, um exemplo desta multitude. No
entanto, de um outro lado, no domínio quantitativo, e mesmo no que concerne à
grandeza contínua, a idéia de infinito lhe parece sempre no mínimo suspeita de
contradição, pois, longe de ser uma idéia adequada, ela comporta
inevitavelmente uma certa parte de confusão, e não podemos estar certos de que
uma idéia não implica contradição a
menos que possamos conceber distintamente todos os elementos (1); isto permite
quando muito atribuir a esta idéia um caráter “simbólico”, diríamos mesmo
“representativo”, e é por isso que ele jamais ousou, como veremos adiante,
pronunciar-se claramente sobre a realidade dos “infinitamente pequenos”; mas
este embaraço e esta atitude dubitativa fazem ressaltar a falta de princípio
que o fazia admitir que se pudesse falar de uma “multitude infinita”. Podemos
nos perguntar, a partir daí, se ele não pensava que uma tal multitude, para ser
“infinita” como ele a chama, não deveria apenas não ser “numerável”, o que é
evidente, mas mais ainda não poderia ser inclusive quantitativa, tomando a
quantidade em toda sua extensão e em todos os seus modos; isso poderia ser
verdade em alguns casos, mas não em todos; seja como for, este é mais um ponto
sobre o qual ele jamais explicou-se claramente.
A idéia de uma multitude que ultrapassa todo número,
e que por conseguinte não é um número, parece ter chocado a maior parte
daqueles que discutiram as concepções de Leibnitz, tanto “finitistas” quanto
“infinitistas”; entretanto ela está longe de ser particular a Leibnitz como se
acredita, e ao contrário, era uma idéia corrente entre os escolásticos (2).
Esta idéia era entendida propriamente a respeito de tudo o que não é número nem
é “numerável”, ou seja de tudo o que não provém da quantidade descontínua, quer
se trate de coisas pertencentes a outros modos da quantidade ou daquilo que
está inteiramente fora do domínio quantitativo, pois tratava-se de uma idéia da
ordem dos “transcendentais”, ou seja dos modos gerais do ser, que,
contrariamente aos seus modos particulares como a quantidade, lhe são
coextensivos (3). É o que permite falar, por exemplo, da multitude dos
atributos divinos, ou ainda da multitude dos anjos, ou seja de seres que pertencem
a estados não submetidos à quantidade e onde, consequentemente, não pode ser
questão de número; é também o que nos permite considerar os estados do ser ou
os graus da existência como sendo em multiplicidade ou em multitude indefinida,
enquanto que a quantidade não passa de uma condição particular de um apenas
dentre eles. Por outro lado, como a idéia de multitude, contrariamente à do
número, é aplicável a tudo o que existe, devem forçosamente existir multitudes
de ordem quantitativa, notadamente no que diz respeito à quantidade contínua, e
é por isso que dizemos que não seria verdadeiro em todos os casos considerar a
suposta “multitude infinita”, ou seja aquela que ultrapassa todo número, como
algo que escapa inteiramente ao domínio da quantidade. Mais do que isto, o
próprio número pode ser visto como uma espécie de multitude, mas com a condição
de acrescentar que se trata, segundo a expressão de São Tomás de Aquino, uma
“multitude medida pela unidade”; qualquer outra espécie de multitude, não sendo
“numerável”, é “não-mensurável”, o que eqüivale a dizer que ela é, não
infinita, mas propriamente indefinida.
Convém notar, a propósito, um fato singular: Para
Leibnitz, esta multitude, que não constitui um número, é entretanto um
“resultado de unidades” (4); o que se deve entender por isto, e de que unidades
se trata? O termo “unidade” pode ser aqui tomado em dois sentidos bastante
diferentes: de um lado, existe a unidade matemática ou quantitativa, que é o
elemento primeiro e o ponto de partida do número, e, de outro, existe aquilo
que é designado analogamente como a Unidade metafísica, que identifica-se ao
próprio Ser puro; não cremos que possa haver outra acepção possível fora estas;
mas, de resto, quando se fala em “unidades”, no plural, só pode ser evidentemente
no sentido quantitativo. Porém, se á assim, a soma das unidades não pode ser
senão um número, e ela não pode absolutamente ultrapassar o número; é verdade
que Leibnitz diz “resultado” e não “soma”, mas esta distinção, mesmo que
voluntária, não deixa de manter uma estranha obscuridade. De resto, ele declara
em outra parte que a multitude, sem ser um número, é no entanto concebida por
analogia com o número: “Quando existem mais coisas do que podem ser
compreendidas por qualquer número, diz ele, nós entretanto atribuímos
analogamente um número, a que chamamos infinito”, embora não seja senão um
“modo de falar”, um “modus loquendi”
(5), e mesmo, sob esta forma, um modo de falar bastante incorreto, pois, na
realidade, não se trata de modo algum de um número; mas, quaisquer que sejam as
imperfeições da expressão e as confusões a que ela dá lugar, devemos admitir,
em todo caso, que uma identificação da multitude com o número não estava
certamente no fundo de seu pensamento.
Um outro
ponto ao qual Leibnitz parece dar grande importância, é que o
“infinito”, tal como ele o concebe, não constitui um todo (6); esta é uma
condição que ele considera necessária para que esta idéia escape à contradição,
mas é um ponto que também fica mantido obscuro. Cabe perguntar que espécie de
“todo” está agora em questão, e é preciso antes de mais nada descartar
inteiramente a idéia do Todo universal, que é, ao contrário, o próprio Infinito
metafísico, ou seja o único verdadeiro Infinito, que não poderia nunca estar aí
em causa; com efeito, quer se trate do contínuo ou do descontínuo, a “multitude
infinita” considerada por Leibnitz mantém-se, em todos os casos, dentro de um
domínio restrito e contingente, de ordem cosmológica e não metafísica. Trata-se
evidentemente, aliás, de um todo concebido como sendo composto de partes,
enquanto que, como já explicamos (7), o Todo universal é propriamente “sem
partes”, em razão de sua própria infinitude, pois, como estas partes devem
necessariamente ser relativas e finitas, elas não podem ter com ele nenhuma
relação real, o que eqüivale a dizer que elas não existem para ele. Devemos
então limitar-nos, quanto à questão colocada, à consideração de um todo
particular; mas ainda aqui, e precisamente no que diz respeito ao modo de
composição deste todo e sua relação com suas partes, existem dois casos a
considerar, correspondentes a duas acepções bem diferentes da mesma palavra
“todo”. Primeiramente, se se trata de um todo que não é mais do que a simples
soma de suas partes, portanto composto ao modo de uma soma aritmética, o que
diz Leibnitz é evidente no fundo, pois este modo de formação é precisamente o
que é próprio do número, e ele não nos permite ultrapassar o número; mas, a bem
dizer, esta noção, longe de representar o único modo como um todo pode ser
concebido, não é sequer a de um todo verdadeiro no sentido mais rigoroso deste
termo. Com efeito, um todo que não é mais do que a soma ou o resultado de suas
partes, e que, por conseguinte, é logicamente posterior a estas, não é outra
coisa, enquanto todo, do que um ens
rationis, pois ele só é “um” e “todo” na medida em que o concebemos
como tal; em si mesmo, não se trata mais
do que de uma “coleção”, e somos nós que, pelo modo como a consideramos, lhe
conferimos, num sentido relativo, os caracteres de unidade e de totalidade. Ao
contrário, um todo verdadeiro, possuindo estes caracteres por sua natureza
mesma, deve ser logicamente anterior às suas partes e delas ser independente:
este é o caso de um conjunto contínuo, que podemos dividir em partes
arbitrárias, ou seja de uma grandeza qualquer, mas que não pressupõe
absolutamente a existência atual destas partes; aqui, somos nós que atribuímos
a estas partes como tais uma realidade, por uma divisão ideal ou efetiva, e
assim este caso é exatamente o inverso do precedente.
Agora, toda a questão resume-se em suma a saber se,
quando Leibnitz diz que “o infinito não é um todo”, ele exclui este segundo
sentido tanto quanto o primeiro; é o que parece, e é mesmo provável, pois é o
único caso em que um todo é verdadeiramente “um”, e que o infinito, segundo
ele, não é “nec unum, nec totum”. O
que o confirma ainda, é que este caso, e não o primeiro, é aquele que se aplica a um ser vivo ou a um
organismo quando considerado do ponto de vista da totalidade; ora, Leibnitz
diz: “Mesmo o Universo não é um todo, e ele não deve ser concebido como um
animal cuja alma é Deus, como o faziam os antigos” (8). Mas, se é assim, não
vemos como as idéias do infinito e do contínuo podem ser conexas como o são
para ele no mais das vezes, pois a idéia do contínuo liga-se precisamente, num
sentido ao menos, a essa segunda concepção da totalidade; mas este é um ponto
que poderá ser melhor compreendido mais adiante. O que é certo em todo aso, é
que, se Leibnitz havia concebido o terceiro sentido do termo “todo”, sentido
puramente metafísico e superior aos dois outros, ou seja a idéia do Todo
universal tal como colocamos de início, ele não poderia dizer que a idéia do infinito exclui a de totalidade,
pois ele declara em outra parte: “O infinito real é talvez o próprio absoluto,
que não é composto de partes, mas que, possuindo partes, compreende-as por
razão eminente e como que ao grau de perfeição” (9). Existe aqui no mínimo um
“engano”, se podemos dize-lo, pois desta vez, como por exceção, ele toma o
termo “infinito” em seu verdadeiro sentido,, embora seja errôneo dizer que este
infinito “possua partes”, como quer que as entendamos; mas é estranho que mesmo
aí ele expresse seu pensamento de modo dubitativo e embaraçado, como se não estivesse
exatamente certo sobre o significado desta idéia; e talvez ele nunca tenha se
certificado, pois de outro modo não se explica que ele a tenha tantas vezes
distorcido de seu sentido próprio, e que seja tão difícil, quando ele fala do
infinito, saber se sua intenção era a de tomar este termo com rigor, ou se ele
não via aí mais do que um simples “modo de dizer”.
NOTAS
1. Descartes falava apenas em
idéias “claras e distintas”; Leibnitz precisa que uma idéia pode ser clara sem
ser distinta, na medida em que ela permite apenas reconhecer seu objeto e
distingui-lo de todas as outras coisas, enquanto que uma idéia distinta é
aquela que é, não apenas “distintiva” neste sentido, mas também “distinguida”
em seus elementos; uma idéia pode aliás ser mais ou menos distinta, e a idéia
adequada é aquela que o é completamente e em todos os seus elementos; mas,
enquanto Descartes achava que se podia ter idéias “claras e distintas” de todas
as coisas, Leibnitz estima ao contrário que apenas as idéias matemáticas podem
ser adequadas, porque seus elementos são de certa forma em número definido,
enquanto que todas as outras idéias abrangem uma multitude de elementos cuja
análise jamais pode ser acabada, de modo que elas permanecem sempre
parcialmente confusas.
2. Citaremos apenas um texto
entre muitos outros, e que é particularmente claro a respeito: “Qui diceret aliquam multitudinem esse
infinitam, non diceret eam esse numerum, vel numerum habere; addit etiam
numerus super multitudinem rationem mensurationis. Est enim numerus multitudo
mensurata per unum, ... et propter hoc numerus ponitur species quantitatis
discretae, non autem multitudo, sed est de transcendentibus” (São Tomás de
Aquino, in III Phys., 1. 8)
3. Sabemos que os escolásticos,
mesmo na parte propriamente metafísica de suas doutrinas, jamais foram além da
consideração do Ser, de modo que, de fato, sua metafísica reduz-se à mera
ontologia.
4.
Système nouveau de la nature
et de la communication des substances.
5. Observatio quod rationes sive proportionaes non habeant locum circa
quantitates nihilo minores, et de vero sensu Methodi infinitesimalis, nas Acta Eruditorum de Leipzig, 1712.
6. Cf. notadamente ibid.: “Infinitum continuum vel discretum proprie nec unum, nec totum, nec
quantum est”, onde a expressão “nec
quantum” parece querer dizer que para ele, como indicamos mais acima, a
“multitude infinita” não deve ser concebida quantitativamente, a menos que por
“quantum” ele não tenha entendido
aqui apenas uma quantidade definida, como acontecia com o pretenso “número
infinito” cuja contradição ele demonstrou.
7. Sobre este ponto, ver Os Estados Múltiplos do Ser, cap. I.
8. Carta a Jean Bernoulli. –
Leibnitz gratuitamente dá como dos antigos em geral uma opinião que, na
verdade, era de apenas alguns; ele tinha em vista manifestamente a teoria dos
Estóicos, que concebiam Deus como unicamente imanente e o identificavam à Anima Mundi. Está claro, aliás, que
trata-se apenas do Universo manifestado, ou seja do “cosmos”, e não do Todo
universal que compreende todas as possibilidades, tanto não-manifestadas como
manifestadas.
9. Carta a Jean Bernoulli, 7 de
junho de 1698.
IV
A MEDIDA DO
CONTÍNUO
Até aqui, quando falamos do número, tivemos em vista
exclusivamente o número inteiro, e tinha que ser logicamente assim, desde que
consideramos a quantidade numérica como sendo propriamente a quantidade
descontínua; na série dos números inteiros, existe sempre, entre dois termos
consecutivos, um intervalo perfeitamente definido, que é marcado pela diferença
de uma unidade existente entre estes dois números, a qual, quando nos mantemos
na consideração dos números inteiros, não pode ser reduzida de modo algum. De
resto, na realidade, apenas o número inteiro é um verdadeiro número, que
podemos chamar de número puro; e a série dos números inteiros, partindo da
unidade, cresce indefinidamente, sem jamais atingir um último termos, cuja
suposição, como vimos, é contraditória; mas está claro que ela se desenvolve
inteiramente num único sentido, de modo que o sentido oposto, que seria
indefinidamente decrescente, não pode encontrar aí sua representação, embora
haja, de um outro ponto de vista que mostraremos adiante, uma certa correlação
e uma espécie de simetria entre a consideração das quantidades indefinidamente
crescentes e a das quantidades indefinidamente decrescentes. Entretanto, não se
pode permanecer lá, e somos obrigados a considerar diversas sortes de números,
além dos números inteiros; trata-se, como se diz habitualmente, de extensões ou
generalizações da idéia de número, e isso é verdade numa certa medida; mas, ao
mesmo tempo, estas extensões são também alterações desta idéia, e isto é o que
os matemáticos modernos parecem esquecer com demasiada facilidade, porque seu
“convencionalismo” os faz desconhecer sua origem e sua razão de ser. De fato,
os números que não são inteiros apresentam-se sempre, antes de mais nada, como
a representação do resultado de operações que são impossíveis quando nos
mantemos do ponto de vista da matemática pura, pois esta, com todo rigor, não é
mais do que a aritmética dos números inteiros: assim, por exemplo, um número
fracionário não é outra coisa que a representação do resultado de uma divisão
que não se efetua exatamente, ou seja de uma divisão que deveria ser
considerada aritmeticamente impossível, o que se reconhece aliás implicitamente
quando é dito, segundo a terminologia matemática normal, que um destes números
considerados não é divisível pelo outro. Cabe lembrar ainda que a definição que
se dá comumente dos números fracionários é absurda: as frações não podem de modo
algum serem “partes da unidade”, como se diz, pois a unidade aritmética
verdadeira é necessariamente indivisível e sem partes; e é aliás daí que
resulta a descontinuidade essencial do número que é formado a partir dela; mas
vejamos de onde provém este absurdo.
Com efeito, não é arbitrariamente que chegamos a
considerar assim o resultado das operações de que falamos, ao invés de
considerá-las pura e simplesmente como impossíveis; é, de um modo geral, em
conseqüência da aplicação que se faz do número, quantidade descontínua, à
medida de grandezas que, como as grandezas espaciais por exemplo, pertencem à
ordem das quantidades contínuas. Entre estes modos da quantidade, existe uma
diferença de natureza tal, que a correspondência entre ambas não pode ser estabelecida
com perfeição; para remediar isto até um certo ponto, e na medida do possível,
procurou-se reduzir de certa forma os intervalos deste descontínuo que é
constituído pela série dos números inteiros, introduzindo entre seus termos
outros números, em primeiro lugar os números fracionários, que não fariam
nenhum sentido fora desta consideração. É fácil de compreender que o absurdo
que assinalamos, no que concerne à definição das frações, provém simplesmente
de uma confusão entre a unidade aritmética e aquilo que se chama “unidades de
medida”, que só são tais por convenção, e que são na realidade grandezas de
outra ordem do que os números, notadamente grandezas geométricas. A unidade de
comprimento, por exemplo, não passa de um dado comprimento escolhido por razões
estranhas à aritmética, e à qual se faz corresponder o número “1” a fim de se
poder medir em relação a ela todos os outros comprimentos; mas, por sua própria
natureza de grandeza contínua, todo comprimento, mesmo que representado assim
pela unidade, não deixa de ser sempre e indefinidamente divisível; podemos
então, comparando-o com outros comprimentos que não sejam múltiplos exatos
seus, chegar a considerar partes desta unidade de medida, mas que não serão por
isso absolutamente partes da unidade aritmética; e é somente assim que se
introduz realmente a consideração dos números fracionários, como representação
da relação entre grandezas que não são exatamente divisíveis umas pelas outras.
A medida de uma grandeza não é de fato outra coisa do que a expressão numérica
de sua relação com outra grandeza de mesma espécie tomada como unidade de
medida, ou seja no fundo como termo de comparação; e é por isso que o método
normal de medida das grandezas geométricas é essencialmente fundamentado sobre
a divisão.
É preciso dizer ainda que, apesar disso, subsiste
sempre forçosamente algo da natureza descontínua do número, que não permite que
se obtenha assim um equivalente exato do contínuo; podemos reduzir os
intervalos tanto quanto se queira, vale dizer em suma reduzi-los
indefinidamente, tornando-os menores do que qualquer quantidade tomada como
referência, mas jamais chegaremos a suprimi-los inteiramente. Para nos
explicarmos melhor, tomaremos o exemplo mais simples de um contínuo geométrico,
ou seja uma linha reta: consideremos uma semi-reta estendendo-se
indefinidamente num certo sentido (1), e façamos corresponder a cada um de seus
pontos um número que exprima a distância deste ponto à origem; esta será
representada por zero, porque sua distância de si mesmo será obviamente nula; a
partir desta origem, os números inteiros corresponderão às extremidades
sucessivas de segmentos todos iguais entre si e iguais à unidade de
comprimento; os pontos compreendidos entre estes só poderão ser representados
por números fracionários, pois suas distâncias até a origem não são múltiplos
exatos da unidade de comprimento. É claro que, à medida em que tomemos números
fracionários cujo denominador seja crescente, portanto cuja diferença será cada
vez menor, os intervalos entre os pontos correspondentes a estes números se
verá reduzido na mesma proporção; podemos assim fazer decrescer estes
intervalos indefinidamente, teoricamente
ao menos, pois os denominadores dos números fracionários possíveis são
todos os números inteiros, cuja série cresce indefinidamente (2). Dizemos
teoricamente, porque, de fato, como a multiplicidade dis números fracionários é
indefinida, jamais poderemos chegar a empregá-la por completo; mas suponhamos
que entretanto que se possa fazer corresponder idealmente todos os números
fracionários possíveis a pontos da semi-reta assim considerada: apesar do
decréscimo indefinido dos intervalos, restarão ainda sobre esta linha uma
multitude de pontos aos quais não corresponderá nenhum número. Isto pode
parecer singular e mesmo paradoxal à primeira vista, e no entanto é fácil de
perceber, pois esta ponto pode ser obtido por meio de uma operação geométrica
muito simples: construiremos um quadrado que tenha por lado o segmento de reta
cujas extremidades são os pontos zero e um, e traçaremos a diagonal deste
quadrado partindo da origem, e em seguida a circunferência que tem a origem
como centro e esta diagonal como raio; o ponto em que esta circunferência corta
a semi-reta não poderá ser representado por nenhum número inteiro ou
fracionário, pois sua distância à origem será igual à diagonal do quadrado e
esta é incomensurável em relação ao lado, ou seja, no nosso caso, com a unidade
de comprimento. Assim, a multitude dos números fracionários, malgrado o
decréscimo indefinido de suas diferenças, nunca bastará para preencher, se
podemos dize-lo, os intervalos entre os pontos contidos na linha (3), o que
eqüivale a dizer que esta multitude não é um equivalente real e adequado do
contínuo linear; somos forçados, para exprimir a medida de certos comprimentos,
a introduzir ainda outras espécies de números, que são os chamados números
incomensuráveis, ou seja aqueles que não tem medida comum com a unidade. Estes
são os números irracionais, ou seja aqueles que representam o resultado da
extração de uma raiz aritmeticamente impossível, como por exemplo a raiz
quadrada de um número que não é um quadrado perfeito; é assim que, no exemplo
precedente, a relação da diagonal do quadrado com seu lado, e por conseguinte o
ponto cuja distância à origem é igual a esta diagonal, só pode ser representado
pelo número irracional “raiz de 2”, que é verdadeiramente incomensurável, pois
não existe nenhum número inteiro ou fracionário cujo quadrado seja igual a
dois; e, além dos números irracionais, existem ainda outros números
incomensuráveis cuja origem geométrica é evidente, como por exemplo o número
“pi” que representa a relação entre a circunferência e seu diâmetro.
Sem entrarmos ainda na questão da “composição do
contínuo”, veremos que o número, seja qual for a extensão que se dê à sua
noção, não lhe é jamais perfeitamente aplicável: esta aplicação eqüivale em
suma sempre a substituir o contínuo por um descontínuo cujos intervalos podem
ser minúsculos, e ainda tornar-se cada vez menores por uma série indefinida de
divisões sucessivas, mas jamais podendo ser suprimidos, pois, na realidade, não
existe um “último elemento” ao qual estas divisões possam chegar, porque uma
quantidade contínua, por menor que seja, permanece sempre indefinidamente divisível.
É a estas divisões do contínuo que responde propriamente a consideração dos
números fracionários; mas, e é isto que mais importa lembrar, um fração, por
ínfima que seja, é sempre uma quantidade determinada, e entre duas frações, por
tão pouco diferentes entre si que as possamos supor, existe sempre um intervalo
igualmente determinado. Ora, a propriedade da divisibilidade indefinida que
caracteriza as grandezas contínuas exige evidentemente que se possa sempre
tomar delas elementos tão pequenos quanto se queira, e que os intervalos
existentes entre estes elementos podem ser tornados menores do que qualquer
quantidade dada; mas, por outro lado – e é aqui que aparece a insuficiência dos
números fracionários, e mesmo de qualquer número que seja -, estes elementos e
estes intervalos, para que haja realmente continuidade, não devem ser
concebidos como qualquer coisa determinada. Por conseguinte, a representação
mais perfeita da quantidade contínua será obtida pela consideração de
grandezas, não mais fixas e determinadas como aquelas a que nos referimos, mas
ao contrário variáveis, porque mesmo sua variação poderá ser vista como
efetuando-se de modo contínuo; e estas quantidades deverão ser susceptíveis de
decrescer indefinidamente, por sua variação, sem jamais se anularem nem chegar
a um “mínimo”, que seria tão contraditório quanto os “últimos elementos” do
contínuo: e é esta precisamente, como veremos, a verdadeira noção das
quantidades infinitesimais.
NOTAS
1. Veremos adiante, a respeito
da representação geométrica dos números negativos, porque devemos considerar
aqui uma semi-reta; de resto, o fato de que a série dos números só se
desenvolve num sentido, como já dissemos, indica suficientemente a razão.
2. Isto ficará mais claro
quando falarmos dos números inversos.
3. Cabe lembrar que não dizemos
os pontos que compõem ou que constituem a linha, o que corresponderia a uma
concepção falsa do contínuo, como mostrarão as considerações que iremos expor
mais adiante.
V
QUESTÕES
LEVANTADAS PELO MÉTODO INFINITESIMAL
Quando Leibnitz expôs pela primeira vez o método
infinitesimal (1), e ainda em muitos trabalhos subsequentes (2), ele insistiu
sobretudo nos usos e aplicações do novo cálculo, o que era bem coerente com a
tendência moderna de atribuir maior importância às aplicações práticas da
ciência do que à própria ciência; é muito difícil dizer se esta tendência
existia em Leibnitz, ou se não haveria, neste modo de apresentar seu método,
uma espécie de concessão de sua parte. Seja como for, não basta, para
justificar um método, mostrar as vantagens que ele pode ter sobre outros
métodos anteriormente admitidos, nem as comodidades que ele pode fornecer na
prática para o cálculo, nem mesmo os resultados que ele pode fornecer de fato;
são estas objeções que os adversários do método infinitesimal logo fizeram
valer, e foram elas que fizeram Leibnitz decidir explicar-se sobre seus
princípios e sobre as origens de seu método. Sobre este último ponto, é muito
possível que ele não tenha dito tudo, mas isto importa pouco no fundo, pois,
frequentemente, as causas ocasionais de uma descoberta não passam de
circunstâncias bastante insignificantes em si mesmas; em todo caso, o que há de
interessante nas indicações que ele fornece a respeito (3), é que ele partiu da
consideração das diferenças “assinaláveis” que existem entre os números, para
daí passar às diferenças “inassinaláveis” que podem ser concebidas entre as
grandezas geométricas em razão de sua continuidade, e que inclusive ele dava
uma grande importância a esta ordem, como se ela fosse de certa forma “exigida
pela natureza das coisas”. Resulta daí que as quantidades infinitesimais, para
ele, não se apresentavam naturalmente de modo imediato, mas apenas como um
resultado da passagem da variação da quantidade descontínua para a quantidade
contínua, e da aplicação da primeira à medida da segunda.
Agora, qual é exatamente o significado das
quantidades infinitesimais, cujo emprego por Leibnitz foi censurado por falta
de uma definição sua, e permitirá este significado considerar seu cálculo como
absolutamente rigoroso, ou somente, ao contrário, como um simples método de
aproximação? Responder a estas duas questões equivaleria a resolver por isso
mesmo as objeções mais importantes que lhe foram feitas; mas, infelizmente, ele
jamais o fez claramente, e mesmo suas diversas respostas nem sempre são
conciliáveis entre si. A este propósito, convém lembrar que Leibnitz tinha, de
modo geral, o hábito de explicar as mesmas coisas de maneira diferente conforme
a pessoa a quem se endereçava; não seremos nós a censurá-lo por esta maneira de
agir, irritante apenas para os espíritos sistemáticos, pois, em princípio,
assim ele apenas conformava-se com um preceito iniciático e mais
particularmente rosicruciano, segundo o qual deve-se falar a cada um na sua
própria linguagem; apenas, às vezes ele aplicava este princípio bastante mal.
Com efeito, se é evidentemente possível revestir uma verdade com diferentes
expresões, está claro que isto deve ser feito sem deformá-la nem diminuí-la, e
deve-se evitar modos de expressão que possam ocasionar concepções falsas; é o
que Leibnitz não pode fazer em muitos casos (4). Assim, ele leva a “acomodação”
ao ponto de parecer dar razão àqueles que não viam em seu cálculo mais do que
um método de aproximação, pois ele chega a apresentá-lo como não sendo outra
coisa que uma espécie de resumo do “método de exaustão” dos antigos, próprio a
facilitar as descobertas, mas cujos resultados precisam depois ser verificados
por este método para dar deles uma demonstração rigorosa; e no entanto é certo
que este não era o seu pensamento, e que, na realidade, ele via aí muito mais
do que um simples expediente para abreviar os cálculos.
Leibnitz declara frequentemente que as quantidades
infinitesimais não passam de “incomparáveis”, mas, quanto ao sentido exato pelo
qual se deve entender este termo, ele fornece explicações não apenas pouco
satisfatórias, como às vezes deploráveis, que forneceram muitas armas que seus
adversários não deixaram de usar; também aí ele não expressou seu verdadeiro
pensamento, e temos outro exemplo ainda mais grave do que o anterior, desta
“acomodação” excessiva que consiste em substituir perspectivas errôneas por uma
expressão “adaptada” da verdade. Com efeito, Leibnitz escreve: “Não é preciso
tomarmos aqui o infinito rigorosamente, mas apenas como quando dizemos, na
óptica, que os raios do sol provém de um ponto infinitamente afastado e por
isto são vistos como paralelos. E quando se trata de muitos graus do infinito,
é como quando vemos o globo terrestre como um ponto diante da distância das
estrelas fixas, e uma bola que temos na mão como um ponto em comparação ao
diâmetro do globo da terra, de modo que a distância das estrelas fixas é como
um infinito do infinito em relação ao diâmetro da bola. Pois em lugar do
infinito ou do infinitamente pequeno, tomamos quantidades tão grandes ou tão
pequenas quanto se queira para que o erro seja menor do que o erro dado, de
sorte que não diferimos de Arquimedes senão
nas expressões que são mais diretas em nosso método, e mais conformes
com a arte de inventar” (5). Observaram-lhe que, por menor que seja o globo da
terra em relação ao firmamento, ou um grão de areia em relação ao globo, eles
não deixam de ser quantidades fixas e determinadas, e que, se uma destas
quantidades pode ser considerada como praticamente despezível em comparação com
outra, isto não passa de uma simples aproximação; ele respondeu que apenas
havia tentado “evitar as sutilezas” e “tornar o raciocínio mais acessível a
todo o mundo” (6), o que confirma nossa suposição e, ademais, é como se fosse
já uma manifestação do espírito “vulgarizador” dos sábios modernos. O que é
extraordinário é ter ele escrito em seguida: “Mas aí não há nada que faça
pensar que eu entenda considere uma quantidade verdadeiramente muito pequena,
mas sempre fixa e determinada”, ao que ele acrescenta: “De resto, eu escrevi há
alguns anos a Bernoulli de Groningue que os infinitos e os infinitamente
pequenos poderiam ser tomados como ficções, semelhantes às raízes imaginárias
(7), sem que isto prejudique nosso cálculo, pois estas ficções são na realidade
úteis e bem fundamentadas” (8). Por outro lado, parece que ele jamais percebeu
exatamente em que ponto sua comparação era falha, pois ele a repetiu quase nos
mesmos termos uma dezena de anos depois (9); mas, como ao menos ele declara
expressamente que sua intenção não foi a de apresentar as quantidades
infinitesimais como determinadas, devemos concluir que, para ele, o sentido da
comparação resumia-se ao seguinte: um grão de areia, embora não sendo
infinitamente pequeno, pode entretanto, sem grande inconveniente, ser
considerado como tal em relação à terra, e assim não há necessidade de
considerar os infinitamente pequenos “a rigor”, e pode-se mesmo entende-los
como ficções; mas, seja lá como se os entenda, uma tal comparação só se presta
para dar do cálculo infintesimal a idéia, certamente insuficiente aos olhos do
próprio Leibnitz, de um simples cálculo de aproximação.
NOTAS
1. Nova Methodus pro maximis et minimis, itemque tangentibus, quae nec
fractas nec irrationales quantitates moratur, et singulare pro illis calculi genus, nas Acta Eruditorum de Leipzig, 1684.
2. De Geometria recondita et Analysi indivisibulum atque infinitorum, 1686. – Os trabalhos
seguintes referem-se todos à solução de problemas particulares.
3. Primeiro em sua
correpondência, e depois na Historia et
origo Calculi differentialis, 1714.
4. Em linguagem rosacruz,
diríamos que isto, tanto quanto e até mais do que o fracasso de seus projetos
de “characteristica universalis”,
prova que, se ele tinha alguma idéia teórica do “dom das línguas”, ele estava
longe de te-lo recebido efetivamente.
5. Mémoire de M.G.G. Leibnitz
touchant son sentiment sur le Calcul différentiel, no Journal de Trévoux, 1701.
6. Carta a Varignon, 2 de
fevereiro de 1702.
7. As raízes imaginárias são as
raízes dos números negativos; falaremos mais adiante sobre os números negativos
e das dificuldades lógicas que eles ocasionam.
8. Carta a Varignon, 14 de
abril de 1702.
9. Memória citada, nas Acta Eruditorum de Leipzig, 1712.
VI
AS “FICÇÕES BEM
FUNDADAS”
O pensamento que Leibnitz expressa de modo mais
constante, embora não o afirmando sempre com a mesma força, e até às vezes não
querendo pronunciar-se categoricamente a respeito, é o de que, no fundo, as
qunatidades infinitas e infinitamente pequenas não passam de ficções; mas,
acrescenta ele, trata-se de “ficções bem fundadas”, e, com isto, ele não
entende apenas que elas são úteis para o cálculo (1), ou mesmo para ajudar a “encontrar verdades
reais”, embora ele insista igualmente sobre essa utilidade; mas ele repete
constantemente que essas ficções estão “fundamentadas na realidade”, que elas
possuem “fundamentum in re”, o que implica evidentemente algo além de um valor
puramente utilitário; e, em definitivo, este próprio valor deve, para ele,
explicar-se pelo fundamento que estas ficções tem na realidade. Em todo caso,
ele estima que basta, para que o método seja seguro, considerar, não
quantidades infinitas ou infinitamente pequenas no sentido rigoroso destas
expressões, uma vez que este sentido não correponde a realidades, mas
quantidades tão grandes ou tão pequenas quanto se queira, ou quanto seja
necessário para que o erro se torne menor do que não importa qual quantidade
dada; ainda seria preciso examinar se é verdade que, como ele declara, este
erro é nulo por isso mesmo, ou seja se este modo de encarar o cálculo
infinitesimal lhe fornece um fundamento perfeitamente rigoroso, questão à qual
voltaremos mais adiante. Seja como for quanto a este último ponto, os
enunciados em que figuram quantidades infinitas e infinitamente pequenas entram
para ele na categoria das asserções que, diz ele, não passam de “toleranter verae”, que se pode traduzir
como “passáveis”, e que precisam ser “redirecionadas” pela explicação que se dá
delas, assim como quando consideramos as quantidades negativas como “menores do
que zero”, ou nos casos em que a linguagem dos geômetras implica “um certo modo
de falar figurado e críptico” (2); este último termo pareceria ser uma alusão
ao sentido simbólico e profundo da geometria, mas este é bem diferente daquilo
que Leibnitz tinha em vista, e talvez não haja aí, como acontece com ele em
outras ocasiões, mais do que a lembrança de algum dado esotérico mais ou menos
mal compreendido.
Quanto ao sentido pelo qual deve-se entender que as
quantidades infinitesimais são “ficções bem fundadas”, Leibnitz declara que “os
infinitos e infinitamente pequenos são fundamentados do mesmo modo como na
geometria e na natureza, como se se tratasse de perfeitas realidades” (3); para
ele, com efeito, tudo o que existe na natureza implica de certo modo a
consideração do infinito, ou ao menos daquilo que ele crê poder chamar assim:
“A perfeição da análise dos transcendentes ou da geometria aonde entra a consideração
de qualquer infinito, diz ele, seria sem dúvida a mais importante devido à
aplicação que se pode fazer dela nas operações da natureza, que faz entrar o
infinito em tudo o que ela faz” (4); mas é apenas talvez, porque não podemos
ter disto idéias adequadas, e porque entram sempre aí alguns elementos que não
podemos perceber distintamente. Se é assim, não devemos entender literalmente
afirmações como esta por exemplo: “Sendo nosso método propriamente esta parte
da matemática geral que trata do infinito, é isto que o torna tão necessário
quando se aplicam as matemáticas à física, porque o caráter do Autor infinito
entre normalmente nas operações da natureza” (5). Mas, se o próprio Leibnitz
entende por isto apenas que a complexidade das coisas naturais ultrapassa
incomparavelmente os limites de nossa percepção distinta, permanece o fato de
que as quantidades infinitas e infinitamente pequenas devem ter seu “fundamentum in re”; e este fundamento
que se encontra na natureza das coisas, ao menos como ele o concebe, não é
outra coisa do que o que ele chama de “lei da continuidade”, que iremos
examinar mais adiante, e que ele vê, com ou sem razão, como sendo um caso
particular de uma certa “lei de justiça”, que se ligaria à consideração da
ordem e da harmonia, e que encontraria sua aplicação todas as vezes em que uma
certa simetria devesse ser observada, como acontece por exemplo com as
combinações e permutações.
Agora, se as quantidades infinitas e infinitamente
pequenas não passam de ficções, e mesmo admitindo que elas sejam realmente “bem
fundamentadas”, podemos nos perguntar o seguinte: porque empregar tais expressões, que, mesmo
podendo ser consideradas como “toleranter
verae” , nem por isso deixam de ser incorretas? Existe aí alguma coisa que
já prenuncia o “convencionalismo” da ciência moderna, ainda que com a notável
diferença de que esta já não se preocupa em absoluto se as ficções com as quais
ela lida são fundamentadas ou não, ou se, segundo outrta expressão de Leibnitz,
elas podem ser interpretadas “sano sensu”, ou mesmo se elas tem qualquer
significado. Uma vez que podemos dispensar estas quantidades fictícias, e
contentarmo-nos com considerar em seu lugar quantidades que podemos
simplesmente tornar tão grandes ou tão pequenas quanto se queira, e que, por
esta razão, podem ser chamadas indefinidamente grandes e indefinidamente
pequenas, teria sido melhor começar por aí, e evitar assim a introdução de
ficções que, qualquer que seja seu “fundamentum
in re”, não possuem nenhuma utilização efetiva, não apenas para o cálculo,
mas para o próprio método infinitesimal. As expressões “indefinidamente grande”
e “indefinidamente pequeno”, ou, o que é equivalente mas mais preciso,
“indefinidamente crescente” e “indefinidamente decrescente”, não tem apenas a vantagem
de serem as únicas rigorosamente exatas; elas ainda mostram claramente que as
quantidades às quais elas se aplicam só podem ser quantidades variáveis e não
determinadas. Como dise com razão um matemático, “o infinitamente pequeno não é
uma quantidade muito pequena, que tem um valor atual, susceptível de
determinação; seu caráter é o de ser eminentemente variável e de podr tomar um
valor menor do que todos os que se quiser precisar; seria melhor chamá-lo de
indefinidamente pequeno” (6).
O emprego destes termos teria evitado muitas
dificuldades e discussões, e isto não é de espantar, pois não se trata apenas
de uma questão de palavras, mas da substituição de uma idéia falsa por uma
idéia justa, de uma ficção por uma realidade; não se poderia, notadamente,
tomar as quantidades infinitesimais por quantidades fixas e determinadas, pois
a palavra “indefinido” comporta por si só sempre uma idéia de “devir”, como já
dissemos, e por conseguinte de mudança, ou, quando se trata de quantidades, de
variação; e, se Leibnitz tivesse se servido dela habitualmente, ele não teria
se deixado levar tão facilmente à pobre comparação do grão de areia. Ademais,
reduzir “infinite parva ad indefinite
parva” teria sido em todo caso mais claro do que reduzi-los “ad incomparabiliter parva”; a precisão
teria ganho, sem perda da exatidão. As quantidades infinitesimais são
certamente “incomparáveis” em relação às quantidades normais, mas isto poderia
ser entendido de outro modo, e o foi efetivamente; teria sido melhor dizer que
elas são “inassinaláveis”, segundo outra expressão de Leibnitz, pois este termo
só pode ser entendido rigorosamente para quantidades que são susceptíveis de se
tornarem tão pequenas quanto se queira, ou seja menores do que qualquer
quantidade dada, e às quais, por conseguinte, não se pode “assinalar” nenhum
valor determinado, por pequeno que seja, e este é de fato o sentido dos “indefinite parva”. Infelizmente, é quase
impossível saber se, no pensamento de Leibnitz, “incomparável” e
“inassinalável” são deveras sinônimos; mas, em todo caso, é ao menos certo que
uma quantidade propriamente “inassinalável”, em razão da possibilidade de descréscimo indefinido que ela comporta, é
por isso mesmo “incomparável” com qualquer quantidade dada, e mesmo, para
estendermos esta idéia às diferentes ordens infinitesimais, com qualquer
quantidade em relação à qual ela possa decrescer indefinidamente, enquanto que
esta mesma quantidade é considerada como possuindo uma fixidez ao menos
relativa.
Se existe um ponto a respeito do qual todos podem
colocar-se de acordo, mesmo sem aprofundar as questões de princípio, é que a
noção de indefinidamente pequeno, ao menos do ponto de vista puramente
matemático, basta perfeitamente à análise infinitesimal, e os próprios
“infinitistas” o reconhecem sem dificuldade (7). Podemos então, a respeito, nos
ater à definição de Carnot: “O que é uma quantidade chamada de infinitamente
pequena em matemática? Nada além de uma quantidade que podemos tornar tão
pequena quanto se queira, sem que por isso sejamos obrigados a fazer variar
aquelas cuja relação procuramos” (8). Mas, quanto ao significado verdadeiro das
quantidades infinitesimais, a questão não se limita a isto: pouco importa, para
o cálculo, que os infinitamente pequenos não passem de ficções, pois podemos
nos contentar com a consideração dos indefinidamente pequenos, que não levanta
qualquer dificuldade lógica; e de resto, a partir do momento em que, pelas
razões metafísicas que expusemos de início, não podemos admitir um infinito
quantitativo, seja ele em grandeza ou pequenez (9), nem nenhum infinito de
ordem relativa e determinada, é certo que estes não podem ser outra coisa do
que ficções e nada mais; mas, se estas ficções foram introduzidas, com ou sem
razão, na origem do cálculo infinitesimal, é porque, na intenção de Leibnitz,
elas deveriam corresponder a alguma coisa, por defeituosa que seja a maneira
com que foram expressas. Mas como é de princípios que nos ocupamos aqui, e não
de um procedimento de cálculo reduzido de certa forma a si mesmo, o que não tem
interesse para nós, devemos então nos perguntar qual é o real valor destas
ficções, não apenas do ponto de vista lógico, mas ainda do ponto de vista
ontológico, se elas são tão “bem fundamentadas” quanto dizia Leibnitz, e mesmo
se podemos dizer que elas são “toleranter
verae” e assim aceitá-las como tais, “modo
sano sensu intelligantur”; para responder a estas questões, será preciso
examinar mais de perto a concepção da “lei da continuidade”, pois é nesta que
ele pensava encontrar o “fundamentum in
re” dos infinitamente pequenos.
NOTAS
1. É nesta consideração da
utilidade prática que Carnot pensou encontrar uma justificativa suficiente; é
evidente que, de Leibnitz até ele, a tendência “pragmatista” da ciência moderna
acentuou-se fortemente.
2. Memória citada, nas Acta Eruditorum de Leipzig, 1712.
3. Carta citada a Varignon, 2
de fevereiro de 1702.
4. Carta ao Marquês de
l’Hospital, 1693.
5. Considérations sur la différence qu’il y a entre l’Analyse ordinaire et
le nouveau Calcul des transcendantes, no Journal
des Sçavans, 1694.
6. Ch. De Freycinet, De l’Analyse infinitésimale, pgs. 21-22.
– O autor acrescenta: “Mas como a primeira denominação (de infinitamente
pequeno) prevaleceu na linguagem, preferimos conservá-la”. Este é sem dúvida um
escrúpulo excessivo, pois o uso não pode justificar as incorreções e
impropriedades de linguagem, e, se não houver reação a abusos do gênero, não
será possível sequer inntroduzir nos termos mais precisão e exatidão do queu
comporta seu emprego corrente.
7. Ver L. Couturat, De l’infini Mathématique, pg. 265, Nota:
“Podemos constituir logicamente o cálculo infinitesimal apenas sobre a noção de
indefinido...” – É verdade que no emprego do termo “logicamente” implica aqui
uma reserva, pois, para o autor, ele se opões a “racionalmente”, o que é aliás
uma terminologia bastante estranha.
8. Réflexions sur la Métaphysique du Calcul infinitésimal , pg. 7, Nota; cf. ibid., pg. 20. – O título desta obra é
pouco justificável, pois, na realidade, não se acha nela a menor idéia de
natureza metafísica.
9. A célebre concepção dos
“dois infinitos” de Pascal é metafisicamente absurda, e ela não passa ainda do
resultado da confusão entre o infinito e o indefinido, sendo este tomado nos
dois sentidos opostos das grandezas crescentes e decrescentes.
VII
OS “GRAUS DE
INFINITUDE”
Ainda não vimos, no que precede, todas as confusões
que se introduzem inevitavelmente quando se admite a idéia de infinito em
acepções diferentes de seu único e verdadeiro sentido metafísico; encontraremos
mais de um exemplo, notadamente, na longa discussão entre Leibnitz e Jean
Bernoulli sobre a realidade das quantidades infinitas e infinitamente pequenas,
discussão que aliás não chegou a neenhuma conclusão definitiva, e que nem o
poderia, dadas as confusões cometidas a cada instante por cada um deles, e dada
a falta de princípios de onde elas provinham; de resto, em qualquer ordem de
idéias que nos coloquemos, é sempre a falta de princípios que torna as questões
insolúveis. Podemos no espantar, entre outras coisas, que Leibnitz tenha feito
uma distinção entre “infinito” e “interminado”, e que assim ele não tenha
rejeitado absolutamente a idéia, entretanto manifestamente contraditória, de um
“infinito terminado”, embora ele chegue a se perguntar “se é possível que
exista por exemplo uma linha reta infinita, e entretanto terminada numa ponta e
noutra” (1). Sem dúvida, ele recusa-se a admitir esta possibilidade, “tanto
mais que me parece, diz ele, que o infinito tomado a rigor deve ter sua fonte
no innterminado, sem o que eu não vejo meio de encontrar um fundamento próprio
para distingui-lo do finito” (2). Mas, ainda que digamos, com mais ênfase do
que ele o faz, que “o infinito tem sua fonte no interminado”, por não ser-lhe
absolutamente idêntico, e distinguir-se dele numa certa medida, ainda assim nos
arriscamos a sermos detidos em meio a uma quantidade de idéias estranhas e
contraditórias. É verdade que Leibnitz declara não aceitar de boa vontade estas
idéias, e que para tanto ele teria de ser “obrigado por demonstrações irrefutáveis”;
mas já é grave atribuir a isto uma grande importância, e mesmo encarar como
algo mais do que simples impossibilidades; no que concerne, por exemplo, à
idéia de uma espécie de “eternidade terminada”, que é das que ele anuncia a
este propósito, só podemos ver aí o produto de uma confusão entre a noção de
eternidade e a de duração, que é absolutamente injustificável do ponto de vista
da metafísica. Admitimos facilmente que o tempo no qual transcorre nossa vida
corporal seja realmente indefinido, o que não exclui de modo algum que ele seja
“terminado de um lado como de outro”, ou seja que ele tenha tanto um começo
como um fim, conforme a concepção cíclica tradicional; admitimos também que
existem outros modos da duração, como o que os escolásticos chamavam de aevum, cuja indefinidade é, se podemos
nos exprimir assim, indefinidamente maior do que a do tempo; mas todos esses
modos, em toda sua extensão possível, não passam de indefinidos, porque
trata-se sempre de condições particulares de existência, próprias a tal ou tal
estado, e nenhum deles, pelo fato mesmo de serem durações, portanto implicando
sucessão, pode ser identificado ou assimilado à eternidade, com a qual não têm
mais relação do que o finito, sob qualquer modo que seja, tem com o Infinito verdadeiro,
pois a concepção de uma eternidade relativa não tem mais sentido do que a de um
infinito relativo. Em tudo isso, tudo o que há para se considerar são
diferentes ordens do indefinido, como veremos melhor adiante; mas Leibnitz, não
tendo feito as distinções necessárias e essenciais, e sobretudo não tendo
colocado antes de tudo o único princípio que lhe permitiria não perder-se,
acha-se embaraçado para refutar as opiniões de Bernoulli, a ponto de
considerá-lo, tão equívocas e hesitantes são suas respostas, menos distante do
que está em realidade de suas próprias idéias sobre a “infinidade dos mundos” e
os diferentes “graus de infinitude”.
Esta concepção dos pretensos “graus de infinitude”
equivale em suma a supor que podem existir dois mundos incomparavelmente
maiores e menores do que o nosso, de tal modo que os habitantes de qualquer um
destes mundos poderia vê-lo como infinito comtanta razão como fazemos em
relação ao nosso; diríamos melhor, com tão pouca razão quanto. Um tal modo de
ver as coisas não tem a priori nada
de absurdo sem a introdução da idéia de infinito, que não tem nada a ver com
isto; cada um destes mundos, por maiores que possamos supô-los, não deixa por
isso de ser limitado, e assim como podemos chamá-lo de infinito? A verdade é que
nenhum deles pode sê-lo realmente, nem que seja só pelo fato de serem
concebidos como múltiplos, pois chegamos aqui à contradição de uma pluralidade
de infinitos; e aliás, mesmo se alguns (ou muitos) consideram nosso mundo como
tal, esta asserção continua a não fazer sentido. De resto, podemos nos perguntar se serão
mundos diferentes, ou se não serão, simplesmente, partes mais ou menos extensas
de um mesmo mundo, pois, por hipótese, eles devem estar todos submetidos às
mesmas condições de existência e, notadamente à condição espacial,
desenvolvendo-se numa escala simplesmente aumentada ou diminuída. É num sentido
completamente diferente que se pode falar, não da infinidade, mas da
indefinidade dos mundos, e isso apenas porque, fora das condições de existência,
tais como o espaço e o tempo, que são próprias do nosso mundo em toda a
extensão que ele comporta, existe uma indefinidade de outros mundos igualmente
possíveis; um mundo, ou seja em suma um estado de existência, será definido
assim pelo conjunto de condições às quais está submetido; mas, pelo fato mesmo
de que ele será sempre condicionado, ou seja determinado e limitado, e que
portanto ele não conterá todas as possibilidades, ele jamais poderá ser visto
como infinito, mas apenas como indefinido (3).
No fundo, a concepção dos “mundos” no sentido em que
os entende Bernoulli, incomparavelmente maiores e menores uns em relação aos
outros, não é muito diferente daquela à qual Leibnitz recorre quando ele
considera “o firmamento em relação à terra, e a terra em relação ao grão de
areia”, e este em relação a “uma parcela de matéria magnética que passa através
do vidro”. Apenas, Leibnitz não pretende falar aqui de “gradus infinitatis” no sentido próprio; ele quer inclusive mostrar
ao contrário que “não é preciso tomar aqui o infinito a rigor”, e ele se
contenta em considerar os “incomparáveis”, aquilo contra quê não se lhe pode
objetar nada logicamente. O defeito de sua comparação é de ordem bem diferente,
e consiste, como já dissemos, em que ela dá uma idéia muito inexata, até mesmo
falsa, das quantidades infinitesimais tal como elas se introduzem no cálculo.
Teremos adiante a ocasião de substituir esta consideração pela dos verdadeiros
graus múltiplos de indefinitude, tomados tanto na ordem crescente quanto na
decrescente; mas não insistiremos mais sobre isto no momento.
Em suma, a diferença entre Bernoulli e Leibnitz, é
que, para o primeiro, trata-se verdadeiramente de “graus de infinitude”, embora
considerando-os como não mais do que uma conjectura provável, enquanto que o
segundo, duvidando de sua probabilidade e mesmo de sua possibilidade, limita-se
a substituí-los pelo que se pode chamar de “graus de incomparabilidade”. Fora
esta diferença, por sinal muito importante, a concepção de uma série de mundos semelhantes
entre si, mas em escalas diferentes, lhes é comum; esta concepção não deixa de
ter uma certa relação, ao menos ocasional, com as descobertas devidas ao
emprego do microscópio, na mesma época, e com certas visões que elas sugeriam
então, mas que não foram de modo algum justificadas por observações ulteriores,
como a teoria da “superposição dos germes”: não é verdade que, no germe, o ser
vivo esteja atual e corporalmente “pré-formado” em todas as suas partes, e a
organização de um célula não tem nenhuma semelhança com a do conjunto do corpo
do qual ela é um elemento. Quanto a Bernoulli pelo menos, parece não haver
dúvida que esteja aí, de fato, a oroigem de sua concepção; ele diz com efeito,
entre outras coisas significativas a respeito, que as partículas de um corpo
coexistem no todo “como, segundo Harvey e outros, mas não segundo Leuwenhoeck,
existem em um animal inúmeros óvulos, em cada óvulo um animálculo ou muitos, em
cada animálculo ainda incontáveis óvulos, e assim ao infinito” (4). Quanto a Leibnitz,
ele tem provavelmente um ponto de partida bem diverso: assim, a idéia de que
todos os astros que vemos poderiam não ser senão os elementos do corpo de um ser
incomparavelmente maior do que nós lembra a concepção do “Grande Homem” da
Kaballa, mas singularmente materializada e “espacializada”, por uma espécie de
ignorância do verdadeiro valor analógico do simbolismo tradicional; da mesma
forma, a idéia do “animal”, ou seja do ser vivo, que subsiste após a morte, mas
“reduzido ao mínimo tamanho”, é manifestamente inspirada na concepção da luz ou “semente de imortalidade” da
tradição judaica (5), concepção que Leibnitz deforma igualmente colocando-a em
relação com a dos mundos incomparavelmente menores do que o nosso, pois, diz
ele, “nada impede que os animais ao morrerem se transfiram para tais mundos; eu
penso de fato que a morte não passa de uma contração do animal, assim como a
geração não é outra coisa que sua evolução” (6), sendo este último termo tomado
aqui simplesmente no sentido etimológico de “desenvolvimento”. Tudo isso não
passa, no fundo, de um exemplo do perigo que existe em pretender fazer
concordar as noções tradicionais com as visões da ciência profana, o que sempre
acontece em detrimento das primeiras; sendo elas com certeza totalmente independentes
das teorias suscitadas pelas observações microscópicas, Leibnitz,
aproximando-as e mesclando-as, agiu então como viriam a fazer mais tarde os
ocultistas, que se entregam especialmente a este tipo de aproximações
injustificadas. Por outro lado, a superposição dos “incomparáveis” de ordens
diferentes parecia-lhe conforme à sua concepção do “melhor dos mundos”,
fornecendo-lhe um meio de colocar aí, segundo a definição que ele mesmo dá,
“tanto de ser e de realidade quanto possível”; e esta idéia do “melhor dos
mundos”, provém também de um outro dado tradicional mal aplicado, emprestado da
geometria simbólica dos Pitagóricos, como já explicamos (7): a circunferência
é, de todas as linhas de mesmo comprimento, a que abarca a superfície máxima,
assim como a esfera é, de todos os corpos de igual superfície, o que contém o
volume máximo, e esta é uma das razões pelas quais estas figuras eram vistas
como as mais perfeitas; mas, se existe a este respeito um máximo, não existe um
mínimo, ou seja figuras que encerrem uma superfície ou um volume menor do que
todas as outras, e é por isso que Leibnitz foi levado a pensar que, se existe
um “melhor dos mundos”, não existe o “pior dos mundos”, ou seja um mundo que
contenha menos ser do que qualquer outro mundo possível. Sabemos de resto que é
a esta concepção do “melhor dos mundos”, ao mesmo tempo que à dos
“incomparáveis”, que se ligam sua conhecidas comparações do “jardim cheio de
plantas” e do “tanque repleto de peixes”, onde “cada ramo da planta, cada
membro do animal, cada gota de seus humores é ainda um tal jardim ou um tal
tanque” (8); e isso nos conduz naturalmente a abordar uma outra questão conexa,
que é a da “divisão da matéria ao infinito”.
NOTAS
1. Carta a Jean Bernoulli, 18
de novembro de 1698.
2. Carta citada a Varignon, 2
de fevereiro de 1702.
3. Ver a respeito Os Estados Múltiplos do Ser.
4. Carta de 23 de julho de
1698.
5. Ver Le Roi du Monde, pgs. 87-89.
6. Carta citada a Jean
Bernoulli, 18 de novembro de 1698.
7. O Simbolismo da Cruz, pg. 58. – Sobre a distinção dos “possíveis” e dos
“compossíveis”, de que depende a concepção do “melhor dos mundos”, cf. Os Estados Múltiplos do Ser, cap. II.
8. Monadologie, 67; cf. ibid., 74.
VIII
“DIVISÃO AO
INFINITO” OU DIVISIBILIDADE INDEFINIDA
Para Leibnitz, a matéria não apenas é divisível, mas
“subdivisível atualmente sem fim” em todas as suas partes, “cada parte em
partes, de que cada uma possui algum movimento próprio” (1); e é sobretudo
nesta visão que ele apóia teoricamente a concepção que expusemos em último
lugar: “Segue-se da divisão atual que, em uma parte da matéria, por pequena que
seja, existe como que um mundo constituído de criaturas inumeráveis” (2).
Bernoulli admite igualmente esta divisão atual da matéria “in partes numero infinitas”, mas ele tira disto conclusões que
Leibnitz não aceita: “Se um corpo finito, diz ele, tem partes infinitas em
número, eu sempre acreditei e acredito mesmo que a menor destas partes deve ter
para com o todo uma relação inassinalável ou infinitamente pequena” (3); ao que
Leibnitz responde: “Mesmo se concordarmos que não há nenhuma porção da matéria
que não seja atualmente divisível, não chegaremos entretanto a elementos
indissecáveis, ou a partes menores do que todas ou infinitamente pequenas, mas
apenas a partes cada vez menores, que são no entanto quantidades ordinárias,
assim como, em aumentando, chegaremos a quantidades cada vez maiores” (4). É
portanto a existência das “minimae
portione” ou dos “últimos elementos”, que Leibnitz contesta; ao contrário,
para Bernoulli, parece claro que a divisãoa tual implica a existência
simultânea de todos os elementos, assim como, dada uma série “infinita”, todos
os termos que a constituem devem estar dados simultaneamente, o que implica a
existência do “terminus infinitesimus”.
Mas, para Leibnitz, a existência deste termo não é menos contraditória que a do
“número infinito”, e a noção do menor dos números, ou da “fractio omnium infima” não o é menos do que a do maior dos números;
o que ele considera como “infinitude” de uma série caracteriza-se pela
impossibilidade de chegar a um último termo, e da mesma forma a matéria não
seria divisível “ao infinito”, se esta divisão pudesse terminar e chegar aos
“últimos elementos”; e isto não é devido apenas ao fato de que não dispomos de meios
para chegar de fato a estes últimos elementos, como o concede Bernoulli, mas
porque eles não devem realmente existir na natureza. Não existem elementos
corporais indissecáveis, ou “átomos” no sentido próprio da palavra, tanto
quanto não há, na ordem numérica, fração indivisível que não possa dar
nascimento a frações sempre menores, ou, na ordem geométrica, elemento linear
que não possa ser dividido em elementos menores.
No fundo, o sentido no qual Leibnitz toma o termo
“infinito” em tudo isso é exatamente o mesmo que quando ele fala, como vimos,
de um “multitude infinita”: para ele, dizer de uma série numérica qualquer,
assim como da série dos números inteiros, que ela é infinita, corresponde a
dizer, não que ela deva chegar a um “terminus
infinitesimus” ou a um “número infinito”, mas ao contrário que ela não deve
possuir termo último, porque os termos que ela compreende são “plus quam numero designari possint”, ou
seja constituem uma multitude que ultrapassa todo número. Da mesma forma, se
podemos dizer que a matéria é divisível o infinito, é porque qualquer uma de
suas partes, por pequena que seja, abarca sempre uma tal multitude; em outros
termos, a matéria não tem “partes infimae”
ou elementos simples, ela é essencialmente um composto”: “É verdade que as
substâncias simples, ou seja as que não são seres por agregação, são
verdadeiramente indivisíveis, mas elas são imateriais, e não passam de
princípios de ação” (5). É neste sentido de uma multitude inumerável, que é
aliás o mais habitual em Leibnotz, que a idéia do suposto infinito pode
aplicar-se à matéria, à extensão geométrica, e em geral ao contínuo, visto sob
a perspectiva de sua composição; de resto, este sentido não é próprio
exclusivamente ao “infinitum continuum”,
e ele estende-se também ao “infinitum
discretum”, como vimos pelo exemplo da multitude de todos os números e pelo
das “séries infinitas”. É por isso que Leibnitz podia dizer que uma grandeza é
infinita naquilo que ela tem de “inesgotável”, o que faz “com que se possa
sempre tomar uma grandeza tão pequena quanto se queira”; e “permanece
verdadeiro que 2 é a mesma coisa que 1/1+1/2+1/4+1/8+1/16+1/32+...etc., o que é
uma série infinita, na qual todas as frações cujos numeradores são 1 e os
denominadores de progressão geométrica dupla estão compreendidos
simultaneamente, ainda que se empreguem sempre números ordinários, e que não se
introduza nenhuma fração infinitamente pequena, ou cujo denominador seja um
número infinito” (6). Ademais, isto permite compreender como Leibnitz, mesmo
afirmando que o infinito, no sentido em que ele o entende, não é um todo, pode
entretanto aplicar esta idéia ao contínuo: um conjunto contínuo, como um corpo
qualquer, constitui realmente um todo, e mesmo o que denominamos mais acima um
todo verdadeiro, logicamente anterior às suas partes e independente destas, mas
ele permanece sempre finito enquanto tal; não portanto é sob este aspecto do
todo que Leibnitz pode chamá-lo infinito, mas apenas sob o aspecto das partes
nas quais ele é ou pode ser dividido, e na medida em que a multitude destas
partes sobrepassa efetivamente todo número assinalável: é o que podemos
denominar uma concepção analítica do infinito, devido ao fato de que que, de
fato, é apenas analiticamente que a multitude em questão é inesgotável, como explicaremos
adiante.
Se agora nos perguntarmos sobre o valor da idéia da
“divisão ao infinito”, é preciso reconhecer que, assim como a da “multitude
infinita”, ela contém uma certa parte de verdade, ainda que o modo como ela
está expressa esteja longe de estar isenta de crítica: em primeiro lugar, é
claro que, segundo o que expusemos até aqui, não pode tratar-se de divisão ao
infinito, mas apenas de divisão indefinida; por outro lado, é preciso aplicar
esta idéia, não à matéria em geral, o que talvez não faça sentido, mas apenas
aos corpos, ou à matéria corporal se se quiser falar de “matéria”, apesar da
extrema obscuridade desta noção e dos múltiplos equívocos que ela origina (7).
Com efeito, é à extensão que pertence propriamente a divisibilidade, e não à matéria,
seja qual for a acepção em que a tomemos, e não podemos confundí-las sem adotar
a concepção cartesiana que faz consistir a natureza dos corpos única e
essencialmente na extensão, concepção que Leibnitz tampouco admitia; assim, se
todo corpo é divisível, é porque os corpos são extensos, e não porque eles são
materiais. Ora, lembremo-nos ainda, sendo a extensão algo determinado, ela não
pode ser infinita, e, a partir daí, ela não pode evidentemente implicar nenhuma
possibilidade que seja infinita, assim como ela própria não o é; mas, como a
divisibilidade é uma qualidade inerente à natureza da extensão, sua limitação
só pode advir desta mesma natureza: na medida em que exista uma extensão, ela
será sempre divisível, e assim podemos considerar a divisibilidade como
realmente indefinida, e esta indefinitude será aliás condicionada pela
indefinitude da extensão. Por conseguinte, a extensão, como tal, não pode ser
composta de elementos indivisíveis, pois estes elementos, para serem
verdadeiramente indivisíveis, teriam que ser inextensos, e uma soma de
elementos inextensos não pode jamais constituir uma extensão, assim como uma
soma de zeros não pode constituir um número; é por isso que, como explicamos
(8), os pontos não são elementos ou partes da linha, e os verdadeiros elementos
lineares são sempre as distâncias entre pontos, os quais são apenas suas
extremidades. De resto, é assim que o próprio Leibnitz encarava as coisas a
esse respeito, e aquilo que criava,
segundo ele, a diferença fundamental entre seu método infinitesimal e o “método
dos indivisíveis” de Cavalieri, era o fato dele não considerar uma linha como
composta de pontos, nem uma superfície como composta de linhas, nem um volume
como composto de superfícies: pontos, linhas e superfícies não são aqui senão
limites ou estremidades, nunca elementos constitutivos. É evidente de fato que
pontos, multiplicados por qualquer quantidade que seja, não podem jamais
produzir um comprimento, pois eles são rigorosamente nulos sob o aspecto do
comprimento; os verdadeiros elementos de uma grandeza devem ser sempre da mesma
natureza desta grandeza, ainda que incomparavelmente menores: é o que não
aconntece com os “indivisíveis”, e, por outro lado, é o que permite observar no
cálculo infinitesimal uma certa lei de homogeneidade que supõe que as
quantidades ordinárias e as quantidades infinitesimais das diversas ordens,
ainda que incomparáveis entre si, sejam entretanto grandezas de mesma espécie.
Podemos dizer ainda, deste ponto de vista, que a parte
deve sempre, qualquer que seja ela, conservar uma certa “homogeneidade” ou
conformidade de natureza com o todo, ao menos na medida em que considerarmos
este todo como passível de ser reconstituído por meio de suas partes através de um procedimento
comparável ao que serve para a formação de uma soma aritmética. Isto não quer
dizer que não haja nada de simples na realidade, pois o composto pode ser
formado, a partir de elementos, de modo bem diferente; mas então, a bem dizer,
estes elementos não são mais propriamente “partes”, e, como o reconhecia
Leibnitz, eles não podem ser de ordem corporal. O que é certo, com efeito, é
que não podemos chegar a elementos simples, vale dizer indivisíveis, sem sair
desta condição particular que é a extensão, de sorte que esta não pode ser
resumida a tais elementos sem deixar de existir enquanto extensão. Resulta daí
imediatamente que não podem existir elementos corporais indissecáveis, e que
esta noção implica contradição; de fato, tais elementos deveriam ser
inextensos, e então eles não seriam mais corporais, pois, por definição, quem
diz corporal diz forçosamente extensão, embora não seja esta toda a natureza
dos corpos; e assim, malgrado todas as reservas que fizemos sob outros
aspectos, Leibnitz teve toda razão contra o atomismo.
Mas, até aqui, nós só falamos de divisibilidade, ou seja,
da possibilidade de divisão; será preciso ir mais longe e admitir com Leibnitz
uma “divisão atual”? Esta idéia tampouco está isenta de contradição, pois ela
equivale a supor um indefinido inteiramente realizado, e, com isto, ela é
contrária à própria natureza do indefinido, que é de ser sempre, como dissemos,
uma possibilidade em vias de desenvolvimento, implicando assim essencialmente
qualquer coisa de inacabado, de ainda não totalmente realizado. Não existe
aliás verdadeiramente nenhuma razão para fazer tal suposição, pois, quando
estamos em presença de um conjunto contínuo, é o todo que nos é dado, mas as
partes em que ele pode ser dividido não nos são dadas, e apenas concebemos que
ser possível dividir este todo em partes que poderão ser tornadas cada vez
menores, de modo a se tornarem menores do que qualquer grandeza dada, desde que
a divisão seja levada longe o bastante; de fato, somos nós que realizamos as
partes na medida em que efetuamos a divisão. Assim, o que nos dispensa de supor
a “divisão atual”, é a divisão que estabelecemos precedentemente a respeito dos
diferentes modos como um todo pode ser visto: um conjunto contínuo não é o
resultado das partes em que ele pode ser dividido, mas é na verdade
independente delas, e, por conseguinte, o fato dele nos ser dado como todo não
implica absolutamente a existência atual destas partes.
Da mesma forma, de outro ponto de vista, e passando à
consideração do descontínuo, podemos dizer que, se uma série indefinida nos é
dada, isto não implica de modo algum que todos os termos que ela contém nos
sejam dados distintamente, o que é uma impossibiliade pelo fato mesmo dela ser
indefinida; na realidade, dar uma série tal, é simplesmente dar a lei que
permite calcular o termo que ocupa um lugar determinado na série (9). Se
Leibnitz houvesse dado esta resposta a Bernoulli, sua discussão sobre a
existência do “terminus infinitesimus”
teria cessado imediatamente; mas ele não poderia responder assim sem renunciar
logicamente à sua idéia da “divisão atual”, a menos de negar toda relação entre
o modo contínuo da quantidade e seu modo descontínuo.
Seja como for, ao menos no que tange ao contínuo, é
precisamente na “indistinção” das partes que podemos ver a raiz da idéia de
infinito tal como a compreedia Leibnitz, pois, como dissemos, esta idéia
comporta sempre para ele uma certa parte de confusão; mas esta “indistinção”,
longe de supor uma divisão realizada, tenderia ao contrário a excluí-la, mesmo
na falta das razões decisivas que indicamos. Portanto, se a teoria de Leibnitz
é justa na medida em que se opõe ao atomismo, é preciso, para que ela
corresponda à verdade, retificá-la substituindo a “divisão da matéria ao
infinito” pela “divisibilidade indefinida da extensão”; está aí, em sua
expressão mais sucinta e mais precisa, o resultado a que chegam definitivamente
todas as considerações que expusemos.
NOTAS
1. Monadologie, 65.
2. Carta a Jean Bernoulli,
12-22 de julho de 1698.
3. Carta citada de 23 de julho de
1698.
4. Carta de 29 de julho de
1698.
5. Carta a Varignon, 20 de
junho de 1702.
6. Carta citada a Varignon, 2
de fevereiro de 1702.
7. A este respeito, ver Le Règne d la Quantité et les Signes des
Temps.
8. O Simbolismo da Cruz, cap. XVI.
9. Cf. L. Couturat, De l’infini mathématique, pg. 467: “A
série natural dos números é dada inteiramente pela lei de sua formação, assim
como, aliás, todas as demais seqüências e séries infinitas, que uma fórmula de
recorrência basta, em geral, para definir inteiramente, de tal modo que seu
limite ou sua soma (quando existe) acha-se por isso completamente
determinada... É graças à lei de formação da série natural que temos a idéia de
todos os números inteiros, e neste sentido eles estão todos dados por esta
lei”. – Podemos dizer de fato que a fórmula geral que exprime o enésimo termo
de uma série contém potencial e implicitamente, mas não atual e distintamente,
todos os termos desta série, pois podemos chegar a qualquer um dentre eles
dando a n o valor correpoondente ao
lugar que este termo deve ocupar na série; mas, contrariamente ao que pensava
Couturat, não era isso que Leibnitz queria dizer, quando ele sustentava a
“infinitude atual da série natural dos números”.
IX
INDEFINIDAMENTE
CRESCENTE E INDEFINIDAMENTE DECRESCENTE
Antes de continuarmos o exame das questões que se
relacionam com o contínuo, devemos voltar sobre o que dissemos mais acima a
respeito da inexistência de uma “fractio
omnis infima”, o que nos permitirá ver como a correlação ou a simetria que
existe sob certos aspectos entre as quantidades indefinidamente crescentes e as
quantidades indefinidamente decrescentes é susceptível de ser representada
numericamente. Vimos que, no domínio da quantidade descontínua, na medida em
que só considerarmos a série dos números inteiros, estes devem ser vistos como
crescendo indefinidamente a partir da unidade, sendo que, como esta é
essencialmente indivisível, não pode evidentemente existir um decréscimo
indefinido; se tomamos os números no sentido decrescente, achamo-nos necessariamente
detidos na unidade, de sorte que a representação do indefinido por números
inteiros fica limitado a um só sentido, que é o do indefinidamente crescente.
Ao contrário, quando se trata da quantidade contínua, podemos considerar tanto
as quantidades indefinidamente decrescentes quanto as indefinidamente
crescentes; e a mesma coisa aconntece com a quantidade descontínua, desde que,
para tarduzirmos esta possibilidade, introduzamos a consideração dos números
fracionários. Com efeito, podemos considerar uma série de frações decrescendo
indefinidamente, na medida em que, por pequena que seja uma fração, sempre se
pode formar uma menor, e este decrescer não pode jamais chegar a uma “fractio minima”, assim como o
crescimento dos números inteiros não pode chegar a um “numerus maximus”.
Para tornarmos evidente, pela representação
numérica, a correlação entre o indefinidamente crescente e o indefinidamente
decrescente, basta considerar, ao mesmo que a série dos números inteiros, a
série dos seus inversos: um número é chamado de inverso de um outro quando seu
produto é igual à unidade, e, por esta razão, o inverso do número n é representado pela notação 1/n. Enquanto que a série dos números
inteiros cresce indefinidamente a partir da unidade, a série de seus inversos
vai decrescendo indefinidamente a partir desta mesma unidade, que é ela mesma
seu próprio inverso, e assim é o ponto de partida das duas séries; a cada
número de uma das séries corresponde um número da outra e inversamente, de
maneira que estas duas séries são igualmente indefinidas, e o são exatamente do
mesmo modo, embora em sentido contrário. O inverso de um número é evidentemente
tão pequeno quanto grande for o número, pois seu produto deve permanecer
constante; por grande que seja o número N,
o número N+1 será ainda maior, em
virtude da própria lei de formação da série indefinida dos números inteiros, e
da mesma forma, por menor que seja um número 1/N, o número 1/(N+1)
será ainda menor; é o que prova claramente a impossibilidade do “menor dos
números”, cuja noção não é menos contraditória do que a do “maior dos números”,
pois, se não é possível deter-se em um número determinado no sentido crescente,
tampouco o será no sentido decrescente. De resto, como esta correlação que se
observa no descontínuo numérico apresenta-se antes de tudo como uma
conseqüência da aplicação deste descontínuo ao contínuo, como dissemos a
respeito dos números fracionários cuja introdução ela pressupõe, ela não pode
senão traduzir à sua maneira, condicionada necessariamente pela natureza do
número, a correlação que existe dentro do próprio contínuo entre o
indefinidamente crescente e o indefinidamente decrescente. Cabe assim, desde
que consideramos as quantidades contínuas como susceptíveis de se tornarem tão
grandes ou tão pequenas quanto se queira, vale dizer maiores ou menores do que
qualquer quantidade determinada, observar sempre a simetria, e, poderíamos
dizer, o paralelismo que oferecem entre si as duas variações inversas; esta
observação nos ajudará a compreender melhor, a seguir, a possibilidade de
diferentes ordens de quantidades infinitesimais.
Convém lembrar que, embora o símbolo 1/n evoque a idéia de números
fracionários, e é daí realmente que ele se origina, não é necessário que os
inversos dos números inteiros sejam aqui definidos como tais, e isto para
evitar o inconveniente apresentado pela noção corriqueira de número fracionário
do ponto de vista aritmético, ou seja a concepção de frações como “partes da
unidade”. Basta considerar as duas séries como sendo constituídas por números
respectivamente maiores e menores do que a unidade, vale dizer como duas ordens
de grandeza que tem nela seu limite comum, ao mesmo tempo em que se pode vê-las
ambas como igualmente saídas desta unidade, que é verdadeiramente a origem primeira
de todos os números; ademais, se quisermos considerar estes dois conjuntos
indefinidos como formando uma série única, podemos dizer que a unidade ocupa
exatamente o meio desta série de números, pois, como vimos, existem tantos
números num conjunto como no outro. Por outro lado, se quisermos, para
generalizar mais, introduzir os números fracionários propriamente ditos, em
lugar de considerarmos apenas a série dos números inteiros e a de seus
inversos, nada mudaria quanto à simetria das quantidades crescentes e
decrescentes: teríamos de um lado todos os números maiores do que a unidade, e
de outro os menores do que a unidade; aqui ainda, a todo número a/b>1, corresponderá no outro grupo
um número b/a<1, e reciprocamente,
de tal modo que a/b x b/a=1, assim
como tínhamos que n x 1/n=1, e deste
modo teremos sempre exatamente tantos números em um como em outro dos dois
grupos separados pela unidade; é claro que, quando dizemos “tantos números”,
isto significa que existem duas multitudes correspndendo-se termo a termo, mas
sem que estas multitudes possam por isso ser consideradas como “numeráveis”. Em
todos os casos, o conjunto formado por dois números inversos multiplicando-se
um pelo outro, reproduz sempre a unidade de que eles saíram; podemos ainda
dizer que a unidade, que ocupa o meio dos dois grupos e é o único número que
pode ser visto como pertencente tanto a um como a outro grupo (1) – embora se
possa dizer melhor que ela os une, mais do que os separa –, corresponde ao
estado de equilíbrio perfeito, e que ela contém em si todos os números, que
saem dela por pares de números inversos ou complementares, sendo que cada um
destes pares constitui, devido a este complementarismo, uma unidade relativa em
sua indivisível dualidade (2); mas voltaremos adiante sobre esta última
consideração e sobre as conseqüências que ela implica.
Ao invés de dizer que a série dos números inteiros é
indefinidamente crescente e a de seus inversos indefinidamente decrescente,
podemos dizer também, no mesmo sentido, que os números tendem assim de um lado
para o indefinidamente grande e de outro para o indefinidamente pequeno, com a
condição de entender por isto os próprios limites do domínio dentro do qual
consideramos esses números, pois uma quantidade variável só pode tender para um
limite. O domínio de que se trata é, em suma, o da quantidade numérica vista em
toda a extensão de que é susceptível (3); isto eqüivale ainda a dizer que os
limites não são determinados por tal ou tal número particular, por grande ou
pequeno que o suponhamos, mas pela própria natureza do número enquanto tal. É
pelo fato mesmo de que o número, como qualquer outra coisa de natureza
determinada, exclui tudo o que não é ele, que não se pode falar aí de infinito;
de resto, dissemos que o indefinidamente grande deve forçosamente entendido
como um limite, embora ele não seja nunca um “terminus ultimus” da série dos números, e podemos observar a
propósito que a expressão “tender ao infinito”, empregada com freqüência pelos
matemáticos no sentido de “crescer indefinidamente”, é ainda um absurdo, pois o
infinito implica a ausência de quaisquer limites, e por conseguinte não há nada
lá para onde seja possível tender. O que é singular também, é que alguns, mesmo
reconhecendo a incorreção e o caráter abusivo desta expressão “tender ao
infinito”, não tem nenhum escrúpulo em usar a expressão “tender a zero” no
sentido de “decrescer indefinidamente”; entretanto, o zero, ou a “quantidade
nula”, é exatamente simétrico, em relação às quantidades decrescentes, daquilo
que é a pretensa “quantidade infinita” em relação às quantidades crescentes;
mas voltaremos adiante sobre as questões que se colocam mais especificamente a
respeito do zero e de seus diferentes significados.
Uma vez que a série dos números, em seu conjunto,
não é “terminada” por nenhum número
dado, resulta que não há número, por maior que seja, que possa ser identificado
ao indefinidamente grande no sentido como o entendemos; e, naturalmente, a
mesma coisa vale no que diz respeito ao indeinidamente pequeno. Podemos quando
muito considerar um número como praticamente indefinido, se podemos nos
exprimir assim, quando ele não pode mais ser expresso pela linguagem nem
representado pela escrita, o que, de fato, acontece inevitavelmente em algum
momento quando tomamos números que vão sempre crescendo ou decrescendo; existe
aí, se se quiser, uma simples questão de “perspectiva”, mas isto está de acordo
com o caráter do indefinido, na medida em que este não é outra coisa, em
dfinitivo, do que aquilo cujos limites podem ser, não suprimidos, o que seria
contra a natureza das coisas, mas recuados até se perderem inteiramente de
vista. A este propósito, caberiam algumas questões curiosas: assim, podemos nos
perguntar porque a língua chinesa representa simbolicamente o indefinido pelo
número dez mil; a expressão ‘os dez mil seres”, por exemplo, significa todos os
seres, que são realmente em multitude indefinida ou “inumerável”. O que digno
de nota, é que a mesma coisa acontece em grego, onde uma mesma palavra, com uma
diferença de acentuação que não passa de um detalhe acessório (devida sem
dúvida à necessidade de distinguir o uso das duas expressões), serve igualmente
para exprimir uma e outra das duas idéias: murioi (múrioi), dez mil; murioi (muríoi), uma
indefinidade. A verdadeira razão disto é a seguinte: o número dez mil é a
quarta potência de dez; ora, segundo a fórmula do Tao Te King, “o um produziu o dois, o dois produziu o três, o três
produziu todos os números”, o que implica que o quatro, produzido imediatamente
pelo três, eqüivale de certo modo a todo o conjunto dos números, e isto ainda
porque, quando se produz o quaternário, produz-se também, pela adição dos
quatro primeiros números, o denário, que representa um ciclo numérico completo:
1+2+3+4=10, que é, como já vimos, a
fórmula numérica da Tetraktys
pitagórica. Podemos ainda acrescentar que esta representação da indefinidade
numérica tem seu correspondente na ordem espacial: sabemos que a elevação a uma
potência superior de um grau representa, nesta ordem, a adjunção de uma
dimensão; ora, como nossa extensão não possui senão três dimensões, seus
limites são ultrapassados quando se vai além da terceira potência, o que, em
outros termos, eqüivale a dizer que a elevação à quarta potência marca o
próprio termo de sua indefinidade, pois, uma vez que ela se efetue, teremos por
isso mesmo saído desta extensão e passado a uma outra ordem de possibilidades.
NOTAS
1. Segundo a definição dos
números inversos, a unidade se apresenta de um lado sob a forma 1, e de outro sob a forma 1/1, de tal maneira que o produto 1 x 1/1= 1; mas, como 1/1=1, é a mesma unidade que é assim
representada sob duas formas diferentes, e consequentemente, como dissemos, ela
é assim seu próprio inverso.
2. Dizemos indivisível porque,
a partir do instante em que um dos números que formam o par existe, o outro
existe necessariamente também por isso mesmo.
3. Não é preciso dizer que os
números incomensuráveis, sob o aspecto da grandeza, intercalam-se
necessariamente entre os números comuns, inteiros ou fracionários, conforme
sejam maiores ou menores do que a unidade; é o que aliás mostra a
correspondência geométrica que indicamos precedentemente, e também a
possibilidade de definir um tal número por dois conjuntos convergentes de
números comensuráveis dos quais ele é o limite comum.
X
INFINITO E
CONTÍNUO
A idéia de infinito tal como a entende Leibnitz, e
que no mais das vezes é, simplesmente, a de uma multitude que ultrapassa
qualquer número, apresenta-se às vezes sob o aspecto de um “infinto
descontínuo”, como no caso da série numéricas chamadas de infinitas; mas seu
aspecto mais usual, e também o mais importante no que concerne ao significado
do cálculo infinitesimal, é o de um “infinito contínuo”. Convém lembrar a
propósito que, quando Leibnitz iniciou as pesquisas que o levariam, segundo
suas palavras, à descoberta de seu método, ele operava sobre séries de números.
E não tinha que considerar senão diferenças finitas no sentido comum do termo;
as diferenças infinitesimais só se apresentaram a ele quando se tratou de
aplicar o descontínuo numérico ao contínuo espacial. A introdução dos
diferenciais justificava-se então pela observação de uma certa analogia entre
as variações respectivas destes dois modos da quantidade; mas seu caráter infinitesimal
provinha da continuidade das grandezas às quais eles deveriam aplicar-se, e
assim a consideração dos “infinitamente pequenos” achava-se, para Leibnitz,
estreitamente ligada à questão da “composição do contínuo”.
Os “infinitamente pequenos”, tomados “com rigor”
seriam, como pensava Bernoulli, “partes
minimae” do contínuo; mas precisamente o contínuo, na medida em que existe
como tal, é sempre divisível, e, por conseguinte, ele não poderia ter “partes minimae”. Os “indivisíveis” não
são sequer partes daquilo em relação a que eles são indivisíveis, e o “minimum” só pode aqui ser concebido como
limite ou extremidade, não como elemento: “A linha não é apenas menor do que
qualquer superfície, diz Leibnitz, mas ela não é sequer uma parte da superfície,
mas apenas um mínimo ou uma extremidade” (1); e a assimilação entre extremum e minimum pode aqui justificar-se, de seu ponto de vista, pela “lei
da continuidade”, na medida em que esta permite, segundo ele, a “passagem ao
limite”, como veremos adiante. O mesmo ocorre, como vimos, para o ponto em
relação à linha, e, de outro lado, para a superfície em relação ao volume; mas,
ao contrário, os elementos infinitesimais devem ser partes do contínuo, sem o
que eles não seriam sequer quantidades; e eles só podem se-lo com a condição de
não serem “infinitamente pequenos” verdadeiramente, pois estes não seriam outra
coisa do que essas “partes minimae” ou esses “últimos elementos”, cuja
existência, em relação ao contínuo, implica contradição. Assim, a composição do
contínuo não permite que os infinitamente pequenos sejam mais do que simples
ficções; mas, por outro lado, é a própria existência deste contínuo que faz com
que sejam, pelo menos para Leibnitz, “ficções bem fundamemntadas”; se “tudo se
passa na geometria como se fosem perfeitas realidades”, é porque a extensão,
que é o objeto da geometria, é contínua; e, se o mesmo ocorre na natureza, é
porque os corpos são igualmente contínuos, e porque existe assim continuidade
em todos os fenômenos tais como o movimento, que tem nestes corpos sua base,
sendo eles o objeto da mecânica e da física. De resto, se os corpos são
contínuos, é porque eles são extensos, e participam assim da natureza da
extensão; e, da mesma foroma, a continuidade do movimento e dos diversos fenômenos
que podem ligar-se a ele mais ou menos diretamente provém essencialmente de seu
caráter espacial. É portanto, em suma, a continuidade da extensão que é o
verdadeiro fundamento de todas as outras continuidades que se observam na
natureza corporal; e é aliás por isso que, introduzindo a respeito uma
distinção essencial que Leibnitz não fez, nós frisamos que não é à matéria, mas
à extensão, que deve realmente ser atribuída a propriedade da “divisibilidade
indefinida”.
Não vamos examinar aqui a questão das outras formas
possíveis da continuidade, independentes de sua forma espacial; com efeito, é
sempre a esta que se deve voltar quando se consideram grandezas, e assim sua
consideração basta para tudo o que se refere às quantidades infinitesimais.
Devemos entretanto acrescentar a continuidade do tempo, pois, contrariamente à
estranha opinião de Descartes a respeito, o tempo é realmente contínuo em si
mesmo, e não apenas na representação espacial pelo movimento que serve à sua
mensuração (2). A este respeito, podemos dizer que o movimento é duplamente
contínuo, pois ele o é pela sua condição espacial e pela sua condição temporal;
e esta espécie de combinação do tempo e do espaço, de que resulta o movimento,
não seria possível se um fosse descontínuo e o outro contínuo. Esta consideração
permite ademais introduzir a continuidade em certas categorias de fenômenos
naturais que se referem mais diretamente ao tempo e ao espaço, embora
cumprindo-se em ambos igualmente, como, por exemplo, o processo de um
desenvolvimento orgânico qualquer. Pode-se aliás, pela composição do contínuo
temporal, repetir tudo o que dissemos do contínuo espacial, e, em virtude desta
espécie de simetria que existe sob certos aspectos entre o espaço e o tempo,
chegar a conclusões estritamente análogas: os instantes, concebidos como
indivisíveis, não são mais partes da duração do que os pontos são partes da
extensão, como o próprio Leibnitz reconhecia, e esta era aliás uma tese
corrente entre os escolásticos; em suma, é uma característica geral de todo
contínuo, que sua natureza não comporta a existência de “últimos elementos”.
Tudo o que dissemos até aqui mostra suficientemente
em que sentido podemos compreender que, do ponto de vista em que se coloca
Leibnitz, o contínuo abarca necessariamente o infinito; mas, bem entendido, não
podemos admitir que se trata aí de uma “infinidade atual”, como se todas as
partes possíveis devessem ter sido dadas efetivamente quando o todo foi dado,
nem mesmo de uma verdadeira infinidade, que é excluída por toda e qualquer
determinação, e que por conseguinte não pode estar implicada na consideração de
nenhuma coisa particular. Assim, aqui como em todos os casos em que se
apresenta a idéia de um pretenso infinito, diferente do verdadeiro Infinito
metafísico, e que portanto, em si mesmos, não passam de absurdos puros e
simples, toda contradição desaparece, e com ela toda dificuldade lógica, se
substituímos o suposto infinito pelo indefinido, e se dissermos simplesmente
que todo contínuo encerra uma certa indefinidade quando visto sob o aspecto de
seus elementos. É ainda por falta de fazer esta distinção fundamental entre o
Infinito e o indefinido que alguns acharam que não seria possível escapar à
contradição de um infinito determinado a não ser rejeitando absolutamente o
contínuo e substituindo-o pelo descontínuo; é assim notadamente que Renouvier,
que nega com razão o infinito matemático, mas a quem a idéia de Infinito
metafísico é totalmente estranha, achou-se obrigado, pela lógica de seu
“finitismo”, a admitir o atomismo, caindo assim em outra concepção tão
contraditória quanto a que ele quis descartar.
NOTAS
1. Meditatio nova de natura anguli contactus et osculi, horumque usu in
practica Mathesi ad figuras faciliores succedaneas difficilioribus
substituendas,
nas Acta Eruditorum de Leipzig, 1686.
2. Cf. Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps, cap. V.
XI
A “LEI DA
CONTINUIDADE”
Uma vez que o contínuo existe, podemos dizer com
Leibnitz que existe continuidade na natureza, ou, se se preferir, que deve
haver uma certa “lei de continuidade” que se aplica a tudo o que apresenta as
características do contínuo; isto é bastante evidente, mas não resulta daí
absolutamente que uma tal lei deva ser aplicável a tudo como ele o quer, pois,
se o contínuo existe, também existe o descontínuo, e isto mesmo dentro do
domínio da quantidade (1): o número, com efeito, é essencialmente descontínuo,
e é mesmo esta quantidade descontínua, e não a quantidade contínua, que é
realmente, como já dissemos, o modo primeiro e fundamental da quantidade, ou
daquilo que podemos chamar propriamente a quantidade pura (2). Por outro lado,
nada permite supor a priori que, fora
da quantidade, uma continuidade qualquer posa ser considerada em toda parte, e
mesmo, a bem dizer, seria espantoso que apenas o número, dentre todas as coisas
possíveis, tivesse a propriedade de ser essencialmente descontínuo; mas nossa
intenção não é a de buscar aqui em quais limites uma “lei de continuidade” pode
ser aplicada, e quais as restrições a colocar para aquilo que ultrapassa o
domínio da quantidade entendida em seu sentido mais geral. Vamos nos limitar a
fornecer, no que concerne aos fenômenos naturais, um exemplo bastante simples
de descontinuidade: se é preciso uma dada força para romper uma corda, e se
aplicarmos a esta corda uma força de intensidade menor do que aquela, não
obteremos por isso uma ruptura parcial, ou seja a ruptura de uma parte dos fios
que compõem a corda, mas apenas uma tensão, o que é bem diferente; se
aumentarmos a força de modo contínuo, a tensão crescerá inicialmente também de
modo contínuo, mas chegará um momento em que a ruptura irá produzir-se, e
teremos então, de modo súbito e de certo modo instantâneo, um efeito de
natureza totalmente diversa do precedente, o que implica manifestamente uma
descontinuidade; e assim não é certo dizer, em termos gerais e sem nenhuma
restrição, que “natura non facit saltus”.
Seja como for, basta em todo caso que as grandezas
geométricas sejam contínuas, como o são de fato, para que se possa sempre tomar
elementos tão pequenos quanto se queira, e que podem tornar-se menores do que
qualquer grandeza assinalável; e como dizia Leibnitz, “é sem dúvida nisto que
consiste a demonstração rigorosa do cálculo infinitesimal”, que se aplica precisamente
a essas grandezas geométricas. A “lei da continuidade” pode assim ser o “fundamentum in re” dessas ficções que
são as quantidades infinitesimais, assim como destas outras ficções que são as
raízes imaginárias, pois Leibnitz faz uma aproximação entre as duas coisas sob
este aspecto, sem que se deva por isso ver aí, como talvez ele pretendesse, “a pedra de toque de
toda a verdade” (3). Por outro lado, se admitimos uma “lei de continuidade”,
mesma fazendo algumas restrições sobre seu alcance, e mesmo se reconhecemos que
esta lei pode servir para justificar as bases do cálculo infinitesimal, “modo sano sensu intelligantur”, não se
segue daí que devemos concebe-la exatamente como o fazia Leibnitz, nem aceitar
todas as conseqüências que ele pretendia tirar dela; é esta concepção e suas
conseqüências que precisamos agora examinar mais de perto.
Sob sua forma mais geral, esta lei equivale em suma
a isto que Leibnitz enuncnia em muitas ocasiões em diferentes termos, mas cujo
sentido é no fundo sempre o mesmo: uma vez que existe uma certa ordem nos
princípios, aqui entendidos num sentido relativo como os dados que se toma como
ponto de partida, deve haver também uma ordem correspondente nas conseqüências
que se obtém. Trata-se assim, como já indicamos, de um caso particular da “lei
de justiça”, vale dizer da ordem, que é postulada pela “inteligibilidade
universal”; trata-se portanto no fundo, para Leibnitz, de uma conseqüência ou
uma aplicação do “princípio da razão suficiente”, ou mesmo deste próprio
princípio na medida em que ele é aplicado mais particularmente às combinações e
às variações da quantidade: “a continuidade é uma coisa ideal”, diz ele, o que
aliás está longe de ser claro como se poderia supor, mas “o real não deixa de
ser governado pelo ideal e o abstrato (...) porque tudo é governado pela razão”
(4). É claro que existe uma certa ordem nas coisas, e não é isto que está em
questão, mas podemos conceber esta ordem de modo completamente diferente do que
o fazia Leibnitz, cujas idéias a respeito eram sempre mais ou menos
influenciadas por seu pretenso “princípio do melhor”, que perde todo seu
significado quando se compreende a identidade metafísica entre o possível e o
real (5); ademais, embora ele tenha sido sempre um adversário declarado do
estreito racionalismo cartesiano, podemos, no que tange à sua concepção da
“inteligibilidade universal”, censurá-lo por haver confundido “inteligível” com
“racional”; mas não insistiremos nisto agora, porque nos afastaríamos demasiado
de nosso tema central. Apenas acrescentaremos, a propósito, que é espantoso
que, após haver afirmado que “não há necessidade de fazer depender a análise
matemática das controvérsias metafísicas”, o que de resto é bastante
contestável (porque equivaleria a torná-la, segundo o ponto de vista
estritamente profano, uma ciência inteiramente ignorante de seus princípios,
além de que somente a incompreensão pode criar controvérsias no domínio
metafísico), Leibnitz chega finalmente a invocar, em apoio à sua “lei de
causalidade” à qual ele liga esta mesma análise matemática, um argumento não
mais metafísico, mas teológico, que poderia prestar-se ainda a outras
controvérsias: “É devido ao fato de que tudo se governa pela razão, diz ele,
sem o que não há ciência nem regra, o que não seria conforme com a natureza do
princípio soberano” (6), ao que poderíamos responder que a razão não passa na
verdade de uma faculdade puramente humana e de ordem individual, e que, mesmo
sem precisar remontar até o “princípio soberano”, a inteligência, entendida em
seu sentido universal (ou seja o intelecto puro e transcendente), é coisa bem
diversa da razão e não poderia ser assimilada a ela de modo algum, de tal modo
que, se é verdade que não existe nada “irracional”, também é verdade que
existem muitas coisas que são “supra-racionais”, mas que nem por isso tornam-se
menos “inteligíveis”.
Passaremos agora a um outro enunciado mais preciso
da “lei da continuidade”, enunciado que aliás refere-se mais diretamente do que
o antecedente aos princípios do cálculo infinitesimal: “Se um caso aproxima-se
de modo contínuo de um outro caso em seus dados e acaba por perder-se nele, é
preciso necessariamente que os resultados destes casos se aproximem igualmente
de modo contínuo nas soluções buscadas e que finalmente eles terminem reciprocamente
um dentro do outro” (7). Existem duas coisas que é preciso distinguir aqui:
primeiro, se a diferença ente os dois casos diminui até tornar-se menor do que
qualquer grandeza assinalável “in datis”,
o mesmo deve acontecer “in quaesitis”;
não se trata aí, em suma, senão da
aplicação do enunciado mais geral, e não é esta parte da lei que levanta
controvérsias, uma vez que admitamos que existem variações contínuas e que é
precisamente ao domínio aonde se efetuam estas variações, ou seja o domínio geométrico,
que se refere diretamente o cálculo infinitesimal; mas é preciso admitir além
disto que “casus in casum tandem
evanescat”, e que portanto “eventus
casuum tandem in se invicem desinant”? Em outros termos, a diferença entre
os dois casos jamais se tornará rigorosamente nula em decorrência de seu
decréscimo contínuo e indefinido, ou, se se preferir, este decréscimo, ainda
que indefinido, chegará a atingir seu termo? Trata-se, no fundo, da questão de
saber se o limite pode ser atingido numa variação contínua; e, a respeito,
observaremos ainda o o seguinte: como o indefinido, tal como implicado no
contínuo, comporta sempre em certo sentido algo de “inesgotável”, e como
Leibnitz não admite tampouco que a divisão do contínuo possa chegar a um termo
final, nem mesmo que este termo exista verdadeiramente, será perfeitamente
lógico e coerente de sua parte admitir que ao mesmo tempo que uma variação
contínua, efetuando-se “per infinitos
gradus intermedios” (8), possa atingir seu limite? Isto não quer dizer, certamente,
que o limite possa ser atingido seja como for, o que reduziria o cálculo
infinitesimal a um simples método de aproximação; mas, se ele pudesse ser
efetivamente atingido, não seria dentro da própria variação contínua, nem como
último termo da série indefinida dos “gradus
mutationis”. E no entanto é pela “lei da continuidade” que Leibnitz
pretende justificar a “passagem ao
limite”, que não é a menor das dificuldades a que seu método dá lugar do ponto
de vista lógico, e é precisamente então que suas conclusões tornam-se
inaceitáveis; mas, para que este lado da questão possa ser inteiramente
compreendido, é preciso começarmos por definir a própria noção matemática de
limite.
NOTAS
1. Cf. L. Couturat, De l’infini mathématique, pg. 140: “Em
geral, o princípio da continuidade não tem lugar na álgebra, e não pode ser
invocada para justificar a generalização algébrica do número. Não apenas a
continuidade não é necessária às especulações da aritmética geral, mas ela é
estranha ao espírito desta ciência e à natureza mesma do número. O número, com
efeito, é essencialmente descontínuo, assim como quase todas as suas
propriedades aritméticas (...) Não podemos assim impor o contínuo às funções
algébricas, por complicadas que sejam, pois o número inteiro, que lhe fornece
todos os seus elementos, é descontínuo, e “salta” de certo modo de um valor a
outro sem transição possível”.
2. Ver Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps, cap. II.
3.
L. Couturat, De l’infini mathématique.
4. Carta citada a Varignon, 2
de fevereiro de 1702.
5. Ver Os estados múltiplos do ser, cap. II.
6.
Carta a Varignon, 2 de fevereiro de 1702. – A primeira exposição da
“lei da continuidade” apareceu em Nouvelles
de République des Lettres, em julho de 1687, sob este título bastante
significativo: Principium quoddam
generale non in Mathematicis tantam sed Physicis utile, cujus ope ex
consideratioine Sapientiae Divinae examinantur Naturae Leges, qua occasione
nata cum R. P. Mellebranchio controversia explicatur, et quidam Cartesianorum
errores notantur.
7. Specimen Dynamicum pro admitandis Naturae Legibus circa corporum vires
et mutuas actiones detegendis et ad suas causas revocandis, parte II.
8. Carta a Schulemburg, 29 de
março de 1698.
XII
A NOÇÃO DE
LIMITE
A noção de limite é uma das mais importantes que
temos a examinar, porque dela depende todo o valor do método infinitesimal
quanto ao seu rigor; chegou-se até a dizer que, em definitivo, “todo algoritmo
infinitesimal repousa apenas sobre a noção de limite, pois é precisamente esta
noção rigorosa que serve para definir e para justificar todos os símbolos e
todas as fórmulas do cálculo infinitesimal” (1).De fato, o objeto deste cálculo
“reduz-se a calcular os limites de relações e os limites de somas, ou seja a
encontrar valores fixos para os quais convergem relações ou somas de
quantidades variáveis, na medida em que estas decrescem indefinidamente segundo
uma dada lei” (2). Para maior clareza ainda, diremos que, dos dois ramos nos
quais se divide o cálculo infinitesimal, o cálculo diferencial consiste em calcular
limites de somas de elementos cuja multitude cresce indefinidamente ao mesmo
tempo em que o valor de cada um deles decresce indefinidamente, pois é preciso
que estas duas condições estejam reunidas para que a própria soma permaneça
sempre uma quantidade finita e determinada
Isto posto, podemos dizer, de modo geral, que o limite de uma quantidade
variável é uma outra quantidade considerada como fixa, e da qual supõe-se que a
quantidade variável se aproxima, pelos os valores que esta toma no decurso de
sua variação, até diferir dela tão pouco quanto se queira, ou, em outros
termos, até que a diferença entre as duas quantidades se torne menor do que
qualquer quantidade assinalável. O ponto sobre o qual devemos insistir mais
particularmente, por razões que serão melhor compreendidas adiante, é que o
limite é concebido essencialmente como uma quantidade fixa e determinada; mesmo
quando ele não é dado pelas condições do problema, devemos começar por
atribuir-lhe um valor determinado, e continuar considerando-o como fixo até o
final do cálculo.
Mas uma coisa é a concepção de limite em si mesma, e
outra a justificativa lógica da “passagem ao limite”; Leibnitz estimava que “o
que justifica em geral a passagem ao limite, é que a mesma relação que existe
entre muitas grandezas variáveis subsiste entre seus limites fixos, quando suas
variações são contínuas, pois então elas atingem de fato seus respectivos
limites; este é um outro enunciado da lei da continuidade” (3). Mas toda a
questão é precisamente saber se a quantidade variável, que se aproxima
indefinidamente de seu limite fixo, e que, por conseguinte, pode diferir dele
tão pouco quanto o queiramos (segundo a própria definição de limite), pode
efetivamente atingir este limite em conseqüência de sua própria variação, ou
seja se o limite pode ser concebido como o último termo de uma variação
contínua. Veremos que, na realidade, esta solução é inaceitável; para o
momento, diremos apenas que a verdadeira noção de continuidade não permite
jamais considerar as quantidades infinitesimais como podendo igualar-se a zero,
pois elas cessariam então de ser quantidades; ora, para o próprio Leibnitz,
elas devriam sempre mater o caráter de verdadeiras quantidades, e isto mesmo
quando consideradas como “evanescentes”. Uma diferença infinitesimal jamais
pode tornar-se rigorosamente nula; por conseguinte, uma variável, enquanto for
vista como tal, diferirá sempre realmente de seu limite, e não poderá atingi-lo
sem perder por isso mesmo seu caráter de variável.
Sobre esse ponto, podemos aceitar inteiramente,
salvo uma pequena reserva, as considerações que um matemático que já citamos
expõe nestes termos: “O que caracteriza o limite tal como definimos, é ao mesmo
tempo que a variável possa aproximar-se dele tanto quanto se queira, e que não
obstante ela jamais possa atingi-lo rigorosamente; pois, para que ela o
atingisse de fato, seria preciso a realização de uma certa infinidade, que nos
é necessariamente interdita (...) Devemos nos ater à idéia de uma aproximação
indefinida, ou seja cada vez maior” (4). Ao invés de falar da “realização de
uma certa infinidade”, o que para nós não teria nenhum sentido, diremos
simplesmente que seria preciso que uma certa indefinidade fosse esgotada
precisamente naquilo que ela tem de inesgotável, mas que, ao mesmo tempo, as
possibilidades de desenvolvimento que esta mesma indefinidade comporta
permitissem obter uma aproximação tão grande quanto de queira, “ut error fiat minor dato”, segundo a
expressão de Leibnitz, para quem “o método é seguro” desde que este resultado
seja atingido. “O que caracteriza o limite e o que faz com que a variável
jamais o atinja exatamente, é ter uma definição diferente daquela da variável;
e a variável, por sua vez, mesmo aproximando-se mais e mais do limite, não o atinje,
porque ela nunca pode deixar de satisfazer sua primitiva definição, a qual,
como dissemos, é diferente. A distinção necessária entre as duas definições, do
limite e da variável, acha-se sempre (...) Este fato, que as duas definições
são logicamente distintas enquanto tais, e que não obstante os objetos
definidos podem aproximar-se cada vez mais um do outro (5), explica aquilo que
à primeira vista pode parecer estranho, a imposibilidade de fazer coincidir
duas quantidades das quais se pode reduzir a diferença além de toda expressão”
(6).
Não é preciso dizer que, em virtude da tendência
moderna de reduzir tudo exclusivamente ao quantitativo, não se deixou de
reprovar nesta concepção do limite a introdução de uma diferença qualitativa
dentro da própria ciência quantitativa; mas, se por isso fosse preciso
descartá-la, seria também preciso que a geometria evitasse inteiramente, entre
outras coisas, a consideração da similaridade, que é também puramente
qualitativa, como já indicamos, porque ela só consnidera a forma das figuras
sem levar em consideração sua grandeza, ou seja os elementos propriamente
quantitativos. Convém lembrar, a propósito, que uma das principais utilizações
do cálculo diferencial é determinar as direções das tangentes em cada ponto de
uma curva, direções cujo conjunto define a própria forma da curva, e que
direção e forma são precisamente, na ordem espacial, elementos cuja natureza é
essencialmente qualitativa (7) Ademais, não é uma solução suprimir pura e
simplesmente a “passagem ao limite”, sob o pretexto de que o matemático não
precisa efetivamente disto, e que isto não o ajuda a conduzir o cálculo até o
final; isso pode ser verdade, mas o que importa é o seguinte: até que ponto,
nessas condições, terá ele o direito de considerar esse cálculo como repousando
sobre um raciocínio rigoroso, e, mesmo se “o método é seguro” assim, não seria
apenas enquanto método de aproximação? Poder-se-ia objetar que a concepção que
expusemos torna também impossível a “passagem ao limite”, porque este limite tem
precisamente como característica não poder ser atingido; mas isto só é verdade
num certo sentido, e apenas quando se considera as variáveis como tais, pois
não dissemos que o limite jamais pode ser atingido, mas, e isto é essencial
precisar, que ele não pode ser atingido dentro da variação e como parte desta.
O que é verdadeiramente impossível, é unicamente a concepção de “passagem ao
limite” como constituindo o termo de uma variação contínua; mas devemos então
substituir esta concepção por uma outra, e é isto o que faremos a seguir.
NOTAS
1. L. Couturat, De l’infini mathématique, Introdução,
pg. XXIII.
2. Ch. De Freycinet, De l ‘Analyse infinitésimale, Prefácio,
pg. VIII.
3.
L. Couturat, De l’infini mathématique, pg. 268, Nota.
– É o ponto de vista que também está exposto em Justification du Calcul des infintésimales par celui de l’Algèbre
ordinaire.
4. Ch. De Freycinet, De l ‘Analyse infinitésimale, pg. 18.
5. Seria mais exato dizer que
um dos dois pode aproximar-se mais e mais do outro, pois apenas um desses
objetos é variável, enquanto que o outro é essencialmente fixo, e que assim, em
razão mesmo da definição de limite, sua proximação não pode ser considerada
como constituindo uma relação recíproca e cujos termos seriam de certo modo intercambiáveis;
esta irreciprocidade implica de resto que sua diferença é de ordem propriamente
qualitativa.
6. Ibid.,
pg. 19.
7. Ver Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps, cap. IV.
XIII
CONTINUIDADE E
PASSAGEM AO
LIMITE
Podemos voltar agora ao exame da “lei da
continuidade”, ou, mais exatamente, do aspecto desta lei que deixamos
momentaneamente de lado, e que é aquele pelo qual Leibnitz acreditava poder
justificar a “passagem ao limite”, porque, para ele, resultava daí que, “nas
quantidades contínuas, o caso extremo exclusivo pode ser tratado como
inclusivo, e assim este último caso, embora totalmente diferente em natureza,
está como que contido em estado latente na lei geral dos outros casos” (1). É
justamente aí que reside, embora ele pareça não aperceber-se, o principal erro
lógico de sua concepção da continuidade, como se pode perceber facilmente pelas
conseqüências que ele tira daí e pelas aplicações que ele faz disto; eis alguns
exemplos: “Em virtude de minha lei de continuidade, podemos considerar o
repouso como um movimento infinitamente pequeno, ou seja como equivalente a uma
espécie de contraditório seu, e a coincidência como uma distância infinitamente
pequena, e a igualdade como a última das desigualdades, etc.” (2). E ainda: De acordo
com esta lei da continuidade que exclui todo salto na mudança, o caso do
repouso pode ser visto como um caso particular do movimento, ou seja como um
movimento evanescente e mínimo, e o caso da igualdade como um caso de
desigualdade evanescente. Resulta daí que as leis do movimento devem ser
estabelecidas de tal modo queu não haja necesidade de regras particulares para
os corpos em equilíbrio e em repouso, mas que estas surjam por si sós das
regras concernentes aos corpos em desequilíbrio e em movimento; ou, se se
preferir enunciar regras particulares para o repouso e o equilíbrio, é preciso
cuidado para que estas possam acordar-se com a hipótese que considra o repouso
como um movimento nascente ou a igualdade como a última das desigualdades” (3).
Acrescentemos ainda esta última citação a respeito, onde encontramos um novo
exemplo algo diferente dos primeiros, mas não menos contestável do ponto de
vista lógico: “Embora não seja rigorosamente certo que o repouso seja uma
espécie de movimento, ou que a igualdade seja uma espécie de desigualdade,
assim como não é exato que o círculo seja uma espécie de polígono regular,
podemos entretanto dizer que o repouso, a igualdade e o círculo encerram os
movimentos, as desigualdades e os polígonos regulares, que por uma mudança
contínua aí chegam ao evanescer. E ainda que estas terminações sejam
exclusivas, ou seja não compreendidas a rigor dentro das variedades que elas
limitam, elas no entanto possuem suas propriedades, como se estivessem aí
compreendidas, segundo a linguagem dos infinitos ou infinitesimais, que vê o
círculo, por exemplo, como um polígono regular cujo número de lados é infinito.
De outro modo, a lei da continuidade seria violada, ou seja, se passamos dos
polígonos ao círculo por uma mudança contínua e sem dar saltos, é preciso
também que não haja salto na passagem das qualidades dos polígonos para as do
círculo” (4).
Convém dizer, como o indica aliás o início da última
passagem citada, que Leibnitz vê suas assertivas como do mesmo tipo daquelas
que não mais do que “toleranter verae”,
e que, diz ele em outra passagem, elas “servem sobretudo à arte de inventar,
embora, a meu juízo, elas encerrem algo de fictício e de imaginário, que no
entanto pode ser facilmente retificado pela redução às expresões normais, a fim
de que não se produzam erros” (5); mas será que elas são assim, e não
encerrarão elas, na realidade, senão contradições puras e simples? Sem dúvida,
Leibnitz reconhecia que o caso extremo, ou o “ultimus casus”, é “exclusivus”,
o que supõe manifestamente que ele está fora da série de casos que entram
naturalmente na lei geral; mas então com que direito ele o inclui nessa lei,
tratando-o “ut inclusivum”, como se
ele não passasse de um caso particular incluído nessa série? É verdade que o
círculo é o limite de um polígono regular cujo número de lados cresce
indefinidamente, mas sua definição é essencialmente diferente da dos polígonos;
e vemos claramente, num exempllo como este, a diferença qualitativa que existe,
como já dissemos, entre o próprio limite e aquilo de quê ele é limite. O
repouso não é de modo algum um caso parrticular do movimento, nem a igualdade
um caso particular da desigualdade, nem a coincidência um caso particular da
distância, nem o paralelismo um caso particular da convergência; de resto,
Leibnitz não admite que eles o sejam no sentido rigoroso, mas ele não deixa de
sustentar que eles podem ser visstos como tais, de sorte que “o gênero termina
na quase-espécie oposta” (6), e que alguma coisa pode ser “equivalente a uma
espécie de seu contraditório”. É aliás à mesma ordem de idéias, notemo-lo de
passagem, que parece ligar-se a noção de “virtualidade” concebida por Leibnitz,
no sentido particular que ele lhe atribui, como uma potência que seria um ato
que começa (7), o que é tão contraditório quanto todos os outros exemplos que
demos.
Qualquer que seja ponto de vista em que nos
coloquemos, não vemos como uma espécie poderia ser um “caso-limite” da espécie
ou do gênero oposto, pois não é neste sentido que os opostos limitam-se reciprocamente,
mas é ao contrário naquilo que eles excluem, e é impossível que termos
contraditórios sejam reduzidos um ao outro; e de resto, por exemplo, pode a
desigualdade possuir outro significado senão na medida em que ela se opõe à
igualdade, sendo sua negação? Não podemos dizer que tais asserções sejam sequer
“toleranter verae”; mesmo que não
admitamos a existência de gêneros absolutamente separados, continua verdadeiro
que um gênero qualquer, definido como tal, não pode jamais tornar-se parte
integrante de um outro gênero igualmente definido e cuja definição não inclui a
sua própria, se é que não a exclui formalmente como no caso dos contraditórios,
e que, se uma comunnicação pode ser estabelecida entre gêneros diversos, não
pode ser por aquilo em que eles diferem efetivamente, mas apenas por meio de um
gênero superior no qual ambos caibam
igualmente. Uma tal concepção da continuidade, que chega a suprimir não
apenas toda separação, mas mesmo toda distinção efetiva, permitindo a passagem
direta de um gênero a outro sem redução a um gênero superior ou mais geral, é
propriamente a negação de todo princípio verdadeiramente lógico; daí à
afirmação hegeliana da “identidade dos contraditórios” não há mais do que um
passo, bem fácil de ser dado.
NOTAS
1. Epistola ad V.Cl. Christianum Wolfium, Professorem Matheseos Halensem,
circa Scientiam Infiniti, nas Acta Eruditorum de
Leipzig, 1713.
2. Carta citada a Varignon, 2
de fevereiro de 1702.
3. Specimen Dynamicum, já citado acima.
4. Justification du Calcul des infinitésimales par celui de l’Algèbre
ordinaire,
nota anexa à carta de Varignon a Leibnitz em 23 de maio de 1702, na qual ela é
mencionada como tendo sido enviada por Leibnitz para ser inserida no Journal de Trévoux.
5. Epistola ad V.Cl. Christianum Wolfium, já citada.
6. Initia Rerum Mathematicarum Metaphysica. – Leibnitz afirma
textualmente: “genus in quasi-speciem
oppositam desinit”, e o emprego desta singular expressão “quasi-especies” parece indicar ao menos
um certo embaraço para dar uma aparência plausível ao enunciado.
7. Os termos “ato” e “potência”
são tomados aqui no seu sentido aristotélico e escolástico.
XIV
AS “QUANTIDADES
EVANESCENTES”
A justificativa da “passagem ao limite” consiste em
suma, para Leibnitz, em que o caso particular das “quantidades evanescentes”,
como ele diz, deve, em virtude da continuidade, caber de certa forma dentro da
regra geral; e de resto estas quantidades evanescentes não podem ser vistas
como “absolutamente nada”, ou como puros zeros, pois, sempre em razão da mesma
continuidade, elas mantém entre si uma relação determinada, e geralmente
diferente da unidade, no instante mesmo em que elas evanescem, o que pressupõe
ainda que elas sejam ainda quantidades verdadeiras, ainda que “inassinaláveis”
em relação às quantidades ordinárias (1). Entretanto, se as quantidades
evanescentes, ou, o que vem a dar no mesmo, as quantidades infinitesimais, não
são “absolutos nada”, mesmo que se trate de diferenciais de ordens superiores
ao primeiro, elas devem ser consideradas como “relativos nada”, o que equivale
a dizer que, mesmo mantendo o caráter de verdadeiras quantidades, elas podem e
devem ser negligenciadas em relação às quantidades ordinárias, com as quais
elas são “incomparáveis” (2); mas, multiplicadas por quantidades “infinitas”,
ou incomparavelmente maiores do que as quantidades ordinárias, elas reproduzem
quantidades ordinárias, o que não ocorreria se elas fossem nada. Podemos ver,
pelas definições que demos antes, que a consideração de uma relação que
permanece determinada entre as quantidades evanescentes, refere-se ao cálculo
diferencial, e que a relação da multiplicação destas mesmas quantidades
evanescentes por quantidades “infinitas”, produzindo quantidades ordinárias,
refere-se ao cálculo integral. A dificuldade, em tudo isso, está em admitir que
quantidades que não são nulas devem no entanto ser tratadas como nulas no
cálculo, o que pode dar a imprerssão de que se trata de uma simples
aproximação; a este respeito ainda, Leibnitz parece às vezes invocar a “lei da
continuidade”, segundo a qual o “caso limite” é remetido à regra geral, como
o único postulado que seu método exige;
mas este argumento é pouco claro, e seria melhor voltar à noção dos
“incomparáveis”, como ele o faz com mais freqüência, para justificar a eliminação
das quantidades infinitesimais no resultado do cálculo.
De fato, Leibnitz considera como iguais, não apenas
as quantidades cuja diferença é nula, mas ainda aquelas cuja diferença é
incomparável com estas mesmas quantidades; é sobre esta noção dos “incomparáveis”
que repousa, para ele, não apenas a eliminação das quantidades infinitesimais,
que assim desaparecem diante das quantidades ordinárias, mas também a distinção
entre as diferentes ordens de quantidades infinitesimais ou diferenciais, por
serem as quantidades de cada uma destas ordens incomparáveis com as da
precedente, como as da primeira ordem o são com relação às quantidades
ordinárias, mas sem que jamais se chegue a “absolutos nada”. “Eu chamo de
grandezas incomparáveis, diz Leibnitz, aquelas que, quando uma é multiplicada
por qualquer número finito, não é capaz de exceder a outra, assim como Euclides
tomou na quinta definição do quinto livro” (3). Não há de resto aí nada que
indique se esta definição deve ser entendida a respeito de quantidades fixas e
determinadas ou de quantidades variáveis; mas podemos admitir que, em toda sua
generalidade, ela deve aplicar-se indistintamente a ambos: a questão resume-se
em saber agora se duas quantidades fixas, por diferentes que sejam na escala de
grandezas, podem jamais ser vistas como
realmente “incomparáveis”, ou se elas só o são relativamente aos meios
de mensuração de que dispomos. Mas não cabe aqui insinstir sobre este ponto,
pois o próprio Leibnitz declarou em outra ocasião que este não é o caso dos
diferenciais (4), donde se conclui, não apenas que a comparação do grão de
areia era manifestamente insuficiente em si, mas ainda que ela não
correspondia, em seu próprio pensamento, à verdadeira noção dos
“incomparáveis”, ao menos na medida em que esta noção deva aplicar-se às
quantidades infinitesimais.
Alguns acharam entretanto que o cálculo
infinitesimal não poderia ser tornado perfeitamente rigoroso a menos que as
quantidades infinitesimais pudessem ser consideradas como nulas, e, ao mesmo
tempo, pensaram erradamente que um erro poderia ser suposto nulo desde ele
pudesse ser suposto tão pequeno quanto se queira; dizemos erradamente, porque
isto equivale a admitir que uma variável, enquanto variável, pode atingir seu
limite. Eis, aliás, o que Carnot diz a respeito: “Existem pessoas que acreditam
haver estabelecido suficientemente o princípio da análise infinitesimal a
partir do seguinte raciocínio: é evidente, dizem, e todos concordam que os
erros que originam-se dos procedimentos de análise infinitesimal, se os há,
podem sempre ser supostos tão pequenos quanto se queira; é evidente também que
todo erro que podemos supor tão pequeno quanto se queira é nulo, pois, se é
possível supô-lo tão pequeno, pode-se supô-lo zero; portanto os resultados da
análise infinitesimal são rigorosamente exatos. Este raciocínio, plausível à
primeira vista, não é inteiramente justo, pois é falso dizer que, porque
podemos supor um erro tão pequeno quanto o queiramos, podemos por isso torná-lo
nulo. Estamos necessariamente na alternativa de, ou cometer um erro, por
pequeno que seja, ou de cair numa fórmula que não leva a nada, e este é
precisamente o nó da dificuldade na análise infinitesimal” (5).
É certo que uma fórmula na qual entre uma relação
que se apresenta sob a forma 0 / 0 “não leva a nada”, e podemos mesmo dizer que
ela não tem nenhum sentido em si mesma; é apenas em virtude de uma convenção,
de resto justificada, que podemos dar um sentido à forma 0/0, vendo-a como um
símbolo da indeterminação (6); mas esta mesma indeterminação faz com que a
relação, tomada sob esta forma, poderia ser igual a não importa qual outra,
enquanto que ela deve ao contrário, em cada caso particular, conservar um valor
determinado: é a existência deste valor determinado que Leibnitz alega (7), e
este argumento, em si, é perfeitamente inatacável (8). Apenas, é preciso
reconhecer que a noção das “quantidades evanescentes” tem, segundo a expressão
de Lagrange, “o grande inconveniente de considerar as quantidades no estado em
que elas cessam, por assim dizer, de ser quantidades”; mas, contrariamente ao
que pensava Leibnitz, não há necessidade de considerá-las precisamente no
instante em que elas evanescem,, nem mesmo de admitir que elas possam evanescer
verdadeiramente, pois, neste caso, elas cessam efetivamente de ser quantidades.
Isto supõe de resto essencialmente que não existe “infinitamente pequeno”
tomado “a rigor”, pois este “infinitamente pequeno”, ou ao menos o que podemos
chamar assim adotando a linguagem de Leibnitz, não poderia ser senão zero,
assim como o “infinitamente grande”, tomado no mesmo sentido, não poderia ser
outro que o “número infinito”; mas, na realidade, o zero não é um número, e a
“quantidade nula” não existe mais do que a “quantidade infinita”. O zero
matemático, em sua acepção estrita e rigorosa, não passa de uma negação, ao
menos sob o aspecto quantitativo, e não podemos dizer que a ausência de
quantidade constitua ainda uma quantidade; este é um ponto sobre o qual
voltaremos para desenvolver mais completamente as diversas conseqüências que
dele resultam.
Em suma, a expressão de ‘quantidades evanescentes”
tem sobretudo o defeito de se prestar a um equívoco, e de fazer crer que as
quantidades infinitesimais são consideradas como quantidades que se anulam
efetivamente, pois, a menos que se mudem os sentidos das palavras, é difícil
compreender que “evanescer”, quando se trata de quantidades, possa querer dizer
outra coisa do que anular-se. Em realidade, estas quantidades infinitesimais,
entendidas como quantidades indefinidamente decrescentes, que é seu verdadeiro
significado, jamais podem ser ditas “evanescentes” no sentido próprio do termo,
e teria sido preferível não ter introduzido esta noção, que, no fundo,
refere-se à concepção que Leibnitz fazia da continuidade, e que, como tal,
comporta inevitavelmente o elemento de contradição que é inerente ao ilogismo
desta mesma concepção. Agora, se um erro, mesmo podendo ser tornado tão pequeno
quanto se queira, não pode jamais tornar-se absolutamente nulo, como poderia o
cálculo infinitesimal ser verdadeiramente rigoroso, e, se de fato o erro pode
ser desprezível, deve-se concluir daí que este cálculo se reduz a um simples
método de aproximação, ou ao menos, como diz Carnot, de “compensação”? Eis uma
questão que deverá ser resolvida adiante; mas, como falamos do zero e da
pretensa “quantidade nula”, trataremos primeiro deste assunto, que, como se
verá, está longe de ser negligenciável.
NOTAS
1. Para Leibnitz, 0 / 0 = 1,
porque, diz ele, “um nada vale outro”; mas, como temos que 0 x n =
0, e isto qualquer que seja o valor de n,
é evidente que podemos também escrever que 0 / 0 = n, e é por isso que a expressão 0 / 0 é geralmente vista como
representando o que se chama uma “forma indeterminada”.
2. A diferença entre isto e a
comparação do grão de areia é que, quando se
fala em “quantidades evanescentes”, isto supõe necessariamente que se
trata de quantidades variáveis, e não mais de quantidades fixas e
determináveis, por pequenas que sejam.
3. Carta ao marquês de
l’Hospital, 14-24 de junho de 1695.
4. Carta citada a Varignon, 2
de fevereiro de 1702.
5. Réflexions sur la Métaphyisique du Calcul infinitésimal, pg. 36.
6. Ver a nota precedente a
respeito.
7. Com a diferença que, para
ele, a relação 0 / 0 é, não indeterminada, mas sempre igual a 1, como dissemos
acima, enquanto que o valor de que se trata difere em cada caso.
8. Cf. Ch. de Freycinet, De l’Analyse infinitésimale, pgs.
45-46: “Se os acréscimos são levados à condição de puros zeros, eles não tem
mais nenhum significado. Sua característica é de serem, não rigorosamente
nulos, mas indefinidamente decrescentes, sem jamais poder se confundir com
zero, em virtude do princípio geral que uma variável não pode nunca coincidir
com seu limite”.
XV
ZERO NÃO É UM
NÚMERO
O decréscimo indefinido dos números não pode chegar a um
“número nulo”, assim como seu crescimento não pode chegar a um “número
infinito”, e isto pela mesma razão, uma vez que um destes números deve ser o
inverso do outro; de fato, a partir do que dissemos antes a respeito dos números
inversos, que por estarem igualmente distanciados da unidade nas duas séries,
uma crescente e outra decrescente, tem como ponto de partida comum esta
unidade, e como existem necessariamente tantos termos em uma como em outra das
duas séries, os últimos termos, que seriam o “número infinito” e o “número
nulo”, se existissem, estariam igualmente distanciados da unidade, sendo
portanto inversos um do outro (1). Nestas condições, se o signo do
infinito não passa do símbolo das
quantidades indefinidamente crescentes, o signo 0 deveria logicamente poder ser
tomado da mesma forma como símbolo das quantidades indefinidamente
decrescentes, a fim de exprimir na notação a simetria que existe, como
dissemos, entre uns e outros; mas, infelizmente, este signo 0 já possui outro
significado, pois ele serve originariamente para designar a ausência de
qualquer quantidade, enquanto que o signo do infinito não tem nenhum
significado real que corresponda. Esta é uma nova fonte de confusões, como as
que se produzem a respeito das “quantidades evanescentes”, e seria preciso,
para evitá-las, criar para as quantidades indefinidamente decrescentes um outro
símbolo diferente do zero, pois estas quantidades tem por característica jamais
poderem se anular em sua variação; em todo caso, com a notação atualmente
empregada pelos matemáticos, é quase impossível que estas confusões não
aconteçam.
Se insistimos nesta questão de que o zero, na medida em
que ele representa a ausência de qualquer quantidade, não é nem pode ser
considerado como um número, embora isto possa parecer óbvio para que jamais
teve contato com certas discussões, é porque, uma vez que se admite a
existência de um “número nulo”, que deve ser “o menor dos números”, deve-se
forçosamente concluir daí, como seu inverso, um “número infinito”, no sentido
de “o maior dos números”. Se portanto aceitamos este postulado de que zero é um
número, o argumento em favor do “número infinito” pode parecer perfeitamente
lógico (2); mas é precisamente este postulado que devemos rejeitar, pois, se as
conseqüências que dele se deduzem são contraditórias, e vimos que a existência
do ‘número infinito” o é realmente, é porque, em si mesmo, ele implica
contradição. De fato, a negação da quantidade não pode ser assimilada a uma
quantidade; a negação do número ou da grandeza não pode em nenhum sentido e em
nenhum grau constituir uma espécie do número ou da grandeza; pretender o
contrário, equivale a sustentar que qualquer coisa pode ser, segundo a
expressão de Leibnitz, “equivalente a uma espécie de seu contraditório”, e
poder-se-ia assim dizer que a negação da lógica é a própria lógica.
É portanto contraditório falar do zero como um número, ou
supor um “zero de grandeza” que seria ainda uma grandeza, donde resultaria
forçosamente a consideração de tantos zeros distintos quantas ordens diferentes
de grandezas; na realidade, só pode haver um zero puro e simples, que não é
outra coisa do que a negação da quantidade, qualquer que seja o modo como esta
é considerada (3). Uma vez que este seja no verdadeiro sentido do zero
aritmético tomado “a rigor”, é evidente que este sentido não tem nada a ver com
a noção das quantidades indefinidamente decrescentes, que sempre são
quantidades, e não ausência de quantidade, assim como não são algo de
intermediário entre o zero e a quantidade, o que seria ainda uma concepção
perfeitamente ininteligível, e que, em sua ordem, lembraria a da “virtualidade”
leibnitziana de que falamos preedentemente.
Podemos
agora voltar ao outro significado que o zero tem de fato na notação habitual, a
fim de ver como as confusões de que falamos puderam produzir-se: dissemos antes
que um númeropode ser visto como praticamente indefinido desde que não nos seja
mais posível exprimí-lo ou representá-lo distintamente de um modo qualquer; um
tal número, seja qual for, poderá apenas, na ordem crescente, ser simbolizado
pelo signo do infinito, na medida em que este representa o indefinidamente
grande; não se trata portanto aí de um número determinado, mas antes de todo um
domínio, o que de resto é necessário para que seja possível considerar, no
indefinido, desigualdades e mesmo diferentes ordens de grandeza. Falta, na
notação matemática, um outro símbolo para representar o domínio que corresponda
àquele na ordem decrescente, ou seja no domínio do indefinidamente pequeno;
mas, como um número que pertença a este domínio é, de fato, desprezível para
efeitos de cálculo, tomou-se o hábito de considerá-lo como praticamente nulo,
embora isto não seja mais do que uma simples aproximação resultatnte da imperfeição
inevitável de nossos modos de expressão e de medida, e é sem dúvida por esta
razão que se chegou a representá-lo com o mesmo signo 0 que representa por
outro lado a ausência rigorosa de qualquer quantidade. É apenas neste sentido
que que o signo 0 torna-se de certa forma simétrico do signo do infinito, h , e podem ser colocados respectivamente nas
duas extremidades da série dos números, tal como já a consideramos antes como
estendendo-se indefinidamente, pelos números inteiros e seus inversos, nos dois
sentidos crescente e decrescente. Esta série apresenta-se então sob a seguinte
forma:
0, ..., ¼, 1/3, ½,
1, 2, 3, 4, ..., infinito;
mas é preciso cuidado porque o
zero e o infinito representam, não dois números determinados, que terminariam a
série nos dois sentidos, mas dois domínios indefinidos, nos quais ao contrário
não existem últimos termos, em razão de sua própria indefinitude; é aliás
evidente que o zero não poderia ser aqui um “número nulo”, que seria um último
termo no sentido decrescente, nem uma negação ou ausência de quantidade, que
não pode ter lugar nesta série de quantidades numéricas.
Nesta
mesma série, como já explicamos, dois números eqüidistantes da unidade central
são inversos ou complementares um do outro, e portanto reproduzem a unidade por
sua multiplicação: (1 / n) x n = 1, de modo que, para as duas
extremidades da série, seríamos levados a escrever que 0 x h = 1; mas, como os signos 0 e h, que são os dois fatores deste último
produto, não representam números determinados, segue-se que a expressão 0 x h em si constitui um símbolo da
indeterminação ou aquilo que é chamado de “forma indeterminada”, e podemos
então dizer que 0 x h = n, sendo n um
número qualquer (4); não é menos verdade que, de qualquer modo, somos levados
ao finito comum, pois as duas indefinitudes opostas como que neutralizam uma à
outra. Vemos ainda claramente aqui, mais uma vez, que o símbolo h não representa o Infinito, pois este, em
seu verdadeiro sentido, não pode ter nem oposto nem complementar, nem pode
entrar em correlação com o que quer que seja, nem com o zero, como quer que o
entendamos, nem com a unidade ou qualquer outro número, nem de resto com
qualquer coisa particular seja de que ordem for, quantitativa ou não; por ser o
Todo universal e absoluto, ele contém tanto o Ser como o Não-Ser, de modo que o
próprio zero, desde que não seja visto como uma pura negação, deve ser
considerando como estando também ele compreendido no Infinito.
Ao fazermos aqui alusão ao Não-Ser, chegamos a um outro
significado do zero, totalmente diferente daqueles que vimos até agora, e de
resto o mais importante do ponto de vista de seu simbolismo metafísico; mas, a
este respeito, é preciso frisar, para evitar qualquer confusão entre o símbolo
e aquilo que ele representa, que o Zero metafísico, que é o Não-Ser, não é o
zero da quantidade, assim como a Unidade metafísica, que é o Ser, tampouco é a
unidade artitmética; aquilo que é designado por esses termos só pode sê-lo por
transposição analógica, pois, uma vez que se está no domínio do Universal,
também se está além de qualquer domínio em particular como o da quantidade. Não
é aliás por representar o indefinidamente pequeno que o zero pode ser
transposto como símbolo do Não-Ser, mas porque, segundo sua concepção
matemática mais rigorosa, ele representa a ausência de quantidade, que de fato
simboliza em sua própria ordem a possibilidade de não-manifestação, assim como
a unidade simboliza a possibilidade de manifestação, por ser o ponto de partida
da multiplicidade indefinida dos números, como o Ser é o princípio de toda a
manifestação (5).
Isso nos conduz a lembrar ainda que, qualquer que seja o
modo como consideremos o zero, ele só não pode ser considerado como um puro
nada, que metafisicamente corresponde a uma impossibilidade, a qual logicamente
não pode ser representada por nada. Isto é bastante evidente quando se trata do
indefinidamente pequeno; é verdade que trata-se aí apenas de um sentido
derivado, devido a uma espécie de assimilação entre uma quantidade desprezível
e a ausência de quantidade; mas, no que diz respeito à ausência mesma de quantidade, o que é nulo
sob este aspecto pode não sê-lo sob outros, como vemos claramente por um
exemplo como o do ponto, que, sendo indivisível, e por isto mesmo sem extensão,
é espacialmente nulo (6), mas que nem por isto, como já vimos, deixa de ser o
próprio princípio de toda a extensão (7). É estranho que os matemáticos tenham
o hábito de ver o zero como um puro nada, mas que ao mesmo tempo aceitem-no como dotado de uma potência
indefinida, pois, colocado à direita de qualquer cifra “significativa”, ele
contribui para formar a representação de um número que, pela simples repetição
de zeros, pode crescer indefinidamente,
como é o caso do dez e de suas potências sucessivas. Se realmente o zero não
passasse de um puro nada, isto não poderia ser assim, e, a bem dizer, ele seria
um símbolo perfeitamente inútil, desprovido de qualquer valor efetivo; mas esta
é apenas mais uma das muitas inconseqüências das concepções matemáticas
modernas.
NOTAS
1. Isto seria representado,
segundo a notação comum, pela conhecida fórmula
0 x h = 1; mas, de fato, a forma 0
x h é também, assim como 0 / 0 , uma “forma
indeterminada”; e pode-se escrever ainda que 0 x h = n, sendo n um número qualquer, o que mostra que 0 e h não devem ser vistos como representando números determinados;
voltaremos a isto adiante. Cabe observar, por outro lado, que 0 x h corresponde, em relação aos “limites das somas” do cálculo integral,
ao que é o 0 / 0 em relação aos “limites de relações” do cálculo diferencial.
2. É de fato sobre este
postulado que repousa grande parte da argumentação de L. Couturat em sua
tese De
l’infini mathématique.
3. Resulta daí ainda que o zero
não pode ser visto como um limite no sentido matemático do termo, porque um
limite verdadeiro é sempre, por definição, uma quantidade; aliás é evidente que
uma quantidade que decresce indefinidamente tem tanto limite quanto uma que
cresce indefinidamente, ou ao menos ambas não podem ter outros limites do que
aqueles impostos por sua própria natureza enquanto quantidades, o que é uma acepção bastante diferente da
palavra “limite”, embora entre os dois sentidos haja uma relação que
indicaremos mais adiante; matematicamente, só se pode falar de limite em
relação a duas quantidades indefinidamente crescentes ou a duas quantidades
indefinidamente decrescentes, e não do limite destas quantidades por si mesmas.
4. Ver a nota precedente a
respeito.
5. A este respeito,cf. Os estados múltiplos do ser, cap. III.
6. É porisso que o ponto não pode
ser considerado como um elemento ou uma parte da extensão.
7. Ver O simbolismo da cruz, cap. XVII
XVI
A NOTAÇÃO DOS NÚMEROS NEGATIVOS
Se voltarmos ao segundo dos dois significados do zero, ou
seja considerando-o como uma representação do indefinidamente pequeno, o que
importa ter em mente antes de tudo é que este domínio compreende, na série
duplamente indefinida dos números, tudo o que está além de nossos meios de
avaliação num certo sentido, assim como o indefinidamente grande compreende,
dentro desa mesma série, tudo o que está além dos mesmos meios de avaliação no
outro sentido. Isto posto, não faz sentido falar em números “menores do que
zero”, assim como de números “maiores do que o indefinido”, e com mais razão
ainda, se possível for, uma vez que o zero representa, segundo seu primeiro
significado, pura e simplesmente a
ausência de toda e qualquer quantidade, e uma quantidade que seja menor
do que nenhuma é propriamente inconcebível. É isto entretanto o que se fez, num
certo sentido, quando se introduziu nas matemáticas a consideração dos números
ditos negativos, esquecendo-se, por efeito do “convecionalismo” moderno, que
esses números não são, originalmente, senão a indicação do resultado de uma
operação realmente impossível, pela qual um número maior deve ser extraído de
um menor; de resto, já notamos que todas as generalizações ou extensões da
idéia de número não porvém de fato senão da consideração de operações
impossíveis do ponto de vista da aritmética pura; mas esta concepção dos
números negativos e as conseqüências que ela traz merecem algumas explicações.
Dissemos antes que a série dos números inteiros é formada
a partir da unidade, e não a partir do zero; de fato, dada a unidade, dela se
deduz toda a série dos números, de modo que podemos dizer que esta está
implicada e contida em princípio nesta unidade inicial (1), enquanto que do
zero não se pode evidentemente extrair nenhum número. A passagem do zero à
unidade não pode se fazer do mesmo modo como a passagem da unidade para os
outros números, ou de um número qualquer ao seu seguinte, e, no fundo, imaginar
possível esta passagem do zero para a unidade equivale a pressupor
implicitamente esta unidade (2). Colocar o zero diante da série dos números,
como se ele fosse o primeiro desta série, só pode ter dois significados: ou se
admite que o zero é um número, contrariamente ao que estabelecemos, e que por
conseguinte ele pode ter para com os demais números relações da mesma ordem que
estes tem entre si (o que não acontece, porque zero dividido ou multiplicado
por qualquer número dá sempre zero); ou trata-se de um simples artifício de
notação, que só pode trazer consigo confusões mais ou menos inextricáveis. De
fato, o emprego deste artifício quase que só se justifica para permitir a
introdução da notação dos números negativos, e, se o uso desta notação oferece
sem dúvida algumas vantagens para a comodidade dos cálculos (consideração
“pragmática” que não está em causa aqui e que na verdade não tem importância de
nosso ponto de vista), não é difícil
dar-se conta de que ela apresenta por outro lado graves inconvenientes lógicos.
A primeira das dificuldades é precisamente a consideração das quantidades
negativas como “menores do que zero”, que Leibnitz classificava dentre as afirmações
que não passavam de “toleranter verae”, mas que na verdade é, como já dissemos,
inteiramente desprovida de qualquer significado. “Admitir que uma quantidade
negativa isolada é menor do que zero,
diz Carnot, é cobrir a ciência das matemáticas, que deve ser a da
evidência, com uma nuvem impenetrável e enfiar-se num labirinto de paradoxos
cada qual mais bizarro” (3). Sobre este ponto, concordamos com esta opinião,
que não é suspeita nem tem nada de exagerado; e não se deve jamais esquecer, no
uso que se faz dessa notação dos números negativos, que se trata apenas de uma
simples convenção.
A razão desta convenção é a seguinte: mesmo quando uma
subtração é aritmeticamente impossível, seu resultado ainda é susceptível de
interpretação nos casos em que esta subtração se refere a grandezas que podem
ser contadas em sentidos opostos, como por exemplo as distâncias medidas sobre
uma linha, ou os ângulos de rotação ao redor de um ponto fixo, ou ainda o tempo
contado em passado e futuro a partir de um momento dado. Daí a representação
que normalmente se faz desses números negativos: se considerarmos uma reta
inteira, indefinida nos dois sentidos, e não mais apenas uma semi-reta como
fizemos antes, podemos contar, sobre esta reta, as distâncias como positivas ou
negativas segundo a percorramos num ou noutro sentido em relação a um ponto
fixo de origem, a partir do qual as distâncias são chamadas de positivas numa
direção e de negativas na outra. A cada ponto da reta corresponderá um número
que será a medida de sua distância até a origem, e que podemos chamar de
coeficiente; a própria origem terá como coeficiente o zero, e o ceoficiente de
qualquer outro ponto da reta será um número qualificado pelo sinal + ou – , signos que, na realidade, indicam apenas de qual lado este
ponto está situado em relação à origem. Também podemos distinguir um sentido
positivo e um negativo sobre uma circunferência, e contar, a partir de uma
posição inicial do raio, os ângulos como positivos ou negativos conforme sejam
descrito em um ou outro sentido, o que dá lugar a observações análogas. Para
ficarmos na consideração da reta, doi spontos eqüidistantes da origem, de cada
lado desta, terão como coeficiente o mesmo número, mas com sinais contrários, e
um ponto mais distante da origem do que um outro terá como coeficiente um
número maior; vemos assim que, se um número n é maior do que um
número m, é absurdo afirmar, como se faz normalmente, que –n
é menor do que –m, porque na verdade ele representa uma distância maior. De
resto, o sinal colocado diante do número não pode realmente modificá-lo do
ponto de vista da quantidade, porque ele não representa nada que se refira à
medida das distâncias em si mesmas, mas apenas a direção segundo a qual estas
distâncias são percorridas, direção que é de ordem puramente qualitativa e não
quantitativa ( 4).
Por outro lado, sendo a reta indefinida nos dois sentidos,
somos obrigados a considerar um indefinido positivo e um negativo, que são
representados respectivamente pelos signos +(infinito) e – (infinito) e que
costumam ser designados pelas expressões absudar de “mais infinito” e “menos
infinito”; é o caso de se perguntar o que poderia ser um infinto negativo, ou o
que restaria se de qualquer coisa, ou mesmo de nada (pois os matemáticos vêem o
zero como nada), se extraísse o infinito; é o tipo de coisas que basta enunciar
em termos claros para se ver que não tem nenhum significado. É preciso ainda
acrescentar que isso também nos conduz, em especial no estudo da variação das
funções, a ver o indefinido negativo como confundindo-se com o positivo, de tal
modo que um objeto partindo da origem e dela se afastando constantemente no
sentido positivo retornaria a ela pelo lado negativo, ou inversamente, se seu
movimento se mantivesse por um tempo indefinido, donde resulta que a reta, ou
aquilo que está sendo considerado como tal, deve ser na realidade uma linha
fechada, mesmo que indefinida. Podemos mostrar que as propriedades da reta
sobre o plano são inteiramente análogas às de um círculo diametral sobre a superfície
de um esfera, de modo que o plano e a reta podem ser comparados a uma esfera e
a um círculo de raio indefinidamente grande (e por conseguinte de curvatura
indefinidamente pequena), enquanto que os círculos comuns do plano equivalem
aos círculos menores da esfera. Essa assimilação, para ser rigorosa, supõe de
resto uma “passagem ao limite”, pois é evidente que, por maior que se torne o
raio em seu crescimento indefinido, teremos sempre uma esfera e não um plano, e
que esta esfera apenas tende a confundir-se com o plano e seus grandes círculos
com as retas deste plano, de tal modo que o plano e a reta são aqui limites, do
mesmo modo como o círculo é o limite de um polígono regular cujo número de
lados cresce indefinidamente. Sem insistirmos mais, lembraremos apenas que, com
essas considerações, atingimos os próprios limites da indefinitude espacial;
como é possível então, se quisermos guardar a lógica, falar ainda de infinito?
Ao considerarmos os números positivos e negativos como
acabamos de fazer, a série dos números toma a seguinte forma:
-h(...) –4,-3,-2,-1,0, 1,2,3,4, (...) + h,
sendo que a ordem destes números é a mesma dos
correspondentes pontos sobre a reta, ou seja pontos que tem estes números como
seus respectivos coeficientes, o que de resto marca a origem real da série
assim formada. Esta série, apesar de ser igualmente indefinida nos dois
sentidos, é completamente diferente da que vimos anteriormente e que
compreednia os números inteiros e seus inversos: ela é simétrica, não em
relação à unidade, mas em relação ao zero, que corresponde à origem das
distâncias; e, se dois números equidistantes deste termo central ainda o reproduzem, não é mais por
multiplicação como o fazíamos, mas por adição “algébrica”, tendo em conta seus
respectivos sinais, o que é aqui o equivalente aritmético de uma subtração. Por
outro lado, esta nova série não é absolutamente, como a anterior,
indefinidamente crescente num sentido e indefinidamente decrescente no
outro; se a considerarmos assim, será
apenas como “modo de dizer”, por sinal dos mais incorretos, assim como quando
se fala de “números menores do que zero”. Na realidade, essa série é
indefinidamente crescente nos dois sentidos igualmente, pois o que ela contém
de cada lado do zero central é a mesma série de números inteiros; o que se
chama de “valor absoluto”, expressão bastante sigular também, deve ser levado
em conta apenas do ponto de vista puramente quantitativo, e os sinais de
positivo e negativo não alteram nada a respeito, porque, na realidade, eles só exprimem
relações de “situação”, como já explicamos antes. O indefinido negativo não é
assim assimilável ao indefinidamente pequeno; ao contrário, ele é, assim como o
indefinido positivo, indefinidamente grande; a única diferença, e que näo é de
ordem quantitativa, é que ele se desenvolve em outra direção, o que é
perfeitamente concebível quando se trata
de grandezas espaciais ou temporais, mas totalmente desprovido de
sentido para as grandezas matemáticas, para as quais este dsenvolvimento é
necessariamente único, não podendo ser outra coisa que não a própria série dos
números inteiros.
Dentre outras conseqüências bizarras ou ilógicas da
notação dos números negativos, assinalaremos ainda a consideração das
quantidades ditas “imaginárias”, que foi introduzida pela resolução das
equações algébricas, as quais Leibnitz classificava dentre as suas “ficções bem
fundamentadas”, como fazia também com as quantidades infinitesimais; estas
quantidades, ou assim ditas quantidades, apresentam-se como as raízes dos números
negativos, o que na realidade não passa de uma imposibilidade pura e simples,
porque, seja um número positivo ou negativo, seu quadrado será sempre
necessariamente positivo, pelas simples regras da multiplicação algébrica.
Mesmo se fosse possível dar outro sentido a essas quantidades “imaginárias” e
faze-las corresponder a qualquer coisa de real, o que não examinaremos aqui, o
que é certo em todo o caso é que sua teoria e sua aplicação à geometria
analítica, tais como expostas pelos matemáticoa atuais, não passam de um tecido
de confusões e mesmo de absurdos, e como o produto de uma necessidade de
generalização excessiva e artificial que não recua nem mesmo diante do
enunciado de proposições manifestamente contraditórias; certos teoriema sobre
as “assimptóticas do círculo” mostram que não estamos exagerando. Pode-se
dizer, é verdade, que não se trata da geometria propriamente dita, mas somente
da consideração da “quarta dimensão” do espaço (5), de álgebra traduzida em
linguagem geométrica; mas o que é grave, precisamente, é que, por ser esta
tradução ou inversa possível e legítima numa certa medida, pretender-se
estende-la também a casos em que ela já não significa nada, o que é o sintoma
de uma grande confusão de idéias, ao mesmo tempo que o ápice de um “convencionalismo”
que chega a perder toda noção de realidade.
NOTAS
1. Da mesma forma, por
transposição analógica, toda a multiplicidade indefinida das possibilidades de
manifestação está contida em princípio e “eminentemente” no Ser puro ou na
Unidade metafísica.
2. Isto fica evidente se,
conforme a lei geral de formação da série dos números, representamos esta
passagem pela fórmula 0 + 1 = 1.
3. “Nota sobre as quantidades
negativas”, nota ao final de Réflexions
sur la Métaphysique du Calcul infinitésimal, pg. 173.
4. Ver O Reino da quantidade e os sinais dos tempos, cap. IV. – Podemos
nos perguntar se não existe uma lembrança inconsciente desse caráter
qualitativo no fato de os matemáticos modernos designarem às vezes os números
tomados “com seus sinais”, ou seja como positivos ou negativos, como “números
qualificados”, embora eles pareçam não se dar conta do sentido desta expressão.
5. Cf. O Reino da quantidade e os sinais dos tempos, cap. XVIII e XXIII.
XVII
REPRESENTAÇÃO DO EQUILÍBRIO DE FORÇAS
A propósito dos números negativos, e embora seja
apenas uma digressão em relação ao objeto de nosso estudo, falaremoa ainda
sobre as conseqüências nada contestáveis do emprego destes números do ponto de
vista da mecanica; esta, aliás, é por seu objeto uma ciência física, e o fato
de tratá-la como uma parte integrante das matemáticas (conseqüência do ponto de
vista exclusivamente quamtitativo da ciência atual) não deixa de introduzir
nela estranhas deformações. Diremos apenas, a este respeito, que os pretensos
“princípios”sobre os quais os matemáticos modernos fazem repousar esta ciência
tal como a concebem, não são propriamente mais do que hipóteses mal ou bem
fundamentadas, ou ainda, nos casos mais favoráveis, simples leis mais ou menos
gerais, algumas mais gerais do que outras, mas que nada tem em comum com os
verdadeiros princípios universais, e que, numa ciência constituída sobre bases
tradicionais, não passariam de aplicações destes princípios a um domínio
bastante particular. Sem entrarmos em grandes desenvolvimentos, citaremos como
exemplo do primeiro caso o assim chamado “princípio da inércia”, que nada
poderia justificar, nem a experiência que ao contrário mostra que não há
inércia em parte alguma na natureza, nem o entendimento que é incapaz de conceber
esta inércia, que só pode constituir a ausência completa de toda e qualquer
propriedade; tal palavra só poderia ser aplicada de forma legítima à pura
potencialidade da substância universal, ou à materia prima dos escolásticos, que aliás é por esta mesma razão
“ininteligível”; mas esta materia prima
é coisa bem diferente da “matéria” dos físicos (1). Um exemplo do segundo caso
é o que se chama de “princípio da igualdade da ação e da reação”, que se deduz
imediatamente da lei geral do equilíbrio das forças naturais: cada vez que este
equilíbrio é rompido, ele tende logo a se restabelecer, de onde provém uma
reação cuja intensidade é equivalente à da ação que a provocou; trata-se de um
simples caso particular daquilo que a tradição extremo-oriental chama de “ações
e reações concordantes”, que não dizem respeito apenas ao mundo corporal como
as leis mecânicas, mas ao conjunto da manifestçaõ em todos os seus modos e
estados; é precisamente sobre esta questão do equilíbrio e de sua representação
matemática que nos propomos insistir ainda um pouco, pois ela é bastante
importante.
Usa-se representar duas forças que se equilibram por
dois “vetores” opostos, ou seja dois segmentos de reta de igual comprimento,
mas dirigidos em sentido contrário: se duas forças, aplicadas sobre um mesmo
ponto, tem a mesma intensidade e a mesma direção, mas em sentidos contrários,
elas se equilibram; como então elas não agem sobre o ponto de aplicação, diz-se
comumente que elas se destroem, sem levar em conta que, se uma delas for suprimida,
a outra agirá imediatamente, o que mostra que ela não foi realmente destruída.
Essas forças são caracterizadas por coeficientes numéricos proporcionais às
suas intensidades respectivas, e duas forças com sentidos contrários são
marcadas por coeficientes de sinais diferentes, um positivo e outro negativo:
se uma for f, a outra será –f’. No caso que estamos considerando, se
as duas forças tiverem a mesma intensidade, os coeficientes que as caracterizam
devem ser iguais “em valor absoluto”, e teremos que f = f’, donde se deduz,
como condição de equilíbrio, que f – f’ = 0, ou seja que a soma algébrica das
duas forças, ou dos dois “vetores” que as representam, é nula, de tal sorte que
o equilíbrio é assim definido pelo zero. Os matemáticos têm, aliás, o mau
costume de ver o zero como uma espécie de símbolo de nada - como se o nada
pudesse ser representado pelo que quer que seja -, donde resulta que o
equilíbrio corresponde ao estado de não-existência, o que é uma conseqüência
bastante singular; é sem dúvida por esta razão que eles, ao invés de dizer que
duas forças que se equilibram se neutralizam, dizem que elas se destroem, o que
contraria a realidade, como veremos por uma observação muito simples.
A verdadeira noção de equilíbrio é bastante diferente disso;
para compreendê-la, basta lembrar que todas as forças naturais, e não apenas as
forças mecânicas (que, repetimos, não passam de um caso particular) mas também
as forças de ordem sutil tanto quanto as de ordem corporal, são ou atrativas ou
repulsivas; as primeiras podem ser consideradas como forças compressivas ou de
contração e as segundas como forças expansivas ou de dilatação (2); no fundo,
isto não passa de uma expressão, neste domínio específico, da própria dualidade
cósmica fundamental. É fácil de compreender que, num meio originalmente
homogêneo, a toda compressão produzida num ponto corresponderá necessariamente
uma expansão equivalente em outro ponto e vice-versa, de modo que devemos
sempre considerar dois centros de forças, dos quais um não pode existir sem o
outro; é oq eu podemos chamar de lei da polaridade, a qual, sob diversas
formas, aplica-se a todos os fenômenos naturais, porque ela deriva igualmente
da dualidade dos princípios que regem toda a manifestação; esta lei, dentro do
domínio específico de que se ocupam os físicos, é sobretrudo evidente nos
fenômenos elétricos e magnéticos, mas ela não se limita a eles. Agora, se estas
duas forças, uma compressiva e outra expansiva, agirem sobre um mesmo ponto, a
condição para que elas se equilibrem ou se neutralizem, ou seja, para que neste
ponto não ocorra nem contração nem dilatação, é que as intensidades destas duas
forças sejam equivalentes; não dizemos
iguais, porque elas são de espécies diferentes, e esta é uma diferença
realmente qualitativa e não simplesmente quantitativa. Podemos caracterizar as
forças por coeficientes proporcionais à contração ou à dilatação que elas
produzem, de tal modo que, se considerarmos uma força compressiva e uma força
expansiva, a primeira será marcada com um coeficiente n>1, e a segunda por um coeficiente n’<1; cada um destes coeficientes pode ser a densidade que toma
o meio ambiente no ponto considerado, sob a ação da força correspondente, em
relação à densidade original deste mesmo meio, suposto homogêneo enquanto não
sofre a ação de nenhuma força, por uma simples aplicação do princípio da razão
suficiente (3). Enquanto não se produz nem compressão nem dilatação, esta
relação é forçosamente igual à unidade, pois a densidade do meio não é
modificada; para que duas forças estejam em equilíbrio, é preciso portanto que
sua resultante tenha como coeficiente a unidade. É fácil ver que o coeficieinte
desta resultante é o produto, e não mais a soma como na concepção vulgar, dos
coeficientes das duas forças consideradas; estes dois ncoeficientes n e n’
deverão assim ser números inversos um do outro: n’=(1/n), e teremos como
condição de equilíbrio que n.n’=1;
assim, o equilíbrio será definido, não mais pelo zero, mas pela unidade (4).
Vemos que esta condição do equilíbrio pela unidade, que é
a única real, corresponde ao fato que a unidade ocupa o ponto central dentro da
série duplamente indefinida dos números inteiros e de seus inversos, enquanto
que este lugar central é de certa froam usurpado pelo zero dentro da série artificial
dos números positivos e negativos. Bem longe de ser o estado de não-existência,
o equilíbrio é ao contrário a existência considerada em si mesm,
independentemente de suas manifestações secundárias e múltiplas; de resto, deve ficar entendido que não se
trata do Não-Ser, no sentido metafísico do termo, pois a existência, mesmo em
seu estado primordial indiferenciado, não é senão o ponto de partida de todas
as manifestações diferenciadas, como a unidade é o ponto de partida de toda a
multiplicidade dos números. Esta unidade, tal como a consideramos agora, e na
qual reside o equilíbrio, é o que a tradição extremo-oriental chama de
“Invariável Meio”; e, segundo esta mesma tradição, este equilíbrio ou esta
harmonia é, no centro de cada estado e de cada modalidade do ser, o reflexo da
“Atividade do Céu”.
NOTAS
1. Cf. Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps, cap. II.
2.
Se considerarmos
a noção comum das forças centrípetas e centrífugas, veremos sem dificuldade que
as primeiras se referem às forças compressivas e as segundas às forças
expansivas; da mesma forma, uma força de tração é assimilável a uma força
expansiva, porque ela se exerce a partir de seu ponto de aplicação, e uma força
de impulsão ou de choque é assimilável a uma força compressiva, porque ela se
exerce ao contrário sobre este mesmo ponto de aplicação; mas, vista em relação
ao ponto de emissão, é o inverso que acontece, o que aliás concorda com a lei
de polaridade. Num outro domínio, a “coagulação” e a “solução” herméticas
correspondem respectivamente à compressão e à expansão.
3.
Deve ficar claro
que, quando falamos aqui do principio da razão suficiente, estamos
considerando-o unicamente em si mesmo, fora de todas as formas específicas e
mais ou menos contestáveis que Leibnitz e outros lhe atribuiram.
4.
Esta fórmula
corresponde exatamente à concepção do equilíbrio dos dois princípios
complementares yang e yin na cosmologia extremo-oriental.
XVIII
QUANTIDADES VARIÁVEIS E QUANTIDADES FIXAS
Voltemos agora à questão da justificativa do rigor do
cálculo infinitesimal: já vimos que Leibnitz considera como iguais as
qunatidades cuja diferença, sem ser nula, é incomparável com estas próprias
quantidades; em outros termos, as quantidades infinitesimais, que não são “nihila absoluta”, são entretanto “nihila respectiva”, e devem assim ser
desprezadas em relação às quantidades ordinárias. Infelizmente, a noção dos
“incomparáveis” permanece muito imprecisa para que um raciocínio que só se
apóie nesta noção baste plenamente para estabelecer o caráter rigoroso do
cálculo infinitesimal; sob este aspecto, o cálculo apresenta-se como não mais
do que um método de aproximação indefinida, e não podemos dizer, como Leibnitz,
que “isto posto, segue-se que o erro é não apenas infinitamente pequeno, mas
inteiramente nulo” (1); mas não há outro modo mais rigoroso para se chegar a
esta conclusão? Devemos admitir, em todo caso, que o erro introduzido no
cálculo pode ser tornado tão pequeno quanto se queira, o que já é bastante;
mas, precisamente, este caráter infinitesimal do erro não o suprime
completamente quando consideramos, não mais o curso do cálculo, mas os
resultados aos quais ele permite chegar finalmente?
Uma diferença infinitesimal, ou seja indefinidamente
decrescente, só pode ser a diferença entre duas quantidades variáveis, pois é
evidente que a diferença entre duas quantidades fixas só pode ser uma
quantidade fixa; a consideração de uma diferença infinitesimal entre duas
quantidades fixas não faz sentido. É claro que podemos dizer que duas
quantidades fixas “são rigorosamente iguais entre si a partir do momento em que
sua diferença possa ser considerada tão pequena quanto se queira (2); ora, “o
cálculo infinitesimal, como o cálculo ordinário, não tem em vista senão
quantidades fixas e determinadas” (3); ele só introduz as quantidades variáveis
a título de auxiliares, com um caráter puramente transitório, e estas variáveis
devem desaparecer dos resultados, que só podem exprimai relações entre
quantidades fixas. É preciso então, para obter estes resultados, passar da
consideração das quantidades variáveis à das quantidades fixas; e esta passagem
tem por efeito precisamente eliminar as quantidades infinitesimais, que são
essencialmente variáveis, e que só podem se apresentar como diferenças entre
quantidades variáveis.
É fácil compreender agora porque Carnot, na definição que
citamos precedentemente, insiste na propriedade que possuem as quantidades
infinitesimais, tais como são empregadas nos cálculos, de poderem ser
consideradas tão pequenas quanto se queira “sem que sejamos obrigados porisso a
fazer variar as quantidades cuja relação buscamos”. É que estas últimas devem
ser em realidade quantidades fixas; é verdade que elas são consideradas no
cálculo como limites das quantidades variáveis, mas estas não desempenham mais
do que um papel de simples auxiliares, assim como as quantidades infinitesimais
que elas introduzem consigo. O ponto essencial, para justificar o rigor do
cálculo infinitesimal, é que, no resultado, só devem figurar quantidades fixas;
é preciso então, ao final do cálculo, passar das quantidades variáveis às
quantidades fixas, e esta é bem a “passagem ao limite”, mas concebida de modo
diverso do que fazia Leibnitz, por não serem a conseqüência ou o “último termo”
da própria variação; ora, e é isso o que importa, as quantidades
infinitesimais, nesta passagem, eliminam-se entre si, e isto simplesmente em
razão da substituição das quantidades variáveis pelas quantidades fixas (4).
Devemos ver nesta eliminação, como queria Carnot, apenas o
efeito de uma simples “compensação de erros”? Não pensamos assim, e parece que
é possível ver aí em realidade algo a mais, a partir do momento em que fazemos
a distinção entre as quantidades fixas e as variáveis como constituindo de
certo modo dois domínios separados, entre os quais existe sem dúvida uma
correlação e uma analogia, o que é aliás necessário para que se possa passar de
uma a outra, como quer que se dê esta passagem, mas sem que suas relações reais
possam estabelecer entre elas uma interpenetração ou mesmo uma continuidade
qualquer; isto implica de resto, entre estas duas espécies de quantidades, uma
diferença de ordem esssencialmente qualitativa, conforme o que dissemos antes a
respeito da noção de limite. É esta distinção que Leibnitz jamais fez
claramente, e, aqui ainda, é sem dúvida sua concepção de uma continuidade
universalmente aplicada que o impediu; ele não podia ver que a “passagem ao
limite” implica essencialmente uma descontinuidade, pois, para ele, não havia
descontinuidade em parte alguma. É no entanto somente essa distinção que nos
permite formular a proposição seguinte: se a diferença de duas quantidades
variáveis pode ser tornada tão pequena quanto se queira, as quantidades fixas
que correspondem a estas variáveis, e que são vistas como seus respectivos
limites, são rigorosamente iguais. Assim, uma diferença infinitesimal não pode
jamais tornar-se nula, mas sópode existir entre duas variáveis, e, entre as
quantidades fixas correspondentes, a diferença deve ser nula; daí, resulta
imediatamente que, a um erro que possa ser tornado tão pequeno quanto se queira
no domínio das quantidades variáveis, onde não pode efetivamente tratar-se (em
razão do próprio caráter destas quantidades) de nada além de uma aproximação
indefinida, corresponde necessariamente um erro rigorosamewnte nulo no domínio
das quantidades fixas; está aí unicamente, e não em outras considerações, que,
quaisquer que sejam, estão sempre mais ou menos fora ou lateralmente à questão,
que rteside essencialmente a verdadeira justificativa do rigor do cálculo
infinitesimal.
NOTAS
1. Fragmento datado de 26 de
março de 1676
2. Carnot, Réflexions sur la Métaphysique du Calcul
infinitésimal, pg 29.
3. Ch. De Freycinet, De l’Analyse infinitésimale, Prefácio,
pg. VIII.
4. Ch. De Freycinet, ibid.,
pg.220 : « As equações chamadas « imperfeitas » por Carnot
são, propriamente falando, equações de espera ou de transição, que são
rigorosas na medida em que não sirvam ao cálculo dos limites, e que seriam, ao
contrário, absolutamente inexatas, se os limites não tivessem quye ser
atingidos efetivamente. Basta lembrar a destinação efetiva dos cálcuulos para
não ter nenhuma incerteza sobre o valor das relações pelas quais se passa. É
preciso verem cada uma delas, não o que elas parecem exprimir de fato, mas
aquilo que elas irão exprimir adiante, quando se tomar os limites ».
XIX
AS DIFERENCIAÇÕES SUCESSIVAS
O que dissemos deixa ainda subsistir uma dificuldade no
que concerne a consideração das diferentes ordens de quantidades infinitesimais:
como podemos conceber quantidades que sejam infinitesimais, não apenas em
relação às quantidades ordinárias, mas em relação a outras quantidades que
sejam, elas mesmas, infinitesimais? Aqui ainda, Leibnitz recorreu à noção dos
“incomparáveis”, mas esta noção é por demais vaga para que possamos nos
contentar com ela, e ela não explica suficientemente a possibilidade das
diferenciações sucessivas. Sem dúvida, esta possibilidade pode ser melhor
compreendida por uma comparação ou um exemplo tirado da mecânica: “Quanto aos d d x, eles estão para d x como os conatus do peso ou as solicitações centrífugas estão para a
velocidade” (1). E Leibnitz desenvolve esta idéia na resposta às objeções do
matemático holandês Nieuwentijt, que, mesmo admitindo os dife5enciais de
primeira ordem, sustentava que os das ordens superiores não poderiam ser senão
nulos: “A quantidade ordinárias, a quantidade infinitesimal primeira ou
diferencial, e a quantidade diferencio-diferencial ou infinitesimal segunda,
estão entre si como o movimento, a velocidade e a solicitação, que é um
elemento da velocidade (2). O movimento descreve uma linha, a velocidade um
elemento da linha, e a solicitação um elemento do elemento” (3). Mas isto não
passa de um exemplo ou um caso particular, que pode servir de simples
“ilustração” e não de argumento, e é preciso fornecer uma justificativa de
ordem geral, que este exemplo, num certo sentido, contém aliás implicitamente.
De fato, os diferenciais de primeira ordem representam os
aumentos, ou melhor as variações, porque podem estar, conforme o caso, tanto no
sentido decrescente como no crescente, que recebem a cada instante as
quantidades ordinárias: é o que acontece com a velocidade em relação ao espaço
percorrido num movimento qualquer. Do mesmo modo, os diferenciais de uma certa
ordem representam as variações instantâneas daquelas da ordem precedente,
tomadas por sua vez como grandezas existentes dentro de um certo intervalo: é o
que acontece com a aceleração em relação à velocidade. É portanto sobre a consideração
dos diferentes graus de variação, mais do que das grandezas incomparáveis entre
si, que repousa verdadeiramente a distinção das diferentes ordens de
quantidades infinitesimais.
Para deixar claro o modo como isto deve ser entendido,
faremos a seguinte observação: podemos estabelecer, dentre as próprias
variáveis, distinções análogas à que estabelecemos precedentemente entre as
quantidades fixas e as variáveis; nestas condições, para retomar a definição de
Carnot, uma quantidade será dita infinitesimal em relação a outras quando
pudermos torná-la tão pequena quanto se queira “sem que por isso sejamos
obrigados a fazer variar as outras quantidades”. É que, com efeito, uma
quantidade que não é absolutamente fixa, ou mesmo que é essencialmente variável
(o que é o caso das quantidades infinitesimais, sejam de que ordem forem) pode
ser vista como relativamente fixa e
determinada, ou seja susceptível de desempenhar o papel de quantidade fixa em
relação a determinadas outras variáveis. É apenas nestas condições que uma
quantidade variável pode ser considerada como o limite de uma outra variável, o
que, segundo a própria definição delimite, supõe que ela seja considerada como
fixa, aomenos sob um certo aspecto, ou seja em relação àquilo de que ela é o limite; inversamente, uma
quantidade poderá ser variável, nnão apenas em si mesma, ou, o que vem a ser o
mesmo, em relação às quantidades absolutamente fixas, mas ainda em relação a
outras variáveis, na medida em que estas últimas possam ser vistas como relativamente
fixas.
Ao invés de falarmos a este respeito dos graus de variação
como já fizemos, podemos falar também de
graus de indeterminação, o que, no fundo, seria exatamente a mesma coisa,
apenas vista de um ponto de vista algo diferente: uma quantidade, mesmo
indeterminada em sua natureza, pode no entanto ser determinada, num sentido
relativo, pela introdução de certas hipóteses, que deixam ao mesmo tempo
subsistir a indeterminação de outras quantidades; estas últimas serão assim, se
podemos dizê-lo, mais indeterminadas que as outras, ou indeterminadas num grau
superior, e assim elas poderão ter com aquelas uma relação semelhante à que as
qunatidades indeterminadas tem com as quantidades verdadeiramente determinadas.
Nós nos limitaremos as estas poucas indicações a esse respeito, pois, por
sumárias que sejam, achamos que são suficientes ao menos para permitir
compreender a possibilidade da existência de diferenciais de diversas ordens
sucessivas; mas resta-nos ainda, em conexão com esta mesma questão, mostrar de
forma explícita que não existe realmente nenhuma dificuldade lógica em
considerar graus múltiplos de indefinição, tanto na ordem das quantidades
decrescentes (que é aquela à qual pertencem os infinitesimais ou os
diferenciais), como na das quantidades crescentes, onde podemos considerar as
integrais de diferentes ordens, simétricas de certa forma em relação aos
diferenciuais sucessivos, o que aliás concorda com a correlação que existe,
como já explicamos, entre o indefinidamente crescente e o indefinidamente
decrescente. Bem entendido, trata-se aí de graus de indefinição, e não de
“graus de infinitude” tal como os entendia Jean Bernoullli, cuja concepção a
respeito Leibnitz não ousou nem admitir nem rejeitar; e este caso é mais um em
que as dificuldades sãoimediateamente resolvidas pela substituição do pretenso
infinito pela noção de indefinido.
NOTAS
1. Carta a Huygens, 1 de
Outubro de 1693
2. Esta
« solicitação » e o que se designa habitualmente pelo nome de
« aceleração ».
3.
Responsio ad
nonnullas difficultattes a Dn. Bernardo Nieuwwntij circa Methodum diferentialem seu
infinitesimalem motas, em Acta Eruditorum de Leipzig, 1695.
XX
DIFERENTES ORDENS DE INDEFINIÇÃO
As dificuldades lógicas e mesmo as contradições com que se
debatem os matemáticos, quando eles consideram quantidades “infinitamente
grandes” ou “infinitamente pequenas” diferentes entre si e mesmo pertencentes a
ordens distintas, provém apenas do fato de que eles consideram como infinito
aquilo que é simplesmente indefinido; é verdade que, em geral, eles parecem se
preocupar pouco com essas dificuldades, mas nem por isso elas deixam de existir
ou se tornam menos graves, e elas fazem com que sua ciência pareça cheia de
ilogismos, ou, se se preferir, de “paralogismos”, que fazem com que perca todo
o valor e alcance aos olhos daqueles que não se deixam iludir pelas palavras.
Eis alguns exemplos das contradições que são introduzidas pelos que admitem a
existência de grandezas infinitas, quando se trata de aplicar esta noção às
grandezas geométricas: se considerarmos uma linha, uma reta por exemplo, como
infinita, este infinito deve ser menor (e deve mesmo ser infinitamente menor),
do que o constituído por uma superfície, tal como um plano, no qual esta linha
estará contida em meio a uma infinidade de outras, e este segundo infinito, por
sua vez, será infinitamente menor do que aquele da extensão em três dimensões.
A própria possiblidade da coexistência de todos estes pretensos infinitos, dos
quais alguns estão no mesmo nível e outros estão em níveis diferentes, deveria
bastar para demonstrar que nenhum deles pode ser verdadeiramente infinito,
mesmo sem entrarmos em nenhuma consideração de ordem metafísica; de fato, nunca
é demais repetir, é evidente que, se supomos uma pluralidade de infinitos
distintos, cada um deles será limitadoi pelos outros, o que equivale a dizer
que eles se excluem mutuamente. Aliás, a bem, dizer, os “infinitistas” (dentre
quem esta acumulação puramente verbal de uma “infinidade de infinitos” parece
produzir uma espécie de, digamos, “intoxicação mental”) não recuam diante
dessas contradições, porque, como já dissemos, eles não vêem dificuldade em
admitir que existem diferentes números infinitos, e que, por conseguinte, um
infinito pode ser maior ou menos do que outro; mas o absurdo destes enunciados
é mais do que evidente, e o fato deles serem utilizados correntemente pelos
matemáticos atuais mostra apenas a que ponto a mais elementar noção de lógica
perdeu-se em nossa época. Uma outra contradição ainda, não menor do que essa, é
a que se apresenta no caso de uma superfície fechada, portanto evidente e
visivelmente finita, e que deveria não obstante conter uma infinidade de
linhas, como, por exemplo, uma esfera que contenha uma infinidade de círculos;
teremos aqui um continente finito, cujo conteúdo seria infinito, o que acontece
também aliás quando se sustenta, como o fez Leibnitz, a “infinidade atual” dos
elementos de um conjunto contínuo.
Ao contrário, não há contradição alguma em admitir a
coexistência de múltiplas indefinidades de diferentes ordens: é assim que a
linha, indefinida segundo uma só dimensão, pode ser considerada como
constituindo uma indefinidade simples ou de primeira ordem; a superfície,
indefinida segundo duas dimensões, e que compreende uma indefinidade de linhas
indefinidas, será uma indefinidade de segunda ordem, e a extensão
tridimensional, que pode conter uma indefinidade de superfícies indefinidas,
será uma indefinidade de terceira ordem. É essencial frisar aqui que dizemos a
superfície compreende uma indefinidade de linhas, mas não que ela é constituída
por uma indefinidade de linhas, assim como uma linha não é composta por pontos,
embora contenha uma multitude indefinida deles; o mesmo acontece com o volume
em relação às superfícies, e a extensão tridimensional não é outra coisa que um
volume indefinido. Está aí, no fundo, aquilo que já dissemos a respeito dos
“indivisíveis” e da “composição do contínuo”; as questões deste tipo, em razão
de sua complexidade, são daquelas que fazem mais sentir a falta de uma
linguagem rigorosa. Acrescentemos ainda a respeito que, se podemos
legitimamente considerar, de um certo ponto de vista, a linha formada por um
ponto, a superfície por uma linha e o volume por uma superfície, isto supõe
essencialmente que este ponto, esta linha ou esta superfície se deslocam por um
movimento contínuo, compreendendo uma indefinidade de posições sucessivas; e
isto é bem diferente do que considerar estas posições isoladamente umas das
outras, ou seja, os pontos, linhas e superfícies vistos como fixos e
determinados, constituindo respectivamente partes ou elementos da linha, da
superfície e do volume. Da mesma forma, quando consideramos, em sentido
inverso, uma superfície como a intersecção de dois volumes, uma linha como a
intersecção de duas superfícies e um ponto como intersecção de duas linhas,
deve ficar entendido que estas intersecções não devem ser concebidas como sendo
partes comuns a estes volumes, superfícies ou linhas; como dizia Leibnitz, elas
são apenas seus limites ou extremidades.
A partir do que já dissemos, cada dimensão introduz um
novo grau de indeterminação na extensão, ou seja no continuum espacial considerado como susceptível de crescer
indefinidamente em extensão, e obtemos Assim o que podemos chamar de potências
sucessivas do indefinido (1); e podemos dizer também que uma indefinidade de
uma certa ordem ou a uma certa potência contém uma multitude indefinida de
indefinitudes de uma ordem inferior ou a uma potência menor. Na medida em que
se trata de indefinido, todas essas considerações e outras do gênero permanecem
perfeitamente aceitáveis, pois não existe nenhuma incompatibilidade lógica
entre indefinitudes múltiplas e distintas, as quais, por serem indefinidas, não
deixam por isso de possuir uma natureza essencialmente finita, portanto
perfeitamente capaz de coexistir, como possibilidades particulares e
determinadas, no interior da Possibilidade total, a única que é infinita, por
ser idêntica ao Todo universasl (2). Estas mesmas considerações só tomam uma forma
impossível e absurda pela confusão entre o infinito e o indefinido; assim,
trata-se de mais um caso onde, como no caso da “multitude infinita”, a
contradição inerente a um suposto infinito determinado esconde, deformando-a
até torná-la irreconhecível, uma outra idéia que não tem nada de contraditório
em si mesma.
Falamos de diferentes graus de indeterminação das
quantidades no sentido crescente; é através desta mesma noção, considerada no
sentido decrescente, que justificamos mais acima a consideração das diversas
ordens de quantidades infinitesimais, cuja possibilidade compreende-se assim
nais facilmente ainda observando-se a correlação que assinalamos entre o
indefinidamente crescente e o indefinidamente decrescente. Dentre as
quantidades indefinidas de diferentes ordens, aquelas de uma ordem outra que a
primeira são sempre indefinidas em relação às das ordens precedentes tanto
quanto o são em relação às quantidades ordinárias; é legítimo considerar
também, em sentido inverso, quantidades infinitesimais de diferentes ordens,
sendo as de cada ordem infinitesimais, não apenas em relação às quantidades
ordinárias, mas ainda em relação às quantidades infinitesimais das ordens
precedentes (3). Não existe heterogeneidade absoluta entre as quantidades
indefinidas e as quantidades ordinárias, nem entre estas e as quantidades
infinitesimais; existem apenas diferenças de grau, não de natureza, pois, em
realidade, a consideração do indefinido, de qualquer ordem ou em qualquer
potência, jamais nos faz sair do finito; é ainda a falsa concepção de infinito
que introduz em aparência, entre estas diferentes ordens de quantidades, uma
heterogeneidade radical que, no fundo, é totalmente incompreensível. Ao
suprimir esta heterogeneidade, estabelece-se uma espécie de continuidade, mas
bem diferente daquela que Leibnitz considerava entre as variáveis e seus
limites, e muito melhor fundamentada na realidade, pois a distinção das
quantidades variáveis e das quantidades fixas implica ao contrário uma
verdadeira diferença de natureza.
Nessas condições, as próprias quantidades ordinárias
podem, ao menos quando se trata de variáveis, ser consideradas de certa forma
como infinitesimais, em relação às quantidades indefinidamente crescentes,
pois, se uma quantidade pode ser tornada tão grande quanto se queira em relação
a uma outra, esta última se torna inversamente tão pequena quanto se queira em
relação à primeira. Introduzimos a restrição de que deve se tratar de
variáveis, porque uma quantidade infinitesimal deve sempre ser considerada como
essencialmente variável, sendo isto inerente à sua natureza mesma; de resto,
quantidades pertencentes a duas ordens diferentes de indefinitude são
forçosamente variáveis uma em relação à outra, e esta propriedade de
variabilidade relativa e recíproca é perfeitamente simétrica, pois, de acordo
com o que dissemos, dá na mesma considerar uma quantidade como sendo
indefinidamente crescente em relação a uma outra, ou esta última como
indefinidamente decrescente em relação à primeira; sem esta variabilidade
relativa, não haveria nem crescimento nem decrescimento indefinido, mas sim
relações definidas e determinadas entre as duas quantidades.
É a mesma coisa que acontece quando, numa mudança de
situação entre dois corpos A e B, tanto faz (ao menos quando não se considera
nada além do que esta mudança) dizer que o corpo A se move em relação ao B, ou
inversamente, que o corpo B se move em relação ao A; a noção do movimento
relativo não é menos simétrica, a este respeito, do que a variabilidade
relativa que consideramos aqui. É porisso que, segundo Leibnitz (que com isto
demonstrava a insuficiência do mecanismo cartesiano como teoria física que
pretendia fornecer uma explicação dos fenômenos naturais), não se pode
estabelecer distinção entre um estado de movimento e um estado de repouso se
nos limitarmos a considerar as mudanças de situação; é preciso para tanto fazer
intervir algo de outra ordem, a saber a noção de força, que é a causa próxima
destas mudanças, e que é a única que pode ser atribuída a um corpo e não a
outro, permitindo encontrar neste corpo e apenas nele a verdadeira razão da
mudança (4).
NOTAS
1. Cf. O Simbolismo da Cruz, cap. XIII.
2. Cf. Os Estados Múltiplos do Ser, Cap. I.
3.
Reservamos, como
se faz habitualmente, a denominação de “infinitesimais” para as quantidades
indefinidamente decrescentes, à exclusão das quantidades indefinidamente
crescentes, as quais, para abreviar, podemos chamar simplesmente “indefinidas”;
é curioso que Carnot tenha reunido todas sob o mesmo nome de “infinitesimais”,
o que contraria não apenas o uso, mas o próprio sentido inerente à formação do
termo. Mesmo conservando o termo “infinitesimal” após definirmos seu
significado como fizemos, devemos ainda observar que este termo tem o
inconveniente de derivar da palavra “infinito”, o que o torna pouco adequado à
idéia que ele exprime realmente; para empregá-lo sem inconveniente, devemos
esquecer sua origem e nos fixar unicamente em seu caráter “histórico”, como
proveniente da concepção que Leibnitz fazia de suas “ficções bem fundadas”.
4.
Ver Leibnitz, Discours de Métaphysique, cap. XVIII;
cf. O Reino da Quantidade e os Sinais dos
Tempos, cap. XIV.
XXI
O INDEFINIDO É INESGOTÁVEL ANALITICAMENTE
Nos dois casos que consideramos, o indefinidamente
crescente e o indefinidamente decrescente, uma quantidade de uma certa ordem
pode ser vista como a soma de uma indefinidade de elementos, dos quais cada um
é uma quantidade infinitesimal em relação a esta soma. Para que se possa falar
de quantidades infinitesimais, é de resto necessário que se trate de elementos
não determinados em relação à sua soma, e é isto o que acontece a partir do
momento em que esta soma é indefinida em relação a estes elementos; isto
resulta diretamente do caráter essencial do próprio indefinido, na medida em
que este implica forçosamente, como já dissemos, a idéia de “devir”, e por
conseguinte uma certa indeterminação. É aliás evidente que esta indeterminação
pode ser relativa e só existir de um certo ponto de vista ou em relação a
alguma coisa: tal é por exemplo o caso de uma soma que, sendo uma quantidade
ordinária, não é indefinida em si mesma, mas apenas em relação aos seus
elementos infinitesimais; mas em todo caso, se fosse de outro modo e não
fizéssemos intervir a noção de indeterminação, seríamos levados simplesmente à
noção dos “incomparáveis”, interpretada no sentido grosseiro do grão de areia
em relação à terra, e da terra em relação ao firmamento.
A soma de que falamos aqui não pode ser efetuada ao modo
de uma soma aritmética, porque para isto seria preciso que uma série indefinida
de adições sucessivas fosse completada, o que é contraditório; no caso em que a
soma é uma quantidade ordinária e determinada como tal, é preciso evidentemente
(como já dissemos ao formularmos a definição do cálculo integral) que o número
(ou antes a multitude) dos elementos cresça indefinidamente ao mesmo tempo em
que a grandeza de cada qual descresce indefinidamente e, neste caso, a
indefinitude destes elementos é verdadeiramente inesgotável. Mas, se esta soma
não pode ser efetuada deste modo, como resultado final de uma multitude de
operações distintas e sucessivas, ela pode ao contrário efetuar-se de um só
golpe e por uma operação única, que é a integração (1); esta é a operação
inversa da diferenciação, porque ela reconstitui a soma a partir de seus
elementos infinitesimais, enquanto que a diferenciação vai ao contrário no
sentido da soma para os elementos, ao fornecer o meio de formular a lei das
variaçôes instantâneas de uma quantidade cuja expressão é dada.
Assim, desde que se trate do indefinido, a noção de soma
aritmética não é mais aplicável, e é preciso recorrer à noção de integração para compensar esta
impossibilidade de “numerar” os elementos infinitesimais, impossibilidade que,
bem entendido, resulta de sua própria natureza e não de uma imperfeição
qualquer de nossa parte. Podemos lembrar de passagem que existe, no que diz
respeito à sua aplicação às grandezas
geométricas (que é aliás a verdadeira razão de ser de todo o cálculo
infinitesimal), um método de medida que é completamente diferente do método
habitual fundado sobre a divisão de uma grandeza em porções definidas, de que
já falamos a propósito das “unidades de medida”. Este método corresponde
sempre, em suma, a substituir de certo modo o contínuo pelo descontínuo, por
este “desdobramento” em porções iguais à grandeza de mesma espécie tomada como
unidade (2), a fim de poder aplicar diretamente o número à medida das grandezas
contínuas, o que só pode ser feito alterando a sua natureza para torná-la, por
assim dizer, assimilável àquela do número. Ao contrário, o outro método
respeita, na medida do possível, o caráter próprio do contínuo, considerando-o
como uma soma de elementos, não mais fixos e determinados, mas essencialmente
variáveis e capazes de decrescer, em sua variação, abaixo de qualquer grandeza
assinalável, permitindo assim fazer variar a quantidade espacial entre limites
tão aproximados quanto se queira, o que é, levando-se em conta a natureza do
número que apesar de tudo não pode ser alterada, a representação menos
imperfeita que se pode dar de uma variação contínua.
Estas observações permitem compreender de modo mais
preciso em que sentido se pode dizer, como fizemos ao princípio, que os limites
do indefinido jamais podem ser atingidos por um procedimento analítico, ou, em
outros termos, que o indefinido é, não absolutamente inesgotável por qualquer
processo que seja, mas ao menos inesgotável analiticamente. Naturalmente
devemos considerar como analítico, a este respeito, o procedimento que consiste
em tomar os elementos distinta e sucessivamente para reconstituir um todo: tal
é o procedimento para a formação de uma soma aritmética, e é essencialmente
nisto que a integração se diferencia dela. Isto é particularmente interessante
de nosso ponto de vista, pois vemos aí, por um exemplo bastante claro, o que
são as verdadeiras relações entre a análise e a síntese: contrariamente à
opinião corrente, segundo a qual a análise seria de certa forma preparatória
para a síntrese e conduziria a ela, de tal maneira que se deveria sempre
começar pela análise (mesmo quando não se pretende permanecer nela), a verdade
é que não se pode chegar efetivamente à síntese partindo da análise; toda
síntese, no sentido verdadeiro do termo, é por assim dizer qualquer coisa de
imediato, que não é precedida de nenhuma análise e é inteiramente independente
dela, assim como a integração é uma operação que se efetua de um só golpe e que
não pressupõe a consideração de elementos comparáveis aos de uma soma
aritmética; e, como esta soma aritmética não pode fornecer o meio de atingir e
esgotar o indefinido, existem, em todos os domínios, coisas que resistem por
sua própria natureza a toda análise e cujo conhecimento só é possível pela
síntese (3).
NOTAS
1. Os termos « integral »
e « integração », cujo uso prevaleceu, não são de Leibnitz mas de
Jean Bernoulli; Leibnitz usava os termos de « soma » e
« somatória », que tem o inconveniente de parecer criar uma assimilação entre esta operação e a
formação de uma soma aritmética ; dizemos que parece criar, pois é certo
que a diferença entre estas operações não pode ter escapado a Leibnitrz.
2. Ou a uma fração desta
grandeza, mas pouco importa, pois esta fração constitui então uma unidade
secundária menor, que se substitui pela primeira, no caso em que a divisão por
esta não se faz de modo exato, para obter um resultado exato ou ao menos mais
aproximado.
3. Aqui e no que segue, deve
ficar entendido que tomamos os termos « análise » e
« síntese » em sua acepção verdadeira e original, que deve ser
distinguida daquela, diversa e bastante imprópria, em que se fala correntemente
de « análise matemática », e segundo a qual a própria integração,
apesar de seu caráter essencialmente sintético, é vista como fazendo parte do
que se chama « análise infinitesimal » ; é de resto por esta
razão que preferimos evitar o emprego desta última expressão, e nos servirmos
apenas de « cálculo infinitesimal » e de « método
infinitesimal », que não se prestam a nenhum equívoco deste gênero.
XXII
CARÁTER SINTÉTICO DA INTEGRAÇÃO
Ao contrário da formação de uma soma aritmética, que tem
um caráter propriamente analítico, a integração deve ser vista como uma
operação essencialmente sintética, na medida em que ela abarca simultaneamente
todos os elementos da soma que se trata de calcular, conservando entre eles a
“indistinção” que convém às partes do contínuo, a partir do momento em que
estas partes, devido à própria natureza do contínuo, não podem ser algo fixo e
determinado. A mesma “indistinção” deve ser mantida igualmente, ainda que por
outra razão, em relação aos elementos discontínuos que formam uma série
indefinida, quando se quer calcular a sua soma, pois, se a grandeza de cada um
destes elementos é agora concebida como determinada, seu número não o é, e
podemos mesmo dizer que sua multitude ultrapassa todo número; e entretanto
existem casos em que a soma dos elementos de uma tal série tende para um dado
limite definido quando sua multitude cresce indefinidamente. Podemos dizer,
embora possa parecer estranho à primeira vista, que uma tal série descontínua é
indefinida por “extrapolação’, enquanto que um conjunto contínuo o é por
“interpolação”; o que queremos dizer com isto é que, se tomamos em uma série descontínua uma porção
compreendida entre dois termos quaisquer, não existe aí nada de indefinido,
pois esta porção é determinada ao mesmo tempo dentro do conjunto e dentro dos
seus elementos, mas que é ao estender-se além desta porção sem jamais chegar a
um último termo que esta série é indefinida; ao contrário, num conjunto
contínuo, determinado como tal, é no próprio interior deste que o indefinido
está contido, porque os elementos não são determinados e porque, sendop o
contínuo sempre divisível, não existem elementos últimos; aqssim, sob este
aspecto, os dois casos são de certa forma inversos um do outro. A somatória de
uma série numérica indefinida não terminaria jamais se todos os termos tivessem
que ser tomados um a um, pois não existe um último termo que se possa atingir;
no caso em que uma tal somatória seja possível, ela só pode sê-lo por um
procedimento sintético, que nos fará de certo modo captar de um só golpe toda
uma indefinidade vista em seu conjunto, sem que isto pressuponha a consideração
distinta de seus elementos, que aliás seria impossível pelo simples fato de
serem eles em multitude indefinida. Do mesmo modo ainda, desde que uma série
indefinida nos é dada implicitamente por sua lei de formação, como vimos um
exemplo no caso da série dos números inteiros, podemos dizer que ela nos é dada
inteiramente de modo sintético, e nem poderia ser de outro modo; com efeito,
fornecer uma tal série analiticamente, equivaleria a fornecer distintamente
todos os termos, o que é uma impossibilidade.
Portanto, a partir do momento em que considerarmos uma
indefinidade qualquer, seja de um conjunto contínuo ou de uma série
descontínua, será preciso, em todsos os casos, recorrer a uma operação
sintética para poder atingir seus limites; uma progressão por graus não teria
nem poderia levar a resultados aqui, pois uma tal progressão só poderia chegar
a um termo final com a dupla condição de que este termo e o número de etapas
para se chegar a ele sejam ambos determinados. É por isso que não dissemos que
os limites do indefinido não podem ser atingidos, impossibilidade que seria
aliás injustificável uma vez que estes limites existem, mas apenas que eles
nãopodem ser atingidos analiticamente: uma indefinidade não pode ser esgotada
por degraus, mas ela pode pode ser compreendida em seu conjunto por uma dessas
operações transcendentes das quais a integração nos fornece um exemplo na ordem
das matemáticas. Lembremos que a progressão por degraus corresponderia aqui à
própria variação da quantidade, diretamente no caso das séries descontínuas, e,
para a variação contínua, seguindo-a por massim dizer na medida em que o
permita a natureza descontínua do número; ao contrário, por uma operação
sintética, colocamo-nos de pronto fora e além da variação, como necessariamente
deve ser, a partir do que já dissemos, para que a “passagem ao limite” possa
ser realizada efetivamente; em outras palavras, a análise não atinge senão as
variáveis, tomadas no próprio curso de sua variação, e somente a sínntese
atinge seus limites, o que é aqui o único resultado definitivo e realmente
válido, porque é preciso, para que se possa falar em resultado, chegar a
qualquer coisa que se refira exclusivamente a quantidades fixas e determinadas.
Deve ficar claro, de resto, que poderíamos encontrar o
análogo dessas operações sintéticas em outros domínios que não o da quantidade,
pois é óbvio que a idéia de um desenvolvimento indefinido de possibilidades é
aplicável a qualquer outra coisa além da quantidade, como por exemplo a um
estado qualquer de existência manifestada e às condições, quaisquer que sejam,
a que este estado está submetido, quer vejamos nisto o conjunto cósmico em
geral ou um ser particular, ou seja, quer nos coloquemos do ponto de vista
“macrocósmico” ou do ponto de vista “microcósmico” (1) Podemos dizer que aqui a
“passagem ao limite” corresponde à fixação definitiva dos resultados da
manifestação na ordem principial; é apenas assim, com efeito, que o ser escapa
finalmente à mudança ou ao “devir”, que é necessariamente inerente a toda
manifestação enquanto tal; e vemos assim que esta fixação não é absolutamente
um “último termo” do desenvolvimento da manifestação, mas que ela situa-se
essencialmente fora e além deste desenvolvimento, porque ela pertence a uma
outra ordem de realidade, transcendente em relação à manifestação e ao “devir”;
a distinção entre a ordem manifestada e a ordem principial corresponde assim
analogicamente àquela que estabelecemos entre o domínio das quantidades
variáveis eo das quantidades fixas. Ademais, desde que se trata de quantidades
fixas, é evidente que nenhuma modificação pode ser introduzida aí por qualquer
operação que seja, e portanto, a “passagem ao limite” não tem por efeito
produzir nada neste domínio, mas apenas nos dar seu conhecimento; da mesma
forma, sendo a ordem principial imutável, não se trata jamais, para atingi-la,
de “efetuar” algo que não existiria ainda, mas sim de tomar consciência efetiva
daquilo que é, de modo permanente e absoluto. Tivemos naturalmente que, dado o
objeto de nosso estudo, considerar nele, particularmente, aquilo que se refere
propriamente ao domínio quantitativo, no qual a idéia de desenvolvimento de
possibilidades traduz-se por uma noção de variação, seja no sentido do
indefinidamente crescente, seja no sentido do indefinidamente decrescente; mas
essas poucas indicações mostrarão que todas essas coisas são susceptíveis de
receber, por uma transposição analógica apropriada, um alcance
incomparavelmente maior do que o que parecem ter em si mesmas, pois, em virtude
de uma tal transposição, a integração e as outras operações do gênero aparecem
verdadeiramente como um símbolo da própria “realização” metafísica.
Vemos assim o tamanho da diferença que existe entre a
ciência tradicional, que permite tais considerações, e a ciência profana dos
modernos; e, a este propósito, acrescentaremos ainda outra observação, que se
refere diretamente à distinção entre o conhecimento analítico e o conhecimento
sintético. A ciência profana, de fato, é essencial e exclusivamente analítica:
ela não considera jamais os princípios, e ela se perde nos detalhes dos
fenômenos, cuja multiplicidade indefinida e indefinidamente mutante é
verdadeiramente inesgotável em si, de modo que ela jamais pode chegar, enquanto
conhecimento, a nenhum resultado real e definitivo; ela se atém unicamente aos fenômenos
em si mesmos, vale dizer às aparências exteriores, e é incapaz de chegar ao
fundo das coisas, como Leibnitz já censurava o mecanicismo cartesiano. Esta aí
uma das razões pelas quais se explica o “agnosticismo” moderno, pois, como
existem coisas que só podem ser conhecidas sinteticamente, qualquer um que só
porceda por análise será levado a considerar estas coisas como
“incognoscíveis”, porque elas de fato o são desta maneira, da mesma forma como
alguém que se atenha a uma perspectiva analítica do indefinido acreditará que
este indefinido é absolutamente inesgotável, enquanto que ele só o é
analiticamente. É verdade que o conhecimento sintético é essencialmente aquilo
que podemos chamar de um conhecimento “global”, como o de um conjunto contínuo
ou de uma série indefinida cujos elementos não são nem podem ser dados
distintamente; mas, fora o fato de que isto é tudo o que importa
verdadeiramente, sempre se poderá (pois tudo está contido no princípio)
retroagir daí à consideração de quantas coisas particulares se quiser, assim
como, numa série indefinida dada sinteticamente pelo conhecimento de sua lei de
formação, sempre se poderá calcular qualquer um dos seus termos, enquanto que,
ao contrário, partindo destas coisas particulares consideradas em si mesmas e
em seu detalhamento indefinido, jamais se chegará aos pprincípios; e é nisto
que, como dissemos no início, o ponto de vista e a marcha da ciência
tradicional são de certo modo inversos dos da ciência profana, como a síntese é
o inverso da análise. Está aí aliás uma aplicação desta verdade evidente que
diz que, se podemos tirar o “menos” do “mais”, não podemos tirar o “mais” do
“menos”; é isto entretanto o que pretende fazer a ciência moderna, com suas
concepções mecanicistas e materialistas e seu ponto de vista exclusivamente
quantitativo; mas é precisamente por ser uma impossibilidade, que ela é, na
realidade, incapaza de fornecer a verdadeira explicação de seja lá o que for
(2).
NOTAS
1. A respeito desta
aplicação analógica da noção de integração, cf. O Simbolismo da Cruz, caps. XVIII e XX.
2. Sobre este último ponto,
podemos nos reportar ainda às considerações que expusemos em O Reino da Quiantidade e os Sinais dos
Tempos.
XXIII
OS ARGUMENTOS DE ZENON DE ELÉIA
As considerações que precedem contém implicitamente a
solução de todas as dificuldades do gênero daquelas que Zenon de Eléia, através
de seus célebres argumentos, opunha à possibilidade do movimento, ao menos em
aparência e a julgar somente pela forma como estes argumentos são apresentados
atualmente, pois é lícito duvidar que este tenha sido no fundo seu verdadeiro
significado. É pouco
crível, de fato, que Zenon tenha tido realmente a intenção de negar o
movimento; o que parece mais provável, é que ele tenha pretendido provar apenas
a incompatibilidade deste com a suposição, admitida notadamente pelos
atomistas, de uma multiplicidade real e irredutível existente na natureza das
coisas. É portanto contra esta multiplicidade assim concebida que seus
argumentos, originalmente, deviam ser dirigidos; não dizemos contra toda
multiplicidade, pois é óbvio que a multiplicidade existe também em sua ordem,
assim como o movimento que, de resto, como toda mudança, a supõe
necessariamente; mas, assim como o movimento, em razão de seu caráter de modificação
transitória e momentânea, não pode bastar-se a si mesmo e não passa de ilusão
se não se ligar a um princípio superior, transcendente em relação a ele (tal
como o “motor imóvel” de Aristóteles), também a multiplicidade será
verdadeiramente inexistente se for reduzida a si mesma e se não proceder da
unidade, como demos uma imagem matemática ao nos referirmos à formação da série
dos números. Ademais, a suposição de uma multipolicidade irredutível exclui
forçosamente toda ligação real entre os elementos das coisas, e por conseguinte
toda continuidade, pois a continuidade não passa de uma caso particular ou uma
forma especial desta ligação; o atomismo, precisamente, implica a
descontinuidade de todas as coisas; é com esta descontinuidade que, em definitivo,
o movimento é realmente incompatível, e veremos que é isto que demonstram os
argumentos de Zenon.
Podemos, por exemplo, fazer o seguinte raciocínio: um
móvel jamais poderá passar de uma posição a uma outra, pois, entre as duas, por
mais próximas que estejam, sempre haverá uma infinidade de outras posições que
terão que ser percorridas sucessivamente no decurso do movimento e, qualquer
que seja o tempo empregado para as percorrer, esta infinidade jamais poderá ser
esgotada. Certamente, no caso, não se trata de uma infinidade propriamente
dita, que não faria nenhum sentido; mas não deixa de ser verdade que se pode
considerar, dentro de qualquer intervalo, uma indefinidade de posições do
móvel, e que não pode ser esgotada deste modo analítico que consiste em
ocupá-las distintamente uma a uma, como quandop se toma cada um dos termos de
uma série descontínua. Mas é essa concepção de movimento que está errada, pois
ela equivale em suma a ver o contínuo como se ele fosse composto por pontos, ou
por últimos elementos indivisíveis, da mesma forma como se consideram os corpos
como compostos de átomos; e isto é o mesmo que afirmar que não existe o
contínuo, pois, quer se trate de pontos ou de átomos, estes últimos elementos
só podem ser descontínuos; é aliás verdade que, sem continuidade, não há
movimento possível, e é isto que este argumento prova efetivamente. O mesmo
acontece com o argumento da flecha que voa e que no entanto é imóvel, porque, a
cada instante, só a vemos em uma única posição, o que equivale a supor que cada
posição, em si mesma, pode ser vista como fixa e determinada, e que assim as
posições sucessivas formam uma espécie de série descontínua. É preciso de resto
lembrar que, de fato, não é verdade que um móvel possa jamais ser visto como
ocupando uma posição fixa, e que, ao contrário, quando o movimento é muito
rápido, já não se distingue o móvel em si, mas apenas uma espécie de traço de
seu deslocamento contínuo: assim, por exemplo, se fazemos girar uma brasa
acesa, não vemos mais a forma da brasa, mas apenas um círculo de fogo; que isto
se explique pela persistência das impressões na ertina, como o fazem os
fisiologistas, ou de qualquer outro modo que se queira, pouco importa, pois o
que fica manifersto é que, em tais casos, apreedemos de certa forma diretamente
e de maneira sensível a própria continuidade do movimento. Ademais, quando se
diz “em cada instante”, na formulação de um tal argumento, está-se supondo que
o tempo é formado por uma série de instantes indivisíveis, sendo que a cada
qual corresponderia uma posiçlão determinada do móvel; mas na realidae o
contínuo temporal tampouco é formado de instantes, como o contínuo espacial não
é formado de pontos e, como já indicamos, é poreciso a reunião – ou melhor, a
combinação – destas duas continuidades do tempo e do espaço para dar conta da
possibilidade do movimento.
Diremos ainda que, para percorrer uma certa distância, é
preciso primeiro percorrer a metade desta distância, depois a metade da metade,
depois a metade do resto, e assim indefinidamente (1), de modo nos
encontraremos sempre diante de uma indefinidade que, vista assim, será de fato
inesgotável. Um outro argumento quase equivalente é o seguinte: se supomos dois
móveis separados por uma dada distância, um deles, mesmo que se desloque mais depressa
do que o outro, jamais o alcançará, pois, quando houver atingido o ponto em que
este se achava, ele já ocupará uma segunda posição, separada da primeira por
uma distância menor do que a distância inicial; quando primeiro chegar a esta
segunda posição, o outro ocupará uma terceira, separada da segunda por uma
distância ainda menor, e assim indefinidamente, de tal modo que a distância
entre os dois móveis, embora decresça sempre, jamais se tornará nula. A falha
essencial desses argumentos, como no caso precedente, consiste em supor que,
para atingir um dado termo, todos os graus intermediários devem ser percorridos
distinta e sucessivamente. Ora, das duas uma: ou o movimento considerado é
verdadeiramente contínuo, e então ele não pode ser decomposto desta forma (pois
o contínuo não possui últimos elementos), ou ele compõe-se de uma sucessão
descontínua (ou que ao menos possa ser considerada como tal) de intervalos cada
qual com uma grandeza determinada, como os passos de um homem em marcha (2), e
então a consideração destes intervalos suprime evidentemente a consideração de
todas as posições intermediárias possíveis, que não precisarão ser percorridas
efetivamente como outras tantas etapas distintas. Por outro lado, no primeiro
caso, que é propriamente o de uma variação contínua, o termo desta variação,
suposto fixo por definição, não pode ser atingido dentro da própria variação, e
o fato de atingi-lo efetivamente exige a introdução de uma heterogeneidade
qualitativa, que constitui desta vez uma verdadeira descontinuidade, e que
traduz-se aqui pela passagem do estado de movimento ao estado de repouso; isto
nos leva à questão da “passagem ao limite”, cuja verdadeira noção vamos colocar
a seguir.
NOTAS
1. Isto corresponde aos
termos sucessivos da série indefinida 1/1+ 1/2+1/4+1/8+.....= 2, dada como
exemplo por Leibnitz na passagem que citamos mais acima.
2. Na realidade, os
movimentos de que se compõe a marcha são contínuos como qualquer movimento, mas
os pontos onde o homem toca o solo formam uma série descontínua, de modo que
cada passo marca um intervalo determinado, e assim a distância percorrida pode
ser decomposta nestes intervalos, e o solo não é tocado em nenhum ponto
intermediário.
XXIV
VERDADEIRA CONCEPÇÃO DA PASSAGEM AO LIMITE
A consideração da “passagem ao limite”, como dissemos, é
necessária, senão às aplicações práticas do método infinitesimal, ao menos para
a sua justificação teórica, e esta justificação é precisamente a única coisa
que nos importa aqui, pois, simples regras práticas de cálculo, que funcionam
de certa forma “empírica” e sem que se saiba exatamente por quê, não tem nenhum
interesse de nosso ponto de vista. Sem dúvida, para efetuar os cálculos e mesmo
para conduzi-los ao final, não há necessidade de se colocar a questão de saber
se a variável atinge o limite e como ela pode atingi-lo; mas por outro lado, se
ela não o atingir, estes cálculos não terão mais que o valor de simples
aproximações. É verdade que se trata aqui de uma aproximação indefinida, pois a
própria natureza das quantidades infinitesimais permite tornar o erro tão
pequeno quanto se queira, sem no entanto que seja possível suprimi-lo
inteiramente, porque estas mesmas quantidades infinitesimais, em seu indefinido
decrescimento, não se tornam jamais nulas. Pode-se argumentar talvez que, na
prática, isto equivale a um cálculo perfeitamente rigoroso; mas, além do fato de que não é disto que
estamos tratando, pode esta mesma aproximação indefinida fazer sentido se, nos
resultados aos quais se quer chegar, não se considere mais variáveis, mas
unicamente quantidades fixas e determinadas? Nessas condições, não se pode, ao
menos do ponto de vista dos resultados, escapar destas alternativas: ou o
limite não é atimngido, e então o método infinitesimal não passa de um
grosseiro método de aproximação, ou o limite é atingido, e então estamos diante
de um método verdadeiramente rigoroso. Mas nós vimos que o limite, em razão de
sua própria definição, jamais pode ser atingido exatamente pela variável; como
afirmar então que ele pode ser atingido? De fato, ele pode, não no decurso do
cálculo, mas sim nos seus resultados, porque, nestes, só podem figurar
quantidades fixas e determinadas, como o próprio limite, e não mais variáveis;
é portanto na distinção entre as quantidades variáveis e as quantidades fixas,
distinção aliás propriamente qualitativa, que reside a verdadeira justificação
do rigor do cálculo infinitesimal.
Assim, repetimos mais uma vez, o limite não pode ser
atingido dentro da variação e como termo desta; ele não é o último dos valores
que adquire a variável, e a concepção de uma variação contínua que desemboca
num “último valor” ou num “último estado” é tão incompreensível e contraditória
quanto a de uma série indefinida que chega ao “último termo”, ou de uma divisão
de um conjunto contínuo que chega ao “último elemento”. O limite, portanto, não
pertence à série dos valores sucessivos da variável; ele está fora desta série,
e é porisso que dissemos que a passagem ao limite implica essencialmente uma
descontinuidade. Se fosse de outro modo, estaríamos em presença de uma
indefinidade que poderia ser esgotada analiticamente, o que não pode acontecer;
mas é aqui que a distinção que estabelecemos a respeito mostra sua importância,
pois trata-se de um desets casos em que se quer atingir, segundo a expressão
que já empregamos, os limites de um certo indefinido; não é sem razão, assim,
que a mesma palavra “limite” se encontra, com um outro significado particular,
no caso particular que consideramos agora. O limite de uma variável deve
verdadeiramente limitar, no sentido geral do termo, a indefinidade de estados
ou de modificações possíveis que comporta a definição dewsta variável; e é
justamente porisso que é preciso que ele esteja além daquilo que ele deve
limitar. Não se poderia esgotar esta indefinidade no próprio curso da variação
que a constitui; aquilo de que se trata em realidade, é de passar além do
domínio desta variação, na qual o limite não está compreendido, e é este
resultado que é obtido, não analiticamente e por etapas, mas sinteticamente e
de um só golpe, de um modo “súbito” através do qual se traduz a descontinuidade
que se produz então, pela passagem das quantidades variáveis para quantidades
fixas (1).
O limite pertence essencialmente ao domíno das quantidades
fixas: é porisso que a “passagem ao limite” exige logicamente a consideração
simultânea, dentro da quantidade, de duas modalidades diferentes e de certo
modo superpostas; trata-se da passagem à modalidade superior, na qual
realiza-se plenamente aquilo que, na modalidade inferior, não existe senão como
simples tendência, e existe aí, para empregarmos uma linguagem aristotélica,
uma verdadeira passagem da potência ao ato, o que não tem nada em comum com a
simples “compensação de erros” de Carnot. A noção matemática de limite implica,
por sua própria definição, um caráter de estabilidade e equilíbrio, caráter que
é o de algo permanente e definitivo, e que não pode evidentemente ser realizado
pelas quantidades na medida em que se as considere, na modalidade inferior,
como essencialmente variáveis; ele não pode jamais ser atingido gradualmente,
mas sim imediatamente pela passagem de uma modalidade à outra, sendo que
somente isto permite suprimir todos os estágios intermediários, porque esta
passagem compreende e abarca sinteticamente toda sua indefinidade, e porque é
através dela que aquilo que não era e nem podia ser mais do que uma tendência
em meio às variáveis, afirma-se e fixa-se num resultado real e definido. De
outra forma, a “passagem ao limite” seria sempre um ilogismo puro e simples, pois
é evidente que, desde que permaneçamos nos limites das variáveis, não poderemos
obter esta fixidez que é própria do limite, onde as quantidades que eram antes
consideradas como variáveis perdem este caráter transitório e contingente. O
estado das quantidades variáveis é, com efeito, um estado eminentemente
transitório e de certa forma imperfeito, pois ele não passa da expressão de um
“devir”, cuja idéia encontramos na própria definição de indefinidade, que é aliás
estreitamente ligada a este estado de
variação. Da mesma forma o cálculo não pode ser perfeito, no sentido de
plenamente terminado, senão quando ele chega a resultados nos quais não cabe
nada mais de variável ou de indefinido, mas apenas quantidades fixas e
definidas; e já vimos como mesmo isto é susceptível de aplicar-se, por
transposição analógica, para além da ordem quantitativa, que não possui então
mais do que um valor de símbolo, e exatamente naquilo que concerne diretamente
à “realização” metafísica do ser.
NOTAS
1. Podemos, a propósito
deste caráter « súbito » ou
« instantâneo », lembrar aqui, como comparação com a ordem dos
fenômenos naturais, o exemplo da ruptura de uma corda que expusemos mais acima:
esta ruptura é também um limite da tensão, mas ela não pode de mmodo algum ser
assimilada a uma tensão em qualquer grau que seja.
XXV
CONCLUSÃO
Não é preciso insistir sobre a importância que as
considerações que expusemos neste estudo apresentam do ponto de vista
propriamente matemático, na medida em que elas trazem a solução de todas as
dificuldades que foram levantadas a propósito do método infinitesimal, seja no
que concerne ao seu verdadeiro significado, seja quanto ao seu rigor. A
condição necessária e suficiente para que esta solução possa ser dada não é
outra coisa que a estrita aplicação dos princípios verdadeiros; mas são
justamente estes princípios que os matemáticos modernos, como todos os sábios
profanos, ignoram totalmente, e esta ignorância é, no fundo, a única razão de tantas discussões que, nestas condições,
podem prosseguir indefinidamente sem chegar jamais a nenhuma conclusão válida,
e que apenas embaralham as questões e multiplicam as copnfisões, como o
demosntra a querela entre os “finitistas” e os “infinitistas”; teria no entanto
sido bem fácil acabar com isso se a verdadeira noção de Infinito metafísico e
de sua distinção fundamental em relação ao indefinido tivessem sido colocadas
claramente desde o início. O próprio Leibnitz, que teve o mérito de abordar
francamente estas questões (o que não fizeram aqueles que vieram depois), não
passou de considerações bem pouco metafísicas, e às vezes até tão
anti-metafísicas quanto as levantadas pela generalidade dos filósofos modernos;
é a mesma falta de princípios que o impediu de responder a seus contraditores
de um modo satisfatório e definitivo, e que abriu a porta a todas as discussões
ulteriores. Sem dúvida, podemos dizer com Carnot que “se Leibnitz se enganou,
foi unicamente em provocar dúvidas sobre a exatidão de sua própria análise, se
é que ele mesmo teve estas dúvidas” (1); mas, mesmo que ele não as tivesse, ele
não poderia demonstrar rigorosamente esta exatidão, porque seu conceito de
continuidade, que não é nem metafísico e nem sequer lógico, o impediria de
fazer as distinções necessárias a este respeito e, por conseguinte, de formular
a noção precisa de limite, que é, como demonstramos, de uma importância capital
para o fundamento do método infinitesimal.
Vemos por tudo isso quanto interêsse tem a consideração
dos princípios, mesmo para uma ciência em particular copnsiderada em si mesma,
e sem que se proponha a avançar, apoiando-se nesta ciência, além do domínio
relativo e contingnente ao qual ela se aplica de maneira imediata; está aí, bem
entendido, o que os modernos desconhecem totalmente, ao mesmo tempo em que se
vangloriam de ter, em sua concepção profana de ciência, tornado-a independente
da metafísica, e até mesmo da teologia
(2), enquanto que a verdade é que eles não fizeram outra coisa do que privá-la
de todo valor real enquanto conhecimento. Ademais, se fosse compreendida a
necessidade de se ligar a ciência aos princípios, está claro que não haveria
mais nenhuma razão para se manter nessa postura, e tudo seria conduzido
naturalmente à concepção tradicional segundo a qual uma ciência em particular
vale menos pelo que ela é do que pela possibilidade que ela tem de servir de
“suporte” para a elevação a um grau superior (3). É o que quisemos mostrar
aqui, através de um exemplo característico, dando uma idéia do que seria
possível de fazer, ao menos em alguns casos, para restituir a uma ciência,
mutilada e deformada pelas concepções profanas, seu valor e seu alcance reais,
tanto do ponto de vista do conhecimento relativo que ela representa diretamente
quanto em relação ao conhecimento superior ao qual ela pode conduzir por
trasnposição analógica; sob este último aspecto, pudemos ver notadamente o que
é possível de se alcançar a partir de noções como as de integração e de
“passagem ao limite”. É preciso de resto dizer que as matemáticas, mais do que
qualquer outra ciência, fornecem assim um simbolismo especialmente apto à
expressão de verdades metafísicas, na medida em quem estas são exprimíveis,
como sabem aqueles que leram alguns de nossos trabalhos precedentes; é por isso
que este simbolismo matemático é de uso tão frequente, seja do ponto de vista
tradicional em geral, seja do ponto de vista iniciático em particular (4).
Apenas deve ficar entendido que, para que isto possa ocorrer, é preciso antes
de mais nada que essas ciências sejam desembaraçadas dos erros e das confusões
múltiplas que foram introduzidos pelas falsas visões modernas, e ficaremos
felizes se o presente trabalho puder ao menos contribuir de algum modo para
este resultado.
NOTAS
1.
Réflexions sur la Métaphysique du Calcul infinitésimal, pg. 33.
2.
Lembramo-nos de haver visto
certa vez um « cientista » contemporâneo indignar-se de que na Idade
Média se falava da Trindade usando-se para isto a geometria do triângulo; ele
parecia não se dar conta de que é isto que ainda hoje acontece no simbolismo da
Compagnonage.
3.
Ver por exemplo, a este
respeito, sobre o aspecto esotérico e iniciático das «artes liberais», O Esoterismo de Dante, pgs. 10-15.
4.
Sobre o especial valor que tem a esse respeito
o simbolismo matemático, tanto numérico quanto geométrico, remetemos às
explicações que demos em O Reino da
Quantidade e os Sinais dos Tempos.
Boa Noite. Tradução livre ou cópia de outra?
ResponderExcluirOBG pela atenção.