PREFÁCIO
Em algum canto de Damasco, existe uma
mesquita de aspecto bastante banal, aonde os muçulmanos não gostam de levar
estrangeiros. O interior costuma achar-se deserto, e no entanto uma reforma
recente praticamente dobrou sua área coberta. Qual será o interesse que
desperta este lugar?
Aqueles que são admitidos nos
segredos são convidados a descer por uma longa escada até uma espécie de cripta
aonde subitamente revela-se aos olhos um espetáculo inesperado: uma outra
mesquita, luxuosa e muito frequentada, esconde-se debaixo da primeira. Os muros
são cobertos quase até o alto, por estas magníficas telas azuis que são uma das
glórias de Damasco. À luz de antigas lamparinas de vidro que descem do teto,
uma atmosfera de silêncio e de recolhimento.
No centro, um túmulo rodeado por uma
alta grade em prata admiravelmente trabalhada, sobre o qual descansam como
oferendas, embrulhados em linho branco, exemplares do Corão. Em torno, homens e
mulheres em meditação. É aí que repousa o Grande Sheikh por excelência,
Muhyi-d-Din Ibn ‘Arabi, cujo ensinamento e influência nos traz este livro.
Existem aí também outras tumbas, mais
simples. Dois de seus filhos estão lá, além de duas ou três figuras ilustres.
Ligeiramente deslocada, uma tumba imponente, de estilo bastante diverso: “Quem
está enterrado aí?” – “Alguém que os franceses conhecem bem: o emir
Abd-el-Kader, o Argelino, que defendeu seu país contra o exército francês, há
bem mais de um século.” Exilado em Damasco por Napoleão III, o terrível
adversário do General Bugeaud, livre de suas responsabilidades políticas,
passou a consagrar sua vida à busca espiritual. Sufi ardoroso, ele passou o
resto dos dias a editar em árabe a obra de seu mestre Muhyi-d-Din.
A coleção à que pertence
originalmente este livro – “Espiritualidades vivas” – destina-se a apresentar
os movimentos espirituais pela boca dos seus representantes mais qualificados
em nossa época; parece ser uma ruptura da regra uma obra escrita no século
XIII. Mas o próprio livro de Abd-el-Kader, que constitui uma das obras primas
do sufismo moderno, seria inteligível sem um conhecimento daquilo que está na
base – e não tínhamos até agora nenhum texto importante de Muhyi-d-Din em
língua ocidental.
Jean Herbert
Hadeyah, 1955
INTRODUÇÃO
O sufi Abu Bakr Muhammad ibn
al-Arabi, da tribo árabe de Hatim at-Ta’i, nasceu no ano 560 da hégira – ano
1165 da era cristã – em Múrcia, na Andaluzia; ele morreu em 638 (A.D. 1240) em
Damasco. Nos meios esotéricos do islam ele é denominado muhyi-d-din, “o vivificador da religião”, e ash-sheikh al-akbar, “o maior dos mestres”.
Sua obra doutrinal impõe-se pela profundidade e pela síntese, assim como pela
força incisiva de certas formulações, que se referem aos aspectos mais elevados
do sufismo. Os livros e os tratados do mestre foram numerosos, a maior parte
deles definitivamente perdidos; dentre os que subsistem, os mais célebre são
“As Revelações de Meca” (Futuhat al-Makkiyah)
e “A Sabedoria dos Profetas” (Fuçuç al-Hikam).
O primeiro constitui uma espécie de suma das ciências esotéricas; o segundo, de
que apresentamos aqui uma tradução limitada aos capítulos mais importantes, é
muitas vezes considerado como o testamento espiritual do mestre, que o escreveu
no ano 627 da hégira, em Damasco.
Devemos esclarecer que o título “A
Sabedoria dos Profetas” é uma paráfrase, de resto consagrada pelo uso, do
título árabe Fuçuç al-Hikam, que
significa literalmente “o engaste das sabedorias”. Esta expressão antes resume
simbolicamente o livro do que define seu conteúdo, e não pode ser entendida a
menos que se conheça previamente o simbolismo de que se trata: al-façç – singular de fuçuç – é o engaste que prende uma pedra preciosa ou o selo (al-khatam) de um anel; como “sabedorias” (al-hikam) devemos entender os aspectos da
Sabedoria divina. Os “engastes” que prendem as pedras preciosas da Sabedoria (al-hikmah) eterna, são as “formas” espirituais
dos diferentes profetas, suas respectivas naturezas, a um tempo humanas e
espirituais, que veiculam este ou aquele aspecto do Conhecimento divino. O
caráter incorruptível da pedra preciosa corresponde à natureza imutável da
Sabedoria.
A metáfora do engaste que segura a
pedra preciosa da Sabedoria e lhe esposa o talhe, diz respeito à naturezahumana
de um profeta enquanto recipiente da Sabedoria divina; entretanto, este aspecto
do simbolismo, que corresponde à aparência humana das coisas, acha-se
compensado e como que expandido pela fórmula que Ibn‘Arabi adota para os
títulos das diversas partes de seu livro: “o engaste da Sabedoria divina no
Verbo Adâmico”, “o engaste da Sabedoria da Inspiração divina no Verbo de Seth”,
“o engaste da Sabedoria da Transcendência no Verbo de Noé”, etc. Segundo estas
expressões, o engaste, ou seja a forma individual do profeta, está por sua vez
contido no verbo (al-kalimah), que é a
realidade essencial e divina deste mesmo profeta; com efeito, por sua
identificação “ativa” com a Sabedoria divina, todo profeta é uma determinação
imediata do Verbo eterno, que é o “enunciado” primordial de Deus. São os
“verbos” que contém os “engastes”, pois é o individual que está contido no
universal e não inversamente, apesar das apar~encias humanas. Todo profeta,
enquanto homem perfeito, “contém” assim a si mesmo, porque ele “contém” a
Sabedoria divina e porque, sob o aspecto da realidade interior e
supra-individual, ele "é” esta Sabedoria; ora, esta por sua vez contém a
humanidade perfeita do Homem-Deus, e é este aspecto das coisas que corresponde
à realidade ontológica, sem anular entretanto a “realidade” aparente do ponto
de vista humano. Enfim, não devemos esquecer que a humanidade dos profetas que,
por definição, é perfeita e “fora de série”, reflete em sua particularidade – o
“engaste” que tal ou qual forma possui – um dado aspecto ou Nome divino, o que
equivale a dizer que o profeta se identifica em última análise com este Nome,
que “abre o caminho” para a Essência divina indiferenciada.
Esta complexidade de aspectos
aparentemente contraditórios, integrados numa síntese supra-racional, é típica
do ensinamento de Ibn'Arabi.
A relação entre o “engaste” e a
sabedoria que ele contém, e da qual ele por seu lado é o conteúdo, prefigura o
tema fundamental dos Fuçul al-Hikam,
tema que pode ser resumido da seguinte maneira: a revelação divina conforma-se
à receptividade do coração, assim como a luz, em si incolor, torna-se colorida
conforme o cristal que a refrata; o aspecto que a Divindade assume depende
portanto do seu “recipiente”. Por outro lado, sendo a Realidade divina ativa e
criadora, enquanto que o “recipiente” é passivo, qualquer qualidade positiva
pela qual Deus Se manifeste, deve emanar d’Ele; são portanto os conteúdos reais
da Essência divina que determinam a qualidade de um estado contemplativo.
Enfim, segundo um ponto de vista mais amplo, o receptáculo, ou seja o coração
do homem, ou mais exatamente seu ser integral e essencial, é ele próprio uma
possibilidade divina: é esta possibilidade permanente e informal, o arquétipo,
que “recebe” imediatamente a “luz” infinita.
A Realidade divina engloba assim a um
tempo o recipiente da revelação e seu conteúdo; não podemos conhecê-la senão
conhecendo a lei mesma de Sua manifestação, de modo que a possamos distinguir
de Seus receptáculos sem no entanto separar essencialmente, e sob todos os
aspectos, os receptáculos da Realidade.
O homem, que é o receptáculo por
excelência da revelação divina, deve conhecer a si mesmo em sua possibilidade
permanente, para conhecer a Deus. Ora, ele só se conhecerá através de Deus; na
medida em que ele próprio é objeto do conhecimento, Deus é seu “sujeito”, o
Testemunho transcendente; na medida em que Deus é “objeto” do conhecimento, Ele
se “colore” em função do sujeito que O contempla.
Se existe no ensinamento doutrinal de
Ibn’Arabi algum sistema, é a permutação de termos opostos e complementares.
Este emprego metódico do paradoxo não dá
nenhuma trégua ao espírito do leitor, naturalmente inclinado a fixar-se
sobre uma noção definida,“dogmática” se quisermos, e o empurra para aquilo que Ibn’Arabi
chama al-hayrah – o “espanto” ou a
“perplexidade” – diante do que ultrapassa a ordem racional; esta hayrah, diz ele, deve tornar-se um movimento
circular constante ao redor de um ponto mentalmente inatingível, imagem que
lembra os últimos versos da Divina Comédia: “...assim estava eu próximo a esta
nova visão: eu queria ver como a imagem (humana) convinha ao círculo (divino) e
como ela se integra nele. Mas para isto minhas próprias asas não bastavam. Meu
espírito foi sacudido por um clarão, e instantaneamente minha vontade se
cumpriu. À alta imaginação (espiritual) faltavam aqui as forças; mas logo meu
desejo e minha vontade retornaram, como uma roda que é movida uniformemente,
pelo Amor que move o sol e as outras estrelas.”
Algumas exposições de Ibn’Arabi podem
parecer incoerentes não apenas pela razão que indicamos, mas também porque a
inspiração intelectual, evocando simultaneamente inumeráveis verdades
solidárias umas às outras, exerce uma espécie de pressão sobre o recipiente
demasiado estreito que é o pensamento discursivo e tende a quebrar sua
continuidade “horizontal”; pela mesma razão, as epístolas de São Paulo podem
também parecer incoerentes. A plenitude intrínseca da visão contemplativa, sem
medida comum com o raciocínio, produzirá fórmulas supersaturadas de
significados, ao mesmo tempo em que impede de certo modo a construção homogênea
e definitiva de um sistema, que seria em todo caso demasiado limitado para
“esgotar” um aspecto da Verdade divina. Quanto mais essenciais são as
exposições de Ibn’Arabi, mais elas são descontínuas; o caráter originalmente
nômade do espírito árabe, sua capacidade mais incisiva do que plástica, é
colocada aqui em proveito pela inspiração.
Não voltaremos aqui a falar da
terminologia usada pelo mestre, pois já tratamos do assunto em nosso outro
estudo sobre o Sufismo, que podemos, a este respeito, considerar como uma
introdução aos Fuçuç al-Hikam. Podemos
nos referir também à nossa tradução parcial do Al-Insan
al-kamil, de Jili, que se apresenta como uma exposição, mais construtiva
e mais explícita, de algumas idéias fundamentais contidas nos Fuçuç al-Hikam. De resto, existe entre a
linguagem de Ibn’Arabi e a de Jili a diferença que caracteriza em geral a
distância mental entre os séculos XII e XIV: aquilo que o primeiro expressa
implicitamente, o segundo detalha de modo mais articulado, ao preço de uma
certa delimitação das realidades.
Como vimos, cada capítulo dos Fuçuç al-Hikam é dedicado a um profeta, vale
dizer a um profeta mencionado no Corão, começando por Adão – considerado pelo
Islam como um profeta – até Maomé que “sela” a profecia universal. A cadeia
corânica dos profetas abrange ainda o Cristo e alguns profetas dos antigos
povos da Arábia, como Salih e Hud, que as escrituras judaico-cristãs não
conhecem. A base e o ponto de partida de cada capítulo é uma passagem da
escritura, no mais das vezes uma palavra que o Corão atribui a um dos profetas.
Dentre os 27 capítulos da obra original, escolhemos
aqueles que, por seu conteúdo doutrinal, nos pareceram os mais importantes.
Omitimos os capítulos ou os trechos cujo conteúdo fosse demasiado específico,
ou que comportavam exegeses muito difíceis de expressar em língua européia;
pois a interpretação sufi do Corão baseia-se frequentemente num simbolismo
verbal que é próprio da língua árabe. E num certo sentido os dois primeiros
capítulos, sobre Adão e Seth, resumem por si sós a doutrina metafísica de
Ibn’Arabi sob o duplo aspecto da manifestação universal de Deus e da realização
espiritual.
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Dentre os livros que foram escritos
sobre Muhyi-d-Din Ibn’Arabi em línguas européias, a mais importante e a única
que vale a pena é “El Islam cristianizado”,
de Miguel Asín Palacios. Esta obra não menciona a metafísica de Ibn’Arabi, mas
descreve sua vida e seu método espiritual, de que fornece uma visão preciosa,
malgrado a tendência geral já anunciada no próprio título e que esta na base de
algumas assimilações abusivas: impressionado com a santidade de alguns sufis,
Palacios pretende justificá-los diante do dogma cristão mostrando-os como
representantes de uma corrente cristã dentro dos quadros do Islam. Para tanto,
ele faz derivar seus métodos das tradições monásticas da cristandade do
Oriente. Ora, se é certo que houve contatos entre os primeiros sufis e os
contemplativos cristãos – alguns testemunhos islâmicos o confirmam – a maior
parte das analogias que Palacios invoca em favor de sua tese são do tipo que
encontramos nas civilizações mais diversas. Quanto ao papel fundamental que
desempenha o Corão no Sufismo, Palacios pretende que os “elementos judaico-cristãos”
contidos no Corão compensam sua falta de autenticidade, como se a verdade
pudesse ser veiculada por um engano, ou como se uma via espiritual não fosse um
conjunto orgânico, onde tudo está ligado, de modo que o menor elemento pode ter
consequências incalculáveis. Seja como for, a obra em questão fornece um
aspecto da espiritualidade de Ibn’Arabi que uma obra puramente metafísica como
os Fuçuç al-Hikam poderia fazer perder
de vista; é preciso sublinhar que nosso livro não dá uma idéia completa da via
do mestre. O próprio Ibn’Arabi observa que a perfeição das virtudes espirituais
pode provocar a iluminação do coração, mesmo que o homem tenha um conhecimento
teórico que não ultrapassa as verdades elementares da doutrina, enquanto que a
compreensão da teoria metafísica não garante sua efetiva realização.
Acrescentemos que houve sufis que não ensinaram mais que o “polimento do
espelho do coração” e que detinham-se quanto às Verdades transcendentes (al-haqaiq), um pouco como certos mestres
budistas que se limitam a ensinar a rejeição às limitações psicológicas.
Miguel Palacios publicou também uma
tradução espanhola da Risalat al-Quds
(“Epístola da Santidade”) de Ibn’Arabi sob o título de “Vidas de Santos
Andaluzes”; este livro descreve as vidas de sufis que Ibn’Arabi conheceu na
Espanha e que na maior parte foram seus mestres espirituais.
Não é de admirar – dado o caráter
obscuro de nosso autor – que o número de escritos seus traduzidos em línguas
européias seja tão restrito. Podemos mencionar a tradução inglesa por Reynold
A. Nicholson do Tarjuman al-ashwaq (“O
Intérprete dos Desejos”), um apanhado de poesias de amor com comentários
esotéricos. Uma excelente tradução do Risalat
al-Ahadiyah (“Tratado da Unidade”), atribuido a Ibn’Arabi, foi publicado
por Abdul Radi na revista Le Voile d’Isis.O
texto árabe de três tratados menores de Ibn’Arabi, com o título de Kleinere Schriften des Ibn al-‘Arabi, foi
editado por Nyberg, com uma resenha em alemão. Quanto aolivro de Khaja Khan, The Wisdom of the Prophets, não representa
mais do que uma paráfrase livre dos Fuçuç
al-Hikam.
Para nossa tradução utilizamos a
edição litográfica do Cairo, do ano 1309 da hégira (A.D. 1891), feita por
Muhammad al-Baruni, com os comentários de ‘Abd ar-Razzaq al-Qashani, e a edição
tipográfica de 1304 (A.D. 1887), feita por Jalal ad-din Uskubi, com os
comentários de ‘Abd al-Ghani na-Nabulusi e de ‘Abd ar-Rahman al-Jami. Estes
três comentadores são sufis bem conhecidos; na-Nabulusi viveu no final do
século XII e início do XIII, al-Qashani no século XIII e al-Jami no século XV
da era cristã. Não achamos útil traduzir esses comentários, pois as exigências
do leitor ocidental a respeito de um comentário diferem muito das de um leitor
oriental; em compensação, completamos a tadução com algumas notas e
interpolações aonde nos pareceu indispensável; afianl, toda tradução moderna de
um texto árabe escrito em linguagem elíptica do século XII necessita um certo
trabalho de exegese.
A SABEDORIA DIVINA
(AL HIKMAT AL-ILAHIYAH)
SEGUNDO O VERBO DE ADÃO
Deus
(al-haqq) quis ver as essências (a’yan)[1] de Seus Nomes perfeitíssimos (al-asma
al-husna), que o número não saberia esgotar –
e, se quisermos, podemos igualmente dizer: Deus quis ver Sua própria essência (‘ayn)[2] – em um objeto (kawn) global que, sendo dotado de existencia (al-wujud)[3], resumisse toda a ordem divina (al-amr)[4], a fim de com isto manifestar Seu mistério (sirr) a Si mesmo[5].
Pois
a visão (ru’ya)[6] que o ser[7] tem de si mesmo em si mesmo não é parecida com
aquela que lhe fornece uma outra realidade da qual ele se serve como de um
espelho: ele aí manifesta a si mesmo sob a forma que resulta do “lugar” de sua
visão; esta não existiria sem este “plano de reflexão” e o raio que nele se
reflete. Deus criou inicialmente o mundo inteiro como uma coisa amorfa[8] e desprovida de graça[9], parecido com um espelho ainda não polido[10]; ora, é uma regra da Atividade divina nunca preparar
um “lugar” sem que este receba um espírito divino, o que é expresso [no Corão]
pelo sopro do Espírito divino em Adão[11]; e isto não é outra coisa [de um ponto de vista
complementar ao primeiro] que a atualização da aptidão (al-isti’dad) que esta forma possui, previamente disposta, para
receber a efusão (al-fayd)[12] inesgotável da revelação (al-tajalli)[13] essencial. Não existe assim [fora da Realidade
divina] senão um puro receptáculo (qabil)[14]; mas este receptáculo provém, ele mesmo, da “Efusão
santíssima” (al-fayd al-aqdas) [vale
dizer da manifestação principial metacósmica, onde as “essências imutáveis” são
divinamente “concebidas”, antes de sua aparente projeção na existência
relativa][15]. Pois a realidade (al-amr)[16] inteira, de seu começo até o fim, provém apenas de
Deus, e é para Ele que ela retorna[17]. Assim portanto a Ordem divina (al-amr) exige o polimento do espelho do mundo; e Adão
torna-se o próprio brilho deste espelho e o espírito desta forma[18].
Quanto
aos anjos [de que trata o relato corânico da criação de Adão][19], eles representam determinadas qualidades desta
“forma”[20] do mundo, que os sufis chamam de “Grande Homem” (al-insan
al-kabir), de modo que os Anjos estão para este
assim como as faculdades espirituais e físicas estão para o organismo humano[21]. Cada uma dessas faculdades [cósmicas] acha-se como
que envolta por sua própria natureza; ela não concebe nada que seja superior à
sua essência [relativa]; pois há nela algo que pretende ser digno do mais alto
escalão e de ocupar um lugar elevado próximo a Deus. Isto acontece porque ela
participa [de certo modo] da síntese divina (al-jam’-iyat al-ilahiyah)[22] que rege aquilo que pertence, seja ao lado divino (al-janab
al-ilahi)[23], seja ao lado da realidade das realidades (haqiqat
al-haqaiq)[24], seja ainda – através deste organismo, suporte de
todas as faculdades – da Natureza universal (tabi’at al-kull)[25]; esta engloba todos os receptáculos (qawabil) do mundo, de alto a baixo[26]. Mas isto a razão discursiva não compreenderá, pois
esta ordem de conhecimento provém unicamente da intuição divina (al-kashf
al-ilahi); é somente através dela que se pode
conhecer a raiz das formas do mundo, na medida em que elas são receptivas aos
olhos dos espíritos que as regem[27].
É
assim que este ser [adâmico] foi chamado Homem (insan) e Representante (khalifah) de Deus. Quanto à sua qualidade de homem, ela
designa sua natureza sintética [que contém virtualmente todas as outras
naturezas criadas] e sua aptidão para abarcar todas as Verdades essenciais. O
homem está para Deus (al-haqq) assim
como a pupila está para o olho [a pupila é chamada em árabe “o homem dentro do
olho”], pois a pupila é aquilo através de que o olhar se efetua; pois através
dele [o Homem Universal] Deus contempla Sua criação e lhe envia Sua
misericórdia. Assim o homem é a um tempo efêmero e eterno, ser criado perpétuo
e mortal, Verbo que discrimina [por seu conhecimento distintivo] e une [por sua
essência divina][28]. Por sua existência, o mundo foi completado. Ele
está para o mundo assim como o engaste está para o anel: o engaste porta o selo
que o rei aplica aos cofres de seu tesouro; é por isso que o homem [universal]
é chamado de representante de Deus, de quem ele guarda os tesouros através de
um selo; enquanto o selo do rei estiver colocado sobre os cofres de seu
tesouro, ninguém ousará abri-los sem permissão; assim foi confiada ao homem a
salvaguarda divina do mundo, e o mundo não cessará de estar guardado enquanto
este Homem Universal (al-insan al-kamil)
residir nele. Veja assim que, desde que ele desapareça e for transportado dos
cofres deste mundo de baixo, nada do que Deus conserva aí ficará, e tudo o que
ele contém sairá, e cada parte reencontrará sua parte [correspondente]; o todo
será transportado para o outro mundo, e [o Homem Universal] será o selo dos
cofres do outro mundo perpetuamente.
Tudo
o que implica a “Forma Divina”, vale dizer todo o conjunto dos Nomes [ou
Qualidades universais], manifesta-se nesta constituição humana que, por isso,
distingue-se [das demais criaturas] pela integração [simbólica] de toda a
existência. Daí o argumento divino que condenou os Anjos [que não viam a razão
de ser nem a superioridade intrínseca de Adão]; lembremo-nos disto, porque Deus
nos exorta pelo exemplo de outrem, e vê como o julgamento atinge aquele a quem
atinge. Os anjos não conscientizam aquilo que implica a constituição deste
representante [de Deus sobre a terra], e também não conscientizam aquilo que
implica a adoração essencial (dhatiyah)
de Deus; pois cada qual só conhece de Deus aquilo que ele próprio infere. Ora, os Anjos não possuem a natureza integral
de Adão; eles não realizam os Nomes divinos cujo conhecimento é privilégio dessa
natureza e pelos quais esta O “louva” [afirmando seus aspectos de Beleza e de
Bondade] e O “proclama Santo” [atestando Sua Transcendência essencial]; eles
não sabem que Deus possui Nomes que se subtraem ao seu conhecimento e pelos
quais eles não saberiam “louvá-Lo” nem “proclamá-Lo Santo”.
Eles
foram vítimas de sua própria limitação quando disseram, a respeito da criação
[de Adão sobre a terra]: “Pretendes Tu criar alguém que semeie a corrupção?”
Ora, o que é esta corrupção senão a revolta, portanto precisamente aquilo que
eles próprios manifestaram? Aquilo que eles disseram de Adão aplica-se à sua
própria atitude diante de Deus. De resto, se tal possibilidade [de revolta] não
estivesse em sua natureza, eles não a teriam afirmado inconscientemente a respeito
de Adão; se eles tivessem tido conhecimento de si mesmos, eles seriam isentos,
devido a este conhecimento, dos limites que eles têm; eles não teriam insistido
[em sua acusação a Adão] até tornar vão seu proprio “louvor” a Deus e àquilo
pelo que eles O proclamaram “Santo”, enquanto que Adão realizava os Nomes
divinos que os Anjos ignoravam, de sorte que nem seu “louvor” (tasbih), nem sua “proclamação da Santidade divina” (taqdis) assemelhavam-se ao louvor e à proclamação de Adão.
Isto,
Deus o descreve para que estejamos atentos e para que aprendamos a atitude
correta em relação a Ele – exaltado seja! -
livres de pretensão a respeito daquilo que realizamos ou abraçamos com
nossa ciência individual; de resto, como poderíamos nós pretender possuir seja
lá o que for que nos ultrapassa [em sua realidade universal] e que não
conhecemos [essencialmente]? Sejamos então atentos a esta instrução divina
sobre o modo como Deus castiga os mais obedientes e mais fiéis dos Seus
servidores, Seus representantes mais próximos [segundo a hierarquia geral dos
seres].
Voltemos
agora à Sabedoria [divina de Adão]. Podemos dizer a seu respeito que as Idéias
universais (al-umur al-kulliyah)[29], que evidentemente não têm existência individual
enquanto tais, não deixam por isso de
estar presentes, inteligivelmente, distintamente, no mental; elas permanecem
sempre interiores em relação à existência individual, mas determinam tudo o que
pertence a esta. Mais do que isto, tudo o que existe individualmente não é
outra coisa do que a expressão destas Idéias universais, sem que estas cessem
por isso de serem em si mesmas puramente inteligíveis. Elas são portanto
exteriores enquanto determinações implicadas na natureza individual e, por
outro lado, interiores enquanto realidades inteligíveis. Tudo o que existe
individualmente provém destas Idéias, que permanecem entretanto unidas
inseparavelmente ao intelecto e não poderiam ser individualmente manifestadas
de modo a sair de sua existência puramente inteligível, quer se trate da
manifestação individual no tempo, quer fora dele[30]; pois a relação entre o ser individual e a Idéia
universal é sempre a mesma, esteja este ser submetido ou não à condição
temporal. Apenas, a Idéia universal assume por sua vez certas condições que são
próprias às existências individuais, segundo as realidades (haqaiq) que definem estas mesmas existências. Assim
acontece, por exemplo, quanto à relação que une o conhecimento ao conhecedor ou
a vida ao vivente: o conhecimento e a vida são realidades inteligíveis,
distintas uma da outra; ora, nós afirmamos a respeito de Deus que ele é
conhecedor e vivo, e afirmamos igualmente a respeito do Anjo que ele é
conhecedor e vivo, e dizemos o mesmo do homem; em todos os casos, a realidade
inteligível do conhecimento ou da vida permanece a mesma, e sua relação com o
conhecedor ou com o vivente é idêntica em cada caso; e no entanto, dizemos que
o conhecimento divino é eterno e que o conhecimento do homem é efêmero; existe
portanto qualquer coisa nesta realidade inteligível, que é efêmera por sua
dependência em relação a uma condição [limitativa]. Ora, consideremos esta
dependência recíproca entre as realidades ideais e as realidades individuais[31]: assim como o conhecimento determina aquele que dele
participa – pois o chamamos conhecedor – também aquilo que é qualificado pelo
conhecimento determina por sua vez o conhecimento, de modo que ele é efêmero em
conexão com o efêmero e eterno em conexão com o eterno; e cada um dos dois
lados é, em relação ao outro, a um tempo determinante e determinado. É certo
que essas Idéias universais, apesar de sua inteligibilidade, não possuem, como
tais, existência [própria], mas apenas uma existência principial; da mesma
forma, desde que elas se aplicam ao indivíduo, elas aceitam sua condição (hukm) sem entretanto assumir sua distinção nem sua
divisibilidade; elas estão integralmente presentes em qualquer coisa
qualificada por elas, assim como a hominidade (a qualidade do homem)
apresenta-se integralmente em cada ser particular desta espécie sem sofrer nem
a distinção nem o número que afetam os indivíduos, e sem cessar de ser em si
mesma uma realidade puramente intelectual.
Ora,
como existe uma dependência mútua entre aquilo que possui uma existência
individual [ou substancial] e aquilo que não, e que esta é uma relação
não-existente[32] como tal, é fácil conceber que os seres estão
ligados entre si; pois nesses casos, existe sempre um termo médio, a saber a
existência como tal, enquanto que no primeiro caso a relação mútua existe mesmo
na ausência de um termo médio.
Sem
dúvida, o efêmero não é concebível como tal, vale dizer em sua natureza efêmera
e relativa, a não ser em relação a um princípio do qual ele extrai sua própria
possibilidade, de modo que ele não tem existência em si mesmo, mas a tem a
partir de outra coisa à qual está ligado por sua dependência. E é certo que
este princípio é em si mesmo necessário, que ele subsiste por si mesmo e é
independente, em seu ser, de toda e qualquer outra coisa. É este princípio que,
por sua própria essência, confere ser ao efêmero que dele depende.
Mas,
uma vez que o princípio exige de per si
a existência do ser efêmero, este se coloca, sob este aspecto, não apenas como
“possível” mas também como “necessário”. E uma vez que o efêmero depende
essencialmente de seu princípio, é preciso também que ele apareça sob a “forma”
qualitativa do princípio, em tudo o que ele tira deste, como os “nomes” e as
qualidades, com a exceção apenas da autonomia principial, que não se aplica ao
ser efêmero, embora este seja “necessário”; é que ele é necessário em virtude
de um outro, não de si mesmo.
Dado
que o ser efêmero manifesta a “forma” do eterno, é pela contemplação do efêmero
que Deus nos comunica o conhecimento de Si; Ele nos diz no Corão que Ele nos
mostra os seus “sinais” no efêmero (“Nós mostraremos Nossos sinais nos
horizontes e neles mesmos...” – Corão, XLI, 53). É a partir de nós mesmos que
chegamos a Ele; nós não Lhe atribuimos nenhuma qualidade sem que tenhamos nós
mesmos esta qualidade, à exceção da autonomia existencial. A partir do momento
em que nós O conhecemos por nós e a partir de nós, nós Lhe atribuimos tudo
aquilo que atribuimos a nós mesmos, e é por isto, por outro lado, que a
Revelação nos foi dada pela boca de intérpretes [ou seja, dos profetas] e que
Deus descreve a Si mesmo por meio de nós. Ao contemplá-Lo, nos nos
contemplamos, e ao nos contemplar Ele Se contempla, embora sejamos
evidentemente muito numerosos em indivíduos e gêneros; nós estamos unidos, é
verdade, numa única e mesma realidade essencial, mas não deixa de existir por
isso uma distinção entre os indivíduos, sem o que, aliás, não haveria
multiplicidade na unidade.
Da
mesma forma, embora sejamos qualificados, sob todos os aspectos, pelas
qualidades que pertencem a Deus, existe [entre Ele e nós] uma diferença certa,
a saber nossa dependência em relação a Ele, naquilo que é do Ser, e nossa
conformidade essencial para com Ele, em razão de nossa possibilidade mesma; mas
Ele é independente de tudo o que faz a nossa indigência. É neste sentido que é
preciso entender a eternidade sem começo (al-azal) e a antiguidade (al-qidam) de
Deus, que de resto anulam a primazia (al-awwaliyah) divina que significa a passagem da não-existência à
existência: embora Deus seja o Primeiro (al-awwal) e o Último (al-akhir), Ele não
pode ser chamado o Primeiro no sentido temporal, pois neste caso ele seria
também o Último neste mesmo sentido; ora, as possibilidades de manifestação não
têm fim: elas são inesgotáveis. Se Deus é chamado de Último, é porque toda a
realidade retorna finalmente a Ele, depois de ser trazida a nós: Sua qualidade
de Último é assim essencialmente Sua qualidade de Primeiro, e inversamente.
Sabemos
também que Deus descreve a Si mesmo como o “Exterior” (al-zahir) e como o “Interior” (al-batin), e que Ele manifestou o mundo ao mesmo tempo como
interior e como exterior, a fim de que conheçamos o “interior” [de Deus]
através de nosso próprio interior, e o “exterior” através de nosso exterior. Da
mesma forma, Ele descreveu a Si mesmo pelas qualidades da clemência e da cólera,
e Ele manifestou o mundo como um lugar de temor e esperança, para que tenhamos
medo de Sua cólera e para que esperemos Sua clemência. Ele descreveu a Si mesmo
pela beleza e a majestade e nos dotou de temor reverencial (al-haybah) e de intimidade (al-uns). O mesmo acontece para tudo o que se refere a Ele e
através de quê Ele Se designou. Ele simbolizou os pares de qualidades
[complementares] pelas duas mãos que Ele estendeu para a criação do Homem
universal; este reune em si todas as realidades essenciais (haqaiq) do mundo, tanto em seu conjunto quanto em cada um
dos seus indivíduos. O mundo é o aparente, e o representante [de Deus nele] é o
oculto. É graças a isto que o sultão permanece invisível, e é neste sentido que
Deus diz de Si mesmo que Ele se esconde atrás dos véus das trevas – que são os
corpos naturais – e os véus de luz – que são os espíritos sutis[33] –; pois o mundo é feito de substância grosseira (kathif) e de substância sutil (latif).
O
mundo é para si seu próprio véu, de modo que ele não pode ver Deus porque ele
vê a si mesmo; ele não pode desfazer-se de seu véu, sabendo que ele se liga,
por sua dependência, ao seu Criador. É que o mundo não participa da autonomia
do Ser essencial, de tal modo que ele não O concebe de modo algum. Sob este aspecto,
Deus permanece sempre desconhecido, tanto para a intuição quanto para a
contemplação, pois o efêmero não tem alcance até aí [ou seja, até o eterno].
Quando
Deus disse a Iblis: “O que te impede de te prosternares diante daquele que Eu
criei com as Minhas duas Mãos?”[34], a menção às duas mãos indica uma distinção para
Adão; Deus faz assim alusão à união em Adão de duas formas, a saber a forma do
mundo [análoga às Qualidades divinas passivas] e a “forma” divina [análoga às
Qualidades divinas ativas], que são as duas Mãos de Deus[35]. Quanto a Iblis, ele não passa de um fragmento do
mundo; ele não recebeu a natureza sintética em virtude da qual Adão é o
representante de Deus. Se Adão não tivesse sido manifestado na “Forma” d’Aquele
que lhe confiou Sua representação diante dos outros, ele não seria Seu
representante; e se ele não contivesse tudo aquilo de que necessita o rebanho
que ele deve guardar – é dele que este rebanho depende, e ele deve atender a
todas as suas necessidades – ele não representaria Deus para as outras
[criaturas].
A
representação de Deus não se manifesta senão no Homem universal, cuja forma
exterior é criada a partir das realidades (haqaiq) e das formas do mundo, e cuja forma interior corresponde à “Forma” de
Deus [ou seja à “soma” dos Nomes e das Qualidades divinas]. Por causa disto,
Deus disse dele: “Eu sou seu ouvido e sua vista”; Ele não disse: “sua orelha e
seus olhos”, mas distinguiu as duas “formas” uma da outra[36].
O
mesmo acontece com qualquer ser deste mundo sob o aspecto de sua própria
realidade [transcendente]; entretanto, nenhum ser encerra uma síntese parecida
com a que distingue o Representante; e é só por esta síntese que ele ultrapassa
os demais.
Se
Deus não penetrasse com sua “Forma”[37] a existência, o mundo não existiria; da mesma forma,
os indivíduos não seriam determinados se não existissem as Idéias universais.
Segundo esta verdade, a existência do mundo reside na sua dependência em
relação a Deus. Na realidade cada qual depende [do outro: a “Forma divina”
depende da forma do mundo e vice-versa]; nenhum é independente [do outro]; é a
pura verdade; nós não nos exprimimos em metáforas. Por outro lado, quando eu
falo daquilo que é absolutamente independente, todos saberão o que eu entendo
por isto [ou seja, a Essência infinita e incondicionada]. Cada qual [tanto a
“Forma divina” quanto o mundo] está assim ligado ao outro, e um não pode ser
separado do outro; entendam bem o que eu digo!
Ora,
sabemos agora o sentido espiritual da criação do corpo de Adão, ou seja sua
forma aparente, e da “criação” de seu espírito, que é a “forma” interior. Adão
é assim Deus e criatura. E compreendemos qual é seu grau [cósmico], a saber
aquele da síntese [de todas as qualidades cósmicas], síntese em virtude da qual
ele é o representante de Deus.
Adão
é a “Alma única” (an-nafs al-wahidah) da
qual foi criado o gênero humano, segundo a palavra divina [corânica]: “Ó vós,
homens, temei vosso Senhor que vos criou de uma alma única, que criou dela sua
esposa, e que desdobrou desta dupla muitos homens e mulheres” (Corão, IV, 1). A
expressão “temei vosso Senhor” significa: fazei de vossa forma aparente uma
salvaguarda de vosso Senhor, e fazei de vosso interior – vale dizer, de vosso
Senhor – uma salvaguarda para vós mesmos; todo ato [ou ordem divina] consiste em
vergonha e louvação [em negação e afirmação]; sejam pois Sua salvaguarda quanto
à vergonha [ou seja, enquanto criaturas limitadas] e tomem-n’O por salvaguarda
na louvação[38], para que tenham, dentre todos os seres, a atitude
mais justa [perante Deus].
Após
havê-lo criado, Deus fez ver a Adão tudo aquilo que colocou nele; e Ele tomou o
todo em Suas duas Mãos: uma continha o mundo, a outra Adão e seus descendentes;
depois ele mostrou a estes os lugares que eles ocupariam no interior de Adão[39].
Uma
vez que Deus me fez ver aquilo que ele colocou no gerador primordial, eu
transcrevi neste livro a porção que me foi assinalada, mas não tudo o que eu
realizei; pois isto, nenhum livro nem o mundo inteiro conseguiria conter. Ora,
dentre as coisas que eu contemplei e que puderam ser transcritas neste livro,
na medida em que me encarregou o Enviado de Deus – sobre ele a benção e a paz!
– estava a Sabedoria divina segundo o Verbo Adâmico; é dela que tratou este
capítulo.
A SABEDORIA
DA INSPIRAÇÃO DIVINA
(AL HIKMAT AN-NAFATHIYAH)
SEGUNDO O VERBO DE SETH
Saibam
todos que os dons e os favores [de Deus][40], que se espalham neste mundo por intermédio das
criaturas ou sem seu intermédio, distinguem-se, para o homem de gosto
espiritual (adh-dhawq), em dons
essenciais [como o Conhecimento imediato] e em dons que advêm dos Nomes divinos
[como os aspectos divinos da Beleza, da Bondade, da Vida, etc.]. Por outro
lado, eles diferem segundo sejam recebidos na seqüência de uma dada demanda, ou
se correpondem a demandas indeterminadas, ou ainda se são recebidos sem demanda
alguma, e isto independentemente de sua distinção em dons essenciais e dons
conforme os Nomes divinos. Existe uma demanda determinada se alguém diz: “Ó
Senhor, concedei-me tal coisa”, e se ele só visa esta coisa. Uma demanda não
determinada, ao contrário, é aquela de um homem que ora: “Ó Senhor, concedei-me
aquilo que é para meu bem, e de todas as partes, sutis e corporais, do meu
ser”, sem que ele vise uma coisa em particular.
Quanto
àqueles que pedem, eles dividem-se em dois grupos: uns obedecem ao impulso
natural de apressar a obtenção [de uma coisa desejada], - pois “o homem foi
criado apressado”[41] – e outros pedem porque sabem que existem perto de
Deus coisas que, segundo a Presciência divina, não podem ser atingidas senão em
virtude de uma demanda; eles se dizem então: “talvez aquilo que eu peço a Deus
seja desta espécie”. Seu pedido leva em conta, de uma maneira global, os modos
possíveis da Ordem divina; eles não sabem o que a Ciência divina implica, nem o
que resulta de sua predisposição (isti’dad)
em receber; pois uma das coisas mais difíceis de conhecer é a predisposição de
um ser em cada instante singular [de sua vida]; de resto, se ele não estivesse
predisposto a uma dada demanda, ele não pediria. Quanto aos contemplativos que
não conhecem sua predisposição, eles a reconhecem, na melhor das hipóteses, no
instante mesmo em que a vivem; pois, por seu estado de presença (hudur) [com Deus] eles sabem o que Deus lhes dá em cada
instante, e sabem que só recebem em virtude de sua predisposição. Eles
dividem-se, por sua vez, em duas categorias: uns conhecem sua predisposição por
aquilo que receberam; outros conhecem aquilo que receberão devido à sua
predisposição; e é este último conhecimento o mais perfeito no interior deste
grupo.
Faz
parte desta categoria aquele que pede, não para acelerar a obtenção de um dom,
nem para abarcar os modos possíveis [do favor divino], mas para conformar-se à
ordem divina, expressa pela Palavra: “pedi-Me e Vos responderei!” Este é o adorador
(al-abd) por excelência; quando ele
pede, seu desejo não se liga à coisa pedida, seja ela determinada ou não, mas
visa apenas a conformidade à ordem de seu Senhor. Quando seu estado espiritual
exige o abandono e a tranquilidade, ele se contém; assim, Jó e outros foram
postos à prova, até que seu estado espiritual exigiu, num dado momento, que
eles pedissem que esta fosse levantada; então eles pediram, e Deus os aliviou.
Que o
atendimento de uma demanda seja imediato ou paulatino, isto vem de sua medida (qadr) predestinada por Deus; se o pedido é feito no
momento predestinado para a resposta, esta é imediata, e se o atendimento está
previsto para um tempo ulterior, seja neste mundo seja no outro, a resposta
será agendada; entendo o atendimento efetivo da demanda, não como a resposta
divina: “Eu estou presente!” [que é sempre imediata]; compreendam bem isto!
Quanto
à segunda categoria de dons, que dizemos serem recebidos sem demanda, é preciso
esclarecer que entendemos por demanda a prece enunciada em palavras; pois em
princípio deve sempre haver demanda, quer ela consista num estado espiritual (hal), quer ela resulte simplesmente da predisposição
[íntima] do ser. Da mesma forma, louvar a Deus significa, rigorosamente,
pronunciar uma louvação diante d’Ele; mas no sentido espiritual, esta louvação
é necessariamente determinada por um estado espiritual, pois o que incita a
louvar a Deus é [o assentimento] de um Nome divino, que exprime uma atividade
de Deus ou a um aspecto de Sua transcendência. Quanto à sua predisposição, o
ser individual não é consciente dela; o que ele experimenta é o estado (al-hal), pois ele conhece aquilo que o incita [a louvar ou
a pedir]; a predisposição permanece a coisa mais escondida.
O que
impede alguns de pedir, é saber que Deus decidiu seu destino por toda a
eternidade; eles prepararam sua morada [sua alma] para acolher aquilo que vier
d’Ele, e eles se desembaraçaram de seu ego (an-nafs) e de sua existência individual. Dentre estes,
existem aqueles que sabem que a Ciência que Deus tem deles, em cada um de seus
estados, identifica-se com aquilo que eles próprio são em seu estado de
imutabilidade [principial] antes de sua manifestação; e eles sabem que Deus não
lhes dará nada que não resulte desta essência (al-‘ayn), essência que é eles mesmos em seu estado de
permanência principial. Eles sabem portanto de quê resulta o Conhecimento
divino a seu respeito. Nenhuma categoria de conhecedores de Deus é superior
àquela dos homens que realizam assim o mistério da predisposição. Eles dividem-se
por seu turno em dois grupos: existem os que conhecem isto de uma maneira
global, e outros de modo distinto; os últimos ocupam um grau superior, pois
aquele que tem um conhecimento distinto daquilo de que se trata reconhece o que
o Conhecimento divino implica a seu respeito, seja que Deus lhe revela aquilo
que, pelo conhecimento, resulta de sua própria essência (‘aynuh), seja que Ele revela diretamente sua essência
imutável (al-‘ayn ath-thabitah) e o
desenrolar sem fim dos estados que daí derivam. É este último conhecedor que
ocupa o grau superior, pois em seu conhecimento de si mesmo ele adota o ponto
de vista divino, por ser o objeto do seu conhecimento o mesmo [que o objeto do
Conhecimento divino]. Entretanto, quando consideramos esta identificação [do
conhecimento do contemplativo com o Conhecimento divino] do lado individual,
ela se apresenta como uma ajuda divina predestinada a este indivíduo em virtude
de um dado conteúdo de sua essência imutável, conteúdo que este ser reconhecerá
desde que Deus lhe faça ver; pois, desde que Deus lhe mostra os conteúdos de
sua essência imutável que recebe diretamente o Ser[42], isto ultrapassa evidentemente as faculdades da
criatura enquanto tal; pois ela é incapaz de apropriar-se do Conhecimento
divino que se aplica a estes arquétipos (al-a’yan ath-thabitah) em seu estado de não existência (‘udum), sendo estes arquétipos nada mais do que puras
relações essenciais (nisab dhatiyah) sem
formas próprias. É sob este aspecto [vale dizer, em razão da
incomensurabilidade do Conhecimento divino e do conhecimento individual] que
dizemos desta identificação [com o Conhecimento divino], que ela representa uma
ajuda divina predestinada a um dado indivíduo.
É sob
este mesmo prisma que devemos compreender a palavra divina: “[Nós vos testaremos]
até que Nós saibamos...”, [como se Deus não soubesse com antecedência o que
farão as criaturas], o que é uma expressão rigorosamente adequada,
contrariamente ao que pensam aqueles que não bebem desta fonte; pois a
transcendência de Deus afirma-se mais perfeitamente pelo fato de que o
Conhecimento parece temporal por sua relação [com qualquer coisa temporal,
assim como ela se reconhece como eterna em sua conexão com um objeto eterno].
Este é o aspecto mais universal que um teólogo pode logicamente conceber a
respeito desta matéria, a menos que ele considere a Ciência divina como
distinta da Essência e atribua a relatividade à Ciência na medida em que ela
difere da Essência. Segundo [esta última perspectiva], ele se distingue do
verdadeiro conhecedor de Deus, dotado da intuição (kashf) e que realiza o ser (al-wujud).
Mas
voltemos agora à distinção dos dons [divinos] em dons essenciais e dons
conforme os Nomes. No que toca aos favores e dons essenciais, eles não são
prodigalizados senão em virtude de uma revelação (ou irradiação: tajalli) divina; ora, a Essência não se revela senão sob a
“forma” da predisposição do indivíduo que recebe esta revelação; jamais
acontece de outro modo. A partir daí, a pessoa que recebe a revelação essencial
não verá senão sua própria “forma” no espelho de Deus; ele não verá Deus – é
impossível que ele O veja – mesmo sabendo que ele só vê sua “forma” em virtude
deste espelho divino. Isto é análogo ao que acontece com um espelho corporal:
quando contemplamos as formas nele não vemos o espelho, mesmo sabendo que só
vemos estas formas – e também nossa própria forma – por causa do espelho[43]. Este fenômeno, Deus o manifestou como símbolo
particularmente apropriado à Sua revelação essencial, para que aquele a quem
Ele Se revela saiba que não O está vendo; não existe símbolo mais direto e mais
conforme à contemplação e à revelação de que se trata[44]. Tente ver por si mesmo o corpo do espelho ao mesmo
tempo em que olha a forma que aí se reflete: você jamais verá as duas coisas ao
mesmo tempo. Isto é tão verdadeiro que alguns, observando esta lei das formas
refletidas nos espelhos [corporais e espirituais], pretenderam que a forma
refletida interpõe-se entre a vista do contemplante e o próprio espelho; é o
que de mais elevado encontraram no domínio do conhecimento espiritual; mas na
realidade a coisa acontece como dissemos [a saber, que a forma refletida não
esconde o espelho, mas que este a manifesta]. Aliás, já explicamos este ponto
em nosso livro “As Revelações de Meca”.
Se você experimentar isto, estará experimentando o limite extremo que a
criatura como tal pode atingir [em seu conhecimento “objetivo”]; não aspire
além e não canse sua alma em ultrapassar este grau, pois além dele não existe,
em princípio e em definitivo, senão a pura não-existência [pois a Essência é
não–manifestada].
Deus
é assim o espelho no qual você se vê, como você é Seu espelho, no qual Ele
contempla Seus Nomes [e seus princípios]. Ora, estes não são outra coisa que
Ele próprio, de sorte que a realidade se inverte e se torna ambígua. Alguns de
nós implicam a ignorância em seu conhecimento [de Deus] e citam a respeito a palavra [do califa Abu
Bakr]: “Entender que somos impotentes para conhecer o Conhecimento é um
conhecimento”. Mas existe entre nós um que conhece [verdadeiramente] e não
pronuncia estas palavras; seu conhecimento não implica uma incapacidade de
conhecer, ele implica o inexprimível; e é este último que realiza o
conhecimento mais perfeito de Deus.
Ora,
este conhecimento não foi dado senão ao Selo dos enviados de Deus (khatim
ar-rusul)[45], e ao Selo dos santos (kathim al-awliya)[46]; nenhum dos profetas e dos enviados[47] levou-o além do tabernáculo (mishkat)[48] do enviado que é seu selo. Por outro lado, nenhum
dos santos o leva além do tabernáculo do santo que é seu selo; de sorte que os
enviados também levam seu conhecimento, na medida em que o levam, ao
tabernáculo do selo dos santos, pois a função de enviado de Deus e a de profeta
– entendo a função de profeta quando ela comporta a promulgação de uma lei sagrada
– cessam, enquanto que a santidade não cessa jamais; por isso, os enviados não
recebem este conhecimento, na medida em que eles também são santos, senão do
tabernáculo do Selo dos santos[49]. Uma vez que é assim [para os enviados e os
profetas], como poderia ser diferente para os outros santos? E isto é verdade,
embora o Selo dos santos se conforme com a lei sagrada dada pelo Selo dos
profetas; isto não traz prejuízo ao seu grau espiritual e não contradiz nada do
que dissemos; pois é impossível que ele seja inferior de um certo ponto de
vista, mas sendo-lhe superior de outro. O que entendemos por isso acha-se de
resto confirmado, na história de nossa religião, pela preferência [devida a uma
revelação ulterior] do julgamento de Omar [sobre aquele do Profeta] no que diz
respeito ao tratamento dos prisioneiros após a batalha de Badr [tendo o Profeta
pretendido aceitar um resgate por eles, enquanto Omar aconselhou a sua
libertação ou condenação]; da mesma forma, ela se manifesta no episódio
referente à fertilização da tamareira [em que o conselho do Profeta foi
preterido, o que o fez dizer: “Vós sois mais entendidos do que eu nos negócios
de vosso mundo aqui em baixo”]. Não é necessário que o perfeito ultrapasse os
outros sob todos os aspectos; mas os homens espirituais consideram apenas a
superioridade sob o aspecto do conhecimento de Deus; quanto às existências
efêmeras, seu espírito não se liga a elas. Conscientizem-se do que acabamos de
expor!
Quando
o Profeta comparou a função profética com um muro de alvenaria quase terminado
no qual faltava apenas um tijolo, ele identificou-se com este tijolo[50]. Ele não viu, como ele disse, senão o lugar de um
único tijolo a ser preenchido. Ora, o Selo dos santos terá uma visão análoga:
apenas, ele perceberá, naquilo que o Profeta simboliza como um muro inacabado,
o lugar de dois tijolos a ser preenchido; os tijolos com os quais foi
construído o muro parecer-lhe-ão feitos de ouro e prata; e o Selo dos santos
verá a si próprio como correpondendo ao lugar que deverá ser preenchido pelos
dois tijolos para terminar o muro. A razão pela qual ele se vê sob a forma de
dois tijolos é que ele adere exteriormente à lei dada pelo selo dos enviados –
que corresponde ao tijolo de prata – e que ele bebe interiormente de Deus
aquilo mesmo que, segundo sua forma aparente, apresenta-se como uma adesão à
lei que o precedeu; pois ele vê necessariamente a ordem divina (al-amr) tal como ele é – e é isto que corresponde ao tijolo
de ouro, símbolo de sua natureza interior – uma vez que o Selo dos santos bebe
da mesma fonnte em que bebeu o Anjo que inspirou o enviado de Deus[51]. Se você compreender isto a que eu faço alusão, terá
atingido a ciência plenamente eficaz.
Todo
profeta, sem exceção, desde Adão até o último, tira assim [suas luzes] do
tabernáculo do Selo dos profetas; se a argila deste último não tivesse sido
formada antes da dos outros, nem por isso ela estaria menos presente por sua
realidade espiritual, conforme a palavra de Maomé: “Eu era profeta enquanto
Adão estava ainda entre a água e a argila”. Qualquer outro profeta só se tornou
tal quando foi desperto para sua função. Do mesmo modo, o Selo dos santos era
santo, “quando Adão ainda estava entre a água e a argila”, enquanto que os
demais santos só se tornaram santos após terem realizado as condições de
santidade, que são a assimilação das Qualidades divinas que decorrem do aspecto
de Deus que se exprime pelos Seus Nomes de “Santo” (al-wali) e “Louvado” (al-hamid) [este último designando o protótipo das qualidades positivas do
criado]. O Selo dos enviados liga-se assim, sob o aspecto da santidade, ao Selo
dos santos, do mesmo modo como os outros enviados e profetas ligam-se a ele.
Pois ele é simultaneamente o santo (al-wali), o enviado (ar-rasul) e o profeta (an-nabi). Quanto
ao Selo dos santos, ele é o santo, o herdeiro (al-warith) que bebe da origem, aquele que contempla todos os
graus.
Vamos
agora aos dons que decorrem dos Nomes divinos: a misericórdia (rahmah) que Deus prodigaliza às Suas criaturas provém
inteiramente dos Nomes divinos: ela é, seja a misericórdia pura, como tudo o
que é lícito nos alimentos e alegrias naturais e que não será objeto de
vergonha no dia da ressurreição [conforme a palavra corânica: “Dizei: quem
então tornará ilícita a beleza que Deus manifestou para seus servidores e as
coisas lícitas dos alimentos; dizei: elas são para os que crêem, neste mundo, e
elas não estarão sujeitas à reprovação no dia da ressurreição...”] – e são
estes dons que provêm do Nome ar-Rahman
– seja a misericórdia misturada [com o castigo], como os remédios
desagradáveis, mas que funcionam. Estes são os dons divinos, pois Deus [em seu
aspecto pessoal ou qualificado] não dá jamais se não for por intermédio de um
dos seus guardiães do templo, que são Seus Nomes. Assim, às vezes Deus
gratifica o servidor através do nome O Clemente (ar-Rahman), e é então que o dom é livre de qualquer mescla que
seria momentaneamente contrária à natureza daquele que o recebe, ou que
contrariaria a intenção ou outra coisa [junto ao requerente]; às vezes, Ele dá
por intermédio do nome O Vasto (al-wasi),
prodigalizando seus dons de uma maneira global, ou do nome O Sábio (al-hakim) visando aquilo que é salutar [para o servidor] no momento, ou por
intermédio do nome Aquele-que-dá-gratuitamente (al-wahhab), dispensando bens sem que aquele que os recebe em
virtude deste nome deva compensá-lo por ações de graça ou mérito; ou ainda Ele
dá através do nome Aquele-que-restabelece-a-ordem (al-jabbar), considerando o meio cósmico e aquilo de que ele
necessita, ou pelo nome O Perdoador (al-ghaffar), considerando o estado daquele que receberá o perdão; se ele se encontra num estado que
mereça o castigo, Ele o protegerá deste castigo, e se ele se acha num estado
que não merece castigo, Ele o protegerá de um estado que mereça, e é neste
sentido que o Servidor [santo] é considerado salvaguardado ou protegido do
pecado. O doador é sempre Deus, no sentido de que é Ele o tesoureiro de todas
as possibilidades e que Ele não produz delas senão uma medida predestinada, e
pela mão de um Nome que se refira àquela possibilidade. Assim, Ele dá a cada
coisa sua constituição própria em virtude de Seu nome O Justo (al-adl) e de seus irmãos [como O Árbitro (al-hakam), Aquele-que-rege (al-wali), O Vencedor (al-qahhar), etc.].
Embora
os Nomes divinos sejam indefinidos quanto à sua multitude – pois os conhecemos
pelo que deles decorre, que é igualmente indefinido – eles não deixam de se
reduzir a um número definido de “raízes” que são as “mães” dos Nomes divinos ou
as Presenças [divinas] que integram estes Nomes. Em verdade, não há mais do que
uma única e mesma Realidade essencial (haqiqah) que assume todas estas relações e aspectos que designamos pelos Nomes
divinos. Ora, esta Realidade essencial faz com que cada um de seus Nomes que se
manifestam indefinidamente, comporte uma verdade essencial pela qual ele se
distingue dos outros Nomes; é esta verdade distintiva e não a que ele tem em
comum com os outros, que é a determinação própria do Nome. Assim como os dons
divinos distinguem-se uns dos outros por sua natureza pessoal, embora provenham
todos de uma mesma fonte – e aliás é evidente que um não é o outro – ; a razão
é precisamente a distinção dos Nomes divinos. Devido à Sua infinitude, não
existe na Presença divina absolutamente nada que se repita – e esta é uma
verdade fundamental.
Esta
é a ciência de Seth, sobre ele a Paz! Seu espírito a comunica a todo espírito
que dela proferir alguma coisa, à exceção entretanto do espírito do Selo que
recebe esta ciência diretamente de Deus e não por intermédio de um espírito
qualquer; mais do que isto, é do próprio espírito do Selo que este conhecimento
flui para todos os espíritos, embora ele não seja consciente disto enquanto
subsiste em uma forma corporal. Em sua realidade essencial e em sua função
puramente espiritual, ele conhece então diretamente tudo o que ele ignora
devido à sua constituição corporal. Ele é assim simultaneamente o conhecedor e
o ignorante, e podemos atribuir-lhe qualidades aparentemente contrárias, assim
como o seu princípio [divino] que é sua própria essência (aynuh), é a um tempo terrível e generoso, o Primeiro e o
Último.
É em
virtude dessa ciência que Seth recebeu, seu nome que significa “o presente”,
vale dizer o presente de Deus, pois ele detém a chave do dom divino em todos os
seus diferentes modos e sob todos os seus aspectos. É assim, porque Deus fez de
Seth um presente para Adão: ele foi o primeiro presente gratuito que Deus fez
[ou seja, o primeiro presente que não exigiu, da parte de quem recebe, uma
compensação qualquer], e foi o próprio Adão quem o recebeu, pois o filho é a
realidade secreta de seu gerador; é dele que ele provém e é para ele que ele
retorna, ele não o escolhe como uma coisa estranha a si mesmo. É o que
compreenderá aquele que vê as coisas do ponto de vista divino. De resto, todo
dom, no universo inteiro, manifesta-se segundo esta lei: ninguém recebe nada de
Deus, ou seja, ninguém recebe nada que não venha de si mesmo, qualquer que
possa ser a variação imprevista das formas. Mas poucos sabem disto, apenas
alguns iniciados conhecem esta lei espiritual. Se você encontrar alguém que a
conhece, pode ter confiança nele, pois um tal homem é a quintessência pura e o
eleito entre os eleitos dos homens espirituais.
Cada
vez que um intuitivo contempla uma forma que lhe comunica um novo conhecimento
que ele não tinha podido captar antes, esta forma será uma pura expressão de
sua própria essência (ayn) e nada que
seja estranho a ele. É da árvore de sua própria alma que ele colhe o fruto de
sua cultura, assim como sua imagem refletida numa superfície polida não é outra
coisa que não ele, embora o lugar da reflexão – ou a Presença divina – que lhe
apresenta sua própria forma, provoque inversões segundo a Verdade essencial
inerente a tal Presença [divina][52]. É assim que, no caso de um espelho concreto, ele
reflete as coisas segundo suas verdadeiras proporções, o grande como grande, o
pequeno como pequeno, o alongado como alongado e o que se move em movimento,
mas pode acontecer também [segundo sua constituição ou segundo a perspectiva] que
ele inverta as proporções; da mesma forma é possível que um espelho reflita as
coisas sem a inversão habitual, mostrando o lado direito do contemplante do seu
lado direito, enquanto que em geral o lado direito da imagem refletida se ache
diante do lado esquerdo daquele que se olha; podem haver exceções à regra, como
nos casos em que as proporções se invertem; e tudo isto aplica-se igualmente
aos diversos modos da Presença [divina] na qual há lugar para a revelação [da
“forma” essencial do contemplante], e que nós comparamos ao espelho.
Aquele
que conhece sua predisposição, conhece por isso mesmo aquilo que receberá. Ao
contrário, aquele que conhece o que recebe não conhece necessariamente sua
predisposição, a menos que a conhecesse antes de haver recebido, ainda que de
uma maneira geral.
Alguns
pensadores intelectualmente fracos, partindo do dogma de que Deus faz tudo o
que quiser, declararam admissível que Deus possa agir contra os princípios e
contra aquilo que é a realidade (al-amr)
em si [ou seja, em seu estado principial – como se a manifestação de Deus não
procedesse das possibilidades eternamente presentes no Ser divino e no
Intelecto universal]. Devido a este fato, eles chegam a negar a possibilidade
como tal e a não aceitar [como categorias lógicas e ontológicas] senão a
necessidade absoluta [a saber, a da própria “existência” de Deus] e a
necessidade de outrem [ou seja a necessidade relativa]. Mas o sábio admite a
possibilidade, da qual ele conhece o grau ontológico; evidentemente, a
possibilidade [como tal] não é o possível [no sentido daquilo que pode ou não
existir]; e como poderia, se ela é essencialmente necessária em razão de um
[princípio] outro que não ela? Mas enfim,
de onde vem então esta distinção entre ela e seu princípio que a torna
necessária [e de que ela constitui precisamente uma possibilidade de
manifestação]? Mas ninguém conhece a distinção de que se trata, salvo os
conhecedores de Deus.
É
sobre as pegadas de Seth que se manifestará o último nascido deste gênero
humano; ele herdará os mistérios de Seth; não haverá outro ser engendrado
depois dele, de modo que ele será o selo dos engendrados [como Seth foi o
primeiro santo]. Com ele nascerá uma irmã; ela sairá antes dele [enquanto que a
primeira mulher foi manifestada depois do primeiro homem]; ele a seguirá, com
sua cabeça aos pés de irmã. Seu local de nascimento será a China [o país mais
distante na direção do Oriente]; e ele falará a língua de seu país natal.
Nestes dias, a esterilidade se espalhará entre as mulheres e os homens; de modo
que haverá muita cohabitação sem geração. Ele chamará as pessoas para Deus, mas
não haverá resposta. Quando Deus levantar seu espírito e levantar o último
crente destes tempos que virão, aqueles que sobreviverem serão como feras, e
não distinguirão o lícito do ilícito; eles atuarão segundo suas puras
inclinações naturais, seguindo o desejo independente da razão e da lei; é sobre
eles que soará a hora final.
A SABEDORIA
DA TRANSCENDÊNCIA
(AL HIKMAT AS-SUBUHIYAH)
SEGUNDO O VERBO DE NOÉ
(EXTRATO DO CAPÍTULO)
Para
os conhecedores das Verdades divinas (ahl al-haqaiq) afirmar [unilateralmente] que Deus é incomparável
com as coisas, equivale precisamente a limitar e tornar condicional a concepção
da Realidade divina [por assim excluir dela as qualidades das coisas]; aquele
que nega toda similitude diante de Deus, sem se afastar deste ponto de vista
exclusivo, manifesta, seja ignorância, seja falta de “tato”(adab). O exoterista que insiste unicamente sobre a
transcendência divina (at-tanzih) [à
exclusão da imanência (at-tashbi)],
calunia Deus e seus enviados – sobre eles a Benção divina! – sem perceber;
imaginando atingir o alvo, ele erra totalmente; pois é daqueles que não aceitam
senão uma parte da revelação divina e rejeitam a outra[53].
Sabemos
que as Escrituras reveladas como lei comum (shari’ah) exprimem-se, ao falar de Deus, de maneira que a
maioria dos homens possa captar o sentido mais próximo, enquanto que a elite
compreenderá todos os sentidos, a saber todo o significado incluído em cada
palavra conforme às regras da língua empregada[54].
Pois
Deus Se manifesta em cada criatura de uma maneira particular. É Ele que Se
revela em cada significado, e é Ele que permanece escondido a qualquer
compreensão, salvo para aquele que reconhece no mundo a “forma”[55] e a ipseidade (huwiyah) de Deus, e [que que vê o mundo como] o Nome divino O Aparente (az-zahir). Da mesma forma, concebemos Deus idealmente como o
espírito inerente a toda manifestação, de sorte que ele é O Interior (al-batin) sob este aspecto, e que ele está para toda forma
manifestada neste mundo assim como está o espírito que rege a forma corporal
que dele depende. A definição lógica do homem, por exemplo, compreende tanto o
exterior como o interior; o mesmo acontece para toda as coisas definíveis.
Quanto a Deus, Ele Se “define” pela soma de todas as “definições” possíveis[56]; ora, as
“formas” do mundo são indefinidas, não se pode compreendê-las todas nem
conhecer a definição lógica de cada qual, salvo quando elas cabem na definição
de um dado mundo [ou microcosmo]. Devido a isto, ignoramos a “forma” lógica de
Deus, pois só a poderíamos conhecer se conhecêssemos a definição de todas as
“formas”, o que é uma impossibilidade; “definir” Deus, portanto, é impossível.
Da
mesma forma, aquele que compara Deus sem ao mesmo tempo afirmar sua
incomparabilidade, atribui-Lhe limites e não O reconhece mais. Mas aquele que
une em seu conhecimento de Deus os pontos de vista da transcendência e da
imanência, e que atribui a Deus os dois “aspectos” globalmente – pois é
impossível concebê-los em detalhe, pelo fato mesmo de que não se pode abarcar
todas as “formas” do universo – conhece-O verdadeiramente, vale dizer que O
conhece globalmente e não apenas distintivamente; e é por isso, aliás, que o
Profeta liga o conhecimento de Deus ao conhecimento de si mesmo, ao dizer que
“aquele que conhece a si mesmo conhece seu Senhor”. Por outro lado, Deus diz no
Corão: “Nós lhes mostraremos Nossos sinais nos horizontes” – a saber no mundo
exterior – “e neles mesmos” – em sua essência – “até que se lhes torne evidente
que [tudo] é Deus (al-haqq)” (XLI, 53),
no sentido que somos Sua forma e que Ele é nosso espírito, de sorte que somois
[em nossa totalidade] para Ele aquilo que é a forma corporal para nossos
corpos, e que Ele está para nós assim como o espírito que rege a forma de
nossos corpos.
Nossa
definição implica a um tempo nosso exterior e nossa realidade interior; pois a
forma [corporal] que resta, quando o espírito que a regia a deixa, não é mais
um homem; falamos dela como de uma forma que tem aparência humana, mas que não
se distingue [essencialmente] de uma forma feita em madeira ou pedra, e que só
porta o nome de homem por extensão do termo e não no sentido próprio. Ora, Deus
jamais pode abstrair-Se das formas do mundo [pois elas cessariam imediatamente
de existir], de sorte que elas estão necessariamente compreendidas na
“definição” da Divindade (uluhiyah),
enquanto que a forma exterior do homem apenas o define acidentalmente, enquanto
ele permanece nesta vida. Assim como a forma exterior do homem “louva com sua
língua” o espírito e a alma que a regem, também as formas do mundo “glorificam”
a Deus, embora não compreendamos seu louvor [conforme o Corão: “não há nada que
não O glorifique, mas vós não compreendeis seu louvor” (XVII, 44)], e isto para
que não abarquemos todas as formas deste mundo. Cada uma delas é uma língua que
pronuncia o louvor a Deus; e é por isso que [o Corão] diz: “Glória a Deus, o
Mestre dos mundos” (I,2), o que significa que toda louvação em última instância
refere-se a Ele, de sorte que Ele é simultaneamente O que louva e O que é
louvado.
Se
afirmarmos a transcendência divina, condicionaremos [nossa concepção de Deus],
e se afirmarmos Sua imanência, a delimitaremois; mas se afirmarmos
simultaneamente um e outro ponto de vista, seremos isentos de erro e um modelo
de conhecimento.
Aquele
que afirma a dualidade [de Deus e do mundo] cai no erro de associar qualquer
coisa a Deus; e aquele que afirma a singularidade de Deus [excluindo de Sua
realidade tudo o que se manifesta como múltiplo] comete a falta de restringi-la
a uma unidade [racional]. Guardemo-nos da comparação quando considerarmos a
dualidade; e guardemo-nos de abstrair a Divindade quando considerarmos a
Unidade!
Não
somos Ele; e entretanto somos Ele; nós O veremois nas essências das coisas,
soberano e condicionado ao mesmo tempo[57]...
A SABEDORIA SANTA
(AL HIKMAT AL-QUDDUSIYAH)
SEGUNDO O VERBO DE ENOCH (IDRIS)
(EXTRATO DO CAPÍTULO)
...Um
dos Nomes de perfeição de Deus é O Elevado (al-‘ali). Mas em relação a que é Ele elevado, pois não há
nada [no universo] além d’ Ele? [As existências relativas não podem ser tomadas
como termo de comparação com o Ser supremo]. É Ele essencialmente O Elevado ou
o é em relação a alguma coisa? Ora, tudo não é senão Ele. Ele é portanto
elevado em relação a Si mesmo. Por outro lado, como Ele é o Ser de tudo o que
existe, as existências efêmeras são, elas também, elevadas em sua essência,
pois elas são essencialmente idênticas a
Ele.
Deus
é O Elevado sem relatividade; pois as essências [dos seres] (al-a’yan) que não passam [em si mesmas] de não-existência (‘adam), e que são imutáveis neste estado, não chegam nem a
sentir o odor da existência (al-wujud)[58]; elas permanecem tais como eram, apesar da
multiplicidade das formas nas realidades manifestadas. Quanto à determinação
essencial (al-‘ayn) do Ser, ela é única
entre todas e em todas. A multiplicidade não existe senão nos Nomes, que não
passam de relações e realidades não-existentes (umurun’adamiyah). Não há mais que a determinação única da Essência,
que é a Elevada em Si mesma, sem relação com o quer que seja. E sob este
aspecto não existe elevação relativa; mas como os aspectos do Ser comportam uma
hierarquia entre si, a elevação relativa acha-se implicada na determinação
única [do Ser] em virtude de seus aspectos múltiplos. Por esta razão dizemos do
relativo que ele é Ele [ou seja, Deus] e que ele não é Ele, e que nós somos nós
e não o somos.
Abu
Sa’id al-Kharraz, que é ele próprio um dos múltiplos aspectos de Deus e uma de
Suas línguas, diz que Deus não pode ser conhecido [ou “definido”] senão pela
síntese de afirmações antinômicas; pois Ele é o Primeiro e o Último, o Exterior
e o Interior; Ele é a essência daquilo que se manifesta e a essência daquilo
que permanece oculto quando de Sua manifestação. Não há ninguém fora d’Ele que
O possa ver, e ninguém de quem Ele possa se esconder; é Ele que Se manifesta a
Si mesmo, e Ele que Se esconde de Si mesmo. É Ele que se chama Abu Sa’id
al-Kharraz e outros nomes efêmeros. O Interior diz “não” quando o Exterior diz
“Eu”; e o Exterior diz “não” quando o Interior diz “Eu”. O mesmo acontece com
todas as antinomias; entretanto, não existe senão um que fala, e Ele é Seu
próprio ouvinte.
Assim,
as realidades se misturam: a unidade produz os números segundo sua série
conhecida; e os números por sua vez subdividem a unidade. O número não é
manifestado sem aquilo que é contado; e aquilo que está sujeito ao número
comporta de um lado a não-existência e de outro a existência; pois uma coisa
pode ser ausente sobre o plano sensível e existente de uma maneira inteligível.
Existe necessariamente polaridade entre o número e aquilo que está sujeito ao
número; e existe necessariamente uma produção dos números a partir da unidade,
de modo que cada número representa uma idéia única. Cada número, de fato,
abaixo da dezena ou acima dela, até o indefinido, é em si mesmo único; sua
realidade essencial (haqiqah) não é
concebível quantitativamente, pela adição de unidades; o binário, por exemplo,
é uma idéia única, assim como o ternário, e da mesma forma toda a série
indefinida dos números; ora, se cada número representa uma verdade única,
nenhum deles pode essencialmente compreender os outros, mas a adição os toma a
todos pela ordem e os afirma a todos em virtude desta ordem, que comporta vinte
graus [as unidades e as dezenas] que se combinam. Assim, não se cessa de
afirmar aquilo mesmo que se nega a priori [ou seja, afirma-se continuamente a
composição sucessiva da série dos números partindo da idéia única e indivisível
que cada número comporta]. Aquele que compreende o que dizemos dos números, e
que sua negação é ao mesmo tempo sua afirmação, sabe que Deus, que é
transcendente no sentido de tanzih, é
[também] criatura “comparável” no sentido de tashbih – embora a criatura seja diferente do Criador.
A
Realidade é Criador criado [ou seja o Criador imanente à criatura]; ou bem, a
Realidade é criatura criadora [pois Deus não se manifesta senão em vista da
criatura]. Tudo isto não passa da expressão de uma só essência; não, é a um
tempo a essência (al-‘ayn) única e as
essências (al-a’yan) múltiplas.
Considerem portanto aquilo que vêem!
[Isaac
disse a seu pai Abraão que se preparava para sacrificá-lo:] “Ó meu pai, faz o
que te foi ordenado”. Ora, a criança é [simbolicamente] a essência de seu
gerador. Quando Abraão viu num sonho [inspirado] que ele imolaria seu filho,
ele viu na realidade sacrificar a si mesmo. E quando ele trocou seu filho pela
imolação de um cordeiro, ele viu a realidade, que se manifestara sob a forma
humana, manifestar-se sob a forma do cordeiro. É portanto assim que a essência
do gerador se manifestou sob a forma da criança, ou mais exatamente sob o
aspecto da criança.
“[É
Ele quem vos criou de uma só alma] e que dela criou sua companheira...” (Corão,
IV, 1). Em outros termos, Adão desposou sua própria alma; dele sairam tanto sua
mulher como seu filho. É assim que a Ordem [divina] é única dentro da
multiplicidade.
O
mesmo acontece com a Natureza (at-tabi’ah)
e com aquilo que dela procede [produção que é inversamente análoga à
manifestação da Essência]. A Natureza jamais diminui devido às suas produções,
nem aumenta devido à sua reabsorção. Aquilo que ela produz não é outra coisa
que ela mesma, embora ela não seja, como tal, idêntica às suas produções de
variadas formas. Uma, por exemplo, é fria e seca, outra quente e seca[59]; elas são então homogêneas pela secura, mas
distintas por uma outra qualidade. É a qualidade comum que é a Natureza – ou
antes: a determinação primordial [de todas essas qualidades]. O mundo da
Natureza consiste em formas [variadas que se refletem] num espelho único; ou
melhor, é uma única forma [que se reflete] em espelhos diversos.
É
assim que não existe perplexidade (hayrah)
nas perspectivas contraditórias. Mas aquele que compreende o que dissemos não
cai na perplexidade, mesmo quando ele passa de um estado de conhecimento a um
outro; pois [a mudança de perspectiva] não provém senão da condição inerente ao
“lugar” [mahall, que significa a parada espiritual, o estado
receptivo interior]; e o “lugar” [neste sentido] não é senão uma determinação
imediata da essência (al-‘ayn ath-thabitah)
[do ser que contempla a Deus]. É em virtude desta [determinação] que Deus Se
diferencia no “teatro” de Sua revelação, de modo que Ele assume uma por uma
diversas condições; aquilo que O determina [aparentemente] não é senão a
determinação essencial na qual Ele Se revela. Não há nada além disto. Sob um
certo aspecto, Deus é criatura – então, interpretem! – e Ele não é criatura sob
outro aspecto – portanto, lembrem-se!
Quanto
ao Elevado em Si mesmo, Ele é aquele que possui a perfeição [ou a infinitude, al-kamal] na qual “mergulham” todas as realidades
existenciais e todas as relações não-existentes [em si mesmas], no sentido de
que nenhum destes “atributos” Lhe faz falta, seja ele positivo, lógica ou
moralmente, ou negativo, segundo o ccstume, a razão ou a moral. Ora, esta
infinitude não pertence senão Áquele que é designado pelo nome de Allah [que é
o nome da Essência] exclusivamente; quanto ao que é designado por um outro
nome, é, seja um de Seus “lugares de revelação” (majla), seja uma “forma” que Lhe é inerente; se é um
“lugar de revelação”, ele comporta um grau hierárquico, pelo fato mesmo que
existe distinção entre aquele que se revela e aquele em que ele se revela; ao
contrário, se se trata de uma “forma” [no sentido de uma síntese de Qualidades,
contida] em Deus, esta “forma” será a expressão imediata do Infinito, por ser
ela essencialmente idêntica ao que se revela nela [de sorte que toda distinção
hierárquica provém, deste ponto de vista, da substância receptiva (al-qabil). Tudo o que pertence a Allah, pertence assim
igualmente a esta “forma” [qualitativa]. Entretanto, não dizemos desta forma
que ela é Ele; mas não dizemos que ela seja outra coisa do que Ele.
É a
isto que o imam Abu-l-Qasim ibn Fasi
aludiu em seu livro “Tirando as sandálias”
[de Moisés diante da sarsa ardente] ao dizer: “em verdade, cada Nome divino é
qualificado por todos os Nomes divinos”. Isto é exato: cada Nome, de fato, afirma
as essências ao mesmo tempo que a Essência, conforme seu significado: na medida
em que ele demonstra a Essência, todos os outros Nomes estão implicados nela, e
na medida em que ele afirma um significado particular, ele se distingue dos
outros, como “O Criador” distingue-se de “Aquele-que-dá-a-forma”, e assim por
diante. O Nome é assim uma parte essencialmente idêntica ao Nomeado e, por
outro lado, é distinto d’Ele por seu significado particular.
A SABEDORIA DO AMOR APAIXONADO
(AL HIKMAT AL-MUHAYMIYAH)
SEGUNDO O VERBO DE ABRAÃO
Abraão
é chamado [no Corão] de “Amigo íntimo” [de Deus: khalil Allah][60] porque ele “penetrou” e assimilou as Qualidades da
Essência divina, como a cor que penetra um objeto colorido, de modo que o
acidente confunde-se com a substância, e não como algo extenso que ocupa um
dado espaço; ou ainda, seu nome significa que Deus (al-haqq) penetrou essencialmente a forma de Abraão. Cada uma
destas duas afirmações é justa, pois cada qual visa um certo aspecto [do estado
de que se trata], sem que estes dois aspectos sejam cumulativos.
Não
vemos que Deus Se manifesta nas qualidades dos seres efêmeros, como Ele prórpio
o afirma [nas palavras divinas][61], que Ele Se manifesta mesmo nas qualidades de
imperfeição e nas qualidades reprováveis [ou que são tais quando reportadas ao
homem, como a inveja e a cólera por exemplo]? Por outro lado, a criatura se
manifesta com as Qualidades divinas, atribuindo-as a si mesma, da primeira à
última; elas pertencem verdadeiramente à criatura; da mesma forma, as
qualidades dos seres efêmeros pertencem verdadeiramente a Deus. “A louvação é
para Deus” (Corão, I, 2): vale dizer que, em definitivo, toda glória, de tudo o
que louva e de tudo o que é louvado, dirige-se apenas a Deus. “A Deus retorna
toda realidade (amr)” (Corão, XI, 123):
esta palavra compreende tanto o louvável quanto o reprovável; um não existe sem
o outro[62].
Quando
uma coisa penetra outra, a primeira é contida pela segunda; pois o penetrante
se esconde no penetrado, de modo que este último é o aparente, e o primeiro é o
interior, o latente; o penetrante é também como que o alimento do penetrado,
assim como a água que é absorvida pela lã e a torna mais pesada e volumosa. Se
é a Divindade que aparece e a criatura é quem nela se esconde, esta é
assimilada a todos os Nomes de Deus, ao Seu ouvido, à sua visão, a todos os
Seus atributos e Seus modos de conhecimento; ao contrário, se é a criatura que
aparece e a Divindade lhe é imanente e se acha oculta nela, Deus é o ouvido do
ser criado, sua vista, suas mãos, seus pés e todas as suas faculdades, como
está dito nesta palavra divina seguramente transmitida: “Meu servidor não pode
aproximar-se de mim com nada que Me agrade mais do que aquilo que Eu lhe impus.
E Meu servidor aproxima-se sem cessar de Mim através de obras espontâneas até
que Eu o ame; e quando Eu o amo, Eu sou o ouvido com o qual ele ouve, a vista
com a qual ele vê, a mão com a qual ele pega, o pé com o qual ele anda...”
Se a
Essência fosse isenta destas relações [universais, que são os Nomes e as
Qualidades divinas], Ela não seria divindade [ilah; ou seja, Ela não seria Criadora]. Ora, estas
relações atualizam-se em virtude de nossas próprias determinações [que são de
certa forma seus objetos ou seus conteúdos passivos], de sorte que nós tornamos
a Divindade tal como é por nossa dependência em relação a Ela. Deus portanto
não pode ser conhecido como tal [ou seja como Criador e Senhor] antes que
conheçamos a nós mesmos, o que corresponde à palavra do Profeta: “Aquele que
conhece a si mesmo [ou: que conhece sua alma] conhece seu Senhor”; e o Profeta
era certamente quem melhor conhecia a criatura de Deus. Pois alguns sábios, e
dentre eles Abu Hamid al-Ghazzali, pretenderam que Deus podia ser conhecido
abstraindo-se o mundo; mas isto é falso[63]. É claro que a Essência eterna Se conhece; mas Ela
não é conhecida como Divindade antes que seja conhecido aquilo que dela
depende, e que é assim o símbolo que A demonstra. Apenas então, num segundo
estado de conhecimento, será possível ter-se a intuição de que o próprio Deus é
o símbolo de Si mesmo e de Sua natureza divina, que o mundo não passa de Sua
própria revelação nas formas das essências imutáveis, que não existem de modo
algum fora d’Ele, e que Ele assume diversos modos e formas segundo as
realidades implicadas nestas essências, e segundo os seus estados. Mas nós não
recebemos esta intuição senão depois de havermos reconhecido através de Deus
que dependemos de uma Divindade. Depois [destes dois estados de conhecimento
consecutivos] abre-se ainda uma última intuição, segundo a qual nossas formas
aparecem em Deus, de modo que os seres se manifestam uns aos outros em Deus,
reconhecem-se uns aos outros em Deus e distinguem-se um do outro em Deus.
Alguns de nós sabem deste conhecimento recíproco em Deus, e outros ignoram a
Presença divina na qual revela-se este conhecimento de nós mesmos. Que Deus me
proteja da ignorância!
Tanto
de uma quanto de outra destas duas intuições [que sucedem à primeira], segue-se
que Deus não nos julga senão por nós mesmos, ou mais exatamente somos nós que
nos julgamos, mas n’Ele. E é por isso que se diz no Corão: “a Deus pertence o
argumento decisivo” (VI, 50), a saber contra os iludidos, quando eles dirão a
Deus: “porque Tu nos fizestes isto ou aquilo”, [pensando no que] era contrário
aos seus interesses; “então uma perna lhes será desnudada”[64], o que significa precisamente a realidade que é
desnudada aos conhecedores de Deus desde esta vida. E eles verão que não foi
Deus que fez com eles o que eles pretendem que Ele tenha feito, mas que aquilo
veio deles mesmos; pois Ele os fará simplesmente conhecer quem eles são em si
mesmos [em suas possibilidades pemanentes]. A partir daí, seu argumento se
dissolverá, e subsistirá apenas o “argumento decisivo” de Deus.
Dirão
talvez: qual é então o sentido da palavra divina: “se Ele quisesse, Ele vos
teria guiado” (Corão, LXVIII, 41)? Ao que nós respondemos: a proposição law [que se traduz por “se”, na frase “se Ele quisesse,
etc.], possui o sentido de abolição imaginária de um impedimento, portanto,
Deus não quis senão aquilo que realmente aconteceu. Segundo sua definição
lógica, uma possibilidade é algo que pode ou não atualizar-se; mas na
realidade, a solução efetiva desta alternativa puramente racional acha-se já
implicada naquilo que é esta possibilidade em seu estado de imutabilidade
principial. Quanto à expressão “...Ele vos teria guiado”, ela significa: Ele
teria demonstrado a todos [sua ilusão]; apenas, não está na possibilidade de
cada ser deste mundo que Deus abra-lhe o olho de sua inteligência [intuitiva]
para que ele veja a realidade tal qual ela é; existem alguns que conhecem, e
outros que a ignoram. Assim, Deus não quis guiar a todos e não os guiou, nem
quis fazê-lo; da mesma forma, se Ele quisesse – mas como poderia Ele ter
desejado algo que não aconteceu?
O
querer divino é um em suas relações [com seus objetos; sua aparente diversidade
provém da diversidade das possibilidades que ele abarca]. Como relação
essencial, ele depende do conhecimento [assim como o homem concebe previamente
aquilo que ele quer]; e o conhecimento depende de seu objeto; ora, este objeto
somos nós e nossos estados. Não é o conhecimento que age sobre o conhecido, mas
este que age sobre o conhecimento, no sentido em que ele comunica-se sozinho a
este, segundo aquilo que ele é em sua essência própria[65].
Quanto
ao discurso divino [revelado no Corão e em outros livros sagrados, onde Deus Se
manifesta como uma Pessoa], ele foi revelado em conformidade com a compreensão
daqueles aos quais ele estava endereçado e em conformidade com o raciocínio, e
não segundo os modos da intuição; é por isso, de resto, que existem muitos
crentes e poucos conhecedores intuitivos. Mas “cada um de nós tem sua estação
determinada”[66], o que quer dizer: tal como estamos em nosso estado
de permanência [ou seja como possibilidade pura], manifestar-nos-emos em nossa
existência [relativa], supondo que existamos; ao contrário, se a existência é
atribuível apenas a Deus, e não a nós, então somos nós, sem dúvida, que
julgaremos a nós mesmos [ou que nos determinaremos] na Existência divina [por
que agora somos pura determinação, e nada além disto]; mas se admitamos que
somos nós o existente [e que não somos apenas determinação pura], o julgamento
pertence a nós [em virtude do que somos], mesmo se o Juiz é Deus. De Deus não
provém mais que a efusão do Ser sobre nós [que não somos senão pura
possibilidade]; enquanto que nosso próprio julgamento [ou vossa determinação]
vem de nós.
Não
louvemos assim senão nós mesmos, e não condenemos senão a nós mesmos. A Deus
não é devido senão o louvor por Sua efusão de Ser [ou de Existência], pois isto
só provém dele e não de nós [que somos
não-existentes enquanto tais]. A partir daí, nós somos Seu alimento porque nós
Lhe emprestamos nossas condições; e Ele é nosso alimento pela Existência (al-wujud) que ele nos comunica, de sorte que Ele é
determinado por aquilo mesmo que nos determina. A Ordem (al-amr) vai d’Ele para nós e de nós para Ele, embora
sejamos “obrigados” [pela Lei revelada], e embora Ele não seja “obrigado” [por
Sua própria Lei]; de resto, Ele não nos imporá [a Ordem] senão porque nós Lhe
pedimos, por nosso estado e pelo que somos.
Ele me louva, e eu O louvo;
Ele me serve, e eu O sirvo;
Por minha existência eu O afirmo
E por minha determinação eu O nego;
É Ele que me conhece, enquanto que eu O nego,
Depois eu O reconheço e O contemplo.
Onde então está Sua independência,
Se sou eu quem o Glorifica e auxilia?[67]
Da mesma forma, desde que Deus me manifesta,
Eu Lhe empresto uma ciência e eu O manifesto.
É o que nos ensina a mensagenm divina.
E é em mim que Sua vontade se cumpre.
Desde
que Abraão atingiu este grau de conhecimento em razão do qual ele foi chamado
de “Amigo íntimo” [de Deus], ele fez da hospitalidade um costume sagrado[68]; também Ibn Masarra[69] o associa [em sua função cosmológica] a Miguel, o
anjo que supervisiona o alimento [físico e espiritual dos seres][70]. Pois o alimento penetra o corpo todo daquele que se
nutre, até ser assimilado pelas menores partes do corpo. Claro que não existem
partes na Divindade [à qual aplica-se o símbolo do corpo penetrado]; aqulo que
é penetrado, neste caso, são as “estações” (maqamat) divinas que chamamos de Nomes[71] e pelas quais a Essência divina se manifesta.
Estamos n’Ele, como estabelecem nossas provas,
E estamos em nós;
D’Ele não é mais que a minha existência,
De modo que estamos n’Ele, como em nós mesmos.
Eu tenho duas faces: Ele e eu;
E Ele não é Seu Eu em mim,
Mas Ele encontra em mim Seu lugar de manifestação.
Somos para Ele como recipientes.
Deus
diz a verdade e guia pelo caminho direito[72].
A SABEDORIA DA VERDADE
(AL HIKMAT AL-HAQQIYAH)
SEGUNDO O VERBO DE ISAAC
A redenção de um profeta [Isaac foi profeta] pela
imolação de um animal como oferenda:
Como o balido do cordeiro e a palavra humana se
compensam?
Deus o Magnífico [ao dizer no Corão: “e nós o
perdoamos com uma grande imolação”] magnificou o bezerro,
Ajudando-o através de nós ou ajudando-nos através
dele[73] – não sei em virtude de qual balança[74]...
O camelo e os bovinos são sem dúvida maiores
corporalmente,
E no entanto eles cederam seu lugar a um cordeiro
imolado como oferenda.
Como posso eu saber como um cordeiro substitui
Com sua pequena pessoa o representante do Clemente
sobre a terra?
Mas não vês que o comando [de imolar o cordeiro no
lugar de Isaac] implica uma ordem lógica que assegura o ganho e compensa a
perda?[75]
Pois não há criatura [terrestre] superior ao mineral
Depois ao vegetal, segundo seus graus e posições;
E é depois desta planta que vem o animal na
hierarquia[76];
Cada qual [dos seres destes três reinos] conhece seu
criador por intuição direta (kashf) e
por sinais evidentes[77];
Enquanto que o homem é condicionado [em seu
conhecimento de Deus] pela razão, o pensamento e o dogma de sua crença.
É o que afirma Sahl at-Tostari e o conhecedor da
realidade[78], como nós,
Pois todos – nós e vós – estamos todos na estação da
virtude contemplativa (al-ihsan)
Cada um que contempla a realidade que eu contemplei,
Dirá o mesmo, em segredo e abertamente.
Não te voltes para aqueles que nos contradizem,
E não semeies o grãos em terra de cegos!
Pois são eles os surdos e os cegos de que falou –
para nossos ouvidos –
O isento de pecados [o Profeta] no Corão.
Saibam
– que Deus nos ajude, a todos nós – que Abraão, o Amigo de Deus, disse a seu
filho: “Em verdade, eu vi num sonho [profético] que eu te imolaria” [79]. Ora, o sonho provém da Presença imaginativa [hadarat
al-khayal, ou seja a Presença divina nas formas
ou imagens sutis]; entretanto, Abraão não transpôs seu sonho [do símbolo à
realidade simbolizada, como convém fazer com o que se manifesta neste estado]:
foi um cordeiro que apareceu no sonho sob a forma do filho de Abraão, e Abraão
acreditou neste sonho; mas Deus liberou a criança da ilusão (wahm) de Abraão pela “grande imolação” [do cordeiro], que
era a transposição divina de sua visão, transposição da qual Abraão não estava
consciente[80].
Pois
não se pode compreender a revelação formal na Presença imaginativa senão com a
ajuda de uma outra ciência que permite discernir aquilo que Deus que nos dar a
entender através de uma dada forma. Lembremo-nos como o Enviado de Deus – sobre
ele a Bênção e a Paz! – disse a Abu Bakr, quando este interpretou um certo
sonho: “Tu adivinhaste bem uma parte, e perdeste o sentido da outra parte”.
Então Abu Bakr pediu ao Profeta que lhe fizesse saber o que ele havia dito de
correto e no que ele havia se enganado; mas o Profeta não lhe respondeu[81].
Deus
disse a Abraão, quando o interpelou: “Em verdade, ó Abraão, tu acreditaste na
visão!”[82], o que não quer dizer que Abraão, crendo dever
imolar seu filho, tenha sido fiel à inspiração divina; pois ele havia tomado
sua visão ao pé da letra, enquanto que todo sonho exige uma transposição ou
interpretação. É por isso que o senhor de José no Egito disse: “... se sabes
interpretar os sonhos...”[83]; interpretar significa transpor a forma percebida a
uma outra realidade; [no caso mencionado de José] as vacas significavam anos
férteis ou anos magros. Se Deus louvasse Abraão por ter sido fiel à sua visão,
Ele teria feito com que ele matasse realmente seu filho, pois ele acreditava
que ela indicava a imolação da criança, enquanto que ela simbolizava, do ponto
de vista divino, a “grande imolação” [do cordeiro][84].
Existe
assim analogia entre a forma corporal do cordeiro e a forma imaginária do filho
de Abraão. Se Abraão visse um cordeiro no seu sonho, ele poderia ter
interpretado como significando seu filho ou outra coisa. Deus disse a seguir a
Abraão: “Em verdade, esta é a prova [tornada] evidente”[85], o que quer dizer que Deus o pôs à prova em seu
conhecimento, testando se ele tinha ou não aquilo que a perspectiva própria à
visão imaginativa exige de interpretação[86]. Pois Abraão sabia bem que o estado cósmico da
imaginação exige uma interpretação, mas não levou isto em conta, considerando
apenas a condição inerente ao estado [de que se trata]: ele acreditou na visão
tal como ela se lhe apresentara[87], como o fez Taqi ibn Mukhallad, o transmissor das
tradições orais, que aprendeu por via certa que o Profeta havia dito: “Quem me
vê em sonhos, me vê como em estado de vigília, pois Satanás não reveste minha
forma”; ora, Taqi ibn Mukhallad viu em
sonhos o Profeta que lhe deu um copo de leite para beber; ele acreditou em sua
visão, mas forçou-se a vomitar [para verificá-la], enchendo um copo com leite.
Se ele houvesse interpretado seu sonho, teria sabido que o leite significa o
conhecimento; [mas agindo desta forma], ele perdeu a chance de um grande
conhecimento, na medida daquilo que ele bebeu. Não vemos como o Enviado de Deus
– sobre ele a Bênção e a Paz! – recebeu em sonhos uma bacia de leite, que ele
contou ter bebido “até que a saciedade me saiu pelas unhas; e é assim que me
foi dado aquilo com que cumulei Omar”. Disseram-lhe: “E por qual coisa tomaste
[este leite], ó Enviado de Deus?” Ele
respondeu: “Pelo conhecimento”. Ele não o tomou simplesmente como leite,
sabendo que o estado em que teve a visão exigia uma transposição.
Ora,
sabemos que a forma corporal do Profeta – que Deus o abençoe e lhe dê a Paz! –
esta enterrada em Medina, e que sua forma espiritual – assim como sua forma
sutil – jamais foi vista por ninguém; pois não podemos sequer ver nossa própria
forma espiritual, e o mesmo vale para todo espírito. Mas o espírito do Profeta
reveste, quando ele aparece em sonhos a alguém, a forma de seu corpo tal como
era antes da morte, sem que nada falte[88], de sorte que ele é realmente Maomé – sobre ele a
Paz! – surgindo por seu espírito em um corpo sutil (jasad) semelhante ao seu corpo sepultado, pois Satanás não
pode revestir a forma sutil do Profeta, e Deus assim salvaguarda aquele que a
vê. Aquele que vê o Profeta nesta forma recebe assim as ordens que o Profeta
possa lhe dar ou as novas que ele lhe comunicar, assim como foram recebidos os
ensinamentos do Profeta enquanto ele vivia, conforme o sentido imediato,
figurado ou implícito das palavras, ou de qualquer outra forma de expressão.
Mas se ele lhe dá qualquer coisa [em sonhos], é esta coisa que será sujeita à
transposição, a menos que a coisa se manifeste no estado de vigília tal como
era no sonho, pois neste caso não há transposição a ser feita. Foi neste
aspecto do sonho que acreditaram Abraão, o Amigo de Deus, e Taqi ibn Mukhallad.
Uma
vez que a visão [em sonho] comporta estes dois aspectos [um direto e outro
sujeito à interpretação], e que Deus nos ensinou qual deve ser nossa atitude,
pelo que Ele fez e disse a Abraão – [sendo que este conhecimento] provém
precisamente da função profética [de Abraão] – sabemos que ao vermos Deus –
exaltado seja! – em uma forma que o racioncínio refuta [como sendo Deus, pois é
a razão que conclui pela transcendência], devemos interpretar esta forma como
sendo a Divindade condicionada, seja pelo estado daquele que A vê, seja pelo
“lugar” cósmico (al-makam) em que Ela é
vista, ou ainda pelas duas coisas. Ao
contrário, se o raciocínio não a recusa, nós a tomamos diretamente por aquilo
que ela é, como quando virmos a Deus no além... Ao Único, o Clemente (ar-rahman), pertencem, em cada estado de existência, todas as
formas ocultas ou manifestas. Se dizeis: isto é Deus!, direis a verdade; mas
quando afirmais outra coisa, então estais interpretando. Seu princípio [de
manifestação] não muda de um estado de existência a outro; mas Ele produz a
Verdade para as criaturas. Quando Ele se revela aos olhos, as razões O recusam
através de provas insistentes; ao contrário, Ele é aceito em Sua revelação
intelectual e naquela a que chamamos imaginação (khayal); mas a verdadeira [visão] é a “visão” direta.
Abu
Yazid (al-Bustami) disse desta última estação espiritual: “Mesmo se o Trono divino
e tudo o que ele contém estivessem cem milhões de vezes contidos em um canto do
coração do conhecedor [de Deus], ele não o sentiria”. Esta é o alcance de Abu
Yazid no mundo das formas “corporais” [pois o Trono é aqui simbolicamente
concebido como uma forma extensa]; mas eu digo: mesmo se o indefinido de tudo o
que existe pudesse ser concebido como definido e que ele pudesse ser contido,
com a essência (al-‘ayn) que o une, em
um dos cantos do conhecedor [de Deus], este não seria consciente disto; pois diz-se
que o coração contém a Deus – exaltado seja! – e no entanto ele não se sacia; e
se ele estivesse cheio, ele estaria saturado. E isto Abu Yazid também afirma[89].
Já
aludimos a esta estação espiritual quando dissemos: ó Tu, que criastes as
coisas em Ti mesmo, Tu englobas tudo o que Tu criaste; ora, Tu criaste aquilo
cuja existência não tem fim em Ti, de sorte que és o Estreito e o Vasto! Se
aquilo que Deus criou estivesse em meu coração, Sua aura resplandescente não
brilharia aí; ora, aquele que contém Deus não exclui nenhuma criatura; como
então isto é possível, ó Tu que ouves?
Todo
homem cria por conjectura (wahm), em sua
faculdade imaginativa, aquilo que não tem existência fora dela. Isto é uma
coisa comum. Mas o conhecedor [de Deus] cria por sua vontade espiritual (al-hummah) aquilo que adquire uma existência fora do lugar
desta faculdade[90]. Entretanto, a vontade espiritual não cessará de
conservar como existente aquilo que ela criou, sem que ela seja alterada por
esta conservação; cada vez que o conhecedor esquecer de manter assim em
existência aquilo que ele criou por sua vontade espiritual, sua criatura
deixará de existir; a menos que o conhecedor tenha realizado todas as Presenças
[divinas] e que ele não esqueça nenhuma; certo, sua consciência se colocará
necessariamente sobre uma das Presenças [e não sobre todas de uma vez, pois
então ela mesma deixaria de existir]; mas, se o conhecedor criou por sua
vontade espiritual aquilo que ele criou, e que ele possui este conhecimento
total [que engloba em princípio todas as Presenças divinas], sua criatura
manifestará sua “forma” [a saber, a “forma” do conhecedor] em cada uma destas
Presenças, de modo que as “formas” [análogas, que aparecem nos diferentes
estados] mantém-se umas às outras existentes[91]; se o conhecedor se torna consciente de qualquer uma
destas Presenças – ou de muitas delas – ao mesmo tempo em que sustenta, na
Presença [divina] que ele continua a contemplar, a existência da “forma” que
ele criou, todas as “formas” [análogas] serão conservadas pela manutenção desta
“forma” particular de cuja Presença ele permanece consciente. Pois a
inconsciência jamais é total, nem entre os homens comuns, nem entre a elite.
Com esta explanação, eu expus um segredo da natureza daquilo que os iniciados
guardaram sempre cuidadosamente, porque comporta uma refutação de sua pretensão
à identidade com Deus; pois Deus – exaltado seja! – jamais é inconsciente de
seja lá o que for, enquanto que o servidor é forçosamente inconsciente de uma
coisa em favor de outra; ora, na medida em que este servidor mantém ele próprio
em existência aquilo que ele criou, ele pode dizer: eu sou Deus; apenas, ele
não o mantém no sentido da conservação divina; já explicamos a diferença. Na
medida em que o servidor permanece consciente de uma das “formas” numa dada
presença particular, ele se distingue de Deus; ele se distingue de Deus
necessariamente, embora todas as “formas” [análogas] sejam mantidas em
existência pela manutenção de uma delas que apareça na Presença da qual o
conhecedor permanece consciente – o que é uma conservação com garantia
implícita – pois a conservação divina em relação ao criado não é assim, mas
Deus conserva cada “forma” em particular. Esta questão que expus não foi
mencionada por ninguém até o momento; é a única vez em que se fala disto, tanto
hoje como antes; lembrem-se de não esquecer!
Ora,
esta Presença [divina] da qual permanecemos conscientes ao mesmo tempo em que
da “forma” que lhe corresponde, compara-se ao Livro no qual Deus escreve todas
as coisas: “Nós não negligenciamos nada neste livro”[92]; de modo que
ele integra a um tempo aquilo que é manifestado e o que não é[93]. Mas ninguém compreenderá o que dissemos, exceto
aquele que se tornou ele próprio Corão[94]. Por outro lado, aquele que “teme” a Deus será
dotado da “discriminação” (al-furqan)[95] [que distingue o absoluto do condicionado] segundo a
palavra divina [“Ó vós que crêdes, se temeis a Deus, Ele vos dotará de
discriminação” (VIII, 29)]. Ora, esta discriminação aplica-se precisamente
àquilo que dissemos da maneira como o servidor se distingue do Senhor. Esta é a
“discriminação” mais elevada que se pode conceber.
Neste momento o servidor será senhor [pela união],
sem dúvida;
E neste momento, o servidor será servidor [pela
discriminação] certamente.
Se ele é servidor, ele é vasto como Deus;
E se ele é senhor, ele está numa vida apertada.
Enquanto
servidor, ele vê sua prórpia essência, e suas esperanças alargam-se a partir
dele; mas enquanto senhor [pela extinção de sua individualidade na pura luz
intelectual], ele Vê todo o cosmo, da terra até os anjos, que lhe demandam, e
ele se vê impotente para atender às suas demandas por si só [na medida em que
ele permanece servidor apesar de sua reabsorção na Luz divina]. É por isso que
vemos alguns contemplativos chorarem. Sejamos nós portanto servidores [por
nossa consciência manifesta, ao mesmo tempo que] senhores [por nossa
identificação essencial com Deus] e não sejamos [em nossa consciência
distintiva] senhores do próprio servidor, para que não nos tornemos a vítima do
fogo [do Rigor divino], e que não sejamos atirados à fusão[96].
A SABEDORIA ELEVADA
(AL HIKMAT AL-‘ALIYAH)
SEGUNDO O VERBO DE ISMAEL
(EXTRATO DO CAPÍTULO)
Saibam
que Aquele que é chamado de Allah é um
na Essência e tudo em Seus nomes, e que todo os seres condicionados não se
ligam [a Deus] senão exclusivamente através de seu próprio Senhor (rabb); pois é impossível que a totalidade [dos Nomes ou
dos aspectos divinos] se refira a um ser particular. No que diz respeito à
Unidade (al-ahadiyah) divina, ninguém
dela participa, pois não se pode designar aspectos nela; ela não está sujeita à
distinção. A unidade de Deus integra a totalidade [dos Nomes e das Qualidades]
na indiferenciação principial.
O
“bem-aventurado” (as-sa’id) é aquele
“cujo Senhor está contente”[97]; ora, não existe ninguém cujo Senhor não esteja
contente, pois é por causa dele [ou seja, do ser relativo] que sua senhoridade
subsiste; todo ser é, assim, “acolhido” por seu Senhor e [sob este aspecto]
cada qual é “bem-aventurado”. É por isto que Sahl at-Tostari diz: “a Senhoria
[divina, ar-rububiyah] comporta um
segredo, e este segredo és tu mesmo” – ele dirige-se a todos os indivíduos – “
se ele pudesse manifestar-se [ou seja, se ele pudesse ser conhecido por
outrem], a Senhoridade seria abolida”; ele diz: “se ele pudesse manifestar-se”[98] porque de fato ele não se manifesta jamais, de sorte
que a Senhoridade não será abolida. Pois nenhum indivíduo existe
independentemente de seu Senhor [que é a “polarização” do Ato divino a seu
respeito]; por outro lado este indivíduo existe perpetuamente [ou seja através
de todas as existências formais, até o indefinido, mas não eternamente], de
sorte que a Senhoridade [que se fundamenta nele] subsiste igualmente à
perpetuidade.
Aquele
que é [em princípio] acolhido por seu senhor é amado por ele; e tudo o que faz
o amado é igualmente amado; pois o indivíduo não poderia agir sem que a ação
pertencesse ao Senhor que age através dele. É por isso que o indivíduo [que
conhece seu Senhor] fica “apaziguado”, confiante que nenhuma ação lhe será
atribuída, e que ele se contenta com aquilo que aparece nele das ações do seu
Senhor[99], o qual acolhe estas ações, pois ele perfaz sua obra
segundo o que ela exige por sua natureza; [é assim que é dito no Corão} “Aquele
que dá a cada coisa a sua natureza, e depois Ele a guia”[100], ou seja: depois Ele revela que foi Ele quem deu a
cada coisa sua natureza, de modo que ela não poderia ser nem mais nem menos [do
que ela é].
“Ismael
foi acolhido pelo seu Senhor”[101], porque ele havia reconhecido isto que explicamos.
Do mesmo modo, todo ser existente é [em princípio] acolhido por seu Senhor, sem
que isto implique necessariamente que cada um seja acolhido pelo Senhor do
outro, pois a Senhoridade só se define em relação a cada um em particular [pois
ela consiste na relação “pessoal” do indivíduo para com Deus], de sorte que ela
não se refere a Deus senão por um de Seus aspectos, que correponde à
predisposição (isti’dad) do indivíduo;
este é o “Senhor” do indivíduo particular. Nenhum [ser particular] como tal
liga-se a Deus em virtude de Sua Unidade [suprema]. É por causa disto que os
homens de Deus não podem receber “revelação” (tajalli) na Unidade (al-ahadiyah); pois se O contemplamos n’Ele mesmo, é Ele que
contempla a Si próprio; se O contemplamos em nós, a Unidade deixa de ser a
Unidade, por nossa causa; e se O contemplas n’Ele e em nós, a Unidade cessa
igualmente de ser o que ela é, porque o pronome da segunda pessoa supõe que
existe outra coisa além do único contemplado; haverá aí necessariamente uma
relação qualquer e por conseguinte uma dualidade do contemplante e do
contemplado, donde ocorre a cessação da Unidade, embora não exista [em
princípio] mais do que Ele que contempla a Si mesmo, pois sabemos bem que tanto
o contemplante como o contemplado não são “outro senão Ele”.
Por
este motivo, não é possível que o indivíduo “acolhido por seu Senhor” seja
acolhido absolutamente [por Deus][102], a menos que tudo o que ele manifesta provenha do
Senhor que o acolhe, que age nele[103].
É
assim que Ismael distingue-se de outros indivíduos, pois dele se diz que “foi
acolhido pelo seu Senhor”.
O
mesmo acontece com toda alma apaziguada, à qual está endereçada a palavra
[corânica]: “Ó tu, alma apaziguada! Volta para o teu Senhor, contente e em paz;
entra para os Meus servidores, entra em Meu paraíso!”[104], ou seja: volta para o Senhor que já a chamava e que
ela reconheceu em meio à totalidade [dos aspectos divinos] – “contente, em paz;
entra para os Meus servidores” – adorando-Me nesta estação espiritual; pois dentre
o número dos servidores de que se trata está qualquer um que reconheça seu
Senhor, que se contente d’Ele e que não se volte para o Senhor de um outro
servidor[105], ao mesmo tempo em que reconhece eminentemente a
Unidade essencial [de todos os seres]; – “e entre em Meu paraíso” (jannah) – ou seja em meu Véu[106], pois este paraíso não é outra coisa que a própria
alma apaziguada, pois é ela que Me oculta com esta natureza humana; Eu só sou
conhecido por ela, como ela só existe por Mim; quem a conhece, conhece-Me,
embora ninguém [fora Eu] Me conheça [essencialmente], de sorte que também ela
não é conhecida por ninguém. Ora, se ela entra em Meu paraíso, ela entra em si
mesma, e conhecerá a si mesmo através de um outro conhecimento, diferente
daquele que a fez conhecer seu Senhor [ao conhecer a si mesma], de modo que ela
possuirá dois conhecimentos: conhecerá Deus em relação a si, e O conhecerá por
si mesmo na medida em que ela é Ele, não na medida em que ela existe.
A SABEDORIA LUMINOSA
(AL HIKMAT AN-NURIYAH)
SEGUNDO O VERBO DE JOSÉ
A
sabedoria luminosa espalha sua luz na Presença imaginativa (hadrat
al-khayal), e este é o primeiro começo da
inspiração (al-wahi) entre os homens da
Assistência divina [ou seja, entre os enviados e os profetas]. Aishah [esposa
do Profeta] – que Deus a acolha! – disse: “o primeiro indício de inspiração
divina no Enviado de Deus foi o sonho verídico; a partir daí, todo sonho que
ele teve parecia o dia que se levanta, nada era obscuro”; e este estado, ela
acrescentou, durou seis meses; depois veio o Anjo [que lhe revelou o Corão].
Isto é tudo o que ela compreendeu com sua ciência; ela não sabia que o Enviado
de Deus dissera: “as pessoas dormem, e quando elas morrem elas acordam”, e que
tudo o que ele via no estado de vigília era desta natureza, malgrado a
diferença entre os estados [de sonho e de vigília]. Ela falou em seis meses;
mas na realidade, toda a existência terrestre do Profeta passou-se assim, como
em um sonho dentro de um sonho[107]. Ora, tudo o que se revela desta maneira constitui o
mundo imaginativo (alam al-khayal); e é
por isso que existe o simbolismo: a realidade (al-amr) que possui
em si mesma uma dada “forma”[108], aparece sob uma outra forma; e por sua vez o
inérprete opera uma transposição da forma percebida pelo sonhador à “forma”
própria da realidade implicada, supondo-se que ele a adivinhe; assim, por
exemplo, o conhecimento manifesta-se sob a forma do leite; pois, segundo o que
foi reportado, o Profeta considerava o leite como o símbolo do conhecimento[109].
Quando
o Profeta recebia a inspiração divina, ele se tornava inconsciente do mundo
sensível comum; ele era coberto [com um pano], e [seu espírito] ausentava-se
dos presentes; depois, quando isto cessava, ele retornava a este mundo. Ele
recebia assim a inspiração divina na Presença imaginativa, sem que se pudesse
dizer dele que estivesse dormindo[110]. Da mesma forma, quando o Anjo lhe apareceu sob a
forma de um homem, esta aparição provinha igualmente da Presença imaginativa,
pois na realidade não estava ali um homem mas um anjo revestido da forma
humana, e o espectador que possuía o conhecimento ultrapassaria esta forma até
perceber a “forma” real. Assim, disse o Profeta [a respeito de um misterioso
estrangeiro que veio questioná-lo diante dos seus companheiros]: “era Gabriel
que veio para vos ensinar vossa religião”; por outro lado, ele havia dito:
“respondam à saudação deste homem!”. Ele o chamou de “homem” devido à sua forma
aparente, e depois disse dele: “era Gabriel”, transpondo a forma deste homem
imaginário ao seu original; ele falou a verdade tanto num caso como noutro,
pois a aparição era visualmente verdadeira, e era verdadeiramente Gabriel.
José
– que a Paz esteja com ele – disse [a seu pai]: “eu vi onze estrelas com o sol
e a lua prosternarem-se diante de mim”[111]; ele havia visto seus irmãos sob a forma de estrelas
e seu pai e sua madrasta sob a forma do sol e da lua; é assim que eles
apareceram do ponto de vista de José; pois se a aparição tivesse sido real do
ponto de vista das pessoas que apareceram sob a forma de estrelas, do sol e da
lua, seria preciso que ela tivesse sido voluntária da parte delas; mas como
elas não tinham consciência disto, a visão de José aconteceu apenas dentro dos
domínios da sua imaginação; é por isso que seu pai Jacó – sobre ele a Paz! –
disse, quando José lhe contou sua visão: “ó filho meu, não contes esta visão
aos teus irmãos, para que eles não conspirem contra ti...”[112]; depois, absolvendo seus filhos da conspiração, ele
responsabilizou Satanás – que não é outra coisa que a própria essência da conspiração e do engano –
dizendo: “em verdade, Satanás é o inimigo declarado do homem”[113]. Na seqüência, ao final da história, José diz [ao
receber seus pais e seus irmãos no Egito]: “Isto é a interpretação de meu sonho
de antes, que meu Senhor tornou real”[114], ou seja: que Ele manifestou na ordem sutil antes
que aparecesse sob a forma imaginativa. Ora, a isto o Profeta responde: “as
pessoas dormem [e quando elas morrem elas acordam”]... José falou então como
alguém que sonha que despertou de um sonho e que interpreta o sonho sem estar
consciente de que se acha ainda sonhando, de modo que ele dirá depois, quando
despertar verdadeiramente: eu sonhei com tal e tal coisa; depois, acreditando
que despertava, eu sonhei que interpretava meu sonho de tal e tal maneira... Isto é análogo ao que disse
José; observem a diferença entre a compreensão de Maomé e a de José, quando
este diz, ao final de sua aventura: “isto é a interpretação de meu sonho de
antes, que meu Senhor tornou real”, ou seja sensível; ora, ele sempre foi
sensível, pois a imaginação não concerne senão aos objetos sensíveis e a nada
mais[115]. Vejam portanto como o conhecimento e a altura de
Maomé são excelentes!
Eu
direi ainda mais a respeito da Presença [imaginativa] segundo o espírito de José
– sobre ele a Paz! – concebida no espírito maometano, como verão a seguir, se
Deus permite. Saibam que a realidade supostamente não-divina, ou seja o mundo,
relaciona-se com Deus como a sombra está para a pessoa. O mundo é assim a
sombra de Deus; esta é propriamente a maneira pela qual o Ser (al-wujud) atribui-se ao mundo; pois a sombra existe
incontestavelmente na ordem sensível, com a condição de que haja aí qualquer
coisa sobre a qual esta sombra seja projetada; de modo que, se fosse possível
retirar todo e qualquer suporte para a sombra, ela não seria mais sensivelmente
existente, mas apenas inteligível; ou seja, ela estaria potencialmente contida
na pessoa da qual ela depende. O lugar de manifestação desta sombra divina que
chamamos de mundo é o rol das essências permanentes (a’yan) das possibilidades (mumkinat); é sobre elas que a sombra se projeta. A sombra é
conhecida na medida em que o Ser divino projeta [sua sombra] sobre as essências
permanentes das possibilidades, e é pelo Nome divino A Luz (an-nur) que a percepção da sombra acontece. A sombra que se
projeta sobre as essências imutáveis das possibilidades é “à imagem” do
Mistério desconhecido; pois não é verdade que as sombras tendem para o negro, o
que indica o caráter insondável que lhes é próprio segundo uma certa
correpondência entre a sombra e a pessoa que a projeta[116]? Mesmo se a pessoa for branca, sua sombra é assim
[como eu disse]. Não é verdade que as montanhas muito distantes do espectador
lhe parecem ensombradas, no mínimo pelo distanciamento, apesar das cores que
lhes são próprias[117]? Não é verdade que o céu parece azul? Tudo isto não
passa do efeito do distanciamento sobre os corpos não-luminosos. Da mesma forma
as essências das possibilidades não são luminosas, por serem não-existentes; elas
são imutáveis, mas elas não são qualificadas de ser ou de existência; pois o
ser é luz. Quanto aos corpos luminosos, o distanciamento espacial os faz
parecer menores; deste modo o olho vê os astros como corpos muito pequenos,
embora eles sejam imensamente grandes em realidade; assim, por exemplo, sabemos
por provas que o sol possui um volume 166 vezes e um quarto e um oitavo maior
do que o volume da terra[118], embora ele apareça ao olho como sendo do tamanho de
uma moeda; este é um outro efeito do distanciamento [análogo à natureza a um
tempo existente e inexistente da sombra].
Não
se pode conhecer o mundo senão na medida em que se conheçam as sombras; e
ignoramos a Deus na medida em que ignoramos a pessoa de quem depende esta
sombra [que é o mundo]; na medida em que Ele faz uma sombra, nós O conhecemos;
e na medida em que ignoramos aquilo que esta sombra oculta da “forma” da pessoa
que a projeta, ignoramos Deus, exaltado seja! Daí dizermos que Deus nos é
conhecido sob um certo aspecto, e que nos é desconhecido sob outro aspecto.
“Não vês teu Senhor, como Ele projeta a sombra? Se Ele quisesse, a tornaria
permanente...”[119], ou seja potencial em Si mesmo[120]; é como se Ele dissesse: Deus não se revela às
possibilidades antes de que Ele haja projetado Sua sombra, de sorte que fica
nelas o que permanece sempre verdadeiro [em princípio] para elas, a saber que
elas não aparecem como tais na existência; “...depois Nós fizemos do sol aquilo
que a demonstra [a saber a sombra]...”[121]; é ele o Nome divino A Luz (an-nur) de que falamos, o que é confirmado na ordem visual,
pois as sombras não existem na ausência da luz; “...depois Nós a recolhemos
paulatinamente...”[122]; Deus recolhe para Si a sombra, porque ela se
manifesta a partir d’Ele e porque “toda realidade retorna para Ele”. Assim ela
é Ele, e é outra-do-que-Ele, exaltado seja! Tudo aquilo que percebemos não
passa do Ser de Deus nas essências permanentes das possibilidades; na medida em
que a ipseidade (huwiyah) [daquilo que
vemos] é Deus, é Ele que é seu ser, e na medida em que existe diferenciação,
são as essências das possibilidades; assim como sempre permanece uma “sombra”
em virtude da diferenciação das formas, permanece sempre, devido a esta mesma
diferenciação, o “mundo” ou “outro-do-que-Deus”. Por sua unidade existencial, a
sombra é o próprio Deus, pois Deus é único (al-wahid), o Um (al-ahad);
e sob este aspecto da multiplicidade das formas sensíveis, ela é o mundo –
compreendam e realizem o que estou explicando! Uma vez que a realidade é como
eu disse, o mundo é ilusório (mutawahham),
ele não possui existência verdadeira; é isto o que entendemos por imaginação
[que engloba o mundo inteiro]; vale dizer que imaginamos que [o mundo] é uma
realidade autônoma, separada de Deus e acrescentada, enquanto que ele não é
nada em si[123]. Não é verdade que na ordem sensível a sombra está
ligada à imagem da qual ela se projeta e que é impossível que ela se separe
desta? Pois é inconcebível que uma coisa se separe de sua própria essência (dhat). Reconheçamos então nossa própria essência (‘ayn), que é o que somos, que é nossa ipseidade,
reconheçamos qual é nossa relação diante de Deus – exaltado seja! –, pelo quê
somos Deus e pelo quê somos o “mundo” ou o “outro”, ou o que corresponde a
essas expressões – pois tal é a nossa natureza. É em função disto [deste
conhecimento de si mesmo] que os sábios são superiores uns aos outros.
Deus
está em Sua relação para com uma sombra em particular, maior ou menor ou mais
ou menos pura, como a luz está para um filtro de vidro colorido que tinge a luz
com sua própia cor, enquanto que esta é incolor em si mesma; é assim que vemos
a Luz divina; e este é um símbolo de nossa realidade em relação ao nosso
senhor. Ora, se dizemos, ao vê-Lo: “é uma luz verde”, porque o filtro é verde,
teremos razão, como o demonstra a experiência visual; mas se dissermos que que
Ele não é verde e que ele não possui cor [em Si mesmo], como o demonstra o
raciocínio[124], diremos a verdade, e o argumento [tirado da
experiência sensível] o confirmará[125].
É
assim que a luz se projeta através da sombra, que não é outra coisa que o
filtro, e que é luminoso por sua transparência. Assim é também o homem que
realizou Deus: a “forma” de Deus manifesta-se nele mais diretamente do que em
outros. Pois existem entre nós alguns para quem Deus é o ouvido, a vista, as
faculdades e os órgãos, conforme os sinais que o Profeta indicou em sua
mensagem proveniente de Deus; e apesar disto a determinação da sombra subsiste,
porque o pronome possessivo do ouvido [e das outras faculdades] a ela se refere
[em conformidade com a mensagem sagrada: “... Eu serei seu ouvido, com o qual ele ouve, sua vista, pela qual ele vê, etc.”]. Os outros
servidores de Deus não são assim; o servidor de que se trata possui uma relação
mais imediata em relação ao Ser de Deus do que os demais.
Ora,
como a Realidade é assim como dizemos, saibamos que somos imaginação e que tudo
o que percebemos e que designamos como “não-eu” é imaginação; pois toda a
existência é imaginação na imaginação [ou seja uma imaginação “subjetiva” ou
micro-cósmica dentro de uma imaginação “objetiva”, coletiva ou macro-cósmica],
enquanto que o Ser verdadeiro é Deus única e exclusivamente, sob o aspecto da
Sua Essência (dhat) e da Sua
determinação essencial (‘ayn), mas não
sob o aspecto dos Seus nomes, pois Seus nomes possuem um duplo significado: de
um lado eles comportam uma determinação única, a saber a determinação essencial
de Deus, que é o “nomeado”, e de outro seus significados fazem com que cada
Nome se distinga dos demais, o Perdoador do Aparente, o Aparente do Interior, e
assim por diante; ora, qual é então a relação de um Nome para com outro? Pois é
preciso que se compreenda que cada Nome é a determinação essencial de cada
outro; na medida em que um Nome é a determinação essencial do outro, ele é Deus
na medida em que difere do outro, ele é o Deus “imaginário”, como dissemos.
Exaltado seja Aquele que só é demonstrado por Si mesmo e que não subsiste senão
por Sua própria essência imutável! Não há na existência senão aquilo que
designa a Unidade; e não há na imaginação senão aquilo que designa a
multiplicidade. Portanto, que se apega à multiplicidade, está no mundo, com os
Nomes divinos e com os nomes do mundo; e quem se atém à Unidade, está com Deus
sob o aspecto de Sua Essência “independente dos mundos”. Se a Essência é
“independente dos mundos”, é preciso que Deus seja essencialmente independente
das “relações nominais”, pois os Nomes não designam apenas a Essência, eles
designam ao mesmo tempo outras realidades, que definem a sua manifestação.
“Diga: Ele, Deus, é um (ahad)” – em Sua
Essência – “Deus é absoluto” – o independente do qual tudo depende – “Ele não
engendra” – nem em Sua ipseidade, nem em Sua relação para concosco [ou seja
para com nossa não-existência principial] – “e Ele não é engendrado” – sob o mesmo
aspecto – “e não há nada que seja semelhante a Ele” – sob este aspecto[126]. Esta é Sua qualidade própria; conforme Sua palavra:
“diga: Ele, Deus, é um”, Ele abstrai Sua Essência de toda e qualquer
multiplicidade; por outro lado, esta se manifesta em virtude dos atributos
divinos conhecidos. Somos nós que engendramos e somos engendrados, e somos nós
que dependemos d’Ele – exaltado seja! –; também nós somos semelhantes uns aos
outros, enquanto que o Único, o Transcendente, é independente em relação a seus
atributos como é independente de nós. Não existe outra descrição adequada de
Deus do que esta surata, a surata da Pureza (al-ikhlaç), e é como tal que ela foi revelada [ou seja em
resposta à questão dos judeus: “descreve-nos teu Senhor, como Ele é!”].
A Unidade
de Deus que se revela sob o aspecto dos Nomes divinos que postulam nossa
existência é a unidade do múltiplo (ahadiyat al-kuthrah), e a Unidade de Deus pela qual Ele é independente
de nós e dos Nomes, é a Unidade essencial; uma e outra estão compreendidas no
Nome “O Um” (al-ahad).
Saiba
portanto que se Deus manifestou sombras, e se Ele fez com que elas se
prosternassem para a direita e a esquerda [“Não vêem tudo o que Deus criou,
como sua sombra se inclina para a direita e para a esquerda, prosternando-se
diante de Deus...” (Corão, XVI, 48)], é porque Ele quis fornecer sinais sobre
você e sobre Ele próprio, para que você saiba o que você é, qual é a sua
relação para com Ele e qual a d’Ele em relação a você, a fim de que você saiba
por qual ou em virtude de qual realidade divina, este que é “outro-que-Deus” é
qualificado de completa indigência (faqr)
diante de Deus e também de indigência relativa, ou seja de uma mútua
dependência de suas próprias partes, e para que você saiba por qual e em
virtude de qual realidade essencial Deus Se qualifica de independência em
relação aos homens e de independência em relação aos mundos, enquanto que o
mundo é qualificado de independência relativa, ou seja que cada uma de suas
partes é num certo sentido independente das outras, assim como ela é, segundo
um sentido diferente deste, dependente das outras; pois o mundo depende
incontestavelmente de causas, sendo sua causa suprema sua causalidade divina; e
não existe outra causalidade divina da qual dependa o mundo, que não os Nomes
divinos; o mundo depende de cada um dos Nomes divinos, tanto em virtude daquilo
que é análogo a um dado Nome no mundo,
tanto porque todo Nome está compreendido na determinação essencial de Deus,
pois ele é Deus e nada mais. Por isso Ele disse: “vós sois os indigentes (fuqara) diante de Deus, e é Ele, Deus, o Rico, o Glorioso”[127]. Por outro lado, é evidente que nós dependemos uns
dos outros.
Nossos
próprios “nomes” não passam na realidade de Nomes divinos, porque tudo depende
d’Ele. Quanto às nossas próprias essências (a’yan), elas são na verdade Sua “sombra”, nada mais. Pois Ele é a nossa
ipseidade, como também não é a nossa ipseidade. Eis que nós preparamos o seu
caminho!
A SABEDORIA DA PROFECIA
(AL HIKMAT AN-NUBUWIYAH)
SEGUNDO O VERBO DE JESUS
O espírito [ar-ruh, ou seja o Cristo] foi manifestado a partir
da água de Maria e do sopro de Gabriel,
Sob a formas de um homem feito de argila,
Num corpo depurado da natureza [corruptível]
Que ele chamou de “prisão” (sijin).
Assim ele permaneceu aí por mil anos[128].
Um “espírito de Deus”[129], de nenhum outro:
Por isso ele ressuscitou os mortos e criou o pássaro
de argila[130].
Sua relação para com o Senhor é tal,
Que ele age por ela nos mundos superiores e
inferiores.
Deus purificou seu corpo e o elevou em espírito
E fez dele um símbolo de Seu ato criador[131].
Saibam
que os espíritos tem a virtude de comunicar vida a tudo que tocam. É por esta
razão que as-Samiri[132] [de quem se
diz no Corão ter feito o bezerro de ouro que os Israelitas adoraram na ausência
de Moisés[133]] tomou a poeira das pegadas do enviado [divino], o
[arcanjo] Gabriel; pois as-Samiri conhecia
esta virtude dos espíritos, e quando ele soube que o enviado era Gabriel, ele
soube que a vida tinha sido comunicada aos lugares que ele tocou com os pés;
ele então juntou um pouco de poeira[134] e a colocou dentro do bezerro [de ouro] que
imediatamente “mugiu” como fazem os bovídeos; a estátua teria emitido a voz de
qualquer outro animal, e mesmo do homem, se tivesse a forma correspondente.
Este poder vem da vida infundida às coisas, vida a que chamamos lahut (natureza divina), enquanto que o recipiente que o
espírito vivifica é chamado de nasul
(natureza humana); e este nasul [que
compreende a forma corporal] é por sua vez considerado como um espírito devido
àquilo que o mantém em existência[135].
Quando
o “Espírito fiel” (ar-ruh al-amin), que
é Gabriel, apareceu a Maria “sob a forma de um homem harmonioso”, ela imaginou
tratar-se de um homem que buscava conhece-la carnalmente, e sabendo que isto
não era permitido, ela “buscou refúgio em Deus contra ele”[136] com todo o seu ser, e por isso ela foi invadida por
um estado perfeito de Presença divina, estado que identificava-se ao espírito
intelectual (ar-ruh al-manawi). Se
Gabriel houvesse lhe transmitido seu sopro naquele instante, enquanto ela se
encontrava neste estado, Jesus teria nascido tal que ninguém poderia suportá-lo
devido à sua natureza cortante, conforme ao estado de sua mãe no momento da
concepção. Mas desde que Gabriel disse a Maria: “em verdade, eu sou o enviado de
teu Senhor, e vim para te dar um filho puro”[137], ela deteve seu estado de contração e seu peito
alargou-se; e foi então que Gabriel insuflou-lhe [o espírito de] Jesus. Gabriel
– sobre ele a Paz! – foi assim o veículo da palavra divina transmitida a Maria,
da mesma maneira como o enviado (ar-rasul)
transmite as palavras de Deus a seu povo, segundo o Corão: “[Jesus foi] Sua
palavra que Ele projetou em Maria, e Seu espírito”[138]. A partir daquele instante, o desejo amoroso invadiu
Maria, de sorte que o corpo de Jesus foi criado pela verdadeira “água” (ou
semente) de Maria e a “água” (ou semente) puramente imaginária de Gabriel,
transmitida pela umidade principialmente inerente ao sopro – pois o sopro dos
seres animados contém o elemento água. Assim o corpo de Jesus foi constituído
de “água” imaginária e de “água” verdadeira, e ele foi gerado sob forma humana
devido à sua mãe e devido à aparição de Gabriel sob forma humana; pois não há
geração nesta espécie humana fora da lei comum[139].
Da
mesma forma, Jesus ressuscitou os mortos por que ele era Espírito divino –
somente Deus dá a vida; enquanto que o sopro [que transmite a vida] era de
Jesus; da mesma forma como o sopro inspirado em Maria era o sopro de Gabriel,
enquanto que o Verbo vinha de Deus. Por isso, a ressurreição dos mortos é
verdadeiramente uma ação de Jesus porque ela emanava de seu sopro, como ele
próprio emanou da forma de sua mãe; por outro lado, foi apenas aparentemente
que a ressurreição foi operada por ele, visto que ela é essencialmente um ato
divino. Jesus unia em si estas duas realidades, em virtude da sua constituição,
da qual dizemos ter saído simultaneamente de uma semente imaginária [ou criada
pelo poder de sugestão: al-wahm] e uma
semente real; de modo que a ação de ressuscitar os mortos provém dele de uma
maneira efetiva, de um lado, e de uma maneira suposta de outro. Segundo o
primeiro destes aspectos, diz-se dele: “ele vivifica os mortos”[140], e conforme o segundo aspecto: “ele soprou nele [no
pássaro de argila] e ele se tornou um pássaro, com a permissão de Deus”[141], sendo o agente, neste caso, logicamente ligado à
expressão: “com a permissão de Deus”; quer dizer que a transformação do pássaro
de argila em pássaro real foi feita pela intervenção de Deus; entretanto,
podemos também relacionar a permissão divina ao ato de soprar e não à
transformação [da forma de argila] em pássaro, [cuja alma específica] seria
assim devida apenas à forma aparente [do objeto que recebeu o sopro
vivificante]. O mesmo acontece com a cura do cego de nascença, do leproso e de
todas as outras ações milagrosas atribuídas [segundo o Corão] a Jesus de uma
parte, e à permissão de Deus de outra parte, permissão relacionada à primeira
ou à segunda pessoa, segundo as palavras corânicas: “com Minha permissão” ou
“com a permissão de Deus”[142]. Assim, se a permissão de Deus refere-se ao ato de
insuflar, o pássaro foi criado, com a permissão divina, por aquele que soprou
[no objeto de argila]. Ao contrário, se a ação de soprar não dependia
[diretamente] da permissão divina, é a transformação do pássaro [de argila] em
pássaro [real] que dela dependia, e o agente desta transformação está então
implicada na expressão: “ele tornou-se”. Se o ato de que se trata não
comportasse em si mesmo algo de efetivo e algo de imaginário, o evento não
poderia assumir indiferentemente os dois aspectos. E isto acontece assim porque
a constituição de Jesus comporta em si tanto um como outro aspecto.
Jesus
manifestou humildade até o ponto de ordenar à sua comunidade que pagasse o
dízimo humilhando-se, e que qualquer um que fosse agredido numa face oferecesse
a outra sem se revoltar e sem buscar vingança. Isto Jesus tirou do lado de sua
mãe, pois é do feminino submeter-se assim naturalmente, pois a mulher é legal e
fisicamente sujeita ao homem. Seu poder vivificante e curador, ao contrário,
veio-lhe do sopro de Gabriel revestido sob forma humana. É por isso que Jesus
pode vivificar os mortos mesmo tendo uma forma de homem. Se Gabriel não
houvesse aparecido [a Maria] sob forma humana, mas sob não importa qual outra forma
sensível, animal, vegetal ou mineral, Jesus não teria ressuscitado os mortos
sem antes revestir-se desta forma não-humana, manifestando-se através dela; da
mesma forma, se Gabriel tivesse aparecido em forma de luz [espiritual] isenta
de elementos e qualidades sensíveis – embora ainda contida na Natureza
universal (at-tabi’ah) – Jesus não teria
ressuscitado os mortos sem aparecer, nesta ação, sob a forma de luz suprassensível,
ao mesmo tempo em que revestia a forma humana que ele recebeu do lado de sua mãe.
Devido a isto [ou seja, devido à sua identificação com Gabriel, quando da ação
milagrosa], diz-se dele que, quando ressuscitava os mortos, era e não era ele,
e os espectadores ficavam consternados ao ver, do mesmo modo como aquele que
reflete sobre esta ação fica consternado que uma pessoa humana vivifique os
mortos, enquanto que é uma propriedade divina vivificar os seres dotados de
palavra – não os outros animais [que participam de certa forma da vida do homem
perfeito]; o pensamento fica confuso de ver uma ação divina emanando de uma
forma humana. É isto que levou alguns a postular a “localização” (hulul) de Deus [na natureza humana de Jesus], e outros a
dizer que Jesus era Deus na medida em que ele ressuscitava os mortos, e é por
isso que o Corão lhes atribui a incredulidade (kufr), palavra que significa literalmente o véu (sitr), porque eles “velam” Deus, o qual ressuscita
realmente os mortos pela forma humana de Jesus. Deus diz [no Corão]: “estes são
os descrentes que dizem: em verdade, o próprio Deus é o Messias, filho de
Maria”[143], pois eles acumularam o desvio e a descrença em sua
afirmação, não porque digam que o Messias era Deus, nem nomeando-o como filho
de Maria, mas porque identificaram Deus, enquanto vivificador dos mortos, com a
forma humana terrestre designada expressamente como o filho de Maria. Jesus era
filho de Maria; e aquele que entende a frase de que se trata poderia crer que
eles atribuem a Natureza divina (al-uluhiyah) à forma de Jesus no sentido que a Divindade é a essência da forma;
mas não é isto, porque eles fizeram da Ipseidade (al-huwiyah) divina o sujeito da forma humana designada como o
filho de Maria [pela expressão: “o próprio Deus é o Messias, filho de
Maria...”]; eles distinguem assim a forma [humana] como tal do princípio [do
qual ela é uma manifestação] e não identificam a forma [crística]
essencialmente a este princípio [que se manifesta pela vivificação dos mortos][144], assim como distinguimos a forma humana que revestiu
Gabriel do sopro que ele inspirou em Maria; pois embora o sopro emane desta
forma, ele não provém dela essencialmente.
Devido
a isso, as diversas comunidades religiosas se contradizem a respeito da
identidade de Jesus – sobre ele a Paz! – ; alguns, considerando-o em função de
sua forma humana terrestre, afirmaram que ele era o filho de Maria[145]; outros, considerando nele a forma aparentemente
humana, ligaram-no a Gabriel; e outros ainda, em razão do fato que a
vivificação dos mortos emanava dele, ligaram-no a Deus pelo Espírito, dizendo
que ele era o Espírito de Deus, ou seja que era ele quem comunicava a vida
àquilo que recebia seu sopro. Assim, conforme o caso, pode-se ver nele ou Deus,
ou o Anjo, ou a natureza humana; de sorte que ele é para cada espectador aquilo
que se impõe a este espectador: ele é o Verbo de Deus, ele é o Espírito de
Deus, e ele é o servidor [a criatura] de Deus. Isto é algo que não aconteceu a
nenhum outro homem, na medida em que consideramos sua forma aparente. Pois toda
pessoa liga-se naturalmente ao seu pai formal e não àquele que insuflou seu
espírito na forma humana. Pois quando Deus “forma”, como Ele diz, o corpo
humano, e que Ele “sopra” a seguir Seu Espírito[146], este Espírito liga-se, tanto pela sua existência
quanto pela sua Essência, apenas a Deus. Ora, no caso de Jesus não foi assim,
pois a preparação de seu corpo e de sua forma estava implicada no sopro
espiritual [que Gabriel projetou sobre Maria]. Não é o que acontece com os
outros seres humanos [quando a preparação do corpo antecede a inspiração do
espírito], como já dissemos.
Todas
as existências são “as Palavras de Deus que não se esgotam jamais”[147]; pois todas não passam da palavra “seja!” (kun) que é o Verbo de Deus. Ora, devemos acreditar que a
Palavra liga-se imediatamente a Deus em Seu estado principial? Se for assim,
será impossível que conheçamos sua qüididade; ou então Deus “desce” para a
forma daquele que diz: “seja”, de modo que esta palavra “seja” é a realidade
essencial (al-haqiqah) da forma para a
qual Deus “desce”, ou na qual Ele Se manifesta. Alguns conhecedores de Deus
afirmam a primeira coisa, outros a segunda, e outros ficam consternados com a
ambiguidade dos aspectos. Esta questão só pode ser sondada por intuição. Abu
Yazid, que soprou sobre a formiga que ele havia matado [por distração] e a fez
reviver, sabia bem por que ele soprava e que era por Ele que ele soprava; sua
contemplação era crística.
Quanto à vivificação pelo conhecimento, ela é o Caminho
divino, essencial, superior, luminoso, do qual Deus diz [no Corão]: “...aquele
que estava morto e o reanimamos á vida, guiando-o para a luz, para conduzir-se
entre as pessoas..”[148].
Qualquer um que vivifique uma alma morta, pela via do conhecimento em não
importa qual domínio ligado ao conhecimento de Deus, vivifica-a
verdadeiramente, porque este conhecimento específico é para esta alma como que
uma luz com a qual ela marchará no meio das pessoas, ou seja entre aqueles que
lhe são semelhantes pela forma.
Sem
Ele [como princípio ativo] e sem nós [como receptáculos de Seu ato]
nada existiria.
Eu O adoro
verdadeiramente;
e Deus é nosso
Mestre.
Mas eu sou Ele
próprio (‘aynuh)
desde que
consideres [em mim] o Homem Universal.
Não te deixes
cegar pelo véu do homem individual,
e ele será para
ti um símbolo evidente.
Sejas a um tempo
Deus [em tua essência] e criatura [pela tua forma],
e serás por Deus
o dispensador da Sua misericórdia.
Alimente Sua
criação por Ele,
serás um
“repouso libertador e um perfume de vida”
(rawhan wa raihana)[149].
[Como
determinações] nós Lhe damos aquilo
pelo que Ele se
manifesta em nós;
Enquanto que Ele
nos dá o Ser
de modo que o
Ato (al-amr) provém a um tempo d’Ele
e de nós.
Aquele que
conhece por meu coração,
no momento em
que Ele nos dá a vida,
vivifica-o [pelo
conhecimento][150].
Nós somos n’Ele
as existências, as determinações e as relações de tempo.
Este estado [de
contemplação de nossas possibilidades permanentes
em Deus] não
persiste em nós,
mas é o que nos vivifica.
O que dizemos do
Sopro espiritual que age através da forma humana terrestre acha-se corroborado
pelo fato de que o próprio Deus atribui a Si mesmo a “Expiração de Clemência” (an-nafas ar-rahmani), Ora, a atribuição
de uma qualidade entranha necessariamente tudo o que comporta [o simbolismo de]
esta qualidade; no caso presente, sabemos bem o que a expiração [animal]
comporta [de caracteres elementares como a dilatação, a propagação, a produção
do som, etc.]. É por isso que dizemos que a Expiração divina engloba todas as
formas do mundo: com efeito, ela está para estas como a Materia prima (al-jawhar al-hayulani), a qual não é
outra coisa que a determinação primeira da Natureza universal (at-tabi’ah). Os quatro elementos[151]
não passam de formas, dentre outras, de todas as que ela contém; o que está
acima dos elementos e acima de tudo o que é constituido pelos elementos faz
parte igualmente, enquanto “formas” da Natureza universal; vale dizer que não
apenas os espíritos e as essências das sete esferas celestes[152],
mas também os “espíritos superiores” (al-mala
al-a’la) saem da Natureza universal;
é por causa disso, aliás, que Deus os descreve como se rivalizassem uns
com os outros; pois a Natureza comporta a polarização; a oposição dos Nomes
divinos – que são as relações [universais] – uns em relação aos outros vem
precisamente da “Expiração de Clemência”, enquanto que a Essência (adh-dhat), que não está submetida a esta
condição [polarizante], é “independente dos mundos”. Quanto ao mundo, ele foi
produzido “na forma” do princípio que o manifesta, e que não é outro que a
Expiração divina[153].
A Expiração divina “eleva-se” em virtude do calor
que lhe é inerente, e “desce” em virtude do frio e da umidade, e “fixa-se” e
“solidifica-se” em virtude da secura. A “precipitação” [do mundo grosseiro]
provém assim do frio e da umidade [vale dizer, daquilo que corresponde a estas
qualidades na ordem universal]; é assim que podemos constatar na medicina: para
administrar um remédio que acelere a digestão, o médico espera até que haja uma
precipitação na água do doente, precipitação que se produzirá por uma
predominância, no organismo, do frio e da umidade naturais.
De resto, [a polarização primordial que qualifica a
Natureza universal acha-se simbolizada pelo fato de que Deus] deu consistência
à argila do homem “com Suas duas mãos”, que são evidentemente opostas uma à
outra; embora cada uma delas seja num certo sentido, como se diz, uma “mão
direita”, sua distinção não é menos real, quanto mais não seja por serem duas.
Pois a Natureza, que comporta a oposição, só é regida por aquilo que lhe corresponde.
De resto, é devido a este endurecimento pelas Suas duas mãos que Deus chamou ao
homem bashar,[154]
palavra que alude à “suavidade” (al-mubasharah)
que foi prodigada ao homem pelas duas Mãos divinas que o conformaram; isto
significa um favor divino especial para com o gênero humano, pois [segundo o
Corão] Deus disse àquele que recusou prosternar-se diante de Adão: “O que te
impede de prosternar-te diante deste que Eu criei com Minhas duas mãos? Tu és
orgulhoso (para com aquele que é teu semelhante, ou seja, que é feito de
elementos como tu), ou és tu um dos seres superiores (al-‘alin)[155],
que ultrapassam o domínio dos elementos, o que não é teu caso!”. Entendemos por
espíritos superiores aqueles que, por sua essência e em sua natureza luminosa,
elevam-se acima dos elementos, mesmo dependendo ainda da Natureza universal. O
homem não ultrapassa as outras espécies do domínio elementar senão por ter sido
“endurecido” pelas “duas Mãos” divinas; é por isso que sua espécie é mais nobre
do que todas as espécies formadas de elementos sem este duplo aperto divino
[que corresponde à natureza “central” do homem]; vale dizer que o homem possui
uma dignidade superior à dos anjos terrestres [de que fazem parte os gênios],
assim como dos anjos celestes [que povoam as sete esferas celestes, formadas
das modalidades sutis dos elementos], enquanto que os Anjos superiores são
melhores do que o gênero humano, segundo o texto sagrado [pois eles não tiveram
que prosternar-se diante de Adão].
Aquele que quer conhecer a Expiração (nafas) divina deve considerar o mundo;
pois, [segundo a palavra do Profeta] “aquele que conhece sua alma (nafashu), conhece seu Senhor” que se
manifesta nele; eu entendo que o mundo manifesta-se na Expiração do Clemente,
pela qual Deus “dilata” (naffasa) as
possibilidades implicadas nos Nomes divinos, aliviando-as (naffasa) por assim dizer da contração de seu estado de
não-manifestação; ao fazer isto, Ele foi generoso para consigo mesmo (fi nafsihi), de sorte que é deste lado
que se afirma a primeira ação da Expiração (an-nafas)
divina. Por conseguinte, o Ato divino não cessa de descer gradualmente pelo
“alívio (tanfis) das angústias”[156]
até a última das manifestações.
Tudo está contido na
Expiração divina
como o dia no alvorada da
manhã.
O Conhecimento transmitido
por demonstração
é como a aurora para o
sonolento;
de sorte que ele vê o que eu
disse, como um sonho,
símbolo da Expiração divina,
que, desde as trevas,
o alivia de toda angústia.
Ele já Se revelou àquele que
veio buscar uma tocha,
e que o viu como fogo, enquanto que Ele é uma
luz
para os reis [espirituais] e
os “viajantes”.
Se compreendes minhas
palavras, saberás que tens necessidade
[da forma aparente]:
se [Moisés] houvesse
procurado outra coisa [do que o fogo]
ele O teria
visto nela, e não inversamente.
Quanto às palavras com que [segundo o Corão] Jesus
respondeu a uma certa questão que Deus lhe propôs (sobre o mesmo tema que O fez
dizer em outra parte: “Nós o provaremos até que saibamos” – eu entendo, como se
ele quisesse saber se algo que havia sido atribuído a Jesus era verdadeiro ou
não, embora Ele já o soubesse desde a eternidade), dizendo: “É verdade que
dizes às pessoas que elas tomam a ti e tua mãe por divindades ao lado de Deus?”[157],
foi preciso que sua resposta fosse conforme a relação e ao aspecto sob os quais
se revelou o interlocutor; ora, a Sabedoria exigia, neste caso, que a resposta
respeitasse a dualidade essencialmente contida na Unidade; e é por isso que
Jesus disse – primeiramente exaltando a Deus acima das formas e ao mesmo tempo
definindo-o com o pronome da segunda pessoa, que indica o confronto –: “Exaltado
sejas, não está em mim” – vale dizer em meu ego, que se distingue de Ti –
“dizer o que não me compete segundo a verdade” – pela minha identidade ou pela
minha essência individual – , “se eu o disse, Tu sabes” – pois em realidade és
Tu quem fala, e quem fala sabe o que diz; Tu és a língua com a qual eu falo
(como nos ensinou o Enviado de Deus, sobre ele a Paz, ao reportar a mensagem
divina: “...e Eu sou a língua com a qual ele fala, etc.”, pois Deus
identifica-Se assim essencialmente com a língua do eleito que fala, e a palavra
vem do indivíduo). Por conseguinte, o servidor santo [Jesus] disse, continuando
sua resposta: “Tu sabes o que está em mim” – e é Deus [implicitamente] quem
fala, – “e eu não sei o que está em Ti” – ou seja, eu não sei o que está no Si:
esta expressão nega apenas o conhecimento da Ipseidade (al-huwiyah) como tal [em sua infinitude] e não na medida em que ela
é a autora das palavras e dos atos [de Jesus]. “Em verdade, és Tu [o conhecedor
dos segredos]”; pelo pronome Tu ele sublinha a distinção, pois apenas Deus [em
Sua infinitude] conhece todos os segredos. É assim que ele separou [o indivíduo
da essência divina] e uniu [os dois, dizendo: “se eu o disse, Tu o sabes...”];
ele afirmou a unicidade de Deus e a multiplicidade [que ela implica]; ele
considerou o universal e o particular ao mesmo tempo.
Ele disse ao terminar sua resposta: “Eu não lhes
disse senão o que me ordenastes dizer”; ele começou com uma negação, aludindo
ao fato de que ele não tinha uma existência [própria]; a seguir, ele compensou
esta negação com sua afirmação em relação ao seu interlocutor; se ele não tivesse agido assim, é porque ele
teria ignorado as Verdades divinas – e longe dele uma tal ignorância! –. Ele
disse então: “senão o que me ordenastes”, por seres Tu que falas com a minha
língua, porque Tu és minha própria língua! Observem esta consideração da
polarização espiritual e divina [do Ato divino e daquele que o recebe]; o que
poderia haver de mais sutil? – “[Eu não lhes disse senão o que me ordenastes
dizer]: adorai a Deus”; ele empregou o nome de Deus (Allah) por causa dos diferentes pontos de vista dos adoradores e
devido à diferença de cultos, pois este nome (Allah) compreende todos os aspectos divinos sem afirmar nenhum
deles em particular; e ele acrescentou: “meu Senhor e vosso Senhor”, pois é
certo que a relação que faz da Divindade o senhor de um dado ser manifestado é
qualquer coisa de exclusiva; e é por isso que ele distinguiu entre “meu Senhor”
e “vosso Senhor” pelos respectivos pronomes. Com as palavras: “...senão o que
me ordenastes” ele descreveu a si mesmo como aquele que recebe a Ordem (al-amr), o que corresponde ao seu estado
de servidor [perfeito], pois ninguém recebe ordens que não se espera que
execute, mesmo se por acaso não o fizer.
Uma vez que a Ordem [ou o Ato] divino revela-se em
conformidade com a hierarquia da Existência, tudo o que aparece aí em um ou
outro grau desta hierarquia matiza-se segundo a realidade própria deste grau. O
grau de quem recebe a Ordem [ou o Ato] implica uma certa condição que aparece
em tudo o que recebe uma ordem; da mesma forma, o grau da Ordem [ou do Ato]
implica uma condição que aparece em tudo o que ordena [ou age]. Assim, Deus
diz: “cumpram a oração!”, e nisto Ele é o que ordena, enquanto que quem está
obrigado ao culto recebe a ordem; por outro lado, o adorador diz: “Senhor,
perdoai-me!”, e desta vez é ele quem ordena, enquanto que Deus recebe a ordem.
Ora, aquilo que Deus exige com sua ordem da parte do adorador não é outra coisa
do que aquilo que o adorador pede com sua ordem da parte de Deus; e é por isso,
aliás, que toda prece é atendida, mesmo se a resposta é tardia. Da mesma forma,
acontece que alguns adoradores, que
receberam a ordem divina de cumprir a oração numa dada hora, atrasam o
cumprimento e só o fazem na hora em que podem; neste caso igualmente, a
obediência da ordem é postergada, embora ela deva certamente acontecer [de
parte do adorador verdadeiro], nem que seja na simples intenção [de cumprir o
rito ordenado].
Na sequência, Jesus diz: “eu fui o testemunho deles”
– ele não se inclui, como o fez dizendo: “meu Senhor” e “vosso Senhor” –
“enquanto permaneci entre eles”, pois os profetas são os testemunhos das suas
comunidades enquanto vivem; “mas quando
Tu me recolheres” – ou seja, quando Tu me elevares até Ti e me esconderes deles
e eles de mim – “serás Tu o observador” – não mais através da minha substância,
mas nas suas próprias substâncias, pois será Tu o olhar interior que os
observará; pois a consciência que o homem tem de si mesmo é a consciência de
Deus a seu respeito. Jesus designa Deus pelo nome de observador (ar-raqib), após ter designado a si mesmo
como testemunho (ash-shahid), para
frisar a diferença entre ele e seu Senhor, a fim de que saibamos que ele
considerava a si mesmo como servidor e a Deus como seu próprio Senhor. Ora,
saibam que a Deus, o Observador, pertence também o nome que Jesus, em suas
palavras “eu fui seu testemunho”, atribui a si mesmo, pois Jesus diz também: “e
Tu és o testemunho de todas as coisas”; ele diz “coisa” (shay’) no sentido de uma negação das negações, de modo que a
expressão “todas as coisas” compreende absolutamente tudo; e ele empregou o
Nome divino O Testemunho no sentido que Deus contempla a realidade própria e
essencial de todas as coisas. Com isto ele indicou que o próprio Deus era o
Testemunho da comunidade de Jesus, da qual ele dissera: “eu fui seu testemunho
enquanto permaneci entre eles”; trata-se do Testemunho divino na substância de
Jesus, segundo o sentido da mensagem divina bem conhecida, que afirma que Deus
é a língua, o ouvido e os olhos [do eleito]. Depois ele pronunciou uma palavra
que é tanto de Jesus quanto de Maomé: ela é de Jesus, porque é atribuída a ele
na Escritura divina; e é de Maomé porque este a pronunciou numa certa ocasião e
a recitou por toda uma noite, sem passar a outra coisa até a aurora: “se Tu os
castigas, eles são Teus servidores; e se Tu os perdoas, és Tu o Poderoso, o
Sábio”. O pronome “eles” exprime a ausência atual daquele de quem se fala; e
neste caso, a ausência daqueles de quem Jesus diz: “se Tu os castigas, etc.” é
como o véu que lhes esconde Deus. É assim que Jesus os lembra a Deus antes que
eles se apresentem diante d’Ele, para que o fermento aja sobre a massa, no
momento em que se mostrarem diante de Deus, e que a massa [sua substância
receptiva] esteja então à altura do fermento [sua consciência espiritual]. Ao
dizer: “eles são Teus servidores”, ele afirma que é apenas a Deus que eles
adoram; ao mesmo tempo, ele demonstra seu extremo estado de humilhação, pois ninguém
é mais humilde do que o servidor ou
escravo (al-abd) que não dispõe de si mesmo mas depende
inteiramente da lei que lhe impõe seu senhor único. Ao chamá-los “Teus
servidores” (ou escravos), ele exprime a exclusiva Senhoridade [de Deus sobre eles]; ora, o
castigo significa humilhação; [é como se ele dissesse:] Tu não os humilhas
senão pelo fato de que eles são Teus escravos. “E se Tu os perdoas” – ou seja,
se Tu os cobre e os protege do castigo que atraíram - “Tu és o Poderoso (al-aziz)” – ou seja, o Protetor. Quando
Deus confere este nome al-aziz [que
significa também “o amado”, “o querido”, “o precioso”] a um dos seus
servidores, Deus torna-se o amante em relação a este servidor e o preserva da
interferência do Nome O Vingador, de onde provém o castigo.
Por outro lado, Jesus distinguiu a Divindade da
criatura, recapitulando aliás esta distinção por afirmações análogas, como:
“pois és Tu o Conhecedor dos segredos”, “és Tu o seu observador”, e: “és Tu o
Poderoso, o Sábio”.
A expressão: “Se Tu os castigas, etc.”, torna-se,
nos lábios do Profeta, um pedido insistente, pois ele o repetiu a seu Senhor
por toda uma noite, até o levantar da
aurora, implorando uma resposta. Se ele tivesse escutado a resposta logo na primeira
demanda, ele não teria insistido; mas Deus lhe mostrou de modo cabal as razões
pelas quais eles mereciam o castigo, e o Profeta Lhe respondeu cada vez: “Se Tu
os castigas, eles são Teus servidores; e se Tu os perdoas, Tu és o Poderoso, o
Sábio”; se ele tivesse reconhecido para qual lado pendia a decisão divina, ele
teria pedido o perdão para eles no sentido indicado; entretanto, Deus não lhe
mostrou, conforme o versículo citado, senão sua dependência do perdão divino.
Segundo o dizer do Profeta, Deus, quando lhe agrada a voz de Seu servidor que
ora, retarda o atendimento à oração, para que o servidor repita sua prece, e
Ele age assim por amor e não porque tenha se afastado dele. Por esta razão,
Jesus mencionou o Nome O Sábio (al-hakim),
pois este nome designa aquele que coloca cada coisa em seu lugar e não fica
indiferente àquilo que a realidade de cada coisa exige em virtude de suas
qualidades [particulares]; o sábio é portanto aquele que conhece a ordem das
coisas.
Ao repetir este versículo do Corão, o Profeta
contemplou um conhecimento imenso que Deus lhe havia dado; que aquele que
recite este versículo esteja consciente disto, ou se retire! Quando Deus obriga
alguém a persistir numa prece, Ele só o faz tendo em vista atender e satisfazer
o pedido. Que ninguém relaxe a prece que lhe foi assinalada, mas insista com a
perseverança que teve o Enviado de Deus ao recitar esse versículo, em todos os
estados, até que ele ouviu a resposta
com sua orelha – como você verá, ou como Deus
o fará compreender. Se Deus aceitar a prece da tua língua, Ele fará com
que você escute Sua resposta com a orelha; e se Ele aceitar a sua prece do
espírito, ele fará você escutar Sua resposta com seu ouvido.
[1] Traduzimos aqui a’yan
por “essências”, porque trata-se das essências dos Nomes por oposição com suas
formas verbais ou ideais. O objeto da “visão” divina reside nas possibilidades
essenciais que correspondem aos “Nomes perfeitíssimos”, a saber os “aspectos”
universais e permanentes do Ser. Quando falamos da Essência una e única de todos
os Nomes ou Qualidades divinas, empregamos o termo adh-dhat.
[2] O termo al-‘ayn
(singular de a’yan) comporta os
significados de “determinação essencial”, “essência pessoal”, “arquétipo”,
“olho”, “fonte”. Esta frase significa assim que Deus quis ver-Se, com a
restrição de que Sua “visão” não se refere à Sua Essência absoluta (adh-dath), que transcende toda
determinação, mesmo principial, mas à Sua determinação imediata (‘aynah), Seu “aspecto pessoal”, que é
caracterizado precisamente pelas Qualidades perfeitas expressas pelos Nomes.
[3] Ou do Ser, pois o termo al-wujud tem os dois sentidos. Alguns manuscritos trazem a
variante: “...sendo dotado de faces (al-wujuh)...”,
ou seja de múltiplos “planos de reflexão” que diferenciam a irradiação (at-tajalli) divina.
[4] A Ordem divina é simbolizada pela palavra “seja!” (kun); ela identifica-se assim ao
princípio da Existência.
[5] Alusão à palavra divina (hadith qudsi) revelada pela boca do Profeta: “Eu era um tesouro
escondido; Eu quis ser conhecido (ou: conhecer), e Eu criei o mundo.”
[6] O ato visual é tomado aqui como símbolo do
Conhecimento em sua natureza universal.
[7] Literalmente: “a coisa” (ash-shay). Ibn’Arabi emprega às vezes este termo “coisa” para
designar uma realidade que ele não quer definir de nenhuma maneira; ele não diz
“a Essência” (adh-dath), para não
afirmar a transcendência e a não-manifestação daquilo que se trata, e ele
também não diz “o ser” ou “a Existência” (al-wujud),
para não sublinhar a imanência e a manifestação.
[8] Ou “homogênea” (musawwi),
vale dizer que não possui ainda a marca qualitativa e diferenciada do Espírito.
[9] Rawh:
“graça”, “liberdade”; alguns lêem ruh,
“espírito”.
[10] Trata-se do caos primordial, ou das possibilidades de
manifestação, ainda virtuais, confundindo-se na indiferenciação da materia.
[11] “Quando Eu o formei e Eu assoprei nele Meu Espírito...”
(Corão, XV, 29).
[12] A imagem de uma “efusão”, de um “transbordamento” ou de
uma “emanação” do Ser (al-wujud) ou
da Luz divina (an-nur) nas “formas”
receptivas do mundo não deve ser entendida como uma emanação substancial, pois
o Ser – ou a Luz divina incriada – não procede de fora de Si mesmo. Esta imagem
exprime ao contrário a superabundância soberana
da Realidade divina, que desdobra e ilumina as possibilidades relativas
do mundo, de tal modo que Ela seja “rica em Si mesma” (ghani binafsih) e que a existência do mundo não acrescente nada à
Sua infinitude. O simbolismo da “efusão” divina refere-se a esta palavra do
Profeta: “Deus criou o mundo nas trevas, depois Ele despejou (afada) sobre ele a Sua Luz”.
[13] Al-tajalli
significa “revelação” (em sentido geral), “desvelamento” e “irradiação”; quando
o sol, coberto por nuvens, se “revela”, sua luz “irradia” sobre a terra.
[14] Do ponto de vista cosmológico, este receptáculo
corresponde à substância passiva, a materia
prima ou princípio plástico de um mundo ou de um ser. Do ponto de vista
puramente metafísico, o receptáculo que se opõe – de um modo inteiramente
principial e lógico – à “efusão” incessante do Ser, reduz-se à possibilidade
principial, o arquétipo ou “essência imutável” (al-a’yn ath-thabitah) de um
mundo ou se um ser.
[15] O sufi persa Nur ad-din ‘Abd ar-Rahman Jami explica
assim esta passagem: “A majestade de Deus (al-haqq)
revela-se de duas maneiras: uma delas, que corresponde à revelação interior,
puramente inteligível, que os sufis chamam Efusão santísima, consiste na
auto-revelação de Deus manifestando eternamente a Si mesmo sob a forma dos
arquétipos e daquilo que eles implicam em termos de caracteres e capacidades; a
segunda revelação é a manifestação exterior, objetiva, que é chamada de Efusão
santa (al-fayd al-muqaddas); ela
consiste na manifestação de Deus mediante a imprimadura desses mesmos
arquétipos. Esta segunda revelação é consecutiva à primeira; ela é o teatro
onde aparecem as perfeições que, segundo a primeira revelação, estão
virtualmente contidas nos caracteres e capacidades dos arquétipos” (Lawaih, cap. XXX; edição do texto persa
e tradução inglesa por E.H. Whinfield e Mirza Muhammad Kazvini; Oriental Translation
Fund, New Series Vol. XVI, Royal Asiatic Society). Neste texto, as expressões
“formas” ou “caracteres” que se referem aos arquétipos, devem ser compreendidas
como simples “alusões”, porque os arquétipos ou “essências imutáveis” estão
evidentemente além de toda e qualquer individuação ou distinção formal.
[16] O termo amr
significa em primeiro lugar “ordem”, “comando”, mas comporta também o sentido
de “realidade” e de “ato”. A Ordem divina “seja!” corresponde ao ato puro.
[17] “Dele é o reino dos céus e da terra. A Deus retornarão
as realidades” [al-umur, ou seja as
realidades incriadas das criaturas] (Corão, LVII, 5).
[18] No texto original, todo o início do capítulo até este
ponto forma uma única frase com múltiplas proposições incidentes; é um conjunto
lógico que descreve todos os aspectos essenciais da Manifestação divina.
[19] “E quando teu senhor disse aos Anjos: Em verdade, Eu
colocarei um vigário [um preposto] sobre a terra, eles responderam: Colocarás
alguém ali que irá semear a corrupção e verterá o sangue, enquanto nós
celebramos Tuas glórias e Te proclamamos Santo? Ele disse: Em verdade, Eu sei o
que vós não sabeis. E Ele ensinou a Adão todos os nomes, e depois os
mostrou aos Anjos e lhes disse:
Anunciai-Me os nomes destes, se sois verdadeiros! Eles responderam: Louvado
sejas, não temos ciência fora daquilo que Tu nos ensinastes, pois Tu és o
Conhecedor, o Sábio! Ele disse: Ó Adão,
faze-os conhecer seus nomes! E quando ele os tinha feito conhecer seus
nomes, Ele disse: Não vos disse Eu que Eu conheço os segredos dos céus e da
terra e que Eu conheço o que escondeis e o que mostrais? E quando Nós dissemos
aos Anjos: Prosternai-vos diante de Adão, eles prosternaram-se todos menos
Iblis (o diabo), que recusou, tomou-se
de orgulho e se tornou infiel” (Corão, II, 28 ss).
[20] A expressão “forma” (çurah) é uma das que os autores sufis utilizam de maneira bastante
livre, pois ela é susceptível de diversas transposições além do seu significado
mais próximo, o de “delimitação”; a forma de uma coisa comporta um aspecto
puramente qualitativo, sendo a qualidade de natureza essencial; por outro lado,
na medida em que a forma de um ser opõe-se ao seu espírito, ela conduz
simbolicamente à função receptiva da materia.
[21] Segundo o adágio sufi: “O homem é um pequeno cosmo, e o
cosmo é como um grande homem.”
[22] A unicidade divina, em virtude da qual todo ser é
único.
[23] O “lado divino” é a soma das Qualidades divinas, a
Divindade na medida em que Ela produz e domina o mundo (o “lado criatural”).
[24] A “Realidade das realidades” ou “Verdade das verdades”
corresponde ao Verbo (Logos) enquanto
“lugar” de todas as possibilidades de manifestação. Ela é o mediador eterno, a
“Realidade Maometana” (al-haqiqat
al-muhammadiyah), o “istmo” (barzakh)
entre o Ser puro e a existência relativa, assim como entre a não-manifestação e
a manifestação. Ela é o protótipo de tudo; nada existe que não traga a sua
marca.
[25] A Natureza universal é o poder receptivo universal, a
“matriz” do cosmo. Segundo os cosmólogos helenizantes, a Natureza se reduz ao
princípio plástico do mundo formal, à raiz dos quatro elementos e das quatro
qualidades sensíveis, que regem todas as mudanças de ordem física. Ibn’Arabi,
ao transpor os elementos para a ordem cósmica total, atribui à Natureza uma
função bastante mais vasta, coextensiva a toda a manifestação, incluido-se aí
os estados angélicos. Ela é assim análoga àquilo que os hindus designam como Maya ou como a Shakti universal, aspecto maternal e dinâmico de Prakriti, a Substância ou Materia Prima. Acrescentemos no entanto
que este princípio não desempenha, no ensinamento de Ibn’Arabi, o mesmo papel
fundamental que ele assume na doutrina advaita, uma vez que o Islam considera
as funções produtivas do universo de uma maneira eminentemente “teocêntrica”.
[26] A criatura tem “pretensão” à totalidade em virtude de
sua origem divina, de seu protótipo universal e de sua raiz natural.
[27] ‘Abd ar-Razzaq al-Qashani esclerece que a razão, que é
o elemento engendrado pela polaridade ativo-passivo, da Ordem divina (al-amr) e da Natureza (at-tabi’ah), não pode ultrapassar esta
polaridade e compreendê-la “desde cima”.
[28] Trata-se dos dois aspectos de toda palavra revelada, e
aos quais se reportam as duas designações do Corão como “Recitação” (al-qu’ran) e como “Discriminação” (al-furqan).
[29] Os “universais”, segundo a terminologia escolástica.
[30] Segundo a linguagem que aqui utiliza Ibn’Arabi, a idéia
de “existência individual” (wujud ‘ayni)
pode ser transposta simbolicamente para além da condição formal, que é o
domínio da individuação propriamente dita. Assim, por exemplo, um Anjo não é um
“indivíduo”, porque ele não representa uma variação no interior de uma espécie;
no entanto, o argumento enunciado acima aplica-se igualmente aos Anjos.
[31] Al-mawjudat
al-‘ayniyah: as existências – ou realidades – individuais ou substanciais;
ver nota precedente.
[32] Ou seja, não-manifestada.
[33] Segundo a palavra do Profeta: “Deus Se esconde atrás de
sessenta e quatro mil véus de luz e de trevas; se Ele os erguesse, as
fulgurações de Sua Face consumiriam qualquer um que O olhasse”.
[34] Corão, XXXVIII, 75.
[35] O simbolismo das duas Mãos de Deus encontra-se também
na Cabala, notadamente no Zohar, onde elas são comparadas ao Céu e à Terra
enquanto princípios ativo e passivo da manifestação.
[36] Segundo a palavra divina revelada pela boca do Profeta:
“Meu servidor não pode aproximar-se de Mim com nada que Me agrade mais do
aquilo que Eu lhe impus. Meu servidor aproxima-se sem cessar de Mim com obras
gratuitas até que Eu o ame; e quando Eu o amo, Eu sou o ouvido através do qual
ele ouve, a vista pela qual ele vê, a mão com a qual ele pega e o pé com o qual
ele caminha; se ele Me pede, Eu lhe dou certamente, e se ele busca Minha ajuda,
Eu o socorro certamente” (citado por al-Bukhari conforme Abu Hurayrah).
[37] A expressão “forma” é aqui análoga à noção peripatética
de forma (eidos), ou seja uma marca qualitativa; lembramos que a qualidade
pode ser transposta ao universal puro. Em referência à palavra do Profeta:
“Deus criou Adão em sua forma (çurah)”,
o Sufismo chama de “Forma divina” o conjunto de Qualidades perfeitas pelas
quais Deus Se revela no universo.
[38] Segundo al-Qashani: “Tomai-o por salvaguarda na
louvação atribuindo as limitações a vós e todas as qualidades positivas a Deus,
conforme a palavra corânica: “Todo bem que te acontece vem de Deus, e todo mal
que te fere vem de ti mesmo”. (Corão, IV, 81).
[39] Segundo o relato corânico: “E quando teu Senhor tirou
dos rins de Adão sua semente e os tomou como testemunho diante deles: Não sou
Eu vosso Senhor?, eles responderam: Sim, nós o atestamos; isto, para que digais
no dia da ressurreição: em verdade, nós o negligenciamos” (Corão, VII, 171).
[40] Seth era o dom de Deus para Adão. Pelo seu nascimento,
a morte de Abel foi compensada e a ordem destruída foi restabelecida. Como
primeiro profeta dentre os descendentes de Adão, ele foi o verdadeiro filho,
corporal e espiritual, de seu pai. Ora, como escreve Ibn’Arabi no capítulo
sobre Enoch, “o filho é o segredo de seu pai”, ou seja ele simboliza seu
aspecto interior. Conforme este simbolismo, este capítulo apresenta uma
perspectiva espiritual inversa em relação àquela representada no capítulo
precedente. Enquanto que o capítulo sobre Adão descreve a manifestação
universal de Deus, ou a “visão” que Deus tem de Si mesmo no Homem universal, o
capítulo sobre Seth tem por objeto a revelação interior de Deus ou o
conhecimento que o homem tem de si mesmo no “espelho” divino.
[41] Corão, XVII, 12.
[42] A essência imutável ou o arquétipo não possui um ser
como tal, pois ela não passa de uma possibilidade não-manifestada contida na
Essência divina. É de um modo simbólico que o arquétipo pode ser considerado
como um receptáculo (qabil) ou um
“molde” que se “opõe” ao Ser divino – ver o início do capítulo sobre Adão.
[43] Segundo a terminologia advaita, Deus é o Sujeito – ou o
Testemunho (sakshin) – absoluto que
jamais se torna “objeto” de conhecimento. É n’Ele e por Ele que todas as coisas
são percebidas, enquanto Ele permanece sempre como o pano-de-fundo intangível.
“Os olhares não o atingem, mas é Ele que atinge os olhares”, diz o Corão (VI,3)
[44] Na “Divina Comédia”,
Adão explica a Dante sua visão intemporal da natureza dos seres em Deus:
“Porque eu a vejo no espelho verdadeiro / que faz por si mesmo de paredro as
outras coisas / e que nada faz de paredro”. (Paraiso, XXVI, 106 ss.)
[45] Título do Profeta Maomé, último dos legisladores
inspirados por Deus.
[46] O papel de “Selo dos profetas” corresponde a uma função
cíclica aparente, enquanto que a função de “Selo dos santos” é necessariamente
intemporal e oculta; ela representa o protótipo da espiritualidade,
independentemente de qualquer “missão” (risalah)
[47] Todo “enviado” (rasul)
é profeta (nabi) por seu grau de
inspiração; entretanto, só é chamado de “enviado” aquele que promulga uma nova
lei sagrada.
[48] O simbolismo do tabernáculo (al-mishkat) ou do “Nicho das Luzes” refere-se à seguinte passagem
corânica: “Allah é a Luz dos céus e da terra; o símbolo de Sua Luz é como um
tabernáculo [ou nicho], no qual está uma lâmpada; a lâmpada está num vidro; o
vidro é como uma estrela brilhante. Ela é acesa [com o óleo] de uma oliveira
abençoada, que não é do Oriente nem do Ocidente, e cujo óleo é quase luminoso,
mesmo quando o fogo não o toca. Luz sobre Luz. Allah conduz para Sua Luz a quem
lhe apraz; e Allah propõe parábolas aos homens; e Allah conhece todas as
coisas” (XXIV, 35). No Sufismo, o “Nicho das Luzes” é identificado ao foro
interior do Homem Universal.
[49] Nas “Revelações
de Meca” Ibn’Arabi fala também do “Selo da santidade dos profetas e dos
enviados” (IV, 57); ele entende por isto o Cristo quando da sua segunda vinda
antes do final dos tempos. Esta função, que pode parecer contraditória em si
mesma, explica-se da seguinte maneira: o “enviado” que “selará” o presente
grande ciclo da humanidade e que salvará os eleitos fazendo-os passar para o
ciclo futuro, não pode evidentemente trazer uma nova lei sagrada, que não teria
sentido para uma coletividade que deve subsistir como tal, mas fará ao
contrário transparecer as verdades intrínsecas comuns a todas as formas
tradicionais; ele irá dirigir-se à humanidade inteira, o que ele só poderá
fazer situando-se de certo modo no plano esotérico, que é o do santo
contemplativo (al-wali); entretanto,
ele será profeta e enviado, de uma maneira implícita, devido à sua função
eminentemente cíclica, mas ele será explicitamente um “santo”, enquanto que foi
o inverso que aconteceu com quase todos os profetas precedentes. Lembremos aqui
que o Cristo, de quem o Corão fala como um “enviado” (rasul), manifesta desde a sua primeira vinda esta “extroversão” da
“santidade” (wilaya) e do esoterismo,
o que faz dele, aos olhos dos sufis, o modelo do santo por excelência; e é
preciso que seja assim para que haja, fora de qualquer questão de ordem
cosmológica, uma verdadeira identidade espiritual entre o Cristo anterior a
Maomé e o Cristo “retornando” no final dos tempos. Na mesma passagem das “Revelações”, Ibn’Arabi fala do “Selo da
santidade maometana”, que ele distingue do “Selo da santidade dos profetas e
enviados”; o primeiro é também o “Selo da santidade universal”.
[50] “Meu lugar entre os profetas é assim: um homem
construiu um muro, e ele o terminou, à exceção de um único tijolo faltante; eu
sou este tijolo; depois de mim não haverá mais enviados (rasul) nem profetas (nabi)”. (Hadith)
[51] Cf. a palavra do Cristo: “Antes que Abraão existisse,
eu existia” (Jo, VIII, 58).
[52] Os estados contemplativos podem ser
concebidos como “Presenças” (hadarat) divinas,
ou como modalidades diversas da Presença única de Deus. Existe um número
indefinido de Presenças divinas; entretanto, distinguem-se geralmente cinco
Presenças fundamentais, conforme diversos esquemas dos quais mencionaremos o
seguinte: à “Presença da não-manifestação absoluta” (hadarat al-ghayb al-mutlaq) opõe-se –
não dentro da Realidade divina mas
segundo um ponto de vista estritamente humano e provisório – a “Presença da
manifestação acabada” (hadarat ash-shahadat al-mutlaqah), ou seja o mundo “objetivo”.
Entre estas duas Presenças situa-se a “Presença da não-manifestação relativa” (hadarat al-ghayb al-mudafi) que se subdivide por sua vez em relação a
duas regiões cósmicas distintas, das quais uma, a da existência supra-formal (al-jabarut), está
mais próxima da “não-manifestação absoluta”, enquanto que a outra, a do mundo
das formas sutis (alam
al-mithal) aproxima-se da “manifestação acabada”. Estas quatro
Presenças estão todas englobadas numa quinta, a “Presença total” (al-hadarat al-jam’iyah) que identifica-se ao Homem
universal (al-insan
al-kamil). Acrescentaremos que esta distinção das “Presenças” é
solidária de uma perspectiva por assim dizer “prática”, ou seja em conexão com
a via contemplativa e não com a pura doutrina metafísica.
[53] A teologia islâmica, como a dos padres gregos,
distingue duas maneiras de encarar a natureza divina: a “exaltação” ou
“distanciamento” (at-tanzih), que
nega toda e qualquer similitude de Deus com as coisas e afirma assim Sua
transcendência, e a “comparação” ou “analogia” (at-tashbi), que ao contrário descreve Deus por meio de símbolos e manifesta com isto Sua imanência às coisas.
As duas perspectivas são na verdade complementares, e o erro doutrinal consiste
em manter uma à exclusão da outra; o
“distanciamento” é superior à “comparação”,
no sentido de que a negação de toda determinação limitativa, portanto a
negação de toda negação, é a afirmação mais universal; entretanto, o
“distanciamento” unilateral acaba por excluir o mundo da natureza divina e por
conseguinte a limitá-la opondo Deus ao mundo; quanto ao ponto de vista da “comparação”,
ele é teoricamente inferior ao primeiro, mas superior em sua realização
contemplativa, pois ele corresponde ao assentimento direto do incriado dentro
do criado; por seu turno, ele implica o risco de limitar a natureza divina.
[54] As línguas arcaicas, como o árabe, comportam uma
pluralidade de sentidos em uma mesma expressão.
[55] Ou seja, o conjunto das Qualidades divinas.
[56] Esta maneira de se exprimir é intencionalmente
paradoxal; com efeito, as Qualidades divinas não podem ser “definidas” no sentido
próprio do termo, assim como não podem ser delimitadas. Também a expressão
“forma”, nas passagens seguintes, deve ser transposta.
[57] Traduzimos aqui apenas a primeira parte do capítulo
sobre Noé, pois a continuação, uma exegese das passagens corânicas que tratam
da história deste patriarca, apoia-se sobre um simbolismo verbal impossível de
se transpor para outra língua. Segundo o Corão, Noé revelou a unidade e a
transcendência divinas a um povo idólatra. A idolatria resulta de uma afirmação
unilateral do ponto de vista da “comparação”, ou da imanência, em detrimento da
transcendência divina. Segundo Ibn’Arabi, os ídolos adorados pelo povo que
pereceu no dilúvio, não eram outra coisa que personificações dos Nomes divinos
– de “aspectos” do Ser supremo – cuja realidade transcendente e cuja unidade
essencial haviam sido esquecidas por este povo. O erro dos idólatras suscitou a
prédica de Noé, no sentido que ele teve que afirmar a transcendência e foi
impedido de afirmar explicitamente a imanência de Deus, pois a função cósmica
da profecia comporta a compensação dos desequilíbrios e se acha de certo modo
ligada por esta lei. De seu lado, os idólatras permaneceram determinados pela
verdade que seu erro deformava, de modo que a fala de Noé os acirrou ainda mais
em sua atitude. Toda revelação profética produz assim, pelo que ela nega e pelo
que ela afirma, oposições sobre o plano terrestre e provoca finalmente, na
economia das formas tradicionais, afirmações e negações complementares.
[58] An-Nabulusi comenta: “... porque elas não passam de
possibilidades puras, que como tais jamais passarão ao estado de ser
necessário”.
[59] A Natureza possui quatro determinações fundamentais que
se exprimem na ordem sensível pelo calor, o frio, a secura e a umidade,
qualidades que podemos chamar de “agentes” de todas as mudanças naturais.
[60] A palavra khalil
comporta a idéia de “penetração”.
[61] O comentador an-Nabulusi cita como exemplo a palavra,
transmitida como haddith qudsi
(“palavra divina”): “Eu estava faminto, e tu não me alimentastes; Eu estava
doente, e tu não me curastes, etc.”.
[62] Al-Qashani explica que o mal não passa de uma privação
relativa do Ser, portanto do bem, pois o mal não tem existência em si mesmo.
São Denis o Areopagita já havia exposto esta verdade. Como exemplo
particularmente claro, al-Qashani menciona a má paixão amorosa, que é
reprovável não na sua essência, que é o
amor, mas como acidente, ou seja quando ela contradiz sua própria essência, o
amor integral.
[63] Trata-se de uma diferença de perspectivas, portanto de
uma incompatibilidade extrínseca de pontos de vista, pois ambos os sábios não estão errados.
[64] Expressão árabe que significa que a realidade de uma
coisa é posta a nu (Corão, LXVIII,41)
[65] Em seu livro “O
Homem Universal”, o sufi Abd al-Karim al-Jili escreve a respeito: Não é
exato dizer que os objetos do conhecimento afirmam-se neste por si mesmos,
porque resultaria daí que Deus coloca algo em outro que não Ele. O imam
Ibn’Arabi expressou-se de uma maneira defeituosa ao dizer que os objetos do Conhecimento
divino comunicam-se por si mesmos a este. Nós o desculparemos e não diremos que
isto é tudo o que ele conhece. Quanto a nós, achamos que Deus conhece tudo em
princípio, sem que Seu conhecimento resulte da natureza de seus objetos como
tais; apenas, estes objetos implicam enquanto tais aquilo que Deus já conhecia
deles principialmente, e sob este segundo aspecto eles afirmam suas essências
próprias n’Ele...” (capítulo sobre o Conhecimento). A divergência dos dois pontos de vista
explica-se da seguinte maneira: para Ibn’Arabi, os objetos do Conhecimento
divino são as “essências imutáveis” (al-a’yan
ath-thabitah) que não tem existência própria, mas que não passam de
possibilidades inerentes à Essência infinita. O equívoco, na expressão de
Ibn’Arabi, vem portanto daquilo que ele fala destas essências como realidades
distintas, e neste sentido Jili tem razão em contestá-lo. Mas a “visão”
intelectual de Ibn’Arabi comporta a seguinte síntese: o Conhecimento divino
preenche as possibilidades essenciais, que não são outra coisa que Deus; ele
“concebe” ao mesmo tempo estas essências enquanto tais e tudo o que elas
implicam de desenvolvimentos relativos, e, pelo fato mesmo de que ele é
absoluto em sua identificação com o absoluto, ele aparece como relativo em sua
identificação com o relativo.
[66] Corão, XXXVII, 164.
[67] Trata-se sempre de Deus (al-haqq) em seu aspecto “pessoal” correlativo da criação, e não a
Essência absoluta, em face da qual a criatura é nula.
[68] Sua hospitalidade para com os três Anjos do Senhor é o
modelo de toda hospitalidade.
[69] Sufi andaluz que ensinou a cosmologia.
[70] A cosmologia sufi é ligada à angelologia, assim como o
mundo “natural” é ligado ao mundo espiritual.
[71] Desde que os Nomes ou as Qualidades divinas comportam
necessariamente uma ordem hierárquica, podemos também chamá-los de “graus” ou
de “estações” da manifestação principial de Deus.
[72] O que Ibn’Arabi ensina neste capítulo é expresso por
Maitre Eckhart nestas palavras: “No princípio, eu era, eu meditei sobre mim mesmo, eu quis de minha vontade produzir este
homem que sou, eu sou minha própria causa a partir de minha essência eterna,
como depois de minha aparição no tempo. Aquilo que eu era na eternidade, eu o
sou agora, e continuarei para sempre, enquanto que aquilo que eu sou no tempo
passará e desaparecerá com o próprio tempo. No ato de meu nascimento eterno,
todas as coisas foram engendradas comigo, e eu me tornei minha própria causa e
de todo o resto, e se eu o quisesse, eu não seria mais nem eu, nem tudo; se eu
não fosse, Deus não seria” (cf. Emmanuel Aergertes, Le Mysticisme, Paris, 1952, pg. 78)
[73] Ao substituir a vítima humana, o animal sacrificado
“ajuda” o homem em sua reconciliação com o Céu. Por outro lado, o sacrifício
favorece o animal fazendo-o participar da função sacerdotal do homem, mediador
entre o “Céu” e a “terra”. Como o judaísmo, o Islã perpetua ritualmente o
sacrifício de Abraão pela imolação de um cordeiro. Para os cristãos o
sacrifício de Abraão prefigura o sacrifício do Cristo, por sua vez perpetuado
no rito da Eucaristia.
[74] O objeto a sacrificar não pode ser substituído senão
por aquilo que ele contém essencialmente.
[75] Se o homem é superior ao animal por sua participação
ativa na Inteligência, o animal de seu lado é superior ao homem por sua natureza
primordial, ou seja por sua fidelidade à norma cósmica; é neste sentido que o
animal nobre revela um aspecto interior e supra-racional da própria essência do
homem, e é isto que constitui a “ordem lógica” do sacrifício, assegurando o
ganho para o homem e “compensando a perda”
para o animal.
[76] Esta afirmação parece contradizer a doutrina revelada
segundo a qual o homem é o representante de Deus sobre a terra, enquanto os
demais seres terrestres lhe estão submetidos. Entretanto, se é assim segundo
uma certa perspectiva, a saber aquela que considera as possibilidades
espirituais dos seres, a ordem inversa é igualmente real segundo outro ponto de
vista, pois a perfeição “substancial” dos seres é de certa forma oposta às suas
virtualidades essenciais; o mundo – diz Ibn’Arabi no capítulo sobre Seth – é
como um espelho “onde as realidades se invertem e se tornam ambíguas”. É em
virtude desta lei de inversão que o diamante, por exemplo, é a imagem mais
perfeita do Espírito – ou do Intelecto – embora este seja ato puro e que o
mineral é o que há de mais passivo em nosso mundo. A superioridade do homem
sobre os outros seres terrestres – que foram criados antes dele – é de natureza
relativamente “interior”, enquanto que a superioridade do animal sobre o homem,
ou da planta sobre o animal, ou do mineral sobre a planta, consiste numa maior
“exteriorização” das perfeições essenciais.
[77] Vale dizer por uma contemplação de certo modo natural,
que se confunde com a “forma” essencial da espécie.
[78] O sufi Abu Yazid al-Bustami.
[79] Corão, XXXVII, 102.
[80] No capítulo sobre Enoch, Ibn’Arabi indica um outro
aspecto do sacrifício, de ordem ainda mais “interior”: a criança é o símbolo da
alma – ou da realidade interior – de seu
gerador; assim, a imolação do próprio filho significa o sacrifício de si mesmo;
assim, o cordeiro é o símbolo da alma de Abraão. Este viu sua alma, de um lado,
em sua visão interior, sob a forma de seu filho; ela lhe apareceu, no mundo
exterior, sob a forma de um cordeiro. É
preciso esclarecer que o Corão fala de uma visão (ruya) ou de um sonho profético que havia determinado a Abraão
imolar seu filho. O episódio comentado mostra a dupla refração das realidades
eternas no mundo das formas, que se distingue em um domínio “subjetivo” e outro
“objetivo”, englobados ambos na “imaginação” (al-khayal) cósmica: a aparição da alma sob a forma de um filho
provém de uma projeção “subjetiva”, enquanto que a transposição da criança num
cordeiro baseia-se no complementarismo entre o macro e o microcosmos: neste
último o animal sacrificial ocupa o lugar que está reservado simbolicamente ao
“filho do homem”.
[81] O episódio de que se trata é o seguinte: um homem
chegou ao Profeta e lhe disse: “esta noite eu vi em sonhos uma nuvem da qual
chovia gordura e mel; eu vi pessoas que recolhiam com as mãos o que caía;
alguns receberam mais, outros menos. E eu vi uma corda que descia do céu à
terra; tu a agarraste e foste levado ao céu; um homem a agarrou depois de ti e
foi levado ao céu; depois um outro homem a agarrou e foi levado; depois um
outro homem a agarrou e foi derrubado; depois a corda veio a ele de novo e ele
foi levado”. Então Abu Bakr disse: “Ó enviado de Deus, por meu pai, por ti e
por Deus, se me permites eu vou interpretá-lo”. O enviado de Deus disse:
“Interpreta-o”. Abu Bakr disse: “Quanto à nuvem, ela é a nuvem do Islam; quanto
à chuva de gordura e mel, isto significa a doçura e a unção do Corão, que as
pessoas recolhem mais ou menos. A corda que desce do céu à terra é a verdade à
qual te agarras; tu a pegaste e Deus ergueu-te por ela; um homem a tomou depois
de ti e foi elevado; depois outro homem a agarrou e foi elevado, e depois outro
a agarrou e foi derrubado; a seguir ela chegou novamente a ele e o elevou
igualmente. Dize-me então, ó enviado de Deus,
por meu pai, o que eu disse foi verdadeiro ou falso?” O enviado de Deus
respondeu: : “Tu adivinhaste bem uma parte, e perdeste o sentido da outra
parte” Ele disse: “Por Deus, ó enviado de Deus, conta-me aquilo cujo sentido eu
perdi.” Ele respondeu: “Não me obrigues!” – An-Nabulusi, que conta esta
história a partir de Muslim, observa que a visão de três homens que agarraram a corda depois do
Profeta provavelmente trouxe à história os três califas, dos quais o primeiro
foi o próprio Abu Bakr e o terceiro foi Othman, contra quem os muçulmanos se
revoltaram, e que foi assassinado pelos revoltosos e reconhecido como santo
após a morte.
[82] Corão, XXXVII, 105.
[83] Corão, XII, 42.
[84] Assim, a visão de Abraão indicava de fato a imolação
ritual do cordeiro, sem o que ela não teria sido sequer profética.
Acrescentemos que tratava-se de uma “grande imolação” porque doravante ela
deveria substituir a imolação ritual de vítimas humanas.
[85] Corão, XXXVII, 106.
[86] Segundo a interpretação comum da história sagrada de
que se trata aqui, Deus testou a fidelidade de Abraão, não seu conhecimento, e este sentido parece
impor-se como o mais religioso; entretanto, toda “prova” divina remete em
definitivo a uma limitação do conhecimento daquele que a sofre, podendo esta
limitação ser substancial, como entre a maior parte dos mortais, ou a um tempo
acidental e providencial, como acontece com os profetas; a prova resulta sempre
de uma aparente contradição das promessas divinas ou mais geralmente das
revelações divinas; aquele que se situa intelectualmente acima do plano
relativo em que estas contradições aparecem,
não as sofre mais. Por outro lado, a prova tem precisamente por objetivo
fazer ultrapassar o domínio dos contrastes “imaginários”. No caso de Abraão, a
aparente ordem de imolar o filho contradizia a promessa de posteridade que Deus
lhe fizera antes do nascimento da criança. De outro ponto de vista, a
resignação de Abraão diante do sacrifício de sua posteridade era a condição
intrínseca para a “sacralização” desta. Do ponto de vista cristão, diríamos que
o sacrifício intencional de Abraão preparou a vinda do Cristo. Lembraremos
assim que a fé nas promessas divinas,
malgrado sua aparente obscuridade, substitui provisoriamente o
conhecimento que elas implicam, até trazerem afinal o seu desnudamento.
[87] Pois existem certas aparições no mundo do sonho que é
preciso tomar ao pé da letra, sem aplicar-lhes a lei da analogia inversa, como
veremos adiante. Estas aparições são de certa forma soberanamente simbólicas, e
não acidentalmente submetidas às condições do estado imaginativo; tal é o caso,
no Islam, das aparições do Profeta.
[88] Uma vez que o Profeta é ele mesmo o símbolo por
excelência, sua aparição em sonho não pode sofrer uma refração que inverta a
forma. Diremos que no mundo cristão, as aparições da Virgem tem um caráter
igualmente direto, enquanto que as do Cristo não cabem nesta lei, porque para o cristão o Cristo identifica-se
com a Divindade, a qual se manifesta sob todos os aspectos possíveis. Os grandes
mestres do hesiquiasmo, por exemplo, jamais deixaram de se colocar em guarda
contra as aparições satânicas que imitavam a imagem do Cristo; não é preciso
dizer que tais aparições comportarão sempre algum sinal de sua falsidade. A
pessoa do Profeta – como a da Virgem – comporta uma “qualidade de servidor” (‘ubudiyah) perfeita, que Satanás não
consegue imitar.
[89] Tendo Sahl at-Tostari lhe enviado a mensagem: “eis aqui
um homem que bebe uma bebida que o deixa para sempre sem sede alguma”, Abu
Yazid respondeu: “aí está um homem que bebe todas as existências, mas cuja boca
está seca e queima de sede”.
[90] Vale dizer que a forma assim criada não possui apenas
uma realidade subjetiva, mesmo quando ela é de natureza sutil. Para esta
“criação”, a faculdade imaginativa (al-khayal)
só desempenhará o papel da substância passiva; a forma qualitativa da
“criatura” será determinada pela “vontade espiritual” (al-himmah) ou a “força de decisão espiritual”, que não tem uma
impulsão puramente individual, mas
corresponde ao raio de atividade divina no homem. Lembraremos a antinomia entre
a conjectura (al-wahm, palavra que
significa também opinião e suspeita) e a vontade espiritual (al-himmah).
[91] Pelo fato de que esta “criatura” é o objeto de uma
incessante concentração espiritual, ela só pode ser um símbolo da Essência. É
preciso então aproximar esta passagem do que Ibn’Arabi diz no capítulo sobre
Maomé, da impossibilidade de “contemplar” a Essência sem um suporte. – Abd
al-Karim al-Jili escreve em seu livro Al-Insan
al-kamil (“Do Homem universal”): “Se a imaginação configura uma forma
qualquer no mental, esta forma imaginária está criada; ora, em toda criatura o
Criador está presente; por outro lado, esta imaginação está em ti, de sorte que
tu és, em relação a ela, como Deus (al-haqq).
A configuração das formas [mentais] compete necessariamente a ti, mas em Deus,
e Deus (al-haqq) aí está presente”
(capítulo sobre ar-rahmaniyah). A
Presença divina nas formas mentais, tal como a considera al-Jili, é puramente
principial; mas se a forma mental corresponde a um símbolo revelado, a Presença
será aí virtual, e se o ato integral do homem, al-himmah, coincide com o símbolo, a Presença divina será atual; é
este último caso que Ibn’Arabi considera. Por sua atualização espiritual, o
símbolo adquire uma realidade independente da esfera individual do
contemplativo, e como ela implica realmente aquilo que ela exprime, ela resume
todas as modalidades da Presença divina ou todos os estados do Ser; por outro
lado, como o contemplativo identifica-se, por seu ato integral, a esta forma
simbólica, esta se “desdobra” por sua vez em todos os estados do Ser.
[92] Corão, VI, 38.
[93] Quer dizer que a “Presença real” que tem como suporte a
forma do símbolo, atualizada pela concentração espiritual, implica toda a
realidade de uma maneira global e indiferenciada.
[94] Aquele que se encontra num estado de conhecimento
global. Al-qur’an, literalmente “a
leitura” ou “a recitação” designa o aspecto unitivo da revelação e por
conseguinte o conhecimento unitivo em geral, vale dizer o conhecimento da unidade
essencial entre o incriado e o criado.
[95] Al-furqan, “a
discriminação”, designa o aspecto legislativo da revelação e por conseguinte o
conhecimento distintivo, ou mais
exatamente a discriminação entre o criado e o incriado. O conhecimento unitivo
reflete-se no amor, enquanto que a discriminação tem por corolário psíquico o
temor. Na via espiritual, estes dois aspectos do conhecimento devem se
equilibrar.
[96] Toda esta passagem refere-se à economia espiritual
regida pelos dois aspectos, unitivo e discriminante, do Conhecimento.
[97] Corão, XIX, 55.
[98] O “senhor” de um dado indivíduo não é assim outra coisa
que a “pessoa”, segundo o sentido do termo escolástico persona, ou seja a realidade essencial da qual o indivíduo é a
expressão efêmera.
[99] O que equivale a dizer que a beatitude da alma consiste
na sua conformidade consciente para com a sua essência.
[101] Corão, XIX, 55.
[102] Pois ele só existe em virtude de uma “relação” divina
particular, que é sua razão de ser como indivíduo; também o termo humano desta
relação é negado por outras “relações” divinas, assim como o finito como tal é
negado pelo Infinito.
[103] De modo que ele seja inteiramente integrado em sua
qualidade essencial, a qual não pode estar em contradição com as outras
Qualidades divinas, pois as Qualidades divinas não se contradizem senão em seus
efeitos. Al-Qashani explica que o indivíduo assim conforme ao seu senhor é por
isso mesmo conforme ao Senhor universal e identificado com o Homem perfeito
[universal].
[104] Corão, LXXXIX, 27.
[105] Porque a Senhoridade divina pressupõe uma relação
pessoal única, que por definição situa-se fora de qualquer comparação
“horizontal” com outros seres.
[106] A palavra jannah,
que significa “jardim” e “paraíso”, implica também o sentido de “esconder”.
[107] Seus sonhos propriamente ditos superpunham-se ao sonho
macrocósmico, que é o estado de vigília. Ou antes, sua vida se desenrolava como
um sonho profético dentro do quadro do sonho coletivo que é o mundo.
[108] Aqui, como em toda parte, o termo “forma” é susceptível
de uma transposição para além do mundo propriamente “formal” ou individual.
[109] Quando os mestres sufis afirmam que “o mundo é
imaginação” (al-kawnu khayal), eles
entendem por isto que ele é ilusório, que ele não possui realidade própria, mas
também que ele é constituído de “imagens” ou reflexos das realidades eternas;
pois a imaginação (khayal),
considerada como uma função cósmica corresponde ao meio formal; o “mundo das
analogias” (alam-al-mithal) que
compreende a manifestação sutil e a manifestação corporal, é também chamaddo de
“mundo da imaginação” (alam al-khayal).
Dizer que o mundo é imaginação não significa portanto, segundo o espírito do
Sufismo, que sua realidade se reduza àquela do sujeito individual, do qual ela
seria como que uma projeção, mas ao contrário é preciso entender que a
imaginação, que se manifesta “subjetivamente” na alma individual, possui, senão
em sua assignação ao menos em sua estrutura, um caráter cósmico, portanto de
certa forma “objetivo”. É preciso que seja assim para que a imaginação
“subjetiva” possa reproduzir a continuidade do “grande mundo”; pois é pela
imaginação que realizamos este mundo como um ambiente contínuo. Apenas quando
reconhecermos este caráter cósmico da imaginação, veremos ao mesmo tempo que
todo o mundo formal está “tecido com o mesmo pano”, e que por conseguinte ele é
ilusório em relação ao Intelecto que transcende a “imaginação” macro-cósmica
assim como transcende a imaginação “subjetiva”.
[110] Abu Hamid al-Ghazali afirma que os profetas possuem uma
faculdade imaginativa incomparavelmente mais poderosa do que a dos outros
homens, o que não significa evidentemente que eles sejam particularmente
sujeitos à ilusão, mas que a sua imaginação está na medida da função
intelectual e espiritual que os qualifica como profetas: a revelação se “fixa”
na ordem sensível e mais exatamente na imaginação que a ela corresponde
interiormente. É preciso saber que a revelação (nuzul) propriamente dita comporta um aspecto “cósmico” que a
distingue da “revelação” (tajalli) no
sentido de um estado de conhecimento: este é uma pura “enstase”, enquanto que a
revelação de um texto sagrado, por exemplo, é uma “descida” (nuzul) cujo modo é de certa forma
“objetivo” e análogo à criação de um mundo.
[111] Corão, XII, 3.
[112] Corão, XII, 4.
[113] Ibid.
[114] Corão, XII, 99.
[115] Segundo a psicologia árabe, o mundo imaginativo faz
parte da ordem sensível, porque ele é concebido segundo as assignações sutis
dos cinco sentidos e dos elementos correspondentes.
[116] Esta descrição da “sombra de Deus” lembra a de Maya segundo os comentadores do Vedanta, por ser Maya também aquilo que manifesta o Absoluto como múltiplo ao mesmo
tempo em que esconde sua verdadeira natureza; “dela [Maya] não se pode dizer nem que ela é, nem que ela não é”
(Shankaracharya), pois ela é insondável e só pode ser conhecida por seus
efeitos. “Considerada sob o aspecto ajnana
(ignorância), ela tem como suporte Atma
(o Si supremo), ao mesmo tempo em que o esconde, assim como uma câmara escura
está oculta pela própria obscuridade da qual ela é o suporte... O que está
escondido é o caráter de única realidade e de beatitude suprema de Atma. Apenas seu caráter de pura luz
intelectual permanece, para nos fazer perceber a própria ajnana...” (G. Dandoy, L’Ontologie
du Vedanta). Lembraremos que aqui, como no simbolismo exposto por Ibn
Arabi, a “Sombra” precede logicamente a Luz (an-nur).
[117] Segundo a concepção árabe, a cor azul aproxima-se do
negro; ela é, de fato, por sua qualidade cósmica, a cor da profundidade
insondável.
[118] A ciência atual considera o volume do sol como sendo
1.300.000 vezes maior do que o da terra, mas estas considerações quantitativas
não invalidam o argumento de Ibn’Arabi.
[119] Corão, XXV, 45.
[120] A bem dizer, não existe “potencialidade” na Essência,
visto que a potencialidade possui um caráter a um tempo passivo e
ininteligível; trata-se então aqui da indiferenciação principial da qual a
potencialidade é como que a imagem invertida e “material”.
[121] Corão, XXV, 45.
[122] Corão, XXV, 46.
[123] Aqui Ibn Arabi estende o sentido de al-khayal para além do mundo imaginativo no sentido rigorosamente
cósmico, pois ele afirma que o cosmo inteiro é “imaginação” (khayal), para significar que ele é
“ilusório” (mutawahham), que ele não
é nada que esteja realmente fora de Deus. Neste caso, o sentido dos dois termos
khayal e wahm corresponde de bem perto àquilo que o Vedanta designa como Maya, a “imaginação” correspondente à
idéia de “arte divina” que Maya
implica e o “poder conjectural” (al-wahm)
ao seu aspecto de avidya, ou seja de
“ignorância” ou de adhyasa, de falsa
“superposição”.
[124] Lembremos que a percepção sensível corresponde ao ponto
de vista da analogia e do simbolismo (tashbih),
enquanto que o raciocínio corresponde ao ponto de vista da transcendência (tanzih).
[125] Este simbolismo corresponde exatamente à teoria advaita
da luz pura (bimba) do Si (Atma) decomposta pelo filtro de Maya em
luz colorida (pratibimba).
[126] Corão, surata da Pureza, CXII.
[127] Corão, XXXV, 15.
[128] Ou seja, o tempo decorrido entre a ascenção de Cristo e
o momento em que este livro foi escrito por Ibn’Arabi; ele permanecerá aí até
seu “retorno” no final do ciclo.
[129] “...o Messias, Jesus, filho de Maria, é o enviado de
Deus e seu Verbo que Ele projetou sobre Maria, e espírito d’Ele...” (Corão, IV,
170).
[130] “[Jesus lhe dirá:] Eu vim mostrar-vos os sinais de vosso
Senhor; eu formarei com argila a figura de um pássaro, soprarei sobre ela e ela
se tornará um pássaro [vivo] com a permissão de Deus...” (Corão, III, 43). A história do menino Jesus
dando vida ao pássaro de argila acha-se também nos evangelhos apócrifos.
[131] Pois o Cristo ressuscitou dos mortos.
[132] O significado deste nome corânico não é claro; alguns o
traduzem como “samaritano”, o que é uma evidente anacronismo.
[133] “[Os Israelitas disseram a Moisés:] Nós não violamos
nossas promessas por nossa vontade, mas nos ordenaram que reuníssemos o peso de
nossos ornamentos... As-Samiri os
atirou [ao fogo] e de lá retirou um bezerro corpóreo, mugindo...” (Corão, XX,
90).
[134] [Moisés disse:] E tu, ó as-Samiri, qual foi teu desígnio? Ele respondeu: eu vi o que eles
não viram. Eu peguei um pouco de poeira das pegadas do enviado e a joguei
dentro do bezerro fundido; minha alma sugeriu-me isto” (Corão, XX, 96).
[135] Esta passagem parece aludir às duas naturezas do Cristo,
que podem ser consideradas como dois aspectos de seu Espírito ou de sua
Essência.
[136] “..Nós enviamos a ela nosso Espírito, e ele revestiu-se
da forma de um homem harmonioso. Ela disse: Eu busco refúgio em Deus contra Ti;
se tu O temes...” (Corão, XIX, 17-18)
[137] “Ele respondeu: Eu sou o enviado de teu Senhor, e vim
para te dar um filho puro. Como, respondeu ela, terei eu um filho? Pois nenhum
homem tocou-me, e eu não sou transgressora. Ele respondeu: É assim que diz teu
Senhor: Isto é fácil para mim. Ele será Nosso símbolo para os homens, e uma
misercórdia de Nossa parte. Foi uma ordem inexorável...” (Corão, XIX, 19-21).
[138] Corão, IV, 170.
[139] Vale dizer que o milagre não cancela a ordem natural mas
a resume incidentalmente em seu princípio superior; aqui, o poder espiritual de
Gabriel resume a ordem corporal em seu princípio sutil, sem que a polaridade da
geração específica seja por isso destruída. Toda esta explicação cosmológica da
concepção de Jesus não se presta para relativizar a intervenção divina; ela
busca fazer compreender a própria constituição do Cristo, a relação excepcional
que liga seu elemento “paternal” à sua substância “maternal”, como veremos a
seguir.
[140] Corão, III, 48.
[141] Id.
[142] Corão, V, 110.
[143] Corão, V, 19.
[144] Ou seja, eles definem a forma de Jesus como forma humana
terrestre, pelas palavras: “filho de Maria”, mas identificando Deus com esta
forma. Trata-se evidentemente da confusão entre as duas naturezas, divina e
humana, do Cristo.
[145] Ibn’Arabi não considera Maria sob seu aspecto de Theotokos, “Mãe de Deus”; esta expressão
seria inteiramente ininteligível do ponto de vista do Islam, que distingue
sempre claramente entre o criado e o incriado; a idéia do “Deus manifestado”,
no sentido direto e “concreto” do termo, acha-se entretanto no Sufismo, a saber
na identificação do Nome de Deus ao próprio Deus.
[146] “Quando Eu o formei e soprei nele Meu Espírito...”
(Corão, XV, 29).
[147] “Diga: se o oceano fosse de tinta para as palavras de
meu Senhor, o oceano se esgotaria antes que se esgotassem as palavras de meu Senhor,
mesmo se Nós produzíssemos uma quantidade igual a mais de tinta” (Corão, XVIII,
109)
[148] Corão, VI, 122.
[149] Corão, LVI, 88.
[150] Este versículo também pode ser traduzido assim: “Aquele
que O reconhece por meu coração, no momento em que Ele nos deu a vida, Lhe
empresta a vida individual”.
[151] Considerados como quatro fundamentos “naturais” tanto do
mundo sutil quanto do mundo corporal.
[153] Segundo esta concepção, a
Natureza universal – ou Expiração divina – é análoga àquilo que a doutrina
hindu designa como a Shakti ou como Maya.
[154] Corão, XV, 28.
[155] Corão, XXXVIII, 75.
[156] Segundo a doutrina dos Padres gregos, o mundo foi criado
“pelo Filho (o Verbo) no Espírito Santo”, que é também chamado de “consolador”.
[157] “E quando Deus disse a Jesus: Alguma vez dissestes aos
homens: Tomem a mim e a minha mãe por divindades além de Deus? Ele respondeu:
Exaltado sejas! Não está em mim dizer aquilo que não tenho direito de dizer
[ou: aquilo que não está em mim segundo a verdade]. Se eu o disse, Tu o sabes;
Tu sabes o que está em mim, e eu não sei o que está em Ti, pois és Tu o
Conhecedor dos segredos. Eu não lhes disse senão o que me ordenastes dizer:
Adorai a Deus, meu Senhor e vosso Senhor. Enquanto permaneci entre eles, fui
seu testemunho, mas quando me recolhestes para Ti foste Tu que os observastes, pois Tu és o testemunho de todas as coisas.
Se tu os punires, eles serão Teus servidores; se Tu os perdoares, serás o
Poderoso, o Sábio. – Deus disse: Este dia será um dia em que os justos
receberão sua justiça; os jardins regados pelos rios serão sua morada perpétua.
Deus estará contente com eles e eles contentes com Deus. Esta é a imensa
beatitude.” (Corão, V, 115-118). – É preciso lembrar que a expressão
“divindades além de Deus” no início da passagem corânica, define muito bem o
erro que, sem ser justificado pela doutrina cristã, pode na prática
introduzir-se no culto do “Filho de Deus” e da “Mãe de Deus”. Em razão do abuso
que sobreveio no seio da cristandade, o Corão afirma a transcendência divina. O
simbolismo da Theotokos está no
entanto implicitamente afirmado na passagem corânica: “Nós fizemos do filho de
Maria e de sua mãe [ou seja a mãe de Jesus] um símbolo. Nós lhes demos como moradia
um lugar elevado, tranquilo [ou: imutável] e abundante de fontes” (XXIII, 49).
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