RENÉ GUÉNON
O ERRO ESPÍRITA
SEGUNDA
PARTE
Exame das teorias espíritas
I
DIVERSIDADE
DAS ESCOLAS
ESPÍRITAS
Antes de abordar o exame das teorias espíritas, devemos
lembrar que estas teorias variam consideravelmente segundo as escolas; o que
constitui o espiritismo em geral, é apenas a hipótese da comunicação com os
mortos e de sua manifestação por meios de ordem sensível. Quanto ao resto,
podem haver e existem de fato divergências, mesmo sobre pontos tão importantes
como a reencarnação, admitida por uns e rejeitada por outros; e a constatação
dessas divergências é já razão para duvidar seriamente do valor das pretensas
revelações espíritas. De fato, o que faz o caráter especial do espiritismo, é que
aquilo que ele apresenta como sua doutrina está inteiramente baseado nos
ensinamentos dos “espíritos”; existe aí uma contrafação da “revelação”, no
sentido religioso, que não é inútil sublinhar, tanto mais que os espíritas
pretendem que tenha sido a revelações da mesma ordem que as religiões devem
suas origens, assimilando os fundadores a um conjunto de médiuns muito
potentes, visionários e taumaturgos. Os milagres, com efeito, são reduzidos por
eles à proporção dos fenômenos que se produzem nas suas sessões, as profecias à
das “mensagens” que eles recebem (1), e as proezas dos seus “médiuns
curadores”, notadamente, são postas em paralelo com as curas reportadas nos
Evangelhos (2); estas pessoas parecem fazer de tudo para “naturalizar o
sobrenatural”. Temos o exemplo de uma pseudo-religião, o Antonismo, fundada na
Bélgica por um “curador”, antigo chefe de um grupo espírita, cujos
ensinamentos, piedosamente recolhidos por seus discípulos, não encerram mais do
que uma espécie de moral protestante expressa num jargão quase incompreensível;
podemos dizer quase o mesmo de certas seitas norte-americanas como a “Christian
Science”, que mesmo não sendo espíritas, são ao menos “neo-espiritualistas”.
Digamos também de passagem, já que se apresenta a ocasião, que os espíritas
gostam de interpretar o Evangelho a seu modo, seguindo o exemplo do
Protestantismo, cuja influência sobre todos estes movimentos é inegável: e
assim eles imaginam encontrar mesmo argumentos em favor da reencarnação. De
resto, se certos ocultistas se dizem cristãos, eles o são tanto quanto os
protestantes liberais, porque isto não implica que eles reconheçam a divindade
do Cristo, que para eles não passa de um “espírito superior”: tal é a atitude
dos espíritas franceses da escola de Allan Kardec (existe mesmo uma fração que
se denomina “cristã-kardecista”), e também daqueles que aderem ao
“neo-cristianismo” imaginado pelo artista de “vaudeville” Albin Valabrègue, que
por sinal era israelita. Conhecemos ocultistas que, em lugar de se dizerem
cristãos como todo mudo, preferem qualificar-se como “crísticos”, a fim de
marcar com isto que eles não pretendem aderir a nenhuma Igreja constituída; os
espíritas deveriam também encontrar uma palavra própria para evitar quaisquer
equívocos, pois eles estão com certeza muito mais distantes do cristianismo
real do que os ocultistas a que fizemos alusão.
Mas voltemos aos ensinamentos dos “espíritos” e às suas
inumeráveis contradições: mesmo admitindo que estes “espíritos” sejam aquilo
por que se fazem passar, que interesse pode haver em escutar o que eles dizem
se eles não concordam entre si, e se, malgrado sua mudança de condição, eles
não sabem muito mais do que os vivos? Sabemos a resposta dos espíritas, que
existem “espíritos inferiores” e “espíritos superiores”, e que só estes últimos
são dignos de fé, enquanto que os outros, longe de poder “esclarecer” os vivos,
tem muitas vezes necessidade de serem “esclarecidos” por eles, sem contar os
“espíritos farsantes” aos quais se deve uma quantidade de “comunicações” triviais
e mesmo obscenas, e que é preciso afastar pura e simplesmente; mas como
distinguir estas diversas qualidades de “espíritos”? Os espíritas imaginam
estar em contato com um “espírito superior” quando eles recebem uma
“comunicação” na qual eles encontram um caráter “elevado”, seja por ter um
aspecto de pregação, seja por conter divagações vagamente filosóficas; mas,
infelizmente, as pessoas neutras não vêem aí mais do que um tecido de bobagens,
e se, como ocorre muitas vezes, esta “comunicação” vem assinada por um grande
homem, ela tende a fazer pensar que este fez o contrário de “progredir” após
sua morte, o que coloca em cheque o evolucionismo espírita. Por outro lado,
estas “comunicações” são as que encerram os ensinamentos propriamente ditos;
como existem ensinamentos contraditórios, eles não podem todos igualmente
emanar dos “espíritos superiores”, de modo que o tom sério que eles afetam não
é garantia suficiente; mas qual outro critério se pode usar? Cada grupo fica
naturalmente admirado diante das “comunicações” que obtém, mas desconfia das
recebidas por outros, sobretudo quando se trata de grupos entre os quais haja
uma certa rivalidade; de fato, cada um deles possui seu médium titular, e os
médiuns demonstram um incrível ciúme em relação aos seus confrades, pretendendo
monopolizar certos “espíritos”, contestando a autenticidade das “comunicações”
dos outros, e os grupos os seguem nessa atitude; e aí incluem-se todos os meios
em que se prega a própria “fraternidade universal”! Quando há contradições nos
ensinamentos, tudo o que uns atribuem aos “espíritos superiores”, os outros
olham como obra dos “espíritos inferiores”, e reciprocamente, como na disputa
entre encarnacionistas e anti-encarnacionistas; cada um apela para o testemunho
dos seus “guias” ou dos seus “controles” (2), ou seja dos “espíritos” em que
têm confiança, aos quais, bem entendido, apressam-se em confirmar na idéia de
sua própria “superioridade” e da “inferioridade” de seus contraditores. Nestas
condições, e na medida em que os espíritas estão tão longe de se entender sobre
a qualidade de seus “espíritos”, como confiar nas suas qualidades de
discernimento? E, mesmo se não discutirmos a proveniência dos seus
ensinamentos, podem estes ter mais valor do que as opiniões dos vivos, uma vez que
estas opiniões, mesmo errôneas, persistem após a morte, como parece, e só
desaparecem ou são corrigidas com uma enorme lentidão? É assim que se explica,
por exemplo, que, enquanto a maioria das “comunicações”, sobretudo na França,
são de um “deísmo” que cheira ao fim do século XVIII, existem algumas que são
francamente atéias, e existem outras até materialistas, o que é menos paradoxal
do que parece, dadas as concepções espíritas da vida futura. De resto,
“comunicações” deste gênero podem também encontrar partidários em qualquer
meio; Jules Lermina, o “velho empregado” da Lanterne,
não aceitava a qualificação de “espírita materialista”? Diante de todas essas
incoerências, seria mais prudente, da parte dos espíritas, reconhecer que a sua
doutrina não é absolutamente estável, que ela é susceptível de “evoluir” como
os próprios “espíritos”; e talvez, com sua mentalidade especial, eles não
estariam distantes de ver aí uma marca de superioridade. Eles declaram, de
fato, “remeterem-se à razão e ao progresso da ciência, reservando-se o direito
de modificar suas crenças à medida em que o progresso e a experiência
demonstrem a necessidade” (3); não é possível ser mais moderno e mais
“progressista”. Os espíritas pensam provavelmente, como Papus, que “esta idéia
de evolução progressiva põe fim a todas as concepções mais ou menos profundas
das teologias sobre o Céu e o Inferno” (4); estas pobres pessoas não suspeitam
que, entusiasmando-se por esta idéia, elas estão simplesmente iludidas pela
mais ingênua de todas as ilusões.
Nas condições que acabamos de descrever, é concebível que
o espiritismo seja um pouco anárquico e não possua uma organização bem
definida; entretanto ele formou, em diversos países, algumas associações
extensas, onde diversos grupos espíritas, ou ao menos a maioria deles, unem-se
sem renunciar à sua autonomia; trata-se aí mais de um acordo do que de uma
direção efetiva. Tais são as “Federações”, como existem notadamente na Bélgica
e em muitos estados da América do Sul; na França, foi fundada em 1919 uma
“União Espírita”, cujas pretensões são maiores, pois à sua frente colocou-se um
“Comitê de direção do espiritismo”, mas não sabemos até que ponto esta direção
é seguida, e, em todo caso, é certo que há dissidentes (6). No seio mesmo da
escola kardecista, o acordo não é absolutamente perfeito: alguns, como Léon
Denis, declaram ater-se ao kardecismo puro; outros, como Gabriel Delanne,
pretendem dar ao movimento espírita tendências mais “científicas”. Alguns
espíritas chegam a sustentar que “o espiritismo-religião deve ceder o lugar ao
espiritismo-ciência” (7); mas, no fundo, o espiritismo, com qualquer forma que
se revista, e quaisquer que sejam suas pretensões “científicas”, não poderá
jamais ser outra coisa do que uma pseudo-religião. Podemos reproduzir, como
particularmente significativas a este respeito, as questões que foram colocadas
e discutidas, em 1913, no Congresso espírita internacional de Genebra: “Que
papel o espiritismo poderá reivindicar na evolução religiosa da humanidade? É o
espiritismo uma religião científica universal? Qual a relação entre o
espiritismo e as outras religiões que existem atualmente? O espiritismo pode
ser assimilado a um culto?” A declaração que citamos não provém de uma escola
kardecista; ela foi tirada do jornal de uma seita denominada “Fraternismo”, que
professa teoria muito particulares, e que adquiriu um desenvolvimento
considerável, sobretudo nos meios operários do Norte da França; voltaremos a
falar disso mais adiante, assim como de outras seitas do mesmo gênero, que não
estão dentre as menos perigosas.
Na América do Norte, a ligação entre todos os agrupamentos
é sobretudo constituído por vastas reuniões ao ar livre chamadas de camp-meetings, que acontecem a
intervalos mais ou menos regulares, e nos quais se ouvem por muitos dias os
discursos e as exortações dos chefes do movimento e dos médiuns “inspirados”; é
completamente diferente dos Congressos europeus. É de resto em seu país de
origem, como é natural, que o espiritismo deu nascimento ao maior número de
associações e do caráter mais variado; em nenhuma parte, ele foi colocado tão
abertamente como religião, do que em algumas dessas associações. De fato,
existem espíritas que não recuam diante de fundar “Igrejas”, com uma
organização em tudo semelhante à das inumeráveis seitas protestantes deste
mesmo país: tal é, por exemplo, a “Igreja do Verdadeiro Espiritismo”, fundada
sob a inspiração do “espírito” do Ver. Samuel Watson, um antigo pastor
metodista que converteu-se ao modern
spiritualism. Outros preferem a forma dessas sociedades secretas ou
semi-secretas que são tidas em grande conta nos Estados Unidos, e que se
enfeitam com os títulos mais pomposos, mais impressionantes para os “profanos”;
um Americano poderá impor-se àqueles que não sabem do que se trata, apresentando-se
como membro da “Antiga Ordem de Melquisedeque”, também chamada de “Fraternidade
de Jesus” (8), ou de alguma “Ordem dos Magos” (existem muitas com este nome); e
o espanto será geral quando se descobrir estar diante de um simples espírita.
Organizações deste tipo podem nem ser especificamente espíritas, mas contar com
um grande número de espíritas entre seus membros; de resto, dentre as múltiplas
formas do neo-espiritualismo, existem algumas que não passam de um espiritismo
mais ou menos aperfeiçoado. Chega a tal ponto que podemos nos perguntar se a
aparência ocultista e as pretensões esotéricas de tal ou qual agrupamento não
são uma máscara tomada por alguns espíritas que quiseram isolar-se da massa e
operar uma espécie de seleção relativa; e, se os espíritas em geral repudiam o
esoterismo, a presença de alguns deles nos meios propriamente ocultistas prova
que podem existir muitas transições e acomodações; a conduta dessas pessoas não
está sempre rigorosamente de acordo com seus princípios, se é que princípios
elas tem. É sobretudo entre os espíritas anglo-saxões que encontramos coisas do
gênero que mencionamos: já falamos em outra parte de uma sociedade inglesa
auto-denominada rosicruciana, chamada “Ordem do Orvalho e da Luz”, que foi
acusada pelas concorrentes de praticar a “magia negra” (9); o que há de certo,
é que ela não tinha nenhuma relação com a antiga Rosa-Cruz de onde ela
pretendia tirar seu nome, que a maior parte de seus membros eram espíritas, e
que, nela se praticava mais o espiritismo do que qualquer outra coisa. “Seus
guias, podemos de fato ler numa carta publicada por um órgão teosofista, são
elementares: Francisco o monge, M. Sheldon, e Abdallah bem Yusuf, este último
antigo adepto árabe; eles sacrificam cabras; eles tentaram formar um círculo
para obter informações de forma proibida. Existem entre eles astrólogos e
seguidores cegos de Hiram Butler” (10). Este último personagem havia fundado em
Boston uma “Fraternidade Esotérica”, que se propunha como objetivo “o estudo e
o desenvolvimento do verdadeiro sentido interno da inspiração divina, e a
interpretação de todas as Escrituras”; as numerosas obras que ela publicou não
contém nada de sério. Entretanto, neste exemplo não se pode dizer que se trate
de uma escola espírita propriamente falando; mas podemos supor, ou bem que o
espiritismo infiltrou-se numa organização pré-existente, ou que o que existe aí
é só um disfarce destinado a iludir por meio do nome usurpado; em todo caso, se
não se tratasse de espiritismo, ela deveria pelo menos demonstrar ser outra
coisa. Se citamos este caso, foi para melhor mostrar todas as formas que um
movimento como esse pode tomar; e, a este propósito, lembraremos ainda a
influência que o espiritismo exerceu sobre o ocultismo e o teosofismo, malgrado
o antagonismo aparente em que ele se achou diante destas escolas mais recentes,
cujos fundadores e chefes, tendo sido primeiramente espíritas em sua maior
parte, mantiveram sempre alguma coisa de suas antigas idéias.
NOTAS
1. Num livro intitulado Spirite et Chrétien, Alexandre Bellemare
chegou a escrever o seguinte: “Nós reduzimos os profetas da antiga lei ao nível
dos médiuns; nós rebaixamos o que foi indevidamente elevado; nós retificamos um
sentido desnaturado. E ainda, se nos fosse necessário fazer uma escolha,
daríamos preferência ao que escrevem diariamente os médiuns atuais ao invés do
que escreveram os médiuns do Antigo Testamento”.
2.
Ver Léon Denis, Christianisme et Spiritisme, pgs. 89-91;
Dans l’Invisible, pgs. 423-439.
3. O primeiro termo é dos espíritas
franceses, o segundo dos espíritas anglo-saxões.
4.
Dr. Gibier, Le Spiritisme, pg. 141. – Cf. Léon
Denis, Christianisme et Spiritisme,
pg. 282.
5. Traité méthodique de Science occulte, pg. 360.
6. No Congresso espírita havido
em Bruxelas em Janeiro de 1910, formou-se um projeto mais ambicioso ainda, o de
uma “Federação Espírita Universal”; parece que isto não teve seqüência, embora
haja então se constituído um “Escritório Internacional do Espiritismo”, sob a
presidência do cavaleiro Le Clément de Saint-Marcq.
7. Le Fraterniste, 19 de Dezembro de 1913.
8. Esta Ordem, sob cujos
auspícios funciona a “Associação dos
Camp-Meetings de Sion-Hill”, no Arkansas, é dirigida por um “Supremo
Templo”, que se reúne anualmente nesta mesma localidade, e que é composta por
delegados “escolhidos pelos Reinos de Luz” (sic).
II
A INFLUÊNCIA DO
MEIO
Embora as teorias espíritas sejam tiradas das
“comunicações” dos pretensos “espíritos”, elas estão sempre em estreita relação
com as idéias em curso no meio em que são elaboradas; esta constatação apóia
fortemente a tese que expusemos, segundo a qual a principal fonte real destas
“comunicações” encontra-se no “subconsciente” do médium e dos assistentes.
Lembramos que pode ainda formar-se uma espécie de combinação dos diversos “subconscientes”
em presença, de modo a dar a ilusão de uma “entidade coletiva”; dizemos ilusão,
porque somente os ocultistas, com sua mania de ver em toda parte “seres vivos”
(e eles reprovam o suposto antropomorfismo das religiões!), podem ser levados
pelas aparências até crer que se trata aí de um ser verdadeiro. Seja como for,
a formação desta “entidade coletiva”, para conservarmos este modo de falar,
explica o fato, observado por todos os espíritas, d que as “comunicações” são
tanto mais claras e coerentes na medida em que as sessões são mais regulares e
com os mesmos assistentes; inclusive eles insistem nestas condições, mesmo sem
conhecer a razão, e freqüentemente hesitam em admitir novos membros em grupos
já constituídos, preferindo levá-los a formar novos grupos; de resto, uma
reunião muito numerosa se prestaria mal ao estabelecimento de laços sólidos e
duráveis entre seus membros. A influência dos assistentes pode ir muito longe e
manifestar-se de outras maneiras além das “comunicações”, se acreditarmos no
espírita russo Aksakoff, segundo o qual o aspecto das “materializações” se
modifica cada vez que novos assistentes são introduzidos nas sessões em que
elas se produzem, embora estas “materializações” continuem a se apresentar sob
a mesma identidade; naturalmente, este fato é explicado por ele pelos
empréstimos que os “espíritos materializados” fazem aos “perispíritos” dos
vivos, mas quanto a nós, não podemos ver aí senão a realização de uma “imagem
composta” para a qual cada um fornece alguns traços, operando-se assim uma
fusão entre os produtos dos diversos “subconscientes” individuais.
Bem entendido, não excluímos a possibilidade de ação de
forças estrangeiras; mas, de modo geral, quaisquer que sejam estas influências,
quando elas intervém, elas devem estar em conformidade com as tendências dos
agrupamentos onde elas se manifestam. De fato, é preciso que elas sejam
atraídas por certas afinidades; os espíritas, ignorando as leis segundo as
quais agem estas influências, são forçados a acolher o que se apresenta sem
poder determiná-las à sua vontade. Por outro lado, dissemos que as “influências
errantes” não podem ser vistas como propriamente conscientes por si mesmas; é
com a ajuda dos “subconscientes” humanos que elas formam uma consciência
temporária, de sorte que, do ponto de vista das manifestações inteligentes, o
resultado aqui é exatamente o mesmo que quando só há a ação das forças
exteriorizadas dos assistentes. A única exceção que cabe fazer diz respeito à
consciência reflexa que pode permanecer inerente aos elementos psíquicos que
pertenceram a seres humanos e que estejam atualmente em vias de desagregação;
mas as respostas que provém desta fonte tem geralmente um caráter fragmentário
e incoerente, de modo que os próprios espíritas não lhes dão atenção; e no
entanto é aí que está o que provém realmente dos mortos, embora o “espírito”
deste, ou seu ser real, não participe em nada disto.
Cabe ainda observar outra coisa, cuja ação pode ser muito
importante: trata-se dos elementos emprestados, não mais aos assistentes
imediatos, nas ao ambiente geral. A existência de tendências ou correntes
mentais cuja força é predominante numa dada época e país é bastante conhecida,
ao menos vagamente, para que se compreenda o que queremos dizer. Estas
correntes agem mais ou menos sobre todo mundo, mas sua influência é
particularmente forte sobre os indivíduos que podemos chamar “sensitivos”, e,
entre os médiuns, esta qualidade é levada ao seu grau mais alto. Por outro
lado, entre os indivíduos normais, é principalmente no domínio do
“subconsciente” que se exerce esta influência; ela se afirmará mais claramente
quando o conteúdo deste “subconsciente” apareça exteriormente, como acontece
nas sessões espíritas, e devemos reportar a esta origem muitas das
inacreditáveis banalidades que brotam das “comunicações”. Podem mesmo
acontecer, nesta ordem, manifestações que parecem apresentar mais interesse:
existem idéias das quais se diz vulgarmente que “estão no ar” e sabemos que
certas descobertas científicas foram feitas simultaneamente por pessoas que
trabalhavam independentemente umas das outras; se tais resultados jamais foram
obtidos pelos médiuns, é porque, mesmo quando eles recebem uma idéia deste
gênero, eles serão incapazes de tirar partido dela, e tudo o que farão será expressá-la
sob uma forma mais ou menos ridícula, às vezes quase incompreensível, mas que
causará a admiração dos ignorantes dentre os quais o espiritismo recruta a
imensa maioria dos seus aderentes. Eis como se explicam as “comunicações” com
ares científicos ou filosóficos, que os espíritas apresentam como prova da
verdade da sua doutrina, uma vez que o médium, sendo bastante pouco inteligente
ou iletrado, lhes parece evidentemente incapaz de ter inventado tais coisas; e
acrescentamos que, em muitos casos, estas “comunicações” são simplesmente o
reflexo de leituras quaisquer, talvez incompreendidas, e que não são
forçosamente do próprio médium. As idéias ou as tendências mentais de que
falamos agem um pouco ao modo das “influências errantes”, e mesmo esta denominação
é tão abarcante que tudo caberia nela, como uma classe especial destas
influências: elas não estão forçosamente incorporadas ao “subconsciente” dos
indivíduos, elas podem também permanecer no estado de correntes mais ou menos
indeterminadas (mas que não tem nada das correntes “fluídicas” dos ocultistas),
e manifestar-se nas sessões espíritas. De fato, nessas sessões, não é somente o
médium, é todo o grupo que se coloca em estado de passividade, ou, se se
preferir, de “receptividade”; é o que lhes permite atrair as “influências
errantes” em geral, pois lhes seria impossível captá-las exercendo sobre elas
uma ação positiva como faz o mágico. Esta passividade, com todas as
conseqüências que ela encerra, é o maior de todos os perigos do espiritismo; é preciso
acrescentar a ela, sob este aspecto, o desequilíbrio e a dissociação parcial
que essas práticas provocam nos elementos constitutivos do ser humano, e que,
mesmo entre os que não são médiuns, não devem ser negligenciados: a fadiga
demonstrada por simples assistentes após uma sessão prova-o suficientemente, e
a longo prazo os efeitos podem ser funestos.
Existe um outro
ponto que demandaria uma atenção especial: existem organizações que são o
contrário dos grupos espíritas, no sentido em que elas se aplicam a provocar e
manter, de modo consciente e voluntário, certas correntes mentais. Se
consideramos de um lado uma tal organização, e de outro um grupo espírita, já
se vê o que poderá se produzir: uma emitirá uma corrente, a outra irá
recebê-la; teremos assim um pólo positivo e um pólo negativo entre os quais se
estabelecerá uma espécie de “telégrafo psíquico”, sobretudo se a organização em
vista for capaz, não apenas de produzir a corrente, mas também de dirigi-la.
Uma explicação deste gênero é aliás aplicável aos casos de “telepatia”; mas,
nestes, a comunicação se estabelece entre dois indivíduos, e não entre duas
coletividades, e ademais ela é no mais das vezes acidental e momentânea, não
tendo sido intencional de uma parte nem de outra. Vemos que isto está ligado ao
que dissemos das origens do espiritismo e do papel que pode ter sido aí
desempenhado por homens vivos, sem que estes pareçam ter tomado nisto a menor
parte: um movimento como aquele era eminentemente apropriado para servir à
propagação de certas idéias, cuja proveniência poderia permanecer inteiramente
ignorada por aqueles mesmos que dele participaram; mas o inconveniente era que
o instrumento assim criado podia também achar-se à mercê de quaisquer outras
influências, talvez até mesmo opostas às que inicialmente foram postas em ação.
Não podemos insistir nisso agora, nem expor uma teoria mais completa sobre os
centros de emissão mental a que fazemos alusão; embora difícil, talvez o
façamos em outra ocasião. Só acrescentaremos uma palavra a respeito, a fim de
evitar falsas interpretações: quando se trata de explicar a “telepatia”, os
psiquistas apelam para algo que se parece aproximadamente às “ondas
hertzianas”; existe aí, de fato, uma analogia que pode ajudar, senão a
compreender as coisas, ao menos para representá-las numa certa medida; mas, se
ultrapassarmos os limites dentro dos quais a analogia é válida, não teremos
mais do que uma imagem quase tão grosseira quanto a dos “fluídos”, malgrado sua
aparência mais “científica”; na realidade, a natureza das forças de que se
trata é essencialmente diferente daquela das forças físicas.
Mas voltamos à influência do meio considerado no caso mais
geral: que esta influência tenha agido sobre os próprios espíritas, ou que ela
ganhe corpo especificamente por ocasião das sessões, é a ela que se deve
relacionar a maior parte das variações que sofrem as teorias do espiritismo. É
assim que os “espíritos” são “poligâmicos” entre os Mórmons, e que, em outros
meios norte-americanos, eles são “neo-maltusianos”; e é certo que a atitude de
diversas facções diante da reencarnação explica-se de modo semelhante. De fato,
já vimos como esta idéia de reencarnação encontrou na França um meio
especialmente preparado para recebê-la e desenvolvê-la. Ao contrário, se os espíritas
anglo-saxões a rejeitaram, foi devido, no dizer de alguns, às suas concepções
“bíblicas”. A bem dizer, este motivo não aparece como absolutamente suficiente
em si mesmo, porque os espíritas franceses invocam o testemunho dos Evangelhos
em favor de reencarnação: e, no meio protestante sobretudo, as interpretações
mais fantasistas podem ter livre curso. Apenas, se os “espíritos” ingleses e
norte-americanos declararam que a reencarnação estava em desacordo com a Bíblia
(que aliás nem toca neste assunto, pela boa razão de que se trata de uma idéia
exclusivamente moderna), é porque este era o pensamento daqueles que os
interrogaram; caso contrário, eles teriam expressado qualquer outra opinião, e
não teriam o embaraço de buscar textos em seu apoio, coisa que os
reencarnacionistas fazem efetivamente. Mas ainda há mais: parece que, na
América do Norte particularmente, a reencarnação é rejeitada porque a
possibilidade que o seu espírito venha a reencarnar-se num negro causa choque e
pavor aos brancos (1)! Se os “espíritos” norte-americanos colocaram este
motivo, não é apenas porque, como dizem os espíritas franceses, eles não eram
totalmente “despidos” de seus preconceitos terrestres; é porque eles não eram
mais do que o reflexo da mentalidade daqueles que recebiam suas “mensagens”, ou
seja a mentalidade vulgar dos norte-americanos; e a importância dada às
considerações desta ordem mostra, por sua vez, a que ponto pode chegar este
ridículo sentimentalismo que é comum a todos os espíritas. Se existem hoje em
dia espíritas anglo-saxões que admitem a reencarnação, é sob influência das
idéias teosofistas; o espiritismo nunca fez outra coisa do que seguir as
correntes mentais, ele nunca poderia ter lhes dado nascimento, em razão dessa
atitude de passividade que já assinalamos. De resto as tendências mais gerais
do espiritismo são aquelas do próprio espírito moderno, como por exemplo a
crença no progresso e na evolução; todo o resto vem de correntes mais
particulares, agindo em meios menos extensos, mas sobretudo, na maior parte do
tempo, em meios que podemos ver como “medianos” sob o aspecto da inteligência e
da instrução. Deste ponto de vista, cabe lembrar o papel desempenhado pelas
concepções que popularizam as obras de vulgarização científica; muitos
espíritas pertencem à classe a quem são dirigidas estas obras, e, se existem
alguns cujo nível é ainda inferior, as mesmas idéias lhes chegam por intermédio
dos outros, ou mesmo eles as captam simplesmente dentro do ambiente. Quanto às
idéias de alcança mais elevado, como eles não são intensificadas por uma tal
expansão, elas não chegam jamais a se refletir nas “comunicações” espíritas, do
que devemos nos felicitar, pois o “espelho psíquico” que é o médium só iria
deformá-las, e isto sem proveito para ninguém, porque os espíritas são
perfeitamente incapazes de apreciar qualquer coisa que ultrapasse suas
concepções correntes.
Quando uma escola espírita chega a constituir algo que se
pareça com uma doutrina e a fixar algumas grandes linhas, as variações no
interior desta escola só alcançam pontos secundários, continuando, dentro
destes limites, a seguir as mesmas leis. Pode entretanto acontecer que as
“comunicações” persistam então em traduzir uma mentalidade que é antes a da
época em que a escola foi estabelecida, porque esta mentalidade permaneceu nos
seus aderentes, embora ela já não corresponda mais inteiramente ao ambiente. É
o que aconteceu com o kardecismo, que sempre manteve alguns traços daqueles
meios socialistas de 1848 nos quais ele nasceu; mas é preciso dizer também que
o espírito que animava aqueles meios não desapareceu inteiramente, mesmo fora
do espiritismo, tendo sobrevivido, sob diversas formas, em todas as variedades
de “humanitarismo” que se desenvolveram desde então; mas o kardecismo
permaneceu mais próximo das antigas formas, enquanto que outras etapas deste
desenvolvimento foram de certo modo “cristalizadas” nos movimentos
“neo-espiritualistas” de data mais recente. De resto, as tendências
democráticas são inerentes ao espiritismo em geral, e mesmo, de modo menos
acentuado, a todo o “neo-espiritualismo”; isto acontece porque o espiritismo,
refletindo fielmente o espírito moderno nisto como em muitas outras coisas, é e
só pode ser um produto da mentalidade democrática; é, como foi dito muito
justamente, “a religião do democrata, a heresia em que teria de desembocar, em
religião, a democracia” (2). Quanto às outras escolas “neo-espiritualistas”,
elas são também criações especificamente modernas, influenciadas aliás, de
perto ou de longe, pelo próprio espiritismo; mas aquelas que admitem uma
pseudo-iniciação (por ilusória que seja), e por conseguinte uma certa
hierarquia, são menos coerentes do que o espiritismo, pois existe aí, quer se
queira quer não, alguma coisa que é claramente contrária ao espírito democrático.
Sob este aspecto, mas numa ordem de idéias um pouco diferente, haveria muita
coisa curiosa para lembrar em certas atitudes contraditórias, como a dos ramos
da Maçonaria atual (sobretudo na França e nos países latinos), que, apesar de
apregoarem as pretensões mais caricatamente democráticas, conservam
cuidadosamente a antiga hierarquia, sem se aperceber da incompatibilidade; e é
precisamente esta consciência da contradição que deve chamar a atenção daqueles
que pretendam estudar os caracteres da mentalidade contemporânea; mas esta
inconsciência não aparece em nenhum lugar com tanta veemência como no
espiritismo e entre todos os que tem alguma afinidade com ele.
Sob certos pontos de vista, a observação do que se passa
nos meios espíritas pode fornecer, pelas razões que expusemos, indicações muito
claras sobre as tendências que predominam num dado momento, por exemplo no
domínio da política. Assim, os espíritas franceses permaneceram por muito
tempo, em sua maioria, ligados às concepções socialistas fortemente tingidas de
internacionalismo; mas, alguns anos antes da guerra, uma mudança se produziu: a
orientação geral foi então a de um radicalismo com tendências patrióticas
acentuadas; apenas o anticlericalismo nunca muda. Hoje, o internacionalismo
ressurgiu sob diversas formas: é naturalmente em meios como estes que idéias
como a da “Sociedade das Nações” suscitam maior entusiasmo; e, naturalmente,
entre os operários que foram cooptados pelo espiritismo, este tornou-se
socialista, mas de um socialismo à nova moda, bem diferente da de 1848, que era
o que se podia chamar de um socialismo “pequeno burguês”. Enfim, sabemos que se
pratica o espiritismo em certos meios comunistas (3), e estamos persuadidos de
que todos os “espíritos” devem aí pregar o bolchevismo; sem isto, aliás, eles
não teriam lá nenhum crédito.
Ao considerarmos as “comunicações” como fizemos, não temos
em vista senão aquelas que são obtidas sem fraudes, pois as outras não tem
evidentemente nenhum interesse; a maior parte dos espíritas são certamente de
boa fé, e somente os médiuns profissionais podem ser suspeitos a priori, mesmo quando eles dão provas
de suas faculdades. De resto, as tendências reais dos meios espíritas se
mostram melhor nos pequenos grupos privados do que nas sessões dos médiuns de
renome; e ainda é preciso saber distinguir entre as tendências gerais e as que
são próprias a tal ou tal grupo. Estas últimas traduzem-se especialmente na
escolha dos nomes sob os quais se apresentam os “espíritos”, sobretudo os que
são os “guias” titulares do grupo; sabemos que são geralmente personagens
ilustres, o que faz imaginar que estes manifestam-se muito mais do que os
outros e que eles adquiriram uma espécie de ubiqüidade (faremos uma observação
semelhante a respeito da reencarnação), além de terem as faculdades
intelectuais que possuíam sobre a terra absurdamente diminuídas. Em um grupo
onde a religiosidade era a nota dominante, os guias eram Bossuet e Pio IX; em
outros onde se cultua a literatura são os grandes escritores, dentre os quais encontramos
freqüentemente Victor Hugo, sem dúvida porque ele foi espírita também. Apenas,
existe esta curiosidade: por Victor Hugo, não importa quem ou não importa o que
exprimia-se em versos de uma perfeita correção, o que concorda com nossa
explicação; dizemos não importa o que, porque ele às vezes recebia
“comunicações” de entidades fantasistas, como a “sombra do sepulcro” (basta
reportar-se às suas obras para descobrir sua proveniência) (4); mas, dentre o
comum dos espíritas, Victor Hugo esqueceu até as regras mais elementares da
prosódia, quando aqueles que o interrogam as ignoram por sua vez. Existem
entretanto casos menos desfavoráveis: um antigo militar (existem muitos entre
os espíritas), que ficou conhecido por suas experiências de “fotografia do pensamento”
cujos resultados são no mínimo contestáveis, está firmemente convencido de que
sua filha é inspirada por Victor Hugo; esta pessoa possui realmente uma
capacidade de versificação pouco comum, e ela chegou mesmo a adquirir uma certa
notoriedade, o que não prova nada certamente, a menos que se admita como certos
espíritas que todas as predisposições naturais sejam devidas a uma influência
dos “espíritos”, e que aqueles que demonstram certos talentos desde a sua
juventude sejam todos médiuns sem o saber; outros espíritas, ao contrário, vêem
nos mesmos fatos um argumento em favor da reencarnação. Mas voltemos às
assinaturas das “comunicações”, e citemos o que diz um psiquista pouco suspeito
de parcialidade, o Dr. L. Moutin: “Um homem de ciência não ficará satisfeito e
estará longe de aprovar as comunicações idiotas de Alexandre o Grande, de
César, do Cristo, da Virgem Maria, de São Vicente de Paula, de Napoleão I, de
Victor Hugo, etc., que dizem ser verdadeiras toda uma trupe de médiuns. O abuso
dos grandes nomes é detestável, e ele faz nascer o ceticismo. Já demonstramos a
estes médiuns que eles se enganam, ao colocar aos supostos espíritos presentes
questões que eles deveriam conhecer, mas que os médiuns ignoram. Assim por
exemplo, Napoleão I não se lembra de Waterloo; São Vicente de Paula já não sabe
uma palavra de latim; Dante não compreende o italiano; Lamartine e Alfred de
Musset são incapazes de compor dois versos. Mesmo pegando em flagrante delito
de ignorância estes espíritos e apontando a verdade a estes médiuns, acham que
abalamos suas convicções? Não, porque o espírito-guia sustentou que estávamos
de má-fé e que tentávamos impedir uma grande missão de cumprir-se, missão
entregue a seu médium. Nós conhecemos muitos destes grandes missionários que
terminaram sua missão em casas especiais!” (5). Papus, por sua vez, diz o
seguinte: “Quando São João, a Virgem Maria ou Jesus Cristo vem se comunicar,
procurem na platéia um católico fervoroso, pois é de seu cérebro e de nenhum
outro lugar que saiu a idéia diretriz. Da mesma forma, quando, como eu já vi, é
d’Artagnan que se apresenta, não é preciso dizer que está presente um fã de
Alexandre Dumas”. Nisto, só temos duas correções a fazer: em primeiro lugar, é
preciso substituir “cérebro” por “subconsciente” (estes “neo-espiritualistas”
às vezes falam como puros materialistas); em segundo lugar, como os “católicos
fervorosos” são muito raros nos grupos
espíritas, enquanto que as “comunicações” do Cristo ou dos santos são ao
contrário freqüentes, seria preciso falar apenas em influência de idéias
católicas, subsistindo em estado “inconsciente” entre aqueles mesmos que se
consideram “libertos”; esta nuance é muito importante. Papus prossegue nestes
termos: “Quando Victor Hugo produz versos de pé quebrado ou transmite conselhos
culinários, quando Mme. De Girardin vem declarar seu amor póstumo a um médium
norte-americano (6), existem noventa por cento de chances de se tratar de um
erro de interpretação. O ponto de partida da idéia impulsionadora deve ser
procurado bem perto.” (7). Diremos mais claramente: neste e em todos os outros
casos sem exceção, existe sempre um erro de interpretação dos espíritas; mas
estes casos são talvez aqueles em que se pode descobrir mais facilmente a
verdadeira origem das “comunicações”, por pouco que se pesquise as leituras, os
gostos e as preocupações habituais dos assistentes. Bem entendido, as
“comunicações” mais extraordinárias pelo conteúdo ou pela suposta procedência
não são as que os espíritas acolhem com menos respeito e pressa; estas pessoas
estão completamente cegas por suas idéias pré-concebidas, e sua credulidade
parece não ter limites, enquanto que sua inteligência e seu discernimento os
tem bastante fechados; falamos apenas da massa, porque existem graus na
cegueira. O fato de aceitar as teorias espíritas pode ser uma prova de burrice
ou apenas de ignorância; os que estão no primeiro caso são incuráveis e podemos
apenas lamentá-los; quanto aos que estão no segundo caso, a coisa é diferente,
e podemos tentar fazê-los compreender o erro, a menos que ele esteja tão
enraizado que haja produzido neles uma deformação mental irremediável.
NOTAS
1.
Dr. Gibier, Le Spiritisme, pgs. 138-139.
2. Les Lettres, Dezembro de 1921, pgs. 913-914.
3. O próprio Lenin declarou-se espírita
numa conversa com uma professora parisiense que havia tido problemas com a
justiça; é difícil saber se esta profissão de fé foi sincera, ou se foi uma ato
de polidez diante de uma espírita fervorosa; em todo caso, já há bastante tempo
o espiritismo cresce furiosamente na Rússia, em todas as classes sociais.
4. Assinalemos a propósito que
o “Espírito da Verdade” (denominação retirada do Evangelho) figura entre os
signatários do manifesto que serve de preâmbulo ao Livro dos Espíritos (o prefácio do Evangelho segundo o Espiritismo traz esta mesma assinatura), e
também que Victor Henequin, um dos primeiros espíritas franceses (que por sinal
morreu louco) era inspirado pela “alma da terra”, que o persuadiu de que ele
havia sido elevado ao posto de “sub-deus” do planeta (ver Eugène Nus, Choses de l’autre monde, pg. 139); como
podem os espíritas, que atribuem tudo aos “desencarnados”, explicar estas
bizarrices?
5.
Le Magnétisme humain, l’Hypnotisme et le Spiritualisme moderne, pgs. 370-371.
6. Trata-se de Henry Lacroix,
de que falaremos mais adiante.
7. Traité méthodique de Science occulte, pg. 847; cf. ibid., pg. 341. – Eis ainda um
outro exemplo citado por Dunglas Home, e que pode ser contado entre os mais
extravagantes: “Nas notas de uma sessão havida em Nápoles, dentre os espíritos
que se apresentaram diante de três pessoas, estavam Margherita Pusterla, Denys
de Siracusa, Cleópatra, Ricardo Coração-de-Leão, Alladim, Belcadel, Guerrazzi,
Manin e Vico; depois Abraão, Melquisedeque, Jacó, Moisés, David, Senaquerib, Eliseu,
Joaquim, Judite, Jael, Samuel, Daniel, Maria Madalena, São Paulo, São Pedro e
São João, sem contar outros, porque nestas notas assegura-se que todos os
espíritos da Bíblia estiveram presentes, uns após outros, apresentando-se
diante do Nazareno, precedido por São João Batista” (Les Lumières et les Ombres du Spiritualisme, pgs. 168-169).
III
IMORTALIDADE E
SOBREVIVÊNCIA
Entre outras pretensões injustificadas, os espíritas tem
ainda a de fornecer a “prova científica” ou a “demonstração experimental da
imortalidade da alma”(1); esta afirmação implica um certo número de equívocos,
que convém dissipar antes mesmo de discutir a hipótese fundamental da
comunicação com os mortos. Antes de mais nada, há um equívoco a respeito da palavra
“imortalidade”, pois este termo não tem o mesmo sentido para todo o mundo: o
que os Ocidentais chamam assim não é a mesma coisa que os Orientais designam
por termos que entretanto podem parecer equivalentes, e que o são muitas vezes
se nos ativermos apenas ao ponto de vista filológico. Assim, a palavra
sânscrita amrita traduz-se de fato
literalmente por “imortalidade”, mas ele aplica-se exclusivamente a um estado
que é superior a toda mudança, pois a idéia de “morte” aqui é entendida como
qualquer mudança. Os Ocidentais, ao contrário, tem o hábito de chamar de morte
tão somente o fim da existência terrestre, e de resto eles quase não concebem
outras mudanças análogas, pois parece que este mundo é para eles a metade do
Universo, enquanto que para os Orientais ele não representa mais do que uma
porção infinitesimal; falamos aqui dos Ocidentais modernos, pois a influência
do dualismo cartesiano teve um grande papel neste modo tão restrito de ver o
Universo. É preciso insistir nisto, tanto mais que estas coisas em geral são
ignoradas, e, por outro lado, estas considerações facilitarão grandemente a
refutação mesma da teoria espírita: do ponto de vista da metafísica pura, que é
o ponto de vista oriental, não existem na realidade dois mundos, este e “o
outro”, correlativos e por assim dizer simétricos e paralelos; existe uma série
indefinida e hierarquizada de mundos, ou seja de estados de existência (e não
lugares), dentro da qual este não passa de um elemento que não tem nem mais nem menos importância ou de valor do que não
importa qual outro, e que está simplesmente no lugar que deve ocupar no
conjunto, na mesma condição do que qualquer outro. Por conseguinte, a
imortalidade, no sentido que indicamos, não pode ser atingida “no outro mundo”
como pensam os Ocidentais, mas apenas além de todos os mundos, ou seja de todos
os estados condicionados; notadamente, ela está fora do tempo e do espaço, bem
como de todas as condições análogas a estes; sendo absolutamente independente
do tempo e de qualquer outro modo possível da duração, ela identifica-se com a
própria eternidade. Isto não quer dizer que a imortalidade tal como a concebem
os Ocidentais não tenha também um significado real, mas que é bem outro: ela
não é em suma senão um prolongamento indefinido da vida, em condições
transpostas e modificadas, mas que permanecem sempre comparáveis àquelas da
existência terrestre; o fato mesmo de que se trata de uma “vida” o prova
suficientemente, e convém lembrar que esta idéia de “vida” é uma daquelas das
quais os Ocidentais se libertam com maior dificuldade, mesmo quando eles não
professam sobre isto o respeito supersticioso que caracteriza certos filósofos
contemporâneos; devemos acrescentar que eles também não escapam facilmente ao
tempo e ao espaço, e, se isto não acontece, não há metafísica possível. A
imortalidade, no sentido ocidental, não está fora do tempo, segundo a concepção
comum, e, mesmo dentro de uma concepção menos “simplista”, ela não está fora de
uma certa duração; é uma duração indefinida, que pode ser chamada
apropriadamente de “perpetuidade”, mas que não tem nenhuma relação com a
eternidade, assim como o indefinido, que procede do finito por desenvolvimento,
não tem nada a ver com o Infinito. Esta concepção corresponde efetivamente a
uma certa ordem de possibilidades; mas a tradição oriental, que se recusa a
confundi-la com a imortalidade verdadeira, chama-a pelo nome de “longevidade”;
no fundo, não é senão de que são susceptíveis as possibilidades de ordem
humana. Podemos percebê-lo claramente quando nos perguntamos o que é o imortal
em um e em outro caso: no sentido metafísico e oriental, é a personalidade
transcendente; no sentido filosófico-teológico ocidental, é a individualidade
humana. Não podemos desenvolver aqui a distinção fundamental entre a personalidade
e a individualidade; mas, conhecendo bem o estado de espírito de certas
pessoas, diremos expressamente que é inútil procurar uma oposição entre estas
duas concepções de que falamos, pois, sendo de ordens completamente diferentes,
elas não se excluem assim como não se confundem. No Universo há lugar para
todas as possibilidades, com a condição que cada uma ocupe o seu posto
verdadeiro; infelizmente, o mesmo não acontece com os sistemas dos filósofos,
mas esta é uma contingência da qual é difícil se desembaraçar.
Quando se trata de “provar experimentalmente a
imortalidade”, está claro que não pode tratar-se da imortalidade metafísica:
esta, por definição, está além de toda experimentação possível; de resto, os
espíritas não tem dela nenhuma idéia, de modo que só cabe discutir sua
pretensão colocando-nos do ponto de vista da imortalidade entendida no sentido
ocidental. Mesmo deste ponto de vista, a “demonstração experimental” de que
eles falam aparece como uma impossibilidade, bastando refletir um instante; não
insistiremos sobre o emprego abusivo que é feito da palavra “demonstração”: a
experiência é incapaz de “demonstrar” propriamente qualquer coisa, no sentido
rigoroso do termo, tal como é empregado nas matemáticas por exemplo; mas
passemos por cima disto, e frisemos apenas que é uma estranha ilusão, própria
ao espírito moderno, que consiste em fazer intervir a ciência, e especialmente
a ciência experimental, em assuntos nos quais ela não tem o que fazer,
acreditando que sua competência pode estender-se a tudo. Os modernos,
embriagados pelo desenvolvimento que eles chegaram a dar a este domínio tão
particular, e aplicando-se tão exclusivamente a ela que não conseguem ver mais
nada fora, desconhecem os limites dentro dos quais a experimentação é válida, e
além dos quais ela não pode fornecer nenhum resultado válido; falamos aqui da
experimentação no seu sentido mais geral, sem nenhuma restrição, e, bem
entendido, estes limites serão tanto mais estreitos na medida em que tomarmos
as modalidades pouco numerosas que constituem os métodos reconhecidos e
utilizados pelo comum dos sábios. Precisamente, dentro do caso que nos ocupa,
existe um desconhecimento dos limites da experimentação; encontraremos um outro
exemplo a propósito das pretensas provas da reencarnação, exemplo mais chocante
ainda, ou de aparência mais singular, e que dará condição para completarmos
estas considerações colocando-nos de um ponto de vista um pouco diferente.
A experiência só se coloca sobre fatos particulares e
determinados, num ponto definido do espaço e num momento definido do tempo; ao
menos, assim são todos os fenômenos que podem ser objeto de uma constatação
experimental dita “científica” (que é como o entendem os espíritas). Isto é
reconhecido por todos, mas as pessoas se enganam facilmente sobre a natureza e
o alcance das generalizações às quais a experimentação pode legitimamente dar
lugar (e que aliás a ultrapassam consideravelmente): estas generalizações só
podem aplicar-se sobre classes ou conjuntos de fatos, dos quais cada um, tomado
à parte, é tão particular e tão determinado quanto aquele a partir do qual
fizeram-se as constatações cujos resultados são assim generalizados, de sorte
que estes conjuntos só são indefinidos numericamente, enquanto conjuntos, não
quanto aos seus elementos. O que queremos dizer é o seguinte: nunca estamos
autorizados a concluir que aquilo que constatamos em um certo ponto da
superfície terrestre deva produzir-se semelhantemente em qualquer outro lugar
do espaço, nem que um fenômeno que foi observado durante uma duração
extremamente limitada seja susceptível de prolongar-se indefinidamente;
naturalmente, não estamos aqui saindo do tempo e do espaço, nem considerando
outra coisa que os fenômenos, ou seja as aparências ou manifestações exteriores.
É preciso saber distinguir entre a experiência e sua interpretação; os
espíritas, assim como os psiquistas, constatam certos fenômenos, e não vamos
discutir a descrição que fazem deles; é a interpretação dos espíritas, quanto à
causa real destes fenômenos, que é radicalmente falsa. Mas admitamos por um
instante que esta interpretação seja correta, e que aquilo que se manifesta
seja realmente um ser humano “desencarnado”; segue-se daí que este ser seja
imortal, ou seja, que sua existência póstuma tenha uma duração de fato
indefinida? Vemos que existe aí uma extensão ilegítima da experiência, que
consiste em atribuir indefinidade temporal a um fato constatado por um tempo
definido; e, mesmo aceitando a hipótese espírita, bastaria isto para reduzir
sua importância e seu interesse a proporções muito modestas. A atitude dos
espíritas que imaginam que suas experiências provam a imortalidade não é mais
lógica do que a de um homem que, não tendo nunca visto morrer alguém, afirmasse
que as pessoas deveriam continuar a existir indefinidamente nas mesmas
condições, apenas por ter constatado esta existência durante um certo
intervalo; e isto, repetimos, sem prejulgar sobre a verdade ou a falsidade do
próprio espiritismo, porque nossa comparação, para ser justa, supõe implicitamente
sua validade.
Existem entretanto espíritas que perceberam mais ou menos
claramente esta ilusão, e que, para fazer desaparecer este sofisma
inconsciente, renunciaram a falar de imortalidade para falar apenas de
“sobrevida” ou “sobrevivência”; eles escapam assim devemos reconhecer, às
nossas objeções. Devemos dizer que estes espíritas, em geral, estão tão
persuadidos como todos os outros sobre a imortalidade, e acreditam tanto quanto
eles na perpetuidade da “sobrevivência”; mas esta crença aí tem o mesmo caráter
que entre os não-espíritas, e não difere sensivelmente do que pode ter a
crença, por exemplo, para os adeptos de uma religião qualquer, salvo que, para
apoiá-la, acrescenta-se o testemunho dos “espíritos”; mas as afirmações destes
estão sujeitas a cautela, pois, mesmo aos olhos dos espíritas, elas podem
muitas vezes ser o resultado das idéias que eles tinham sobre a terra: se um
espírita “imortalista” explica deste modo as comunicações que negam a
imortalidade (pois os há), em virtude de qual princípio se deverá atribuir mais
autoridade àqueles que a afirmam? No fundo, é simplesmente porque estes últimos
estão de acordo com suas próprias convicções; mas ainda é preciso que estas
convicções tenham uma outra base, que elas sejam estabelecidas independentemente
de sua experiência, portanto fundadas sobre razões que já não são mais aquelas
próprias ao espiritismo. Em todo caso, basta constatar que alguns espíritas
sentem a necessidade de renunciar à pretensão de provar “cientificamente” a
imortalidade; já é um ponto a favor, e mesmo um ponto importante para
determinar exatamente o alcance da hipótese espírita.
A atitude que definimos por último é a dos filósofos
contemporâneos com tendências mais ou menos marcadas pelo espiritismo; a única
diferença, é que estes filósofos colocam no condicional aquilo que os espíritas
afirmam categoricamente; em outros termos, enquanto uns contentam-se em falar
da possibilidade de provar experimentalmente a sobrevivência, outros consideram
a coisa já provada. Bergson, imediatamente antes de escrever a frase que
reproduzimos mais acima, e na qual ele encara precisamente esta possibilidade,
reconhece que “a imortalidade em si não poderia ser provada experimentalmente”;
sua posição é portanto clara a este respeito; e, no tocante à sobrevivência,
ele é cauteloso o bastante para falar apenas em “probabilidade”, talvez porque ele se dê conta, até um certo
ponto, de que a experiência não fornece certezas verdadeiras. Apenas, reduzindo
assim o valor da prova experimental, ele considera que “isto seria já qualquer
coisa”, que “seria mesmo muito”; aos olhos de um metafísico, ao contrário, e
mesmo sem colocar tantas restrições, seria muito pouco, para não dizer que
seria absolutamente desprezível. De fato, a imortalidade no sentido ocidental
já é alo bastante relativo, e como tal não se refere ao domínio da metafísica
pura; que dizer de uma simples sobrevivência? Mesmo fora de qualquer
consideração metafísica, não vemos que possa haver, para o homem, um interesse
capital em saber, de modo mais ou menos provável ou mesmo certo, que ele pode
contar com uma sobrevivência “por um tempo x”; pode isto ter mais interesse do
que saber mais ou menos exatamente quanto durará sua vida terrestre, da qual só
se pode apresentar um prolongamento indeterminado? Vemos como isto se distancia
do ponto de vista religioso, que não levaria em conta uma sobrevivência que não
fosse assegurada pela perpetuidade; e, dentro do apelo que o espiritismo faz à
experiência nesta ordem de coisas, podemos ver, dadas as conseqüências que daí
resultam, uma das razões (e que não é a única) pelas quais ele não será jamais
senão uma pseudo-religião.
Ainda temos a assinalar um outro lado da questão: para os
espíritas, qualquer que seja o fundamento de sua crença na imortalidade, tudo o
que sobrevive no homem é imortal; o que sobrevive, lembremos, é o conjunto
formado pelo “espírito” propriamente dito e pelo “perispírito” que lhe é
inseparável. Para os ocultistas, o que sobrevive é igualmente o conjunto do
“espírito” e do “corpo astral”; mas, neste conjunto, apenas o “espírito” é
imortal, e o “corpo astral” é perecível (2); e no entanto espíritas e
ocultistas pretendem basear suas afirmações sobre a experiência, que mostraria
assim a uns a dissolução do “organismo invisível” do homem, enquanto outros
nada encontrariam de semelhante. Segundo a teoria ocultista, haveria uma
“segunda morte”, que estaria para o “plano astral” assim como a morte no
sentido ordinário está para o “plano físico”; e os ocultistas são ainda forçados
a reconhecer que os fenômenos psíquicos não poderiam provar a sobrevivência
além do “plano astral”. Estas divergências mostrariam a pouca solidez das
pretensas provas experimentais, ao menos no que diz respeito à imortalidade, se
ainda houvesse necessidade depois das outras razões que demos, e que aliás são
a nossos olhos mais decisivas, porque elas estabelecem sua completa
inutilidade; apesar de tudo, é interessante constatar que, colocando-se duas
escolas de experimentação diante da mesma hipótese, aquilo que é imortal para
uma não o é para a outra. É preciso acrescentar, por outro lado, que a questão
fica mais complicada, tanto para os espíritas como para os ocultistas, pela
introdução da hipótese da reencarnação: a “sobrevivência”, cujas condições são
descritas de modo diferente por diferentes escolas, só representa naturalmente
o período intermediário entre duas vidas terrestres sucessivas, pois, a cada
nova “encarnação”, as coisas devem evidentemente se achar no mesmo estado que
na precedente. Trata-se então sempre de uma “sobrevivência” provisória, e,
definitivamente, a questão permanece: não se pode dizer, com efeito, que esta
alternância regular de existências terrestres e ultra-terrestres deva
prosseguir indefinidamente; as diferentes escolas poderão discutir a respeito,
mas não será a experiência que irá solucionar. Assim, a questão recua, mas não
se resolve, e a mesma dúvida subsiste sempre com relação ao destino final do
ser humano; ao menos, é o que deveria reconhecer um reencarnacionista que quisesse
permanecer coerente consigo mesmo, pois sua teoria é ainda mais incapaz do que
as outras para trazer alguma solução, sobretudo se pretender manter-se sobre o
terreno da experiência; existem também os que pretendem haver encontrado provas
experimentais da reencarnação, mas este é um assunto que examinaremos mais
adiante.
O que se deve guardar, é que aquilo que os espíritas dizem
da “sobrevida” ou da “sobrevivência”, aplica-se essencialmente, para eles, ao
intervalo compreendido entre duas “encarnações”; esta é a condição dos
“espíritos” cujas manifestações eles acreditam observar; é o que eles chamam de
“errância”, ou ainda da vida “no espaço”, como se não fosse também no espaço
que se desenrola a existência terrestre! Um termo como este de “sobrevida” é
muito apropriado para designar sua concepção, pois ela é literalmente a de uma
vida continuada, e em condições tão próximas quanto possível da vida
terrestre. Não existe, entre eles, esta
transposição que permite a outros conceber a “vida futura” e mesmo perpétua de
um modo que corresponda a alguma possibilidade, qualquer que seja o lugar desta
possibilidade dentro da ordem total; ao contrário, a “sobrevida”, tal como eles
a representam, não passa de uma impossibilidade, porque, ao transportar tais e quais
as condições de um estado para outro, ela implica um conjunto de elementos
incompatíveis entre si. Esta suposição impossível é aliás absolutamente
necessária ao espiritismo, porque, sem ela, as comunicações com os mortos não
seriam nem mesmo concebíveis; para poder se manifestar como se supõe que o
façam, é preciso que os “desencarnados” estejam muito próximos dos vivos sob
todos os aspectos, e que a existência de uns se pareça singularmente com a de
outros. Esta similitude é levada a um
grau inacreditável, e que mostra que as descrições desta “sobrevida” não passam
de um simples reflexo das idéias terrestres, um produto da imaginação
“subconsciente” dos próprios espíritas; vamos nos deter um pouco agora sobre
este lado do espiritismo, que não é dos menos ridículos.
NOTAS
1. Uma obra de Gabriel Delanne
tem por título: L’Ame est Immortelle: Démonstration expérimentale.
2. Papus, Traité méthodique de Science occulte, pg. 371.
IV
AS
REPRESENTAÇÕES DA SOBREVIDA
Conta-se que certos selvagens representam a existência
póstuma sobre o modelo exato da vida terrestre: o morto continuaria a cumprir
as mesmas ações, a caçar, pescar, guerrear, em uma palavra, a dedicar-se a
todas as suas ocupações habituais, sem esquecer de comer e beber; e nunca
deixamos de lembrar como tais concepções são ingênuas e grosseiras. A bem
dizer, é sempre bom desconfiar um pouco daquilo que se reporta sobre os
selvagens, e isto por muitas razões: em primeiro lugar, os relatos dos
viajantes, única fonte em todas estas histórias, são muitas vezes fantasistas;
além disso, mesmo aqueles que acreditam reportar fielmente o que viram e
ouviram, podem não haver entendido nada, e, sem se aperceber, substituído os
fatos por suas interpretações pessoais; enfim, existem sábios, ou que assim se
querem, que vêm superpor a tudo isto sua própria interpretação, resultado de
idéias pré-concebidas; o que se obtém desta última elaboração, não é mais o que
pensam os selvagens, mas o que eles deveriam pensar, conforme tal teoria
“antropológica” ou “sociológica”. Na realidade, as coisas são menos simples,
ou, se se preferir, elas são complicadas de outro modo, porque os selvagens,
assim como os civilizados, tem suas próprias maneiras de pensar, e que são
inacessíveis aos homens de uma outra raça; e, com os selvagens, tem-se muito
poucos recursos para compreendê-los e assegurar compreendê-los bem, porque, em
geral, eles não sabem explicar o que pensam. Quanto à asserção que reportamos,
pretende-se apoiá-la sobre alguns fatos que nada provam, como os objetos que
são depositados junto aos mortos, as oferendas de alimentos que se fazem nos
túmulos; ritos semelhantes existiram e existem hoje entre povos que nada tem de
selvagens, e eles não correspondem às concepções grosseiras que se imagina
indiquem, porque seu verdadeiro significado é bem diferente daquele que lhe
atribuem os sábios europeus, e porque, na realidade, eles dizem respeito
unicamente a certos elementos inferiores do ser humano. Apenas os selvagens,
que para nós não são “primitivos” mas degenerados, podem haver conservado
certos ritos sem os compreender, desde tempos imemoriais; a tradição, cujo
sentido foi perdido, substituiu-se entre eles pela rotina, ou pela
“superstição” no sentido etimológico do termo. Nestas condições, não vemos
nenhum inconveniente em que certas tribos ao menos (convém não generalizar
demais) tenham chegado a conceber a vida futura mais ou menos como dissemos;
mas não é preciso ir tão longe para encontrarmos, e de modo mais certo,
concepções ou antes representações exatamente como aquelas. Primeiramente,
encontraremos, em nossa época como em qualquer outra, pessoas das classes
inferiores que se vangloriam de sua civilização; se procurarmos entre os
populares de diversos países da Europa, a colheita será grande. Mas o melhor não
é isto: nestes mesmos países, os exemplos mais claros, aqueles que revestem as
formas mais precisas em sua grosseria, não são fornecidos por iletrados, mas
antes por pessoas que possuem uma certa instrução, sendo alguns até
considerados “intelectuais”. Em nenhuma parte, de fato, as representações deste
gênero são afirmadas com tanta força como entre os espíritas; eis aí um bom
objeto de estudos, que recomendamos aos sociólogos, que ao menos aí não
correrão o risco de erros de interpretação.
O melhor a fazer aqui, para começar, é citar alguns
extratos do próprio Allan Kardec; primeiramente, eis o que ele diz a respeito
do “estado de turbação” que segue imediatamente a morte: “Esta turbação
apresenta circunstâncias particulares, segundo o caráter dos indivíduos e
sobretudo segundo o gênero de morte. Nas mortes violentas, por suicídio,
suplício, acidente, apoplexia, ferimentos, etc., o espírito fica surpreendido,
aturdido, e não acredita estar morto; ele teima em estar vivo; e no entanto ele
vê seu corpo, ele sabe que aquele corpo é o seu, e ele não compreende que
esteja separado dele; ele corre para as pessoas de sua afeição, fala com elas,
e não entende porque elas não o escutam. Esta ilusão dura até a completa
separação do perispírito; apenas então o espírito se reconhece e compreende que
não mais faz parte do mundo dos vivos. Este fenômeno é facilmente explicável.
Surpreendido de improviso pela morte, o espírito está aturdido pela brusca
mudança que se operou nele; para ele, a morte é ainda sinônimo de destruição,
de extinção; ora, como ele pensa, ele vê, ele ouve, para os seus sentidos ele
não está morto; o que aumenta sua ilusão, é que ele se vê num corpo semelhante
ao precedente quanto à forma, mas cuja matéria diáfana ainda não teve tempo de
estudar; ele o acredita sólido e compacto como o primeiro; e, quando sua
atenção é chamada sobre este ponto, ele se espanta por não poder apalpar-se
(...) Alguns espíritos apresentam esta particularidade, ainda que a morte não
lhes tenha chegado inopinadamente; mas ela sempre acontece mais entre aqueles
que, ainda que doentes, não imaginavam morrer. Vemos então o singular
espetáculo de um espírito assistindo ao seu próprio féretro como se se tratasse
de outra pessoas, e falando disso como de uma coisa que não lhe dissesse
respeito, até a hora em que ele entende a verdade (...) Nos casos de mortes
coletivas, observou-se que todos aqueles que perecem ao mesmo tempo nem sempre
se reencontram imediatamente. Na perturbação que se segue à morte, cada um vai
para o seu lado, não se ocupando senão daqueles que lhe interessam” (1). Vamos
agora ao que é dito sobre o que poderíamos chamar a vida cotidiana dos
“espíritos”: “A situação dos espíritos e sua maneira de ver as coisas variam ao
infinito em razão do grau do seu desenvolvimento moral e intelectual. Os
espíritos de uma ordem mais elevada não passam geralmente sobre a terra mais do
que curtos períodos; tudo o que aí acontece é tão mesquinho em comparação com
as grandezas do infinito (sic), as coisa às quais os homens atribuem tanta
importância são tão pueris aos seus olhos, que eles encontram aí poucos
atrativos, a menos que tenham sido chamados para participar do progresso
humano. Os espíritos de ordem mediana aí permanecem mais freqüentemente, embora
considerem as coisas de um ponto de vista mais elevado do que quando vivos. Os
espíritos vulgares são como que sedentários aí e constituem a massa da
população ambiente do mundo invisível; eles conservaram quase que as mesmas
idéias, os mesmos gostos e as mesmas inclinações que tinham quando sob sua
envoltória corporal; eles se misturam às nossas reuniões, aos nossos negócios,
nas nossas diversões, nos quais tomam uma parte mais ou menos ativa, segundo
seu caráter. Não podendo satisfazer suas paixões, eles gozam daqueles que a
eles se abandonam e que os excitam. São mais numerosos são espíritos sérios,
que olham e observam para se instruir e aperfeiçoar” (2). Parece de fato que os
“espíritos errantes”, ou seja aqueles que aguardam uma nova encarnação,
instruem-se “olhando e observando o que se passa nos lugares que percorrem” e
também “escutando os discursos dos homens esclarecidos e os conselhos dos
espíritos mais elevados do que eles, o que lhes dá idéias que eles não tinham”
(3). As peregrinações destes “espíritos errantes”, por instrutivas que sejam,
tem o inconveniente de serem quase tão fatigantes quanto as viagens terrestres;
mas “existem mundos que são particularmente queridos dos seres errantes, mundos
nos quais eles podem habitar temporariamente, espécies de acampamentos onde repousar
de uma longa errância, estado que é sempre um pouco penoso. São estas posições
intermediárias entre os outros mundos, escalonados segundo a natureza dos
espíritos que aí podem ficar, e estes gozam de um maior ou menos bem-estar”
(4). Nem todos os espíritos podem ir a qualquer lugar indiferentemente; eis
como eles próprios explicam as relações que existem entre eles: “Os espíritos
de diferentes ordens podem ver-se, mas eles se distinguem uns dos outros. Eles
se repelem ou se aproximam, segundo a analogia ou a antipatia de seus
sentimentos, como acontece entre vós. É
um mundo do qual o vosso é como que um reflexo obscuro (5). Aqueles da
mesma classe reúnem-se por uma espécie de afinidade e formam grupos ou famílias
de espíritos unidos pela simpatia ou pelos objetivos a que se propõem; os bons
pelo desejo de fazer o bem, os maus pelo desejo de fazer o mal, a vergonha de
suas faltam e a necessidade de se achar entre seus iguais. Assim como uma
grande cidade aonde os homens de diversas classes e condições se vêem e se
encontram sem se confundirem; aonde as sociedades se formam pela analogia dos
gostos; aonde o vício e a virtude andam lado a lado sem se olharem (...) Os
bons vão a toda parte, e é preciso que seja assim para que eles possam exercer
sua influência sobre os maus; mas as regiões habitadas pelos bons são
interditas aos espíritos imperfeitos, a fim de que eles não possam aí levar a
perturbação das baixas paixões (...) Os espíritos se vêem e se compreendem; a
palavra é material: é o reflexo do espírito. O fluído universal estabelece
entre eles uma comunicação constante; é o veículo da transmissão do pensamento,
como para vós o ar é o veículo do som; uma espécie de telégrafo universal que
liga todos os mundos, e permite aos espíritos corresponderem-se de um mundo a
outro (...) Eles constatam sua individualidade pelo perispírito que faz deles
seres distintos uns dos outros, como o corpo entre os homens” (6). Não seria
difícil multiplicar estas citações, acrescentado-lhe textos que mostram os
“espíritos” intervindo em quase todos os eventos da vida terrestre, e outros
que especificam ainda as “ocupações e missões dos espíritos”; mas isto se
tornaria logo cansativo; existem poucos livros cuja leitura seja tão
insuportável quanto a da literatura espírita em geral. Parece-nos que os
precedentes extratos não requerem comentários; apenas faremos sublinhar, porque
isto parece importante e retorna a cada instante, a idéia que os “espíritos”
conservam todas as sensações dos vivos; a única diferença é que elas não lhes
chegam mais por órgãos especializados e localizados, mas pelo “perispírito”
inteiro; e as faculdades mais materiais, as mais evidentemente dependentes do
organismo corporal, como a percepção sensível, são vistas como “atributos do
espírito”, que “fazem parte do seu ser” (7).
Depois de Allan Kardec, é preciso mencionar o mais
“representativo” de seus discípulos atuais, Léon Denis: “Os espíritos de ordem
inferior, envoltos em fluídos espessos, sofrem as leis da gravitação e são
atraídos pela matéria (...) Enquanto que a alma purificada percorre a vasta e
radiosa extensão, viaja à vontade pelos mundos e não vê limites para si, o
espírito impuro não pode distanciar-se da vizinhança dos globos materiais (...)
A vida do espírito avançado é essencialmente ativa, embora sem fadigas. As
distâncias não existem para ele. Ele se transporta com a rapidez do pensamento.
Seu invólucro, semelhante a um leve vapor, adquiriu uma tal sutileza que se
torna invisível aos espíritos inferiores. Ele vê, escuta, sente, percebe, não
mais pelos órgãos materiais que se interpõem entre a natureza e nós e
interceptam a passagem das sensações, mas diretamente, sem intermediários, por
todas as partes do seu ser. Também suas percepções são muito mais claras e
multiplicadas do que as nossas. O espírito elevado nada por assim dizer num
oceano de sensações deliciosas. Quadros mutantes desenrolam-se à sua vista,
harmonias suaves o embalam e encantam. Para ele, as cores são perfumes, os
perfumes são sons. Mas, por mais delicadas que sejam suas sensações, ele pode
subtrair-se delas e recolher-se em sobre si à vontade, envolvendo-se num véu
fluídico, isolando-se no seio dos espaços. O espírito avançado está livre de
todas as necessidades corporais. O alimento e o sono não tem para ele nenhuma razão
de ser (...) Os espíritos inferiores carregam consigo, no além-túmulo, seus
hábitos, suas necessidades, suas preocupações materiais. Não podendo elevar-se
acima da atmosfera terrestre, eles tornam a partilhar a vida dos humanos,
misturando-se às suas lutas, aos seus trabalhos, aos seus prazeres (...)
Encontramos na errância multidões
imensas sempre à procura de um estado melhor que lhes foge (...) É de certo
modo o vestíbulo dos espaços luminosos, dos mundos melhores. Todos passam por
aí, todos aí permanecem um tempo, mas para elevar-se mais alto (...) Todas as
regiões do universo são povoadas de espíritos atarefados. Por toda parte,
multidões, enxames de almas sobem e descem, agitam-se no seio da luz ou nas
regiões obscuras. Num lugar, ouvintes ajuntam-se para receber as instruções de
espíritos elevados. Mais adiante, grupos formam-se para festejar a chegada de
um novato. Mais ao longe, outros espíritos misturam seus fluídos,
emprestando-lhes mil formas, mil tonalidades fundidas e maravilhosas, preparando-os
para os sutis usos que lhes destinam os gênios superiores. Outras multidões
empurram-se ao redor dos globos, seguindo-os em sua rotação, multidões
sombrias, turbadas, que influem à sua vontade sobre os elementos atmosféricos
(...) O espírito, sendo ele mesmo fluídico, age sobre os fluídos do espaço.
Pelo poder de sua vontade, ele os combina, os dispõe a seu critério,
empresta-lhes as cores e as formas que respondem ao seu objetivo. É por meios
destes fluídos que são executadas obras que desafiam toda comparação e toda
análise: quadros mutantes, luminosos; reproduções de vidas humanas, vidas de fé
e sacrifício, apostolados dolorosos, dramas do infinito (...) É nas alturas
fluídicas que se desenvolvem as pompas das festas espirituais. Os espíritos
puros, transbordantes de luz, aí se agrupam por famílias. Seu brilho, as
nuances variadas de seus invólucros, permitem medir sua elevação e determinar
seus atributos (...) A superioridade do espírito se reconhece por sua
vestimenta fluídica. É como um manto tecido com os méritos e as qualidades
adquiridas durante a sucessão de suas existências. Embaçada e sombria para a
alma inferior, sua brancura aumenta na proporção dos progressos realizados e
torna-se cada vez mais pura. Já bastante brilhante no espírito elevado, ela dá
às almas superiores um fulgor insustentável” (8). E que não se diga que estas
são maneiras de falar mais ou menos figuradas; tudo isto, para os espíritas,
deve ser tomado rigorosamente ao pé da letra.
Por extravagantes que sejam as concepções dos espíritas
franceses a respeito da “sobrevida”, elas são ultrapassadas pelas dos espíritas
anglo-saxões, e por tudo o que estes contam das maravilhas do Summerland ou “país do verão”, como eles
chamam a “morada dos espíritos”. Já dissemos que os teosofistas criticam
severamente essas tolices, no que eles estão certos; é assim que Mme. Besant
fala da “mais grosseira de todas estas representações, a do Summerland moderno, com seus
“maridos-espíritos”, suas “esposas-espíritos”, seus “filhos-espíritos”, que vão
à escola e à universidade, e tornam-se espíritos adultos” (9). Isto é muito
justo, certamente, mas podemos nos perguntar se os teosofistas tem o direito de
ironizar assim os “espiritualistas”; podemos julgá-lo por estas citações,
tiradas da obra de um outro eminente teosofista, Leadbeater: “Após a morte, ao
chegar ao plano astral, as pessoas não compreendem que estão mortas, e, mesmo
quando se dão conta, não percebem de início em que este mundo difere do mundo
físico... Assim, vemos pessoas recentemente falecidas tentando comer,
preparando para si refeições completamente imaginárias, enquanto outros
constroem casas. Eu vi positivamente no além um homem construir uma casa pedra
por pedra, e, embora ele criasse cada pedra por um esforço de seu pensamento, ele
não havia compreendido que poderia criar a casa toda de um golpe só, pelo mesmo
procedimento, sem ter todo o trabalho. Pouco a pouco, ao descobrir que as
pedras não tinham peso, ele foi percebendo que as condições deste novo mundo
diferiam daquelas a que ele estava acostumado sobre a terra, o que o levou a
continuar o seu exame. Em Summerland
(10), os homens se cercam de paisagens criadas por eles mesmos; alguns
entretanto nem se dão ao trabalho e contentam-se com as paisagens criadas por
outros. Os homens que vivem sobre o sexto sub-plano, ou seja próximos da terra,
estão cercados da contra-partida astral das montanhas, das árvores, dos lagos
físicos, de sorte que eles não são tentados a construir por si próprios;
aqueles que habitam os sub-planos superiores, que planam acima da superfície
terrestre, criam para si todas as paisagens que desejam (...) Um materialista
eminente, bem conhecido durante sua vida por um de nossos colegas da Sociedade
Teosófica, foi recentemente descoberto por este numa subdivisão das mais
elevadas do plano astral; ele havia se cercado de todos os seus livros e
continuava seus estudos como se estivesse na terra” (11). Fora a complicação
dos “planos” e “sub-planos”, devemos confessar que não vemos muita diferença; é
verdade que Leadbeater foi um antigo espírita, talvez ainda influenciado por
suas idéias anteriores, mas muitos de seus colegas vão pelo mesmo caminho; o
teosofismo fez de fato muitos empréstimos ao espiritismo para se permitir
criticá-lo. Convém lembrar que os teosofistas atribuem as pretensas
constatações deste gênero à “clarividência”, enquanto os espíritas as admitem
como simples “comunicações”; no entanto, o espiritismo também possui seus
“videntes”, e o que há de mais absurdo, é que, em caso de divergência entre escolas,
existe também desacordo entre as “visões”, sendo cada qual conforme às suas
próprias teorias; não se pode assim atribuir a elas mais valor do que às
“comunicações”, que estão no mesmo caso, e a sugestão aí desempenha um papel
preponderante.
Mas voltemos aos espíritas: o que conhecemos de mais
extraordinário, nesta ordem de coisas, é um livro intitulado Mes expériences avec les esprits,
escrito por um norte-americano de origem francesa, chamado Henry Lacroix; esta
obra, que foi publicada em Paris em 1889, prova que os espíritas não tem nenhum
senso do ridículo. O próprio Papus tratou o autor como “fanático perigoso” e
escreveu que “a leitura deste livro basta para afastar definitivamente do
espiritismo todos os homens sensatos” (12); Donald Mac-Nab disse que “às
pessoas que apreciam uma boa piada basta a leitura desta obra para verificar a
extravagância dos espíritas” (13). Seria preciso reproduzir esta elucubração
inteira para mostrar a que ponto podem chegar certas aberrações; é
verdadeiramente incrível, e seria uma excelente propaganda anti-espírita
recomendar sua leitura àqueles que ainda não foram contagiados, mas que correm
o risco de ser atingidos. Podemos ver aí, entre outras curiosidades, a
descrição e o desenho da “casa fluídica” do autor (pois, acredite quem quiser,
parece que ele viveria em dois planos simultaneamente), e também os retratos de
seus “filhos-espíritos”, desenhados por ele “sob seu controle mecânico”: trata-se de doze crianças (em quinze) que ele
havia perdido, e que continuaram a viver e a crescer “no mundo fluídico”;
muitos chegaram até a se casar! Assinalemos a propósito que, segundo o mesmo
autor, “existem com freqüência, nos Estados Unidos, casamentos entre vivos e
mortos”; ele cita o caso de um juiz chamado Lawrence, que se fez casar com sua
falecida esposa por um pastor amigo (14); se o fato é verdadeiro, ele dá uma
triste idéia da mentalidade dos espíritas norte-americanos. Em outras partes,
aprendemos como os “espíritos” se alimentam, se vestem, constroem moradias; mas
o que há de melhor, são talvez as manifestações póstumas de Mme. de Girardin e
os diversos episódios que a ela se ligam; eis um trecho: “Era noite, e eu
estava ocupando em ler ou escrever, quando vi Delphine (Mme. de Girardin)
chegar junto a mim com um fardo nos braços, que ela depositou a meus pés. De
imediato, não percebi do que se tratava,
mas logo notei que aquilo tinha uma forma humana. Compreendi então o que
se queira de mim. Tratava-se de desmaterializar este espírito infeliz que tinha
o nome de Alfred de Musset! E o que confirmava para mim esta versão, é que
Delphine havia se colocado a postos, após haver feito sua tarefa, como se
pretendesse assistir a operação (...) A operação consistia em descolar da forma
inteira do espírito uma espécie de epiderme, que se ligava ao interior do
organismo por toda espécie de fibras e ligações, ou a esfolá-lo, enfim, o que
fiz com sangue frio, começando pela cabeça, malgrado os gritos lancinantes e as
convulsões violentas do paciente, que eu ouvia e via, mas sem tê-los em conta
(...) No dia seguinte, Delphine voltou para me falar de seu protegido, e ela
anunciou-me que após haver cuidado de minha vítima com todos os cuidados para
livrá-la dos efeitos da terrível operação que eu lhe fizera, os amigos haviam
organizado um “festim pagão” para celebrar sua libertação” (15). Não menos
interessante é o relato de uma representação teatral entre os “espíritos”:
“Enquanto Celeste (uma das “filhas-espírito” do autor) me acompanhava um dia em
meus passeios, Delphine chegou inopinadamente a nós, e disse à minha filha:
“Porque não convida seu pai para acompanhá-la à Opera?” Celeste respondeu: “É
preciso que eu pergunte ao Diretor!” Alguns dias mais tarde, Celeste veio
anunciar-me que seu diretor me convidava, e que ficaria encantado em receber-me
juntamente com os amigos que me acompanhassem. Eu fui uma tarde à Opera com
Delphine e uma dezena de amigos (espíritos) (...) A sala imensa, em anfiteatro,
aonde nos colocamos, regurgitava de assistentes. Felizmente, em nossos lugares
escolhidos, com os amigos, tínhamos espaço para nos movermos à vontade. O
auditório, composto por cerca de vinte mil pessoas, tornava-se por momentos um
mar agitado, quando a peça atingia os corações do público conhecedor. Aridide ou os sinais dos tempos, tal era
o nome da ópera, em que Celeste, como protagonista, surgia com destaque,
resplandecente, abrasada pelo fogo artístico que a anima. Em sua ducentésima
apresentação, este esforço de colaboração das cabeças mais renomadas cativa
ainda de tal modo os espíritos, que uma multidão de curiosos, não encontrando
lugar no recinto, formava com seus corpos comprimidos uma abóbada (ou um teto)
compacto. A trupe atuante, sem contar o pessoal da produção e a orquestra, era
de cento e cinqüenta artistas de primeira ordem (...) Celeste vem sempre
dizer-me o nome de outras peças em que ela figura. Ela me disse uma vez que
Balzac havia composto uma bela ópera, que estava em reprise” (16). Apesar deste
sucesso, a pobre Celeste, algum tempo depois, desentendeu-se com seu diretor e
foi demitida! Em outra ocasião, o autor assiste a uma sessão de outro tipo,
“num belo templo circular, dedicado à Ciência”; lá, a convite do presidente,
ele subiu à tribuna e pronunciou um belo discurso “diante desta douta
assembléia de quinhentas ou seiscentas pessoas que se ocupavam da ciência; esta
era uma de suas reuniões periódicas” (17). Algum tempo depois, ele entra em
relações com o “espírito” do pintor Courbet, cura-o de uma “bebedeira póstuma”,
e o faz nomear “diretor de uma grande academia de pintura de grande reputação
na zona em que ele se encontrava” (18). Eis agora a Maçonaria dos “espíritos”,
que tem algumas analogias com a “Grande Loja Branca” dos teosofistas: “Os
“grandes irmãos” são seres que passaram por todas as etapas da vida espiritual
e da vida material. Eles formam uma sociedade com diversas classes, a qual se
acha estabelecida (para servir-me de uma palavra terrestre) nos confins do
mundo fluídico e do mundo etéreo, que é o mais alto, o mundo “perfeito”. Esta
sociedade, chamada de Grande Irmandade, é a ponta-de-lança do mundo etéreo; é o
governo administrativo das duas esferas, espiritual e material ou do mundo
fluídico e da terra. É esta sociedade, com a colaboração legislativa do mundo
etéreo propriamente dito, que governa os espíritos e os “mortais” através das
fases de sua existência” (19). Numa outra passagem, podemos ler o relato de uma
“iniciação maior” na “Grande Irmandade”, a de um defunto espírita belga chamado
Jobard (20); lembra razoavelmente as iniciações maçônicas, mas as “provas” aí
são mais sérias e não são puramente simbólicas. A cerimônia foi presidida pelo
próprio autor, que, embora vivo, ocupava um dos mais altos graus desta estranha
associação; num outro dia, vemo-lo “ocupar a chefia de uma tropa da Ordem Terceira,
composta por cerca de dez mil espíritos, masculinos e femininos”, para ir “a
uma colônia povoada por espíritos um pouco retrógrados”, e “purificar a
atmosfera deste lugar, aonde se achavam mais de um milhão de habitantes, por um
procedimento químico por nós conhecido, a fim de produzir uma reação salutar
nas idéias desta população”; parece que “este país formava um departamento da
França fluídica” (21), pois, como entre os teosofistas, cada região da terra
tem sua “contra-partida fluídica”. A “Grande Irmandade” está em luta com uma
outra organização, igualmente fluídica, que é, está claro, “uma Ordem clerical”
(22); de resto, o autor, no que lhe concerne pessoalmente, declara
expressamente que “o principal objetivo de sua missão é o de minar e restringir
a autoridade clerical no outro mundo e, por acréscimo, neste” (23). Mas basta
destas bobagens; achamos bom dar estes trechos, porque eles ressaltam, de certo
modo em estado grosseiro, uma mentalidade que é também, num grau mais atenuado,
a de muitos outros espíritas e “neo-espiritualistas”; não estamos bem
fundamentados, desde já, para denunciar estas coisas como um verdadeiro perigo
público?
Daremos agora, a título de curiosidade, esta descrição,
bem diferente das anteriores, que um “espírito” fez de sua vida no além: “No
mais das vezes, o homem morre sem ter consciência do que lhe aconteceu. Ele
volta à consciência após alguns dias, às vezes após alguns meses. O despertar
está longe de ser agradável. Ele se vê rodeado por pessoas que ele não conhece:
o rosto destes seres se parece mais com um crânio de esqueleto. O terror que
toma conte dele muitas vezes o faz perder a consciência uma segunda vez. Pouco
a pouco, ele se acostuma a estas visões. O corpo dos espíritos é material e
compõe-se de uma massa gasosa que tem aproximadamente o peso do ar; este corpo
é composto de uma cabeça e tórax; ele não tem braços, nem pernas, nem abdome.
Os espíritos movem-se numa velocidade que depende da sua vontade. Quando eles
se movem rapidamente, seus corpos alongam-se e se tornam cilíndricos; quando
eles se movem com o máximo de velocidade, seus corpos tomam a forma de uma
espiral com quatorze voltas com um diâmetro de trinta e cinco centímetros. A
espira pode ter um diâmetro médio de quatro centímetros. Nesta forma, eles chegam
a uma velocidade que iguala a do som (...) Nós nos encontramos normalmente nas
moradias dos homens, porque a chuva e o vento nos são desagradáveis.
Normalmente nós enxergamos mal; existe aí pouca luz para nós. A luz que
preferimos é a do acetileno; é a luz ideal. Em segundo lugar, os médiuns emitem
uma luz que nos permite enxergar até uma distância média de um metro ao seu
redor; esta luz atrai os espíritos. Os espíritos vêm pouco as roupas dos
homens; estas roupas parecem
Nuvens; eles vêem também alguns órgãos internos do corpo
humano; mas eles não vêem o cérebro devido ao crânio ósseo. Mas eles ouvem os
homens pensar, e às vezes estes pensamentos são ouvidos à distância embora
nenhuma palavra tenha sido pronunciada pela boca. No mundo dos espíritos reina
a lei do mais forte, é um estado de anarquia. Se as sessões não tem sucesso, é
porque um espírito malvado não deixa a mesa e se coloca sobre ela de uma sessão
para outra, de modo que os espíritos que desejam entrar em comunicação séria
com os membros do círculo não podem
aproximar-se da mesa (...) Em média, os espíritos vivem de cem a cento e
cinqüenta anos. A densidade do corpo aumenta até os cem anos; depois disto, a
densidade e a força diminuem, e enfim eles se dissolvem, como tudo se dissolve
na natureza (...) Nós estamos submetidos às leis da pressão do ar; nós somos
materiais; nós não temos interesses, nós nos aborrecemos. Tudo o que é material
está submetido às leis da matéria: a matéria se decompõe; nossa vida não dura
mais do que cento e cinqüenta anos ou pouco mais; então nós morremos para
sempre” (24). Este “espírito” materialista e que nega a imortalidade deve ser
visto pela maioria dos espíritas como razoavelmente heterodoxo e pouco
“esclarecido”; e os experimentadores que receberam estas estranhas
“comunicações” asseguram por outro lado que “os espíritos mais inteligentes
protestam positivamente contra a idéia de Deus” (25); nós temos fortes razões
para acreditar que eles próprios tinham fortes preferências pelo ateísmo e pelo
“monismo”. Seja como for, as pessoas que registraram a sério as divagações de
que demos este esboço, são daquelas que tem a pretensão de estudar os fenômenos
“cientificamente”; elas se cercam de aparelhos impressionantes, e imaginam
mesmo haverem criado uma nova ciência, a “psicologia física”; não existe aí o
bastante para afastar os homens sensatos, e não somos mesmo tentados a
desculpar aqueles que preferem negar tudo a
priori? No entanto, ao lado do artigo do qual tiramos as citações
precedentes, encontramos um outro no qual um psiquista, que aliás não passa de
um espírita mal disfarçado, declara tranqüilamente que “os céticos, os
contraditores e os que se obstinam no estudo dos fenômenos psíquicos devem ser
considerados como doentes”, que “o espírito científico preconizado nestas
espécies de exames pode provocar no examinador, a longo prazo, uma espécie de
mania, se podemos dizê-lo, (...) um delírio crônico, com paroxismos, um tipo de
loucura lúcida”, enfim que “a dúvida, ao se instalar num terreno predisposto,
pode evoluir até a loucura maníaca” (26). Evidentemente, as pessoas que são
equilibradas devem passar por loucas aos olhos daqueles que são mais ou menos
"détraqués"; isto é muito
natural, mas é pouco tranqüilizador pensar que, se o espiritismo continua a
ganhar terreno, chegará talvez o dia em que qualquer um que se permita
criticá-lo arriscar-se-á simplesmente a ser internado num hospício!
Uma questão à qual os espíritas dão grande importância,
mas sobre a qual eles não chegam a se entender, é a de saber se os “espíritos”
conservam seu sexo; isto os interessa sobretudo pelas conseqüências que pode
ter do ponto de vista da reencarnação: se o sexo é inerente ao “espírito”, ele
deve permanecer invariável por todas as existências. Evidentemente, para
aqueles que puderam assistir aos “casamentos de espíritos”, como Henry Lacroix,
a questão está resolvida afirmativamente, ou antes ela nem se coloca; mas nem
todos os espíritas gozam de faculdades assim tão excepcionais. Allan Kardec,
por sua vez, pronunciou-se claramente pela negativa: “Os espíritos não possuem
sexo como o entendeis, pois os sexos dependem da organização (ele quer sem
dúvida dizer do organismo). Existe entre eles amor e simpatia, mas fundado
sobre a similitude de sentimentos”. E ele acrescenta: “Os espíritos encarnam-se
como homens ou mulheres porque eles não possuem sexo; como eles devem progredir
em tudo, cada sexo, como cada posição social, lhes oferece provas e deveres
específicos e a ocasião de adquirir experiência. Aquele que fosse sempre homem só
saberia o que sabem os homens” (27). Mas seus discípulos não tem a mesma
segurança, sem dúvida porque receberam “comunicações” contraditórias; assim é
que, em 1913, um órgão espírita, o Fraterniste,
achou necessário colocar expressamente a questão, e o fez nestes termos: “Como
concebem vocês a vida no além? Em particular, os espíritos, ou mais exatamente,
os perispíritos conservam seu sexo ou tornam-se neutros ao penetrar no plano
astral? E, se perdemos o sexo, como explicar que ao encarnar-se de novo um sexo
seja claramente determinado? Sabemos que muitos ocultistas pretendem que o
perispírito seja o molde no qual se forma o novo corpo”. A última frase contém
um erro no que concerne aos ocultistas propriamente ditos, pois estes dizem ao
contrário que o “corpo astral”, para eles o equivalente do “perispírito”,
dissolve-se no intervalo entre duas encarnações; a opinião que ela exprime é
mais a de alguns espíritas; mas existe tanta confusão nisto tudo que é
perfeitamente escusável não reconhecer-se. Léon Denis, após haver “pedido o
conselho de seus guias espirituais”, respondeu que “o sexo subsiste, mas
permanece neutro e sem utilidade”, e que, no momento da reencarnação, o
perispírito liga-se novamente à matéria e retoma o sexo que lhe era habitual”,
a menos entretanto “que um espírito deseje mudar de sexo, o que lhe é
permitido”. Gabriel Delanne mostrou-se, sobre este ponto de vista particular,
mais fiel ao ensinamento de Allan Kardec, pois ele declarou que “os espíritos
são assexuados, simplesmente porque eles não tem necessidade de se reproduzirem
no além”, e que “alguns fatos de reencarnações parecem provar que os sexos
alternam-se para o mesmo espírito conforme o objetivo a que ele se propõe aqui
embaixo; isto é, ao menos”; o que parece resultar como ensinamento das
comunicações recebidas por toda parte durante meio século” (28). Dentre todas
as respostas que foram publicadas, haviam também as de muitos ocultistas,
notadamente Papus, que, invocando a autoridade de Swedwnborg, escreveu o
seguinte: “Existe sexos para os seres espirituais, mas estes sexos não tem
nenhuma relação com seus análogos sobre a terra. Existem no plano invisível
seres sentimentalmente femininos e seres mentalmente masculinos. Ao vir para a
terra, cada um destes seres poderá tomar um outro sexo material do que aquele
sexo astral que ele possuía”. Por outro lado, um ocultista dissidente, Ernest
Bosc, confessava francamente conceber a vida no além “absolutamente como neste
mundo, mas com a diferença que, do outro lado, não tendo mais que nos ocuparmos
inteiramente com nossos interesses materiais, resta mais tempo para
trabalharmos mental e espiritualmente por nossa evolução”. Este “simplismo” não
o impediu de protestar contra uma barbaridade que seguia o questionário do Fraterniste, que era a seguinte:
“Compreender-se-á toda a importância desta questão quando dissermos que, para
muitos espiritistas (sic), os
espíritos são assexuados, enquanto que os ocultistas acreditam nos íncubos e
nos súcubos, atribuindo assim um sexo a nossos amigos do Espaço”. Ninguém
jamais havia dito que os íncubos e os súcubos fossem humanos “desencarnados”;
alguns ocultistas parecem vê-los como “elementais”, mas, antes deles, todos os
que partilhavam a crença na sua existência eram unânimes em considerá-los como
demônios e nada mais; se é isto que os espíritas chamam de “seus amigos do
Espaço”, é bastante edificante!
Tivemos que nos antecipar um pouco sobre a questão da
reencarnação; assinalaremos ainda, para terminarmos este capítulo, um outro
ponto que dá lugar a tantas opiniões conflitantes quanto o precedente: as
reencarnações se dão sempre sobre a terra, ou podem elas acontecer também sobre
outros planetas? Allan Kardec ensina que “a alma pode reviver muitas vezes
sobre um mesmo globo, se ela não está avançada o bastante para passar para um
mundo superior” (29); para ele, pode haver uma pluralidade de existências
terrestres, mas existem também existências sobre outros planetas, e é o grau de
evolução dos “espíritos” que determina
sua passagem de um a outro. Eis os esclarecimentos que ele fornece no que
concerne aos planetas do sistema solar: “Segundo os espíritos, de todos os
globos que compõem nosso sistema planetário, a terra é um dos quais aonde os
habitantes são menos avançados física e moralmente; Marte seria ainda inferior
e Júpiter muito superior em todos os aspectos. O sol não seria um mundo
habitado por seres corporais, mas um lugar de encontro dos espíritos
superiores, que daí irradiariam pelo pensamento para os outros mundos, que eles
dirigem pelo intermédio de espíritos menos elevados aos quais eles são
transmitidos através do fluído universal. Como constituição física, o sol seria
um gerador de eletricidade. Todos os sóis parecem estar em posição semelhante.
O volume e a distância do sol não tem nenhuma relação necessária com o grau de
avanço dos mundos, pois pareceria que Vênus seria mais avançado do que a terra,
e Saturno menos do que Júpiter. Muitos espíritos que animaram pessoas
conhecidas na terra disseram estar reencarnados sobre Júpiter, um dos mundos
mais próximos da perfeição, e pudemos nos espantar de ver, neste globo tão
avançado, homens cujas opiniões eram divergentes aqui embaixo. Isto não tem
nada de surpreendente, se considerarmos que certos espíritos podem ter sido
enviados à terra para aí cumprir missões que, a nossos olhos, não os colocavam
em posições de destaque; ademais, entre sua existência terrestre e a de
Júpiter, pode ter havido intermediárias durante as quais ele pode
aperfeiçoar-se; enfim, neste mundo como no nosso, existem diferentes graus de
desenvolvimento, e entre estes graus pode haver a distância que entre nós
separa o selvagem do homem civilizado. Assim, pelo fato de habitar em Júpiter,
não se segue que se esteja no nível dos seres mais avançados, assim como não se
está no nível de um sábio do Instituto só porque se mora em Paris” (30). Já
vimos a história dos “espíritos” que habitam Júpiter, graças aos desenhos de
Victorien Sardou; poderíamos nos perguntar como é possível que estes
“espíritos”, ao mesmo tempo em que vivem sobre outros planetas, podem no
entanto enviar “mensagens” para a terra; teriam os espíritas resolvido o
problema das comunicações interplanetárias? Sua opinião parece ser a de que
estas comunicações são realmente possíveis por seus procedimentos, mas apenas
quando se trata de “espíritos superiores”, os quais, “mesmo habitando certos
mundos, não estão confinados como os homens na terra, e podem melhor do que
todos estar em toda parte” (31). Alguns “clarividentes” ocultistas e
teosofistas, como Leadbeater, pretendem possuir o poder de se transportar para
outros planetas para aí fazer “investigações”; sem dúvida eles devem ser
classificados dentre estes “espíritos superiores” de que falam os espíritas;
mas estes, mesmo se pudessem para aí se transportar em pessoa, não têm
necessidade de se dar a este trabalho, pois os “espíritos”, encarnados ou não,
vêm satisfazer sua curiosidade e lhes contar o que se passa nesses mundos. A
bem dizer, o que contam os “espíritos” não é tão interessante; no livro de
Dunglas Home que mencionamos a propósito de Allan Kardec, existe um capítulo
denominado Absurdos, de que
destacamos esta passagem: “Estes poucos dados científicos que fornecemos à
apreciação nos foram fornecidos sob a forma de brochuras. Trata-se de um resumo
precioso que fará as delícias do mundo culto. Vemos aí, por exemplo, que o
vidro desempenha um papel importante no planeta Júpiter; é um material
indispensável, o complemento indispensável a toda a existência nestas paragens.
Os mortos são colocados em caixões de vidro, e estes colocados como
ornamentação nas casas. As habitações são também em vidro, de modo que é melhor
não atirar pedras neste planeta. Existem fileiras destes palácios que se chamam
Séména. Aí pratica-se uma espécie de
cerimônia mística, e nesta ocasião, ou seja uma vez a cada sete anos, o santo
sacramento é levado num carro de vidro pelas cidades de vidro. Os habitantes
são de talhe gigantesco, como diz Scarron; eles tem de sete a oito pés de
altura. Eles tem como animal doméstico uma raça especial de grandes papagaios.
Invariavelmente encontramos um, quando se entra numa casa, atrás da porta,
tricotando gorros de dormir (...) A crermos em outro médium, não menos
informado, é o arroz o que melhor se adapta ao solo do planeta Mercúrio, se não
me engano. Mas lá, ele não cresce sobre a terra na forma de planta; graças às
influências climáticas e a uma tecnologia de manipulação, ele se lança aos ares
a uma altura que ultrapassa a copa dos mais altos carvalhos. O cidadão de
Mercúrio que desejar gozar à perfeição o otium
cum dignitate deve, desde a juventude, aplicar tudo o que puder num
arrozal; ele escolherá, dentre os mais altos de seu domínio, um caule para
subir até o alto; então, a exemplo do rato dentro do queijo, ele se introduzirá
no interior da enorme espiga para aí devorar o fruto delicioso. Depois de comer
tudo, ele recomeçará o mesmo trabalho em outro caule” (32). É pena que Home não
deu referências precisas, mas não temos nenhuma razão para duvidar da
autenticidade do que ele reporta, e que é ultrapassado em muito pelas
extravagâncias de Henry Lacroix; estas asneiras, que estão bem dentro do tom
habitual das “comunicações” espíritas, denotam sobretudo uma grande pobreza de
imaginação. Isto está longe de valer as fantasias dos escritores que imaginam
viagens a outros planetas, e que, ao menos, não pretendem que suas invenções
sejam a expressão da realidade; existem aliás casos em que estas obras
exerceram uma certa influência; soubemos de uma “vidente” espírita que forneceu
uma descrição dos habitantes de Netuno que era manifestamente inspirada nos
romances de H. G. Wells. Cabe frisar que, mesmo entre os escritores melhor
dotados sob o aspecto da imaginação, as fantasias deste gênero permanecem bem
terrestres no fundo; eles constituem os habitantes dos outros planetas com
elementos emprestados aos da terra e mais ou menos modificados, seja quanto às
proporções, seja quanto ao arranjo; nem poderia ser diferente, e está aí um dos
melhores exemplos que podemos dar para mostrar que a imaginação não passa de
uma faculdade de ordem sensível. Esta observação deve fazer compreender porque
aproximamos aqui estas concepções daquelas que concernem à “sobrevida”
propriamente dita: é porque, nos dois casos, a fonte real é exatamente a mesma;
e o resultado é o que se pode obter quando se trata com a imaginação
“subconsciente” de pessoas bastante comuns e até um pouco abaixo da média. Este
tema, como dissemos, liga-se de resto diretamente à questão da comunicação como
os mortos: são estas representações inteiramente terrestres que permitem
acreditar numa tal comunicação; e somos assim conduzidos a abordar enfim o
exame da hipótese fundamental do espiritismo, e que será grandemente facilitado
e simplificado por tudo o que precede.
NOTAS
1. Le Livre des Esprits, pgs. 72-73.
2. Ibid.,
pg. 145.
3. Ibid.,
pgs. 109-110.
4. Ibid.,
pg. 111.
5. Esta frase está sublinhada
no texto; invertendo-se a relação que ela indica, teremos a exata expressão da
verdade.
6. Le Livre des Esprits., pgs. 135-137
7. Ibid.,
pgs. 116-117
8. Après la Mort, pgs. 270-290.
9. La Mort et l’au delà, pg. 85 da tradução francesa.
10. O autor teosofista aceita
então aqui até o próprio termo empregado pelos “espiritualistas”.
11. L’Occultisme dans la Nature, pgs. 19-20 e 44.
12. Traité mèthodique de Science occulte, pg. 341.
13. Le Lotus, março de 1889, pg. 736.
14. Mes expériences avec les esprits, pg. 174.
15. Id.,
pg. 22-24.
16. Ibid.,
pgs. 101-103. – Isto não impede os “espíritos”, fora das representações que
lhes são especialmente destinadas, de assistir aquelas que acontecem no nosso
mundo (ibid., pgs. 155-156).
17. Ibid
., pgs. 214-215.
18. Ibid
., pgs. 239.
19. Ibid
., pgs. 81.
20. Ibid
., pgs. 180-183.
21. Ibid
., pgs. 152-154.
22. Ibid
., pgs. 170-171.
23. Ibid
., pgs. 29.
24. Comunicação recebida por
Zaalberg van Zelst e Matla, de la Haye: Le
Monde Psychique, março de 1912.
25. Le Secret de la Mort, por Matla e Zaalberg van Zelst: id., abril de 1912.
26. Id.,
março de 1912.
27. Le Livre des Esprits, pg. 88.
28. Le Fraterniste, 13 de março de 1914.
29. Le Livre des Esprits, pgs. 76-77.
30. Le Livre des Esprits, pgs. 81-82.
31. Le Livre des Esprits, pg. 81.
32. Les Lumières et les Ombres du
Spiritualisme, pgs. 179-181.
V
AS COMUNICAÇÕES
COM OS MORTOS
Ao discutir a comunicação com os mortos, ou a
reencarnação, ou qualquer outro ponto da doutrina espírita, existe um tipo de argumento
que não levaremos em nenhuma consideração: trata-se dos argumentos de ordem
sentimental, que vemos como absolutamente nulos, tanto num sentido quanto no
outro. Sabemos que os espíritas recorrem freqüentemente a estas razões que não
o são, que eles fazem grande caso delas, e que eles estão sinceramente
persuadidos que elas podem realmente justificar suas crenças; isto tudo está
bem de acordo com a sua mentalidade. Os espíritas, certamente, estão longe de
ter o monopólio do sentimentalismo, que predomina geralmente entre os
Ocidentais modernos; mas seu sentimentalismo reveste-se de formas
particularmente irritantes para qualquer um que seja isento de seus
pré-julgamentos: não conhecemos nada de mais tolamente pueril do que estas
invocações endereçadas aos “caros espíritos”, estes cantos com os quais são
abertas a maior parte das sessões, este absurdo entusiasmo em presença das
“comunicações” mais banais e das manifestações mais ridículas. Não há nada para
se admirar, nestas condições, que os espíritas insistam a todo propósito sobre
o que existe de “consolador” nas suas teorias; que eles as achem tal, é
problema deles, e não temos nada a ver com isto; apenas constatamos que existem
outros, ao menos tão numerosos quanto, que não compartilham esta apreciação e
que pensam exatamente o contrário, o que, de resto, tampouco prova coisa
alguma. Em geral, quando dois adversários se servem dos mesmos argumentos, é
muito provável que estes argumentos não valham nada; e, no caso presente,
ficamos sempre admirados de ver que alguns não encontram nada de melhor a dizer
contra o espiritismo, que ele é pouco “consolador” por representar os mortos a
falar inépcias, balançar mesas, fazer micagens mais ou menos grotescas; claro
que seríamos antes desta opinião do que daquela dos espíritas, que acham tudo
isto muito “consolador”, mas pensamos que não é a estas considerações que se
deve recorrer quando é preciso pronunciar-se sobre a verdade ou a falsidade de
uma teoria. Em primeiro lugar, nada é mais relativo: cada qual acha
“consolador” o que quiser, aquilo que se adapte às suas próprias disposições
sentimentais, e não há nada a se discutir aí, assim como em tudo o que é
questão de gosto; o que é absurdo, é querer persuadir aos outros de que esta
apreciação é melhor do que a apreciação contrária. Depois, nem todos tem igual
necessidade de “consolações”, e, por conseguinte, não estão dispostos a dar a
mesma importância a essas considerações; a nossos olhos, a importância é bem
medíocre, porque só o que nos importa é a verdade: não é assim que os
sentimentais vêem as coisas, mas, repetimos, sua maneira de ver só vale para
eles, enquanto que a verdade deve impor-se a todos, por pouco que se seja capaz
de compreendê-la. Enfim, a verdade não tem que ser “consoladora”; se existem aqueles
que, conhecendo-a, vêem nela este caráter, tanto melhor para eles, mas isto só
provém do modo particular com que sua sentimentalidade foi afetada; à parte
estes, pode haver outros sobre os quais o efeito produzido seja muito diferente
e mesmo oposto, e é mesmo certo que sempre haverá, pois nada é mais variável e
diverso do que o sentimento; mas, em qualquer caso, a verdade não tem nada a
ver com isso.
Isto dito, lembraremos que, quando se trata da comunicação
com os mortos, esta expressão implica que aquilo com que se está comunicando é
o ser real do morto; é assim que o entendem os espíritas, e é assim que iremos
considerar exclusivamente. Não poderia tratar-se da intervenção de elementos
quaisquer provenientes dos mortos, elementos mais ou menos secundários e
dissociados; já dissemos que esta intervenção é perfeitamente possível, mas os
espíritas não querem nem ouvir falar disto; não será disto portanto que iremos
tratar aqui, e faremos uma observação semelhante no que concerne à
reencarnação. Lembraremos igualmente a seguir que, para os espíritas, trata-se
essencialmente de comunicar-se com os mortos por meios materiais; ao menos, foi
nestes termos que definimos sua pretensão no início, porque bastava para nos
fazermos compreender; mas existe aí um equívoco possível, porque é possível
haverem concepções da matéria extremamente diferentes, e que aquilo que não é
material para uns o é para outros, sem contar aqueles para quem a própria idéia
d matéria é estranha e parece desprovida de sentido; diremos então, para maior
clareza e precisão, que os espíritas encaram uma comunicação estabelecida por
meios de ordem sensível. É isto, de fato, que constitui a hipótese fundamental
do espiritismo; é precisamente aquilo de que afirmamos a impossibilidade
absoluta, e daremos agora as razões. Mas é preciso que se compreenda bem nossa
posição a respeito: um filósofo, mesmo recusando-se a admitir a verdade ou
mesmo a possibilidade da teoria espírita, pode entretanto vê-la como
representando uma hipótese como qualquer outra, e mesmo achando-a pouco
plausível, pode considerar a comunicação com os mortos e a reencarnação como
“problemas”, que talvez não tenham meios de serem resolvidos; para nós, ao
contrário, não há nenhum “problema”, porque trata-se apenas de impossibilidades
puras e simples. Não pretendemos que a demonstração seja facilmente
compreensível por todos, porque ela apela para dados de ordem metafísica, de
resto relativamente elementares; também não pretendemos fazer aqui uma
exposição absolutamente completa, porque tudo o que ela pressupõe não poderia
ser desenvolvido nos limites deste estudo, e existem pontos que retomaremos em
alguma outra hora. Entretanto, esta demonstração, uma vez compreendida, traz a
certeza absoluta, como tudo o que tem um caráter verdadeiramente metafísico; se
então alguns não a acharem plenamente satisfatória, a falta será da expressão
imperfeita que possamos ter-lhe dado, ou da compreensão igualmente imperfeita
que poderão também ter tido eles.
Para que dois seres possam comunicar entre si por meios
sensíveis, é preciso em primeiro lugar que ambos possuam sentidos, e, além
disto, é preciso que seus sentidos sejam os mesmos, ao menos parcialmente; se
um deles não puder ter sensações, ou se eles não tiverem sensações em comum,
nenhuma comunicação desta ordem será possível. Isto pode parecer evidente, mas
são as verdades deste tipo as que mais facilmente se esquecem, aquelas a que
não se dá atenção; e no entanto elas tem às vezes um alcance insuspeitado. Das
duas condições que enunciamos, é a primeira que estabelece de modo absoluto a
impossibilidade da comunicação com os mortos por meio das práticas espíritas;
quanto à segunda, ela compromete gravemente a possibilidade das comunicações
interplanetárias. Este último ponto liga-se imediatamente ao que dissemos no
fim do capítulo anterior; vamos examiná-lo em primeiro lugar, pois as
considerações que ele possibilitará facilitarão o entendimento da outra
questão, que nos interessa principalmente aqui.
Se admitirmos a teoria que explica todas as sensações por
movimentos vibratórios mais ou menos rápidos, e se considerarmos o quadro onde
estão indicados os números de vibrações por segundo que correspondem a cada
tipo de sensação, ficamos admirados pelo fato de que os intervalos que
representam aquilo que os sentidos nos transmitem são muito pequenos em relação
ao conjunto; eles são separados por outros intervalos em que não há nada
perceptível para nós, e, além do mais, não é possível assinalar um limite
determinado à freqüência crescente ou decrescente das vibrações (1), de modo
que podemos considerar o quadro como prolongando-se em uma como em outra
direção por indefinidas possibilidades de sensações, para as quais não
corresponde em nós nenhuma sensação efetiva. Mas dizer que existem possibilidades
de sensações é dizer que estas sensações podem existir para seres diversos de
nós, que por outro lado podem não ter nenhuma das que nós temos; quando dizemos
nós, aqui, não queremos dizer apenas os homens, mas todos os seres terrestres
em geral, pois parece que os sentidos não variam muito neles, e, mesmo que sua
extensão seja maior ou menor, eles permanecem sempre fundamentalmente os
mesmos. A natureza destes sentidos parece portanto ser determinada pelo meio
terrestre; ela não é uma propriedade inerente a tal ou qual espécie, mas ela
deriva do fato de que os seres considerados vivam na terra e não em outro
lugar; em qualquer outro planeta, analogamente, os sentidos devem também ser
determinados pelo meio, mas eles podem então não coincidir em nada com aqueles
que possuem os seres terrestres, e é mesmo muito provável que seja assim. De
fato, toda possibilidade de sensação deve poder ser realizada em algum lugar no
mundo corporal, pois tudo o que é sensação é essencialmente uma faculdade
corporal; como estas possibilidades são indefinidas, existem poucas chances de
que as mesmas sejam realizadas duas vezes, ou seja de que seres vivendo em
planetas diferentes possuam sentidos que coincidam no todo ou em parte. Se
supomos no entanto que esta coincidência possa realizar-se apesar de tudo,
existem ainda poucas chances para que ela se realize precisamente em condições
de proximidade temporal e espacial tais que uma comunicação possa se
estabelecer; queremos dizer que estas chances, que são já infinitesimais para
todo o conjunto do mundo corpóreo, ficam ainda indefinidamente reduzidas se
encaramos apenas os astros que existem simultaneamente em um dado momento, e
indefinidamente mais ainda, se, dentre estes astros, considerarmos apenas
aqueles que são muito próximos uns dos outros, como os diferentes planetas que
pertencem a um mesmo sistema; isto é assim, porque o tempo e o espaço
representam eles próprios possibilidades indefinidas. Não queremos dizer que
uma comunicação interplanetária seja uma impossibilidade absoluta; dizemos
apenas que as chances de possibilidade só podem ser expressas por uma
quantidade infinitesimal, e que, se colocarmos a questão para um caso
determinado, como o da terra e um outro planeta do sistema solar, corremos
pouco risco de nos enganarmos se as virmos como praticamente nulas; em suma,
isto não passa de uma aplicação da teoria das probabilidades. O que importa
frisar, é que o obstáculo a uma comunicação interplanetária, não é uma
dificuldade do tipo que experimentamos por exemplo para fazer comunicar entre
si dois homens que ignorem a língua um do outro; esta dificuldade não seria
insuperável, porque os dois sempre poderiam encontrar, dentre as faculdades que
lhes são comuns, um meio de remediar a situação numa certa medida; mas, aonde
faculdades em comum não existem, ao menos dentro da ordem em que deve operar-se
a comunicação, ou seja na ordem sensível, o obstáculo pode não ser suprimido
por nenhum meio, porque ele deriva da diferença de natureza entre os seres
considerados. Se estes seres forem tais, que nada do que provoca sensações em
nós o faz neles, eles estarão para nós como se eles não existissem, e
reciprocamente; eles poderiam mesmo estar ao nosso lado que não teríamos
avançado em nada, e talvez nem nos apercebêssemos de sua presença, ou, em todo
caso, provavelmente sequer os reconheceríamos como seres vivos. Isto, digamo-lo
de passagem, permite supor que não há nada de impossível que existam no meio
terrestre seres inteiramente diferentes de todos os que conhecemos, e com os quais
não temos nenhum meio de entrar em contato; mas não insistiremos mais nisto,
porque, caso estes seres existam, eles não terão mesmo nada em comum com a
nossa humanidade. Seja como for, o que dissemos mostra quanta ingenuidade há
nas ilusões que certos sábios fazem a respeito das comunicações
interplanetárias; e estas ilusões procedem do erro que assinalamos
precedentemente, e que consiste em transportar por toda a parte representações
puramente terrestres. Se se disser que estas representações são as únicas
possíveis para nós, concordamos, mas é melhor não se fazer nenhuma
representação do que fazer uma falsa; é perfeitamente verdadeiro que aquilo de
que se trata não seja imaginável, mas não se deve concluir que seja
inconcebível, pois ao contrário o é facilmente. Um dos grandes erros dos
filósofos modernos é a confusão entre o concebível e o imaginável; este erro é
particularmente visível em Kant, mas não é exclusivo dele, e é mesmo um traço
geral da mentalidade ocidental, ao menos a partir do momento em que ela se
voltou exclusivamente para o lado das coisas sensíveis; para qualquer um que
faça este tipo de confusão, não há evidentemente metafísica possível.
O mundo corporal, por comportar possibilidades
indefinidas, deve comportar seres cuja diversidade seja igualmente indefinida;
e no entanto, este mundo inteiro não representa mais do que um único estado de
existência, definido por um certo número de condições determinadas, que são
comuns a tudo o que se acha compreendido aí, ainda que possam ser expressas de
maneiras extremamente variadas. Se passamos de um estado de existência a outro,
as diferenças serão incomparavelmente maiores, porque não haverão mais
condições em comum, sendo elas substituídas por outras que, de modo análogo,
definirão este outro estado. Não haverá portanto, desta vez, nenhum ponto de
comparação com a ordem corporal e sensível vista na sua integralidade, e não
mais apenas em tal ou qual de suas modalidades particulares, como a que
constitui por exemplo a existência terrestre. Condições tais como o espaço e o
tempo não são de modo algum aplicáveis a outros estados, porque elas são
precisamente daquelas que definem o estado corporal; mesmo que exista em outra
parte alguma coisa analogamente correspondente, esta “alguma coisa” não poderá
dar lugar para nós a nenhuma representação; a imaginação, faculdade de ordem
sensível, não pode atingir realidades de outra ordem, assim como não o pode a
própria sensação, que fornece todos os elementos para as suas construções.
Portanto, não será na ordem sensível que poderemos encontrar um meio de entrar
em relação com o que pertence a uma outra ordem; existe aí uma heterogeneidade
radical, o que não implica uma irredutibilidade principial: se puder haver
comunicação entre dois estados diferentes, só poderá ser por intermédio de um
princípio que seja comum e superior a
estes dois estados, e não diretamente de um a outro; mas é evidente que esta
possibilidade não concerne em nenhum grau ao espiritismo. Para não
considerarmos mais do que dois estados em si mesmos, diremos o seguinte: a
possibilidade de comunicação aparece como extremamente improvável, ainda que se
trate de seres pertencentes a modalidades diversas de um mesmo estado; agora
que se trata de seres pertencentes a estados diferentes, a comunicação entre
eles é uma impossibilidade absoluta. Precisaremos que se trata, para o momento
pelo menos, de uma comunicação que se supõe seja estabelecida pelos meios que
cada um dos seres encontra dentre as condições de seu próprio estado, ou seja
pelas faculdades que produziram neles estas mesmas condições, o que é o caso
das faculdades sensíveis na ordem corporal; e é de fato às faculdades sensíveis
que os espíritas recorrem. Trata-se de uma impossibilidade absoluta, porque as
faculdades em questão são rigorosamente próprias aos estados considerados, como
são as condições das quais elas derivam; se estas condições fossem comuns aos
dois estados, estes se confundiriam e seriam um só, porque é por suas condições
que se define um estado de existência. (2). O absurdo do espiritismo fica assim
plenamente demonstrado, e poderíamos ficar por aqui; entretanto, como o próprio
rigor de nossa demonstração pode torná-la de difícil assimilação para aqueles
pouco habituados a ver as coisas desse jeito, acrescentaremos algumas
observações complementares, que apresentarão a questão sob um aspecto um pouco
diverso e mais particularizado, tornando o absurdo mais visível ainda.
Para que um ser possa manifestar-se no mundo corporal, é
preciso que ele possua faculdades apropriadas, ou seja faculdades de sensação e
de ação, e que ele possua os órgãos correspondentes a estas faculdades; sem
tais órgãos, com efeito, estas faculdades poderiam existir, mas apenas em
estado latente e virtual, elas seriam puras potencialidades que não se
atualizariam jamais, e elas não serviriam para nada. Então, mesmo se supormos
que o ser que deixou o estado corporal para passar a um outro estado conserva
em si, de algum modo, as faculdades do estado corporal, só pode ser a título de
potencialidades, e assim elas não terão mais nenhuma utilidade para a
comunicação com os seres corporais. Um ser pode aliás portar em si
potencialidades correspondentes a todos os estados de que ele é susceptível, e
mesmo isto deve acontecer de alguma maneira, sem o que estes estados não seriam
possibilidades para ele; mas falamos aqui do ser em sua realidade total, e não
apenas desta parte do ser que só encerra as possibilidades de um único estado,
como a individualidade humana por exemplo. Isto está bem distante do que estamos
considerando agora, e, se lhe fizemos alusão, é unicamente para não
negligenciar nada que possa dar lugar a
objeção; por outro lado, para evitar qualquer equívoco, devemos
acrescentar que o que representa a individualidade humana não é precisamente o
estado corporal apenas, mas algo que comporta diversos prolongamentos, os
quais, juntamente com o estado corporal propriamente dito, constituem ainda um
único estado ou grau da existência universal. Aqui não iremos nos preocupar com
esta última complicação, porque, se é verdade que o estado corporal não é um
estado absolutamente completo, ele é no entanto o único em causa em toda
manifestação sensível; no fundo, sensível e corporal identificam-se
completamente. Para voltarmos ao nosso ponto de partida, podemos dizer que uma
comunicação por meios sensíveis só é possível entre seres que possuem um corpo;
isto equivale em suma a dizer que um ser, para manifestar-se corporalmente,
deve ser ele próprio corporal, e, colocada assim, a coisa é bastante evidente. Os
próprios espíritas não podem ir abertamente contra esta evidência; é por isso
que, sem se dar conta das razões necessárias, eles supõem que seus “espíritos”
conservem todas as faculdades de sensação dos seres terrestres, e eles lhe
atribuem um outro organismo, uma espécie de corpo que não o é, porque ele tem
propriedades incompatíveis com a própria noção de corpo, além de não ter todas
as propriedades que são essencialmente inerentes a esta noção; ele apenas
guardaria algumas delas, como estar submetido ao tempo e ao espaço, mas isto
está longe de ser suficiente. Aqui não cabe meio-termo: ou um ser possui um
corpo, ou não; se ele está morto no sentido normal do termo, aquilo que os
espíritas chamam “desencarnado”, isto significa que ele deixou seu corpo; a
partir daí, ele já não pertence ao mundo corporal, donde se segue que toda
manifestação sensível lhe foi tornada impossível; quase pedimos desculpas por
insistir em coisas que no fundo são tão simples, mas sabemos que é preciso.
Lembraremos ainda que esta argumentação não pressupõe nada a respeito do estado
póstumo do ser humano: seja como for que se conceba este estado, todos estão de
acordo que ele não é corporal, a menos que se aceite as grosseiras
representações da “sobrevida” que descrevemos no capítulo anterior, com todos
os elementos contraditórios que elas comportam; esta última opinião não é
daquelas sobre as quais se possa insistir seriamente, e qualquer outra opinião
deve trazer necessariamente a negação da hipótese espírita. Esta observação é muito
importante, porque existem efetivamente dois casos a considerar: ou bem o ser,
após a morte e em decorrência desta mudança mesma, passou para um estado
inteiramente diferente e definido por condições completamente diversas daquelas
de seu estado precedente, e então a refutação que expusemos em primeiro lugar
aplica-se imediatamente e em nenhuma restrição; ou bem ele permanece ainda
dentro de alguma modalidade deste mesmo estado, mas diferente da modalidade corporal, e caracterizada pela
desaparição de uma ou mais das condições cuja reunião era necessária para
constituir a corporeidade: a condição que necessariamente desapareceu (o que
não quer dizer que outras não tenham desaparecido também), é a presença da
matéria, ou, de modo mais preciso e mais exato, da “matéria quantificada” (3).
Podemos dizer que estes dois casos correspondem ambos a possibilidades: no
primeiro, a individualidade humana cede lugar a um outro estado, individual ou
não, mas que não pode de modo algum ser chamado de humano; no segundo, ao
contrário, podemos dizer que a individualidade humana subsiste através de
alguns dos prolongamentos a que nos referimos antes, mas esta individualidade é
agora incorpórea, portanto incapaz de manifestação sensível, o que basta para
que ela não possa de nenhum modo intervir nos fenômenos do espiritismo. Não é
preciso dizer que é ao segundo caso que corresponde a concepção de imortalidade
entendida no sentido religioso e ocidental; de fato, é realmente da
individualidade humana que se trata então, e aliás o fato de que para aí seja
transportada a idéia de vida, por modificada que a suponhamos, implica que este
estado conserva certas condições do estado precedente, pois a própria vida, em
toda a extensão de que é susceptível, não passa de uma destas condições e nada
além. Haveria ainda um terceiro caso a considerar: é o da imortalidade
entendida no sentido metafísico e oriental, ou seja o caso em que o ser passa,
de modo imediato ou progressivo (pois pouco importa, perante o objetivo final,
que ele tenha passado por um ou mais estados intermediários), ao estado
incondicionado, superior a todos os estados particulares de que tratamos até
aqui, e no qual todos estes estados tem seu principio; mas esta possibilidade é
de ordem demasiadamente transcendente para que nos detenhamos nela para o
momento, e está claro que o espiritismo, com seu parti-pris “fenomenista”, não tem nada a ver com as coisas desta
ordem; bastará dizer que este estado está além, não apenas da manifestação
sensível, mas de qualquer manifestação em qualquer modo que seja.
Naturalmente só consideramos, em tudo o que precede, a
comunicação com os mortos tal como a concebem os espíritas; e poderíamos nos
perguntar agora, depois d estabelecida esta impossibilidade, se não haverá, ao
contrário, possibilidade de comunicação de um outro gênero, que se traduza por
uma espécie de inspiração ou de intuição especial, na ausência de qualquer
fenômeno sensível; sem dúvida, isto pode não interessar aos espíritas, mas
poderá interessar a outros. É difícil tratar completamente destas questões,
porque, se existe aí uma possibilidade, os meios de expressão são insuficientes
para explicá-la; de resto, para que seja verdadeiramente uma possibilidade, ela
pressupõe realizadas condições de tal forma excepcionais que é quase inútil
falar dela. Diremos no entanto que, de modo geral, para poder se colocar em
relação com um ser que está em outro estado, é preciso haver desenvolvido em si
mesmo as possibilidades deste estado, de sorte que, mesmo que aquele que aí
chegue seja um homem vivendo atualmente sobre a terra, não será entretanto como
individualidade humana terrestre que ele poderá aí chegar, mas apenas na medida
em que ele for outra coisa ao mesmo tempo. O caso mais simples, relativamente,
é aquele em que o ser com o qual se trata de comunicar está em um dos
prolongamentos do estado individual humano; basta então que a pessoa viva
estenda sua própria individualidade em uma direção correspondente, para além da
modalidade corporal a que ela está normalmente ligada em ato, senão em potência
(pois as possibilidades da individualidade integral são evidentemente as mesmas
em todos, mas podem permanecer puramente virtuais durante a existência
terrestre); este caso pode realizar-se em certos “estados místicos”, e isto pode
acontecer mesmo sem que a vontade daquele que os realiza intervenha ativamente.
Se considerarmos agora o caso em que se trata de comunicar com um ser que
passou a um estado inteiramente diferente do estado humano, podemos dizer que
isto é praticamente uma impossibilidade, pois a coisa só seria possível se a
pessoa viva atingisse um estado superior, elevado o bastante para representar
um princípio comum aos dois outros, permitindo uni-los por implicar
“eminentemente” todas as suas possibilidades particulares; mas então a questão
perde o interesse, pois, chegando a um tal estado, ele não terá mais nenhuma
necessidade de voltar a um estado inferior que não lhe diz respeito mais
diretamente; enfim, de todo modo, trata-se aí de algo muito diferente da
individualidade humana (4). Quanto à comunicação com um ser que houvesse
atingido a imortalidade absoluta, ela suporia que a pessoa viva possuísse ela
mesma o estado correspondente, ou seja que ele tenha atual e plenamente
realizado sua própria personalidade transcendente; de resto, não podemos falar
deste estado como análogo a um estado particular e condicionado; aí já não se
trataria mais de qualquer coisa parecida com individualidades, e a própria
palavra comunicação perderia seu significado, precisamente porque toda
comparação com o estado humano não seria mais aplicável. Estas explicações
podem parecer um pouco obscuras ainda, mas seria preciso, para esclarecê-las
agora, muitos desenvolvimentos completamente alheios ao nosso objeto (5); estes
desenvolvimentos poderão encontrar o seu lugar em outro estudo. De resto, a
questão está longe de ter a importância que alguns poderiam ser tentados a lhe
atribuir, porque a verdadeira inspiração é algo bem diferente de tudo isto na
realidade: ela não tem sua fonte numa comunicação com outros seres, quaisquer
que sejam, mas numa comunicação com os estados superiores de seu próprio ser, o
que é totalmente diferente. Assim poderíamos repetir, quanto a essas coisas, o
que dissemos a propósito da magia, embora estejamos agora numa ordem bem mais
elevada: aqueles que sabem verdadeiramente do que se trata e que tem disto um
conhecimento profundo se desinteressam completamente das aplicações; quanto aos
“empíricos” (cuja ação se acha aliás restrita aqui, por força das
circunstâncias, ao único caso em que intervém uma extensão da individualidade
humana), não é evidentemente possível impedi-los de aplicar a torto e a direito
alguns conhecimentos fragmentários e descoordenados de que se apoderaram como
que de surpresa, mas convém adverti-los de que estarão agindo sempre por sua
própria conta e risco.
NOTAS
1. É evidente que a freqüência
de uma vibração por segundo não representa absolutamente um limite mínimo,
sendo o segundo uma unidade de medida totalmente relativa, como qualquer
unidade de medida; somente a unidade aritmética pura é absolutamente
indivisível.
2. Haveria uma ressalva a se
fazer, no sentido que existe, como veremos adiante, uma condição comum a todos
os estados individuais, à exclusão dos estados não-individuais; mas isto não
afeta em nada nossa demonstração, que quisemos apresentar da forma mais simples
possível, mas sem ser em detrimento da verdade.
3. Materia quantitate signata,
segundo a expressão escolástica .
4. Supusemos aqui que o ser
não-humano está num estado ainda individual; se ele estivesse num estado
supra-individual, embora ainda condicionado, bastaria que a pessoa viva
atingisse o mesmo estado, mas então as condições seriam tais que já não se
poderia falar em comunicação, num sentido análogo à acepção humana, assim como
não se poderá falar quando se tratar do estado incondicionado.
5. Seria preciso ainda, depois
de supor que a iniciativa parte da pessoa viva, tomar a questão em sentido
inverso, o que traria ainda outras complicações.
VI
A REENCARNAÇÃO
Não podemos pretender realizar aqui um estudo
absolutamente completo sobre a questão da reencarnação, pois seria preciso um
volume inteiro para examiná-la sob todos os seus aspectos; talvez voltaremos a
isto algum dia; a coisa vale a pena, não sem si mesma, pois não passa de um
absurdo pura e simplesmente, mas em razão da estranha difusão desta idéia de
reencarnação, que é, na nossa época, uma das que contribuem mais ao
desequilíbrio mental de muita gente. Mas como não podemos nos furtar ao assunto
agora, diremos tudo o que é essencial para ser dito; e nossa argumentação
valerá, não apenas contra o espiritismo kardecista, mas também contra todas as
escolas “neo-espiritualistas” que, na seqüência, adotaram esta idéia, apenas
modificando-a em pontos de menor importância. Ao contrário, esta refutação não
está, como a precedente, endereçada ao espiritismo visto em sua generalidade,
pois a reencarnação não é aí um elemento essencial, e é possível ser espírita
sem admiti-la, enquanto que não é possível sê-lo sem admitir a manifestação dos
mortos por fenômenos sensíveis. De fato, sabemos que os espíritas
norte-americanos e ingleses, ou seja os representantes da forma mais antiga do
espiritismo, foram unânimes em se opor à teoria reencarnacionista, que Dunglas
Home, em particular, criticou violentamente (1); foi preciso, para que alguns
se decidissem a aceitá-la mais tarde, que esta teoria penetrasse, neste
ínterim, nos meios anglo-saxões por vias estranhas ao espiritismo. Na própria
França, alguns dos primeiros espíritas, como Piérart e Anatole Barthe,
separaram-se de Allan Kardec neste ponto; mas, hoje em dia, podemos dizer que
todo o espiritismo francês faz da reencarnação um verdadeiro “dogma”; o próprio
Allan Kardec, aliás, não hesitou em chamá-la por este nome (2). É do
espiritismo francês, lembremos ainda, que esta teoria foi emprestada primeiro
pelo teosofismo, depois pelo ocultismo de Papus e enfim por diversas outras
escolas, que dela fizeram também artigo de fé; estas escolas costumam reprovar
os espíritas por conceberem a reencarnação de maneira pouco “filosófica”, mas
as modificações e complicações diversas que elas acrescentaram não conseguem
esconder o empréstimo inicial.
Já notamos algumas das divergências que existem a
propósito da reencarnação, seja entre os espíritas, seja entre estes e outras
escolas; nisto como em tudo o mais, os ensinamentos dos “espíritos” são
bastante flutuantes e contraditórios, e as pretensas constatações dos
“clarividentes” não o são menos. Assim, vimos que para uns o ser humano se
reencarna sempre no mesmo sexo; para outros, ele se reencarna indiferentemente
num e noutro sexo, sem que haja lei nisto; para outros ainda, existe uma
alternância mais ou menos regular entre as encarnações masculinas e femininas.
Da mesma forma, uns dizem que o homem se reencarna sempre sobre a terra; outros
pretendem que ele podem reencarnar-se também tanto em outro planeta do sistema
solar como em qualquer astro; alguns admitem que haja um grande número de
encarnações terrestres consecutivas até a passagem para outro lugar, e esta é a
opinião do próprio Allan Kardec; para os teosofistas, só existem encarnações
terrestres durante toda a duração de um ciclo extremamente longo, após os qual
uma raça humana inteira começa uma nova série de encarnações em outra esfera, e
assim por diante. Um outro ponto que não é menos discutido, é a duração do
intervalo que acontece entre duas encarnações sucessivas; uns pensam que é
possível reencarnar-se imediatamente, ou ao menos após um curto intervalo, enquanto
que, para outros, as vidas terrestres devem ser separadas por longos
intervalos; já vimos que os teosofistas, após supor que estes intervalos fossem
de doze ou quinze séculos no mínimo, chegaram a reduzi-lo consideravelmente, e
a fazer a respeito distinções segundo os “graus de evolução” dos indivíduos
(3). Entre os ocultistas franceses, produziu-se igualmente uma variação que é
curioso assinalar: em suas primeiras obras, Papus, mesmo atacando os
teosofistas com quem acabara de romper, repete com eles que “segundo a ciência
esotérica, uma alma não pode reencarnar-se antes de quinze séculos em média,
salvo em algumas exceções muito claras (morte na infância, morte violenta,
adeptato)” (4), e ele chega a afirmar, como Mme. Blavatsky e Sinnet, que “estas
cifras foram tiradas de cálculos astronômicos do esoterismo hindu) (5), enquanto que nenhuma doutrina
autêntica jamais falou de reencarnação, sendo esta uma invenção inteiramente
moderna e ocidental. Mais tarde, Papus rejeita totalmente a pretensa lei estabelecida
pelos teosofistas e declara não haver nenhuma, dizendo que “seria absurdo fixar
um termo fixo de doze séculos como de dez anos ao tempo que separa uma
encarnação de um retorno à terra, assim como fixar para a vida humana sobre a
terra um período igualmente fixo” (6). Tudo isto não inspira confiança a quem
examina as coisas com imparcialidade, e, se a encarnação não é “revelada” pelos
“espíritos” pela boa razão de que estes jamais se pronunciaram realmente por
intermédio de tábuas ou de médiuns, estas poucas observações bastam para
mostrar que ela não pode ser um verdadeiro conhecimento esotérico, ensinado por
iniciados que, por definição, devem saber o que dizem. Não é preciso nem ir ao
fundo da questão para descartar as pretensões de ocultistas e teosofistas;
resta que a reencarnação fica como o equivalente de uma simples concepção
filosófica; efetivamente, ela não passa disso, e está mesmo no nível das piores
concepções filosóficas, porque ela é absurda no próprio sentido do termo.
Existem muitos absurdos entre os filósofos, mas ao menos eles os apresentam
sempre como hipóteses: os “neo-espiritualistas” iludem-se mais completamente
(admitimos aqui sua boa fé, que é incontestável para as massas, mas não
necessariamente para os dirigentes), e a segurança mesma com que eles formulam
suas afirmações é uma das razões que as tornam mais perigosas do que aquelas
dos filósofos.
Acabamos de pronunciar a expressão “concepções
filosóficas”; a de “concepções sociais” seria talvez mais justa nas
circunstâncias, se considerarmos qual foi a origem real da idéia de
reencarnação. De fato, para os socialistas franceses da primeira metade do
século XIX, que a inculcaram a Allan Kardec, esta idéia era essencialmente
destinada a fornecer uma explicação para a desigualdade das condições sociais,
que se revestia a seus olhos de um aspecto particularmente chocante. Os
espíritas conservaram este mesmo motivo dentre aqueles que eles invocam com
mais freqüência para justificar sua crença na reencarnação, e eles pretenderam
mesmo estender esta explicação para todas as desigualdades, tanto intelectuais
como físicas; eis o que diz Allan Kardec: “Ou as almas ao nascer são iguais, ou
não o são, disto não há dúvida. Se elas são iguais, porque aptidões tão
diversas? (...) Se elas são desiguais, é porque Deus as criou assim, mas então
porque esta superioridade inata que cabe a alguns? É esta parcialidade conforme
à sua justiça e ao igual amor que ele dedica a todas as suas criaturas?
Admitamos, ao contrário, uma sucessão de existências anteriores progressivas, e
tudo está explicado. Os homens trazem ao nascer a intuição daquilo que
adquiriram; eles estão mais ou menos avançados, segundo o número de existências
que eles percorreram, segundo estejam mais ou menos distanciados do ponto de partida,
exatamente como numa reunião de indivíduos de diferentes idades cada um terá um
desenvolvimento proporcional ao número de anos vividos; as existências
sucessivas serão para a vida da alma aquilo que são os anos para a vida do
corpo (...) Deus, em sua justiça, não pode criar as almas nem mais nem menos
perfeitas; mas, com a pluralidade das existências, as desigualdades que vemos
não contrariam a eqüidade mais rigorosa” (7). Léon Denis diz igualmente:
“Apenas a pluralidade das existências pode explicar a diversidade dos
caracteres, a variedade das aptidões, a desproporção das qualidades morais, em
uma palavra, todas as desigualdades que nos espantam. Sem esta lei,
perguntaríamos em vão porque certos homens possuem talento, sentimentos nobres,
aspirações elevadas, enquanto que outros não receberam senão estupidez, paixões
vis e instintos grosseiros. Que pensar de um Deus que, ao nos assinalar uma
vida corporal, nos tivesse feito de partes tão desiguais e, do selvagem ao
civilizado, tivesse reservado aos homens bens tão pouco proporcionais e um
nível moral tão diferente? Sem a lei das reencarnações, é a iniqüidade que
governa o mundo (...) Todas estas obscuridades dissipam-se diante da doutrina
das existências múltiplas. Os seres que se distinguem por sua potência
intelectual ou por suas virtudes viveram mais, trabalharam antes, adquiriram
experiência e aptidões mais extensas” (8). Razões similares são alegadas mesmo
por escolas cujas teorias são menos “primárias” do que as do espiritismo, pois
a concepção reencarnacionista jamais pode perder inteiramente a marca de sua
origem; os teosofistas, por exemplo, colocam também na frente, ao menos
acessoriamente, a desigualdade das condições sociais. De sua parte, Papus faz
exatamente o mesmo: “Os homens recomeçam um novo percurso no mundo material,
ricos ou pobres, felizes ou infelizes socialmente, segundo os resultados
adquiridos nos percursos anteriores, nas encarnações precedentes” (9). Em outra
parte, ele se expressa ainda mais claramente: “Sem a noção de reencarnação, a
vida social é uma iniqüidade. Porque seres sem nenhuma inteligência são
cobertos de prata e cumulados de honra, enquanto seres de valor se debatem nas
dificuldades e na luta cotidiana por alimentos físicos, morais e espirituais?
(...) Podemos dizer, em geral, que a vida social atual é definida pelo estado
anterior do espírito e que ela determina o estado social futuro” (10).
Uma tal explicação é perfeitamente ilusória, e eis o
porquê: em primeiro lugar, se o ponto de partida não é o mesmo para todos, se
existem homens que estão mais ou menos próximos dele e que não percorreram o
mesmo número de existências (é o que diz Allan Kardec), existe aí uma
desigualdade da qual eles não podiam ser responsabilizados, e que, portanto, os
reencarnacionistas devem ver como uma “injustiça” da qual sua teoria não é
capaz de dar conta. Depois, mesmo admitindo que não existam estas diferenças
entre os homens, é preciso que tenha havido, na sua evolução (falamos segundo o
modo de ver dos espíritas) um momento onde as desigualdades começaram, e é
preciso também que tenha existido para isto alguma causa; se dissermos que esta
causa está nos atos que os homens cumpriram anteriormente, é preciso explicar
como estes homens puderam se comportar diversamente antes que as desigualdades
tenham se introduzido entre eles. Isto é inexplicável, simplesmente porque há
aí uma contradição: se os homens foram perfeitamente iguais, eles teriam sido
semelhantes sob todos os aspectos, e, admitindo-se que isto tenha sido
possível, eles não poderiam deixar de sê-lo, a menos que se conteste a validade
do princípio da razão suficiente (e, neste caso, não adianta buscar nem lei nem
nenhuma explicação); se eles puderam se tornar desiguais, é evidentemente
porque a possibilidade da desigualdade estava neles, e esta possibilidade
prévia bastaria para torná-los desiguais desde a origem, ao menos
potencialmente. Assim, o que se faz é recuar a dificuldade ao invés de
resolvê-la, e afinal ela subsiste inteira; mas, a bem dizer, não existe
dificuldade, e o próprio problema não é menos ilusório do que a pretensa
solução. Podemos dizer desta questão a mesma coisa que dizemos sobre muitas
questões filosóficas, que elas só existem porque são mal colocadas; e, se ela é
mal colocada, é sobretudo, no fundo, porque se faz intervir aí considerações
morais e sentimentais onde elas não tem cabimento: esta atitude é tão
desinteligente quanto seria a do homem que se perguntasse, por exemplo, porque
tal espécie animal não é igual a tal outra, o que é manifestamente desprovido
de sentido. Que existam na natureza diferenças que nos aparecem como
desigualdades, enquanto que outra não tem este aspecto, isto é um ponto de
vista puramente humano; e, se deixarmos de lado este ponto de vista
eminentemente relativo, não cabe mais falar em justiça ou injustiça nesta ordem
de coisas. Em suma perguntar porque um ser não é igual a um outro, equivale a
perguntar porque ele é diferente deste outro; mas, se ele não fosse diferente
em nada, ele seria o outro em lugar de ser ele mesmo. A partir do momento em
que existe uma multiplicidade de seres, é preciso necessariamente que haja
diferenças entre eles; duas coisas idênticas são inconcebíveis, porque, se elas
forem realmente idênticas, não serão duas coisas, mas uma única e mesma coisa;
Leibnitz tem inteira razão sobre este ponto. Cada ser se distingue dos outros,
desde o princípio, na medida em que traz em si certas possibilidades que são
essencialmente inerentes à sua natureza, e que não são as possibilidades de
nenhum outro ser; a questão para a qual os espíritas imaginam trazer uma
resposta equivale simplesmente a se perguntar porque um ser é ele mesmo e não
outro. Se quisermos ver nisto uma injustiça, pouco importa, mas, em todo caso,
é uma necessidade; e aliás, no fundo, seria o contrário da injustiça: de fato,
a noção de justiça, despida de seu caráter sentimental e especificamente
humano, reduz-se à noção de equilíbrio ou de harmonia; ora, para que haja
harmonia total no Universo, é necessário e suficiente que cada ser ocupe o lugar
que lhe cabe, como elemento deste Universo, em conformidade com sua própria
natureza. Isto equivale simplesmente a dizer que as diferenças e as
desigualdades, que são denunciadas como injustiças reais ou aparentes, ao
contrário concorrem efetiva e necessariamente para esta harmonia total; e esta
não pode não existir, porque isto seria supor que as coisas não são o que elas
são, chegando ao absurdo de supor que a um ser pode acontecer qualquer coisa
que não seja uma conseqüência da sua natureza; assim os partidários da justiça
podem ficar também satisfeitos, sem ter que ir contra a verdade.
Allan Kardec declara que “o dogma da reencarnação está
fundamentado na justiça de Deus e na revelação” (11); nós mostramos que, das
duas razões apresentadas, a primeira não pode ser invocada validamente; quanto
à segunda, como evidentemente ele quer dizer a revelação dos “espíritos”, e
como já estabelecemos que esta é inexistente, não voltaremos a ela. Entretanto,
essas não são mais do que observações preliminares, pois, que não haja nenhuma
razão para admitir uma coisa, não se segue forçosamente que esta coisa seja
falsa; pode-se ainda, ao menos, permanecer diante dela numa atitude de dúvida
pura e simples. Devemos dizer, aliás, que as objeções que são formuladas
normalmente contra a teoria reencarnacionista não são melhores do que as razões
que são invocadas de outra parte para apoiá-la; isto se deve, em grande parte,
a que os adversários e partidários da reencarnação colocam-se igualmente, de
modo geral, sobre o terreno moral e sentimental, e que considerações desta
ordem não conseguem provar nada. Podemos fazer aqui a mesma observação no que
concerne à questão da comunicação com os mortos; ao invés de se perguntar se
ela é verdadeira ou falsa, discute-se para saber se ela é ou não é
“consoladora”, e pode-se discutir assim indefinidamente sem avançar um passo,
porque trata-se de um critério puramente “subjetivo”, como diria um filósofo.
Felizmente, há mais do que isso para se dizer contra a reencarnação, pois é
possível estabelecer-se a sua impossibilidade absoluta; mas, antes de chegarmos
aí, devemos ainda tratar de uma outra questão, e dar certas distinções, não
apenas porque são importantes em si mesmas, mas também porque, sem elas, alguns
poderiam ficar espantados quando afirmarmos que a reencarnação é uma idéia
exclusivamente moderna. Muitas confusões e falsas noções aconteceram durante um
século para que muitas pessoas, mesmo fora dos meios “neo-espiritualistas”, se
achem gravemente influenciadas; esta deformação chega a tal ponto que os
orientalistas oficiais, por exemplo, interpretam correntemente num sentido
reencarnacionista textos aonde não existe nada disto, tornando-se incapazes de
compreendê-los de outro modo, o que quer dizer que eles não entendem
absolutamente nada.
O termo de “reencarnação” deve ser distinguido de dois
outros termos ao menos, que têm um significado totalmente diferente, e que são
a “metempsicose” e a “transmigração”; trata-se aí de coisas que eram bem
conhecidas dos antigos, como ainda o são dos Orientais, mas que os Ocidentais
modernos, inventores da reencarnação, ignoram absolutamente (12). Deve ficar
entendido que, quando se fala em
reencarnação, isto quer dizer que o ser que já se incorporou toma um novo
corpo, ou seja que ele volta ao estado pelo qual já passou; por outro lado,
admite-se que isto concerne ao ser real e completo, e não apenas a elementos
mais ou menos importantes que possam ter entrado na sua constituição a qualquer
título. Fora destas duas condições, não se pode falar em reencarnação; ora, a
primeira a distingue essencialmente da transmigração, tal como ela é vista
pelas doutrinas orientais, e a segunda a difere profundamente da metempsicose,
no sentido em que a entendiam notadamente os Órficos e os Pitagóricos. Os
espíritas, apesar de afirmarem falsamente a antigüidade da teoria
reencarnacionista, dizem com razão que ela não é idêntica à metempsicose; mas,
segundo eles, a distinção está em que as existências sucessivas são sempre
“progressivas”, e que só se devem considerar os seres humanos: “Existe, diz
Allan Kardec, entre a metempsicose dos antigos e a doutrina moderna da
reencarnação esta grande diferença, que os espíritas rejeitam da maneira mais
absoluta a transmigração do homem para os animais, e reciprocamente” (13). Os
antigos, na verdade, jamais consideraram uma tal transmigração, assim como a de
homens para outros homens, tal como se define a reencarnação; sem dúvida,
existem expressões mais ou menos simbólicas que podem dar lugar a
mal-entendidos, mas apenas quando não se sabe o que elas querem dizer
realmente, e que é o seguinte: existem no homem elementos psíquicos que se
dissociam após a morte, e que podem então passar para outros seres vivos,
homens ou animais, sem que isto tenha mais importância, no fundo, do que o fato
de que, após a dissolução do corpo deste mesmo homem, os elementos que o
compõem possam servir para formar outros corpos; nos dois casos, trata-se de
elementos mortais do homem, e não da parte imperecível que é o seu ser real, e
que não é absolutamente afetada pelas mutações póstumas. A este propósito,
Papus cometeu um erro de outro gênero, ao falar das “confusões entre a
reencarnação ou retorno do espírito num corpo material, após um estágio astral,
e a metempsicose ou travessia pelo corpo material de corpos de animais e de
plantas, antes de voltar em um novo corpo material” (14); sem falar de algumas
bizarrices de expressão que podem ser lapsos (os corpos dos animais e das
plantas não são menos “materiais” do que o corpo humano, nem são “atravessados”
por este, mas por elementos provenientes dele), isto não poderia jamais ser
chamado de “metempsicose”, pois a própria formação desta palavra mostra que se
trata de elementos psíquicos, e não de elementos corporais. Papus tem razão em
pensar que a metempsicose não diz respeito ao ser real do homem, mas ele se
engana completamente sobre a sua natureza; e de outro lado, quanto à
reencarnação, quando ele diz que “ela foi ensinada como um mistério esotérico
em todas as iniciações da antigüidade” (15), ele a confunde simplesmente com a
transmigração verdadeira.
A dissociação que se segue à morte não alcança apenas os
elementos corporais, mas também alguns elementos que podemos chamar de
psíquicos; isto já foi dito quando explicamos que tais elementos podem intervir
às vezes nos fenômenos do espiritismo e contribuir para dar a ilusão de uma
ação real dos mortos; de modo análogo, eles podem também, em certos casos, dar
a ilusão de uma reencarnação. O que importa guardar, sob este último ponto, é
que estes elementos (que podem, durante a vida, ter sido propriamente
conscientes ou somente “subconscientes”) compreendem notadamente todas as
imagens mentais que, como resultados da experiência sensível, fazem parte
daquilo que se chama memória e imaginação: estas faculdades, ou melhor esses
conjuntos, são perecíveis, ou seja sujeitos a se dissolverem, porque, sendo de
ordem sensível, são literalmente dependências do estado corporal; aliás, fora
da condição temporal, que é uma das que definem este estado, a memória não tem
evidentemente nenhuma razão de existir. Isso está bem longe, certamente, das
teorias da psicologia clássica sobre o “eu” e sua unidade; estas teorias tem o
defeito de serem tão desprovidas de fundamento, no seu gênero, quanto as
concepções “neo-espiritualistas”. Uma outra observação que não é menos
importante, é que pode haver transmissão de elementos psíquicos de um ser a
outro sem que isto pressuponha a morte do primeiro: de fato, existe ima
hereditariedade psíquica tanto quanto a hereditariedade fisiológica, isto é
pouco contestável, e é mesmo fato de observação corriqueira; mas aquilo de que
muitos não se dão conta, é que isto supõe que os pais forneçam um germe
psíquico, do mesmo modo que um germe
corporal; e este germe pode implicar potencialmente um conjunto muito complexo
de elementos que pertencem ao domínio do “subconsciente", além das
tendências e predisposições propriamente ditas, as quais, desenvolvendo-se,
aparecerão de modo mais manifesto; estes elementos “subconscientes”, ao contrário,
poderão só se tornar aparentes em casos excepcionais. É esta dupla
hereditariedade física e psíquica que exprime a fórmula chinesa: “Tu reviverás
nos milhares de teus descendentes”, que seria bem difícil, certamente,
interpretar no sentido reecarnacionista, embora os ocultistas e mesmo alguns
orientalistas tenham chegado perto em outras ocasiões. As doutrinas
extremo-orientais consideram mesmo de preferência o lado psíquico da
hereditariedade, e eles vêem aí um verdadeiro prolongamento da individualidade
humana; é por isso que, sob o nome de “posteridade” (que é de resto susceptível
de um sentido superior e puramente espiritual), eles a associam com a
“longevidade”, que os Ocidentais chamam de imortalidade.
Como veremos a seguir, certos fatos que os reencarnacionistas
acreditam poder invocar como apoio à sua hipótese explicam-se perfeitamente por
um ou outro dos dois casos que citamos, ou seja, de um lado, pela transmissão
hereditária de certos elementos psíquicos, e, por outro, pela assimilação por
uma individualidade humana de outros elementos psíquicos provenientes da
desintegração de individualidades humanas anteriores, que nem por isso terão a
menor relação espiritual com ela. Existe, em tudo isso, correspondência e
analogia entre a ordem psíquica e a ordem corporal; e isto é compreensível,
porque tanto uma quanto outra, repetimos, referem-se exclusivamente àquilo que
podemos chamar de elementos mortais do ser humano. É preciso ainda acrescentar
que, na ordem psíquica, pode acontecer, mais ou menos excepcionalmente, que um
conjunto bastante grande de elementos se conserve sem dissociar-se, e seja
transferido tal e qual para uma nova individualidade; os fatos deste gênero
são, naturalmente, os que apresentam o caráter mais chocante aos olhos dos
partidários da reencarnação, e no entanto estes casos não são menos ilusórios
do que os demais (16). Tudo isto, já dissemos, não diz respeito nem altera de
modo algum o ser real; poderíamos, é verdade, ser questionados sobre porque,
sendo assim, os antigos atribuíam tão grande importância à sorte póstuma desses
elementos. Podemos responder lembrando simplesmente que existem também pessoas
que se preocupam com o tratamento que seu corpo possa sofrer após a morte, sem
por isso pensar que seu espírito possa receber um contra-golpe; mas
acrescentaremos que de fato, de modo geral, essas coisas não são absolutamente
indiferentes; se elas fosse, aliás, os ritos funerários não teriam nenhuma
razão de ser, enquanto que na verdade eles tem razões muito profundas. Sem
insistirmos muito nisto, diremos que a ação destes ritos se exerce precisamente
sobre os elementos psíquicos do defunto; já mencionamos o que pensavam os
antigos sobre a relação que existe entre o seu não cumprimento e certos
fenômenos de “obsessão”, e esta opinião era perfeitamente bem fundamentada.
Certamente, se só considerarmos o ser que está passando para um outro estado de
existência, não haveria porque levar em conta o que pode acontecer com esses
elementos (salvo talvez para assegurar a tranqüilidade dos vivos); mas a coisa
muda de figura se considerarmos também aquilo a que chamamos de prolongamentos
da individualidade humana. Este tema poderia dar lugar a comentários cuja
complexidade e estranheza nos impedem de fazer aqui; e achamos que tampouco
seria útil ou vantajoso expô-los publicamente de modo detalhado.
Após havermos dito em que consiste verdadeiramente a
metempsicose, vamos agora dizer o que é a transmigração propriamente dita:
desta vez, trata-se do ser real, mas não implica para ele um retorno ao mesmo
estado de existência, retorno que, se pudesse existir, seria mais como uma
“migração”, se se quiser, mas não uma “transmigração”. Aquilo de que se trata,
é, ao contrário, a passagem do ser a outros estados de existência, que são
definidos, como dissemos, por condições inteiramente diferentes daquelas a que
está submetida a individualidade humana (apenas com a restrição d que, na
medida em que se trata de estados individuais, o ser estará sempre revestido de
uma forma, mas que não daria lugar a nenhuma representação espacial ou qualquer
outra que fosse mais ou menos modelada sobre a forma corporal); quem diz
transmigração diz essencialmente mudança de estado. É o que ensinam todas as
doutrinas tradicionais do Oriente, e temos múltiplas razões para pensar que
este ensinamento era também o dos “mistérios” da antigüidade; mesmo em
doutrinas heterodoxas como o Budismo (17), não é questão de outra coisa, apesar
da interpretação reencarnacionista que corre hoje em dia entre os Europeus. É
precisamente a verdadeira doutrina da transmigração, entendida no sentido que
lhe dá a metafísica pura, que permite refutar de modo absoluto e definitivo a
idéia da reencarnação; de fato, é apenas neste terreno que tal refutação é
possível. Mostraremos que a reencarnação é uma impossibilidade pura e simples:
é preciso entender com isto que um mesmo ser não pode ter duas existências no
mundo corporal, considerando este mundo em toda a sua extensão; pouco importa
que seja sobre a Terra ou em quaisquer outros astros (18); pouco importa também
que seja como ser humano, ou , segundo as falsas noções da metempsicose, sob
outra forma, animal, vegetal ou mesmo mineral. Acrescentaremos ainda: pouco
importa que se trate de existências sucessivas ou simultâneas, pois alguns
fizeram esta suposição, no mínimo extravagante, de uma pluralidade de vidas
desenrolando-se ao mesmo tempo, para um mesmo ser, em diversos lugares,
possivelmente sobre planetas diferentes; isto nos leva novamente aos
socialistas de 1848, pois parece ter sido Blanqui o primeiro a imaginar uma
repetição simultânea e indefinida, no espaço, de indivíduos supostos idênticos
(19). Alguns ocultistas pretendem também que o indivíduo humano pode ter muitos
“corpos físicos”, como eles dizem, vivendo ao mesmo tempo em diferentes planetas;
e eles chegam a afirmar que, se acontece a alguém sonhar ter sido ferido, é
porque, em muitos casos, neste mesmo instante, ele foi efetivamente ferido em
outro planeta! Isto teria nos parecido inacreditável se não tivéssemos ouvido
em pessoa; mas veremos, no capítulo seguinte, outras histórias tão fortes
quanto. Devemos também dizer que a demonstração que faremos vale contra todas
as teorias reencarnacionistas, qualquer que seja a forma que tomem, e aplica-se
igualmente, do mesmo modo, a certas concepções mais propriamente filosófica,
como a concepção do “eterno retorno” de Nietzsche, em uma palavra a tudo o que
suponha no Universo uma repetição qualquer.
Não podemos expor aqui, com todos os desenvolvimentos que
ela comporta, a teoria metafísica dos estados múltiplos do ser; temos a
intenção de consagrar a esta teoria, assim que possível, um ou mais estudos.
Mas podemos ao menos indicar o fundamento desta teoria, que é ao mesmo tempo o
princípio da demonstração de que tratamos aqui, e que é o seguinte: a
Possibilidade universal é total e necessariamente infinita e não pode ser
concebida de outra forma, pois, ao abarcar tudo e não deixar nada fora de si,
ela não pode ser limitada por nada absolutamente; uma limitação da
Possibilidade universal, por lhe ser exterior, é própria e literalmente uma
impossibilidade, ou seja um puro nada. Ora, supor uma repetição no seio da
Possibilidade, como se faz quando se admite que possam existir duas
possibilidades particulares idênticas, implica supor uma limitação, porque o
infinito exclui qualquer repetição; somente no interior de um conjunto finito
pode-se voltar duas vezes ao mesmo elemento, e mesmo assim este elemento não
será rigorosamente o mesmo a não ser que este conjunto forme um sistema
fechado, condição que jamais é realizada efetivamente. A partir do momento que
o Universo é um todo, ou antes o Todo absoluto, não pode existir em nenhum
ponto um ciclo fechado: duas possibilidades idênticas seriam apenas uma única e
mesma possibilidade; para que sejam duas, é preciso que elas difiram em pelo
menos uma condição, e neste caso elas não serão idênticas. Nada pode voltar ao
mesmo ponto, e isto mesmo dentro de um conjunto que seja simplesmente
indefinido (e não mais infinito), como o mundo corporal: enquanto se traça um
círculo, um deslocamento também se efetua, e assim o círculo só se fecha de
modo ilusório. Esta é uma simples analogia, mas que pode ajudar a entender que,
a fortiori, na existência universal,
o retorno a um mesmo estado é impossível: dentro da Possibilidade total, estas
possibilidades particulares que são os estados de existência condicionados são
necessariamente me multiplicidade indefinida; negá-lo, é ainda pretender
limitar a Possibilidade; é preciso então admiti-lo, sob pena de contradição, e
isto basta para que nenhum ser possa passar duas vezes pelo mesmo estado. Como
se vê, esta demonstração é extremamente simples em si mesma, e, se alguns tem
dificuldades em compreendê-la, só pode ser por lhes faltar os mais elementares
conhecimentos metafísicos; para estes, uma exposição mais completa seria
necessária, e rogamos a eles que aguardem que daremos integralmente a teoria
dos estados múltiplos; eles podem estar certos, em todo caso, que esta
demonstração, tal como a formulamos no que ela tem de essencial, nada deixa a
desejar quanto ao rigor. Quanto àqueles que imaginam que, por rejeitarmos a
reencarnação, arriscamos a limitar de outro modo a Possibilidade universal,
responderemos simplesmente que o que rejeitamos não passa de uma
impossibilidade, o que não é nada, e que não aumentaria a soma das
possibilidades senão de modo ilusório, por ser um puro zero; não se limita a
possibilidade negando um absurdo qualquer, por exemplo ao dizermos que não pode
existir um quadrado redondo, ou que, dentre os mundos possíveis, não haverá
nenhum em que dois mais dois sejam cinco; o caso é exatamente o mesmo. Existem
pessoas que manifestam, a esse respeito, estranhos escrúpulos; assim fez
Descartes, quando atribuiu a Deus a “liberdade de indiferença”, por receio de
limitar a toda-potência divina (expressão teológica da Possibilidade
universal), sem dar-se conta de que esta “liberdade de indiferença”, ou a
escolha na ausência de qualquer razão, implica condições contraditórias:
diremos, para empregar sua linguagem, que um absurdo não é tal porque Deus
assim o quis arbitrariamente, mas ao contrário é por ser um absurdo que Deus
não pode fazê-lo ser qualquer coisa, sem que isto signifique a menor diminuição
de Sua toda-potência, pois absurdo e impossibilidade são sinônimos.
Voltando aos estados múltiplos do ser, lembraremos, pois
isto é essencial, que estes estados podem ser concebidos como sendo simultâneos
ou sucessivos, e que mesmo, no conjunto, só se pode admitir a sucessão como
representação simbólica, pois o tempo não é mais que uma condição própria a um
destes estados, e mesmo a duração, sob qualquer modo que seja, só pode ser atribuída a certos estados dentre
eles; se quisermos falar de sucessão, é preciso então precisar que se trata do
sentido lógico, e não no sentido cronológico. Por esta sucessão lógica,
entendemos que existe um encadeamento causal entre os diversos estados; mas a
própria relação de causalidade, se tomada no seu verdadeiro significado (e não
na acepção “empirista” de certos lógicos modernos), implica precisamente a
simultaneidade e a coexistência dos seus termos. Por outro lado, é bom precisar
que mesmo o estado individual humano, que está submetido à condição corporal,
pode não obstante apresentar uma multiplicidade simultânea de estados
secundários; o ser humano não pode ter muitos corpos, mas, fora da modalidade
corporal e ao mesmo tempo que ela, ele pode possuir outras modalidades nas
quais se desenvolvem também certas possibilidades que ele comporta. Isto nos
conduz a assinalar uma concepção que se liga estreitamente à idéia da
reencarnação, e que conta também com inúmeros partidários dentre os
“neo-espiritualistas”: segundo esta concepção, cada ser deveria, no curso de
sua evolução (pois aqueles que sustentam essas posições são sempre, de um modo ou
de outro, evolucionistas), passar sucessivamente por todas as formas de vida,
terrestres e outras. Uma tal teoria só exprime uma manifesta impossibilidade,
pela simples razão de que existe uma indefinidade de formas vivas pelas quais
um ser qualquer jamais poderá passar, que são as formas ocupadas pelos outros
seres. De resto, mesmo que um mesmo ser pudesse percorrer sucessivamente uma
indefinidade de possibilidades particulares, e num domínio mais extenso do que
o das “formas de vida”, ele não estaria por isso mais avançado em relação ao
termo final, que não pode ser atingido desta maneira; voltaremos a isso quando
falarmos do evolucionismo espírita. No momento, apenas lembraremos o seguinte:
o mundo corporal inteiro, no desdobramento integral de todas as possibilidades
que contém, não representa mais do que parte do domínio de manifestação de um
único estado; este mesmo estado comporta portanto, a fortiori, a potencialidade correspondente a todas as modalidades
da vida terrestre, que não passa de uma porção bastante restrita do mundo
corporal. Isto torna perfeitamente inútil (mesmo que a sua impossibilidade não
fosse provada de outro modo) a suposição de uma multiplicidade de existências
através das quais o ser elevar-se-ia progressivamente da modalidade mais
inferior, a do mineral, até a modalidade humana, considerada como a mais alta,
e passando sucessivamente pelo vegetal e o animal, com toda a multitude de
graus que compreende cada um destes reinos; existem alguns que fazem esta
hipótese, e que rejeitam apenas a possibilidade de um retorno atrás. Na
realidade, o indivíduo, em sua extensão integral, contém simultaneamente as
possibilidades que correspondem a todos os graus de que se trata (não dizemos
que os contém corporalmente); esta simultaneidade só se traduz em sucessão
temporal no desenvolvimento de sua única modalidade corporal, no curso da qual,
como o mostra a embriologia, ele passa efetivamente por todos os estados
correspondentes, desde as formas unicelulares dos seres organizados mais rudimentares,
e mesmo, remontando acima, desde o cristal, até a forma humana terrestre.
Digamos de passagem, desde já, que este desenvolvimento embriológico,
contrariamente à opinião comum, não é absolutamente uma prova da teoria
“transformista”; isto não é menos falso do que todas as outras formas do
evolucionismo, e é mesmo a mais grosseira de todas; voltaremos a isso mais
adiante. O que é preciso reter sobretudo, é que o ponto de vista da sucessão é
essencialmente relativo, e aliás, mesmo na medida restrita em que ele é
legitimamente aplicável, ele perde o interesse pela observação de que o germe,
antes de qualquer desenvolvimento, contém já em potência o ser completo (logo
veremos a importância disto); em todo caso, esse ponto de vista deve sempre
permanecer subordinado ao da simultaneidade, como exige o caráter puramente
metafísico, portanto extra-temporal (mas também extra-espacial, pois a
coexistência não supõe necessariamente o espaço), da teoria dos estados
múltiplos do ser (20).
Acrescentaremos ainda que, embora o queiram os espíritas e
sobretudo alguns ocultistas, não se encontra na natureza nenhuma analogia em
favor da reencarnação, enquanto que encontramos numerosos exemplos no sentido
contrário. Este ponto foi muito bem esclarecido nos ensinamentos da H.B.of L.,
de quem já tratamos, e que era formalmente anti-reencarnacionista; achamos
interessante citar aqui algumas passagens desses ensinamentos, que mostram que
esta escola possuía ao menos alguns conhecimentos da transmigração verdadeira,
assim como de certas leis cíclicas: “É uma verdade absoluta aquilo que exprime
o adepto de Ghostland, quando ele diz
que, enquanto ser impessoal, o homem vive numa infinidade de mundos até chegar
a este aqui (...) Desde que o grande estado de consciência, cume da série das
manifestações materiais, é atingido, nunca mais a alma penetrará na matriz da
matéria, nem sofrera encarnação material; daqui em diante, seus renascimentos
serão no reino do espírito. Aqueles que sustentam a doutrina estranhamente
ilógica da multiplicidade de nascimentos humanos jamais desenvolveram em si
mesmos o estado lúcido de consciência espiritual; senão, a teoria da
reencarnação, afirmada e sustentada hoje em dia por um grande número de homens
e mulheres versados no “saber mundano”, não teria o menor crédito. Uma educação
exterior é relativamente sem valor como meio de obter o conhecimento verdadeiro
(...) A bolota se torna carvalho, a noz do coco se torna palmeira; mas o
carvalho pode dar quantas bolotas quiser, ele jamais se tornará bolota novamente,
assim como a palmeira não se tornará noz. O mesmo acontece com o homem: desde
que a alma se manifesta no plano humano, tendo assim atingido a consciência da
vida exterior, ela não retorna jamais por nenhum dos seus estágios rudimentares
(...) Todos os pretensos “sonhos de recordações” latentes, através dos quais
algumas pessoas afirmam lembrar-se de suas existências passadas, podem
explicar-se (e mesmo só podem se explicar assim) pelas simples leis da
afinidade e da forma. Cada raça de seres humanos, considerada em si mesma, é
imortal; o mesmo acontece com cada ciclo: jamais o primeiro ciclo torna-se o
segundo, mas os seres do primeiro ciclo são (espiritualmente) os pais ou os
geradores (21) daqueles do segundo ciclo. Assim, cada ciclo compreende uma família
constituída pela reunião de diversos agrupamentos de almas humanas, sendo cada
condição determinada pelas leis de sua atividade, de sua forma e de sua
afinidade: uma trindade de leis (...) É assim que o homem pode ser comparado à
bolota e ao carvalho: a alma embrionária, não individualizada, torna-se um
homem assim como a bolota se torna um carvalho, e, assim como o carvalho dá
nascimento a uma quantidade inumerável de bolotas, também o homem fornece por
sua vez a uma infinidade de almas os meios de tomar nascimento no mundo
espiritual. Existe correspondência completa entre os dois, e é por esta razão
que os antigos Druidas prestavam tão grandes honras a esta árvore, que era
honrada além de todas as outras pelos poderosos Hierofantes”. Existe aí uma indicação
daquilo que é a “posteridade” entendida no sentido puramente espiritual; não é
este o lugar para nos estendermos sobre este ponto, assim como sobre as leis
cíclicas a que ele se liga; talvez tratemos destas questões um dia, se
encontrarmos meios de fazê-lo de forma inteligível, pois existem dificuldades
que são devidas sobretudo à imperfeição das línguas ocidentais.
Infelizmente, a H.B.of L. admitia a possibilidade de
reencarnação em certos casos excepcionais, como das crianças natimortas ou mortas
em tenra idade, e nos casos dos idiotas de nascença (22); já vimos que Mme.
Blavatsky admitia esta maneira de ver no tempo em que escrevia Isis Dévoilée (23). Na realidade, a
partir do momento em que se trata de uma impossibilidade metafísica, não pode mais
haver nenhuma exceção: basta que um ser tenha passado por um estado, nem que
seja em modo embrionário, ou mesmo sob a forma de simples germe, para que ele
não possa de modo algum voltar a este estado, cujas possibilidades ele efetuou
segundo comportava sua própria natureza; se o desenvolvimento destas
possibilidades parece ter sido detido em um certo ponto, é porque ele não
poderia ter ido mais longe em sua modalidade corporal, e é o fato de só
enxergar a esta que é aqui a causa do erro, pois não se leva em conta todas as
possibilidades que, para este mesmo ser, podem se desenvolver em outras
modalidades do mesmo estado; se estas fossem consideradas, ver-se-ia que a
reencarnação, mesmo em casos como aqueles, é absolutamente inútil, o que se
deve admitir desde que se saiba que ela é impossível, e que tudo o que existe
concorre, quaisquer que sejam as aparências, para a harmonia total do Universo.
Esta questão é bem análoga à das
comunicações espíritas: num e noutro caso, trata-se de impossibilidades; dizer
que podem haver exceções é tão ilógico quanto, por exemplo, afirmar que pode
haver um pequeno número de casos em que, no espaço euclidiano, a soma de dois
ângulos de um triângulo não seja igual a dois ângulos retos; o que é absurdo, e
absolutamente absurdo, e não apenas “em geral”. De resto, se começamos a
admitir exceções, nunca sabemos com fazer para assinalar a elas um limite
preciso: como determinar a idade a partir da qual uma criança, vindo a morrer,
não terá mais necessidade de reencarnar, ou o grau que deve atingir a
debilidade mental para exigir uma reencarnação? Evidentemente, nada poderia ser
mais arbitrário, e podemos dar razão a Papus quando ele diz que “se rejeitamos
esta teoria, não se pode admitir exceção, pois caso contrário abre-se uma brecha
pela qual tudo pode passar” (24).
Esta observação, no pensamento de seu autor, endereçava-se
sobretudo a alguns escritores que acreditaram que a reencarnação, em certos
casos particulares, podia conciliar-se com a doutrina católica: o conde de
Larmandie, notadamente, pretendeu que ela poderia ser admitida no caso das
crianças mortas sem batismo (25). É bem verdade que alguns textos, como os do
quarto concílio de Constantinopla, que se pensou poder invocar contra a
reencarnação, não se aplicam a ela na realidade; mas isto não é um triunfo para
os ocultistas, porque, se isto é assim, é apenas porque, nesta época, a
reencarnação não havia sido imaginada. Tratava-se de uma opinião de Orígenes,
segundo a qual a vida corporal seria um castigo para almas que, “pré-existindo
enquanto potências celestes, estariam saciadas da contemplação divina”; como se
vê, não se trata aí de uma outra vida corporal anterior, mas de uma existência
no mundo inteligível no sentido platônico, que não tem nenhuma relação com a reencarnação.
É difícil imaginar como Papus pode escrever que “a reprimenda do concílio
indica que a reencarnação fazia parte do ensinamento, e que se houvesse quem
voltasse voluntariamente a se reencarnar, não por desgosto do Céu, mas por amor
ao próximo, o anátema não poderia aplicar-se” (ele imaginou que este anátema
era levantado contra “aqueles que proclamavam haver voltado à terra por
desgosto do Céu”); e ele se apóia nisto para afirmar que “a idéia de
reencarnação faz parte dos ensinamentos secretos da Igreja” (26). A propósito
da doutrina católica, devemos mencionar também uma asserção dos espíritas que é
verdadeiramente extraordinária: Allan Kardec afirma que “o dogma da
ressurreição da carne é a consagração do dogma da reencarnação ensinado pelos
espíritos”, e que “assim a Igreja, pelo dogma da ressurreição da carne, ensina
a doutrina da reencarnação”; na verdade, ele apresenta suas proposições sob
forma interrogativa, e é o “espírito” de São Luís que lhe responde que “isto é
evidente”, acrescentando que “em breve se reconhecerá que o espiritismo segue
passo a passo o próprio texto das Escrituras sagradas” (27)! O que é mais
assombroso ainda, é que se tenha encontrado um padre católico, de resto mais ou
menos suspeito de heterodoxia, para aceitar e sustentar tal opinião: trata-se
do abade J.A. Petit, da diocese de Beauvais, antigo confessor da duquesa de
Pomar, que escreveu estas linhas: “A reencarnação foi admitida entre a maior
parte dos povos antigos (..) O Cristo também a admitia. Se não a encontramos
expressamente ensinada pelos apóstolos, é porque os fiéis deveriam reunir em si
qualidades morais que os libertassem (...) Mais tarde, quando os grandes chefes
e seus discípulos desapareceram, e que o ensinamento cristão, sob pressão dos
interesses humanos, tornou-se um símbolo árido, só restou, como vestígio do
passado, a ressurreição da carne, ou na carne, que, tomada no senso estrito da
palavra, fez nascer o erro gigantesco da ressurreição de corpos mortos” (28).
Não faremos a respeito nenhum comentário, pois tais interpretações são daquelas
que nenhum ninguém que não tenha preconceitos pode levar a sério; mas a
transformação da “ressurreição da carne” em “ressurreição na
carne” é desses pequenos subterfúgios que fazem duvidar da boa fé do seu autor.
Antes de deixarmos o assunto, diremos ainda algumas
palavras a respeito dos textos evangélicos que os espíritas e os ocultistas
invocam em favor da reencarnação; Allan Kardec indica dois deles (29), dos
quais o primeiro segue-se ao relato da transfiguração: “Quando eles desciam da
montanha, Jesus ordenou-os, dizendo: Não digam a ninguém o que vocês viram
hoje, até que o Filho do homem ressuscite de entre os mortos. Seus discípulos
interrogaram-no, dizendo: Porque então os escribas dizem que Elias virá brevemente?
Mas Jesus lhes respondeu: É verdade que Elias deverá vir e que restabelecerá
todas as coisas. Mas eu vos declaro que Elias já veio, e eles não o conheceram,
mas o fizeram sofrer como quiseram. É assim que eles farão morrer o Filho do
homem. Então seus discípulos compreenderam que era de João Batista que ele lhes
havia falado” (30). E Allan Kardec acrescenta: “Uma vez que João Batista era
Elias, houve portanto reencarnação do espírito ou da alma de Elias no corpo de
João Batista”. Papus, por sua vez, diz igualmente: “Para começar, os Evangelhos
afirmam sem rodeios que João Batista é Elias encarnado. Este era um mistério.
Interrogado, João Batista se esquiva, mas os outros sabem. Existe ainda a
parábola do cego de nascença punido por seus anteriores pecados, que dá muito o
que refletir” (31). Em primeiro lugar, não é dito no texto de que maneira
“Elias já veio”; e, se lembrarmos que Elias não morreu no sentido normal da
palavra, fica difícil afirmar que se tratou de uma reencarnação; além do que,
porque Elias, na transfiguração, não se manifestou com os traços de João
Batista (32)? Depois, João Batista interrogado não se esquiva, como quer Papus,
mas ao contrário nega formalmente: “Eles lhe perguntaram: Então? Você é Elias?
E ele lhes disse: Não o sou” (33). Se se disser que isto apenas mostra que ele
não tinha a recordação de sua existência precedente, responderemos que existe
um texto mais explícito ainda: é quando o anjo Gabriel, anunciando a Zacarias o
nascimento de seu filho, declara: “Ele marchará diante do Senhor no espírito e na virtude de Elias, para
reunir o coração dos pais com os dos filhos e chamar os desobedientes à
prudência dos justos, para preparar para o Senhor um povo perfeito” (34). Não
se poderia indicar com mais clareza que João Batista não era Elias em pessoa,
mas apenas que ele pertencia, se podemos nos exprimir assim, à sua “família
espiritual”; é portanto deste modo, e não literalmente, que se deve entender a
“vinda de Elias”. Quanto à história do cego de nascença, da qual Allan Kardec
não fala, Papus parece não conhecê-la, porque ele toma por uma parábola o
relato de uma cura milagrosa; eis o texto exato: “Quando Jesus passava, ele viu
um homem que era cego de nascença; e seus discípulos lhe fizeram esta pergunta:
Mestre, foram os pecados deste homem, ou os pecados daqueles que o trouxeram ao
mundo, a causa de ter nascido cego? Jesus lhes respondeu: Não é por causa de
seus pecados, nem dos que cometeram aqueles que o trouxeram ao mundo; mas é
para que as obras do poder de Deus manifestem-se nele” (35). Este homem não
havia sido “punido por seus pecados”, mas isto poderia acontecer, com a
condição de não se forçar o texto, adicionando uma palavra que não existia:
“por seus pecados anteriores”; sem a ignorância que Papus demonstra, poderíamos
acusá-lo de má-fé. O que é possível, é que a enfermidade deste homem lhe tenha
sido imposta como sanção antecipada em vista dos pecados que ele cometeria
ulteriormente; esta interpretação só pode ser descartada por aqueles que levam
o antropomorfismo a ponto de submeter Deus ao tempo. Enfim, o segundo texto
citado por Allan Kardec é o encontro de Jesus com Nicodemus; para refutarmos as
pretensões reencarnacionistas a respeito, basta reproduzir a passagem
essencial: “Se um homem não nasce de novo, ele não poderá ver o reino de
Deus... Em verdade eu vos digo, se um homem não renasce da água e do espírito,
ele não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne, o que
nasce do espírito é espírito. Não vos espanteis do que vos digo, que é preciso
que nasceis de novo” (36). É preciso uma ignorância tão prodigiosa como a dos
espíritas para crer que pode se tratar da reencarnação, enquanto se trata do
“segundo nascimento”, entendido num sentido puramente espiritual, e que é mesmo
claramente oposto aqui ao nascimento corporal; esta concepção do “segundo
nascimento”, sobre a qual não insistiremos presentemente, é aliás daquelas que
são comuns a todas as doutrinas tradicionais, dentre as quais nenhuma, fora as
divagações dos “neo-espiritualistas”, jamais ensinou seja lá o que for que
lembre de perto ou de longe a reencarnação.
NOTAS
1.
Les Lumières et les Ombres du Spiritualisme, pgs.
118-141.
2. Le Livre des Esprits, pgs. 75 e 96.
3. Le Théosophisme, pgs. 88-90.
4. Traité méthodique de Science occulte, pgs. 296-297.
5. Ibid.,
pg. 341.
6. La Réincarnation, pgs. 42-43.
7. Le Livre des Esprits, pgs. 102-103
8. Après la mort, pgs. 164-166.
9. Traité méthodique de Science occulte, pg. 167.
10. La Réincarnation, pgs. 113 e 118..
11. Le Livre des Esprits, pg. 75.
12. Caberia aqui mencionar também
as concepções de certos cabalistas, que denominam-se “revolução das almas” e
“embrionato”; mas não falaremos disto aqui, porque nos levaria muito longe; de
resto, estas concepções só tem um alcance muito restrito, pois elas fazem
intervir condições que, por estranho que pareça, são totalmente próprias ao
povo de Israel.
13. Le Livre
des Esprits, pg. 96; cf. ibid.,
pgs. 262-264.
14. La Réincarnation, pg. 9. – Papus acrescenta: “Não se deve nunca confundir a
reencarnação e a metempsicose, pois o homem nunca volta atrás e jamais se torna
um espírito animal, salvo no plano astral, em estado genial, mas isto é ainda
um mistério”. Para nós, este pretenso mistério não existe: podemos dizer que se
trata do “gênio da espécie”, ou seja da entidade que representa o espírito, não
de uma individualidade, mas de uma espécie animal inteira; os ocultistas
pensam, de fato, que o animal não é como o homem um indivíduo autônomo, e que,
após a morte, sua alma retorna à “essência elemental” propriedade indivisível
da espécie. Segundo a teoria a que Papus se refere em termos enigmáticos, os
gênios das espécies seriam espíritos humanos chegados a um certo grau de
evolução e a quem esta função estava especialmente destinada; de resto, existem
“clarividentes” que pretendem haver visto gênios com a forma de homens com
cabeças de animais, como as figuras simbólicas dos antigos Egípcios. A teoria
em questão é inteiramente errada: embora o gênio da espécie seja uma realidade,
mesmo para a espécie humana, ele não é o que crêem os ocultistas, e não tem nada em comum com os espíritos dos homens
individuais; quanto ao “plano” em que ele se situa, ele não cabe nos quadros
convencionais do ocultismo.
15. La Réincarnation, pg. 6.
16. Alguns pensam que uma
transferência análoga pode operar-se para os elementos corporais mais ou menos
sutilizados, e assim consideram uma “metensomatose” ao lado da “metempsicose”;
seríamos tentados a supor, à primeira vista, que existe aí uma confusão em
atribuir erroneamente corporeidade ao elementos psíquicos inferiores; entretanto,
pode tratar-se realmente de elementos de origem corpórea, mas “psiquizados” de
certa forma, por esta transposição para o “estado sutil” cuja possibilidade já
assinalamos; o estado corporal e o estado psíquico, simples modalidades
diferentes de um mesmo estado de existência que é o da individualidade humana,
não podiam ser totalmente separados. Assinalaremos à atenção dos ocultistas o
que disse a respeito um autor que eles costumam citar sem conhecer, Keleph bem
Nathan (Dutoit-Membrini), em La Philosophie
Divine, tomo I, pgs. 62 e 191-193: entre declamações místicas vazias, este
autor mistura considerações muito interessantes. Aproveitaremos a ocasião para
corrigir um erro dos ocultistas, que apresentam Dutoit-Membrini como um
discípulo de Louis-Claude de Saint-Martin (foi Joanny Bricaud que fez esta
descoberta), enquanto que ao contrário ele expressou-se a respeito deste
em termos bastante desfavoráveis (ibid., tomo I, pgs, 245 e 345); haveria
um livro a escrever, e bem divertido, sobre a erudição dos ocultistas e sua
maneira de contar a história.
17. Guénon refere-se aqui às formas do Budismo Hinayana (“pequeno veículo”)
praticado sobretudo na península da Indochina, realmente um pouco heterodoxo, e
o único que então era conhecido na Europa (nota do tradutor).
18. A idéia da reencarnação em
diversos planetas não é particular aos “neo-espiritualistas”; esta concepção,
cara a Camille Flammarion, é também a de Louis Figuier (Le Lendemain de la Mort ou la Vie future selon la Science); é
curioso ver a que delírios extravagantes pode chegar uma ciência tão “positiva”
quanto se quer a astronomia moderna.
19. L’Eternité par les Astres.
20. Seria preciso criticar aqui
as definições que Leibnitz dá do espaço (ordem de coexistências) e do tempo
(ordem de sucessões); diremos apenas que ele estende dessa maneira estas noções
de modo abusivo, como aliás ele também faz com a noção de corpo.
21. São os pitris da tradição hindu.
22. Haveria ainda um terceiro
caso de exceção, mas de outra ordem: é o das “encarnações místicas voluntárias”
que se produziriam a cada seiscentos anos mais ou menos, ou seja ao fim de cada
um dos ciclos a que os Caldeus chamavam Naros,
mas sem que o mesmo espírito jamais se encarne assim mais do que uma vez, e sem
que haja sucessivamente duas encarnações na mesma raça; a discussão e a interpretação desta teoria
sairia completamente do nosso objeto.
23. Le Théosophisme, pgs. 97-99.
24. La Réincarnation, pg. 179; segundo o Dr. Rozier: Initiation, abril de 1898.
25. Magie et Religion.
26. La Réincarnation, pg. 171.
27. Le Livre des Esprits, pgs. 440-442.
28. L’Alliance Spiritualiste, julho de 1911.
29. Le Livre des Esprits, pgs. 105-107. – Cf. Léon Denis, Christianisme et Spiritisme ,pgs.
376-378. Ver também Les Messies esseniens
et l’Eglise orthodoxe, pgs. 33-35; esta obra é uma publicação da seita
auto-denominada “essênia” à que já fizemos alusão.
30. São Mateus, XVII, 9-15.- Cf. São Marcos, IX, 8-12; este texto só difere do outro
por não mencionar o nome de São João Batista.
31. La Réincarnation, pg. 170.
32. O outro personagem do Antigo
Testamento que se manifestou na transfiguração é Moisés, de quem “ninguém
conhece o sepulcro”; Enoch e Elias, que devem retornar “no final dos tempos”,
foram ambos “levados aos céus”; tudo isto não pode ser invocado como exemplos
de manifestação dos mortos.
33. São João, I, 21.
34. São Lucas, I, 17.
35. São João, IX, 1-3.
36. Ibid.,
III, 3-7.
VII
EXTRAVAGÂNCIAS
REENCARNACIONISTAS
Dissemos que a idéia de reencarnação contribui grandemente
para enlouquecer muita gente em nossa época; vamos mostrá-lo agora citando
exemplos das extravagâncias a que ela dá lugar, e isto será, após todas as
considerações metafísicas que tivemos que expor, uma diversão mais agradável; a
bem dizer, existe algo de triste no fundo no espetáculo de todas estas
bobagens, mas é bem difícil nos impedirmos de rir delas algumas vezes. A esse
respeito, o que mais se constata nos meios espíritas é uma megalomania de tipo
especial: estas pessoas se imaginam quase todas como a reencarnação de
personagens ilustres; já observamos que, a julgar pelas assinaturas das
“comunicações”, os grandes homens se manifestam muito mais do que os outros; é
preciso acreditar que eles se reencarnam também muito mais vezes, e mesmo
simultaneamente em múltiplos exemplares. Em suma, esse caso não difere muito da
megalomania vulgar senão sobre um ponto: em lugar de se crer grandes
personagens no presente, os espíritas reportam seu sonho doentio ao passado;
falamos dos espíritas porque eles são em maior número, mas existem também
teosofistas que não são menos imputáveis (já lemos que Leadbeater assegurava
gravemente que o coronel Olcott era a reencarnação dos reis Gushtasp e Ashoka)
(1). Existem também aqueles para quem o mesmo sonho se torna a esperança no
porvir, e é talvez essa uma das razões para que eles achem a reencarnação tão
“consoladora”; na seção dos ensinamentos da H.B.of L., da qual reproduzimos
alguns ensinamentos no capítulo precedente, é feita alusão a pessoas que
afirmam que “aqueles que viverem uma vida nobre e digna de um rei (mesmo que
seja no corpo de um mendigo), na sua última existência terrestre, reviverão
como nobres, reis e outros personagens de alta categoria”, e acrescenta-se com
muita justeza que “tais asserções são boas para provar que seus autores só
falam sob a inspiração do sentimentalismo, e que lhes falta o conhecimento”.
Os espíritas anti-reencarnacionistas dos países
anglo-saxões não deixaram de ironizar essas tolas imaginações: “Os partidários
dos devaneios de Allan Kardec, diz Dunglas Home, são recrutados sobretudo nas
classes burguesas da sociedade. É o consolo, desta brava gente que não é
ninguém, acreditar que tenham sido algum grande personagem antes de seu
nascimento e que serão ainda alguma coisa importante após a morte” (2). E em
outra parte: “Além da confusão revoltante a que esta doutrina conduz
logicamente (no concerne às relações familiares e sociais), existem
impossibilidades materiais que é preciso ter em conta, por mais entusiasta que
se queira ser. Uma senhora pode pretender o quanto quiser ter sido a
companheira de um rei ou de um imperador numa existência anterior. Mas como
conciliar as coisas se encontramos, como costuma acontecer, uma boa meia-dúzia
de senhoras, igualmente convencidas, que sustentam cada uma ter sido a
bem-amada esposa do mesmo augusto personagem? De minha parte, eu tive a honra
de encontrar ao menos doze Marias Antonietas, seis ou sete Marias Stuart, uma
quantidade de São Luís e outros reis, uma vintena de Alexandres e Césares, mas
nunca um simples João-Ninguém” (3). Por outro lado, existe também, sobretudo
entre os ocultistas, partidários da reencarnação que acreditaram dever
protestar contra o que eles vêem como “exageros” susceptíveis de comprometer
sua causa; assim, Papus escreve o seguinte: “Encontramos em certos meios
espíritas pobres diabos que pretendem friamente ser uma reencarnação de
Molière, de Racine ou de Richelieu, sem contar os poetas antigos, Orfeu ou
Homero. Não vamos discutir agora se estas afirmações tem uma base sólida ou se
são do domínio da alienação mental; mas lembremo-nos que Pitágoras, fazendo o
relato de suas encarnações anteriores, não se vangloriou de ter sido um grande
homem (4), e constatamos que é um modo singular de defender o progresso
incessante das almas ao infinito (teoria do espiritismo), este que consiste em
mostrar Richelieu tendo perdido todo traço de genialidade e Victor Hugo
componde versos de pé quebrado após sua morte. Os espíritas sérios e
instruídos, em número maior do que se pensa, deveriam vigiar para que tais
fatos não aconteçam mais” (5). Mais adiante, ele afirma: “Certos espíritas,
exagerando essa doutrina, consideram-se como a reencarnação de todos os grandes
homens um pouco conhecidos. Um bravo trabalhador é Voltaire reencarnado...
menos o espírito. Um capitão reformado, é Napoleão retornado de Santa Helena,
embora tenha perdido a arte de reerguer-se depois disto. Enfim, não há grupo
onde Maria de Medicis, Mme. de Maintenon, Maria Stuart, não tenham voltado nos
corpos de boas burguesas enriquecidas, e onde Turenne, Condé, Richelieu,
Mazarin, Molière, Rousseau, não dirijam alguma pequena sessão. Aí está o
perigo, a causa real do estágio estacionário do espiritismo após cinqüenta
anos; não é preciso buscar outra razão, além da ignorância e do sectarismo dos
chefes de grupo” (6). Em outra obra, mais recente, ele volta ao assunto: “O ser
humano que tem consciência deste mistério da reencarnação imagina logo o
personagem que ele deve ter sido, e, como por acaso, ele descobre sempre que
este personagem foi um homem considerável sobre a terra, e de uma alta posição.
Nas reuniões espíritas ou teosóficas, vemos muito poucos assassinos, bêbados,
antigos verdureiros ou criados de quarto (profissões honradas) reencarnados; é
sempre Napoleão, uma grande princesa, Luís XIV, Frederico o Grande, alguns
Faraós célebres, que se reencarnam na pele de pessoas que chegam a representar
terem sido os grandes personagens que elas imaginam. Isto seria uma punição
muito forte para os ditos personagens, voltar à terra em tais condições... O
orgulho é a grande pedra aonde tropeçam os partidários da doutrina da
reencarnação, tão nefasto como considerável. Se os grandes personagens da
história são reservados para reencarnar assim, é preciso reconhecer que os
adeptos desta doutrina conservam os assassinos, os grandes criminosos e os
grandes caluniadores para se reencarnar nos seus inimigos” (7). Para remediar o
mal que ele denuncia, eis o que Papus propõe: “Podemos ter a intuição de ter
vivido em tal época, d ter estado em tal meio, podemos ter a revelação, pelo
mundo dos espíritos, de ter sido uma grande dama contemporânea do grande
filosofo Abelardo, tão incompreendido de seus contemporâneos, mas não se pode ter a certeza do ser exato
que fomos sobre a terra” (8). Portanto, a grande dama em questão não será Heloísa,
e, se acreditamos termos sido tal pessoa célebre, é simplesmente porque vivemos
em seu círculo, talvez na qualidade de doméstica; existe aí, pensa
evidentemente Papus, como colocar um freio nas divagações causadas pelo
orgulho; mas não duvidamos que os espíritas se deixem persuadir tão facilmente
de que eles devem deixar as suas ilusões. Infelizmente também, existem outros
gêneros de divagações que não são menos dignas de piedade: esta prudência e
esta sabedoria, por sinal relativas, que Papus demonstra, não o impediram de
escrever, e ao mesmo tempo, coisas do tipo: “O Cristo possui um aposento (sic) que encerra milhares de espíritos.
Cada vez que um espírito do aposento de Cristo se reencarna, ele obedece na
Terra a seguinte lei: ele é o mais velho da família; seu pai se chama sempre
José; sua mãe se chama sempre Maria, ou o correspondente numérico destes nomes
em outras línguas. Enfim existe, no nascimento dos espíritos que vêm do
aposento do Cristo (não dizemos do próprio Cristo) aspectos planetários
peculiares que é inútil revelar aqui” (9). Sabemos perfeitamente a que tudo
isto pretende aludir; poderíamos contar toda a história destes “Mestre”,
pretensamente tal, que se diz ser “o mais velho espírito do planeta”, e o
“Chefe dos doze que passarão pela Porta do Sol, dois anos após a metade do
século”. Aqueles que se recusarem a reconhecer este “Mestre” se vêem ameaçados
de um “retardo de evolução”, que deve traduzir-se numa penalidade de trinta e
três reencarnações suplementares, nem uma a mais, nem a menos!
Entretanto, ao escrever as linhas que reproduzimos por
último, Papus já tinha a convicção de que ele não poderia contribuir para
moderar certas pretensões excessivas, pois ele acrescentava: “Por ignorar tudo
isto, uma multidão de visionários se querem a reencarnação do Cristo sobre a terra...
e a lista não está fechada”. Esta previsão era bem justificada: já contamos a
história dos Messias teosofistas, e existem muitos outros em meios parecidos;
mas o messianismo dos “neo-espiritualistas” é capaz de se revestir das formas
mais bizarras e mais diversas, fora destas “reencarnações do Cristo” de que um
dos protótipos foi o pastor Guillaume Monod. Não vemos como, a este respeito, a
teoria dos “espíritos do aposento de Cristo” seja menos extravagante do que as
outras; sabemos bem que papel deplorável ela desempenha na escola ocultista
francesa, e isto continua atualmente nos diversos agrupamentos que representam
hoje em dia os restos daquela escola. De outro lado, existe uma “vidente”
espírita, Mlle. Marquerite Wolff (podemos nomeá-la, pois a coisa tornou-se
pública), que recebeu de seu “guia”, nos últimos tempos, a missão de anunciar a
“próxima reencarnação de Cristo na França”; ela mesma se acreditava a
reencarnação de Catarina de Médicis reencarnada (sem falar de algumas centenas
de outras existências anteriores sobre a terra e alhures, e das quais ela tinha
a lembrança mais ou menos precisa), e publicou uma lista de mais de duzentas
“reencarnações célebres”, na qual ela mostrava “o que os grandes homens de hoje
foram no passado”; eis aí um caso de patologia bastante espetacular (10).
Existem também espíritas que tem concepções messiânicas de um tipo totalmente
diferente: já lemos outrora, numa revista espírita estrangeira (não pudemos
encontrar a referência exata) um artigo cujo autor criticava com justiça
aqueles que, ao anunciarem para um tempo próximo a “segunda vinda” do Cristo, a
apresentavam como devendo ser uma reencarnação; mas era para declarar na
seqüência que, se ele não admitia esta tese, é porque o retorno do Cristo já
havia se cumprido... pelo espiritismo: “Ele já veio, pois, em alguns centros,
registramos suas comunicações”. Verdadeiramente, é preciso ter uma fé bem
robusta para crer assim que o Cristo e seus Apóstolos manifestam-se nas sessões
espíritas e falam pelos órgãos dos médiuns, sobretudo quando vemos a qualidade das inumeráveis
“comunicações” que lhes são atribuídas (11). Existem por outro lado, em alguns
círculos norte-americanos, “mensagens” onde Apolônio de Tiana declara, apoiando-se
sobre diversos “testemunhos”, que ele próprio foi “o Jesus e o São Paulo das
Escrituras cristãs”, e talvez também São João, e que ele pregou os Evangelhos,
cujos originais lhe foram entregues por Budistas; podemos encontrar a algumas
destas “mensagens” no fim do livro de Henry Lacroix (12). Fora do espiritismo,
existe também uma sociedade secreta anglo-americana que ensina a identidade de
São Paulo e Apolônio, pretendendo que a prova encontra-se “num pequeno
manuscrito conservado num mosteiro na região central da França”; existem muitas
razões para pensar que esta fonte é puramente imaginária, mas a concordância
desta história com as “comunicações” espíritas de que falamos torna a origem
destas extremamente suspeita, pois ela permite pensar que existe mais coisa aí
do que um produto do “subconsciente” de dois ou três desequilibrados (13).
Existe ainda, em Papus, outras histórias que valem quase
tanto quanto a dos “espíritos do aposento do Cristo”; citemos um exemplo:
“Assim como existem cometas que vêm trazer força ao sol fatigado e que circulam
entre os diversos sistemas solares, existem também enviados cíclicos que vêm em
certos períodos sacudir a humanidade mergulhada nos prazeres ou apática por uma
quietude muito prolongada (...) Dentre estas reencarnações cíclicas, que vêm
sempre do mesmo lugar do invisível, senão do mesmo espírito, citaremos a
reencarnação que tanto espanta os historiadores: Alexandre, César, Napoleão.
Cada vez que um espírito deste plano chega, ele transforma bruscamente todas as
leis da guerra; qualquer que seja o povo colocado à sua disposição, ele o
dinamiza e faz dele um instrumento de conquista contra o qual ninguém pode
lutar (...) Em sua próxima vinda, este espírito encontrará meios de evitar a
morte de dois terços de seus efetivos nos combates, pela criação de um sistema
defensivo que revolucionará as leis da guerra” (14). A data desta próxima vinda
não é indicada, mesmo aproximadamente, o que é uma pena; mas talvez devamos
louvar Papus por ser tão prudente nas circunstâncias, pois, cada vez que ele se
meteu a fazer profecias um pouco mais precisas, os acontecimentos, por uma
inacreditável maldade, jamais deixaram de lhe dar um desmentido categórico. Mas
eis aqui um outro “aposento” que ele traz ao nosso conhecimento: “É ainda a
França (ele acabava de falar de Napoleão)
que teve a honra de encarnar muitas vezes uma enviada celeste dos
aposentos da Virgem de Luz, unindo à fraqueza da mulher a força do anjo
encarnado. Santa Genoveva forma o núcleo da nação francesa. Joana d’Arc salva
esta nação no momento em que, logicamente, nada mais há a fazer” (14). E, a
propósito de Joana d’Arc, ele não pode deixar escapar a ocasião para uma
pequena declaração anti-clerical e democrática: “A Igreja Romana é hostil a
todos os enviados celestes, e foi preciso a formidável voz do povo para
reformar a sentença dos juízes eclesiásticos que, cegados pela política,
martirizaram a enviada do Céu” (15). Se Papus faz Joana d’Arc vir do “aposento
da Virgem de Luz”, houve outrora na França uma seita, principalmente espírita
no fundo, que se intitulava “essênia” (esta denominação faz muito sucesso em
todos os meios do gênero), que a via como “Messias feminino”, igual ao próprio
Cristo, enfim como o “Consolador celeste” e o “Espírito da Verdade anunciado
por Jesus” (16); e parece que certos espíritas chegaram a considerá-la como uma
reencarnação do Cristo em pessoa (17).
Mas passemos a outro tipo de extravagâncias a que a idéia
de reencarnação dá igualmente lugar: trata-se das relações que espíritas e
ocultistas supõem entre as existências sucessivas; para eles, de fato, as ações
cumpridas no decurso de uma vida devem ter conseqüências nas vidas seguintes.
Está aí uma causalidade de uma espécie bastante particular: mais exatamente,
trata-se da idéia de sanção moral, mas que, ao invés de ser aplicada a uma
“vida futura” extra-terrestre como acontece com as concepções religiosas,
acha-se ligada às vidas terrestres devido à asserção, no mínimo contestável, de
que as ações cumpridas sobre a terra devem ter seus efeitos exclusivamente
sobre a terra; o “Mestre” a que aludimos ensinava expressamente que “no mundo
em que contraímos dívidas, nele teremos de pagá-las”. É a esta “causalidade
ética” que os teosofistas deram o nome de karma
(completamente fora de propósito, pois esta palavra, em sânscrito, não significa
outra coisa do que “ação”); em outras escolas, se a palavra não se encontra
(embora os ocultistas franceses, malgrado sua hostilidade para com os
teosofistas, a empreguem bastante), a concepção permanece no fundo a mesma, e
as variações só atingem pontos secundários. Quando se trata de indicar com
precisão as conseqüências futuras de uma determinada ação, os teosofistas se
mostram bastante reservados; mas espíritas e ocultistas rivalizam para ver quem
dá a respeito os detalhes mais minuciosos e mais ridículos; por exemplo, a
acreditar em alguns, se alguém trata mal seu pai, renascerá com um defeito na
perna direita; se tratar mal sua mãe, será da perna esquerda, e assim por
diante. Existem outros que colocam, em certos casos, as enfermidades desse tipo
na conta de acidentes ocorridos nas existências anteriores; conhecemos um
ocultista que, sendo manco, acreditava firmemente que era devido ao fato de, em
sua vida precedente, ter quebrado a perna ao saltar de uma janela quando
tentava fugir das prisões da Inquisição. É inacreditável até onde pode chegar o
perigo desta sorte de coisas: é cotidiano, sobretudo nos meios ocultistas,
ensinar a alguém ter ele cometido outrora tal ou tal crime, devendo portanto
apressar-se em “pagá-lo” na sua vida atual; acrescenta-se ainda que a pessoa
não deve fazer nada para escapar ao castigo que o atingirá cedo ou tarde, e que
este será cada vez maior, quanto mais for postergado. Debaixo de tal sugestão,
o infeliz correrá em busca do suposto castigo, e mesmo irá se esforçar para
provocá-lo; se se tratar de um fato cujo cumprimento dependa da sua vontade, as
coisas mais absurdas não farão recuar quem chegou a um tal ponto de credulidade
e fanatismo. O “Mestre” (sempre o mesmo) havia persuadido um dos seus
discípulos que, em razão de alguma obscura ação cometida numa outra encarnação,
ele deveria esposar uma mulher cuja perna esquerda houvesse sido amputada; o
discípulo (que aliás era um engenheiro, portanto uma pessoa que deveria ter um
certo grau de inteligência e instrução) fez anunciar em diversos jornais
procurando uma pessoa que preenchesse a condição requerida, e acabou
encontrando-a de fato. É apenas um caso em meio a tantos, e só o mencionamos
porque ele é característico da mentalidade dessas pessoas; mas existem os que
podem ter resultados mais trágicos, e soubemos de um outro ocultista que,
desejando uma morte acidental que o libertaria de uma karma pesado, adotou simplesmente o hábito de não fazer nada para
evitar os automóveis que encontrava em seu caminho; se ele não chegou a se
atirar sob as rodas de um, é porque ele deveria morrer por acidente e não por
suicídio que, em lugar de aliviar-lhe o karma,
iria ao contrário agravá-lo. Não se imagine que estamos exagerando; essas
coisas não se inventam, e a puerilidade de certos detalhes é, para quem conhece
esses meios, uma garantia de autenticidade; de resto, caso houvesse
necessidade, poderíamos dar os nomes das pessoas a quem aconteceram tais
aventuras. Só podemos lamentar as pessoas que são vítimas de semelhantes sugestões;
mas que pensar dos responsáveis pela sua autoria? Se eles estão de má-fé,
merecem ser denunciados como verdadeiros malfeitores; se são sinceros, o que é
possível em muitos casos, devem ser tratados como loucos perigosos.
Quando essas coisas permanecem no domínio da simples
teoria, elas não passam de serem grotescas: como exemplo, bem conhecido entre
os espíritas, temos o caso da vítima que persegue até outra vida a vingança
sobre seu matador; o assassinado de outrora torna-se agora o assassino, e o matador,
tornado vítima, deverá vingar-se por sua vez em uma outra existência... e assim
indefinidamente. Um outro exemplo do mesmo gênero é o do cocheiro que atropela
um transeunte; como punição, pois a “justiça” póstuma dos espíritas estende-se
mesmo ao homicídio por imprudência, este cocheiro, tornado pedestre na vida
seguinte, será atropelado pelo transeunte que terá se tornado cocheiro; mas
logicamente, este, cujo ato não difere do primeiro, deverá em seguida sofrer a
mesma punição, sempre em função da vítima, de sorte que estes dois infelizes
indivíduos serão obrigados a atropelar-se alternativamente um ao outro até o
fim dos séculos, porque não há evidentemente nenhuma razão para que isto pare
em algum ponto; pergunte-se a Gabriel Dellane o que ele acha deste raciocínio.
Ainda sobre este ponto, existem outros “neo-espiritualistas” que não ficam nada
a dever aos espíritas, e chegamos a ouvir de um ocultista com tendências
místicas a seguinte história, como exemplo das conseqüências temíveis que podem
trazer alguns atos geralmente considerados como indiferentes: um escolar
diverte-se quebrando uma pena de escrever, depois a joga fora; as moléculas do
metal guardarão, através de todas as transformações que irá sofrer, a lembrança
da maldade com que foi tratada por aquela criança; finalmente, após alguns
séculos, estas moléculas passarão para o mecanismo de uma máquina qualquer, e,
um dia, um acidente irá se produzir, e um trabalhador irá morrer nesta máquina;
ora, encontraremos então que este trabalhador será aquele escolar, que se
reencarnou para sofrer o castigo de seu ato anterior. Seria difícil imaginar
qualquer coisa de mais extravagante do que tais histórias fantásticas, que
bastam para dar uma justa idéia da mentalidade daqueles que as inventam, e sobretudo
daqueles que crêem nelas.
Nessas histórias, como se vê, quase sempre se trata de
castigos; isto pode parecer surpreendente entre pessoas que se vangloriam de
ter uma doutrina “consoladora” acima de tudo, mas é sem dúvida o que há de mais
apropriado para chocar as imaginações. No demais, como vimos, deve-se esperar
recompensas para o amanhã; mas quanto a saber o que, na vida presente, é a
recompensa de tal ou tal boa ação cumprida no passado, parece que isto teria o
inconveniente de poder gerar sentimentos de orgulho; seria talvez menos
funesto, depois de tudo, do que aterrorizar as pobres pessoas com o “pagamento”
de “dívidas’ imaginárias. Acrescentemos que também podemos ver algumas vezes
conseqüências mais inofensivas: é assim que Papus assegura que “é raro que um
ser espiritual reencarnado sobre a terra não seja levado, por circunstâncias
aparentemente fortuitas, a falar, além da sua língua atual, a língua do país em
que se deu sua última encarnação” (19); ele acrescenta que “é uma marca
interessante a se controlar”, mas, infelizmente, ele não indica por que meios
chegar a isto. Mas como citamos outra vez Papus, não esqueçamos, pois é uma
curiosidade digna de nota, que ele ensinava (embora acreditamos que ele não
tenha ousado escrever isto) que se pode às vezes reencarnar antes de estar
morto: ele reconhecia que este era um caso excepcional, mas ele apresentava um
quadro de um avô e seu neto que possuíam um só e mesmo espírito, que se
encarnaria progressivamente na criança (esta é de fato a teoria dos ocultistas,
que precisam que a encarnação só se completa ao final de sete anos) na medida
em que o ancião iria se enfraquecendo. De resto, a idéia de que se pode
reencarnar em sua própria descendência lhe era particularmente cara, porque ele
via nisto um modo de justificar, de seu ponto de vista, as palavras com as
quais “o Cristo proclama que o pecado pode ser punido até a sétima geração”
(20); a concepção daquilo que poderíamos chamar de uma “responsabilidade
hereditária” parece ter-lhe escapado completamente, e no entanto, mesmo
fisiologicamente, este é um fato inconteste. A partir do momento em que o
indivíduo humano recebe de seus pais certos elementos corporais e psíquicos,
ele os prolonga de certo modo parcialmente sob este duplo aspecto, e ele é verdadeiramente
alguma coisa deles assim como é ele próprio, e assim as conseqüências das suas
ações podem estender-se até ele; é deste modo, ao menos, que podemos exprimir
as coisas despojando-as de todo caráter especificamente moral. Inversamente,
podemos dizer ainda que a criança, e mesmo todos os descendentes, estão
potencialmente incluídos desde a origem na individualidade dos pais, sempre sob
o duplo aspecto corporal e psíquico, ou seja, não naquilo que concerne ao ser
propriamente espiritual e pessoal, mas no que constitui a individualidade
humana enquanto tal; e assim a descendência pode ser vista como tendo
participado, de certa maneira, nas ações dos pais, sem entretanto existir ainda
em modo atual em estado individualizado. Indicamos dois aspectos complementares
da questão; não nos deteremos nisso agora, mas talvez estas indicações bastem
para que alguns leitores possam entrever todo o partido que se pode tirar da
teoria do “pecado original”.
Os espíritas, precisamente, protestam contra esta idéia do
“pecado original”, em primeiro lugar porque ela choca sua concepção particular
de justiça, e também porque ela tem conseqüências contrárias à sua teoria
“progressista”; Allan Kardec não quer ver nela mais do que uma expressão do fato de que “o homem veio sobre a terra,
portando em si o germe das paixões e os traços de sua inferioridade primitiva”,
de modo que, para ele, “o pecado original provém da natureza imperfeita do
homem, que assim só é responsável por si mesmo e por suas faltas, e não por
aquelas de seus pais”; tal é ao menos, a este respeito, o ensinamento q eu ele
atribui ao “espírito” de São Luís (21). Léon Denis exprime-se em termos mais
precisos, e também mais violentos: “O pecado original é o dogma fundamental
sobre o qual repousa todo o edifício dos dogmas cristãos. Idéia verdadeira no
fundo, mas falsa na forma e desnaturada pela Igreja. Verdadeira no sentido que
o homem sofre pela intuição que ele conserva das faltas cometidas nas suas
vidas anteriores, e pelas conseqüências que elas trazem para ele. Mas este
sofrimento é pessoal e merecido. Ninguém é responsável pelas faltas de outrem,
se não participar delas. Apresentado sob um aspecto dogmático, o pecado
original, que pune toda a posteridade de Adão, vale dizer a humanidade inteira,
pela desobediência do primeiro casal, para em seguida salvá-la por meio de uma
iniqüidade ainda maior, a imolação de um justo, é um ultraje à razão e à moral,
consideradas em seus princípios essenciais: a bondade e a justiça. Ela fez mais
para afastar o homem da crença em Deus do que todos os ataques e as críticas da
filosofia” (22). Poderíamos perguntar ao autor se a transmissão de uma doença
hereditária não é igualmente, segundo seu modo de ver, “um ultraje à razão e à
moral”, o que não o impede de ser um fato real e corriqueiro (23); poderíamos
perguntar-lhe também se a justiça, entendida no sentido humano (e é bem assim
que ele a entende, pois sua concepção de Deus é totalmente antropomórfica e
“antropopática”), pode consistir em algo diferente do que “compensar uma
injustiça com outra injustiça”, como dizem os Chineses; mas, no fundo,
declarações deste gênero não merecem a menor discussão. O que é mais
interessante, é notar aqui um procedimento habitual nos espíritas, e que consiste em pretender
que os dogmas da Igreja, e também as diversas doutrinas da antigüidade, são uma
deformação de suas próprias teorias; eles esquecem apenas que estas são de
invenção totalmente moderna, e isto eles tem em comum com os teosofistas, que
apresentam sua doutrina como “a fonte de todas as religiões”; Léon Denis não
chegou a declarar formalmente que “todas as religiões, em sua origem, repousam
sobre fatos espíritas e não tem outra fonte do que o espiritismo” (24)? No caso
atual, a opinião dos espíritas, é que o pecado original é uma representação das
faltas cometidas nas vidas anteriores, representação cujo verdadeiro sentido
evidentemente só pode ser compreendido por aqueles que, como eles, acreditam na
reencarnação; é pena, para a solidez desta tese, que Allan Kardec seja um pouco
posterior a Moisés!
Os ocultistas dão interpretações sobre o pecado original e
a queda do homem que, se não são melhor fundamentadas, são ao menos mais sutis
nem geral: existe uma que não podemos deixar de assinalar aqui, porque ela se
liga diretamente à teoria da reencarnação. Esta explicação pertence a um
ocultista francês, estranho à escola papusiana, e que reivindica apenas para si
a qualificação de “ocultista cristão” (ainda que os outros tenham também a
pretensão de ser cristãos, a menos de quando se dizem “crísticos”); uma das
suas particularidades é que, rindo-se a propósito dos triplos e sétuplos
sentidos dos esoteristas e dos cabalistas, ele pretende se ater à interpretação
literal das Escrituras, o que não o impede, como veremos, de acomodar esta
interpretação às suas concepções pessoais. É preciso saber, para compreender
sua teoria, que este ocultista é partidário do sistema geocêntrico, no sentido
em que ele vê a terra como centro do Universo, senão materialmente, ao menos
por um certo privilégio no que concerne à natureza dos seus habitantes (25):
para ele, a terra é o único mundo aonde existem seres humanos, porque as
condições de vida sobre outros planetas ou em outros sistemas são muito
diferentes das da terra para que um homem possa adaptar-se a elas, donde
resulta manifestamente que, por “homem”, ele entende exclusivamente um
indivíduo corporal, dotado dos cinco sentidos que conhecemos das faculdades
correspondentes, e de todos os órgãos necessários às diversas funções da vida
humana terrestre. Por conseguinte, os homens só podem se reencarnar sobre a
terra, pois não há nenhum lugar no Universo onde lhe seja possível viver (não é
preciso dizer que nisto tudo não se cogita em sair da condição espacial), e que
além disso eles permanecem sempre homens ao se reencarnar; acrescenta-se que
mesmo uma mudança de sexo é impossível. Na origem, o homem, “saindo das mãos do
Criador” (as expressões mais antropomórficas devem ser tomadas aqui ao pé da
letra, e não como os símbolos que elas são na realidade), foi colocado na terra
para “cultivar seu jardim”, ou seja, ao que parece, para “evoluir a matéria
física”, supostamente mais sutil então do que agora. Por “homem”, é preciso
entender a coletividade humana inteira, a totalidade do gênero humano, vista
como a soma de todos os indivíduos (observe-se esta confusão da noção de
espécie com a de coletividade, que é muito comum também entre os filósofos
modernos), de tal sorte que “todos os homens”, sem nenhuma exceção, foram
inicialmente encarnados sobre a terra ao mesmo tempo. Não é a opinião das
outras escolas, que muitas vezes falam das “diferentes idades dos espíritos
humanos” (sobretudo aqueles que tiveram o privilégio de conhecer “o mais velho
espírito do planeta”), e mesmo dos meios de as determinar, principalmente pelo
exame dos “aspectos planetários” do horóscopo; mas deixemos isto para lá. Nas
condições que descrevemos, não poderia evidentemente produzir-se nenhum
nascimento, pois não haveria nenhum homem não encarnado, e isto prosseguiu até
que o primeiro homem morresse, ou seja até a queda, na qual todos tiveram que
participar em pessoa (este é o ponto essencial da teoria), e que é considerada
como “podendo representar toda uma série
de acontecimentos que se desenrolaram durante um período de muitos séculos”;
mas evita-se prudentemente pronunciar-se sobre a exata natureza destes
acontecimentos. A partir da queda, a matéria física tornou-se mais grosseira,
suas propriedades foram modificadas, ela foi submetida à corrupção, e os
homens, aprisionados nesta matéria, começaram a morrer, a “desencarnar-se”; em
seguida, eles começaram igualmente a nascer, pois estes homens “desencarnados”,
soltos “no espaço” (vemos como a influência do espiritismo é presente nisto
tudo), ou na “atmosfera invisível” da terra, tendiam a se reencarnar, a retomar
a vida terrestre em novos corpos humanos, em suma, a regressar à sua condição
normal. Assim, segundo esta concepção, são sempre os mesmos seres humanos que
devem renascer periodicamente do começo ao fim da humanidade terrestre
(admitindo que a humanidade terrestre tenha um fim, pois existem também escolas
segundo as quais o fim que ela deve atingir é o de entrar na posse da
“imortalidade física” ou corporal, e cada um dos indivíduos que a compõem se
reencarnará sobre a terra até chegar finalmente a este resultado. Certamente,
todo este raciocínio é simples e perfeitamente lógico, mas com a condição de
que se admita inicialmente o ponto de partida, e especialmente de que se admita
a impossibilidade para o ser humano de existir em outras modalidades diferentes
da forma corporal terrestre, o que de modo algum é conciliável com as noções
mais elementares da metafísica; parece no entanto, ao menos no dizer do autor,
que este é o argumento mais sólido que se pode fornecer em apoio à hipótese da
reencarnação (26)!
Podemos nos deter aqui, porque não temos a intenção de
esgotar a lista dessas excentricidades; já dissemos o bastante para que se
possa compreender tudo o que a idéia reencarnacionista tem de inquietante para
o estado mental de nossos contemporâneos. Não se deve ficar espantado por
termos tomado exemplos fora do espiritismo, pois é dele que esta idéia foi
emprestada por todas as demais escolas que a ensinam; é portanto sobre o
espiritismo que recai, ao menos indiretamente, a responsabilidade por essa
estranha loucura. Enfim, pedimos desculpas por havermos, no que precede,
omitido a indicação de alguns nomes; não queremos fazer polêmica, e se podemos
certamente citar sem inconvenientes, com apoio de referências, tudo o que um
autor publicou sob sua assinatura, ou mesmo sob um pseudônimo qualquer, o caso
muda quando se trata de coisas que não foram escritas; mas se formos obrigados
algum dia a fornecer maiores precisões, não hesitaremos em fazê-lo em prol da
verdade, e apenas as circunstâncias determinarão nossa conduta a esse respeito.
NOTAS
1. Le Théosofisme, pg. 105.
2.
Les Lumières et les Ombres du Spiritualisme, pg.
111.
3. Ibid.,
pgs. 124-125.
4. Isto não passa da confusão
comum entre a metempsicose e a reencarnação.
5. Traité méthodique de Science occulte, pg. 297.
6. Ibid.,
pg. 342.
7. La Réincarnation, pgs. 138-139 e 142-143.
8. Ibid.,
pg. 141.
9. Ibid.,
pg. 140.
10. Esta empreita teve um triste
fim: caída em mãos de escroques que a exploraram odiosamente, a infeliz está
hoje, ao que parece, completamente desiludida de sua “missão”.
11. Uma revista espírita
bastante independente que era publicada em Marselha, sob o título de La Vie Posthume, publicou outrora um
divertido relato de uma sessão “espírita pietista” em que se manifestaram São
João, Jesus Cristo e Allan Kardec; Papus reproduziu este relato, não sem alguma
malícia, em seu Traité méthodique de
Science occulte, pgs. 332-339. – Mencionemos também, a propósito, que os
“prolegômenos” do Livro dos Espíritos
trazem as seguintes assinaturas: São João Evangelista, Santo Agostinho, São
Vicente de Paula, São Luís, Espírito da Verdade, Sócrates, Platão, Fenelon,
Franklin, Swedenborg, etc., etc.; não existe aí o bastante para tornar
desculpáveis os “exageros” de alguns discípulos de Allan Kardec?
12. Mes expériences avec les esprits, pgs. 259-280. – Os “testemunhos” são Caifás,
Pôncio Pilatos, o procônsul Felix, o gnóstico Marcion (suposto São Marcos),
Luciano (suposto São Lucas), Damis, biógrafo de Apolônio, o papa Gregório VII,
e enfim uma certa Deva Bhodastuata, personagem imaginário que se apresentava
como o “vigésimo sétimo profeta a partir de Buda”; parece que muitos deles
tomaram como intérprete o “espírito” de Faraday!
13. A sociedade secreta de que
se trata denominava-se, de modo muito enigmático, “Ordem S.S.S. e Fraternidade
Z.Z.R.R.Z.Z.”; ele esteve em hostilidade declarada com a H.B. of L.
14. La
Réincarnation, pgs. 155-159.
15. Ibid.,
pg. 160.
16. Ibid.,
pg. 161.
17. Haveriam coisas curiosas a
serem ditas sobre esta seita, que era de um anti-catolicismo feroz; as
fantasias pseudo-históricas de Jacolliot eram tidas em grande honra aí, e
tentava-se sobretudo “naturalizar” o Cristianismo; já dissemos a respeito
alguma coisa, a propósito do papel que os teosofistas atribuem aos antigos
Essênios (Le Théosofisme, pg. 194).
18. Les Messies esséniens et L' Église orthodoxe, pg. 319).
19. La Réincarnation, pgs. 135.
20. Ibid.,
pg. 35. – Esta frase parece não ter nenhuma relação com o resto da passagem na
qual ela está intercalada, mas sabemos que se tratava do pensamento de Papus sobre
este ponto (cf. ibid., pgs. 103-105).
21. Le Livre des Esprits, pgs. 446-447.
22. Christianisme et Spiritisme, pgs. 93-96.
23. Apesar de Léon Denis (ibid., pgs. 97-98), não é necessário ser
materialista para admitir a hereditariedade; mas o espíritas, pelas necessidades
de sua tese, não hesitam em negar a
própria evidência. – Gabriel Delanne, ao contrário, admite a hereditariedade
numa certa medida (L‘Evolution animique,
pgs. 287-301).
24. Discurso pronunciado no
Congresso espírita de Genebra em 1913.
25. Outros ocultistas, que tem
concepções astronômicas muito especiais, chegam a sustentar que a terra é,
mesmo materialmente, o centro do Universo.
26. Isto já estava escrito,
quando soubemos da morte do ocultista a quem fizemos alusão; podemos assim
dizer que é do Dr. Rozier que se trata neste parágrafo.
VIII
OS LIMITES DA
EXPERIMENTAÇÃO
Antes de deixarmos a questão da reencarnação, resta-nos
ainda falar das pretensas “provas experimentais”; certamente, quando uma coisa
é demonstrada impossível, como é o caso, todos os fatos que podem ser invocados
em seu favor são perfeitamente insignificantes, e podemos estar certos de
antemão que estes fatos estão mal interpretados; mas às vezes é interessante e
útil colocar essas coisas, e iremos encontrar aí um bom exemplo das fantasias pseudo-científicas
a que se dedicam os espíritas e mesmo alguns psiquistas que se deixam, sem o
saber, contagiar-se pouco a pouco pelo “neo-espiritualismo”. Em primeiro lugar,
lembraremos e precisaremos melhor o que dissemos antes sobre o caso que se apresenta
como caso de reencarnação, em razão de
um pretenso “despertar de recordações” que se produz espontaneamente; quando
eles são reais (pois existem também os que são no mínimo muito mal controlados,
e que os autores que se ocupam destes assuntos repetem um após outro sem se dar
ao trabalho de verificá-los), trata-se de simples casos de metempsicose, no
verdadeiro sentido do termo, ou seja a transmissão de certos elementos
psíquicos de uma individualidade a outra. O mesmo acontece com outros casos
mais próximos: assim, acontece às vezes que uma pessoa sonha com um lugar que
ela não conhece, e em seguida, estando pela primeira vez em um país mais ou
menos distante, encontre ali tudo o que havia visto como que por antecipação;
se ela não guardou uma lembrança claramente consciente do sonho, e se no
entanto este reconhecimento se produz, admitindo que a pessoa acredite na
reencarnação, ela pode imaginar haver aí uma reminiscência de uma existência
anterior; é assim que muitos casos podem ser explicados, ao menos aqueles em
que os lugares reconhecidos não evoquem a idéia de um acontecimento preciso.
Esses fenômenos, que podemos ligar à classe dos chamados “sonhos
premonitórios”, são longe de serem raros, mas aqueles a quem isto acontece
costumam evitar comentar o assunto, por medo de passar por “alucinados” (outra
palavra muito usada e que não explica nada no fundo), coisa que também acontece
com casos de “telepatia” e outros do gênero; eles colocam em jogo alguns
prolongamentos obscuros da individualidade, que pertencem ao domínio do
“subconsciente”, e cuja existência se explica mais facilmente do que parece. De
fato, um ser qualquer deve trazer em si certas virtualidades que são como que o
germe de todos os eventos que lhe acontecerão, pois estes eventos, na medida em
que representam estados secundários ou modificações de si mesmo, devem ter na
sua natureza seu princípio e sua razão de ser; este é um ponto que Leibnitz,
único dentre os filósofos modernos, viu bem, embora sua concepção seja falseada
pela idéia de que o indivíduo é um ser completo e uma espécie de sistema
fechado. Admite-se normalmente a existência, desde a origem, de tendências ou
predisposições de diversas ordens, tanto psicológicas como fisiológicas; não
vemos porque seja assim apenas com algumas coisas, dente todas as que se
realizarão ou se desenvolverão no futuro, enquanto que as outras não teriam
nenhuma correspondência no estado presente do ser; se se disser que existem
eventos que não tem mais do que um caráter puramente acidental, replicaremos
que este modo de ver implica uma crença no acaso, que é a mesma coisa que a
negação do princípio da razão suficiente. Reconhece-se sem dificuldade que todo
evento passado que afetou um ser, por pouco que seja, deixe nele algum traço,
mesmo orgânico (sabemos que certos psicólogos pretendem explicar a memória por
um suposto “mecanismo” fisiológico), mas parece ser difícil conceber que haja,
sob este aspecto, uma espécie de paralelismo entre o passado e o futuro; isto
provém simplesmente da dificuldade em perceber a relatividade da condição
temporal. Haveria, a este respeito, toda uma teoria a expor, e que poderia dar
lugar a longos desenvolvimentos; mas basta-nos assinalar que existem
possibilidades que não devem ser negligenciadas, ainda que seja complicado
enquadrá-la dentro dos campos da ciência comum, que só se aplicam a uma pequena
porção da individualidade humana e do mundo onde ela se desenvolve; que
aconteceria se fosse preciso ultrapassar o domínio desta individualidade?
Quanto aos casos que não podem ser explicados da forma
precedente, são principalmente aqueles em que a pessoa que reconhece o lugar
onde nunca esteve tem também a idéia mais ou menos clara de ter aí vivido, ou
ter-lhe aí sucedido tal ou tal evento, ou ainda de ter aí morrido (no mais das
vezes, de morte violenta); ora, nos casos em que se pode proceder algumas
verificações, constatou-se que aquilo que a pessoa acredita ter acontecido a si
ocorreu efetivamente neste lugar a algum de seus ancestrais mais ou menos
distantes. Existe um exemplo muito claro desta transmissão hereditária de
elementos psíquicos de que falamos: poderíamos designar os fatos deste gênero
sob o nome de “memória ancestral”, e os elementos que assim se transmitem são
de fato, em boa parte, da esfera da memória. O que á primeira vista é singular,
é que esta memória pode não se manifestar senão após muitas gerações; mas
sabemos que o mesmo acontece com as semelhanças físicas, e também com algumas
doenças hereditárias. Podemos muito bem admitir que, durante o intervalo, a
lembrança permaneceu em estado latente e “subconsciente”, aguardando uma
condição favorável para manifestar-se; se a pessoa em quem o fenômeno se produz
não fosse ao local evocado, esta lembrança permaneceria muito tempo ainda a
conservar-se, sem tornar-se claramente consciente. De resto, o mesmo acontece
para tudo o que, na memória, pertence propriamente ao indivíduo: tudo se
conserva, pois tudo tem, de modo permanente, a possibilidade de reaparecer,
mesmo o que parece mais esquecido e o que é mais insignificante em aparência,
como vemos em certos casos mais ou menos anormais; mas, para que tal lembrança
determinada reapareça, é preciso que as circunstâncias se prestem a isto, de
sorte que existem muitas que jamais chegam ao campo da consciência clara e
distinta. O que acontece no domínio das predisposições orgânicas é exatamente
análogo: um indivíduo pode trazer em si, em estado latente, tal ou tal doença,
como o câncer por exemplo, mas esta doença não se desenvolverá senão sob a ação
de um choque ou de um enfraquecimento do organismo; se estas circunstâncias não
advém, a doença não se desenvolverá jamais, mas nem por isso seu germe deixará
de existir real e presentemente no organismo, assim como uma tendência
psicológica que não se manifesta por nenhum ato exterior tampouco deixa de ser
real em si mesma por causa disto. Agora, devemos acrescentar que, como não
existem circunstâncias fortuitas, e que mesmo uma tal suposição é desprovida de
sentido (não é porque ignoramos a causa
de uma coisa, que esta causa não existe), deve haver uma razão para que a
“memória ancestral” se manifeste num indivíduo ao invés de em qualquer outro
membro da mesma família, assim como deve
haver um motivo para que uma pessoa se pareça fisicamente a um dado ancestral e
não a outro, e mesmo a seus parentes imediatos. É aqui que é preciso fazer
intervir as leis da “afinidade” que mencionamos mais acima; mas seríamos
levados muito longe se quiséssemos explicar como uma individualidade pode estar
ligada mais especialmente a uma outra, tanto mais que os laços deste gênero não
são forçosamente hereditários em todos os casos, e que, por estranho que
pareça, eles podem existir entre um ser humano e seres não humanos; e ainda,
além dos laços naturais, podem ser criados outros por procedimentos que são do
domínio da magia, e mesmo da magia mais inferior. Sobre este ponto, como sobre
tantos outros, os ocultistas deram as explicações mais fantasistas: é assim que
Papus escreve: “O corpo físico pertence a uma família animal da qual vieram (sic) a maior parte de suas células, após
uma evolução ancestral. A transformação evolutiva dos corpos se faz no plano
astral; existem assim corpos humanos que se ligam por sua forma fisionômica,
seja ao cão, seja ao macaco, seja ao lobo, seja mesmo a pássaros e peixes. Esta
é a origem secreta dos totens das raças vermelha e negra” (1). Nós confessamos
não compreender o que pode ser uma “evolução astral” de elementos corpóreos;
mas, antes de tudo, esta explicação vale tanto quanto a dos sociólogos, que
imaginam que o “totem” animal ou mesmo vegetal seja visto, literal e
materialmente, como o ancestral da tribo, sem se darem conta de que o
“transformismo” é coisa de invenção bastante recente. Na realidade, não é de
elementos corporais que se trata em tudo isso, mas de elementos psíquicos (já
vimos que Papus faz esta confusão sobre a natureza da metempsicose); é
evidentemente pouco razoável supor que a maioria das células de um corpo
humano, ou antes dos seus elementos constituintes, tenham a mesma proveniência,
enquanto que, na ordem psíquica, possa haver, como dissemos, a conservação de
um conjunto mais ou menos considerável de elementos que permanecem associados.
Quanto à “origem secreta dos totens”, podemos afirmar que de fato ela
permaneceu secreta para os ocultistas, tanto quanto para os sociólogos; de
resto, talvez seja melhor assim, pois estas coisas são daquelas que não podem
ser explicadas sem reservas, devido às conseqüências e às aplicações práticas
que algumas pessoas tentariam conseguir; já existem coisas suficientes,
bastante perigosas também, que só podemos lamentar estarem à disposição do
primeiro experimentador que se apresente.
Falamos de casos de transmissão não hereditária; quando
esta transmissão só se refere a elementos pouco importantes, quase não é
percebida, e mesmo chega a ser
impossível constatá-la claramente. Certamente existem, em cada um de nós,
elementos como estes que provém da desagregação das individualidades que nos
precederam (trata-se aqui naturalmente só da parte perecível do ser humano); se
alguns dentre eles, normalmente “subconscientes”, chegam à consciência clara e
distinta, a pessoas percebe que traz em si algo cuja origem ela não explica,
mas pouca atenção se dá a isto, tanto mais que estes elementos aparecem como
incoerentes e desprovidos de ligação com o conteúdo habitual da consciência. É
sobretudo nos casos anormais, como entre os médiuns e os pacientes hipnóticos,
que os fenômenos deste tipo tem mais chance de se produzir com alguma
significância; e, entre eles igualmente, pode haver manifestações de elementos
de proveniência análoga, mas “adventícios”, que só se agregam de passagem à sua
individualidade, em lugar de fazer parte integrante dela; mas pode ser ainda
que estes elementos, uma vez penetrando aí, estabeleçam-se de modo permanente,
e este não é dos menores perigos desta sorte de experiências. Para voltarmos ao
caso em que a transmissão opera-se espontaneamente, a ilusão da reencarnação só
pode acontecer pela presença de um conjunto notável de elementos psíquicos de
mesma proveniência, suficiente para representar aproximadamente o equivalente a
uma memória individual mais ou menos completa; isto é bastante raro, mas já
foram constatados alguns exemplos. É provavelmente isto que acontece quando,
após a morte de uma criança numa família, nasce outra que possui, ao menos
parcialmente, a memória do primeiro; seria difícil, de fato, explicar tais
fatos por uma simples sugestão, o que não quer dizer que os pais não tenham
desempenhado um papel inconsciente na transferência real, que o sentimentalismo
contribuirá para interpretar num sentido reencarnacionista. Acontece também da
transferência de memória operar-se em uma criança que pertence a uma outra
família e um outro meio, o que contraria a hipótese da sugestão; em todo caso,
quando há morte prematura, os elementos psíquicos permanecem mais facilmente
sem se dissolver, e é por isso que a maior parte dos exemplos que encontramos
referem-se a crianças. São citados também alguns casos de pessoas que
manifestaram, desde tenra idade, a memória de indivíduos adultos; mas muitos
destes são mais duvidosos do que os antecedentes, podendo reduzir-se a uma
simples sugestão ou a uma transmissão de pensamento; naturalmente, se os fatos
acontecem num meio que tenha sido influenciado pelas idéias espíritas, eles
devem ser considerados como suspeitos, sem que a boa-fé daqueles que os
constataram seja posta em causa, assim como a dos experimentadores que
determinam involuntariamente a conduta de seus pacientes em conformidade com
suas próprias teorias. Entretanto, não há nada de impossível, a priori, em todos esses fatos, salvo a
interpretação espírita; existem ainda outros onde se quis ver provas da
reencarnação, como nos casos das “crianças-prodígio” (2), que se explicam muito
bem pela presença de elementos psíquicos previamente elaborados e desenvolvidos
por outras individualidades. Acrescentemos também que a desintegração psíquica,
mesmo nos casos de morte prematura, é às vezes impedida ou retardada
artificialmente; mas este é um assunto sobre o qual não convém insistir. Quanto
aos verdadeiros casos de “posteridade espiritual”, no sentido que indicamos
precedentemente, não trataremos deles aqui, pois, por sua própria natureza,
eles escapam aos estreitos meios de investigação de que dispõem os
experimentadores.
Já dissemos que a memória está sujeita à desagregação
póstuma, por ser uma faculdade de ordem sensível; convém também acrescentar que
ela pode sofrer, mesmo com o indivíduo em vida, uma espécie de dissolução
parcial. As diversas doenças da memória, estudadas pelos psico-fisiologistas,
não são outra coisa no fundo; e é assim que se devem explicar, em particular,
os pretensos “desdobramentos de personalidade”, em que existe um como que
fracionamento em duas ou mais memórias diferentes, que ocupam alternativamente
o campo da consciência clara e distinta; estas memórias fragmentárias devem
naturalmente coexistir, mas, como só uma delas pode estar plenamente consciente
num momento dado, as outras são então remetidas para o domínio do “subconsciente;
de resto, às vezes existe uma comunicação entre elas numa certa medida. Tais
fatos se produzem espontaneamente em algumas pessoas doentes, assim como o
sonambulismo natural; eles podem também ser obtidos experimentalmente em
“estados secundários” de pacientes hipnóticos, aos quais devem ser assimilados
a maior parte dos fenômenos de “encarnação” espírita. Pacientes e médiuns
diferem das pessoas normais por uma certa dissociação de seus elementos
psíquicos, que vai se acentuando na medida do treinamento que recebem; é esta
dissociação que torna possíveis os fenômenos de que tratamos, e que permite
igualmente que elementos heteróclitos venham de certo modo intercalar-se em sua
individualidade.
O fato de que a memória não constitui um princípio verdadeiramente
permanente do ser humano, sem falar das condições orgânicas às quais ela está
mais ou menos ligada (ao menos quanto às suas manifestações exteriores), deve
fazer compreender porque não fizemos questão de uma objeção que é
freqüentemente colocada contra a tese reencarnacionista, e que os defensores
desta estimam entretanto “considerável”: trata-se do “esquecimento”, durante
uma existência, das existências anteriores. A resposta que Papus dá à questão é
ainda mais fraca do que a própria objeção: “Este esquecimento, diz ele, é uma
necessidade iniludível para evitar o suicídio. Antes de voltar para a terra ou
para o plano físico, todo espírito vê as provas que irá sofrer, e ele só volta
após aceitar conscientemente todas estas provas. Ora, se o espírito soubesse,
uma vez encarnado, tudo o que ele teria que suportar, sua razão escureceria,
sua coragem se perderia, e o suicídio consciente seria o resultado de uma visão
clara (...) Seria preciso retirar do homem a faculdade do suicídio se
quiséssemos guardar com certeza a lembrança das existências anteriores” (3).
Não vemos que relação pode haver entre a lembrança das existências anteriores e
a previsão da existência presente; se esta previsão só foi imaginada para
responder à objeção do esquecimento, não valeria a pena; mas é preciso dizer
também que a concepção bastante
sentimental das “provas” desempenha um papel muito importante entre os
ocultistas. Sem procurar ir tão longe, os espíritas são às vezes mais lógicos;
é assim que Léon Denis, mesmo declarando que “o esquecimento do passado é, para
o homem, condição indispensável de toda prova e de todo progresso terrestre”, e
acrescentando ainda algumas outras considerações não menos sentimentais, diz
simplesmente o seguinte: “O cérebro não pode conceber e armazenar senão as
impressões comunicadas pela alma no estado de cativeiro na matéria. A memória
só pode reproduzir o que ela registrou. A cada renascimento, o organismo
cerebral constitui, para nós, como que um livro novo sobre o qual são gravadas
as sensações e as imagens” (4). É talvez um pouco rudimentar, porque a memória,
apesar de tudo, não é de natureza corporal; mas enfim é mais plausível, tanto
mais que é colocado ainda que existem muitas partes de nossa existência atual
das quais parecemos não ter nenhuma lembrança. Ainda desta vez, a objeção não é
assim tão profunda como se pretende, ainda que tenha numa aparência mais séria
do que aquelas que se fundamentam no sentimento; talvez seja ela o que de
melhor conseguem os que não conhecem nada de metafísica; mas, quanto a nós, não
temos necessidade de recorrer a argumentos tão contestáveis.
Até aqui, ainda não havíamos abordado as “provas
experimentais” propriamente ditas; designa-se sob este nome os diversos casos
que tratamos; mas há outra coisa, que provém da experimentação entendida no seu
sentido mais restrito. É aqui sobretudo que os psiquistas não se dão conta dos
limites dentro dos quais seus métodos podem ser aplicados; aqueles que
compreenderam o que precede devem ver desde já que os experimentadores, segundo
as idéias admitidas pela “ciência moderna” (mesmo quando eles são mais ou menos
colocados à parte por seus representantes “oficiais”), estão longe de poder
fornecer explicações válidas para tudo aquilo de que se trata: como os fatos da
metempsicose, por exemplo, poderiam dar lugar às suas investigações? Nós
assinalamos um singular desconhecimento dos limites da experimentação entre os
espíritas que tem a pretensão de “provar cientificamente a imortalidade”;
encontraremos outro não menos espantoso para qualquer isento do pré-julgamento
“científico”, e, desta vez, não será entre os espíritas, mas entre os
psiquistas. De resto, entre espíritas e psiquistas, é às vezes difícil traçar
uma linha de demarcação clara, como em princípio deveria haver, e parece que
existem pessoas que se declaram psiquistas por não ousar se dizerem francamente
espíritas, pois esta última denominação é pouco prestigiosa aos olhos de
muitos; existem outros que se deixam influenciar se querer, e que ficariam
espantados se lhes fosse dito que uma premissa inconsciente falseia o resultado
de suas experiências; para estudar verdadeiramente nos fenômenos psíquicos sem
idéia pré-concebida, os experimentadores deveriam ignorar até mesmo a
existência do espiritismo, o que evidentemente é impossível. Se fosse assim,
não se teria pensado em instituir experiências destinadas a verificar a
hipótese da reencarnação; e, se não tivesse havido primeiramente a idéia de
verificar esta hipótese, jamais teriam sido constatados fatos como os que
iremos falar, pois os pacientes hipnóticos, que são empregados nestas
experiências, não fazem senão refletir todas as idéias que lhes são sugeridas
voluntária ou involuntariamente. Basta que o experimentador pense numa teoria,
que ele veja como simplesmente possível, com ou sem razão, para que esta teoria
se torne, no paciente, o ponto de partida de divagações intermináveis; e o
experimentador acolherá ingenuamente como uma confirmação aquilo que não passa
do efeito de seu próprio pensamento agindo sobre a imaginação “subconsciente”
do paciente, pois as intenções mais “científicas” jamais garantiram ninguém
contra certas causas de erros.
As primeiras histórias deste gênero onde se falou em
reencarnação são as que deram a conhecer os trabalhos de um psiquista de
Genebra, o professor Flournoy, que reuniu num volume (5) tudo o que um dos seus
pacientes lhe contara sobre as diversas existências que ele pretendia ter
vivido sobre a terra e mesmo em outros lugares; e o que há de mais notável, é
que ele não parece ter-se espantado de que o que se passa no planeta Marte
pudesse tão facilmente ser expresso em linguagem terrestre! Isto valeria tanto
quanto o relato de um sonho qualquer, e poderia ter sido estudado do ponto de
vista da psicologia do sonho provocado em estados hipnóticos; e é incrível que
alguém tenha visto aí algo de mais, e no entanto foi isto que aconteceu. Um
pouco mais tarde, um outro psiquista pretendeu retomar a questão de modo mais
metódico: tratava-se do coronel de Rochas, geralmente reputado como um
experimentador sério, mas a quem faltava a inteligência necessária para saber
com que estava tratando dentro dessa ordem de coisas para evitar certos
perigos; partindo também do hipnotismo puro e simples, ele fez como tantos
outros e, insensivelmente, acabou por se converter quase inteiramente às
teorias espíritas (6). Uma de suas últimas obras (7) foi consagrada ao estudo
experimental da reencarnação: tratava-se da exposição de suas pesquisas sobre
as pretensas “vidas sucessivas” por meio daquilo que ele chamou de fenômenos de
“regressão da memória”. No momento em que surgiu esta obra (1911), acabava de
ser fundado em Paris um “Instituto de pesquisas psíquicas”, fundado
precisamente sob o patrocínio de Mme. de Rochas, e dirigido por L. Lefranc e
Charles Lancelin; convém lembrar que este último, que se diz indiferentemente
psiquista ou ocultista, não passa no fundo de um espírita, então bastante
conhecido como tal. Lefranc, cujas tendências eram as mesmas, quis retomar as
pesquisas de de Rochas, e, naturalmente, chegou a resultados que concordavam
perfeitamente com os obtidos por ele; o contrário teria sido surpreendente,
porque ele partiu de uma hipótese pré-concebida, de uma teoria já formulada, e
porque ele não encontrou nada melhor do que trabalhar com os antigos pacientes
do próprio coronel de Rochas. Hoje a coisa se tornou corrente: existe um certo
número de psiquistas que acreditam firmemente na reencarnação, simplesmente
porque possuem pacientes que lhes contaram suas existências anteriores; havemos
de convir que é um pouco difícil usar isto como prova, e assim abre-se um novo
capítulo da história a que podemos chamar de “credulidade científica”. Sabendo
o que são os pacientes hipnóticos, e também como eles passam indiferentemente
de um experimentador a outro, levando assim o produto das diferentes sugestões
que receberam, não é duvidoso que eles se tornem, em todos os meios psiquistas,
como que os propagadores de uma verdadeira epidemia reencarnacionista; não é
portanto inútil mostrar com mais detalhe o que existe no fundo de todas essas
histórias (8).
O coronel de Rochas acreditou constatar em alguns
pacientes uma “regressão da memória”; dizemos que ele acreditou constatar,
pois, se sua boa-fé é incontestável, não é menos verdade que os fatos que ele
interpretou assim, em virtude de uma simples hipótese, podem explicar-se na
realidade de outro modo, e muito mais simples. Em suma, esses fatos resumem-se
no seguinte: o paciente, estando num certo estado de adormecimento, pode ser
recolocado mentalmente nas condições em que se encontraria numa época passada,
e ser “situado” assim numa era qualquer , da qual ele passa a falar então como
se estivesse no presente, donde se conclui que, neste caso, não existe mais
“lembrança”, mas “regressão da memória”: “O paciente não se lembra, declara
categoricamente Lancelin, mas ele é colocado na época indicada”; e ele
acrescenta com verdadeiro entusiasmo que “esta simples observação foi, para o
coronel de Rochas, o ponto de partida de uma descoberta absolutamente superior”
(9). Infelizmente, esta “simples observação” contém uma contradição de termos,
pois evidentemente não pode se tratar de memória quando não existe lembrança;
isto é mesmo tão evidente que é difícil entender como ele não percebeu, e faz
pensar que houve um erro de interpretação. Fora isto, é preciso perguntar se a
possibilidade de lembrança pura e simples fica excluída apenas pelo fato de que
a pessoa fala do passado como se ele se tivesse tornado presente, como, por
exemplo, ao ser perguntada sobre o que fazia em tal dia e em tal hora, ela não
responde: “Eu fazia isto”, mas “Eu faço isto”. Quanto a isto, podemos responder
imediatamente que as lembranças, enquanto tais, estão sempre mentalmente
presentes; que estas lembranças se achem atualmente no campo da consciência
clara e distinta ou no do “subconsciente”, pouco importa, pois, como dissemos,
elas tem sempre a possibilidade de passar de um para outro, o que mostra que só
existe aí uma diferença de grau. Aquilo que, para nossa consciência atual,
caracteriza efetivamente estes elementos como lembranças de eventos passados, é
sua comparação com os eventos presentes (presentes enquanto percepções),
comparação que permite distinguir uns dos outros estabelecendo uma relação
temporal, vale dizer uma relação de sucessão, entre os eventos exteriores dos
quais elas são para nós as respectivas traduções mentais; esta distinção entre
a lembrança e a percepção faz parte da psicologia mais elementar. Se a
comparação se torna impossível por qualquer razão, seja pela supressão
momentânea de toda impressão exterior, seja por outro motivo, a lembrança, não
estando mais localizada no tempo em relação a outros elementos psicológicos
presentemente diferentes, perde seu caráter representativo do passado, para
conservar apenas sua qualidade atual de presente. Ora, é precisamente aí que se
produz o caso de que falamos: o estado no qual está colocado o paciente
corresponde a uma modificação de sua consciência atual, que implica uma
extensão, num certo sentido, de suas faculdades individuais, mas em detrimento
momentâneo do desenvolvimento em outro sentido que estas faculdades possuem em
estado normal. Se então, neste estado, impede-se o paciente de ser afetado
pelas percepções presentes, e se, de outro, afasta-se da sua consciência todos
os eventos posteriores a um dado momento, condições que são perfeitamente
realizáveis através da sugestão, eis o que acontece: a partir do momento em que
as lembranças que se referem a este mesmo momento apresentam-se à consciência
modificada em sua extensão, e que para o paciente representa a sua consciência
atual, elas não podem de modo algum ser situadas no passado, nem mesmo
simplesmente encaradas sob o aspecto do passado, porque não existe atualmente
no campo da consciência (apenas no campo da consciência clara e distinta)
nenhum elemento com o qual elas possam ser relacionadas sob um aspecto de
anterioridade temporal.
Em tudo isto, não há nada além de um estado mental que
implica uma modificação da concepção do tempo, ou antes de sua compreensão, em
relação ao estado normal; e, de resto, estes dois estados não passam de
modalidades diferentes da mesma individualidade, como o são igualmente os
diversos estados, espontâneos ou provocados, que correspondem a todas as
alterações possíveis da consciência individual, inclusive aquelas que se
classifica usualmente sob a denominação imprópria e enganosa de “múltiplas
personalidades”. Com efeito, não pode tratar-se aqui de estados superiores e
extra-individuais nos quais o ser estaria liberto da condição temporal, nem
mesmo de uma extensão da individualidade que implique esta mesma libertação
parcial, porque o paciente é colocado num instante determinado, o que supõe
essencialmente que o seu estado atual está condicionado pelo tempo. Ademais, de
um lado, estados como aqueles a que fizemos alusão não podem evidentemente ser
atingidos por meios que são inteiramente do domínio da individualidade atual,
ainda mais vista exclusivamente numa porção muito restrita de suas
possibilidades, que é necessariamente o caso de todo procedimento experimental;
e, de outro lado, mesmo se tais estados fossem atingidos de um modo qualquer,
eles não poderiam ser tornados sensíveis para esta individualidade, cujas
condições particulares de existência não tem nenhum ponto de contato com as dos
estados superiores do ser, e que, enquanto dada individualidade, ela é
forçosamente incapaz de assentir, e com mais forte razão exprimir, tudo o que
está além dos limites de suas próprias possibilidades. De resto, em todos os
casos que mencionamos, trata-se sempre de eventos terrestres, ou ao menos que
só se referem ao estado corporal; não existe aí nada que exija minimamente a
intervenção de estados superiores do ser, de cuja existência, aliás, sequer
suspeitam os psiquistas.
Quanto a transportar-se ao passado, está aí uma coisa que
é tão manifestamente impossível ao indivíduo quanto transportar-se para o
futuro; é evidente que esta idéia de um transporte para o futuro enquanto tal
não passa de uma interpretação completamente errada dos fatos de “previsão”,
mas esta interpretação não seria mais extravagante do que a de que tratamos, e
ela pode muito bem também vir a produzir-se um dia ou outro. Se não
conhecêssemos as teorias dos psiquistas em questão, jamais pensaríamos que a
“máquina do tempo” de H. G. Wells pudesse ser considerada como outra coisa do
que uma concepção de pura fantasia, nem que se viesse a falar seriamente da
“reversibilidade do tempo”. O espaço é reversível, vale dizer que qualquer de
suas partes, tendo sido percorrida num certo sentido, pode sê-lo a seguir em
sentido inverso, e isto porque ele representa uma coordenação de elementos
encarados em modo simultâneo e permanente; mas o tempo, sendo ao contrário uma
coordenação de elementos encarados de modo sucessivo e transitório, não pode
ser reversível, pois uma tal suposição seria a própria negação do ponto de
vista da sucessão, ou, em outros termos, ela equivaleria precisamente a
suprimir a condição temporal. Esta supressão da condição temporal é aliás
perfeitamente possível em si mesma, assim como a da condição espacial; mas ela
não o é nos casos que tratamos aqui, porque eles todos pressupõem o tempo; de
resto, convém lembrar que a concepção do “eterno presente”, que é a
conseqüência desta supressão, não pode ter nada em comum com um retorno ao
passado ou com um transporte para o futuro, pois ela suprime exatamente o
passado e o futuro, libertando-nos do ponto de vista da sucessão, ou seja
daquilo que constitui para nosso ser atual toda a realidade da condição temporal.
Entretanto, existem pessoas que conceberam esta idéia no
mínimo singular da “reversibilidade do tempo”, e que pretenderam apoiá-la sobre
um pretenso “teorema de mecânica”, cujo enunciado integral achamos interessante
reproduzir, a fim de mostrar mais claramente a origem de sua fantástica
hipótese. Foi Lefranc quem, para interpretar suas experiências, colocou a
questão nestes termos: “Podem a matéria e o espírito reverter o curso do tempo,
ou seja, podem eles colocar-se em uma época de vida dita anterior? O passado
não volta; entretanto, ele não poderia vir?” Para responder a isto, ele foi
buscar um trabalho sobre a “reversibilidade de todo movimento puramente
material”, publicado outrora por um certo Breton (11); convém dizer que este
autor não apresentou a concepção em pauta senão como uma espécie de jogo
matemático, chegando a conseqüências que ele mesmo considerava absurdas; é
verdade também que havia aí uma espécie de abuso de raciocínio, como acontece
às vezes com certos matemáticos, sobretudo com os “especialistas”, e a mecânica
fornece um terreno particularmente favorável para coisas deste gênero. Eis como
começa o enunciado de Breton: “Conhecendo a série completa de todos os estados
sucessivos de um sistema de corpos, estados que se seguem e engendram uns aos
outros dentro de uma ordem determinada, do passado que faz a função de causa,
ao futuro que tem o lugar de efeito (sic),
consideremos um destes estados sucessivos, e, sem nada alterar nas massas
componentes, nem nas forças que agem nestas massas (12), nem nas leis destas
forças, assim como nas situações atuais destas massas no espaço, vamos
substituir cada velocidade por uma velocidade igual e contrária (...)”. Uma
velocidade contrária a uma outra, ou melhor de direção diferente, não pode, a bem
dizer, ser igual à primeira no sentido rigoroso do termo, mas apenas
equivalente em quantidade; e, por outro lado, será possível considerar esta
substituição como algo que não muda em nada as leis do movimento considerado,
dado que, se estas leis fossem seguidas, este movimento não se produziria? Mas
voltemos ao texto: “Chamaremos a isto “reverter as velocidades”; esta mudança
tomará o nome de reversão, e chamaremos sua possibilidade de reversibilidade do
movimento do sistema (...)”. Vamos nos deter um instante aqui, pois é
justamente esta possibilidade que não podemos admitir, do ponto de vista mesmo
do movimento, que efetua-se necessariamente dentro do tempo: o sistema
considerado tomará em sentido inverso, em uma nova série de estados sucessivos,
as situações que ele havia anteriormente ocupado no espaço, mas o tempo não
voltará jamais a ser o mesmo por causa disto, e isto basta evidentemente para
que os novos estados do sistema não possam de modo algum ser identificados aos
precedentes. De resto, no raciocínio que estamos citando, supõe-se
explicitamente (embora num linguajar contestável) que a relação do passado com
o futuro é uma relação de causa e efeito, enquanto que a verdadeira relação
causal, ao contrário, implica essencialmente a simultaneidade dos dois termos,
donde resulta que estados considerados como seguindo-se uns aos outros não
podem de modo algum, deste ponto de vista, engendrarem-se correspondentemente,
pois seria preciso então que uma estado que não existe mais produzisse um outro
estado que não existe ainda, o que é absurdo (e resulta daí também que, se a
lembrança de uma impressão qualquer pode ser causa de outros fenômenos mentais,
quaisquer que sejam, é unicamente enquanto lembrança presente, pois a impressão
passada não pode atualmente ser causa de nada). Mas prossigamos: “Ora, quando
houvermos operado a reversão das velocidades de um sistema de corpos (...)” – o
autor do raciocínio tem a prudência de acrescentar entre parêntesis: “não na
realidade, mas no puro pensamento”; neste momento, sem perceber, ele sai
totalmente do domínio da mecânica, e aquilo de que ele fala já não tem nenhuma
relação com um “sistema de corpos” (é verdade que, na mecânica clássica,
encontram-se também muitas suposições contraditórias, como a de um corpo pesado
reduzir-se a um ponto matemático, ou seja um corpo que não é um corpo, porque
falta-lhe extensão); mas convém reter que ele próprio vê a pretensa “reversão”
como irrealizável, contrariamente àqueles que pretenderam aplicar seu
raciocínio à “regressão da memória”. Supondo a “reversão” operada, eis qual
será o problema: “Tratar-se-á de encontrar, para o sistema assim revertido, a
série completa de seus estados futuros e passados: será esta procura mais, ou
menos difícil, do que o problema correspondente para os estados sucessivos do
mesmo sistema não revertido? Nem mais, nem menos (...)”. Evidentemente, porque,
num e noutro caso, trata-se de estudar um movimento cujos elementos estão todos
dados; mas, para que este estudo corresponda a qualquer coisa de real e mesmo
de possível, ele não deveria ser falseado por um simples jogo de notação, como
o que é indicado na seqüência da frase:
“E a solução de um destes problemas dará a do outro por uma mudança muito
simples, que consiste, em termos técnicos, em mudar o sinal algébrico do tempo,
em escrever –t em lugar de +t, e reciprocamente (...)”. De fato,
é bastante simples na teoria, mas, não levando em conta que a notação dos
“números negativos” não passa de um procedimento artificial para simplificação
de cálculos (que não deixa de ter inconvenientes do ponto de vista lógico) e
não corresponde a nenhuma espécie de realidade, o autor do raciocínio cai
incide num grave erro, que é aliás comum a muitos matemáticos, e, para
interpretar a mudança de sinal que indicada, ele acrescenta: “Quer dizer que as
duas séries completas de estados sucessivos do mesmo sistema de corpos
diferirão apenas em que o futuro se tornará passado e o passado se tornará
futuro (...)”. Eis aí, com certeza, uma singular fantasmagoria, e é preciso
reconhecer que uma operação tão comum como uma mudança de sinal algébrica seja
dotada de uma potência estranha e verdadeiramente maravilhosa... aos olhos de
matemáticos deste tipo. “Será a mesma série de estados sucessivos percorrida em
sentido inverso. A reversão das velocidades em um instante qualquer reverte
simplesmente o tempo; a série primitiva dos estados sucessivos e a série
revertida possuem, em todos os instantes correspondentes, as mesmas figuras do
sistema com as mesmas velocidades iguais e contrárias (sic)”. Infelizmente, na realidade, a reversão das velocidades
reverte simplesmente as situações espaciais, e não o tempo; em lugar de ser “a
mesma série de estados sucessivos percorrida em sentido inverso”, será uma
segunda série homóloga à primeira, mas apenas quanto ao espaço; o passado não
se tornará futuro por causa disto, e o futuro só se tornará passado em virtude
da lei natural e normal da sucessão, como acontece a cada instante. Para que
haja realmente correspondência entre as duas séries, é preciso que não tenha
havido, dentro do sistema considerado, outras mudanças do que simples mudanças
de situação; apenas estas podem ser reversíveis, porque aí só intervém a
consideração do espaço, que é efetivamente reversível; para qualquer outra mudança
de estado, o raciocínio não mais poderá ser aplicado. É assim inteiramente
ilegítimo pretender tirar daí conseqüências como estas: “No reino vegetal, por
exemplo, veríamos, na reversão, uma pêra caída que “desapodrece”, que se torna
fruto maduro, que se recolhe à sua árvores, que se torna fruto verde, que
decresce e se torna flor aberta, depois flor fechada, depois botão, depois
broto, ao mesmo tempo em que sua matéria retorna, uma parte ao estado de ácido
carbônico e vapor d’água espalhado no ar, outra ao estado de semente, depois de
humus e de adubo”. Parece-nos que Camille Flammarion descreveu coisas
semelhantes, mas supondo um “espírito” que se afastasse da terra a uma
velocidade superior à da luz, e que possuísse uma capacidade visual capaz de
fazê-lo distinguir, a uma distância qualquer, os menores detalhes dos eventos
terrestres (13); era uma hipótese no mínimo fantasista, mas enfim não se
tratava de uma verdadeira “reversão do tempo”, pois os próprios eventos
continuariam a seguir seu curso normal, e seu desenvolvimento em sentido
contrário não passaria de uma ilusão de ótica. Nos seres vivos, produz-se a
cada momento uma multitude de alterações que não são redutíveis a mudanças de
situação; e, mesmo nos corpos inorgânicos que parecem permanecer completamente
idênticos a si mesmos, efetuam-se também muitas mudanças irreversíveis: a
“matéria inerte”, postulada pela mecânica clássica, não se encontra em parte
alguma do mundo corporal, pelo simples fato de que o que é inerte é
necessariamente desprovido de qualquer qualidade sensível ou qualquer outra. É
verdadeiramente muito fácil mostrar os sofismas inconscientes e múltiplos que
se escondem debaixo de tais argumentos; e no entanto isso é tudo o que se pode
encontrar para justificar “perante a ciência e a filosofia” uma teoria como a
das pretensas “reversões da memória”!
Mostramos que se pode explicar facilmente, e quase sem
sair do domínio da psicologia comum, o pretenso “retorno ao passado”, ou seja
em realidade simplesmente a evocação à consciência clara e distinta de
lembranças conservadas em estado latente na memória “subconsciente” do
paciente, referindo-se a tal ou tal determinado período da sua existência. Para
completar esta explicação, convém acrescentar que esta evocação é facilitada
por outro lado, do ponto de vista fisiológico, pelo fato de que toda impressão
deixa sempre um traço sobre o organismo que a experimentou; não é o caso de se
procurar de que modo esta impressão pode ser registrada por certos centros
nervosos, pois este é um estudo que pertence à ciência experimental pura e
simples, o que não quer dizer aliás que ela tenha obtido até o presente grandes
resultados a respeito. Seja como for, a ação exercida sobre os centros que
correspondem às diferentes modalidades da memória (de resto auxiliada por um
fator psicológico que é a sugestão, a qual desempenha aqui o papel principal,
pois o que é de ordem fisiológica só concerne às condições de manifestação
exterior da memória), seja como for que se efetue, permite colocar o paciente
nas condições requeridas para realizar as experiências de que falamos, ao menos
quanto à sua primeira parte, que se refere aos eventos dos quais ele realmente
tomou parte ou assistiu em uma época mais ou menos distante. Apenas, o que
contribui para iludir o experimentador, é que as coisas se complicam com uma
espécie de “sonho em ação”, do tipo dos que dão nome ao sonambulismo: o
paciente, ao invés de simplesmente contar suas lembranças, começa a
representá-las, como ele representará
tudo o que lhe for sugerido, sejam sentimentos ou impressões. É assim
que o coronel de Rochas “recolocou, situou o paciente a dez, vinte, trinta anos
atrás; fez dele uma criança, um bebê chorando”; seria de se esperar, com
efeito, desde que ele sugeriu ao paciente um retorno ao estado de infância,
vê-lo agir e falar como uma verdadeira criança; mas, se ele lhe tivesse
sugerido ser um animal qualquer, o paciente não deixaria, analogamente, de se
comportar com aquele animal; daí se concluiria ter ele sido este animal numa
época anterior? O “sonho em ação” pode ter como ponto de partida, sejam
lembranças pessoais, seja o conhecimento do modo de agir de um outro ser, e
estes dois elementos podem se misturar mais ou menos; este último caso
representa provavelmente o que se produz quando se quer “situar” o paciente na
infância. Pode acontecer também que se trate de um conhecimento que o paciente
não possui em estado normal, mas que lhe
é comunicado mentalmente pelo experimentador, sem que este tenha intenção; foi
provavelmente assim que de Rochas “situou o paciente anteriormente ao seu
nascimento, fazendo-o retornar à vida intra-uterina, onde ele adotou,
retroagindo, as diversas posições do feto”. Todavia, não queremos dizer que,
mesmo no último caso, não haja na individualidade do paciente alguns traços,
orgânicos e mesmo psíquicos, destes estados; ao contrário, devem haver, e eles
podem fornecer uma porção considerável, ainda que difícil de determinar, de seu
“sonho em ação”. Mas, bem entendido, uma correspondência fisiológica qualquer
só é possível para as impressões que tenham realmente afetado o organismo do
paciente; da mesma forma, do ponto de vista psicológico, a consciência
individual de um ser qualquer só pode evidentemente conter elementos que tenham
alguma relação com a individualidade atual deste ser. Isto deveria bastar para
mostrar que é perfeitamente inútil e ilusório prosseguir as pesquisas
experimentais além de certos limites, ou seja, no caso atual, anteriormente ao
nascimento do paciente, ou ao menos no início de sua vida embrionária; no
entanto é isto que se quis fazer, pois tentou-se “situar o paciente antes da
concepção”, e, apoiando-se na hipótese pré-concebida da reencarnação,
acreditou-se ser possível, “remontando cada vez mais longe, fazê-lo reviver
suas vidas anteriores”, ao mesmo tempo em que se estudava, no intervalo, “o que
se passou com o espírito não encarnado”!
Aqui, estamos evidentemente em plena fantasia; e no
entanto Lancelin nos afirma que “o resultado adquirido pode ser considerado
enorme, não só em si mesmo, mas pelos caminhos que ele abre à exploração das
anterioridades do ser vivo”, que “um grande passo acaba de ser dado, pelo sábio
de primeira ordem que é o coronel de Rochas, na via que este seguiu da
desocultação (sic) do oculto”, e que “um novo princípio foi colocado, cujas
conseqüências são, atualmente, incalculáveis (14). Como se pode falar de
“anterioridades do ser vivo”, quando se trata de um tempo em que este ser vivo
ainda não existia em estado individualizado, e ainda pretender colocá-lo além
de sua origem, vale dizer em condições nas quais ele nunca esteve, e que
portanto não correspondem para ele a nenhuma realidade? Isto equivale a criar
inteiramente, com todas as suas peças, uma realidade artificial, se podemos nos
exprimir assim, ou seja uma realidade mental atual que não é a representação de
nenhuma espécie de realidade sensível; a sugestão dada pelo experimentador
fornece o ponto de partida, e a imaginação do paciente faz o resto. Sem dúvida,
pode acontecer que o paciente encontre, seja em si mesmo, seja no ambiente
psíquico, alguns desses elementos de que falamos, e que provém da desintegração
de outras individualidades; isto explicaria que ele possa fornecer certos
detalhes referentes a pessoas que de fato existiram, e, se tais fatos fossem constatados
e verificados de forma isenta, eles não provariam mais do que os outros. De um
modo geral, tudo isso é comparável, fora a sugestão inicial, ao que se passa no
estado comum de sonho, onde, como ensina a doutrina hindu, “a alma individual
cria um mundo que procede inteiramente de si mesma, e cujos objetos consistem
exclusivamente em concepções mentais”, para os quais ela utiliza naturalmente
todos os elementos de proveniência variada que ela possa ter à disposição. De
resto, normalmente não é possível distinguir estas concepções, ou antes as
representações que as traduzem, das percepções de origem exterior, sem que se
estabeleça uma espécie de comparação entre estas duas espécies de elementos
psicológicos, o que só pode ser feito pela passagem mais ou menos clara do
estado de sonho para o estado de vigília; mas esta comparação nunca é possível
no caso de sonho provocado por sugestão, pois o paciente, ao acordar, não
conserva nenhuma lembrança na sua consciência normal (o que não quer dizer que
esta lembrança não subsista no “subconsciente”). Lembremos ainda que o paciente
pode, em certos casos, considerar como lembranças imagens mentais que não o são
realmente, pois um sonho pode compreender tanto lembranças quanto impressões
atuais, sem que estas duas coisas sejam mais do que puras criações mentais do
momento presente; estas criações, como todas as da imaginação, não passam, com
todo o rigor, de combinações novas formadas a parir de elementos
pré-existentes. Não falamos aqui, bem entendido, de lembranças da vigília que
chegam freqüentemente, mais ou menos modificadas e deformadas, para se misturar
ao sonho, pois a separação dos dois estados nunca é completa, ao menos quanto
ao sonho habitual; esta parece ser maior quando o sonho é provocado pela sugestão,
e é isto que explica o esquecimento total, ao menos em aparência, que se segue
ao despertar do paciente. Entretanto, esta separação é sempre relativa, pois
não se trata senão de partes diversas da mesma consciência individual; o que o
mostra bem, é que uma sugestão feita durante o sonho hipnótico pode produzir
seu efeito após o despertar do paciente, quando este parece não mais se
lembrar. Se fôssemos aprofundar o exame dos fenômenos do sonho aqui, veríamos
que todos os elementos que eles colocam em jogo participam também do estado
hipnótico; estes dois casos não representam senão um mesmo estado do ser
humano; a única diferença, é que, no estado hipnótico, a consciência do
paciente se acha em comunicação com uma outra consciência individual, a do experimentador,
e assim ela pode assimilar elementos que estão contidos nesta, como se eles
constituíssem seus próprios prolongamentos. É por isso que o experimentador
pode fornecer ao paciente alguns dos dados que ele utilizará em ser sonho,
dados que podem ser imagens, representações de complexidade diversa, como
acontece nas experiências mais comuns, e que podem também ser idéias e teorias,
como a hipótese reencarnacionista, idéias que o paciente se apressará a
traduzir igualmente em representações imaginativas; e isto sem que o
experimentador tenha necessidade de formular verbalmente estas sugestões, e
mesmo sem que ele tenha a menor intenção disso. Assim portanto, é um sonho
provocado, estado em tudo semelhante àqueles em que se provoca no paciente, por
sugestões apropriadas, percepções total ou parcialmente imaginárias, mas com a
única diferença que, aqui, o experimentador é vítima de sua própria sugestão e
toma as criações mentais do paciente como “despertar de lembranças”, e mesmo
como um retorno real ao passado – é a isto que se reduz a pretensa “exploração
das vidas sucessivas”, única “prova experimental” propriamente dita que os
reencarnacionistas tem para apoiar a sua teoria.
O “Instituto de pesquisas psíquicas” tinha como anexo uma
“clínica neurológica e pedagógica”, onde se tentava aplicar a sugestão à
“psicoterapia”, e servir-se dela para curar principalmente os alcoólatras e os
maníacos, ou para desenvolver a mentalidade de certos retardados. As tentativas
deste gênero não deixam de ser muito louváveis, e, quaisquer que sejam os
resultados obtidos, nada se pode dizer em contrário, ao menos quanto às
intenções que as inspiram; é verdade que estas práticas, mesmo no terreno
estritamente médico, são muitas vezes mais nocivas do que úteis, e que as pessoas
que as empregam às vezes não sabem aonde vão; mas enfim, as coisas deviam ficar
por aí, e em todo caso, se os psiquistas querem ser levados a sério, deveriam
parar de empregar a sugestão a fantasmagorias como as que mencionamos. Mas eles
ainda vem nos gabar “a clareza e a evidência do espiritismo” em contraste com a
“obscuridade da metafísica”, que eles aliás confundem com a simples filosofia
(15); singular evidência, nem que seja apenas do absurdo! Alguns chegam mesmo a
reclamar das “experiências metafísicas”, sem se dar conta que a junção destas
duas palavras constitui um contra-senso puro e simples; suas concepções são de
tal modo limitadas ao mundo dos fenômenos, que tudo o que está além da
experiência não existe para eles. Certamente, isso tudo não deve nos espantar,
pois é evidente que espíritas e psiquistas de diferentes categorias ignoram
profundamente o que é a verdadeira metafísica, de cuja existência sequer
suspeitam; mas gostamos de constatar, toda vez, como suas tendências são as
mesmas que caracterizam o espírito ocidental moderno, voltado exclusivamente
para o exterior, por um monstruoso desvio que não tem paralelo em parte alguma.
Os “neo-espiritualistas” gostam de discutir com os “positivistas” e com os
sábios “oficiais”, mas sua mentalidade no fundo é a mesma, e as “conversões’ de
alguns sábios ao espiritismo não implica para eles mudanças tão profundas como
se imagina, ou ao menos só implicam uma: é que seu espírito, permanecendo ainda
e sempre estreitamente limitado, perdeu, ao menos sob certo aspecto, o
equilíbrio relativo em que vinha se mantendo até então. Pode-se ser um “sábio
de primeira ordem” muito mais incontestável do que o coronel de Rochas, a quem
não negamos um certo mérito, pode-se ser mesmo um “homem de gênio”, segundo as
idéias correntes no mundo “profano” (16), sem que se esteja ao abrigo de tais
acidentes; tudo isso, mais uma vez, só prova que um sábio ou um filósofo,
qualquer que seja seu valor enquanto tal, e qualquer que seja seu domínio
específico, nem por isso é, fora deste domínio, muito melhor do que a massa do
público ignorante e crédulo que fornece a maior parte da clientela espírita e
ocultista.
NOTAS
1. La Réincarnation, pgs. 11-12.
2. Allan Kardec, Le Livre des Esprits, pg. 101; Léon
Denis, Après la mort, pg. 166; Christianisme et Spiritisme, pg. 296;
Gabriel Delanne, L’Evolution animique,
pg. 282, etc.
3. La Réincarnation, pgs. 136-137.
4. Après la mort, pg. 180.
5.
Des Indes à la planète Mars.
6. Em 1914, o coronel de Rochas
aceitou, assim como Camille Flammarion, o título de membro de honra da “Association des Etudes spirites”
(doutrina Allan Kardec), fundada por M. Pulvis (Argol), com Léon Denis e
Gabriel Delanne como presidentes de honra (Revue
Spirite, março de 1914, pg. 140).
7. Le Vies sucessives.
8. Lembramos de memória as
“investigações no passado” às quais se dedicam os “clarividentes” da Sociedade
Teosófica; este caso é análogo ao outro, salvo em que a sugestão hipnótica aí é
substituída pela auto-sugestão.
9. Le Monde Psychique, janeiro de 1912.
10. Le Monde Psychique, janeiro de 1912.
11. Les Mondes, dezembro de 1875.
12. “Sobre estas massas” talvez
fosse mais compreensível.
13. Lumen.
14. Le Monde Psychique, janeiro de 1912.
15. Isto se encontra num artigo
assinado por J. Rapicault, que também está no Monde Psychique de janeiro de 1912, e que se caracteriza pelas
tendências propagandísticas dos espíritas: a “simplicidade”, ou seja a
mediocridade intelectual, é abertamente colocada como uma superioridade;
voltaremos a isso adiante.
Rapicault chega um pouco longe talvez, ao
afirmar que “muitos dos grandes gênios foram fervorosos adeptos do
espiritismo”; já é muito que exista algum, mas não se deve dar muita
importância a isso, porque aquilo que se convencionou denominar “gênio” é algo
bastante relativo, e que vale incomparavelmente menos do que a menor parcela de
verdadeiro conhecimento.
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