quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Hehaka Sapa - O Cachimbo Sagrado

PRÓLOGO


Depois de estudar durante anos a grande quantidade de material existente acerca das nações indígenas da América do Norte, grande parte do qual escrito pelo próprios índios, fiquei convencido de que muitos dos velhos sacerdotes possuíam ainda uma elevada sabedoria. Sem embargo, esta sabedoria às vezes permanece obscura para nós, devido ao caráter singular de suas tradições e também devido ao seu, digamos, gênio poli-sintético, que dá grande importância aos diversos aspectos do mundo e da Natureza. Mas nesta afirmação e uso das muitas formas da Natureza sempre encontramos a idéia de Unidade e de Transcendência divinas. O índio, portanto, nãoé um “pagão”, nem um “idólatra”, mas sim ele sabe que o Grande Espírito é infinito e que, por conseguinte, inclui em Si mesmo todas as possibilidades, de modo que todas as formas são funções ou reflexos d’Ele, que em sua essência é sempre um.
A fim de comprovar que esta sabedoria era conhecida e compreendida de um modo integral pelos velhos sacerdotes dos índios, empreendi uma viagem que viria a durar anos e que me levou a conhecer muitas nações indígenas da América do Norte. Dediquei a maior parte destes anos aos índios das planícies, pois acreditava já há algum tempo que estes povos eram como que os aristocratas dos índios, já que seus anciãos possuíam qualidades e um nível espiritual que raramente se encontram no mundo de hoje. Para aprender destes povos, devemos efetivamente viver com eles, caçar e viajar com eles, compartilhar todos os aspectos da sua vida; e aquele que o faça se verá imensamente recompensado, porque mesmo hoje, em suas vidas muitas vezes de grande pobreza material, encontram-se ainda, no ritmo de sua sociedade e na beleza das formas da sua antiga cultura, aquelas grandes qualidades por cuja falta o mundo moderno está empobrecendo apesar de sua opulência material.
Durante minha estadia entre os índios da reserva de Pine Ridge, tive a extraordinária fortuna de achar um antigo sacerdote dos Sioux Oglala, Hehaka Sapa (Alce Negro), que pediu-me que permanecesse com ele para recolher um relato sobre sua antiga religião; este ancião sabia que brevemente iria morrer, e não queria que estes conhecimentos sagrados, muitos dos quais tinham nele seu último depositário, desaparecessem consigo. Assim, vivi com Alce Negro durante oito meses de inverno em 1978-48, e ao longo deste período registrei diariamente aquilo que me contava; além de tudo o que aprendi, beneficiei-me grandemente do fato de compartilhar a nobre vida de sua família e de muitos amigos. Alce Negro já não está vivo, mas este é seu livro, e tenho a esperança de que, graças a ele, seguirá vivendo, e que aqueles que o leiam compreenderão melhor tudo o que constituiu o centro e a própria vida dessa grande povo.
Encontrei muitos anciãos de grande santidade entre os índios, mas em Alce Negro havia um poder espiritual único, e estou seguro de que isto era reconhecido por todos os que tiveram a oportunidade de conhece-lo. Alce Negro nasceu no início da década de 1860, e assim conheceu os dias em que seu povo percorria as planícies caçando os bisontes, além de ter lutado contra os homens brancos em Little Big Horn e em Wounded Knee Creek. Era primo do grande chefe e sacerdote Cavalo Louco, e conheceu a Touro Sentado, Nuvem Vermelha e Cavalo Americano. Ainda que não falasse inglês, teve ocasião de observar bem o mundo do homem branco, pois viajou com Buffalo Bill à Itália, França e Inglaterra, aonde dançou diante da Rainha Vitória. Mas, fosse caçando, viajando ou lutando, Alce Negro não era como os demais homens. Em sua juventude foi instruído no saber sagrado de seu povo por grandes sacerdotes, dentre os quais contavam-se Caminho Negro, Caçador de Redemoinho e o sábio Cabeça de Alce, de quem aprendeu toda a história de sua antiga religião. Com este conhecimento, Alce Negro orou e jejuou muito, e graças a isto converteu-se em um homem sábio que recebeu muitas visões e um poder especial destinado a ser empregado para o bem de sua nação. Esta missão obcecou Alce Negro por toda a sua vida e lhe causou muito sofrimento, pois, embora houvesse recebido o poder de guiar seu povo pelo caminho sagrado dos seus antepassados, não via com que meios tornar realidade a visão. Creio que era esta a razão por que Alce Negro desejava fazer um livro que explicasse a religião dos Sioux, pois tinha a esperança de que, graças a este livro, seu povo, assim como os homens brancos, obteria uma melhor compreensão da belez e verdade de sua antiga religião.
Alce Negro pertencia ao grupo Oglala dos Dakota Teton, um dos ramos mais poderosos da grande família Sioux. Sioux na realidade é um nome genérico aplicado a numerosas tribos que tem uma origem comum e falam a mesma língua; inclui as seguintes nações, classificadas segundo sua língua: Assiniboin, Vrow, Dakota, Hidatsa, Iowa, Kansa, Mandan, Missouri, Omaha, Osage, Oto e Ponca. Ao longo de suas migrações e guerras com tribos vizinhas, os dakota (os aliados) dividiram-se em sete ramos, constituindo aquilo que foi chamado de Sete Fogos do Conselho, ou Otchenti Chakowin: os oglala, minnenconjou, ochenopa, unopapa, brulé,  além dos “pés pretos” e os “sem arco”. Segundo uma antiga história que conheci através de Alce Negro, e segundo os documentos dos primeiros viajantes e missionários, no século XVI os dakota estavam estabelecidos nas nascentes do Mississipi, e no século XVII foram expulsos de Minnesota para o oeste por seus poderosos inimigos, os chppewa. Ao abandonar os bosques e os rios, os dakota substituiram a piroga pelo cavalo com notável facilidade, e no séculoXIX eram conhecidos e temidos como uma das nações mais poderosas das planícies; com efeito, estes sioux dakota foram talvez os que, de todas as tribos indígenas, ofereceram a maior resistência à expansão dos brancos para o oeste.
Este livro contém muitos dados que os índios, até estes últimos tempos, evitaram divulgar, porque consideravam, e com razão, que são coisas demasiado sagradas para serem comunicados a qualquer um; nos nossos dias, os poucos sábios que ainda vivem entre eles dizem que, ao aproximar-se o fim de um ciclo, quando em todos os lugares os homens tornaram-se ineptos para compreender e, sobretudo, para por em prática as verdades que lhes foram reveladas na origem – o que tem por consequência a desordem e o caos em todos os campos – é permitido, e mesmo desejável, expor este conhecimento à luz do dia; pois a verdade, por sua própria natureza, defende-se contra a profanação, e é possível que assim ela chegue até aqueles que estão qualificados para penetrá-la profundamente e que sejam capazes, graças a ela, de consolidar a ponte que é preciso construir para sair desta idade obscura.
Esta história do Cachimbo Sagrado dos sioux foi transmitida oralmente pelo anterior “guardião do Calumet”, Hehaka Pa (Cabeça de Alce) a três homens; dos três, hehaka Sapa era o única que ainda estava vivo na época em que estivemos com os sioux. Quando Cabeça de Alce confiou esta história sagrada dos sioux a Alce Negro, disse-lhe que deveria “ser transmitida de geração em geração, pois, enquanto ela for conhecida e o Calumet estiver em uso, nosso povo viverá; mas, a partir do momento em que for esquecida, nosso povo já não terá um centro e perecerá”. Esta é a razão por que fazemos votos de que este livro ajude em certa medida, por débil que seja, a preservar este centro de uma nobre nação, da qual muitos membros, ainda hoje e apesar de uma pressão terrível, estão resolvidos a salvaguardar estes ritos antigos que lhes foram revelados no princípio pelo Grande Espírito.
Nas notas estabelecemos incidentalmente concordâncias com outras tradições com o fim de evidenciar a universalidade e a ortodoxia – ou a verdade intrínseca – da tradição dos sioux, e também para mostrar que esta, que de fato coincide com a da maior parte dos índios da América do Norte, possui todos os elementos de uma verdadeira espiritualidade. Já é hora que os índios da América do Norte voltem a tomar consciência de si mesmos, de seu patrimônio espiritual e de sua civilização, pois já faz demasiado tempo que a verdadeira natureza de sua antiga sabedoria vem sendo falsificada nos livros, seja por simples ignorância, seja pela influência de todos os tipos de preconceitos.
Convém assinalar que os ritos descritos por Alce Nagro correspondem aos seus protótipos originais, de modo que apresentam em certos aspectos uma diferença bastante considerável em relação às formas mais complicadas – mas não indispensáveis – que estes ritos possam ter adquirido mais tarde.
Com exceção das que mencionam outra fonte, todas as notas concernentes à tradição dos sioux provém diretamente de Alce Negro e, em algumas ocasiões, também de seu amigo Pequeno Guerreiro, homem notável que nos auxiliou em mais de um aspecto.
Desejamos expressar nossa gratidão, em primeiro lugar, ao filho de Alce Negro, que nos serviu de intérprete. Graças a ele desfrutamos da oportunidade excepcional de ter um intéprete que compreendia perfeitamente o inglês e o lakota e que, ademais, estava familiarizado com a sabedoria e os ritos de seu povo; de fato, a carência destes conhecimentos é uma das causas principais de que existam tantos textos cheios de erros a respeito dos índios.
Aos leitores que queiram conhecer mais a respeito do santo homem que nos ditou este livro, recomendamos a obra de John G. Neihardt, Black Elk Speaks (New York, William Morrow, 1932).
Joseph Epes Brown



INTRODUÇÃO


A tradição dos índios da América do Norte, ou, mais precisamente, daqueles das planícies e dos bosques cujos domínio se estende desde as Montanhas Rochosas – e até mais longe – até o Oceano Atlântico, possui um símbolo e um “meio de graça”de primeira importância: o Calumet, o qual representa uma síntese doutrinal a um tempo concisa e complexa, e também um instrumento ritual no no qual se apoia toda a vida espiritual e social; descrever o simbolismo do Cachimbo sagrado e de seu rito equivale pois, em certo sentido, a expor toda a sabedoria dos índios. É verdade que a tradição indígena compreende forçosamente variações bastante consideráveis devidas à dispersão secular das tribos, e que se referem, por exemplo,ao mito de origem do Calumet ou ao simbolismo de suas cores; por isso, não conservaremos aqui senão os aspectos fundamentais da sabedoria indígena, que permanecem sempre idênticos sob a variedade de suas expressões. Não obstante, utilizaemos preferencialmente os símboos empregados pelos sioux, nação à qual pertencia Hehaka Sapa, o venerável autor deste livro, falecido em 1950 na reserva de Pine Ridge em South Dakota.
Os índios da América do Norte são uma das raças que mais foram estudadas por etnólogos e, sem embargo, não podemos afirmar que sejam conhecidos perfeitamente; a etnografia, como qualquer outra ciência comum, não engloba todo o conhecimento possível, e não poderia ser, por conseguinte, a chave de todo o conhecimento. Se queremos penetrar o sentido da sabedoria dos índios, não podemos fazê-lo senão com a ajuda de outras doutrinas tradicionais ou sagradas ou, mais precisamente – o que dá no mesmo – à luz da philosophia perennis que permanece una e imutável em todas as formas que possa tomar através das épocas.
O índio de antigamente não se deixa classificar facilmente em uma das categorias conhecidas de civilização ou de não-civilização, e parece constituir, deste ponto de vista, um tipo à parte no conjunto de tipos humanos; mesmo quando não reconhecemos nele o caráter de “civilizado”, somos obrigados a ver ali um homem estranhamente completo: sua dignidade e sua inteireza, sua nobreza feita de retidão, de coragem e de generosidade, além da potente e sóbria originalidade de sua arte que o assemelha à águia e ao sol, fazem dele uma espécie de ser mitológico que fascina e obriga ao respeito; talvez os antigos germânicos ou os mongóis anteriores ao Budismo nos tivessem causado impressão análoga.
Quanto à “civilização”, as experiências do século XX nos obrigam a reconhecer que é bem pouca coisa, ao menos na medida em que se distingue e se separa do mundo religioso; de fato, se entendemos a palavra “civilizado” no sentido bastante superficial que ela tem correntemente, e que significa que um homem está submetido a condições de vida artificiais, diferenciadas e “abstratas”, o pele-vermelha não perde nada por não responder a esta definição; ao contrário, a simplicidade de seu tipo de vida ancestral cria o ambiente que permite ao seu gênio afirmar-se; queremos dizer com isto que o objeto deste gênio, como, aliás, acontece com a maior parte dos nômades e dos semi-nômades (e, em todo caso, com os caçadores-guerreiros), é muito menos a criação artística, exterior, do que a própria alma, o homem integral, matéria plástica do “artista primordial”. Esta ausência das “belas artes” propriamente ditas – não falamos aqui da pictografia – não é, pois, simplesmente um “menos”, já que está condicionada e compensada por uma atitude espiritual e moral que, precisamente, nãopermite ao homem exteriorizar-se a ponto de converter-se em um servidor da matéia inerte, como o exige forçosamente toda arte “estática”. Um trabalho “servil”ou “de squaw[1], ou seja, que reduza o homem a um papel aparentemente periférico, é incompatível com uma civilização fundada na Natureza e no Homem em suas funções primordiais; a arte é feita para o homem e não o homem para a arte, pode-se dizer a partir desta perspectiva, e, de fato, a arte indígena é antes de tudo um “enquadramento” desta criação divina, central e livre que é o ser humano. 
O objeto da manifestação genial é, portanto, sempre o homem enquanto símbolo e mediador: o que se exterioriza nunca se separa do microcosmo vivo para converter-se em um ser novo, inerte, numa espécie de “ídolo” que acabaria por absorver e aplastar o criador humano; numa palavra, o índio concebe a arte como uma função viva do homem enquanto ser central e soberano, e é a própria essência espiritual desta arte, e não nenhum tipo de incapacidade, que exclui a projeção do homem na matéria e esta espécie de esquecimento de si diante de um ideal materializado. A arte indígena é de uma simplicidade totalmente primordial, sua linguagem é concentrada, direta, atrevida; como o próprio índio – tipo não apenas nobre como também poderosamente original – sua arte é a um tempo “qualitativa” e espontânea; possui um simbolismo preciso e um frescor surpreendente. “Enquadra”, como dissemos, a pessoa humana, e isto é o que explica a alta qualidade que alcança aqui a arte da indumentária: adornos de cabeça  majestosos – sobretudo os cocares de penas de águia – vestimentas cheias de franjas e bordados com símbolos solares, mocassinos com desenhos que parecem querer tirar dos pés todo peso e toda uniformidade, vestidos femininos de uma estranha simplicidade; esta arte índia, tanto em seus aspectos concisos como em suas expressões mais ricas, não é talvez das mais sutis, mas certamente é uma das mais geniais que existem.
Alguns autores acham-se na obrigação de colocar em dúvida que a tradição indígena possua a idéia de Deus, e isto porque acreditam descobrir nela um “panteísmo” ou “imanentismo” puro e simples; mas este erro se deve ao fato de que a maior parte dos termos indígenas que designam a Divindade aplicam-se a todos os aspectos possíveis desta, e não apenas ao aspecto pessoal; Wakan-Tanka – o “Grande Espírito” – é Deus, não apenas enquanto Criador e Senhor, mas também enquanto Essência impessoal.
Este nome de “Grande Espírito”, como tradução do termo sioux Wakan-Tanka e de termos similares em outras línguas indígenas, às vezes dá lugar a objeções; sem embargo, se Wakan-Tanka – e os termos correspondentes, como Wakonda ou Manitu – pode ser traduzido como “Grande Mistério”, “Grande Poder Misterioso”, e até como “Grande Medicina”, “Grande Espírito”, embora não inteiramente adequado é bastante suficiente; é verdade que a palavra “espírito” possui uma certa indeterminação, mas ela apresenta avantagem de não implicar nenhuma restrição, e isto é exatamente o que convém ao termo “poli-sintético” wakan. A expressão “Grande Mistério” proposta por alguns não esclarece mais do que “Grande Espírito” a idéia que se quer refletir, pois a palavra “mistério” não expressa em suma senão uma qualidade extrínseca; ademais, o que importa saber não é se o termo indígena expressa exatamente o que nós entendemos por “espírito”, mas se a idéia expressa pelo termo índio pode ser traduzida por “espírito” ou não.
Dissemos anteriormente que o “Grande Espírito” é Deus, não apenas enquanto Criador e Senhor, mas também enquanto Essência impessoal; acrescentaremos que, inversamente, é Deus, não só como puro Princípio, mas também como Manifestação: Ele é, pois, Deus como tal e em Si mesmo, e também Deus como Manifestação cósmica, se podemos nos espressar assim, e, por último, Deus como reflexo de Si mesmo nesta Manifestação, ou seja como selo divino da Criação.
O que acabamos de dizer se depreende de modo necessário do próprio uso que os índios fazem da maior parte dos termos que designam o “Grande Espírito”; mas, fora isto, os sioux estabelecem explicitamente uma distinção entre os aspectos essenciais de Wakan-Tanka: Tunkashila (“Avô”) é Wakan-Tanka na medida em que este está além da manifestação, e mesmo além de toda qualidade ou determinação, seja qual for; Ate (“Pai”), ao contrário, é “Deus em ato”: o Criador, o Sustentador e o Destruidor. De modo análogo, no que concerne à Terra,  faz-se uma distinção entre Unchi (“Avó”) e Ina (“Mãe”): a primeira é a substância de todas as coisas, enquanto que a segunda é seu ato criador – considerado aqui como “iluminação” –,  ato que produz, juntamente com a “inspiração” por Ate, todos os seres.
Através das espécies animais e dos fenômenos fundamentais da Natureza, o índio contempla as essências angélicas e as Qualidades divinas: nesta ordem de idéias, citaremos as seguintes considerações de uma carta de Joseph Epes Brown: “É difícil, para aqueles que vêem a religião dos pele-vermelha do exterior, compreender a importância que os animais e, de modo geral, todas as coisas contidas no Universo, têm para eles. Para estes homens, todo objeto criado é importante, pela simples razão de que eles conhecem a correspondência metafísica entre este mundo e o “Mundo real”. Nenhum objeto é para eles o que parece ser apenas pelas aparências; não vêem na coisa aparente senão um débil reflexo de uma realidade principial (N.T.: relativa ao Princípio). Porisso, tudo é wakan, sagrado, e possui um poder, segundo o grau espiritual que reflete; assim, muitos objetos possuem um poder para o mal, tanto quanto para o bem, e todo objeto é tratado com respeito, pois o “poder” particular que contém pode ser transferido para o homem; os índios sabem que não há nada, no Universo, que não tenha sua correspondência analógica na alma humana. O índio se humilha diante de toda a Criação, sobretudo quando “implora” (vale dizer, quando invoca ritualmente o Grande Espírito na solidão), porque todas as coisas visíveis foram criadas antes dele (anterioridade que, do ponto de vista de um certo simbolismo das criaturas, possui também um sentido puramente principial) e que, por serem seus antepassados, merecem respeito; mas o homem, ainda que tenha sido criado por último, é, não obstante, o primeiro dos seres, porque somente ele pode conhecer Wakan-Tanka[2].
Estas considerações permitirão compreender melhor como toda coisa “característica”, ou seja, que manifesta uma “essência”, é wakan, sagrada. Crer que Deus é o sol, é certamente um erro totalmente “pagão” – e alheio ao pensamento indígena – mas é igualmente absurdo crer que o sol não é mais do que uma massa ibncandescente, ou seja que ele não “é” Deus de modo algum. Poderíamos também nos expressar da seguinte maneira: é wakan aquilo que é integralmente conforme ao seu proprio “gênio”; o Princípio é Wakan-Tanka, vale dizer,aquilo que é absolutamente “si mesmo”; e, por outro lado, o sábio é aquele que é perfeitamente conforme ao seu “gênio” ou à sua “essência”; e esta não é outra coisa que o “Grande Espírito”. É wakan, “sagrado”, tudo o que permite “conformar-se” diretamente à Realidade divina; o homem é wakan quando sua alma manifesta o Divino com a evidência espontânea e fulgurante das maravilhas da Natureza: os elementos, o sol, o relâmpago, a águia, o bisonte, o urso, as montanhas, os rios, as estrelas, e assim por diante. Porisso a covardia – espécie de abandono da “personalidade” – é o pecado por excelência; e isto explica também o “individualismo” aparente ou real dos índios, atitude que, partindo da “personalidade qualitativa”, terminou por converter-se num individualismo arriscado.
Quanto ao conhecimentio do “Grande Espírito”, que apenas o homem, dentre todas as criaturas terrestres, pode alcançar, Hehaka Sapa o definiu nos seguintes termos: “Sou cego e não vejo as coisas deste mundo; mas quando a luz vem de Cima ela ilumina meu coração e posso ver, pois o Olho do meu coração (Chante Ishta) vê tudo. O coração é o santuário em cujo centro se acha um pequeno espaço no qual habita o Grande Espírito e este é o Olho (Ishta). Este é o Olho do Grande Espírito, mediante o qual Ele vê todas as coisas, e mediante o qual nós O vemos. Quando o coração não é puro, o Grande Espírito não pode ser visto, e se morrerdes nesta ignorância, vossa alma não poderá regressar imediatamente para o Seu lado, mas deverá purificar-se mediante peregrinações através do mundo. Para conhecer o Centro do coração aonde reside o Grande Espírito deveis ser puros e bons, e viver segundo o modo como o Grande Espírito nos ensinou. O homem que é puro deste modo contém o Universo no bolso do seu coração (Chante Ognaka)”.
Não poderíamos fazer melhor, antes de comentar sumariamente o simbolismo do Calumet, do que citar a explicação que Hehaka Sapa ofereceu em seu primeiro livro (Black Elk Speaks): “Encho o Cachimbo sagrado com a casca do Salgueiro vermelho; mas antes que fumemos, deveis ver como ele é feito e o que significa: estas quatro fitas que pendem do cano são as quatro Regiões do Universo: a negra representa o Oeste, aonde vivem as criaturas do Trovão que nos enviam a chuva; a branca representa o Norte, de onde vem o grande Vento Branco que purifica; a vermelha representa o Leste, de onde nasce a luz e aonde mora o Farol da aurora a fim de trazer a ciência aos homens; a amarela representa o Sul, de onde vem o verão e o poder de crescer. Mas estes quatro espíritos não são mais do que Um Espírito, e esta pena de águia simboliza o Um, que é como um Pai; mas representa também os pensamentos dos homens que devem elevar-se até as alturas como se elevam as águias. Não é o Céu como um pai e a Terra como uma mãe, e todos os seres vivos seus filhos, quer tenham pés, asas, ou raízes? E este couro na piteira, que deve ser de pele de bisonte, indica a Terra, da qual viemos e de cujo seio nutrimos toda a vida, semelhantes a recém-nascidos, com todos os animais, pássaros, árvores e ervas. E porque significa tudo isto, e mais do que qualquer homem possa compreender, o Cachimbo é sagrado”.
Quando um índio pratica o ritual do Calumet, ele saúda o céu, a terra,os quatro pontos cardeais, seja “oferecendo-lhes” o Cachimbo, apresentando-lhes o cano, como quer por exemplo o ritual sioux, seja dirigindo a fumaça para as regiões indicadas e às vezes também ao “fogo central”[3] – o agni védico – que arde diante do oficiante; a ordem destes gestos pode variar, mas seu plano estático é sempre o mesmo, já que constitui o esquema doutrinal, dogmático se se quiser, que será atualizado pelo rito.
Conforme alguns usos rituais, começaremos nossa enumeração do Oeste: este “Vento do Oeste” traz o trovão e a chuva, ou seja a Revelação e também a Graça; o “Vento do Norte” purifica e dá força; do “Leste” vem a Luz, e portanto o Conhecimento, ambos relacionados à Paz, segundo a perspectiva indígena; o “Sul” é a fonte da Vida e do Crescimento; é ali que começa o “bom Caminho vermelho, a Via da alegria e da felicidade. Assim é que o Universo depende de quatro determinações primordiais, a saber: a “Água”, o “Frio”, a “Luz” e o “Calor”; a primeira, a “Água”, não é outra coisa senão o aspecto positivo da escuridão, que normalmente deveria opor-se à luz como o frio se opõe  ao calor; o aspecto positivo da escuridão é, com efeito, sua qualidade de “sombra”, que protege contra a força ressecante do sol e que produz ou favorece a umidade; é preciso que o céu se escureça antes de poder dar a chuva, e que Deus manifesta a Cólera – o trovão – antes de conceder a Graça, cujo símbolo natural é a chuva. Quanto ao “frio” – “o Vento santificante e purificador que dá a força” – seu aspecto positivo é a pureza, de modo que poderíamos opor a “Pureza” do Norte ao “Calor” do Sul, assim como a “Chuva” do Oeste se opõe à “Luz” do Leste; a relação entre o “Frio” e a “Pureza” é evidente: as coisas inanimadas, e portatnto “frias” – ou seja, os minerais – não estão sujeitas à corrupção como os seres animados e “quentes”. A “Luz” do Leste, como dissemos, é o “Conhecimento”; o “Calor” é a “Vida”e, por conseguinte, o “Amor” e também a “Bondade”, a “Beleza” e a “Felicidade”.
Antes de prosseguirmos, devemos responder a uma objeção que pode surgir pelo fato de que os “Quatro Ventos”, na doutrina sioux, parecem corresponder a uma função bastante secundária da Divindade, que se divide em quatro aspectos subdivididos cada qual quatro vezes; agora, fora o fato de que não é o simbolismo mitológico sioux que nos propusemos estudar aqui em primeiro lugar, mas a metafísica da Quaternidade que transparece em todas as variações da tradição indígena, a doutrina sioux reconhece aos quatro princípios, mediante uma notável derrogação da hierarquia mitológica comum, uma preeminência sobre as demais Divindades, e isto indica claramente que, no ritual do Calumet, ou melhor na perspectiva vinculada a ele, os pontos cardeais representam as quatro Manifestações divinas essenciais e, por conseguinte, também seus Protótipos no Ser. É necessário, ademais, nunca esquecer que, para outros índios, o simbolismo toma formas muito diferentes das que possuem os sioux; assim, para não citarmos mais que um exemplo, entre os arapaho, os quatro princípios estão representados por quatro “Anciãos” que, emanados do “Sol”, velam pelos habitantes do mundo terrestre, e aos quais são atribuídos simbolicamente o dia (Sudeste), o verão (Sudoeste), a noite (Noroeste) e o inverno (Nordeste); por último, convém notar ainda que a Quaternidade é muitas vezes considerada como se constituísse no fundo uma “Duodecimidade”, e cada um dos seus elementos é concebido segundo três aspectos, abstraindo-se aí o eixo vertical Céu-terra que acrescenta à Quaternidade dois elementos novos, ainda que de outra ordem.
Dito isto, voltemos à consideração dos quatro Princípios em si mesmos: poderíamos também, sempre particndo do “Oeste” para o “Norte”, designar os quatro “Lugares Cósmicos” respectivamente pelos termos: “Umidade”, “Frio”, “Secura”, “Calor”; o aspecto negativo correlativo da umidade é a escuridão e o aspecto positivo correlativo da secura é a luz. O “Pássaro do Trovão” (Wakinyan-Tanka),  que habita o Oeste e protege a terra e a vegetação contra a secura e a morte é descrito como lançando relâmpagos pelos olhos e  produzindo o trovão com suas asas[4]; a analogia com a Revelação do Sinai, acompanhada de “trovões” e “relâmpagos” e de uma “nuvem espessa”, é tanto mais impressionante na medida em que o acontecimento bíblico teve lugar num penhasco, e que a mitologia índia estabelece precisamente um vínculo entre o “Pássaro do Trovão” e o “Penhasco”, como veremos a seguir. Quanto à assimilação simbólica da Revelação com o Oeste, pode parecer insólita e paradoxal, mas não devemos perder de vista  que os pontos cardeais têm aqui forçosamente um significado positivo: o Oeste não será, pois, o contrário do Leste, ou seja a “Escuridão” e a “Ignorância”, mas seu complemento positivo, ou seja a “Chuva” e a “Graça”. Pode parecer surpreendente, por outro lado, o fato de que a tradição indígena estabeleça um vínculo simbólico entre o “Vento do Oeste”, portador do trovão e da chuva, e o “penhasco”, personificação “angélica” ou “semidivina” de um aspecto cósmico de Wakan-Tanka: não obstante, esta aproximação é plausível, pois o penhasco reune em si os mesmos aspectos complementares da tormenta: o aspecto terrível de sua dureza destrutiva é, para os índios, símbolo de destruição – donde as armas de pedra com as quais estão relacionadas as “pedras de raio” – e o aspecto da Graça, porque dá nascimento às fontes que, como a chuva, regam a terra[5].
Os “Quatro Ventos” são com as “Potências produtoras” (no sentido do termo sânscrito Shakti) das “Regiões do Mundo” e são concebidos como dando a volta ao horizonte e determinando a vida terrestre mediante suas influências combinadas.O vento é como o “hálito” do mundo terrestre em que vivemos; representa assim a “respiração” cósmica. O “hálito” é em certo sentido o veículo da “alma” ou do “espírito”; daí a conexão etimológica destas palavras em muitas línguas; mas ele é também o veículo ativo da vida, pois é ele que alimenta e purifica o sangue, suporte passivo e inferior do elemento vital. O “hálito” é, pois, ao mesmo tempo, a “alma” da “vida”, e é feito assim à imagem do Verbo divino cujo Hálito criador fez o homem.
Os pontos cardeais estão associados simbolicamente, como dissemos, a quatro Divindades, designadas de diversas maneiras e que personificam outros tantos aspectos complementares do Espírito universal; este os une em si mesmo, como as cores se unem na luz; e ele “é” Wakan-Tanka no sentido de que se identifica com Deus em virtude da unicidade da Essência, como a luz identifica-se essencialmente com o Sol. Segundo a cosmologia dos sioux, estas quatro Divindades – ou “semi-Divindades” – subdividem-se por sua vez cada qual em quatro entidades hierarquizadas, que levam os nomes mais diversos, tais como “Sol”, “Lua”, “Bisonte”, “Alma”, e que indicam outras tantas ramificações ou reflexos do Espírito no cosmo; estas ramificações não são outra coisa que os anjos secundários cujas inumeráveis modalidades penetram até os confins do criado.
Os sioux estabelecem uma relação analógica entre os “Quatro Ventos” e os quatro períodos cíclicos, simbolizados pelas quatro penas de águia que adornam o “círculo sagrado” utilizado na “Dança do Sol” e em outras ocasiões; o primeiro período é o da “Pedra”, o segundo, o do “Arco”, o terceiro, o do “Fogo” e o quarto, o do “Cachimbo”, sendo que cada um destes símbolos representa o meio espiritual do período respectivo. Do mesmo modo, existem quatro idades através das quais todas as coisas criadas têm que passar: a primeira é o Sul, que é amarelo e a fonte de toda a vida, e esta é a primeira idade num ciclo histórico; a segunda é o Oeste, que é negro; a terceira é o Norte, que é branco; e a quarta, o Leste, que é vermelho; a humanidade se acha atualmente na quarta idade, que terminará num grande desastre. Esta divisão, que atribui a “Idade do Ouro” ao Sul e a “Idade do Ferro” ao Leste, enquanto as demais doutrinas tradicionais atribuem a primeira ao Norte e a segunda ao Oeste, pode surpreender à primeira vista, mas devemos ter em conta aqui duas coisas: primeiramente, no que concerne à “Idade do Ouro” – o Sathya Yuga hindu – embora seja correto atribuí-la ao Norte em razão da situação polar do Paraíso terrestre, não é menos certo também que, de fato, o polo atual está coberto de gelo e que, de um ponto de vista “qualitativo”, é o Sul que corresponde efetivamente ao Paraíso e, portanto, à “Idade do Ouro”, de modo que o simbolismo em questão pode fundametnar-se no calor e na fertilidade do Sul tanto quanto na situação hiperbórea do Jardim primordial; em segundo lugar, no que concerne à “Idade do Ferro” – o Kali Yuga – embora seja justo atribuí-la, segundo a perspectiva do “Velho Mundo” ao Oeste, já que é ali que o sol se põe e é ali que teve origem o materialismo moderno que estende suas trevas à humanidade inteira, não é menos certo que, para os pele-vermelha, este materialismo destruidor da Natureza veio do Leste; é ali aonde se situa aquilo que para os orientais é o “escuro Ocidente” e é dali que vieram estes “espíritos” (washicun) de rostos pálidos que exterminaram a raça vermelha; mas isto não impede de modo algum que o Salvador universal, o Messias esperado por todos os povos ao fima da “Idade do Ferro”, venha igualmente do Leste, de modo que o simbolismo solar desta direção permanece intacto na teoria sioux dos quatro períodos cíclicos. Nesta mesma ordem de idéias, a cosmologia dos cheyennes insiste na posição ártica da sede da Tradição pirmordial: situa o Paraíso terrestre no extremo Norte, numa ilha surgida das águas primordiais, na qual reinava uma perpétua primavera e aonde os homens e os animais falavam a mesma língua; este relato descreve a continuação das atribulações, em particular dos dilúvios, depois dos quais a raça vermelha – ou melhor seus antepassados primordiais – estabeleceu-se de uma vez por todas no Sul, por sua vez convertido em região fértil.
Não podemos esquecer de mencionar aqui que o Calumet comprende, juntamente com seu simbolismo quaternário, também um simbolismo ternário, que se refere aos três mundos, aos quais correspondem respctivamente o céu, os pontos cardeais e a terra. Estes três mundos, ademais, encontram-se também indicados, entre os índios Crow, na forma de três anéis pintados no mastro central da Dança do Sol, mastro que significa a Árvore da Vida  ou o Eixo do Mundo, conforme o simbolismo hiperbóreo, e que são interpretados como formando um ternário em sentido ascendente: “corpo, alma, espírito” ou “grosseiro, sutil, puro”[6].
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As funções essenciais da Existência e seus dois fundamentos “paterno” e “materno”[7] – ou “divino” e “existencial” – devem ser lembrados e atualizados sempre pelo Calumet a fim de que o homem não perca nunca o contato com o Todo, do qual ele é como que uma partícula; o ritual do Calumet equivale a uma oração e a uma consagração pois, “como nenhuma coisa boa pode ser feita apenas pelo homem, quero primeiro fazer uma oferenda e enviar uma voz ao Espírito do Mundo para que me ajude a ser verídico” (Hehaka Sapa). O Calumet é, pois, pontifex: ele é o instrumento “eucarístico” que une o homem, perseguido que está pelas mordidas do “finito” ao Infinito, e isto explica a veneração e o amor que os índios lhe têm.
Isto nos leva a considerar outro aspecto deste rito no qual aparece a analogia entre a fumaça do tabaco sagrado (kinni-kinnik) e o incenso: na maioria das tradições, o incenso é de certo modo a “resposta humana” à Presença divina; a fumaça indica, por conseguinte, a “presença espiritual” do homem frente à Presença sobrenatural de Deus[8], como enuncia este encantamento iroquês: “Saudações! Saudações! Saudações! Tu que criaste todas as coisas, escutai a nossa voz. Obedecemos agora aos Teus mandamentos. O que Tu criaste volta para Ti, a fumaça do tabaco sagrado eleva-se até Ti, para que se veja que nossa palavra é verídica”.
No ritual do Calumet o homem representa o estado de “individuação”; o espaço – com suas seis direções – representa o Universal no qual o individual deve reabsorver-se ao transmutar-se; a fumaça que se perde no espaço e que se identifica com ele, indica esta transmutação do “endurecido”, “opaco” ou “formal”, em “dissolvido”, “transparente” ou “informal”; indica, ao mesmo tempo, a irrealidade do “eu”, e portanto a do mundo, que, espiritualmente identifica-se com o microsocmo humano. Mas esta reabsorção da fumaça no espaço – que “é Deus” – transcreve igualmente o mistério da “identidade” em virtude da qual, para falarmos em termos sufis, “o sábio não foi criado”: o homem não é senão ilusoriamente um “peso” subtraído ao espaço e isolado nele; na realidade, ele “é” este espaço, e deve “converter-se naquilo que ele é”, como dizem as Escrituras hindus[9]. O homem, ao absorver com a fumaça sagrada o “perfume da Graça”, e ao exalar-se com ele até o ilimitado, expande-se sobrenaturalmente no “Espaço divino”, se podemos nos exprimir assim; mas Deus é também representado pelo fogo que consome o tabaco: este último é o homem, ou, desde um ponto de vista macrocósmico, o Universo; o espaço “encarna-se” aqui no fogo do Calumet, como os pontos cardeais se unem, segundo um outro simbolismo, no fogo central.
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Segundo Hehaka Sapa,”tudo o que o índio faz, ele faz em círculo, e é assim porque o Poder do Universo atua sempre mediante círculos, e todas as coisas tendem a ser redondas. Nos dias de antes, quando éramos um povo forte e feliz, recebíamos todo nosso poder do círculo sagrado da nação e, enquanto o círculo permanecia inteiro, o povo florescia. A árvore florida era o centro vivo do círculo, e o círculo das quatro direções a nutria. O Leste dava a paz e a luz, o Sul o calor, o Oeste a chuva, e o Norte, com seu vento frio e potente, dava a força e a resistência. Este conhecimento veio-nos do mundo exterior (o Mundo transcendente, o Universo) com nossa religião. Tudo o que faz o Poder do Universo, ele o faz em forma de círculo. O céu é circular, e ouvi dizer que a terra é redonda como uma bola, e também as estrelas são redondas. O vento, em sua máxima força, redemoinha. Os pássaros fazem seus ninhos em forma de círculo, pois eles têm a mesma religião que nós... Nossas tendas (tipis) eram circulares como os ninhos dos pássaros e estavam sempre dispostas em círculo: o centro da nação era como um ninho feito de muitos ninhos, no qual o Grande Espírito queria que aninhássemos nossos filhos” (Black Elk Speaks).
Todas as formas estáticas da existência acham-se, pois, determinadas por um arquétipo “concêntrico”, material ou mental; centrado em seu ego qualitativo, “totêmico”, quase impessoal, o índio tende à independência, e daí à indiferença, com respeito ao mundo exterior; ele rodeia-se de silêncio como se este fosse um círculo mágico e este silêncio é sagrado porque transmite as influências celestes. O índio extrai sua força espiritual deste silêncio, cujo suporte natural é a solidão; sua oração comum é muda: o que ela exige não é um pensamento, mas uma “consciência do Espírito”, e esta consciência é imediata e informal como a abóboda celeste.
Se o Grande Espírito atua sempre “mediante círculos”, de um outro ponto de vista Ele atua também sempre “mediante quaternidades”, como o indicam as direções espaciais e os ciclos temporais, e então o círculo se converte em cruz dinâmica ou swastika; por isso o índio, cuja vida se desenrola de certo modo entre o ponto central e o espaço ilimitado, realiza as coisas estáticas segundo o princípio circular ou unitivo, e as coisas dinâmicas – as ações – segundo o princípio quaternário[10], vale dizer, em conformidade com as quatro virtudes cardeais que são para ele o valor, a paciência, a genrosidade e a fidelidade. Esta estrutura profunda da vida índia significa que o  homem vermelho não se propões “fixar-se” nesta terra na qual tudo, segundo a lei de estabilização e de condensação, e ainda de “petrificação”, ameaça “cristalizar-se”; e isto explica a aversão do índio às casas, sobretudo as de pedra, e também a ausência de escrita que, segundo esta perspectiva, “fixaria” e “mataria” o fluxo sagrado do espírito. A civilização européia, ao contrário, tanto em suas formas dinâmicas como em suas formas estáticas, é profundamente sedentária e urbana; ela está, pois, ancorada no espaço e se estende quantitativamente por ele, enquanto que a civlização indígena tem seu eixo de certa maneira fora do espaço, no centro principial, não localizado; sua expansividade será por conseguinte “qualitativa”, no sentido de que não é senão puro movimento, símbolo do ilimitado, e não delimitação quantitativa, “mercantil” da extensão espacial. Ademais, convém precisar que o Cristianismo, como outras religiões do Velho Mundo,, fixa o Celestial no plano terrestre e constrói santuários com a matéria mais estática, a pedra; a tradição dos pele-vermelha, por sua vez, integra o terrestre – o “espacial” – no celestial onipresente, e também por isso a terra deve permanecer intacta, virgem, sagrada, tal como saiu das mãos divinas – pois somente as coisas puras refletem o Eterno[11]. O índio não é “panteísta”, mas sabe que o mundo está misteriosamente submerso em Deus.
O que dissemos permitirá compreender porque a natureza – paisagem, céus, astros, elementos, animais selvagens – é um suporte necessário da tradição dos pele-vermelha no mesmo nível que são os templos para as demais religiões; todas as limitações impostas à natureza por obras artificiais, pesadas, inamovíveis – e impostas ao homem por sua escravidão em relação a elas – são, pois, sacrílegas e mesmo “idólatras”, e levam em si mesmas os germes da morte[12]. Resulta deste modo de ver que o destino dos pele-vermelha é trágico no sentido próprio do termo: é trágica uma situação sem saída que resulta, não de uma causa fortuita, mas de um choque fatal entre dois princípios. O aplastramento da raça índia é trágico porque o homem vermelho só podia vencer ou morrer[13]; ele sucumbiu porque representava um espírito incompatível com o mercantilismo dos “caras pálidas”. Este drama imenso poderia ser definido como a luta, não apenas entre uma civilização mercantil e materialista e outra cavalheiresca e espiritualista, mas também entre a civilização urbana – no sentido estritamente humano e pejorativo deste termo, que implica uma idéia de “artifício”e de “servilismo”- e o reino da Natureza, considerada como a vestimenta majestosa, pura, ilimitada, do espírito divino[14]. Agora, a Natureza, da qual o índio se sente como que a encarnação e que é ao mesmo tempo seu Santuário, acabará por vencer a este mundo material e sacrílego, pois ela é a Vestimenta, o Hábito, a própria Mão do Grande Espírito.
Frithjof Schuon



PREFÁCIO

Por HEHAKA SAPA


Na grande visão que me sobreveio na aurora da minha vida, quando havia conhecido apenas nove invernos, havia algo cuja importância foi-me sendo revelada à medida em que as luas passavam. Quero falar de nosso Cachimbo sagrado e do que ele significa para nosso povo.
Os homens brancos, ao menos os que são cristãos, nos disseram que Deus enviou seu Filho aos homens para restabelecer a ordem e a paz na terra; e nos disseram que Jesus Cristo foi crucificado, mas que deve regressar no dia do Juízo final, que será o fim deste mundo ou ciclo. Eu sei e compreendo que isto é certo; mas saibam os homens brancos que, também para os pele-vermelha, pela vontade de Wakan-Tanka, o Grande Espírito, um animal se transformou em bípede para trazer o Cachimbo santo a seu povo; e sabemos também que esta Mulher Bisonte Branco que trouxe nosso Cachimbo aparecerá de novo no final deste mundo, acontecimento que nós, os índios, sabemos que já não está muito distante.
A maioria das pessoas chama nosso Calumet de “Cachimbo da paz”, mas em nossos dias já não existe paz sobre a terra, nem sequer entre vizinhos, e sei que isto é assim há muito tempo. Fala-se muito da paz, mas são apenas discursos. É possível, e esta é minha oração, que por nosso Cachimbo sagrado, e graças a este livro em que explicarei o que ele é realmente, a paz chegue aos que são capazes de entender; esta compreensão deve vir do coração e não apenas da cabeça. Estes se darão conta de que nós, os índios, conhecemos o único Deus verdadeiro e lhe rogamos constantemente.
Eu ditei este livro sem outro desejo que o de ajudar meu povo a dar-se conta da grandeza e verdade de nossa própria tradição, e também para facilitar a vinda da paz à terra, não apenas entre os homens, mas neles e com toda a Criação.
Devemos compreender que todas as coisas são obra do Grande Espírito. Devemos saber que Ele está em todas as coisas: nas árvores, nas ervas, nos rios, nas montanhas, e em todos os quadrúpedes e seres alados; e, o que é mais importatne, devemos compreender que Ele está também além de todas estas coisas e de todos estes seres. Quando tenhamos compreendido isto com toda a profundidade em nossos corações, temeremos, amaremos e conheceremos o Grande Espírito; então nos esforçaremos para ser, atuar e viver como Ele quer.

Hehaka Sapa
(Alce Negro)
Manderson, S.D., dezembro de 1947


I

A DESCIDA

DO CACHIMBO SAGRADO


Muitos invernos se passaram desde que isto aconteceu: dois lakota[15] haviam saído para caçar e estavam sobre uma colina; então viram ao longe, no mesmo instante em que saía o sol, algo que avançava em sua direção de um modo estranho e maravilhoso. Quando a coisa se aproximou, viram que era uma mulher muito bonita, vestida com peles brancas de gamo, que levava às costas uma bolsa com franjas. Então um dos homens teve pensamentos impuros e os comunicou ao amigo; mas este lhe disse que não tivesse estes pensamentos, pois seguramente aquela era uma mulher wakan, uma mulher sagrada. Logo a mulher estava perto deles; e, depois de deixar sua bolsa, pediu ao que tinha intenções impuras que se aproximasse. Quando o jovem acercou-se da mulher misteriosa, uma grande nuvem envolveu os dois, e quando, pouco depois, dissipou-se, a mulher permanecia em pé e no solo jazia o homem mau reduzido à condição de um esqueleto, e umas serpentes o devoravam[16]. Então a mulher falou ao outro, o homem bom:
“Considera isto que vês! Vou ao encontro de teu povo e desejo falar a teu chefe Hehloghecha Najin, Chifre Ôco Em Pé. Regressa até ele e diga-lhe que prepare uma tenda espaçosa na qual reunirá todo seu povo e preparará minha chegada. Quero dizer-vos algo muito importante."
O jovem correu em seguida até a tenda de seu chefe e narrou-lhe o acontecido, que esta mulher misteriosa vinha fazer-lhe uma visita e que era preciso preparar sua recepção.
O  chefe Chifre Ôco Em Pé dispunha naquela época de várias tendas desmontadas, e mandou fazer com elas uma grande, tal como havia pedido a mulher[17]. Logo enviou um arauto para avisar as pessoas de que deveriam colocar suas melhores vestes e reunirem-se sem tardar na tenda. Todos estavam muito intrigados enquanto aguardavam na vasta tenda a chegada da mulher celeste, e todos se perguntavam o que poderia ela querer confiar-lhes.
Logo os jovens que vigiavam a chegada da desconhecida anunciaram que a víam longe, e que ela se aproximava deles com graça e dignidade; e de repente a mulher misteriosa entrou na tenda e deu a volta no sentido do movimento do sol[18], detendo-se diante de Chifre Ôco Em Pé[19]. Tomou da bolsa às suas costas e, segurando-a com as duas mãos diante do chefe, disse-lhe:
“Contemplai isto e amai-o para sempre! É uma coisa muito sagrada – lilla wakan – e deveis considerá-la como tal. Nunca um homem impuro estará autorizado a vê-la, pois neste pacote está o Cachimbo sagrado. Com ele, nos invernos futuros, enviareis vossa voz a Wakan-Tanka, vosso Avô e Pai.”[20]
Depois de falar assim, a mulher tirou da bolsa um Calumet, assim como uma pedrinha redonda que depositou no chão. Dirigindo o cachimbo pelo cano, ao céu, disse:
“Com este cachimbo de mistério caminhareis pela Terra; pois a Terra é vossa Avó e Mãe[21] e é sagrada. Cada passo dado sobre ela deveria ser como uma oração. O fornilho deste Cachimbo é de pedra vermelha: é a Terra. Este bisonte jovem que está gravado na pedra e que olha para o centro, representa os quadrúpedes[22] que vivem sobre vossa Mãe. O cano do Cachimbo é de madeira, e isto representa tudo o que cresce sobre a terra. E estas doze plumas que pendem daonde o cano penetra no fornilho são de Wambali Galeshka, a Águia Pintada[23], e representam a Águia e todos os seres alados do ar. Todos esses povos, todas as coisas do Universo, estão vinculadas a ti, que fumas o Cachimbo; todos enviam suas vozes a Wakan-Tanka. Quando orardes com este Cachimbo, orai por todas as coisas e com elas”
A mulher celeste tocou então com o extremo do Cachimbo na pedra redonda colocada no chão e disse:
“Com este Cachimbo estareis unidos a todos os vossos antepassados: vosso Avô e Pai, vossa Avó e Mãe. Vosso Pai Wakan-Tanka também vos presenteia com este seixo redondo feito da mesma pedra vermelha do fornilho do Cachimbo. É a Terra, vossa Avó e Mãe, e é o lugar aonde vivereis e crescereis. Esta Terra que Ele nos deu é vermelha, e os homens que vivem nela são vermelos; e o Grande Espírito também vos deu um dia vermelho e um caminho vermelho[24]. São veneráveis; não os esqueçais. Cada aurora que chega é um acontecimento sagrado, e todos os dias são sagrados, pois a luz vem de vosso Pai Wakan-Tanka; e deveis lembrar-vos sempre de que os homens e todos os demais seres nesta Terra são sagrados e devem ser tratados como tais.[25]
“A partir de agora o Cachimbo de mistério estará nesta terra vermelha, e os homens tomarão do Cachimbo e enviarão suas vozes ao Grande Espírito. Estes sete círculos[26] que vêdes na pedra significam muitas coisas, pois representam os sete ritos segundo os quais se utilizará o Cachimbo. O primeiro grande círculo representa o primeiro rito que vos irei transmitir, e os outros seis círculos representam os ritos que vos serão revelados diretamente, cada qual a seu tempo[27]. Chifre Ôco Em Pé, sê bom com respeito a estes dons e para com teu povo, porque são sagrados. Com este Cachimbo, os homens prosperarão e todo bem chegará a eles. Lá do alto, o Grande Espírito vos deu este Cachimbo a fim de que, graças a ele, possais obter o conhecimento. Sejam sempre agradecidos por este dom! Agora, antes que me vá, desejo dar-vos instrução sobre o primeiro rito com o qual teu povo deverá usar o Cachimbo.”
“Que seja sagrado para vós o dia em que um dos vossos morra. Devereis então guardar sua alma como vou explicar, e assim ganhareis muito poder, pois cada alma fortalecerá vossa abnegação e vosso amor ao próximo[28]. Enquanto um dos vossos permanecer com sua alma junto ao povo, estareis em condições de enviar vossa voz ao Grande Espírito através dela.[29]
Que seja igualmente sagrado o dia em que uma alma se liberte e regresse à sua morada, que é Wakan-Tanka; pois naquele dia quatro mulheres serão santificadas e com o tempo trarão fihos que caminharão pelo caminho da vida segundo o mistério, dando exemplo ao povo. Olhai-me, pois sou eu que eles levaram nos lábios, e graças a isto se converterão em santos.”
“O homem que guarda a alma de uma pessoa dever ser virtuoso e puro, e deve servir-se do Cachimbo para que todos, com a alma, enviem junto suas vozes ao Grande Espírito. O fruto de vossa Mãe Terra, e o fruto de tudo aquilo que ela traz, serão assim benditos, e vosso povo caminhará então segundo o mistério pelo caminho da vida. Não esqueçais que o Grande Espírito vos deu sete dias para que Lhe envieis vossa voz. Enquanto lembrardes disto, vivereis. O resto vos será revelado pelo Grande Espírito.
Então a Mulher celeste adiantou-se para sair da tenda, mas voltando-se novamente para Chifre Ôco Em Pé, disse:
“Olhai este Cachimbo! Lembrai-vos sempre de quão venerável é, e tratai-o consequentemente, pois ele vos levará até a vossa meta. Lembrai-vos! Em mim há quatro idades[30]. Agora vou-me, mas velarei por vosso povo durante cada uma das quatro idades, e ao final regressarei”.
Depois de dar a volta à tenda seguindo o movimento do sol, a mulher misteriosa saiu; mas, a uma curta distância, voltou-se para o povo e sentou-se. Quando se levantou, os homens viram com surpresa que havia se transformado num jovem bisonte vermelho e castanho. Então este jovem bisonte, depois de afastar-se um pouco mais, deitou-se e se espojou, e olhou para o povo; e quando se levantou de novo, era um bisonte branco. Afastou-se e espojou-se no  chão, e converteu-se num bisonte negro, que continuou a afastar-se, inclinou-se diante de cada uma das quatro Regiões do Universo, e desapareceu atrás da colina.


II

A CUSTÓDIA DA ALMA



Com este rito purificamos as almas[31] dos nossos mortos e nosso amor pelo próximo aumenta. As quatro mulheres puras que comem a parte sagrada do bisonte[32], como descreverei, devem lembrar-se sempre que seus filhos serão santificados e que, por conseguinte, deverão ser criados conforme ao mistério. A mãe deve sacrificar tudo pelos seus filhos e desenvolver nela e neles um grande amor por Wakan-Tanka, pois com o tempo estas crianças se converterão em homens de mistério e em guias da nação, e terão o poder de converter em santos aos demais. No princípio não guardávamos mais que as almas de nossos chefes, mas depois temos guardado as de quase todos os homens virtuosos.
Custodiando uma alma segundo os rituais prescritos, tal como os recebemos de Ptesan-Win, a Mulher Bisonte Branco, esta é purificada a fim de que ela e o Espírito se convertam em um e para que ela possa regressar ao lugar aonde nasceu – Wakan-Tanka – e já não tenha nenhuma necessidade de errar pela terra, como acontece com os homens perversos; ademais, a custódia da alma nos ajuda a recordarmos nossa mortalidade, assim como o Grande Espírito que está além da morte.
Quando se guarda uma alma, muitos homens acodem à tenda desta para rezar; e no dia em que a alma é liberada todos se reunem e enviam suas vozes ao Grande Espírito por intermédio desta alma que vai viajar por seu caminho sagrado. Mas antes vou explicar como nosso povo realizou este rito na sua origem.
Um bisneto de Chifre Ôco Em Pé tinha um filho a quem ele e sua mulher queriam muito bem; mas chegou um dia em que esta criança morreu, o que entristeceu grandemente a seu pai, que foi confiar sua dor ao guardião do Calumet, que naquela época era Grande Chifre Ôco.
“Fomos instruídos pela Mulher Bisonte no uso do Cachimbo venerável e na custódia de uma pessoa falecida. Agora a perda de meu bem-amado filho me causa extrema tristeza, e desejo guardar sua alma comonos ensinaram; e, posto que és tu o guardião do santo  Calumet, peço-te que me instruas.”
How! Hechetu welo! Está bem!”, disse Grande Chifre Ôco; e os dois acudiram ao local aonde repousava a criança e onde estavam as mulheres chorando. Quando chegaram, cessaram imediatamente as manifestações; Grande Chifre Ôco aproximou-se da criança e disse:
“Este menino parece morto, mas não está realmente, pois guardaremos sua alma conosco, e graças a ela nossos filhos e os filhos de nossos filhos se converterão em santos. Vamos agora proceder como a Mulher Bisonte e o Calumet nos ensinaram. É desejo de Wakan-Tanka que assim se faça.” E, tomando um cacho de cabelos do menino, Grande Chifre Ôco rogou:
“Ó Wakan-Tanka, olhai-nos! É a primeira vez que fazemos vossa vontade desta maneira, como Vós nos ensinasteis através da Mulher Bisonte. Guardaremos a alma deste menino para que nossa Mãe terra leve seus frutos, e para que nossos filhos caminhem pelo caminho da vida conforme ao mistério.”
Grande Chifre Ôco começou então a purificar o cacho de cabelos do menino; trouxeram uma brasa e colocaram sobbre ela um pouco de erva aromática[33].
“Ó Wakan-Tanka! – rogou de novo Grande Chifre Ôco – esta fumaça de erva aromática vai subir até Vós e estender-se através do Universo; seu perfume será percebido pelos seres alados, os quadrúpedes e os bípedes, pois comprendemos que somos todos parentes; que todos os nossos irmãos animais se façam mansos e não nos temam mais!”
Grande Chifre Ôco tomou o cacho de cabelos e, sustentando-o sobre a fumaça, dirigiu-o ao Céu, à Terra e às quatro Direções do Universo; e disse à alma que estava nos cabelos:
“Vê, ó alma! O lugar desta terra aonde morares será um lugar sagrado; este centro fará com que a nação seja sagrada como tu. Nossos filhos caminharão desde hoje pelo caminho da vida com o coração puro e o passo firme.”
Depois de purificar o cacho com a fumaça, Grande Chifre Ôco voltou-se para a mãe e o pai do menino e disse:
“Obteremos um grande saber graças a esta alma que acaba de ser purificada. Sejam bons para com ela e amem-na, pois ela foi santificada. Cumprimos o desejo do Grande Espírito tal como nos ensinou a Mulher celeste; não se recordam de como, ao deixar-nos, ela se voltou a segunda vez? Este gesto representava a custódia da alma que vamos levar a cabo. Que isto nos ajude a recordar que todos os frutos dos seres alados, dos bípedes e dos quadrúpedes são na realidade dons do Grande Espírito. Todos são sagrados e devem ser tratados como tais.”
O cacho foi envolto numa pele de búfalo e este precioso saquinho foi colocado num lugar especial na tenda. Então Grande Chifre Ôco tomou o Calumet e, depois de colocá-lo na fumaça, encheu-o com cuidado, segundo o rito; e, dirigindo o cano ao céu, rogou:
“Ó Wakan-Tanka, sois a Verdade. Os homens que aproximarem seus lábios deste Calumet se converterão na Verdade; não haverá neles nada impuro. Ajuda-nos a caminhar sem tropeços pelo caminho da vida, com nossos pensamentos e nossos corações constantemente fixados em Vós!”
Então acendeu e fumou o Calumet, e deu a volta ao círculo no sentido do movimento do sol. Nele, o mundo inteiro foi oferecido ao Grande Espírito. Quando o Calumet voltou a Grande Chifre Ôco, este esfregou-o com a erva aromática pelos quatro lados – Oeste, Norte, Leste, Sul – e fim de purificá-lo, por medo de que tivesse sido tocado por alguém indigno; e voltando-se para a assistência, disse a seguir:
“Parentes meus, este Calumet é um santuário. Todos sabemos que não pode mentir. Nenhum homem que tenha qualquer mentira em seu coração pode levá-lo à boca. Ademais, ó parentes meus, Wakan-Tanka nos fez conhecer a sua vontade aqui na terra, e devemos sempre cumprir o que Ele deseja, se quisermos seguir pelo caminho sagrado. É a primeira vez que realizamos este rito da custódia da alma, e será de grande proveito para nossos filhos e para os filhos de nossos filhos. Ó parentes meus, ó Avó e Terra Mãe, somos de terra e lhes pertencemos. Ó Terra Mãe de quem recebemos alimento, Tu velas pelo nosso crescimento como fazem nossas próprias mães, Cada passo que dermos sobre Ti deve ser conforme ao mistério; cada passo deve ser como uma oração. Lembrem-se disto, irmãos e irmãs: o poder desta alma pura os acompanhará em seus caminhos, pois também ela é fruto da Terra Mãe; é um germe que, plantado no seu centro, crecerá com o tempo nos seus corações e fará com que gerações caminhem conforme ao mistério.”
Grande Chifre Ôco levantou então a mão[34] e enviou sua voz ao Grande Espírito:
“Ó Pai e Avô Wakan-Tanka, sois a fonte e o fim de todas as coisas. Meu Pai Wakan-Tanka, sois o Um que vigia e mantém a tudo o q eu vive. Ó Avó minha, Tu és a fonte terrestre de toda a existência. Mãe Terra, os frutos que levas são a fonte de vida dos povos da terra. Tu velas sem cessar por teus frutos, como uma mãe. Que os passos que damos sobre Ti durante a vida sejam sagrados e sem desfalecimento!”
“Ajudai-nos, ó Wakan-Tanka, a caminhar pelo caminho vermelho com passo firme. Que nós, que somos a vossa nação, possamos estar de pé diante de Vós de um modo que vos seja agradável! Daí-nos a força que vem da compreensão dos vossos Poderes! Porque nos fizesteis conhecer vossa vontade, queremos caminhar santamente pelo caminho da vida, levando em nossos corações o amor por Vós e o conhecimento de Vós. Por isso, e por todas  as coisas, vos damos graças.”
Então envolveram o corpo do menino num saco, e os homens o levaram a um lugar elevado e distante do acampamento; depositaram-no num andaime elvantado em uma árvore[35].
Quando regressaram, Grande Chifre Ôco foi à tenda com o pai do menino para ensinar-lhe como devia preparar-se para o grande dever que iria cumprir e que o santificaria.
“Guardas agora a alma do teu filho – disse –. Teu filho não está morto; está contigo. Desde agora deverás viver segundo o mistério, pois teu filho estará nesta tenda até que sua alma seja liberada. Lembra-te que os costumes que adotares neste momento jamais irás abandonar. Assegura-te de que nenhuma pessoa má entre na tenda aonde guardas a alma, e de que aqui não hajam discussões nem disputas; a paz deverá reinar sempre na tua tenda. Todas essas coisas tem influência na alma que aqui está se purificando.”
“Tuas mãos estão consagradas: trata-as como tais! E teus olhos também estão; quando olhares teus parentes e todas as coisas, olha-os com os olhos do espírito[36]. Tua boca também está consagrada: que cada palavra que digas reflita este estado de graça em que viverás a partir de agora. Muitas vezes levantarás a cabeça para olhar o céu. Cada vez que comeres um fruto da Mãe Terra, alimentarás também teu filho. Se fizeres isto e tudo o que te ensinei, o Grande Espírito será misericordioso contigo. Dia e noite, teu filho estará conntigo; vela pela sua alma todo o tempo, pois assim te lembrarás sempre do Grande Espírito. A partir deste dia estás santificado; e assim como te instruí, tu instruirás a outros. O Calumet misterioso seguirá seu caminho durante muito tempo, até o fim; o mesmo sucederá com a alma do teu filho. É assim, certamente! Hechetu welo!”

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Antes de explicar como é liberada a alma, é bom que eu fale de algumas obrigações que o guardião da alma deve conhecer e cumprir.
Quem custodia uma alma não deve combater nunca, nem sequer manejar um machado para nenhuma finalidade. Rezar todo o tempo, ser um exemplo em todas as coisas, tal deve ser sua conduta. O povo deve amar e honrar este santo homem, e levar-lhe sempre alimentos e presentes; por sua vez, o guardião da alma deverá oferecer com muita frequência o Calumet ao Grande Espírito, para o bem de todos.
Quando um grupo de guerreiros vai caçar[37], o santo guardião da alma deve acompanhá-los; mas enquanto os demais caçam, ele deve permanecer com o Calumet e enviar sua voz aos Poderes do alto para que a caça seja boa, e para o bem de toda a tribo. Se um bisonte fêmea é morto na sua proximidade, o animal lhe pertence, e ele deve sentar-se ao seu lado. Deve encher seu Cachimbo, oferecendo primeiro um pouco de kinnikinnik[38] aos Poderes alados do Oeste, do Norte, do Leste e do Sul; depois, deve levantar um último naco de tabaco para o céu como oferenda ao Grande Espírito. Uma vez que o Cachimbo tenha sido carregado deste modo, deve dirigir o cano aos olhos do bisonte[39] e rezar assim:
“Ó Wakan-Tanka, Tu nos ensinaste tua vontade por meio de um quadrúpede para que teu povo possa caminhar pelo caminho sagrado, e para que nossos filhos e os filhos de nossos filhos sejam beneficiados. Tu, Tatanka, tens quatro idades; e quando te voltastes para nós pela última vez vimos que Tu és o fruto de nossa Mãe Terra que nos faz viver. Esta é a razão pela qual serás o primeiro a ser colocado no centro do círculo de nossa nação, Tu que fortaleces nossos corpos e também nossos espíritos quando te tratamos segundo a regra celeste. Geraças a Ti, que nos revelou a vontade do Grande Espírito, existe agora uma alma santa no meio do círculo. Tu estarás ali com ela, e dali dispensarás a felicidade ao teu povo. Vê agora este centro!”.
Alguns homens instruídos pelo guardião da alma despedaçam então o bisonte assim consagrado, enquanto rponunciam orações apropriadas conforme a parte da carne que cortam. A dos quartos dianteiros representa os bípedes, mas antes de tudo representa a mulher celeste que trouxe o Calumet; esta carne é, pois, particularmente sagrada – lilla wakan – e não pode ser manipulada sem veneração. O guardião da alma não participa do despedaçamento, já que o contato com o machado e com o sangue lhe é proibido; mas ele pode levar a carne ao acampamento, sobre o seu cavalo, assim como o couro que é igualmente sagrado e que está destinado a um uso especial[40]. Sua chegada ao acompamento é anunciada por um arauto, e a carne é em seguida leva à tenda do guardião da alma. Neste momento um dos ocupantes da tenda se dirige à alma nestes termos:
“Neto, o alimento escolhido permanecerá no centro desta tenda, que é tua morada. Será muito proveitoso para a nação. Hechetu welo!”
Na tenda aonde reside a alma deve estar permanentemente uma mulher, escolhida para cuidar do saquinho misterioso; a primeira a quem se encomendou este piedoso dever foi Mulher Dia Vermelho. Esta santa pessoa está encarregada de secar ao sol a carne sagrada com a qual se faz a wasna, que é carne seca triturada junto com cerejas selvagens e misturada com medula de bisonte. Este alimento ritual é depositado numa caixa de pele de bisonte pintada de modo especial; ela é conservada até o dia em que a alma for liberada.
Nos dias favoráveis, estas relíquias são levadas ao esterior e suspensas numa trípode voltada para o Sul[41]; as pessoas acodem então em grande número para trazer oferendas e para orar, o que é muito meritório. Suas oferendas também são colocadas num cofre de couro pintado de modo especial, para serem mais tarde distribuidos aos pobres.
Depois de ser curtida segundo os ritos, a pele do bisonte é pintada, e a seguir é purificada novamente na fumaça da erva aromática. Então o guardião da alma a estende às quatro Partes do Universo, dizendo:
“Ó alma, meu neto, mentém-te firmemente sobre esta Terra e olha ao teu redor; olha para o Céu, para as quatro Direções do Universo e para nossa Mãe Terra! E Tu, ó bisonte que estás realmente presente nesta pele[42], tu viestes a nós para nosso maior bem; agora vais te unir a esta alma. Os dois estareis no centro do círculo da nação e representareis a unidade do povo. Ao depositar esta pele sobbre ti, ó alma, coloco-a sobre toda a tribo como se esta não formasse mais do que uma só alma.”
Uma vez que o saquinho de mistério foi pendurado na trípode diante da tenda, a pele do bisonte é colocada sobre ela com o pelo para fora; na ponta da trípode deve ser colocado um cocar de guerra feito com as plumas de Wambali Galeshka, a Águia Pintada.
Os ajudantes estão autorizados a manipular estes objetos; mas só o guardião da alma pode tocar o saquinho. Ele o carrega sempre sobre o coração, sob o braço esquerdo, pois este braço está próximo ao coração; e cada vez que ele leva este saquinho até a tenda, oferece-o primeiro ao Céu, depois à Terra e as quatro Direções do Universo.
Antes que os ritos que liberam a alma possam ser levados a cabo, devem ser reunidas muitas coisas, o que pode demorar vários anos; mas a duração normal da custódia da alma é de um ano. Se o guardião morre antes de terminar o prazo, é a mulher que guarda a alma, assim como a alma de seu esposo; e se a mulher morre, os ajudantes são encarregados de guardar estas três almas; sua função implica então uma  responsabilidade e uma dignidade ainda maiores.
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Quando a alma vai ser libertada, todos se reunem, pois todos participal deste rito misterioso. Com antecedência, todos os homens estiveram caçando bisontes, e uma vez que vários deles tenham sido abatidos, quebram-se e fervem-se os ossos; desta mescla de gordura e medula se faz o wasna; as mulheres secam o melhor pedaço de carne, que leva o nome de papa.. Todos estes preparativos têm um caráter ritual.
Depois de se consultar com os demais homens santos da tribo, o guardião da alma indica o dia conveniente para o rito, e quando por fim este dia chega, os ajudantes constróem com várias tendas uma grande tenda ritual e cobrem o solo com sálvia sagrada.
O ajudante do guardião da alma toma então o Cachimbo e, elevando-o ao Céu, exclama:
“Vê, ó Wakan-Tanka! Agora vamos cumprir a Tua vontade. Com todos os seres do Universo Te oferecemos este Calumet!”
Toma um punhado de tabaco ritual, kinnikinnik e, segurando-o voltado para o Oeste ao mesmo tempo que o cano do Cachimbo, exclama:
“Com este tabaco consagrado Te colocamos, ó Poder alado do Oeste, neste Calumet. Vamos enviar nossas vozes ao Grande Espírito e pedimos tua ajuda.”
“Este dia é sagrado, pois uma alma será liberada. Em todo o Universo haverá felicidade e alegria. Ó tu, Poder celestial de onde se põe o sol, fazemos uma grande coisa ao te colocar neste Calumet. Daí-nos, para que realizemos nosso rito, um dos dias sagrados vermelho e azul[43] que tu controlas!”
O Poder do Oeste, misteriosamente presente agora no tabaco, é assim introduzido no Cachimbo; a seguir o ajudante, levantando para o Norte mais um punhado de kinnikinnik, faz esta oração:
“Ó Tu, Ser do Trovão, aonde Wazia tem sua tenda, Tu que vens com os ventos purificadores e que conservas o vigor dos homens, ó Águia negra do Norte, tuas asas não se cansam nunca! Também para Ti existe lugar neste Calumet que oferecemos ao Grande Espírito. Ajudai-nos e daí-nos um dos teus dias sagrados!”
Sustentando então outro punhado de kinnikinnik para o Leste, o ajudante continua sua ladainha:
 “Ó Tu, ser sagrado do lugar de onde nasce o sol, que controlas o conhecimento! A Ti pertence o caminho do sol nascente que traz a luz ao mundo. Teu nome é Huntka: Tu possuis a sabedoria e tuas asas são largas. Também pata Ti existe lugar no Calumet: ajudai-nos a enviar nossa voz ao Grande Espírito! Daí-nos um dos teus dias sagrados!”
Assim o Poder do Leste é introduzido no Cachimbo; logo o ajudante levanta um pouco de kinnikinnik para o Sul, com esta oração:
“Ó Tu que guardas o caminho que leva ao lugar para onde nos voltamos sempre, e pelo qual caminham nossas gerações, nós Te colocamos neste Cachimbo de mistério! Tu controlas nossa vida e as vidas de todos os povos do Universo. Tudo quanto se move e tudo quanto existe enviará uma voz ao Grande Espírito. Temos um lugar para Ti no Calumet; ajudai-nos a enviar nossa voz e dai-nos um dos teus dias benéficos! É o que Te pedimos, ó Cisne branco do lugar para onde sempre nos voltamos!”
Em seguida, o ajudante dirige o cano do Calumet e um pouco de kinnikinnik para a Terra:
“Ó Tu, Terra sagrada de onde saímos, Tu és humilde, ainda que alimentes todas as coisas; sabemos que és sagrada e que somos teus parentes. Avó e Mãe Terra fecunda, existe um lugar para Ti no Calumet. Ó Mãe, que tua nação avance pelo caminho da vida, contra os ventos violentos! Que caminhemos sobre Ti com firmeza! Que nossos passos não vacilem jamais! Nós e tudo o que se move sobre Ti enviamos nossas vozes ao Grande Espírito! Ajudai-nos! Todos juntos gritamos em uníssono: ajudai-nos!”
Quando o Cachimbo está cheio deste modo, com todos os Poderes e tudo o que contém o Universo[44], o ajudante o entrega ao guardião da alma quem, entre lamentos, segue para a tenda do guardião do santo Cachimbo. Deposita o Calumet, dirigindo o cano para o Sul, nas mãos do guardião:
Hi ho! Hi ho! Te dou as graças – diz o santo varão ao receber o Cachimbo –. Este Calumet que me trazes é na verdade tão sagrado quanto o Calumet original que recebemos da Mulher Bisonte Branco. Em verdade, para aquele que compreende, eles são realmente o mesmo. Mas o que acabas de me entregar é particularmente sagrado pois, tal como o vejo, contém agora todo o Universo. Que desejais?”
“Desejamos que fumes este cachimbo e que assim dirijas os ritos destinados a libertar a alma de meu filho pequeno. Desejamos que tragas o Cachimbo original que tens sob teus cuidados.”
How, hechetu welo! – responde o homem santo – virei.”
Ele oferece então o Cachimbo ao Céu, à Terra e às quatro Direções e fume. Depois disto ele recolhe piedosamente as cinzas, porque elas também estão santificadas.
Em seguida os dois homens vão à tenda que está sendo preparada para o grande ritual. Nela, dão a volta no sentido do movimento do sol e sentam-se no Oeste, na direção oposta à porta. A esposa do guardião da alma regressa, entre lamentos, à sua própria tenda, de onde traz o saquinho misterioso e, detendo-se diante do guardião do Calumet, deposita a relíquia em suas mãos estendidas. “Graças te sejam dadas”, diz o santo varão; então ele se dirige nestes termos à alma guardada no saquinho:
“Ó alma, estavas com teu povo, mas logo partirás. Este dia é teu dia, e é sagrado. Hoje, teu pai Wakan-Tanka se inclina para ti para ver-te; todo teu povo veio para estar contigo. Todos os teus parentes te amam; eles cuidaram muito de ti. Tu e a santa Mulher das quatro idades que nos trouxe o Calumet estais juntos agora nesta tenda; esta pele de bisonte que representa a mulher celeste e que te cobria, cobrirá a todo o teu povo! O Cachimbo que ela nos trouxe fez feliz a toda a tribo. Vê! Este é o dia sagrado! Hechetu welo!”
No solo é traçado um círculo perfeito que representa um leito de bisonte e no qual é depositado o saquinho de mistério. Com a terra que foi tirada deste lugar forma-se outro círculo no qual se traça uma cruz de Oeste a Leste e de Norte a Sul. O Calumet é posto sobre a cruz, com o cano dirigido para o Oeste e o fornilho para o Leste. O saquinho misterioso é posto então ao lado do Calumet, na extremidade do bom caminho vermelho, pois este é o lugar para onde a alma logo irá viajar.
Um dos ajudantes aproxima-se do fogo que está no centro da tenda[45] e com um bastão em forma de forquilha retira dele uma brasa que é colocada diante do guardião do Cachimbo. Este toma o Cachimbo com a mão esquerda, toma um pouco da erva aromática com a direita, dirige-a ao Céu e abaixa-a lentamente até o braseiro, detendo-se quatro vezes e orando deste modo:
“Ó Avô Wakan-Tanka, neste dia sagrado que é Teu, enviamos-te esta fragrância que subirá até o céu. Nesta erva está a terra, a grande ilha; nela estão minha Avó, minha Mãe e todos os povos quadrúpedes, alados e bípedes, que marcham todos segundo o mistério. O perfume desta erva se estenderá a todo o Universo. Ó Wakan-Tanka, sê misericordioso com todos!”
Então o fornilho do Cachimbo é sustentado sobre a fumaça; este passa através do Cachimbo e é dirigido para o Céu. Deste modo o Grande Espírito é o primeiro a fumar; mediante este ato ritual, o Calumet é purificado. Enquantoo faz outras coisas, o guardião reza nestes termos:
“Ó Wakan-Tanka, vê este cachimbo! A fumaça desta erva deve cobrir todas as coisas da Terra e chegar até o céu. Que o caminho do teu povo seja como esta fumaça! Nós te oferecemos este Cachimbo, e agora coloco no seu fornilho o kinnikinnik. Tu nos ensinaste que o fornilho redondo deste cachimbo é o verdadeiro centro do Universo e o coração do homem. Ó Wakan-Tanka, inclina-te hoje para nos olhar; vê teu Calumet com o qual vamos enviar uma voz junto com os povos alados, os quadrúpedes e todos os frutos de nossa Mãe Terra. Tudo o que fizestes une-se a nós para enviar esta voz.”
Ao encher o Calumet, o santo guardião faz as oferendas rituais de tabaco às seis Direções, com as seguintes orações:
“Ó Tu, Poder alado de onde se põe o sol. Tu és sagrado! Contigo e por tua mediação enviamos uma voz ao Grande Espírito antes de liberar esta alma. Existe um lugar para Ti neste Cachimbo. Ajudai-nos. Dá a teu povo teus dias vermelho e azul para que possa caminhar pelo caminho da vida segundo o mistério.”
“Ó Poder alado do lugar aonde vive Wazia, purificador da terra, dos homens e de tudo o que é impuro, com a alma de um homem vamos enviar uma voz ao Grande Espírito por teu intermédio. Existe um lugar para Ti no Calumet; ajudai-nos, pois, a enviar esta voz! Dá-nos os dias sagrados que tu possuis!”
“Ó Tu, ser alado do lugar de onde vem o sol; Tu que tens grandes asas e que controlas o conhecimento, luz do Universo, vamos enviar uma voz ao Grande Espírito com esta alma que permaneceu junto so povo. Tu também possuis os dois grandes dias vermelho e azul, dá-nos e ajudai-nos a enviar uma voz!”
“Ó Tu, Maghaska, Cisne Branco do lugar para o qual nos voltamos sempre. Tu controlas o caminho vermelho que conduz a onde Wazia tem sua tenda. Tu guias a todos os povos quadrúpedes e bípedes que viajam neste caminho de mistério. Vamos liberar uma alma que partirá por teu caminho; mediante esta alma enviamos uma voz ao Grande Espírito. Ajudai-nos a enviar esta voz e dá-nos teus dois dias sagrados!”
“Ó Águia Pintada, que estás próxima do Céu, próxima ao Grande Espírito, tuas asas são poderosas! És Tu quem vela sobre o círculo da nação e sobre tudo o que está contido neste círculo. Que todos os povos sejam felizes e recebam muitas bênçãos! Vamos liberar uma alma que parte para uma longa viagem, a fim de que os passos das gerações futuras sejam santificados. Existe um lugar para Ti no Calumet! Ajudai-nos a enviar nossa voz até o Grande Espírito e dá-nos os dias sagrados vermelho e azul que Tu possuis!”
“Ó Wakan-Tanka, vamos oferecer-te este cachimbo. Inclina tua vista até nós e até nossa Avó e Mãe, a Terra. Tudo o que leva nossa Mãe, a fonte terrestre de toda a vida, é sagrado. Nosso povo caminha sobre ela. Que seus passos sejam firmes e fortes! De Ti, Avó Terra, uma alma vai ser liberada. Neste Calumet existe espaço para Ti e para todas as tuas criaturas! Todos unidos, como um só ser, enviamos nossa voz ao Grande Espírito. Ajudai-nos a caminhar segundo o mistério de uma maneira que te agrade. Dá-nos os dias sagrados vermelhoe azul que Tu reges!”
Deste modo o Universo inteiro foi localizado no Cachimbo; voltando-se então para a assistência, o guardião do Calumet diz:
“Uma vez que cumprimos tudo isto corretamente, a alma fará uma boaviagem e ajudará nosso povo a prosperar e a caminhar pelo caminho sagrado de um mdo que agrade ao Grande Espírito.”
Ele se dirige então à alma nestes termos:
“Ó alma, meu neto, tu és a raiz deste grande ritual. De ti emanarão muitas coisas santas; com este rito, nosso povo aprenderá a ser generoso, a ajudar aos que estão necessitados e a seguir em tudo aos ensinamentos do Grande Espírito. Ó alma, este é teu dia. Chegou agora o momento.”
“Existirão quatro virgens que levarão sempre em si o poder desses ritos. E tu, ó alma, as cobrirás com tua pele sagrada de bisonte. Este dia é teu dia; e é um dia de alegria, pois muita luz desceu sobre o nosso povo. Tudo o que esteve contigo no passado está hoje contigo. Teus parentes vieram com alimentos que serão purificados e te serão oferecidos, e que a seguir serão dados às quatro virgens; depois serão repartidos entre os pobres e os desafortunados. Mas agora é tempo de oferecer este cachimbo ao Grande Espírito e fumá-lo[46]. A Ele oferecemos tudo o que existe no Universo. A Ele enviamos nossas vozes por intermédio deste Cachimbo. Hechetu welo!”
 “Hi-ey-hey-i-i! Tunkashila Wakan-Tanka, Avô, Grande Espírito, inclina teu olhar para nós! É o dia sagrado desta alma. Que ela ajude as gerações futuras a caminhar conforme o mistério! Nós Te oferecemos este Calumet, ó Wakan-Tanka, e Te pedimos que ajudes a esta alma, a seus parentes e ao povo inteiro. Vê este Cachimbo e inclina-te para veres como cumprimos Tua vontade. Nós Te enviamos uma voz desde esta Terra. Sê misericordioso conosco e também  com esta alma que será liberada a partir do centro do círculo da nação. Ó Avô Wakan-Tanka, tem piedade de nós, para que nosso povo viva!”
A tudo isto a assistência responde: “Hay-yi! Graças sejam dadas! Que assim seja!”
Então Grande Chifre Ôco[47] acendeu o Calumet, deu várias baforadas e passou-o ao guardião da alma, que ofereceu-o ao Céu, à Terra e às quatro Direções e, depois de fumar um pouco, o fez passar por todos os componentes do círculo no sentido do movimento do sol. Ao fumar, cada qual pedia um favor, e quando o Cachimbo voltou a Grande Chifre Ôco foi purificado e suas cinzas cuidadosamente recolhidas num saquinho especial feito de pele de gamo[48].
Agora que o Cachimbo foi oferecido ao Grande Espírito, Grande Chifre Ôco começou a lamentar-se e logo toda a assistência fez o mesmo. Talvez não seja inútil explicar que lamentar-se neste momento é uma coisa boa, pois indica que pensamos na alma liberada e também na morte que espera a tudo o que foi criado; é sinal de que nos humilhamos diante do Grande Espírito, pois sabemos que somos como pó diante d’Ele, que é o Todo, e que é todo-poderoso.
Todos os alimentos oferecidos à alma haviam sido colocados do lado de fora; então as mulheres os levaram para a tenda. Ali, do lado Sul, havia sido levantado um poste de madeira de salgueiro da altura de um homem, e ao redor da ponta foi sujeitado um pedaço de pele de gamo no qual estava pintado um rosto; acima deste rosto havia sido colocado um cocar de guerra e ao redor do poste uma pele de bisonte. Este rosto representa a alma; haviam sido adicionados a ela os arcos, as flechas, os machados e todas as demais posses do defunto. As mulheres regressaram à tenda com alimentos; deram a volta no sentido do movimento do sol, depois detiveram-se ao Sul, onde abraçaram o poste da alma, e se retiraram após haver depositado os alimentos.
Uma porção de cada alimento oferecido à alma foi colocado numa cuia de madeira disposta na frente dos dois homens santos sentados no Oeste. Neste momento entraram quatro virgens e situaram-se ao Norte, pois o Poder desta Direção é a Pureza. Enão Grande Chifre Ôco levantou-se e falou à alma nestes termos:
“Ó alma, tu és a semente[49]! Tu és como a raiz da árvore sagrada que está no centro do círculo de nossa nação. Que esta árvore floresça! Que o nosso povo e os povos alados e quadrúpedes prosperem! Ó alma, teus parentes trouxeram este alimento que logo comerás e, graças a este ato, a bondade se estenderá a toda a tribo. Ó alma, o Grande Espírito te deu quatro parentes que estão sentados no Norte e que representam teus parentes verdadeiros: Avô e Pai Wakan-Tanka e Avó e Mãe Maka, a Terra. Lembra-te destes quatro parentes que na verdade não são mais que Um; e com eles em teu espírito, lança um olhar para trás sobre teu povo enquanto viajas pelo grande caminho!”
Em seguida um pequeno buraco é aberto ao pé do poste da alma; Grande Chifre Ôco tomou então a cuia de madeira que continha o alimento purificado e, inclinando-se para a cavidade, disse à alma:
“Vais comer este alimento sagrado. Quando for colocado em tua boca, sua influência se estenderá e fará crescer e prosperar os frutos de nossa Mãe terra. Tua Avó é santa; estamos de pé sobre ela e introduzimos este alimento em tua boca. Não nos esqueças quando fores para Wakan-Tanka e dirige um olhar para trás sobre nós!”
Colocaram o alimento no buraco e em seguida derramaram sobre ele suco de cerejas selvagens; este suco é a água da vida. Depois o buraco foi coberto com terra: a alma havia terminado sua última refeição.
As quatro virgens se dispuseram então a comer a carne de bisonte sagrada e a beber o suco de cerejas; mas antes os alimentos foram purificados na fumaça da erva aromática, e em continuação Grande Chifre Ôco dirigiu-se às jovens:
“Netas, ide receber agora a semente espiritual da alma; por sua virtude, vós e os vossos frutos sereis santificadas para sempre. Netas, não esqueçais de compartir vossos alimentos e tudo o que possuís, pois o mundo nunca carece de indigentes, de órfãos e de velhos. Mas, acima de tudo, minhas netas, nunca esqueçais vossos quatro grandes Parentes, que representam vossos parentes aqui na Terra. Ide agora a comer e beber o fruto da Mãe Terra e, mediante este rito, vós e vossos frutos sereis sagrados. Lembrai-vos sempre disto, filhas!”
Grande Chifre Ôco tomou a cuia, e cada vez que colocava um pedaço de alimento na boca de uma virgem, dizia:
“Ponho este alimento em tua boca. É doce e tem o aroma do sagrado. O povo verá tuas gerações futuras.”
A seguir as quatro virgens inclinaram-se e beberam o suco de cerejas selvagens que havia na cuia de madeira colocada no solo, e quando todas haviam bebido, Grande Chifre Ôco lhes disse:
“Netas, tudo o que fizemos aqui hoje está cheio de mistério – lilla wakan –; nós o fizemos segundo as instruções transmitidas pela Mulher celeste que também era bisonte, e que nos trouxe o santo Calumet. Ela nos disse que tinha quatro idades; vós também, netas, tendes estas idades. Compreendei-o profundamente, pois é importante. É uma grande coisa, isto que levamos a cabo hoje. Em verdade é assim! Hechetu welo!”
Grande Chifre ôco caminhou então em círculo até o Sul e, levantando o saquinho da alma, lhe disse:
“Neto, vais partir para uma longa viagem. Teu pai e tua mãe, todos os teus parentes te amavam. Logo serão felizes.”
O pai do menino abraçou então o saquinho sagrado colocando-o em cada ombro, e depois disto Grande Chifre Ôco lhe disse:
“Tu amavas teu filho, e o guardaste no centro do círculo do nosso povo. Sê bom para com os demais como foste para com teu filho! A influência misteriosa da alma do teu filho estará com os homens; é como uma árvore que sempre florescerá.”
Grande Chifre Ôco avançou então descrevendo um círculo para o Norte e, tocando cada uma das virgens com o saquinho sagrado, disse:
“Eis aqui a árvore que foi escolhida para ser o centro de vosso círculo sagrado! Que sempre prospere e floresça segundo o mistério!”
Levantando então o saquinho para o Céu, exclamou:
“Dirige sempre teu olhar para teu povo, para que caminhe com passo firme pelo caminho sagrado!”
Grande Chifre Ôco lançou este brado quatro vezes enquanto caminhava para a saída da tenda e, quando se deteve pela quarta vez – já estando fora, diante da tenda – gritou em tom muito agudo:
“Olha teu povo! Lembra-te dele!”
No instante em que o saquinho franqueou a saída da tenda[50], a alma foi liberada e partiu pela via dos espíritos[51]. que conduz a Wakan-Tanka.
Desde que a alma parte, o saquinho com a mecha de cabelo deixa de ser wakan, sagrado, em um sentido direto, mas a família pode conservá-lo como recordação se assim o quiser
As quatro virgens santificadas receberam uma pele de bisonte cada uma e abandonaram a tenda imediatamente após Grande Chifre Ôco.
Assim terminou o rito; em todo o acampamento as pessoas estavam felizes e manifestavam sua alegria, e corriam a tocar as quatro virgens que agora eram lilla wakan; haviam se convertido emum suporte permanente deste grande influxo espiritual e em uma fonte inesgotável de força e coragem para sua tribo. Foi feita uma ampla distribuição de presentes aos pobres e aos necessitados, e por todos os lados não havia mais que festividades e regozijo. Foi, na verdade, um grande dia. Hechetu welo!


III

INIPI:

O RITUAL DE PURIFICAÇÃO



No ritual do onikaghe – a cabana de suar – intervêm todos os poderes do Universo: a terra e tudo o que nasce dela; a água, o fogo e o ar. A água representa os Seres do Trovão, que aparecem de maneira terrível mas que trazem benefícios: pois o vapor que sai dos penhascos nos quais jaz o fogo é pavoroso, mas purifica-nos e nos permite assim viver como o Grande Espírito quer. Se nos tornarmos realmente puros, é possível mesmo que o Grande Espírito nos envie uma visão.
Quando empregamos a água na cabana de suar devemos fixar nosso pensamento no Grande Espírito, que se expande sem cessar comunicando seu Poder e sua Vida a todas as coisas; devemos, ademais, nos esforçarmos sempre em ser semelhantes à água, que é a mais humilde de todas as coisas e, sem embargo, é mais forte do que a própria rocha.
A cabana de suar é construída com doze ou dezesseis salgueiros jovens; também eles nos ensinam algo, pois no outono suas folhas morrem e regressam à Terra, e na primavera voltam à vida. Do mesmo modo os homens morrem, mas renascem no Mundo real do Grande Espírito, no qual não existe mais que os espíritos de todas as coisas; e podemos conhecer esta vida verdadeira aqui na terra se purificarmos nossos corpos e nossas almas, acercando-nos assim do Grande Espírito que é Todo-Pureza.
Os salgueiros que formam a armação da cabana de suar são cravados no solo de maneira a que indiquem as quatro Direções do Universo; deste modo, no conjunto da cabana está o Universo em imagem, e ela abriga os povos bípedes, quadrúpedes e alados e também todas as coisas do mundo;  todos estes povos e todas estas coisas devem ser purificados antes de poder enviar uma voz ao Grande Espírito.

As pedras que empregamos neste ritual representam nossa Avó Terra, da qual provêm todos os frutos; mas as pedras representam também a natureza indestrutível e eterna do Grande Espírito.
O fogo que aquece as pedras representa o Poder do Grande Espírito, que dá vida a todas as coisas; é como um raio de sol, pois o sol também é, sob certo aspecto, Wakan-Tanka.
A lareira redonda que existe no meio da cabana de suar é o centro do Universo, e nele mora o Grande Espírito com seu Poder, o fogo. Todas essas coisas são sagradas para nós e devemos compreende-las profundamente se desejamos purificar-nos verdadeiramente; o poder de uma coisa ou de um ato reside em seu significado e também na compreensão que temos dele.
A cabana de suar sempre é construída com a porta para o Leste, pois dali vem a luz da Sabedoria. A uns dez passos da cabana construímos uma fogueira ritual chamada Peta Owihankeshni, “fogo sem fim”, e ali são esquentadas as pedras. Para fazer esta fogueira começamos por colocar no sol quatro bastões na direção Leste-Oeste, sobre os quais colocamos outros quatro bastões na direção Norte-Sul; em seguida cravamos ao redor disto alguns bastões que formam um cone como para se fazer uma tenda, primemiro para o Oeste, depois para o Norte, o Leste e o Sul; logo são colocadas pedras nestas quatro direções e para terminar empilhameos sobre este conjunto certa quantidade de pedras.  Enquanto edificamos este lugar devemos recitar esta oração:
“Ó Wakan-Tanka, este é o fogo eterno que nos foi dado nesta grande ilha! É tua vontade que construamos este lugar de uma maneira conforme ao mistério. Este fogo arde sempre; graças a ele renasceremos, purificados e mais perto dos teus Poderes.”
Para edificar, na cabana de suar, o altar central para onde serão levadas as pedras quentes, começamos cravando um bastão no solo, no centro da cabana, e ao redor deste ponto traçamos um círculo com uma tira de couro. Enquanto fixamos este centro sagrado devemos orar assim:
“Ó Avô e Pai Wakan-Tanka, que fizeste tudo o que existe, Tu que sempre foste, olhai-me! E Tu, Avó e Mãe Terra, Tu és sagrada e tens santos ouvidos, escutai-me! Saímos de Ti, somos uma parte de Ti e sabemos que nossos corpos regressarão a Ti quando nossos espíritos partirem para o grande caminho. Ao fixar este centro na terra recordo-me de Ti, para quem meu corpo regressará, mas, acima de tudo, penso no Grande Espírito, com o qual nossos Espíritos se tornarão Um. Purificando-me deste modo desejo tornar-me digno de Ti, ó Wakan-Tanka, para que meu povo viva!”
Então cava-se um buraco no meio da cabana, e com a terra recolhida traça-se um caminho que conduz para fora da cabana na direção Leste e em cujo extremose ergue um pequeno montículo; ao fazer isto, oramos nestes termos:
“Sobre Ti, Avó Terra, quero estabelecer o caminho sagrado da vida. Ao purificarmo-nos para a tribo caminharemos por este caminho com passo firme, pois ele conduz ao Grande Espírito; nele existem quatro passos sagrados. Que nosso povo caminhe por este caminho! Oxalá sejamos puros! Oxalá renasçamos!”
Depois, enviando uma voz ao Grande Espírito, gritamos:
“Avô Wakan-Tanka, aprendemos tua Vontade e sabemos quais passos sagrados devemos dar. Com a ajuda de todas as coisas e de todos os seres, vamos enviar-te nossa voz. Sê misericordioso consoco! Ajudai-nos! Eu me coloco neste caminho e envio-Te minha voz pelos quatro Poderes que sabemos não serem mais do que um Poder. Ajudai-me nisto tudo! Ó Avô meu Wakan-Tanka, sê misericordioso conosco. Ajudai meu povo e todas as coisas a viver de um modo conforme ao mistério, de um modo que te seja agradável. Ó Wakan-Tanka, ajudai-nos a renascer!”
Aquele que dirige o rito de purificação entra então na cabana, só e com seu Calumet. Dá a volta no sentido do movimento do sol e senta-se no Oeste; depois consagra o buraco central, que se converte assim em um altar, colocando sobre ele punhados de tabaco em cada uma de suas quatro partes. É introduzida na cabana uma brasa que se deposita no centro; o oficinate queima então erva aromática e esfrega a fumaça por todo o corpo, e depois nos pés, cabeça e mãos; em continuação o Cachimbo é purificado na fumaça. Deste modo tudo está consagrado, e se resta alguma influência impura na cabana, ela é expulsa pelo Poder da fumaça.
Neste momento o oficiante deve oferecer um pouco de tabaco ritual ao Poder alado do lugar onde se põe o sol, do qual vêm as águas purificadoras; invoca-se este Poder e se pede sua ajuda no rito. Em seguida o tabaco é posto no Calumet e do mesmo modo oferecem-se punhadinhos de tabaco aos demais Poderes; ao Norte, de onde v~em os ventos purificadores; ao Leste, de onde sai o sol e de onde vem a Sabedoria; ao Céu e, finalmente, à Mãe Terra. Enquanto se invoca a ajuda de cada Poder e se coloca cada punhado de tabaco no Calumet, todos os que estão no exterior exclamam:
How!”, pois estão contentes e satisfeitos de que o mistério esteja sendo cumprido.
Agora que o Calumet foi carregado e que todas as coisas foram consgradas, o oficiante sai da cabana, avança até o Leste pelo caminho sagrado de deposita o Calumet sobre o montículo, com o fornilho voltado para o Oeste e o cano para o Leste. Todos os que vão ser purificados penetram então na cabana, com o oficiante à frente, e cada um deles, no momento em que se inclina para entrar, pronuncia esta oração:
Hi-ho! Hi-ho! Graças sejam dadas! Ao inclinar-me para entrar nesta cabana recordo-me de que não sou nada diante de Ti, ó Wakan-Tanka, que és Tudo. És Tu que nos colocou nesta ilha; somos os últimos seres criados por Ti, que és oPrimeiro e que sempre fostes. Ajudai-me a me purificar aqui, antes que te envie minha voz. Ajudai-nos em tudo o que vamos fazer!”
Tão logo entram na cabana, os homens dão a volta nela no sentido do movimento do sol e sentam-se sobre a s=alvia sagrada espalhada sobre o solo; o oficiante está sentado no Leste, bem ao lado da porta. Todos permanecem silenciosos durante um tempo, recordando-se da bondade do Grande Espírito e lembrando-se de que foi Ele quem criou todas as coisas. O Calumet é então introduzido na cabana pelo ajudante, que muitas vezes é uma mulher; esta pessoa permanece fora durante o rito. O homem sentado noOeste toma o Calumet e o coloca diante de si com o cano dirigido para o Oeste.
Com um bastão em forma de forquilha, o ajudante retira do fogo sagrado uma das pedras e, pelo caminho, a leva até a cabana e a empurra para o interior, onde ela é colocada no centro do altar; esta primeira pedra está dedicada ao Grande Espírito, que está no centro de todas as coisas. O homem sentado no Oeste toca então a pedra com a base do Calumet, e faz o mesmo cada vez que uma pedra é posta sobre o a ltar; e todos os homens exclamam: “Hay ye! Graças sejam dadas!”
A segunda pedra que entra na cabana é posta a Oeste do altar, a seguinte ao Norte, a outra a Leste, outra ainda ao Sul e, por último, há uma pedra para a Terra; finalmente o buraco é preenchido com o resto das pedras, que representam tudo o que existe no mundo.
O homem do Oeste oferece então o Calumet ao Céu, à Terra e às quatro Direções, acende-o e, depois de dar algumas baforadas, esfrega fumaça por todo o corpo; em seguida dá o Cachimbo ao homem que está à sua esquerda, dizendo: “How Ate” ou “How Tunkashila”, segundo seu grau de parentesco. O que recebe diz o mesmo, e assim o Cachimbo percorre todo o círculo no sentido do movimento do sol. Quando volta a ele, o homem que está no Oeste o purifica por medo de que alguma pessoa impura o tenha tocado, e esvazia cuidadosamente as cinzas, que coloca na borda do altar. Este primeiro uso do Calumet que acontnece na cabana, é levado a cabo em memória da santa Mulher Bisonte que primordialmente entrou na cabana de modo misterioso e que se foi transformando-se.
O Calumet passa de mão em mão até o oficiante principal, que está sentado no Leste; o oficiante sustenta o Cachimbo por um instatne sobre o altar com o cano dirigido ao Oeste, e a seguir o entrega ao ajudante que permanece no exterior; este último o enche de modo ritual e vai apoiá-lo no montículo sagrado, com o fornilho para o Leste e o cano para o Oeste, pois é o Poder do Oeste que é invocado agora.
O ajudante fecha a cabana de suar, submergiando-a numa completa escuridão; esta escuridão representa a da alma, a ignorância de que devemos nos purificar para receber a luz. Durante a realização da purificação – o ritual do inipi – a porta se abrirá quatro vezes e deixará penetrar a luz; isto nos recorsda as quatro idades e como, pela bondade do Grande Espírito, recebemos a luz de cada uma das idades.
O homem do Oeste lança então uma voz ao Grande Espírito gritando quatro vezes:
Hi-ey-hey-i-i!” Isto é o que dizemos quando precisamos de ajuda ou quando estamos desamparados; e não é o que acontece agora, quando estamos na escuridão e necessitamos de luz? Logo o mesmo homem grita quatro vezes: “Envio uma voz!” e “Escutai-me!”. E depois:
Wakan-Tanka, Avô, Tu és o Primeiro e sempre tens sido. Tu nos conduzistes a esta grande ilha na qual nosso povo deseja viver conforme ao mistério. Ensinai-nos a conhecer e a ver todos os Poderes do Universo, e daí-nos a sabedoria de compreender que não são mais do que um só Poder. Que nosso povo Te envie sempre sua voz enquanto caminha pelo sagrado caminho da vida!”
“Ó pedras antigas – Tunkayatakapa –, estais aqui presentes; o Grande Espírito fez a Terra e vos colocou muito perto dela. As gerações caminharam sobre vós e seus passos não vacilaram. Ó pedras, vós que não tendes olho, nem boca, nem membros; vós não vos moveis, mas com o vosso sopro sagrado, o vapor, nosso povo marchará pelo caminho da vida com alento poderoso; vosso alento é o próprio alento da vida.”
“Existe um ser alado – ali aonde o sol desce para seu repouso – que controla as águas a que todos os seres vivos devem a vida. Que nós utilizemos aqui estas águas conforme ao mistério!”
“Ó vós, que estais sempre em pé, que surgís da Terra e chegais a tocar o Céu, povos de árvores, sois inumeráveis, mas um de vós foi escolhido para sustentar esta sagrada cabana de purificação. Vós, povos de árvores, sois os protetores dos povos alados, pois sobre vós constróem suas tendas e habitam suas famílias, e debaixo de vós existem muitos povos a quem abrigais. Que eles, com todas as suas gerações, caminhem juntos com seus parentes!”
“A cada coisa terrestre, ó Wakan-Tanka, destes um poder, e porque o fogo é a mais poderosa de tuas criações, pois consome tudo, nós o colocamos em nosso centro; e quando o olhamos ou pensamos nele nos recordamos realmente de Ti. Que este fogo sagrado esteja sempre em nosso centro! Ajudai-nos naquilo que vamos fazer!”
O oficiante principal borrifa então as pedras com água, uma vez para nosso Avô, Tunkashila; uma vez para nosso Pai, Ate; outra vez para nossa Avó, Unchi; uma vez também para nossa Mãe, Ina, a Terra, e uma última vez para Channonpa, o Calumet; esta aspersão é feita com um raminho de sálvia ou de erva aromática, para que o vapor seja odorífico, e enquanto este se ergue e enche a cabana, o oficiante exclama:
“Ó Wakan-Tanka, olhai-me! Eu sou teu povo. Ao oferecer-me a Ti eu ofereço todo o povo como um só ser, a fim de que viva. Desejamos renascer. Ajudai-nos!”
Neste momento faz muito calor na cabana, mas é bom experimentar estas qualidades purificadoras do fogo, do ar e da água, e sentir o perfume da sálvia sagrada. Depois que estes poderes atuaram sobre nós, abre-se a porta em memória da primeira idade, aquela em que recebemos a luz do Grande Espírito. Um pouco de água é trazido, e o oficiante sentado a Leste a faz circular no sentido do movimento do sol; cada um dos assistentes bebe um gole ou esparge algumas gotas no corpo. Ao fazer isto, pensamos no lugar aonde se põe o sol e de onde provém a água, e o Poder desta Direção nos ajuda a rezar.
O ajudante, que permaneceu fora, pega então o Cachimbo no montículo e oferece-o ao Céu e à Terra; depois de caminhar pelo caminho ritual o entrega ao homem sentado a Oeste da tenda, apresentando-lhe o cano. Este oferece o Cachimbo às seis Direções, dá algumas baforadas e esfrega o corpo com a fumaça, e a seguir o Calumet dá a volta ao círculo até ser fumado inteiramente. A pessoa que está a Oeste esvazia-o, deposita as cinzas ao lado do altar central e passa o Cachimbo ao exterior, como antes. O ajudante carrega-o de novo e vai apoiá-lo no montículo sagrado com o cano dirigido para o Norte, já que durante o segundo período de obscuridade que haverá na cabana será invocado o Poder do ser alado do Norte.
A porta é fechada e os ocupantes submergem pela segunda vez na escuridão. Agora é a pessoa ao Norte que ora:
“Vê, ó Águia Negra do lugar aonde o gigante Wazia tem sua tenda! O Grande Espírito te colocou ali para que controles o caminho. Estás ali para guardares a saúde dos homens, para que vivam. Ajudai-nos com teu vento purificador! Que ele nos faça puros para que caminhemos pelo caminho conforme ao mistério, de um modo agradável ao Grande Espírito!”
“Ó Avô Wakan-Tanka, Tu estás acima de tudo. És Tu que puseste sobre a Terra uma pedra sagrada que está agora no centro do nosso círculo. Tu nos destes também o fogo; e lá onde o sol se põe, destes o Poder a Wakinyan-Tanka,[52] que controla as águas e guarda o Cachimbo santo. Tu pusestes um sr alado no lugar de onde sai o sol, que nos dá a sabedoria; e pusestes também um ser alado no lugar para o qual nos voltamos sempre; ele é a fonte da vida e conduz pelo caminho vermelho. Todos estes Poderes são Teu Poder, e não são em realidade senão Um; todos estão aqui, agora, nesta cabana.”
“Ó Wakan-Tanka, Avô, que estás acima de tudo, é a tua vontade que cumprimos aqui! Pelo Poder que vem do lugar aonde vive o gigante Wazia nos tornamos tão puros e tão brancos como a neve que cai, Sabemos que estamos ainda na escuridão, mas logo virá a luz. Quando sairmos desta cabana, oxalá deixemos atrás de nós todos os pensamentos impuros, toda a ignorância! Que sejamos semelhantes a crianças recém-nascidas! Oxalá renasçamos, ó Wakan-Tanka!”
A seguir é derramada água sobre as pedras – quatro vezes para os quatro Poderes das quatro Direções – e enquanto o vapor se eleva, entoamos um canto ou uma simples melodia; isto nos ajuda a compreender o mistério de todas as coisas, e o trovão amortecido do nosso tambor nos recorda os Seres do Trovão do Oeste que controlam as águas e trazem a bondade.
Logo a porta da cabana abre-se pela segunda vez o que representa a vinda dos Poderes purificadores do Norte, e nos faz ver a luz que expulsa as trevas, como a sabedoria nos dissipa a ignorância . É entregue a água ao oficiante sentado a Leste; ele a oferece aos demais homens mencionando seu grau de parentesco ou de idade com relação a cada um deles, como descrito mais acima.
O Calumet é novamente introduzido na cabana e entregue ao homem que está sentado ao Norte; este homem oferece-o às seis Direções, acende-o e, depois de dar algumas baforadas, esfrega o corpo com a fumaça. Logo o Cachimbo dá a volta ao círculo. Quando todo o kinnikinnik foi consumido o Cachimbo volta para o Norte, onde é purificado; suas cinzas são depositadas juntoao altar central. A seguir ele é devolvido ao ajudante, que o enche de novo e vai depositá-lo sobre o montículo, com o cano dirigido para o Leste; pois agora vamos invocar o Poder desta direção. A porta é fechada e o homem que está sentado a Leste da cabana envia agora a sua voz:
“Ó Wakan-Tanka, por fim vi a claridade, a luz da vida! Tu destes o Poder da sabedoria à Luz da Aurora no lugar de onde sai o sdol. O ser alado que guarda este caminho possui um alento poderoso, e com os dias sagrados que Tu lhe destes, ó Wakan-Tanka, ele guardou o caminho da tribo! Ó Tu que controlas o caminho de onde sai o sol, olhai-nos com teus dias vermelho e azul e ajudai-nos a enviar nossas vozes ao Grande Espírito! Ó Tu que possuís o conhecimento, daí-nos uma parte da tua ciência para que nossos corações se iluminem e para que copnheçamos tudo o que é sagrado!”
“Ó Luz da Aurora, do lugar de onde sai o sol! Ó Tu que tens a sabedoria que nós buscamos, ajudai-nos para que nos purifiquermos, assim como ao povo, para que nossas gerações futuras possuam a luz para caminhar pelo caminho sagrado. És Tu que conduzes a aurora quando avança, e também ao dia que a segue cim a sua luz, que é conhecimento. Tu fazes isto para nós e para todos os povos que existem no mundo, para que vejam com clareza ao seguirem o caminho e para que conheçam tudo o que é santo e cresçam conforme ao mistério!”
Novamente é vertida água sobre as pedras; logo começamos a cantar um hino. Pouco depois, quando o calor nos penetrou bastante, abre-se a porta pela terceira vez e a luz do Leste nos inunda. Enquanto o Cachimbo passa às mãos do homem que está no Leste, todos exclamam: “Hi ho! Hi ho! Graças sejam dadas!”  E o oficiante levanta o Cachimbo para o Céu e envia sua voz:
Wakan-Tanka, damos graças pela luz que Tu nos destes por meio do Poder do lugar de onde sai o sol. Ajudai-nos, ó Tu, Poder do Leste! Sê misericordioso consoco!”
Então acende-se o Cachimbo que é fumado por todo o círculo e, quando termina a volta, o ajudante toma-o e o deposita sobre o montículo com o cano voltado para o Sul.  Passa-se novamente a água no círculo no sentido do movimento do sol, e cada uma fricciona o corpo inteiro e em especial o cocuruto; depois a porta é fechada pela última vez. É o homem sentado ao Sul que agora envia sua voz:
“Avô Wakan-Tanka, olhai-nos! Pusestes um grande poder no lugar para o qual nos voltamos sempre, e muitas gerações vieram desta direção e regressaram a ela. Existe um ser alado nesta Direção que guarda o caminho vermelho por onde vieram as gerações. A geração que hoje está aqui deseja lavar-se e purificar-se para renascer!”
“Queimaremos erva aromática como oferenda ao Grande Espírito, e seu perfume se estenderá pelo Céu e pela Terra; e assim os quadrúpedes, os povos alados, os povos de estrelas do Céu, serão todos parentes. De Ti, ó Avó Terra, que és humilde e nos leva em teu seio como uma mãe, emanará este perfume; que seu poder seja sentido em todo oUniverso, e que purifique os pés e as mãos dos homens para que avancem pela Terra sagrada levantando suas cabeças para o Grande Espírito!”
Toda a água que resta é vertida agora sobre as pedras que estão ainda muito quentes, e enquanto o vapor se desprende e penetra todas as coisas, cantamos ou modulamos um canto de mistério. Logo o oficiante fala assim:
“O ajudante abrirá a porta pela última vez dentro de alguns instantes, e quando estiver aberta veremos a luz. É desejo do Grande Espírito que a claridade entre no meio das Trevas para que possamos ver não só com nossos olhos, mas sobretudo com o Olho único que existe no Coração – Chante Ishta – e com o qual vemos e conhecemos tudo o que é verdadeiro e bom. Demos graças ao ajudante: que suas gerações sejam benditas! Está bem! Terminamos! Hechetu alo!
Quando a porta da cabana é aberta, os homens exclamam: : “Hi ho! Hi ho! Graças sejam dadas!”. E todos estão felizes, pois sairam das trevas e vivem agora na luz[53]. O ajudante traz logo uma brasa do fogo sagrado e a coloca no caminho ritual, bem diante do umbral da cabana. Enquanto queima erva aromática sobre a brasa, ele diz:
“Este é o perfume do Grande Espírito. Por ele, os bípedes, os quadrúpedes, os seres alados e todos os povos doUniverso serrão felizes e se alegrarão.”
O oficiante principal então diz:
“Este é o fogo que ajudará as gerações futuras se o empregarem conforme ao mistério. Mas se não fizerem bom uso dele, este fogo terá o poder de causar-lhes um grande dano.”
O oficiante purifica suas mãos e seus pés com fumaça e, a seguir, levanta os braços ao céu e reza:
Hi ho! Hi ho! Hi ho! Hi ho! Wakan-Tanka, hoje foi um bom dia para nós. Nós Te damos graças por isto. Ponho agora meus pés sobre a Terra. Cheio de felicidade, caminho sobre a Terra sagrada, nossa Mãe. Que as gerações futuras caminhem também desta maneira, conforme ao mistério!”
Todos os homens abandonam a cabana de suar seguindo o movimento do sol, e também eles purificam as mãos e os pés, e rezam ao Grande Espírito, como fez o oficiante.
O ritual está terminado, e os que tomaram parte nele estão como se houvessem nascido de novo; fizeram um grande bem, não só a si mesmos, mas também a toda a nação.
Talvez eu ainda deva mencionar o seguinte: muitas vezes, quando estamos na cabana de suar, algumas crianças colocam a cabeça no interior e pedem ao Grande Espírito que purifique suas vidas. Nós não as afastamos, pois sabemos que as crianças têm o coração inocente.
Quando saimos da cabana de suar somos semelhantes às almas que foram guardadas, tal como descrevi, e que regressam ao Grande Espírito depois de purificadas; também deixamos atrás de nós, na cabana do inipi, tudo o que é impuro, a fim de vivermos como quer o Grande Espírito, e a fim de conhecer algo deste Mundo verdadeiro do Espírito que está escondido atrás deste mundo.
Estes rituais do inipi são muito sagrados e são realizados antes de todas as grandes empresas que nos exigem sermos puros e fortes; há muitos invernos, nossos homens – e muitas vezes nossas mulheres – praticavam o inipi todo dia, e às vezes várias vezes ao dia; grande parte de nossa força veio disto. Agora que descuidamos destes ritos, perdemos grande parte deste poder; choro quando penso nisto. E rezo para que o Grande Espírito queira mostrar aos nossos jovens a importância de todas essas práticas veneráveis.


IV

HANBLECHEYAPI:

IMPLORAR UMA VISÃO



Implorar uma visão – hanblecheyapi – assim como os ritos de purificação do inipi, foi praticado muito antes da vinda do Calumet à terra. Este modo de oração é muito importante; é, de certo modo, o centro de nossa religião e graças a ele temos recebido muitos favores, tais como estes quatro grandes ritos: a dança do sol, o parentesco, a preparação da jovem, o lançamento da bola.
Todo homem pode implorar uma visão: antigamente, homens e mulheres imploravam constantemente. O que é obtido assim depende do caráter daquele que implora; de fato, somente os homens verdadeiramente qualificados recebem as grandes visões, e estas são logo interpretadas pelos nossos homens santos; dão força e saúde à nossa tribo. Quando alguém deseja implorar, é muito importante que solicite a ajuda e os conselhos de um homem santo – wichasha wakan [54]– a fim de que tudo se cumpra de um modo correto, pois se as coisas não são feitas segundo as regras, pode ocorrer alguma desgraça; poderia, por exemplo, aparecer alguma serpente e enrolar-se em torno do implorante.
Todos já ouviram falar de nosso grande chefe e sacerdote Tashunko Witko, Cavalo Louco; mas provavelmente ninguém sabe que seu grande poder vinha-lhe sobretudo da imploração que praticava várias vezes ao ano, inclusive no inverno, com um clima muito frio e muito duro. Ele recebeu as visões do Penhasco, da Sombra, do Texugo, do Cavalo que empina – daí seu nome –, do Dia e também de Wambali Galeshka, a Águia Pintada; e recebeu de todas estas visões muito poder e santidade[55].
Muitas razões podem incitar o homem a retirar-se para o cume de uma montanha para implorar. Alguns obtiveram visões ainda crianças, sem esperá-lo[56]; neste caso, vão implorar para entendê-las melhor. Imploramos também quando desejamos aumentar nosso valor com vistas a uma grande prova, como a dança do sol, ou para prepararmo-nos para partir para o caminho da guerra. Às vezes se implora para pedir alguma favor ao Grande Espírito, como a cura de um parente; e também para dar graças ao Grande Espírito por algum dom concedido. Mas a razão mais importante para implorar é, sem dúvida, que isto nos ajuda a nos darmos conta de nossa unidade com todas as coisas, a compreender que todas as coisas são nossos parentes; e então, em seu nome, rogamos ao Grande Espírito que nos dê o conhecimento de Si mesmo, Dele que é a fonte de tudo e que é maior do que tudo.
Nossas mulheres também imploram, depois de se terem purificado na cabana de suar; outras mulheres as ajudam, mas elas não vão a uma montanha elevada e deserta; retiram-se para um colina do vale, pois são mulheres e necessitam proteção.
Quando um índio deseja implorar, procura com o Cachimbo carregado a um homem santo; entra na tenda sustenatndo o cano reto diante de si e se senta frente ao ancião que será seu guia; o implorante coloca o Calumet no solo com o cano dirigido para si, pois é ele quem deseja adquirir o conhecimento. Ohomem santio eleva então as mãos ao Grande Espírito e depois para as quatro Direções, e tomando o Calumet pergunta ao homem o que deseja. “Desejo implorar e oferecer meu Calumet ao Grande Espírito. Tenho necessidade da tua ajuda e dos teus conselhos, e desejo que envíes uma voz por mim às Potências do alto.”
A isto o ancião responde: “How! Está bem”, e os dois saem da tenda; depois de andar  um pouco, detêm-se e olham para o Oeste; o jovem está à esquerda do homem santo. As pessoas que se acham próximas unen-se a eles. Todos levantam a mão direita, e o ancião reza enquanto dirige o cano do Calumet para o céu.
Hi-ey-Hey-i-i!”, diz quatro vezes, e a seguir continua: “Avô Wakan-Tanka, Tu és o Primeiro, e sempre fostes. Todas as coisas Te pertencem. És tu o criador de todas as coisas. Tu és singular e único, e nós Te enviamos uma voz. Este jovem aqui presente acha-se em dificuldades e deseja oferecer-te o Calumet. Pedimos-te que o ajudes! Dentro de poucos dias ele Te oferecerá seu corpo. Porá seus pés sobre a Terra sagrada, nossa Mãe e Avó, conforme ao mistério.”
“Todos os poderes do mundo, o céu e os povos de estrelas, e os dias sagrados vermelho e azul, todas as coisas que se movem no Universo, nos rios, ribeiros, nas fontes, em todas as águas, todas as árvores que se erguem e todas as ervas de nossa Avó, todos os povos sagrados do Universo; escutai! Este jovem pedirá um parentesco sagrado com todos vós a fim de que as gerações futuras cresçam e vivam conforme ao mistério.”
Ó Tu, ser alado de onde o sol se põe, Tu que velas por nosso Calumet venerável, ajudai-nos! Ajudai-nos a oferecer este Calumet ao Grande Espírito para que dê sua bênção a este jovem!”
Então todos os demais gritam: “How!”, e sentam-se em círculo no chão. O ancião oferece o Calumet às seis Direções, acende-o e entrega-o primeiro ao jovem que vai implorar; este o oferece com uma oração, e todos os que formam o círculo fumam com ele. Quando o Calumet foi inteiramente consumido, é devolvido ao homem santo, que o limpa, purifica ee entrega de novo ao jovem, perguntando-lhe quando deseja implorar; então o dia é escolhido.

*********
Quando chega o dia eleito, o jovem que irá implorar vai vestido apenas com sua pele de bisonte, sua tanga e seus mocassinos; chega, chorando, com seu Calumet à tenda do homem santo. Assim que entra, põe sua mão direita sobre a cabeça do ancião, dizendo: “Unshimala ye! Tem misericórdia de mim!” A seguir coloca o Calumet diante do homem santo e pede sua ajuda. O ancião responde:
“Todos sabemos que o Cachimbo está cheio de mistério, e com ele viestes chorando. Quero ajudar-te, mas deverás lembrar sempre o que te vou dizer: nos invernos futuros, procederás segundo as instruções e os conselhos que te darei. Podes implorar de um a quatro dias, e até mais, se quiseres; quantos dias eleges?”
“Elejo dois dias.”
“Bem! Eis o que deves fazer: primeiro construirás uma cabana de suar, na qual nos purificaremos, e para isto deves selecionar doze ou dezesseis salgueiros pequenos. Mas antes de cortar os salgueiros, não te esqueças de fazer-lhes uma oferenda de tabaco, e quando estiveres diante deles, dirás: ‘Existem muitas espécies de árvores, mas escolhi a vós para que me ajudeis. Vou arrabncar-vos, mas outros virão em vosso lugar.’ Em seguida, levarás estas árvores até o lugar em que iremos construir nossa cabana.”
“Reunirás piedosamente pedras e sálvia, e farás um feixe de cinco bastões grandes, e também outros cinco feixes de doze bastõezinhos que serão usados como oferendas. Deixarás estes bastões apoiados do lado Oeste da cabana de suar até que estejamos em ponto de purificá-los. Também necessitaremos rolos de tabaco dos arikara, kinnikinnik, uma tábua para cortar tabaco, uma pele de gamo para envolver as oferendas de tabaco, erva aromática, um saco de terra sagrada, um machado e uma machadinha de pedra. Deves procurar estes objetos por ti mesmo, e quando estiveres preparado nos purificaremos. Hechetu welo!”
Após haver sido construída a cabana de purificação e terem sido reunidos todos os apetrechos, o homem santo entra nela e senta-se ao Oeste; o implorante entra a seguir e senta-se ao Orte; logo um ajudante entra e senta-se ao Sul do ancião. Trazem então até a cabana uma pedra fria que é colocada do lado Norte do altar central, onde o homem santo a purifica com uma breve oração; em seguida o ajudante leva-a de volta para o exterior. É a primeira pedra destinada à fogueira perpétua – Peta Owihankeshni – que foi instalada a Leste da cabana.
A Leste do altar central, na cabana de purificação, o ajudante rastela a terra e deposita uma brasa naquele lugar. Então o homem santo caminha em círculo até o Leste e, inclinand-se para a brasa, toma um pouco de erva aromática nas mãos e ora assim:
“Ó Avô Wakan-Tanka, olhai-nos! Sobre a terra sagrada coloquei esta erva que Tu Criastes. A fumaça que sobe da terra e do fogo pertencerá a tudo o que se move no Universo: aos quadrúpedes, aos voláteis e a tudo o que existe. Dar-te-ão sua oferenda, ó Wakan-Tanka! Queremos consagrar-te tudo o que tocamos!”
No momento em que se coloca a erva aromática sobre a brasa, os outros homens da cabana exclamam: “Hay ye! Graças sejam dadas!”, e quando a fumaça sobe, o homem santo esfrega suas mãos nela e a seguir as passa por seu corpo; o implorante e o ajudante purificam-se da mesma maneira com a fumaça do mistério. O saquinho de terra também é purificado e os três homens voltam a ocupar seu lugar a Oeste; todos os deslocamentos são feitos no sentido do movimento do sol. A terra purificada é estendida cuidadosamente com um movimento circular no interior da cavidade central, e este gesto é feito lenta e respeitosamente, pois esta terra representa todo o Universo. O ajudante dá em seguida um bastão ao homem santo, que se serve dele para assinalar quatro posições ao redor da cavidade, a Oeste, Norte, Leste e Sul; depois desenha uma cruz com os braços orientados nestas direções; e isto é particularmente sagrado, pois esta cruz estabelece os quatro grandes Poderes do Universo, assim como o centro no qual reside o Grande Espírito. Neste momento entra um ajudante que traz uma brasa sobre um bastão com forquilha; caminha lentamente, detém-se quatro vezes, e na quarta vez coloca o carvão no centro da cruz.
O homem santo, sustentando um pouco de erva aromática sobre o braseiro, ora assim:
“Ó Avô meu Wakan-Tanka, Tu és tudo, e Pai meu Wakan-Tanka, todas as coisas Te pertencem! Vou colocar a erva sobre este fogo. Seu perfume Te pertence.”
Então o ancião baixa lentamente a erva aromática até o fogo. O ajudante toma o Calumet e, deslocando-se com ele no sentido do movimento do sol, entrega-o ao homem santo, que ora assim: “Ó Wakan-Tanka, olhai este Calumet: eu o sustento sobre a fumaça desta erva. Ó Wakan-Tanka, olhai também este lugar consagrado que fizemos. Sabemos que no centro está Tua morada. As gerações caminharão sobre este círculo. Os quadrúpedes, os bípedes, os voláteis e os quatro Poderes do Universo contemplarão este lugar, que é Teu.”
O homem santo sustenta o Calumet sobre a fumaça, dirigindo o cano primeiro para o Oeste e a seguir para o Norte, o Leste, o Sul e o Céu; depois toca a Terra com a base do Cachimbo. Purifica todos os objetos rituais e confecciona uns saquinhos de tabaco que ata na extremidade dos bastões de oferendas.
O venerável ancião está agora sentado no Oeste; toma a tábua de cortar tabaco e começa a cortar e a misturar o kinnikinnik. Primeiro ele avalia a capacidade do Calumet, pois deve fazer tabaco na medida justa para encher o fornilho, não mais. Cada vez que corta um pouco de tabaco ele o oferece a uma das Direções do mundo e toma muito cuidado para que nada caia da tábua, o que enfureceria os Seres do Trovão. Quando a mistura termina, o ancião toma o Calumet com a mão esquerda e, levantando um punhado de kinnikinnik com a mão direita, reza assim:
“Ó Wakan-Tanka, Pai e Avô meu, Tu és o primeiro e sempre fostes! Olhai este jovem cuja alma está perturbada. Ele deseja andar pelo caminho sagrado; ele quer oferecer-Te este Calumet. Sê misericordioso com ele e ajudai-o! Os quatro Poderes e todo o Universo serão colocados no fornilho do Calumet, e então este jovem o oferecerá a Ti com a ajuda dos seres alados e de todas as outras coisas.”
“O primeiro a ser colocado no Calumet serás Tu, ó Poder alado do lugar onde se põe o sol! Tu e teus guardiões sois e estais cheios de mistério. Olhai! Há um lugar para Ti no Calumet. Ajudai-nos com teus dois dias sagrados vermelho e azul!”
O homem santo põe este tabaco no Calumet e a seguir levanta outro punhado para o Norte, aonde vive o gigante Wazia:
“Ó Poder alado do lugar aonde o gigante tem sua tenda, de onde vêm os ventos purificadores e fortes; há um lugar para Ti no Calumet; ajudai-nos com os dois dias sagrados que tu possuis!”
O Poder desta direção é introduzido do mesmomodo no Calumeet e um terceiro punhado de tabaco é dirigido ao Leste:
“Ó Tu que estais aí onde nasce o sol, que guardas a luz e dás o conhecimento, este Calumet vai ser oferecido ao Grande Espírito;  Tu também acharás nele um lugar; ajudai-nos com teus dias sagrados!”
O Poder do Leste é introduzido do mesmo modo no Calumet e um pouco de tabaco é erguido ao Sul, o lugar para onde nos voltamos sempre.
“Ó Tu que controlas os ventos sagrados e que vives no lugar para onde nos voltamos sempre, teu sopro dá a vida; de Ti vêm nossas gerações e para Ti vão. Este Calumet vai ser oferecido ao Grande Espírito; existe nele um lugar para Ti! Ajudai-nos com os dias sagrados que tu possuis!”
Desta maneira os Poderes das quatro Direções foram introduzidos no fornilho do Calumet, e o ancião levanta agora um pouco de tabaco para o Céu; é para Wambali Galeshka, a Águia Pintada, que está por cima de todas as coisas criadas e que manifesta diretamente o Grande Espírito.
“Ó Wambali Galeshka, Tu que dá voltas nos mais altos céus, Tu vês tudo o que existe no céu e na terra. Este jovem vai oferecer este Calumet ao Grande Espírito com o fim de obter o conhecimento. Ajudai-o, assim como aos que, por teu intermédio, enviam suas vozes ao Grande Espírito. Existe um lugar para Ti neste Calumet; ddaínos teus dois dias sagrados vermelho e azul!”
Com esta oração, a Águia Pintada é introduzida no fornilho do Cachimbo; depois o ancião  estende um punhado de tabaco à Terra, orando assim:
“Ó Unchi e Ina, nossa Avó e Mãe, Tu estás cheia de mistério! Sabemos que nossos corpos vieram de Ti. Este jovem deseja chegar a ser uno com todas as coisas; deseja adquirir conhecimento. Pelo bem de todas as criaturas, ajudai-o! Há um lugar para Ti no Calumet; daí-nos teus dias sagrados vermelho e azul!”
Assim a Terra, que agora está realmente presente no tabaco, é introduzida no Cachimbo, e desta maneira os seis Poderes do Universo foram convertidos em Um. Mas, a fim de que todos os povos dom undo, sem exceção, sejam incluídos no Calumet, o homem santo oferece pequenas sementes de tabaco para cada um dos seguintes povos alados:
“Ó tu, pássaro que voas nos dias sagrados; tu que crias tão bem tua família, oxalá nós cresçamos e vivamos da mesma maneira! Este Calumet logo será oferecido ao Grande Espírito; aqui há um lugar para ti. Ajude-nos!”
Com uma oração idêntica, são oferecidas e introduzidas no Cachimbo pequenas sementes de tabaco para a cotovia dos campos, o melro, o pássaro carpinteiro, o pássaro da neve, o corvo, a gralha, a pomba, o falcão, o gavião, a águia careca, e o que sobra do tabaco é oferecido pelo bípede que vai implorar oferecendo-se a si mesmo para o Grande Espírito.
A seguir o Calumet é selado com graxa, pois o implorante o levará consigo quando for para o cume da montanha, e ali o oferecerá ao Grande Espírito; mas não fumará antes de haver terminado a súplica e de haver-se reunido novamente com o homem santo.
Todas as varas e todos os apetrechos, já purificados, são deixados fora da cabana, a Oeste. Os três homens saem e se preparam para o inipi, e tiram as vestes, com exceção da tanga. Todos os presentes estão autorizados a participar deste rito de purificação.

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O implorante é o primemiro a entrar na cabana de suar; depois de dar a volta na cabana imitando o movimento do sol, senta-se a Oeste. Toma seu Calumet, que foi deixado ali; depois desloca-se no sentido do movimento do sol sustentando o Cachimbo diante de si com o cano voltado para o Leste; conservará esta posição durante toda a primeira parte do ritual. O homem santo entra a seguir e, passando por trás doimplorante, senta-se a Leste, bem ao lado da porta. Todos os que desejam tomar parte no rito ocupam então o espaço livre e  dois homens permanecem do lado de fora na qualidade de ajudantes.
Um dos ajudantes enche um Calumet do modo ritual e o entrega ao homem que está sentado à esquerda do implorante. A pedra que havia sido purificada anteriormente é introduzida com o batão em forma de forquilha, pois está muito quente; esta pedra é deixada no centro do buraco consagrado. Logo uma segunda pedra é colocada a Oeste, no mesmo buraco, e as outras são postas ao Norte, a Leste e ao Sul. Durante essa operação, o que tem o Calumet toca cada pedra com a base do Cachimbo e ao mesmo tempo todos exclamam: “Hay ye! Hay ye!”. Logo o Calumet é aceso e é oferecido ao Céu, à Terra e às quatro Direções, e fuma-se por turnos. À medida em que passa de mão em mão, cada homem dirige-se ao vizinho chamando-o pelo grau de parentesco, e quando todos fumaram, dizem em coro: “Mitakuye oyasin! Somos todos parentes!” Aquele que acendeu o Calumet esvazia-o e deixa as cinzas sobre o altar central; depois de tê-lo purificado, estende-o ao vizinho da esquerda, que o faz passar para fora da cabana. O ajudante carrega-o nocvamente e o coloca sobre o montículo sagrado com o cano dirigido para o Oeste. Fecha-se a porta, e o homem santo, sentado a Leste, começa a rezar na escuridão:
“Olhai! Tudo quanto se move no Universo está aqui!”. Isto é repetido por todos, e para terminar todos exclamam: “How!”. Depois gritam quatro vezes: “Hi-ey-hey-i-i!”, e também quatro vezes: “Wakan-Tanka, Avô, olhai-nos! Nesta grande ilha existe um homem que quer oferecer-te um Calumet. Hoje ele cumprirá sua promessa. A quem enviaria uma voz, senão a Ti, Wakan-Tanka, Avô e Pai nosso? Ó Wakan-Tanka, este homem Te pede que sejas misericordioso com ele. Diz que seu pensamento está perturbado e que tem necessidade de Tua ajuda. Ao oferecer-Te este Cachimbo, oferecerá todo seu corpo e toda sua alma. Chegou o momento: logo irá a um lugar elevado e ali implorará para conseguir tua ajuda. Sê mirericordioso com ele!”
“Ó vós, os quatro Poderes do Universo, vós, alados do ar, e todos os povos que se movem no Universo, todos vós fostes colocados no Calumet. Ajudai a este jovem com o conhecimento que o Grande Espírito vos deu. Sêde misericordiosos! Ó Wakan-Tanka, permite que este jovem tenha parentes; que não seja senão um com os Quatro Ventos, os quatro Poderes do Mundo e com a luz da aurora. Que compreenda seu parentesco com todos os povos alados do ar. Ele porá seus pés sobre a terra sagrada do cume de uma montanha; que possa recebr, lá no alto, a sabedoria; que suas gerações futuras permaneçam conforme ao mistério! Todas as coisas Te dão graças, ó Wakan-Tanka, Tu que és misericordioso e nos ajuda a todos. A Ti pedimos tudo isto, sabendo que Tu és o Único e que Teu poder se estende sobre todas as coisas!"
Enquanto se verte um pouco de água sobre as pedras ardentes, todos o shomens cantam:
Avô, envio uma voz!
Aos céus do Universo envio uma voz,
Para que meu povo viva!
Enquanto os homens cantam isto e o vapor sobe, o implorante soluça, pois se humilha ao pensar em sua nulidade em presença do Grande Espírito[57].
Ao cabo de alguns instantes, um ajudante abre a porta e o implorante abraça então seu Calumet colocando-o sobre um ombro e depois sobre o outro, e suplicando sem cassar ao Grande Espírito: “Tem piedade de mim! Ajudai-me!”. Este Calumet passa de mão em mão e todos o abraçam e choram como o implorante. Deste modo o Cachimbo é passado para o lado de fora, e os ajudantes também o abraçam; em seguida colocam-no sobre o montículo com o cano voltado parao Leste; esta é a Direção na qual acha-se a Fonte da luz e do conhecimento.
O segundo Calumet, que deve ser empregado no rito de purificação, e que estava sobre o montículo com o cano virado para o Oeste, é então introduzido na cabana e entregue à pessoa que está sentada imediatamente à esquerda do Implorante. Este Cachimbo é aceso e depois todos os membros do círculo fumam dele; logo é retirado para o exterior. Em continuação se faz circular água e o implorante é autorizado a beber quanto quiser, mas deve ter o cuidado de não derramar nem uma gota, nem no chão nem sobre seu corpo, pois isto provocaria a cólera dos Seres do Trovão que custodiam as águas sagradas e que poderiam aparecer-lhe à noite enquanto implora. O homem santo lhe diz para esfregar o corpo com a sálvia; a porta se fecha novamente, e um homem venerável que já tenha tido uma visão faz uma oração:
“Sobre esta pedra cheia de mistério, os Seres do Trovão se mostraram cheios de misericórdia para comigo: deram-me um poder proveniente do lugar aonde vive o gigante Wazia. Apareceu-me uma águia. Ela te verá também quando fores implorar uma visão. Do lugar aonde nasce o sol, enviaram-me uma águia careca; também ela te verá. Do lugar para onde sempre nos voltamos, enviaram-me um ser alado. Foram muito misericordiosos comigo. Nas alturas do Céu existe um Ser alado que está próximo ao Grande Espírito: é a Águia Pintada, e também ela te verá. Irão contemplar-te todos os Poderes e a Terra sagrada sobre que estás. Eles indicaram-me um bom caminho a seguir sobre esta Terra; oxalá possas tu tamvbém conhecer esta via! Aplica teu espírito em compreender o significado destas coisas, e verás! É assim, não te esqueças! Hechetu welo!”
Então o ancião canta:
Eles enviam-me uma voz.

Desde o lugar aonde se põe o sol

Nosso Avô envia-me uma voz.
Desden o lugar aonde se põe o sol
Me falam quando vêm.
A voz de nosso Avô me chama.
Este Ser alado que está no lugar onde vive o Gigante

Envia-me uma voz: ele me chama. Nosso Avô me chama!

Enquanto o ancião canta, verte-se água sobbre as pedras, e depois de uns momentos de silêncio em meio à escuridão e do vapor quente e perfumado, abre-se de novo a porta, e o ar fresco e a luz penetram na cabana. Mais uma vez o Cachimbo é retirado do montículo e entregue, na cabana, ao homem que está sentado ao Norte. Depois de fumado, é reposto no montículo com o cano dirigido para o Leste. Fecha-se a porta, e desta vez é o homem santo sentado ao Leste quem reza:
“Ó Wakan-Tanka, observa tudo o que fazemos aqui e Te pedimos! Ó Tu, Poder do lugar aonde o sol se põe, Tu que controlas as águas: com o sopro de tuas águas este jovem se purifica. E também vós, ó pedras de idade imemorial que agora nos ajudais, escutai! Estais firmemente fixadas nesta terra; sabemos que os ventos não podem mover-vos. Este jovem vai enviar uma voz e chorar para obter uma visão. Vós o ajudais dando-lhe uma parte de vosso poder; vosso sopro o purifica.”
“Ó Fogo eterno do lugar onde sai o sol, contigo este jovem ganha em força e lucidez. Ó árvores, o Grande Espírito vos deu o poder de permanecer em pé. Que este jovem possa sempre tomar-vos como exemplo; que possa vincular-se firmemente a vós. Está bem! Hechetu welo!”
Novamente todos cantam; depois de alguns instantes abre-se a porta e o Calumet é entregue ao homem santo sentado a Leste, que o acende, dá algumas baforadas e o faz circular por todo o grupo. Quando o tabaco foi consumido, o ajudante toma o Cachimbo e o coloca outra vez no montículo, como cano dirigido para o Sul. A porta da inipi é fechada pela última vez, e então o homem santo dirige sua oração às pedras:
“Ó vós, pedras antigas, estais cheias de mistério, não tendes orelhas nem olhos, e sem embargo ouvis e vêdes todas as coisas. Graças a vossos poderes este jovem se tornou puro e digno de partir para receber uma mensagem do Grande Espírito. Logo os homens que guardam a porta desta cabana sagrada irão abri-la pela quarta vez e veremos a luz do mundo. Tende piedade dos homens que guardam a porta. Que suas gerações sejam benditas!”
Verte-se água sobre as pedras que ainda estão quentes e, depois que o vapor preencheu a cabana toda durante algum tempo, abre-se a porta e os homens exclamam: “Hi ho! Hi ho! Graças sejam dadas!”
O implorante é o primeiro a abandonar a cabana e, chorando sem cessar, vai sentar-se no caminho ritual, em frente ao montículo em que descansa o Cachimbo. Um dos ajudantes recolhe a pele de bisonte purificada e a coloca sobre os ombros do implorante; outro toma o Cachimbo e o apresenta ao jovem, que agora está preparado para ir a uma alta montanha implorar uma visão.

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Trazem-se três cavalos; em dois deles são colocados os bastões de oferendas e uma certa quantidade de sálvia; o implorante monta no terceiro, chorando de lástima e sustentando diante de si o Calumet. Quando chegam ao sopé da montanha, os dois ajudantes adiantam-se com todos os apetrechos para preparar no cume o lugar ritual: avançam na direção que mais depressa os afasta do acampamento e vão diretamente ao local escolhido como centro; ali descarregam os apetrechos. Começam fazendo um buraco no chão, onde depositam um pouco de kinnikinnik; a seguir cravam ali uma longa vara, em cuja extremidade foram atadas as oferendas. Um dos ajudantes dá dez passos na direção Oeste e crava ali outra vara, na qual sujeita mais oferendas. Continuando, regressa ao centro, onde toma outra vara, que vai cravar ao Norte; logo retorna ao centro. De modo semelhente, crava uma vara a Leste e outra ao Sul. Enquanto isto, o outro ajudante esteve ocupado em preparar no centro um leito de sálvia no qual o implorante, nos momentos de fadiga, poderá repousar apoiando a cabeça na vara central e estendendo os pés para o Leste. Quando tudo está terminado, os ajudantes abandonam o local sagrado pelo caminho do norte e reunem-se com o implorante, que espera na base da montanha.
O implorante tira então os mocassinos e inclusive a tanga, pois, se desejamos realmente implorar, devemos ser pobres em bens deste mundo; então ele sobe só, até o cume, sustentando seu Calumet adiante e levando sua pele de bisonte, que usará durante a noite. Enquanto caminha, chora e repete constantemente: “Wakan-Tanka unshimala ye oyate wani wachin cha! Ó Wakan-Tanka, tem piedade de mim para que meu povo viva!”
Quando chega ao local consagrado, dirige-se à vara central e olha para o Oeste; levantando seu Calumet com as duas mãos, continua rezando entre lágrimas:Ó Wakan-Tanka, tem piedade de mim para que meu povo viva!”. Em seguida aproxima-se muito devagar da vara que está a Oeste; ali oferece a mesma oração e regressa ao centro. Do mesmo modo, vai até a vara do Norte, a do Leste e a do Sul, voltando ao centro de cada vez; e depois de cada um desses trajetos, eleva seu Calumet ao Céu e pede aos seres alados e a todas as coisas que o ajudem; depois dirige o cano para o chão e pede ajuda de tudo o quento cresce sobre nossa Mãe.
Tudo isto ocuparia pouco tempo; mas o implorante deve fazê-lo tão lentamente, e de um modo tão solene, que muitas vezes passa-se uma hora, ou até duas, para fazer apenas um dos trajetos. Ele não pode deslocar-se de outra maneira; mas enquanto percorre esta forma de cruz pode deter-se em qualquer ponto do trajeto, e durante o tempo que desejar. É isto que fará todo dia, orando sem descanso, seja em voz alta ou silenciosamente em seu interior, pois o Grande Espírito está em todas as partes e por conseguinte ouve tudo o que há em nossos pensamentos e em nossos corações; não é preciso falar-lhe em voz alta. O implorante não está obrigado a dizer sempre a oração que indiquei; pode permanecer em silêncio, concentrando toda a sua atenção no Grande Espírito ou em um de seus Poderes. Deve evitar cuidadosamente os pensamentos que o distraiam, mas, por outro lado, deve permanecer desperto para reconhecer qualquer mensageiro que o Grande Espírito possa enviar-lhe; estes mensageiros tomam frequentemente a forma de um animal, às vezes tão minúsculo e aparentemente insignificante como uma formiga. É possível também que do Oeste lhe venha yma águia pintada, ou do Norte uma águia negra, ou do Leste uma águia careca, ou do Sul um pássaro carpinteiro de cabela vermelha. Mesmo quando de início nenhuma dessas aves lhe fale, todas tem importância e devem ser observadas. Se chega um passarinho, ou um esquilo, o implorante deve também fixar-se nele. Talvez no começo os animais se mostrem selvagens, mas logo se tornarão dóceis e os pássaros pousaram sobre os bastões, e inclusive haverá formigas e lagartas que caminhem sobre o Calumet. Todos esses povos são importantes, pois são sábios à sua maneira e podem ensinar-nos muitas coisas, a nós, os bípedes, se adotamos uma atitude humilde diante deles. Dentre todas as criaturas, as mais dignas de atenção são as aves; são as que se acham mais perto do céu e não estão atadas à terra como os quadrúpedes ou os pequenos povos reptilianos.
Covém ressaltar que não é algo gratuito que os humanos sejam bípedes como as aves; pois estas abandonam a terra com suas asas, e nós, os homens, podemos também sair deste mundo, não com asas, mas com o espírito. Isto ajudará a compreender porque consideramos sagrados e importantes a todos os seres criados: toda coisa possui uma influência – wochanghi – que pode ser-nos dada, e graças à qual podemos adquirir um pouco mais de compreensão se estivermos atentos.
Durante todo o dia o implorante envia sua voz ao Grande Espírito para obter sua ajuda, e se desloca seguindo o caminho ritual em forma de cruz; esta forma tem muito poder: cada vez que voltamos ao centro é como se voltássemos ao Grande Espírito, que é o centro de todas as coisas; e ainda que possamos crer que nos afastamos d’Ele, deveremos regressar a Ele cedo ou tarde, junto com todas as demais criaturas.
Ao chegar a noite o imlorante está muito cansado; ele não pode nem beber nem comer durante os dias que consagra a implorar uma visão. Pode cochilar no leito de sálvia que lhe foi preparado e deve apoiar a cabeça no mastro central, pois assim, ainda que durma, permanecerá próximo ao Grande Espírito; com muita frequência, as visões mais poderosas acontecem durante o sono. Não se trata de sonhos comuns, pelo contrário: as visões são muito mais reais e intensas do que nos sonhos; não provêm de nós, mas do Grande Espírito. Pode suceder que a primeira vez que imploramos não recebamos nenhuma visão nem mensagenm de espécie alguma, mas dvemos tentar sem descanso; pois não devemos esquecer que o Grande Espírito está sempre disposto a ajudar a quem o busca com o coração puiro.É claro que muito depende da natureza daquele que implora, do seu grau de purificação e de preparação.
Às vezes durante a noite vêm os Seres do Trovão e, ainda que sejam aterrorizantes, fazem-nos um grande bem colocando à prova nossa força e nossa resistência. Eles também nos ajudam a entendermos quão pequenos e insignificantes somos diante dos Poderes incomensuráveis do Grande Espírito.
Lembro-me de um dia em que implorava; um grande furacão vinha do lugar onde o sol se põe, e eu conversava com os Seres do Trovão que vinham com o granizo, os trovões, relâmpagos e uma chuva abundante; pela manhã vi que o granizo se acumulara ao redor do local consagrado, mas este achava-se completamente seco. Creio que tentaram provar-me. E houve uma noite em que os maus espíritos vieram roubar as oferendas das varas, e ouvi suas vozes debaixo do chão, sendo que um deles dizia: “Vá ver se está implorando”. Ouvi ruídos de matraca, mas eles permaneciam fora do recinto sagrado e não podiam penetrar nele, pois eu estava decidico a não me assustar, e não cessava de enviar minha voz ao Grande Espírito para obter sua ajuda. Mais tarde, em algum lugar sob a terra, um dos maus espíritos disse: “Sim, certamente está implorando”, e pela manhã vi que as varas com as oferendas estavam em seus lugares. Eu estava bem preparado e não fraquejei, de modo que nada de mau poderia me acontecer.
O implorante deve levantar-se no meio da noite e ir até as quatro Regiões, voltando ao centro cada vez e sem deixar de enviar sua voz. Deve estar de pé com as primeiras luzes da aurora e iniciar andando para o Leste, dirigindo o cano do seu Calumet para a estrela de mistério e pedindo que ela lhe dê sabedoria; faz esta oração em silêncio, do fundo do coração, e não em voz alta. É assim que o implorante deve proceder durante os três ou quatro dias.

*********
Ao final deste período vêm os ajudantes com os cavalos e levam o implorante com seu Calumet de volta ao acampamento; assim que chega, entrea no inipi que foi preparadio para ele. Senta-se no Oeste, tendo o Calumet constantemente diante de si. O santo ancião que é seu guia espiritual entra imediatamente depois e, passando por trás do implorante, vai sentar-se a Leste; os demais homens ocupam o espaço que foi deixado livre.
A primeira pedra ritual, que já foi esquentada, e introduzida na cabana e colocada no centro do altar; as demais pedras são trazidas na sequência, tal como já descrevi. Tudo isto é feito de maneira muito solene, mas mais depressa do que antes, pois todos os homens estão impacientes para ouvir o implorante e para saber que grandes coisas lhe sucederam na montanha. Quando tudo está no ponto, o homem santo diz ao implorante:
Ho! Enviastes uma voz ao Grande Espírito. A partir de agora este Calumet é muito venerável, pois todo o Universo o viu. Oferecestes este Calumet aos quatro Poderes celestes; eles o viram! O Poder alado do lugar aonde se põe o sol, que controla as águas, te ouvirá! As árvores que estão aqui presentes te ouvirão! E também te ouvirá o Cachimbo sagrado que a tribo recebeu; dize-nos pois a verdade e assegura-te de que não inventas nada! Talvez mesmo as minúsculas formigas e as lagartas foram ver-te quando, lá em cima, imploravas uma visão! Dize-nos tudo! Nos trouxestes o Calumet que oferecestes. Foi terminado! E posto que levarás à boca este Calumet, nos dirás somente a verdade. O Calumet é santo e sabe de tudo; não podes enganá-lo. Se mentires, Wakinian-Tanka, a Ave do Trovão que custodia o Calumet te castigará. Hechetu welo!”
O homem santo levanta-se então de seu posto no Leste e, dando a volta na tenda no sentido do movimento do sol, vai sentar-se à direita do implorante. Diante deste colocam-se umas costelas secas de bisonte sobre as quais é colocado o Calumet com o cano voltado para o Céu. O homem santo retira do fornilho o selo de graxa e o coloca sobre as costelas de bisonte. Com uma brasa que retira do fogo, acende o Calumet e, depois de oferece-lo aos Poderes das seis Direções, dirige o cano para o implorante, que apenas o toca com os lábios. O homem santo então descreve um círculo com o cano, fuma um pouco e novamente o aproxima dos lábios do implorante. A seguir volta a descrever um círculo com o cano e dá mais algumas baforadas. Isto é feito quatro vezes; depois o Calumet passa de mão em mão e todos os homens fumam. Quando regressa a ele, o homem santo o esvazia golpeando-o quatro vezes no monte formado pelo selo de graxa e pelas costelas de bisonte, e logo o purifica. Sustentando o Calumet diante de si, diz ao implorante:
“Jovem, há três dias te fostes daqui com teus ajudantes, que construiram para ti os cinco pilares do lugar consagrado. Dize-nos tudo o que te sucedeu lá em cima depois de tua partida! Não omitas nada! Nós rezamos muito por ti ao Grande Espírito, e pedimos ao Calumet que fosse misericordioso[58]. Dize-nos agora o que te sucedeu!”
O implorante responde, e cada vez que diz alguma coisa importante, os homens que estão na tenda exclamam: “Hay ye!”
“Fui à montanha, e depois de penetrar no recinto consagrado, caminhei até cada uma das quatro Direções, regressando sempre ao centro, como me ensinastes. No primeiro dia, enquanto achava-me de frente para o lugar aonde o sol se põe, vi uma águia que voava na minha direção, e quando esteve mais perto distingui que se tratava de uma águia pintada. Pousou numa árvore próxima de mim, mas não disse nada; em seguida levantou vôo para o lugar aonde vive o gigante Wazia.”
A isto todos o shomens respondem: “Hay ye!”
“Regressei ao centro e fui até o Orte, e enquanto estava ali vi uma águia que dava voltas no alto; e quando desceu até mim notei que era uma águia jovem, mas tampouco ela me disse nada; e logo voltou-se e voou para o lugar para onde sempre nos voltamos. Voltei ao centro, onde implorei e lancei minha voz, e depois me dirigi até o lugar de onde nasce o sol. Ali percebi que algo voava em minha direção e logo vi que era uma águia careca, mas também ela não disse nada. Implorando constantemente, regressei ao centro, e então quando ia para o lugar para onde sempre olhamos, vi um pássaro carpinteiro de cabeça vermelha pousado numa das varas de oferendas. Talvez tenha me dado algo de seu gênio – seu wochanghi –, pois  ouvi que me dizia em voz muito baixa mas clara: “Wachin ksapa yo! Esteja atento! E não tenhas medo, ms não faça caso de nenhuma coisa ruim que possa vir e falar-te.”
Todos dizem então em voz alta: “Hay ye!”, pois esta mensagem da ave é muito importante. O implorante continua:
“ Ainda que eu tenha implorado e enviado minha voz continuamente, isto é tudo o que vi e ouvi naquele dia. Chegou a noite e recostei-me com a cabeça no centro; dormi e, durante o sono, ouvi e vi meu povo e notei que era feliz. Levantei-me no meio da noite e andei novemente até cada uma das quatro Direções, regressando sempre ao centro e enviando constantemente minha voz. Logo antes de aparecer a estrela da aurora visistei de novo as quatro Direções, e quando cheguei ao lugar de onde nasce o sol, vi a estrela dalva e observei que a princípio era vermelha; logo se tornou azul, depois amarela e ao gfinal vi que era branca; nestas quatro cores discerni as quatro idades. Ainda que a estrela não tenha me falado, sem embargo ensinou-me muito.”
“Ali fiquei, esperando que saísse o sol, e no instante mesmo da aurora vi o mundo cheio de pequenos povos alados cheios de alegria. Por fim saiu o sol, trazendo sua luz ao mundo; comecei então a implorar e voltei ao centro, e ali me estendi, deixando o Calumet apoiado na estaca central.”
“Enquanto me achava encostado ouvi todo tipo de pequenos seres alados que estavam nas varas, mas nenhum deles me falou. Olhei o Calumet e vi duas formigas que avançavam pelo cano. Talvez quisessem falar-me, mas logo se foram.”
“Algumas vezes, enquanto implorava e enviava minha voz, aproximavam-se de mim pássaros e borboletas;uma vez uma borboleta branca veio pousar na extremidade do cano do Calumet, agitando suas lindas asas. Naquele dia não vi grandes quadrúpedes, apenas animais pequenos. Justo antes que o sol descesse para ir repousar, vi que as nuvens se agrupavam e vieram os Sers do Trovão. O relâmpago encheu o céu e o trovão era aterrador, e creio que até me assustei um pouco. Mas sustive meu Calumet erguido e segui enviando minha voz ao Grande Espírito, e logo ouvi outra voz que dizia: “Hi-ey-hey-i-i! Hi-ey-hey-i-i!” Quatro vezes repetiu-se este grito, e então perdi todo o medo, pois lembrei-me das palavras do pequeno pássaro e me senti cheio de coragem. Ouvi também outras vozes que não pude compreender. Ignoro quanto tempo estive ali com os olhos fechados. Quando os abri, todas as coisas eram muito brilhantes, mais brilhantes até do que durante o dia; e vi um grande número de homens que vinham até mim a cavalo, e todos montavam cavalos de cores distintas. Um dos cavaleiros dirigiu-se a mim nestes termos: “Jovem, ofereces o Calumet ao Grande Espírito; alegramo-nos muito que o faças!” Isto foi tudo o que disseram; em seguida desapareceram.”
“No dia seguinte, imediatamente antes de sair o sol, e enquanto visitava as quatro Direções, vi o mesmo pequeno pássaro carpinteiro de cabeça vermelha; achava-se pousado na vara do lugar para o qual nos voltamos sempre e disse-me mais ou menos a mesma coisa que no dia anterior: “Amigo, estejas atento enquanto caminhas!” Isto foi tudo; e pouco depois os dois ajudantes vieram buscar-me. Isto é tudo o que sei. Disse a verdade e não inventei nada!”
Assim o implorante termina seu relato. O homem santo lhe entrega seu Calumet, que ele abraça e faz circular. Depois um ajudante o toma e o coloca, com o cano para o Oeste, no montículo sagrado a leste da cabana. Mais pedras quentes são trazidas; e porta é fechada e começa o inipi. O homem santo se põe a rezar e dá graças ao Grande Espírito:
Hi-ey-hey-i-i!”, diz quatro vezes. E prossegue: “Ó Avô Wakan-Tanka! Hoje nos ajudastes. Fostes misericordioso com este jovem ao dar-lhe conhecimento e um caminho que possa seguir. Fizestes feliz a teu povo, e todos os seres que se movem no Universo se alegram!”
“Avô, este jovem que te ofereceu o Calumet ouviu uma voz que lhe dizia: esteja atento ao caminhar! Ele deseja saber o que significa esta mensagem; é preciso explicar-lhe. Esta mensagem significa que deverá sempre recordar-se de Ti, ó Wakan-Tanka, quando caminhar pelo sagrado caminho da vida, e que deve prestar atenção a todos os sinais que nos destes. Se atuar sempre assim, converter-se-á em um homem sábio que será um guia para seu povo. Ó Wakan-Tanka, ajudai-nos a estarmos sempre atentos![59]
“Este jovem tembém viu as quatro idades na estrela do lugar de onde nasce o sol. São as idades pelas quais devem passar todas as criaturas ao longo de sua viagem que vai do nascimento até a morte. Todos os povos e todas as coisas devem passar por estas quatro idades.”
“Ó Wakan-Tanka, quando este jovem viu a aurora do dia, viu como a tua luz vinha ao Universo; é a luz da sabedoria. Revelastes todas estas coisas porque tua vontade é que os povos do mundo não vivam nas trevas da ignorância.”
“Ó Wakan-Tanka, Tu estabelecestes um parentesco com este jovem, e com este parentesco ele comunicará vigor à sua tribo. Nós que estamos aqui sentados representamos a toda a nação e Te damos graças, ó Wakan-Tanka! Elevamos agora nossas mãos a Ti e dizemos: ó Wakan-Tanka, Te damos graças por este conhecimento e e por este parentesco que nos destes. Mostra-te sempre misericordioso conosco! Que este parentesco exista até o fim.”
Continuando, todos os homens cantam:
Avô, olhai-me!
Avô, olhai-me!
Sustentei o Calumet e o ofereci a Ti
Para que meu povo viva!
Avô, olhai-me!
Avô, olhai-me!
Dou-te todas estas oferendapara que meu povo viva!
Avô, olhai-me!
Avô, olhai-me!
Nós, que representamos toda a nação
Nos oferecemos a Ti
Para que vivamos!
Depois deste canto verte-se água sobre as pedras e prossegue o inipi da maneira como já foi descrito. Este jovem que implorou uma visão pela primeira vez talvez chegue a se converter num homem santo; se caminhar com o pensamento e o coração fixos no Grande Espírito e em seus Poderes, como lhe foi ensinado, andará certamente pelo caminho vermelho que conduz à bondade e à santidade. Mas deverá ainda implorar uma visão pela segunda vez, e então os maus espíritos podem tentá-lo; mas se é realmente um eleito resistirá firmemente e vencerá todos os pensamentos dispersantes; será purificado de tudo o que é nocivo e poderá receber então uma grande visão que trará vigor à toda a nação. Se depois da segunda lamentação ainda tiver dúvidas, que tente uma terceira, uma quarta vez; e se permanecer sincero e humilhar-se diante de todas as coisas, receberá ajuda com certeza, pois o Grande Espírito ajuda sempre aos que imploram com o coração puro[60].


V

WIWANYAG WACHIPI:

A DANÇA DO SOL



A “dança que olha para o sol” – wiwanyag wachipi – é um de nossos ritos mais importantes e foi instituído muitos invernos depois que nosso povo recebeu o Calumet da Mulher Bisonte Branco. É celebrado todos os anos durante a lua da engorda (Junho) ou a lua das cerejas que escurecem (Julho), sempre na lua cheia, pois o crescimento e o descréscimo da lua nos recorda nossa ignorância que vai e vem; mas quando a lua está cheia é como se a Luz eterna do Grande Espírito se estendesse por todo o mundo. Mas agora quero contar como este ritual chegou ao nosso povo e como se levou a cabo na sua origem.
Um dia, nosso povo acampava num lugar propício, em círculo, como sempre, e os anciãos estavam sentados celebrando um conselho; de repente observaram que um de nossos homens, Kablaya – Aquele-Que-Se-Estende – havia deixado cair seu manto até a cintura e dançava sozinho a uma certa distência com a mão estetndida para o céu. Os anciãos pensaram que talvez estivesse lou co e enviaram um deles para inteirar-se do que se tratava; mas o enviado também enrolou o manto na cintura e começou a dançar com Aquele-Que-Se-Estende. Achando aquilo estranho, os anciãos foram ver por si mesmos. Então Aquele-Que-Se-Estende lhes explicou:
“Faz muito tempo, o Grande Espírito nos disse como devíamos otrara com o Cachimbo sagrado; mas nós fomos relaxando na prática da oração e nossa gente está perdendo o vigor. Uma nova maneira de orar acaba de ser-me revelada em uma visão; o Grande Espírito veio em nossa ajuda.”
Ao ouvir estas palavras, todos os anciãos exclamaram: “How!” e mostraram uma grande alegria. Celebraram o conselho e enviaram dois homens ao guardião do Cachimbo sagrado, a quem correspondia dar sua opinião sobre questões do gênero. O guardião respondeu aos mensageiros dizendo que certamente tratava-se de algo muito bom; pois “foi-nos prometido que teríamos sete maneiras de rezar ao Grande Espírito, e esta é seguramente uma delas, já que Aquele-Que-Se-Estende recebeu instruções a respeito numa visão; pois bem, é assim que foi dito que receberíamos nossos ritos.”
Os dois mensageiros transmitiram esta notícia aos anciãos, que pediram a Aquele-Que-Se-Estende que lhes instruísse acerca do que deveriam fazer. Então ele lhes disse:
“Esta será a Dança do Sol: não podemos faze-la em seguida, mas devemos esperar quatro dias, que dedicaremos aos preparativos, tal como me foi ensinado em minha visão. Esta dança será uma oferenda de nossos corpos e nossas almas ao Grande Espírito, e estará cheia de mistério. Que se reunam todos os nossos homens sábios e anciãos; construam um grande pavilhão e adornem seu interior com sálvia. Necessitamos também dos seguintes objetos: um rolo de tabaco da tribo dos arikara; casca de salgueiro vermelho; erva aromática; um machado de osso; uma machadinha de sílex; medula de bisonte; um crânio de bisonte; uma bolsa de couro cru; uma pele curtida de bisonte jovem; peles de coelho; plumas de águia; pintura de terra vermelha; pintura azul; uma pele sem curtir; penas da cauda da águia; apitos feitos de ossos de águia pintada.”
Quando todos estes objetos foram reunidos, Aquele-Que-Se-Estende pediu aos que sabiam cantar que acudissem à sua casa naquela mesma noite para aprender os cantos revelados; acrescentou que deviam trazer um grande tambor feito de pele de bisonte, assim como baquetas com a extremidade recoberta de pele de bisonte com o lado do pelo voltado para fora.
Como o tambor é com frequência o único instrumento que utilizamos em nossos rituais, talvez eu deva agora explicar porque é assim tão venerável e importante para nós; é porque a forma redonda do tambor representa o Universo e seu toque regular e forte é o pulso, o coração que bate no centro do Universo. É como a voz do Grande Espírito, e este som nos põe em movimento e nos ajuda a compreender o mistério e o poder de todas as coisas.
Naquela noite, os cantores – quatro homens e uma mulher – acudiram à tenda de Aquele-Que-Se-Estende, que lhes disse:
“Ó parentes meus, durante muito tempo enviamos nossas vozes ao Grande Espírito. Isto é o que Ele disse que fizéssemos. Rogamos a Ele de muitas maneiras e garças a este modo santo de viver nossas geraões aprenderam a caminhar pelo caminho  vermelho com passo firme. O Calumet está sempre no centro de nossa nação e com ele o povo avançou e continuará avançando de maneira conforme ao mistério.”
“Neste novo rito que acabei de receber, um dos povos que está sempre em pé foi escolhido para estar em nosso centro: é o wagachun, a árvore murmurante, o álamo; ele será nosso centro e também nossa tribo. Esta ávore sagrada representará também o caminho do povo, pois não se ergue a árvore da terra até o céu[61]? Esta nova maneira de enviar nossas vozes ao Grande Espírito será muito poderosa; seu uso se difundirá, e todos os anos, durante esta estação, muita gente rezará ao Grande Espírito. Antes de que os ensine os cantos sagrados, ofereçamos o Calumet ao nosso Pai e Avô Wakan-Tanka.”
“Ó Avô, Pai, Wakan-Tanka, vamos cumprir Tua vontade, como nos ordenastes em uma visão. Sabemos que será uma maneira muito poderosa de enviar-te nossas vozes; que nossa nação receba, graças a ela, a sabedoria! Que nos ajude a avançar pelo caminho sagrado com todos os Poderes do Universo! Nossa prece será verdadeiramente a prece de todas as coisas, pois em realidade todas elas não são mais do que uma. Tudo isto eu vi em minha visão. Que os quatro Poderes do Universo nos ajudem a realizar bem este ritual! Ó Wakan-Tanka, tem piedade de nós!”
Todos fumaram o Calumet e logo Aquele-Que-Se-Estende pôs-se a ensinar-lhes os cantos misteriosos. Ao redor dos cantores haviam se reunido muitas outras pessoas, e Aquele-Que-Se-Estende lhes disse que enquanto escutavam deveriam gritar muitas vezes: Ó Avô Wakan-Tanka, ofereço-Te o Calumet a fim de que meu povo viva!”
O primeiro canto ensinado pelo profeta era sem palavras; era uma simples melodia repetida quatro vezes com um vigoroso toque de tambor. As palavras do segundo canto eram as seguintes:
Wakan-Tanka, tem piedade de nós,
A fim de que nosso povo viva.
O terceiro era assim:
Dizem: chega uma manada de bisontes,
Já estão aqui!
Sua bênção nos alcançará.
Já está entre nós!
O quarto canto era uma melodia sem palavras. Depois, Aquele-Que-Se-Estende ensinou aos homens o modo de utilizar os apitos de ossos de águia que haviam trazido; indicou-lhes, ademais, as coisas que deviam preparar e explicou o significado de cada objeto ritual:
“Fareis um colar de pele de lontra no qual será pendurado um aro com uma cruz inscrita. Nos quatro pontos em que a cruz se junta com o aro serão presas penas de águia que representarão os quatro Poderes do Universo e as quatro idades. No centro do aro fixareis uma pluma arrancada do peito da águia, pois este é o lugar mais próximo do coração da ave sagrada. Esta pluma representará o Grande Espírito que mora nas profundezas do Céu e que é o centro de todas as coisas.”
“Deveis procurar apitos de osso de águia; colocareis uma pluma na extremidade de cada um. Ao soprar em vosos apitos lembrai-vos sempre de que é a voz da Águia Pintada e que nosso Avô Wakan-Tanka a escuta constantemente; deveis compreender que é realmente a sua própria voz.”
“Recortareis uma lua, em forma de quarto crescente, em uma pele sem curtir; a lua representa uma criatura e também todo o criado, pois todas as coisas criadas se fazem e se desfazem, vivem e morrem. Deveis compreender também que a noite representa a ignorância, mas que a lua e as estrelas trazem a luz do Grande Espírito a estas trevas. Como sabeis, a lua vai e vem, mas o sol vive sempre; ele é a fonte da luz, e por esta razão é semelhante ao Grande Espírito.”
“Recortareis em uma pele sem curtir uma estrela de cinco pontas. Será a estrela sagrada da alma, que está entre a escuridão e a luz, e que representa o Conhecimento.”
“Fareis um círculo de pele sem curtir que represente o sol; será pintado de vermelho, mas no centro haverá um círculo azul, pois este centro, que é o mais íntimo, representa o Grande Espírito em seu aspecto de Avô nosso. A luz deste sol ilumina todo o Universo, e assim como as chamas do sol nos chegam com a aurora desce sobre nós a graça do Grande Espírito, que ilumina todas as criaturas. Esta é a razão pela qual os quadrúpedes e os seres alados se alegram quando chega a luz. Durante o dia podemos ver, e esta vista é algo profundo, pois representa a visão do Mundo real que podemos obter através do Olho do Coração. Ao levar este signo misterioso durante a dança, lembrai-vos de que trazeis luz ao Universo, e obtereis um grande proveito se vos concentrardes nestes diversos significados.”
“Recortareis um círculo, que pintareis de vermelho e que representará a Terra. A Terra está cheia de mistério, pois nela colocamos os pés e a partir dela enviamos nossas vozes ao Grande Espírito. É parente nossa e sempre que a chamamos Avó ou Mãe devemos recordarmo-nos disto. Quando rezamos, levantamos a mão para o céu e em seguida tocamos o solo; pois não procede nosso espírito do Grande Espírito e nossos corpos da Terra? Somos parentes de todas as coisas: a terra, as estrelas, todos elevamos a mão para o Grande Espírito e só rezamos para Ele.”
“Recortareis também um círculo numa pele sem curtir e o pintareis de azul para representar o céu. Quando dançardes, levantareis a cabeça e a mão para o Céu, que olhareis, pois se fizerdes isto vosso Avô vos verá. Ele é o dono de tudo; não há nada que não lhe pertença, e portanto só a Ele rezareis.”
“Por último, recortareis numa pele sem curtir a forma de tatanka, o bisonte: representa a nação, e também o Universo, e deve ser tratado sempre com veneração; não estava ele aqui antes que os povos bípedes, e acaso não se mostra generoso ao proporcionar-nos nossas tendas e nosso alimento? O bisonte é sábio em muitas coisas e devemos, por conseguinte, aprender com ele e sabermos sempre que somos aparentados a ele.”
“Cada homem levará um desses símbolos sobre seu peito e será consciente de seu significado, tal como acabo de vos explicar. Neste grande ritual ireis oferecer vosso corpo em sacrifício em nome de toda a tribo; graças a vós, a tribo ganhará em sabedoria e força. Sede sempre conscientes dessas coisas que vos disse; são sagradas.”

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No dia seguinte era preciso eleger a árvore murmurante que seria levantada no centro do grande recinto; Aquele-Que-Se-Estende disse ao ajudante que tipo de árvore deveria buscar e assinalar com sálvia para que um “grupo de guerreiros” pudesse localizá-la e levá-la ao acampamento. Indicou também como deveriam delimitar o terreno ao redor da árvore sagrada aonde seria construído o pavilhão ritual da dança do sol, e como deveriam assinalar com ramos verdes a entrada do Leste.
Os exploradores, designados pelos sacerdotes, sairam a escolher uma boa árvore; uma vez que a encontraram, regressaram ao acampamento e, depois de dar a volta no sentido do movimento do sol no local aonde será construído o pavilhão, precipitaram-se para a entrada, tratando de acertar-lhe um golpe. Em seguida tomaram um Calumet e, depois de oferece-lo às seis Direções, juraram dizer a verdade. Aquele-Que-Se-Estende falou então aos homens nestes termos:
“Vós tomasteis o Cachimbo sagrado; por conseguinte, deveis contar-nos veridicamente o que haveis visto. Sabeis que ao longo do cano do Cachimbo existe um caminho que vai direto ao coração do Calumet; que vossos pensamentos sejam tão retos como esta via. Que vossas línguas não estejam fendidas. Fostes enviados para achar uma árvore que será de muito proveito para nossa nação; contai-nos pois, fielmente o que haveis encontrado.”
Então o profeta fez quatro vezes um movimento circular com o Calumet e dirigiu o cano para o explorador que iria fazer o relato.
“Subi a uma colina e vi ali um grande número destes povos sagrados que estão sempre em pé.”
“Em que direção olhavas, e o que vistes detrás da primeira colina?”
“Estava de cara para o Oeste – respondeu o explorador – segui mais adiante e mirei além de uma segunda colina; e vi ainda mais povos dos que estão sempre em pé e que viviam ali.”
O explorador foi interrogado desta maneira quatro vezes; como vocês sabem, fazemos todas as coisas boas quatro vezes; ademais, quando vamos pelo caminho da guerra sempre interrogamos deste modod nossos exploradores; pois bem, nós consideramos esta árvore como um inimigo que vamos matar[62].
Depois que os exploradores informaram, todos se vestiram como se fossem para o caminho da guerra; a seguir sairam do acampamento como se fossem atacar um inimigo. Muitos homens seguiram os exploradores, e quando chegaram perto da árvore eleita juntaram-se todos ao seu redor. Aquele-Que-Se-Estende chegou por último com seu Calumet; segurou o cano voltado para a árvore e falou assim:
“Dentre os numerosos povos que estão sempre em pé, tu, ó álamo sussurante, foste escolhido de uma maneira conforme ao mistério; irás para o centro sagrado da nação; representarás a tribo e nos ajudarás a cumprir a vontade do Grande Espírito. És uma árvore benévola e de bela aparência; os povos alados criaram suas famílias sobre ti; em ti, desde a ponta dos galhos mais altos até tuas raízes, os povos alados e os quadrúpedes fizerram suas moradas. Quando estiveres erguida no centro do círculo sagrado serás a nação, e serás como o Calumet, estendido entre o céu e a terra. Os débeis se apoiarão em ti e serás um sustento para a tribo. Com as extremidades de teus ramos sustentas os dias sagrados vermelho e azul. Erguer-te-ás aonde se cruzam os quatro caminhos do mistério, ali tu serás o centro dos grandes Poderes do Universo. Que os homens sigamos sempre teu exemplo, pois vemos como olhas constantemente para o Céu. Logo, com todos os povos do mundo, levantar-te-ás no centro; trarás o bem a todos os seres e a todas as coisas. Hechetu welo!”
A seguir o profeta ofereceu seu Calumet ao Céu e à Terra, e com o cano tocou a árvore pelos lados Oeste, Norte, Leste e Sul; depois acendeu o Cachimbo e fumou.
Creio que devo explicar agora porque consideramos sagrado o álamo. Para começar direi que, em tempos remotos, ele nos ensinou a construir nossas cabanas cônicas, já que suas folhas são um modelo exato do tipi; aprendemos assim: alguns anciãos observaram crianças que confeccionavam com estas folhas cabanas para brincar. Isto, ademais, é um exemplo de que os adultos podem sempre aprender com os pequenos, pois os corações das crianças são puros; o Grande Espírito pode mostrar-lhes muitas coisas que passam desapercebidas aos maiores. Outra razão porque escolhemos o álamo para colocá-lo no centro de nosso pavilhão, é que o Grande Espírito nos ensinou que, ao cortar um membro superior desta árvores, aparece na fibra uma perfeita estrela de cinco pontas, que representa para nós a Presença do Grande Espírito. Talvez vocês já tenham bnotado que a voz do álamo pode ser ouvida mesmo com a mais tênue brisa; compreendemos que isto é sua prece ao Grande Espírito[63], pois não só os homens, mas todas as coisas e todos os seres oram continuamente, ainda que de modos distintos.
Os chefes executaram uma curta dança de vitória ao redor da árvore, cantando seus cantos de chefe, e enquanto cantavam e dançavam escolheram o homem que teria a honra de tocar a árvore com a lança[64]; este homem deve ter um bom caráter e deve ter-se mostrado valente até o auto-sacrifício no caminho da guerra. Outros três foram eleitos ainda, e cada um dos quatro homens situou-se em um dos quatro lados da árvore, com o guia a Oeste. Este último contou então suas façanhas guerreiras e quando terminou os homens o aclamaram e as mulheres soltaram gritos agudos; em seguida ele ameaçou três vezes a árvore com seu tomahawk, e na quarta a golpeou. Depois dele, os outros três bravos relataram por seu turno suas proezas na guerra, e quando terminaram golpearam a árvore do mesmo modo, e a cada golpe todos exclamavam: “Hi hey!” Quando a árvore estava a ponto de cair, os chefes misturaram-se com a multidão e elegeram uma pessoa de caráter tranquilo e piedoso, que deu o último golpe na árvore; sua queda foi saudada com grandes aclamações e as mulheres lançaram seus agudos. Foram tomadas grandes precauções para que, ao cair, o tronco não tocasse o solo, e ninguém estava autorizado a passar por cima dele.
Em continuação, seis homens transportaram a árvore para o acampamento, mas, antes de chegar a ele, detiveram-se quatro vezes; depois da última parada imitaram o grito do coiote, tal como fazem os combatentes que regressam do caminho da guerra; logo seguiram para o acampamento e depositaram a árvore sobre umas estacas – já que não deve tocar o solo – com a base apontada para o buraco que havia sido preparado e a copa voltada para o Oeste. Ainda não havia sido erguido o pavilhão ao redor da árvore, mas já estavam prontas todas as varas e o equipamento necessário para construí-lo.
Então Aquele-Que-Se-Estende, junto com os que iam participar da dança, dirigiu-se a uma grande tenda; deu-lhes instruções e eles se prepararam para o rito. A tenda foi inteiramente fechada, e inclusive puseram-se folhas em torno de sua base.

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Aquele-Que-Se-Estende, profeta e grande sacerdote, achava-se sentado a Oeste. Em priemiro lugar escavou o chão diante de si e fez com que colocassem uma brasa no local; nela acendeu a erva aromática e disse: “Queimamos esta erva para o Grande Espírito, a fim de que todos os povos bípedes e alados do Universo sejam parentes próximos. E assim haverá muita felicidade.”
A seguir foi construído um pequeno modelo de secador de carne com três paus, dois em forquilha cravados no solo e um terceiro reto posto em cima, e foram pintados de azul; pois o secador de carne representa o céu, e nós rezamos para que nossos secadores estejam sempre tão cheios como os céus. Logo, após a purificação pela fumaça, o Cachimbo foi apoiado no secador, pois deste modo representa muitas orações; ele é o caminho que leva da terra ao Céu.
Todos os objetos que deveriam ser utilizados na dança foram então purificados na fumaça da erva aromática: as figuras de pele, as figuras de pele de bezerro, as bolsas de gamo; e também purificaram-se os dançarinos. Quando tudo havia sido feito, o grande sacerdote levantou seu Calumet para o céu e orou:
“Ó Avô Wakan-Tanka, Tu és o Criador de todas as coisas! Sempre fostes e serás sempre! Tu te mostrastes benévolo para com o povo, pois nos ensinastes o modo de orar com o Cachimbo que nos destes; e agora me mostrastes em uma visão a dança de mistério que irei ensinar ao meu povo. Hoje queremos fazer a tua vontade.”
“De pé sobre esta terra sagrada sobre a qual gerações de meu povo estiveram erguidas, envio uma voz a Ti oferecendo este Cachimbo. Olhai-me, ó Wakan-Tanka, pois represento o povo inteiro. Neste Calumet quero colocar os quatro Poderes e todos os seres alados do Universo; junto com eles, que não serão mais do que um, quero enviar-te uma voz. Olhai-me! Iluminai meu pensamento com tua luz imorredoura!”
“Ofereço este Calumet ao Grande Espírito, primeiro contigo, ó Poder alado do lugar aonde se põe o sol; há um lugar para ti neste Calumet; ajudai-nos com estes dois dias, vermelho e azul, que santificam a nação!”
Aquele-Que-Se-Estende tomou então um pouco de tabaco e, depois de mostrá-lo ao Céu, à Terra e às quatro Regiões, colocou-o no fornilho; a seguir, enquanto pronunciava as orações que vou dizer, colocou no Calumet um pouco de tabaco para cada uma das demais Direções:
“Ó Poder alado do lugar aonde vive Wazia, vou oferecer este Calumet ao Grande Espírito; ajudai-me com os dois dias benéficos, o vermelho e o azul, que Tu possuis – dias que purificam o povo e o Universo. Há um lugar para Ti neste Calumet! Ajudai-nos!”
“Ó Tu, Poder do lugar de onde nasce o sol, que dás o conhecimento e guardas a aurora do dia, ajudai-nos com teus dois dias vermelho e azul que dão a compreensão e a luz. Há um lugar para Ti neste Calumet que vou oferecer ao Grande Espírito. Ajudai-nos!”
“Ó Tu, Poder sacrossanto do lugar para onde sempre nos voltamos, Tu que és a fonte da vida, que guardas a nação e as gerações futuras, ajudai-nos com teus dias vermelho e azul! Há um lugar para Ti neste Calumet!”
“Ó Tu, Águia Pintada do Céu, sabemos que possuis olhos penetrantes com os quais vês os menores objetos que se movem sobre a Avó Terra; Tu que estás nas alturas do Céu e sabes tudo: ofereço este Calumet ao Grande Espírito! Ajudai-nos com teus dias benéficos vermelho e azul!”
“ó Tu, Avó Terra, que estás estendida sustentando todas as coisas, sobre Ti levanta-se um homem que oferece um Calumet ao Grande Espírito. Tu estás no centro dos dois dias vermelho e azul. Haverá um lugar para Ti neste Calumet. Ajudai-nos!”
O profeta e grande sacerdote colocou então um pouco de tabaco no Cachimbo para cada uma das seguintes aves: o papamoscas, o pintaroxo, a andorinha, que canta nos dois dias benéficos; o pássaro carpinteiro, o gavião, que torna a vida tão difícil para os demais povos alados; o falcão, a gralha, que sabe de tudo; o melro, e muitos outros pássaros; de modo que todos os objetos da criação e as seis Direções do espaço foram introduzidos no fornilho do Cachimbo; então este foi selado com gordura e medula de bisonte, e apoiada no pequeno secador azul.
O profeta tomou então outro Calumet, encheu-o e dirigiu-se até aonde repousava a árvore sagrada. Trouxeram uma brasa, e a árvore e o buraco foram purificados com a fumaça da erva aromática.
“Ó Wakan-Tanka – orou Aquele-Que-Se-Estende elevando seu Calumet com uma das mãos – olhai esta árvore misteriosa que logo será colocada neste buraco! Erguer-se-á junto com o Cachimbo sagrado; será o próprio Cachimbo! Eu a toco com a cor vermelha e poderosa de nossa Avó e com a gordura do bisonte quadrúpede. Ao tocar este ser-árvore com a terra vermelha, lembramo-nos de que as gerações de tudo quanto se move provêm de nossa Mãe Terra. Com tua ajuda, ó árvore, logo oferecerei meu corpo e minha alma ao Grande Espírito; e comigo – em mim – ofereço meu povo e todas as gerações futuras!”
O grande sacerdote tomou então a pintura vermelha, ofereceu-a às seis Direções e dirigiu-se novamente à arvore sagrada:
“Ó árvore, vais colocar-te de pé; sê miseriocordiosa com meu povo para que, debaixo de ti, prospere!”
Então ele pintou um risco vermelho nos lados Oeste, Norte, Leste e Sul da árvore, e fez na extremidade uma marca bem pequena para o Grande Espírito; em continuação colocou na base um pouco de pintura para a Mãe Terra. Por útimo, tomou uma pele de bisonte jovem e disse:
“Nossa nação vive deste ser-bisonte; ele nos porporciona nossas casas, nossas roupas, nosso alimento, tudo o que nos faz falta. Ó jovem bisonte, dou-te agora um lugar sagrado no alto da árvore. Ela te segurará em suas mãos e te elevará até o Grande Espírito. Vê o que vou fazer! Graças a isto, todas as coisas que se movem e que voam na terra e no céu serão felizes.”
E levantou uma pequena muda de cerejeira e continuou orando:
“Olhai isto, ó Wakan-Tanka, pois é a árvore da nação e rogamos para que leve fruto abundante.”
Sujeitaram a arvorezinha ao álamo sagrado, logo abaixo da pele de bisonte, assim como um saquinho de pele de gamo que continha um pouco de gordura.
Aquele-Que-Se-Estende levantou então as imagens de couro do bisonte e do homem, e oferecendo-as às seis Direções, rogou:
“Olhai, ó Avô, este bisonte que nos destes; ele é o chefe de todos os quadrúpedes que existem sobre nossa Mãe sagrada; a nação procede dele, e com ele caminha pela via do mistério. Olhai também o homem que representa a tribo. Eles são os dois chefes desta grande ilha; concedei todos os favores que te pedem, ó Wakan-Tanka!”
Estas duas imagens foram colocadas logo abaixo do lugar em que a árvore bifurca; depois o profeta ergueu um saquinho de gordura – que mais tarde será posto debaixo da árvore – e rezou assim:
“Ó Avô Wakan-Tanka, olhai esta gordura sagrada sobbre a qual este ser-árvore será levantado: que a terra seja sempre tão fértil e fecunda como esta grodura! Ó árvore, este dia é sagrado para ti e para todos os nossos; a terra deste círculo te pertence, ó árvore, e é aqui, sob ti, onde vou oferecer meu corpo e minha alma por amor à tribo[65]. Aqui estarei enviando-te minha voz, ó Wakan-Tanka, com a oferenda do Cachimbo de mistério. Tudo isto é sem dúvida muito difícil de fazer, mas deve cumprir-se para o bem de todos. Ajudai-me, ó Avô, e daí-me valor e força para suportar os sofrimentos que me esperam. Ó árvore, agora estás admitida no pavilhão.”
Entre muitas exclamações e gritos estridentes, a árvore foi posta em pé muito lentamente, pois os homens detiveram-se por quatro vezes antes de tê-la erguida e colocada no buraco preparado para ela. Todo mundo, os bípedes, os quadrúpedes e os seres alados do ar se alegraram; todos iriam prosperar debaixo da proteção da árvore. Ela nos ajudará a irmos pelo caminho sagrado; podemos apoiar-nos nela, e ela nos guiará e fortalecerá sempre.
Executaram uma curta dança em torno da base da árvore, e começaram a construir o recinto ao seu redor cravando em um amplo círculo vinte e oito postes em forquilha, em cima dos quais puseram varas que iam unir-se à árvore situada no centro.
Devo explicar agora que, ao edificar o pavilhão da dança do sol, construímos realmente uma imagem do Universo; pois é preciso compreender que cada um dos postes representa algum objeto particular da criação, de modo que o círculo completo é a totalidade da criação, e a árvore única no centro, sobre a qual descansam as vinte e oito varas, é o Grande Espírito, que constitui o centro de todas  as coisas. Tudo procede d’Ele, e tudo regressa a Ele, cedo ou tarde. Devo dizer também porque empregamos vinte e oito varas: já expliquei a razão pela qual os números quatro e sete são sagrados; se contarmos quatro vezes sete teremos vinte e oito. A lua tem vinte e oito dias, que formam nosso mês; cada um destes dias representa algo que para nós é sagrado. Dois destes dias representam o Grande Espírito; outros dois a Mãe Terra; quatro, os quatro Ventos; um dia a Águia Pintada, outro o sol e outro a lua; existe um dia para a Estrela da aurora e quatro dias para as quatro idades; sete dias representam nossos sete grandes rituais, um dia o bisonte, um dia o fogo, um a água, outro a rocha e, por último, um dia representa o povo bípede. Se somamos estes dias, obtemos um total de vinte e oito. É preciso saber, ademais, que o bisonte tem vinte e oito costelas, e que em nossos cocares de guerra empregamos normalmente vinte e oito plumas. Como se vê, todas as coisas têm seu significado, e é bom saber e lembrar-se disto. Mas voltemos à dança do sol.
Os guerreiros vestiram-se e pentearam-se. Entraram no recinto e dançaram ao redor da árvore central; deste modo o solo se purificava e nivelava. Os chefes reuniram-se e escolheram os valentes, um dos quais deveria ser o diretor da dança. Estes homens escolhidos dançaram avançando primeiro para o Oeste e voltando ao centro, a seguir para o Norte e de novo ao centro, depois para o Leste regressando outra vez ao centro, e finalmente para o Sul e de novo ao centro; deste modo fizeram um percurso em forma de cruz.

*********
Mas antes de proceder à dança do sol, os homens tinham que purificar-se na cabana de suar. O profeta entrou em primeiro lugar na cabana do inipi com o Calumet já carregado, e sentou-se no Oeste; os demais homens que iam participar da dança entraram a seguir, evitando passar diante dele; a última a entrar foi uma mulher, que sentou-se perto da porta.
Todas as roupas de pele de bisonte que seriam usadas na dança foram colocadas em cima da cabana do inipi, pois assim seriam purificadas. As cinco pedras aquecidas que representavam as cinco Direções foram então introduzidas e colocadas sobre o altar em seus lugares respectivos, após o que uma sexta pedra foi colocada no caminho ritual.
Aquele-Que-Se-Estende tomou o Calumet que iria servir para a dança; mas para o ritual do inipi foi enchido um segundo Calumet, que foi entregue ao grande sacerdote para que o abençoasse e acendesse. Fumou-se o Cachimbo em grupo, da maneira ritual, e depois de purificá-lo levaram-no para fora da cabana. A porta foi fechada; era o momento em que o profeta explicaria ao povo a sua visão:
“Parentes meus, escutai-me todos! O Grande Espírito foi benévolo conosco e nos estabeleceu em uma terra sagrada; nela estamos sentados agora. Acabais de ver as cinco pedras colocadas no centro, e esta sexta pedra que foi posta no caminho representa a nação. Para o bem de todos vós, o Grande Espírito ensinou-me numa visão um caminho de adoração que vou ensinar-vos.”
“Os céus são sagrados, pois neles vive nosso Avô, o Grande Espírito; estes céus são como um manto para o Universo; este manto está agora sobre mim, que estou diante de vós. Ó Wakan-Tanka, eu Te mostro o círculo de nossa nação, este círculo que está aqui e no qual há uma cruz; esta cruz, um dos nossos a leva sobre seu peito. Eu Te mostro a Terra que Tu fizestes e fazes sem cessar; está representada por este círculo vermelho que levamos. Também levamos a luz inextinguível que muda a noite em dia, a fim de que esteja entre os nossos e que eles possam ver. Mostro-Te também a estrela da aurora, que nos dá o conhecimento. O bisonte quadrúpede que pusestes aqui embaixo antes dos bípedes está também conosco. E igualmente está aqui a mulher celeste que veio a nós de modo tão misterioso. Todos estes povos e todas estas coisas, que são santos, escutam neste momento o que digo.”
“Logo, junto com meus parentes que se acham aqui, sofrirei e suportarei grandes penas em favor de meu povo. Em meio às lágrimas e ao sofrimento elevarei meu Calumet e lançarei minha voz até Ti, ó Wakan-Tanka! Oferecerei meu copro e minha alma para que meu povo viva. Ao enviar-Te minha voz, ó Wakan-Tanka, utilizarei aquilo que une a Ti as quatro Regiões, o Céu e a Terra[66]. Tudo quanto se move no Universo – os quadrúpedes, os insetos, os seres alados – regozija-se e nos ajuda, a mim e à minha tribo.”
E entoou um canto de mistério:
Ouço vir o sol, a luz do mundo,
Vejo seu rosto quando chega.
Faz felizes aos seres da terra, e eles se alegram.
Ó Wakan-Tanka, Te ofereço este mundo de luz!
O Calumet que deveria ser empregado na dança foi então envolvido em sálvia e a mulher tirou-o da cabana; levou-o pelo caminho sagrado até o Leste e colocou-o sobre o crânio de bisonte, cuidadno para que o cano estivesse dirigido para o Leste. A mulher permaneceu fora da cabana de suar e ajudou a abrir e fechar a porta. O inipi começou então da maneira como já descrevi. Depois que a porta foi fechada pela segunda vez, o profeta rezou assim:
“Avô Wakan-Tanka, olhai-nos! O Cachimbo sagrado que nos destes e com o qual criamos nossos filhos logo irá para o centro do Universo, junto com o bisonte que ajudou a fortalecer nossos corpos. A mulher de mistério que veio outrora ao centro de nosso círculo voltará ao nosso centro; e um homem que sofrerá por seu povo irá igualmente ao centro. Ó Wakan-Tanka, que quando estivermos todos no centro, não tenhamos em nossos pensamentos e em nosso coração mais do que a Ti!”
Então cantou outro canto que havia recebido em sua visão:
Ouço-o vir. Vejo seu rosto.
Teu dia é sagrado. Eu To ofereço.
Ouço-o vir. Vejo seu rosto.
Naquele dia sagrado, fizestes o bisonte vagar.
Fizestes um dia feliz para o mundo.
Eu Te ofereço todas as coisas.
A seguir, derramaram água sobre as pedras quentes, enquanto o sacerdote rezava:
“Ó Wakan-Tanka, neste momento nos purificamos para sermos dignos de elevarmos nossas mãos a Ti!”
Então, levantando a mão direita, todos os homens cantaram:
Avô, envio-Te uma voz.
Avô, envio-Te uma voz.
Junto com todo o Universo, Avô, envio-Te uma voz.
Para que eu viva.
Quando a porta foi aberta pela terceira vez, os homens puderam beber um pouco de água, mas esta foi a única ocasião durante o rito que lhes foi permitido fazê-lo. Enquanto os homens recebiam a água, o profeta disse:
“Eu vos dou a água, mas lembrai-vos d’Aquele que, no Oeste, custodia as águas e também o mistério de todas as coisas. Ireis beber a água, que é vida; não desperdiceis uma só gota. Quando terminardes, levantai a mão para dar graças ao Poder do lugar aonde o sol se põe; ele vos ajudará a suiportar os sofrimentos que ireis experimentar.”
A porta foi fechada pela última vez, e de novo todos os homens cantaram, enquanto o calor e o vapor os purificavam, e quando ao final a porta foi aberta todos sairam conduzidos pelo profeta e levantaram a mão para as seis Direções, dizendo: “Hay ho! Hay ho! Graças sejam dadas!”
Cada um dos dançarinos tinha um ajudante encarregado de tirar de cima da cabana de suar uma das peles de bisonte purificadas e colocá-la ao redor do seu corpo. Aquele-Que-Se-Estende tomou então seu Calumet, que descansava sobre o crânio de bisonte, e voltou com todos os homens ao grande tipi em que haviam se reunido antes da consagração da árvore e antes do rito do inipi.

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O grande sacerdote deixou seu Calumet apoiado no pequeno secador que havia sido pintado de azul para representar o céu. Foi posta erva aromática sobre uma brasa e todos se purificaram na fumaça sagrada. Ato contínuo, enquanto abençoava e purificava o tambor e as baquetas, o profeta disse:
“Este tambor é o bisonte e irá para o centro. Tocando o tambor com as baqueta, certamente venceremos a nossos inimigos.”
Todas as roupas e apetrechos foram purificados, assim como os quatro crânios de bisonte que um dos homens iria levar cravados em sua carne até que se desprendessem.
O profeta explicou aos homens que seus corpos purificados eram agora sagrados e nem sequer podiam ser tocados pelas suas próprias mãos. Assim, os dançarinos deveriam levar nos cabelos uns pauzinhos com os quais poderiam coçar-se, se necessário, e que iriam utilizar para se pintarem com a tintura de tera vermelha.
Aquele-Que-Se-Estende colocou ao redor do pescoço o círculo de couro pintado de azul que representava o Céu, e os demais levaram cada qual um símbolo diferente: o círculo com a cruz, o da terra vermelha, o sol, a lua, a estrela Dalva, o bisonte; a mulher levava o Calumet, já que representava a Mulher Bisonte Branco. Do mesmo modo, os homens colocaram peles de coelho sobre os braços e as pernas, pois o coelho representa a humildade, por ser dócil, manso e sem presunção, qualidades que todosdevemos possuir quando vamos ao centro do mundo. Por último, os homens colocaram penas no cabelo, e uma vez terminados os preparativos o profeta lhes explicou o que tinham que fazer quando estivessem no pavilhão da dança sagrada.
“Quando formos ao centro do círculo, todos derramaremos lágrimas, pois devemos saber que tudo o que entra através do nascimento neste mundo que vêdes ao vosso redor deve sofrer e suportar penas. Agora vamos sofrer no centro do círculo sagrado, e, fazendo-o, oxalá tomemos sobre nós uma grande parte do sofrimento de nosso povo!”
Cada homem declarou então qual sacrifício suportaria e o profeta expressou seu voto em primeiro lugar:
“Sujeitarei meu corpo às correias do Grande Espírito que descem até a terra. Esta será minha oferenda.”
Devo dizer aqui que a carne representa a ignorância e, portanto, quando dançamos e nossa carne desgarrada se desprende das correias, é como se nos liberássemos dos laços da carne. O mesmo acontece quando se doma um potro: de início o cabresto é indispensável, mas quando o potro está domado a corda não é mais necessária. Também nós somos como potros quando começamos a dançar, mas logo nos tornamos domados e submetidos ao Grande Espírito.
O segundo dançarino disse:
“Quero unir-me aos quatro Poderes do mundo que foram estabelecidos pelo Grande Espírito.”
Neste caso o dançarino estará situado efetivamente no centro, pois se achará no meio de quatro postes e o lado direito de seu peito será amarrado ao poste do Leste, o lado esquerdo ao poste do Norte, o ombro direito ao poste do Sul e o ombro esquerdo ao poste do Oeste. Dançará nesta posição até que as quatro correias se desprendam de sua carne.
O terceiro dançarino fez seu voto:
“Quero levar quatro de meus parentes mais próximos, o antigo bisonte.”
O dançarino quis dizer com isto que seriam fixadas quatro correias às suas costas, às quais estariam presos quatro crânios de bisonte; estas quatro ataduras representam as cadeias da ignorância; esta, de fato, deveria estar sempre atrás de nós, posto que devemos nos voltar para a luz que está diante de nós.
O quarto dançarino disse:
“Quero deixar doze pedaços da munha carne ao pé desta árvore sagrada. Um é para nosso Avô Wakan-Tanka, outro para nosso Pai Wakan-Tanka, um terceiro para nossa Avó, a Terra, e um quarto para nossa Mãe, a Terra. Quero deixar quatro pedaços de carne para os Poderes das quatro Direções, abandeonarei outro para a Águia Pintada, outro para a estrela Dalva, outro para a lua e, por último, outro para o Sol.”
O quinto dançarino disse:
“Quero fazer uma oferenda de oito pedaçoes da minha carne: dois serão para o Grande Espírito, dois para a Terra, e quatro para os Poderes das quatro Direções.”
O sexto dançarino disse:
“Quero abando nar na árvore sagrada quatro pedaços de minha carne: um será para o Grande Espírito, outro para a Terra sobre a qual caminhamos, um para anação, a fim de que caminhe com passo firme, e um para os povos alados do Universo.”
O sétimo dançarino fez seu voto:
“Quero deixar um pedaço de minha carne para o Grande Espírito e outro para a Terra.”
Então o oitavo dançarino, que era a mulher, fez seu voto:
“Quero oferecer um pedaço de minha carnme ao Grande Espírito e em favor de todas as coisas que se movem no Universo, para que elas dêem seus poderes para a tribo, a fim de que esta avance com seus filhos pelo caminho vermelho da vida.”
Quando terminaram de pronunciar seus votos, o grande sacerdote lhes disse que se purificassem esfregando o rosto e todo o corpo com sálvia, “pois vamos nos aproximar agora do lugar sagrado em que se ergue a árvore; a árvore é também o Calumet que se estende do Céu até a terra. Temos que ser dignos de ir a este centro.”

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Todos os membros da tribo haviam se reunido ao redor do pavilhão do mistério; no interior, ao sul, estavam os cantores junto com as mulheres que os ajudavam, e todos levavam coroas de folhas à frente e tinham nas mãos ramos de plantas sagradas.
Então chegaram os dançarinos conduzidos pela mulher que levava o Calumet e seguidos pelo profeta que levava o crânio de bisonte, e no final desta fila vinham os ajudantes com todos os apetrechos. Caminharam lentamente ao redor do pavilhão imitando o percurso do sol e chorando e se lastimando sem cessar:
“Ó Wakan-Tanka, tende piedade de mim para que meu povo viva! É por ele que me sacrifico!”
Enquanto os dançarinos cantavamdeste modo, os demais choravam, pois eles eram a nação pela qual os dançarinos iriam sofrer. Estes entraram no pavilhão do sol e situaram-se no Oeste. O profeta colocou o crânio de bisonte entre os dançarinos e a árvore sagrada, com o osso nasal dirigido para o Leste; frente a si colocou os três bastões pintados de azul, e sobre este cavalete a mulher depositou o Calumet. Então os cantores entoaram um dos cantos inspirados:
Ó Wakan-Tanka, tende misericórdia de nós!
Queremos viver!
Esta é a razão pela qual fazemos isto.
Dizem que vem uma manada de bisontes:
Já estão aqui.
O Poder do bisonte vem a nós;
Já está aqui!
Quando cessou o canto, todos romperam em pranto; e durante o resto do dia e da noite dançaram. Esta dança da primeira noite representa o povo submergido na escuridão da ignorância; ainda não são dignos de encontrar a luz do Grande Espírito, que brilhará sobre eles quando chegar o dia seguinte; devem sofrer e purificar-se antes de serem dignos de estar com o Grande Espírito.
No último momento, antes da aurora, a dança se deteve e então os dançarinos ou seus parentes depositaram oferendas fora do pavilhão, no lugar correspondente a cada uma das quatro Regiões.
Com a aurora, os dançarinos voltaram a entrar no pavilhão, e o guardião do Cachimbo sagrado ia com eles; o profeta lhe havia pedido que construísse o altar sagrado, mas aquele homem venerável respondeu: “Tu tivestes a visão, Kablaya, e a ti corresponde fazer o altar; mas eu estarei ao teu lado e, quando terminares, oferecerei a oração.”
E foi assim que o profeta e grande sacerdote dispôs o recinto sagrado: primeiro traçou no solo, diante de si, um círculo, em cujo centro depositou uma brasa[67]; em seguida, colhendo algumas ervas aromáticas e sustentando-as sobre sua cabeça, orou:
“Ó Avô Wakan-Tanka, esta é a tua erva misteriosa, que coloco no fogo; sua fumaça se estenderá por todo o mundo e chegará mesmo até o céu; os povos quadrúpedes e alados e todas as coisas saberão o que é esta fumaça e se alegrarão. Que esta oferenda ajude a estabelecer um parentesco entre todas as coisas, todos os seres e nós! Que todos eles nos dêem seus poderes para que possamos suportar os sofrimentos que nos esperam. Olhai, ó Wakan-Tanka, ponho esta erva aromática no fogo e a fumaça se elevará até Ti.”
Enquanto colocava a erva no fogo, cantou este canto de mistério:
Faço a fumaça sagrada;
Assim faço a fumaça;
Que todos os povos a vejam!
Faço a fumaça sagrada;
Que todos estejam atentos e vejam!
Que todos os seres alados e os quadrúpedes
Estejam atentos e vejam!
Desta maneira faço a fumaça;
Em todo o Universo se alegrarão!
O machado destinado a abrir o peito dos dançarinos foi então purificado na fumaça, assim como uma pequena machadinha de pedra e um pouco de terra. Aquele-Que-Se-Estende pode então fazer o altar, mas antes rezou:
‘Ó Avô Wakan-Tanka, quero agora converter isto em um lugar sagrado. Quando fizer este altar, todas as aves do ar e todas as criaturas da terra se regozijarão e acudirão de todas as direções para contemplá-lo. Todas as gerações do meu povo se alegrarão. Este lugar será o centro dos caminhos dos quatro grandes Poderes. A aurora do dia verá este lugar santo. Quanto tua luz aparecer, ó Wakan-Tanka, tudo quanto se move no Universo se alegrará.”
Depois de ser oferecido ao Céu e à Terra, um pouco de terra purificada foi colocado no centro do recinto ritual. Outros bocados foram oferecidos ao Oeste, ao Norte, ao Leste e ao Sul, e depositados no lado Oeste do círculo; do mesmo modo, foi posta terra nos lugares das demais direções e logo esparramada por todo o círculo por igual. Esta terra representa os bípedes, os quadrúpedes, os seres alados e tudo o que existe no Universo. Então o grande sacerdote começou a construir o altar neste recinto sagrado: tomou primeiro um bastão, dirigiu-o às seis Direções e a seguir, baixando-o até o solo, traçou um pequeno círculo no centro; este círculo indica a morada do Grande Espírito. Continuando, depois de haver novamente dirigido o bastão às  seis Direções,  traçou  uma  linha  do Oeste até a borda do círculo e do mesmo modo traçou uma linha do Leste até a borda do círculo, e repetiu a operação desde o Norte e o Sul. Construindo a altar desta maneira, vemos que tudo conduz e regressa ao centro; e este centro que está aqui, e que sabemos que se encontra em toda a parte, é o Grande Espírito.
Aquele-Que-Se-Estende recolheu então um pequeno maço de sálvia e, oferecendo-o ao Grande Espírito, rezou:
“Ó Wakan-Tanka, olhai-nos! O que está mais próximo dos bípedes, o chefe dos quadrúpedes, é tatanka, o bisonte. Eis aqui seu crânio seco; ao vê-lo, sabemos que também nós nos convertiremos em crânios e esqueletos, e deste modo marcharemos juntos pelo caminho de regresso ao Grande Espírito.. Quando chegarmos ao final de nossos dias, sêde misericordioso consoco, ó Wakan-Tanka! Aqui, na terra, vivemos com o bisonte e lhe somos agradecidos por isto, pois ele nos dá nosso alimento e faz feliz ao nosso povo. Por esta razão, agora dou a erva ao nosso parente o bisonte.”
Fez então um pequeno leito de sálvia a Leste do altar e, segurando o crânio pelos chifres e olhando para o Leste, cantou:
Dou erva ao bisonte;
Que o povo o contemple
Para que viva!
Logo, voltando-se e levantando o crânio para o Oeste, o grande sacerdote cantou:
Dou tabaco ao bisonte;
Que o povo o contemple
Para que viva!
Voltando-se para o Norte, cantou:
Dou um vestido para o bisonte;
Que o povo o contemple
Para que viva!
E, voltando-se para o Sul, cantou:
Dou pintura ao bisonte;
Que o povo o contemple,
Para que viva!
Então, de pé sobre a sálvia, cantou:
Dou água ao bisonte;
Que o povo o contnemple,
Para que viva!
Continuando, o crânio do bisonte foi colocado no leito de sálvia, voltado para o Leste, e Aquele-Que-Se-Estende colocou umas bolinhas de sálvia nas órbitas; logo atou um saquinho de tabaco no chifre que apontava o Sul, e um pedaço de pele de gamo no chifre que apontava o Orte, pois esta pele representa o vestido oferecido ao bisonte. Em seguida pintou uma linha vermelha ao redor da cabeça e outra linha vermelha que ia da fronte ao osso nasal, e enquanto o fazia, disse:
“Ó bisonte, tu és a Terra. Oxalá compreendamos isto e tudo o que foi feito aqui! Hechetu welo! Está bem!”
Quando terminaram as oferendas ao bisonte, os dançarinos deram volta ao pavilhão e detiveram-se à entrada, olhando o Leste para saudar o sol levante.
“Olhai estes homens, ó Wakan-Tanka – rogou o grande sacerdote levantando a mão direita – o rosto da aurora encontrará seus rostos; o dia que chega sofrirá com eles. Será um dia sagrado, pois Tu, ó Wakan-Tanka, estás aqui presente!”
Então, no exatop momento em que o sol começou a despontar, os dançarinos cantaram uma melodia inspirada sem palavras, e o profeta entoou um de seus cantos de mistério:
O Pai se levanta!
A luz do Grande Espírito está sobre o meu povo;
Torna brilhante toda a terra.
Meu povo está feliz agora!
Todos os seres que se movem regozijam-se!
Enquanto os homens cantavam sem palavras e o profeta cantava as fórmulas sagradas, todos dançavam, e ao fazê-lo se deslocavam de maneira que seu rosto mirava o Sul, depois o Oeste  e o Norte, para depois deterem-se de novo no Leste, olhando desta vez para a árvore sagrada.
Os cantos e os toques de tambor cessaram e os dançarinos foram sentar-se a Oeste do pavilhão, nos leitos de sálvia que haviam sido preparados. Os ajudantes esfregaram o corpo dos dançarinos para tirar a pintura e depois colocaram sobre suas cabeças coroas de sálvia e penas de águia; as mulheres fizeram o mesmo em suas cabeleiras.
Durante toda a dança do sol levamos coroas de sálvia na cabeça, pois é sinal de que nossos pensamentos e nossos corações estão próximos do Grande Espírito e de seus Poderes, já que a coroa representa as coisas celestes – as estrelas e os planetas – que estão cheias de mistério.
Aquele-Que-Se-Estende indicou então aos homens como deveriam pintar-se: a parte superior do corpo, a partir do ventre, de vermelho, e o rosto também de vermelho; o vermelho representa, com efeito, tudo o que é sagrado, e especialmente a Terra; assim, pois, devemos recordar-nos de que nossos corpos vêm da Terra, e de que voltarão para ela. Deve-se pintar um círculo negro ao redor do rosto, pois este círculo nos ajuda a recordarmos o Grande Espírito, que, como o círculo, não tem fim. Como já disse, existe muito poder no círculo; os pássaros o sabem, posto que voam em círculos e constróem seus ninhos com esta forma; também os coiotes o sabem, pois vivem na terra em buracos redondos. Deve ser traçada uma linha negra desde a fronte até entre as sobrancelhas, outra linha em cada bochecha, assim como no queixo: estas quatro linhas representam os quatro Poderes das quatro Direções. Pintam-se ademais riscas negras ao redor do pulso, do cotovelo, da parte superioir do braço e dos tornozelos; é preciso saber que o negro é a cor da ignorância[68], e portanto estes riscos são como os laços que nos atam à terra. Deve-se observar também que estes riscos partem da terra e não sobem além do peito, pois ali ficam as correias que estão ligadas ao corpo; estas correias são como os raios de luz do Grande Espírito. Assim, quando puxamos estas correias até nos desprendermos delas, é como se o Espírito fosse libertado de nossos corpos obscuros. Quando esta dança foi executada pela primeira vez, todos os homens iam pintados desta maneira, e só numa época mais recente cada dançarino passou a se pintar de um jeito diferente conforme a visão que possa ter tido.
Quando todos estavam pinntados, os dançarinos se purificaram com a fumaça da erva aromática e colocaram os vários símbolos que descrevi. O dançarino que havia feito o voto de carregar os quatro crânios de bisonte levava uma forma de bisonte sobre o peito, e na cabeça chifres feitos de sálvia.

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Quando os preparativos terminaram, os dançarinos situaram-se ao pé da árvore sagrada, a Oeste; e, olhando a copa da árvore, levantaram a mão direita e tocaram os apitos feitos de ossos de águia; enquanto isto, o sacerdote rezou:
“Ó Avô Wakan-Tanka, inclina-te e dirige um olhar a mim enquanto elevo a mão a Ti. Vês aqui os rostos de meu povo. Tu vês os quatro Poderes do Universo e nos vistes agopra em cada uma das quatro Direções. Vistes o lugar sagrado e o centro que fixamos, aonde vamos sofrer. Ofereço-Te todo meu sofrimento pelo bem do meu povo. Existe um bom dia diante de mim, pois estou diante de Ti, e isto me aproxima de Ti, ó Wakan-Tanka! É a tua luz que vem com a aurora e que atravessa os céus. Estou de pé sobre a tua Terra sagrada. Tende misericórdia de mim, ó Wakan-Tanka, para que meu povo viva!”
Então todos os cantores puseram-se a cantar em coro:
Ó Wakan-Tanka, tende misericórdia de mim!
Faço isto para que meu povo viva!
Os dançarinos giraram em círculo para o Leste, olhando para a copa da árvore, a Oeste; e, levantando as mãos, cantaram:
“Nosso Avô Wakan-Tanka nos deu um caminho que é sagrado.”
Indo agora para o Sul e olhando para o Norte, os dançarinos tocaram seus apitos de osso de águia, enquanto os outros cantavam:
Vem um bisonte, dizem,
Já está aqui!
O Poder do bisonte vem;
Já está sobre nós!
Durante este canto, os dançarinos se deslocaram em círculo para o Oeste e fizeram frente para o Leste tocando sem descanso seus estridentes apitos de osso de águia. Em seguida foram ao Norte e fizeram frente para o Sul, e finalmente foram de novo para o Oeste e fizeram frente para o Leste. Então todos os dançarinos romperam em soluços; o profeta recebeu uma correia e dois alfinetes de madeira, foiao centro e, segurando a árvore sagrada, soluçou:
“Ó Wakan-Tanka, tende misericórdia de mim! Faço isto para que meu povo viva!”
Chorando continuamente, foi ao Norte e dali deu uma volta completa no recinto, detendo-se em cada um dos vinte e oito postes. Levando consigo seus alfinetes e suas correias, os dançarinos fizeram como ele e, quando todos estavam no Norte, de cara para o Sul, o profeta foi para o Sul e agarrou com as duas mãos a árvore sagrada.
Enquanto os cantores e os tambores aceleravam o ritmo de seus cantos e dobrados, os ajudantes ergueram-se de um salto, agarraram rudemente o sacerdote e lançaram-no por terra; um deles puxou a pele do seio esquerdo do grande sacerdote e cravou nele um bastãozinho encerado, e fez o mesmo no seio direito. A longa correia de couro cru foi fixada pelo meio ao redor da árvore sagrada, perto da cúspide, e seus extremos foram presos aos alfinetes cravados no peito de Aquele-Que-Se-Estende. Os ajudantes puseram-no de pé rudemente; começou a tocar seu apito de osso de águia e, inclinando-se para trás e sustentado pelas ataduras, pôs-se a dançar. Dançará nesta posição até que as correias se desprendam de sua carne.
Quero explicar agora porque utilizamos duas correias que, a bem da verdade, não são mais do que uma muito longa, presa no centro da árvore e feita com uma só pele de bisonte cortada circularmente. Isto deve nos fazer recordar que, embora pareça que existem duas correias separadas, estas não são em realidade senão uma; só o ignorante vê como múltiplo aquilo que é realmente único. Esta verdade da unidade de todas as coisas é melhor compreendida participando deste rito e oferecendo a nós mesmos em sacrifício.
O segundo dançarino foi até o centro e, como o profeta, abraçou a árvore e rompeu em soluços. Os ajudantes precipitaram-se sobre ele e, depois de atirá-lo rudemente ao solo, perfuraram seu peito e suas espáduas à direita e à esquerda; cravaram em sua carne umas agulhas de madeira às quais ataram umas cordas curtas. Este valente foi então atado entre quatro postes, tão fortemente que não podia mover-se para nenhum lado. Primeiro chorou, não de dor como uma criança[69], mas porque sabia que sofria por seu povo e compreendia a santidade da união em seu corpo das quatro Direções, em cujo centro ele se convertia realmente. Elevando suas mãos ao céu e tocando o apito, este homem iria dançar até que as correias fossem arrancadas de sua carne.
O terceiro dançarino, que deveria levar quatro crânios de bisonte, foi ao centro e, depois de abraçar a árvore sagrada, foi por sua vez derrubado e posto de cara ao chão; cravaram-lhe quatro bastõezinhos que atravessaram a carne de suas espáduas e nos quais sujeitaram os quatro crânios de bisonte. Os ajudantes puxaram os crânios para certificarem-se de que aguentavam firmemente; depois entregaram ao dançarino seu apito de águia, que ele tocou sem cessar enquanto dançava. Creio que é compreensível até que ponto isto era dolorido para ele, pois a cada  movimento os chifres ponteagudos dos crânios penetravam em sua pele , mas naqueles tempos nossos homens eram valorosos e não mostravam o menor sinal de sofrimento; estavam realmente contentes em sofrer pelo seu povo.
Parentes e amigos se acercavam vez por outra dos dançarinos e dançavam ao seu lado para dar-lhes alento, ou uma jovem que amava a um deles tomava uma erva que havia mastigado e a punha na boca deste dançarino para dar-lhe forças e acalmar sua sede. O tanger dos tambores, os cantos e a dança nunca se detinham, e podia ouvir-se, dominando todos os sons, o solvo agudo dos apitos de osso de águia.
O quarto homem, que havia feito o voto de doar doze pedaços de carne, avançou e sentou-se ao pé da árvore, que abraçou com suas mãos; os ajudantes tomaram uma faquinha talhada em um osso e em diversos lugares levantaram a carne, da qual cortaram seis pedacinhos do lado direito e seis do lado esquerdo. Esta carne foi deixada como oferenda ao pé da árvore, e o homem pôs-se de pé e foi juntar-se à dança com os demais.
Do mesmo modo, o quinto dançarino sacrificou oito pedaçoes de sua carne; o sexto deu quatro da sua e o sétimo sacrificou dois. Por último, a mulher abraçou a árvore, sentou-se e disse entre lágrimas:
“Pai Wakan-Tanka, neste único pedaço de carne ofereço-me a Ti, aos teus Céus, ao Sol, à Lua, à Estrela Dalva, aos quatro Poderes e a todas as coisas.”
Continuaram dançando, e as pessoas aclamavam o profeta, dizendo-lhe que puxasse com mais força as correias, o que ele fez até que por fim uma delas se soltou, e todos gritaram “hi ye!”. Caiu, mas ajudaram-no a levantar-se e continuou dançando até que a outra correia foi arrancada. Caiu de novo, mas pôs-se em pé e levantou as mãos para o céu, e então todos o aclamaram com grandes vozes. Sustentaram-no até que chegou ao pé da árvore sagrada, onde descansou num leito de sálvia; puxou a carne palpitante de seu peito e arrancou doze pedaços, que colocou no pé da árvore. Os pajés colocaram uma erva curativa sobre suas feridas e o trasladaram a um lugar na sombra aonde descansou por alguns instantes; logo levantou-se e continuou dançando com os demais.
Ao final, o homem que havia dançado com os quatro crânios perdeu dois, e então o profeta ordenou que lhe cortassem a pele de modo a que os outros dois se desprendessem. Mas apesar de se ver libertado dos quatro crânios, este valente continuou dançando.
Então, o que havia dançado no centro dos quatro postes rompeu duas de suas ataduras; o profeta disse que já havia suportado bastante, e com uma faca cortou-lhe a pele, de modo que se viu livre das duas outras ataduras. Estes dois homens ofereceram então doze pedaços de sua carne à árvore sagrada, e todos os dançarinos e muitas outras pessoas prosseguiram a dança até quase o por do sol.

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No momento que precede o por do sol o Calumet foi levado aos dançarinos e aos cantores como sinal de que sua função havia terminado e que podiam fumar. Então os dançarinos e o guardião do Cachimbo sentaram-se ao Norte do pavilhão, e a mulher tomou em suas mãos o Cachimbo que havia ficado à sua frente; levantando o cano do Cachimbo, caminhou ao redor do crânio do bisonte e deteve-se diante do guardião do Calumet; e rezou assim:
“Ó Pai santo, tende piedade de mim! Ofereço meu Calumet ao Grande Espírito. Ó Avô Wakan-Tanka, ajudai-me! Faço isto para que meu povo viva e cresça conforme ao mistério!”
A mulherr ofereceu três vezes o Calumet ao guardião, e na quarta vez entregou-o. “How!”, disse o guardião ao receber o Cachimbo; logo afastou-se e permaneceu debaixo da árvore sagrada, ao Norte, e gritou quatro vezes: “Hi-ey-hey-i-i!”. E orou assim:
“Avô Wakan-Tanka, Tu estás mais próximo de nós do que qualquer outra coisa, hoje vistes tudo o que fizemos. Agora acabou, nossa tarefa está terminada. Hoje um ser bípede levou a cabo um rito muito sagrado que Tu lhe ordenastes realizar. Estes oito homens aqui presentes Te ofereceram seus corpos e suas almas. Com seu sofrimento enviaram suas vozes a Ti; inclusive ofereceram uma parte da sua carne, que está agora ao pé da árvore sagrada. O favor que eles Te pedem é que seu povo caminhe pelo caminho da vida e que cresça segundo o mistério[70].”
“Olhai este Cachimbo que Te oferecemos, junto com a Terra, os quatro Poderes, e todas as coisas. Sabemos que somos parentes, que formamos uma unidade com tudo o que existe no Céu e na Terra, e sabemos que todas as coisas que se movem são um povo como nós. Todos desejamos viver e crescer segundo o mistério. A estrela Dalva e a aurora que vem com ela, o sol da noite (a lua, hanhepi wi) e as estrelas do céu estiveram todos aqui reunidos. Tu nos ensinastes nosso parentesco com todas as coisas e todos os seres, e Te damos graças por isto, agora e sempre. Que sejamos continuamente conscientes deste parentesco existente entre os quadrúpedes, os bípides e os voláteis. Que todos possamos alegrarmo-nos e viver em paz!”
“Olhai este Calumet, que é aquele que o quadrúpede[71] trouxe para a nação[72]; com ele cumprimos a sua vontade. Ó Wakan-Tanka, Tu pusestes teu povo num caminho sagrado; que possa segui-lo com passo firme e seguro, de mãos dadas com seus filhos, e que os filhos de seus filhos caminhem também segundo o mistério.”
“Tende piedade, ó Wakan-Tanka, das almas que percorreram a terra e que partiram. Que estas almas sejam dignas de caminhar pelo grande caminho branco que estabelecestes! Vamos acender e fumar este Calumet, e sabemos que esta oferenda é muito benéfica. A fumaça que se elevará se estenderá por todo o Universo, e todos os seres se alegrarão.”
Então os dançarinos sentaram-se a Oesten do pavilhão e o guardião retirou a gordura do fornilho do Calumet, colocando-a sobre uma costela purificada de bisonte. O Cachimbo foi aceso com uma brasa e, depois de oferece-lo às seis Direções e de dar umas baforadas, o guardião passou-o a Aquele-Que-Se-Estende, que por sua vez ofereceu-o entre lágrimas, deu umas baforadas e passou para a pessoa que estava ao seu lado. Cada um dos homens, depois de oferece-lo e fumar, o devolvia ao grande sacerdote, que o oferecia ao homem mais próximo. Uma vez que todos fumaram, o profeta depositou-o lenta e cuidadosamente entre as cinzas no meio do altar e rezou:
“Ó Wakan-Tanka, este lugar sagrado é teu. Nele tudo se realizou. Alegramo-nos por isto.”
Dois ajudantes puseram então sobre o altar algumas cinzas do fogo de mistério situado a Leste do pavilhão; de igual modo, foi posto sobre o altar o barro purificado, e depois todas as grinaldas, as peles, as penas e os símbolos utilizados na dança foram amontoados no centro do recinto sagrado. Isto foi feito porque estas coisas eram demasiado sagradas para ser conservadas, e deviam regressar para a terra. Só foram conservadas a roupa de pele de bisonte e os apitos de osso de águia; estes objetos serão sempre considerados como particularmente veneráveis, já que foram empregados na primeira grande festa da dança do sol. Por cima do monte formado pelos objetos utilizados no rito foi colocado o crânio de bisonte; este crânio nos recorda a morte e também nos ajuda a recordar que aqui consumou-se um ciclo.
Então todos se alegraram, e as crianças foram autorizadas a brincar com os velhos, mas ninguém se preocupou com isso nem se pensou em castigá-las, pois todo mundo estava contente.
Não obstante, os dançarinos ainda não haviam terminado; tomaram suas roupas de pele de bisonte e voltaram à tenda dos preparativos; uma vez ali, tiraram as roupas com exceção da tanga e entraram na cabana do inipi, menos a mulher, que estava encarregada de guardar a porta. Foram introduzidas as cinco pedras e fumou-se o Calumet por turno; mas antes de fumar os homens apoiaram-no em uma das pedras. Fechou-se a porta e o grande sacerdote disse o seguinte:
“Parentes, desejo dizer algumas palavras. Escutai com atenção! Hoje fizesteis uma coisa cheia de mistério, pois houvestes dado vosos corpos ao Grande Espírito. Quando regressardes para os vossos lembrai-vos sempre de que graças a este ato fostes santificados. No futuro vós sereis os guias de vosso povo, e deveis ser dignos deste piedoso dever. Sêde misericordiosos com os vossos, sêde bons e amáveis! Mas lembrai-vos sempre disto: que voso parente mais próximo é vosso Avô e Pai Wakan-Tanka, e que depois d’Ele vem vossa Avó e Mãe a Terra.”
Derramou-se água sobre as pedras quentes e quando o vapor encheu a pequena cabana, fazendo muito calor, a porta foi aberta e introduziram água. A erva aromática foi molhada na água e aplicada aos lábios dos dançarinos, e esta foi toda a água que puderam receber naquele momento. O Cachimbo foi passado por todo o círculo, a porta foi fechada e de novo o profeta dirigiu-se aos homens:
“Graças às vossas ações, reforçasteis o círculo de nossa nação. Fizesteis um centro sagrado que estará sempre com vós, e criasteis um parentesco mais estreito com todas as coisas do Universo.”
Novamente derramou-se água sobre as pedras e, enquanto subia o vapor, os homens cantaram. Quando a porta foi aberta pela terceira vez, os homens foram autorizados a beber um pouco de água, e o Calumet percorreu o círculo como antes. De novo a porta foi fechada e, enquanto o vapor se elevava das pedras, todos os homens cantaram:
Envio uma voz ao meu Avô!
Envio uma voz ao meu Avô!
Escutai-me!
Junto com todas as coisas do Universo
Envio uma voz ao Grande Espírito!
O profeta disse ainda:
“Os quatro caminhos dos quatro Poderes são vossos parentes próximos. A aurora e o sol do dia são vossos parentes. A estrela Dalva e todas as estrelas dos céus sagrados são vossos parentes. Lembrai-vos sempre disto.”
A porta foi aberta pela quarta e última vez, e os homens beberam quanta água quiseram, e quando terminaram de beber, Aquele-Que-Se-Estende disse estas últimas palavras:
“Vistes agora quatro vezes a luz do Grande Espírito. Esta luz estará sempre convosco. Lembrai-vos de que há quatro passos que conduzem ao final do caminho sagrado[73]. Mas chegareis lá! Está bem! Está terminado! Hechetu welo!”
Os homens voltaram então para a tenda dos preparativos, aonde lhes foi servida muita comida, e todos estavam felizes e contentes. Havia sido realizada uma grande coisa; nos invernos futuros, a vida da nação receberia muita força graças a este grande ritual.


VI

HUNKAPI:

O PARENTESCO



No ritual do parentesco – hunkapi – estebelecemos um vínculo que reflete no plano terrenoo parentesco real que nunca deixou de existir entre o homem e o Grande Espírito. Posto que amamos a Wakan-Tanka em primeiro lugar, e mais do que a tudo, devemos também amar ao próximo e reforçar os laços que podem unir-nos, mesmo no caso em que pertençam a outras tribos. Realizando este rito que vou descrever, e assistindo a ele, cumprimos a vontade do Grande Espírito, pois este é um dos sete ritos que, na origem, a Mulher Bisonte nos prometeu.
Outras tribos pretendem que este ritual teve origem nelas, mas não é assim, já que foi o lakota Mato-Hokshila – Jovem Urso –, um homem muito santo, quem recebeu este rito, em uma visão, da parte do Grande Espírito.
É preciso saber que a planta sagrada – o milho – não provém do país dos sioux; mas Jovem Urso o viu em uma visão e, mais tarde, achando-se em viagem, encontrou um pequeno campo de milho, exatamente parecido com o que havia visto em sua visão; e levou este milho ao seu ovo, sem saber que era propriedade da tribo dos arikara[74], com a qual os sioux estavam em guerra há muito tempo. Ora, o milho era tão sagrado para os arikara como o Calumet para nosso povo; por isso, pouco depois que seu milho desaparecera, os arikara enviaram mensageiros ao acampamento dos sioux com muitos presentes e muito tabaco trançado do tipo que eles fazem e que nós apreciamos enormemente; e pediram que devolvêssemos seu milho.
Os sioux aceitaram a proposta de paz; e Jovem Urso, que então compreendeu o significado de sua visão explicou-o ao seu povo e disse que, mediante o rito que dela resultava, os sioux deviam estabelecer um parentesco perpétuo com os arikara, uma paz que duraria até o fim dos tempos e que seria um exemplo para as demais tribos.
Todo mundo aceitou com alegria, e os sioux conferiram a Jovem Urso autoridade e poder para fazer a paz com a ajuda do rito hunkapi, o parentesco. Jovem Urso explicou então que sempre que se realizasse este rito, aquele que desejasse aparentar-se com alguém seria considerado como um arikara, e que seria ele quem deveria cantar sobre o outro. Jovem Urso disse então aos arikara que construíssem uma tenda ritual e escolhessem um de seus homens para representar toda a sua tribo; seria ele quem deveria cantar sobre Jovem Urso, que, por sua vez, representava a tribo dos sioux.
Ao cabo de um tempo, Jovem Urso encheu seu Cachimbo, aproximou-se do arikara escolhido para representar sua tribo e, enquanto lhe oferecia o Calumet, fez este discurso:
“Desejo ajudar-vos realizando este rito que me foi dado em uma visão pelo Grande Espírito para o bem de nossa tribo. É sua vontade que façamos isto. Ele, que é nosso Avô e Pai, estabeleceu um parentesco com meu povo, os sioux; nosso dever é fazer uma imagem deste parentesco entre as diferentes nações. Que isto que fazemos sirva de exemplo para outros povos! Tu representas toda a tribo dos arikara e eu represento os sioux. Vistes aqui para fazer a paz, e nós aceitamos teu oferecimento; mas, como vês, vamos estabelecer algo mais profundo do que nos pedistes. Ao pedir a paz trouxeste-nos vosso tabaco, que apreciamos muito e, do mesmom odo, vamos dar-te o milho sagrado que vós amais acima de tudo. Ambas as coisas são sagradas, pois provêm do Grande Espírito. Ele as fez para nós!”
Então Jovem Urso ensinou aos arikara como deveria ser feita a oferenda destinada aos sioux, e enumerou tudo o que necessitava para o ritual, a saber: um Cachimbo e tabaco; quatro pés de milho sem espigas; um crânio de bisonte; três bastões para fazer um cavalete; carne de bisonte seca; pintura vermelha e azul escuro; penas de águia; uma faca; erva aromática; uma bexiga seca de bisonte.
Quando todas estas coisas estavam reunidas, Jovem Urso tomou uma faca e escavou o solo para purificá-lo. Neste lugar consagrado puseram quatro brasas, nas quais Jovem Urso queimou um pouco de erva aromática, e rezou assim:
“Ó Avô Wakan-Tanka, olhai-nos! Neste lugar queremos criar parentes e fazer a paz; tua vontade é que isto se cumpra. Faço fumaça com esta erva aromática que te pertence, e ela subirá até Ti. Em tudo o que fazemos, Tu és o primeiro, e depois vem nossa Mãe Terra; depois dela vêm as quatro Regiões do Universo. Ao observar este rito queremos realizar a tua vontade sobre esta terra, e quermos estabelecer uma paz que deverá durar até o final dos tempos. A fumaça aromática estará com todas as coisas do Universo. Está bem!”
Todos os objetos rituais foram então purificados na fumaça; os três bastões foram dispostos em forma de secador de carne, e o Cachimbo foi apoiado sobbre este cavalete. Jovem Urso colocou então a bexiga de bisonte diante de si e, sustentando um pouco de tabaco para o Oeste, orou deste modo:
“Ó Tu que guardas o caminho de onde se põe o sol e que controlas as águas; vamos estabelecer um parentesco e uma paz sagrada. Tu tens dois dias de mistério; que o povo desfrute deles e caminhe pelo caminho da vida com passo firme! Deves ser incluído neste parentesco e nesta paz que estamos dispostos a estabelecer; ajudai-nos! Realizamos aqui, na terra, o parentesco que sempre existiu entre o Grande Espírito e seu povo!”
Este tabaco, a partir de agora identificado com o Poder do Oeste, foi depositado na bexiga. Devo dizer que esta bexiga é tão sagrada para muitas tribos como o Calumet é para nós, pois também ela pode conter todo o Universo.
Então ofereceu um pouco de tabaco para o Norte com esta oração:
“Tu, lugar onde mora o gigante Wazia; Tu, que controlas os ventos purificadores, deves ser colocado nesta bolsa sagrada; ajudai-nos, pois, com teus dois dias de mistério, e ajudai-nos para que possamos caminhar pelo caminho reto da vida!”
O Poder do Norte, identificado agora com o tabaco, foi inroduzido na bolsa; a seguir, Jovem Urso ofereceu um pouco de tabaco ao Poder do Leste:
“Ó Tu, que controlas o caminho de onde nasce o sol; Tu, que dás o conhecimento, estás incluído nesta oferenda; ajudai-nos, pois, com teus dois dias sagrados!”
Por último, depois de colocar o Poder do Leste na bexiga, Jovem Urso ofereceu um pouco de tabaco à Região para onde sempre nos voltamos, e orou assim:
“Ó Tu, Cisne Branco; Tu, que controlas o caminho pelo qual caminham as gerações, há um lugar para Ti nesta bolsa sagrada; ajudai-nos, pois, com teus dias vermelho e azul!”
Depois de colocar o Poder do Sul na bolsa ritual, Jovem Urso ofereceu um pouco de tabaco ao Céu:
“Avô e Pai Wakan-Tanka, que nós conheçamos este parentesco quaternário que nos ata a Ti; que empreguemos este conhecimento fazendo a paz com outra tribo. Ao estabelecermos parentescos aqui na terra, sabemos que cumprimos com tua vontade. Ó Wakan-Tanka, Tu estás acima de todas as coisas, mas hoje estás conosco!”
Depois de colocar o  tabaco para o Grande Espírito na bolsa de mistério, Jovem Urso orou assim:
“Avó Terra, escutai-me! Vamos estabelecer sobre Ti um parentesco com um povo. Assim como Tu estabelecestes um parentesco conosco ao nos dar nosso Calumet sagrado[75].  Os bípedes, os quadrúpedes, os seres alados e tudo quanto se move sobre Ti[76], somos teus filhos. Queremos ser, com todas as criaturas e com todas as coisas, como os membros de uma só família; assim como estamos aparentados contigo, ó Mãe, também queremos fazer a paz com outro povo, e seremos parentes deles. Oxalá caminhemos com amor e misericórdia por este caminho que é sagrado! Ó Avó e Mãe, Te colocamos nesta bolsa de mistério. Ajudai-nos a estabelecer um parentesco e uma paz perpétua!”
E deste modo a Terra foi introduzida na bolsa, que foi fechada e sobre a qual colocaram pelos de bisonte e erva aromática.
Jovem Urso disse então ao representante da tribo dos arikara:
“Cuidarás desta bolsa, pois está cheia de mistério, e a tratarás como estas coisas devem ser tratadas; é realmente semelhante ao Cachimbo sagrado que os sioux recebeream, e fará a paz entre muitas tribos. Mas deves recordar-te sempre disto: nossos parentes mais próximos são nosso Avô e Pai Wakan-Tanka e nossa Avó e Mãe Terra. Com esta bolsa sagrada, vai para juntos dos chefes sioux, e com ela estabelecerás o parentesco.”
Então envolveu-se a bolsa em uma pele de gamo que ataram pelos dois lados com uma correia de couro, de modo que o saquinho pudesse ser transportado facilmente; assim terminou o primeiro dia do ritual.

*********
No dia seguinte, no instante mesmo da saída do sol, Jovem Urso tomou seu Calumet e foi à tenda do arikara. Depois de oferecer o Cachimbo às seis Direções, fumou um pouco e deu-o ao arikara; este disse; “Hi ho! Hi ho!” e tomou ao Cachimbo, fumou um pouco e passou-o aos demais homens presentes no tipi. Quando todos fumaram o Calumet voltou para Jovem Urso, que o purificou e o pôs de volta em sua bolsa.
Depois disto, Jovem Urso foi até a sua tenda; ali esperou, junto com os demais chefes sioux e com os sábios de sua tribo, a chegada do arikara, que devia trazer-lhes a oferenda de acordo com as instruções que recebera no dia anterior.
Quando os sioux viram chegar o homem dos arikara gritaram: “Hi ho! Hi ho!”, e quatro deles foram ao seu encontro e o conduziram à tenda. O arikara deu a volta seguindo o movimento do sol, parou em pé diante de Jovem Urso, que estava sentado no Oeste, e colocou em sua frente a bolsa das oferendas. Jovem Urso queimou erva aromática na brasa e a seguir susteve o saquinho de mistério sobre a fumaça. Continuando gritou: “Hi ho! Hi ho!”, abraçou o saquinho e fez esta oração:
“Avô e Pai Wakan-Tanka, olhai-nos! Sobre esta terra cumprimos a tua vontade. Estabelecestes um parentesco conosco ao dar-nos o Calumet, e agora estendemos este parentesco a outro povo fazendo a paz com ele depois de havermos estado em guerra. Sabemos que realizamos um dos sete ritos que nos foram prometidos na origem. Que estes dois povos, graças a este rito, estejam sempre em paz e sirvam de exemplo para outras nações. Com esta oferenda minha tribo se alegrará. Este é um dia sagrado! Está bem! Vamos agora abrir este saquinho de mistério e mediante esta oferenda ficaremos vinculados a Ti e a Teus Poderes. Wakan-Tanka, contemplai o que fazemos.”
 Depis de pronunciar esta oração, Jovem Urso tirou as correias da bolsa e desenrolou lentamente a pele de gamo, e quando viram a bexiga de bisonte, exclamaram: “Hi ye!”, pois todos sabiam porque esta bexiga era tão wakan, tão sagrada. Jovem Urso sustentou então a bexiga sobre a fumaça das ervas aromáticas, abraçou-a e repetiu sem cessar: “Hi ye!”, e depois disse esta oração:
“Sêde misericordioso! Agora que viestes a nós, o povo caminhará pelo caminho do mistério levando seus filhos pela mão. Eu sou o povo (sioux), e te amo, quero ter-te carinho, quero cuidar sempre de ti. O povo de onde vens (os arikara) deverá também amar-te sempre, e saber sempre que és santa.”
Depois deste discurso, Jovem Urso ofereceu a bexiga às seis Direções, e quando a abraçou e beijou sua abertura, todo o povo gritou: “Hi ho!”. Jovem Urso voltou-se para o arikara e disse:
“Para nossa tribo esta oferenda significa que desejais a paz e estabelecer um vínculo de parentesco conosco. É por esta razão que trouxeste um dom tão sagrado?”
O arikara respondeu:
“Sim! Desejamos ter um vínculo de parentesco convosco, e que seja tão estreito quanto o parentesco entre vós e o Grande Espírito!”
Esta resposta agradou aos sioux; então levaram a bexiga de mistério para fora da tenda para que toda a tribo pudesse abraçá-la e beijar sua abertura como fez Jovem Urso. Logo puseram-na na ponta da vigésima oitava vara do tipi para mostrar que a proposta de paz dos arikara havia sido aceita, e para colocar o saquinho que continha a bexiga no lugar mais sagrado. Como já expliquei, esta vigésima oitava vara representa o Grande Espírito, pois é a vara-chave que sustenta as demais vinte e sete varas da tenda.
Assim terminou o ritual da oferenda. Os mensageiros dos arikara regressaram aos seus tipis, onde começaram os preparativos para o dia seguinte, e Jovem Urso preparou uma tenda especial para novos rituais. De cada lado da entrada haviam sido penduradas peles que formavam um caminho com dez passos de comprimento; o tabique de peles tinha uma altura de quatro pés; este é o caminho da vida, que conduz à tenda. Quem entra por ele não pode desviar-se do caminho, pois os tabiques o impedem; deve, pois, caminhar em linha reta até o centro.

*********
No dia seguinte, quatro homens dos arikara foram escolhidos para rpresentar toda a tribo; com seus apetrechos rituais dirigiram-se até a tenda que Jovem Urso havia preparado. Jovem Urso estava sentado a Oeste; antes de preparar o altar, disse-lhes:
“O milho que os sioux possuem agora pertence na realidade aos arikara, pois eles o amam e o consideram coisa sagrada, assim como fazemos com nosso Calumet; pois eles também receberam o milho do Grande Espírito através de uma visão. É vontade do Grande Espírito que tenha seu milho. Por esta razão, nós queremos, não apenas devolver-lhes seu milho, mas também estabelecer um rito mediante o qual criaremos a paz ao mesmo tempo que um parentesco real que será um reflexo do vínculo de parentesco existente entre nós e Wakan-Tanka. Quero produzir agora uma fumaça aromática que chegará até os céus e também até a estrela Dalva, que divide o dia em escuridão e luz; chegará também até os quatro Poderes que velam pelo Universo. Esta fumaça erguer-se-á desde nossa Avó, a Terra.”
Jovem Urso pôs então a erva aromática sobre as brasas e purificou na fumaça o Calumet, a espiga de milho, a machadinha e os demais objetos rituais; agora já podia preparar o altar.
Tomou a machadinha, dirigiu-a às seis Direções e em seguida golpeou o solo a Oeste. Repetindo o mesmo movimento, golpeou o solo ao Norte e depois, do mesmo modo, a Leste e a Sul; logo levantou a machadinha ao céu e golpeou o solo duas vezes no centro para a Terra e depois duas vezes para o Grande Espírito. Depois Jovem Urso escavou o chão e, com o bastão que havia purificado na fumaça e oferecidoàs seis Direções, traçou uma linha que ia do Oeste até o centro, em seguida outra do Leste até o centro e outra do Sul até o centro; depois ofereceu o bastão ao céu e tocou o centro, e à terra e tocou o centro. Assim ser fez o altar; como já disse, fixamos aqui o centro da terra, e este centro, que em realidade está em todas as partes, é a morada do Grande Espírito[77].
Jovem Urso tomou então uma espiga de milho e cravou um bastão em um dos extremos; no outro colocou uma pena de águia.
“Este milho pertence em realidade aos arikara – disse – e ser-lhes-á devolvido porque o amam como nós amamos nosso Calumet. A espiga de milho que aqui vêdes tem doze significados importantes, pois está formada por doze fileiras de grãos, e os recebe dos diversos Poderes do Universo. Ao pensar nas distintas coisas que o milho pode ensinar-nos, não devemos esquecer, sobretudo, a paz e o parentesco que estabelece entre nós. Devemos recordar-nos antes de mais nada, de que nossos parentes mais próximos são nosso Avô e Pai Wakan-Tanka, nossa Avó e Mãe Terra, os quatro Poderes do Universo, os dias vermelho e azul (luz e escuridão), a estrela Dalva, a Águia Pintada que guarda tudo o que é sagrado no milho; nosso Calumet também é como um parente, pois protege a tribo, e através dele rogamos ao Grande Espírito.”
“O penacho que cresce na ponta da espiga de milho, e que assinalamos com uma pena de águia, representa a presença do Grande Espírito; pois, assim como o  pólem se espalha a partir do penacho e dá a vida, assim também a presença do Grande Espírito dá vida a todas as coisas. Esta plumagem que está sempre fixa na ponta da planta é a primeira a ver a luz da aurora; vê também a noite, a lua e as estrelas. Por todas estas razões é wakan, sagrada. E Este bastãozinho que cravei na espiga de milho é a árvore da vida, que se estende da terra até o céu[78], e o fruto, que é a espiga com todos os seus grãos, representa o povo e todas as coisas do Universo. É preciso recordar estas coisas para poder compreender os ritos que iremos realizar.”
Jovem Urso apoiou então a espiga de milho no cavalete que havia erguido junto ao altar; este cavalete é uma imagem do secador em que se seca a carne do bisonte; agora é o secador do milho, pois o milho é tão importante para os arikara como o bisonte para os sioux. Jovem Urso arrancou uma espiga de seu talo, estendeu-a ao representante da tribo dos arikara, e falou assim:
“É vontade do Grande Espírito que este milho retorne para vós. Deste modo faremos a paz e celebraremos um parentesco que será um exemplo para as nações. Muito falamos dos Doze Poderes do Universo; uniremos estes doze Poderes, junto com os sioux e os arikara, em um só. Ao fazê-lo, os arikara devem cantar para os sioux; eu representarei meu povo, e voso chefe representará o vosso; nós nos converteremos em parentes, e por isto nossos dois povos serão como um só e viverão em paz. No passado, os homens que o Grande Espírito pôs nesta ilha[79] foram inimigos, mas este rito trará a paz, e no futuro outras nações desta ilha tornar-se-ão parentes graças a ele.”
“Vós, os arikara, deveis fazer agora como se estivésseis no caminho da guerra contra nós; deveis afastar-vos em busca do inimigo cantando vossos cantos de guerra."
Depois de ouvir este discurso, o arikara colheu a espuiga de milho com a mão direita e o talo com a esquerda, e declarou que os homens de sua tribo buscavam o inimigo, os sioux; e, entoando seus cantos de guerra, agitaram os talos de milho. Este balanço dos talos representa o milho quando o sopro do Grande Espírito o acaricia: quando sopra o vento, o pólen cai do penacho na palha que rodeia a espiga, e é isto que faz com que o fruto amadureça e seja fértil. Podeis ver como o exemplo do milho prefigura o parentesco que vamos estabelecer entre estes dois povos.
Enquanto os mensageiros dos arikara simulavam buscar seus inimigos, os sioux, todo mundo se juntou para observá-los, e todos estavam felizes, pois compreendiam o que ia acontecer. Logo os arikara se viram diante do tipi aonde os esperavam os quatro sioux, e o chefe arikara disse aos seus valentes:
“Quem de vós foi o primeiro a tocar o inimigo[80] no caminho da guerra? Agora vos cabe contar os golpes sobre esta tenda e entrar nela para capturar Jovem Urso; logo faremos prisioneiros a outros. Mas antes deveis relatar os atos de bravura que realizasteis no caminho da guerra.”
Entãoo arikara se pôs a contnar suas façanhas guerreiras, e depois de cada frase todos os assistentes gritaram: “Hi ho! Hi ho!”, e as mulheres mostravam seu júbilo soltando gritos agudos.. Quando terminou, precipitou-se para a tenda, tocou-a, depois entrou e saiu com Jovem Urso; os demais arikara também entraram e buscaram os outros quatro sioux. Os arikara continuaram cantando seus cantos de guerra, e todos os assistentes, sioux e arikara, estavam contentes e presenteavam-se mutuamente com alimentos, roupas e até cavalos.
Formou-se então um cortejo dirigido pelo arikara, que agitava continuamente os talos de milho; atrás dele iam os quatro sioux capturados, entre os quais havia uma mulher, um menino e uma menina, para que toda a tribo estivesse representada. Os arikara levavam as crianças sobre seus ombros, e no fim do cortejo iam os cantores, os tambores e todos os assistentes das duas tribos. O cortejo deteve-se quatro vezes, e de cada vez as pessoas uivavam como coiotes, tal como fazem as brigadas guerreiras quando regressam ao acampamento. Logo chegaram ao tipi sagrado que havia sido preparado no centro do acampamento circular, e os sioux capturados foram conduzidos a uns leitos situados a Oeste da tenda, sobre os quais estavam amontoados muitos presentes oferecidos pelos arikara.
Os ajudantes arikara tomaram então umas roupas de pele de bisonte e as sustetntaram diante dos cinco sioux e do chefe arikara: a isto se chama “esconder os parentes próximos”. Então um guerreiro arikara e uma mulher desta tribo deslizaram para trás da cortina e pintaram os rostos dos sioux. A mulher pintou de vermelho os rostos da mulher sioux e da menina, enquanto o guerreiro fazia a mesma coisa com os homens sioux e o menino, pintando um círculo azul ao redor dos seus rostos e uma linha azul na frente, nas maçãs do rosto e no queixo.
Durante todo este tempo os arikara agitaram os talos de milho e cantaram cantos de mistério. Logo titraram as penas de águia das espigas e as plantaram nos cabelos dos sioux; ao mesmo tempo, pintaram de vermelho um crânio de bisonte, e os quatro Poderes foram representados por quatro linhas; preencheram com sálvia as órbitas e o nariz do crânio, e este foi colocado, de cara para o Leste, sobre um montículo cuja terra havia sido retirada do local consagrado.
Então retiraram-se as roupas de bisontne, de modo que todos puderam ver os sioux com o rosto pintado. Talvez eu deva explicar o que isto significa: mediante a pintura, os homens foram transformados; experimentaram um novo nascimento e adquiriram com isto novas responsabilidades, novas obrigações e um novo parentesco[81]. Esta transformação é tão sagrada que deve acontecer na obscuridade[82]: deve ser subtraída da vista da maioria; mas quando se abre a cortina aparecem puros, livres da ignorância, e esqueceram as inquietações do passado. Agora são uma coisa só, com os arikara: o parentesco realizou-se[83].
Enquanto agitavam seus talos de milho, os arikara entoaram este canto:
Todos estão aparentados (huntka),
Todos estes são parentes.
Depois, voltando-se para cada uma das quatro Direções, cantaram:
Ó Tu, Poder de onde o sol se põe,
Tu és um parente!
Ó Tu, Poder de onde vive o gigante,
Tu és um parente!
Ó Tu, Poder de onde sai o sol,
Tu és um parente!
Ó Tu, Poder do lugar para onde sempre nos voltamos,
Tu és um parente!
A seguir, olhando o céu, cantaram:
Este é nosso parente.
E inclinando-se para a terra, e também sobre o crânio de bisonte, cantaram:
A Terra é nosso parente.
Finalmente, agitando o milho sobre os sioux, cantaram:
“Estes cinco são nossos parentes! Todos estamos aparentados; todos somos um!”
Continuando, Jovem Urso levantou-se, tomou o Calumet que estava apoiado no cavalete, situou-se no meio da tenda e, levantando sua mão direita e sustentando o Cachimbo com a mão esquerda, fez esta oração:
“Ó Wakan-Tanka, elevo minha mão para Ti! Hoje estás muito próximo de nós. Ofereço-te meu Calumet. Também a vós, ó Poderes alados que habitais o lugar onde se põe o sol, vos oferecemos este Cachimbo. Neste dia bendito reunimos tudo o que existe de sagrado no Universo; neste dia se fez uma grande paz. Ó Avô Wakan-Tanka, que esta paz dure para sempre! Que nenhum homem, nenhuma circunstância, a destruam! Estes povos caminharão juntos por este caminho único que é vermelho e sagrado!”
Voltando-se para assembléia, Jovem Urso disse:
“Os ritos chegam ao seu fim! Estamos unidos, somos um! Ó vós, arikaras, este milho que amais, e que havíeis perdido, vos será devolvido.”
Ao ouvir estas palavras, os homens mostraram júbilo e as mulheres fizeram seus agudos, e os cantos começaram de novo; os arikara que agitavam os talos de milho dançaram até a porta do Leste, e precipitaram-se cinco vezes até os cinco sioux; depois os movimentos e as danças cessaram.
Então trouxeram muita comida para atenda; o chefe arikara, tomando um pedaço de carne seca e purificando-o na fumaça das ervas aromáticas, fez esta oração:
“Ó Wakan-Tanka, olhai-me e tende misericórdia de mim! Esta carne é o germe: deve ser introduzida em vossa boca e converter-se em vosso corpo e vossa alma, que o Grande Espírito, em sua bondade, vos deu. Assim como Ele é misericordioso convosco, deveis sê-lo vós com os demais.”
Com estas palavras, o chefe arikara pôs a carne consagrada ma boca de cada um dos quatro sioux; ele e Jovem Urso sentaram-se de frente um para o outro no meio da tenda. Jovem Urso tinha diante de si o crânio de bisonte e o Calumet, e diante do chefe arikara achava-se uma espiga e os quatro talos. O chefe arikara tomou então um pedaço de carne de bisonte e depois de purificá-lo na fumaça, estendeu-o a Jovem Urso e disse:
Ho, filho meu! Vou ser teu pai. Neste dia que lhe pertence, o Grande Espírito viu nossos rostos; a aurora deste dia nos viu, e nossa Avó a Terra nos escutou. Estamos no centro, e os quatro Poderes unem-se em nós. Quero colocar esta carne em tua boca, e a partir deste dia jamais deverás temer a minha casa, pois minha casa é tua casa[84], e tu és meu filho.”
O chefe colocou a carne na boca de Jovem Urso; a tribo dos arikara alegrou-se e deu graças, pois, mediante este ato, os doispovos convertiam-se em um só. Então Jovem Urso tomou igualmente um pedaço de carne, purificou-o na fumaça e oferecendo-o ao arikara, disse-lhe:
Ho, meu pai! Fizemos a paz segundo a vontade do Grande Espírito, não apenas entre nós, mas também dentro de nós e com todos os Poderes do Universo. A aurora deste dia certamente nos viu, e o Bisonte, que é a fonte de nossa vida nesta terra e que protege a tribo, esteve conosco; e nosso Calumet, que deu ao nosso povo o alimento para suas almas, esteve concosco; e tivemos conosco vosso milho, que vos é sagrado e com o qual realizamos o parentesco. Quero colocar este alimento em tua boca para que nunca temas minha casa, que será a tua casa. Que por fazermos isto, Wakan-Tanka seja misericordioso connosco!”
Jovem Urso colocou a carne na boca do chefe arikara, e todos os sioux deram mostras de júbilo e deram graças. Continuando, Jovem Urso tomou o Cachimbo, acendeu-o, ofereceu-o às seis Direções, e depois de dar quatro baforadas ofereceu-o ao arikara, dizendo:
Ho, meu pai! Tomai isto e fumai, e que em teu coração não haja senão a verdade!”
O arikara tomou o Calumet, ofereceu-o às seis Direções, e depois de dar quatro baforadas, passou-o aos assistentes. Todos os arikara e todos os sioux que se achavam presentes fumaram por turnos, e mesmo quando o fogo já havia apagado colocavam-no na boca e o abraçavam. Enquanto isto, o chefe arikara disse a Jovem Urso:
Ho, filho meu! Nos devolvestes a espiga de milho que o Grande Espírito nos deu, mas que colhestes devido à visão que tivestes. Cmoo queríamos que nos devolvesses nosso milho, viemos propor-vos a paz; mas nos destes mais do que isto ao realizar hoje o mistério do parentesco. Com o fim de nos ligarmos ainda mais intimamente, dou-te uma parte do milho com o direito de empregá-lo em vossos rituais. Desde agora, também para vós será sagrado, como o é para nós.”
O povo estava feliz ao ver que grande coisa se havia cumprido, e fez uma festa que duoru toda a noite.
Desejo mencionar aqui que com estes ritos estabeleceu-se uma tríplice paz. A primeira paz é a mais importante: é a que surge na alma dos homens quando se dão conta de seu parentesco, de sua unidade, com o Universo e todos os seus Poderes, e quando se dão conta de que no centro do Universo mora o Grande Espírito, e que na realidade este centro está em todas as partes. Esta é a paz real; as outras pazes não passam de reflexos dela. A segunda paz é a que se estabelece entre os indivíduos; a terceira é a que se concerta entre as nações. Mas é preciso compreender que nunca poderá haver p-az entre as nações antes que se saiba que a verdadeira paz está na alma dos homens.

VII

ISHNA TA AWI CHA LOWAN:

PREPARAÇÃO DA MENINA

PARA OS DEVERES DE MULHER




Os rituais de preparação da menina – ishna ta awi cha lowan, “cantaram apenas para ela” – são realizados após o primeiro período menstrual; neste momento a menina converte-se em mulher; deve compreender o significado desta mudança e ser instruída nas obrigações que deverá cumprir a partir de então. É necessário que se dê conta de que a mudança produzida nela é algo sagrado, pois a partir de agora ela será como a Mãe Terra e poderá fazer filhos, que deverão ser educados segundo o caminho do Grande Espírito. Ademais, deve saber que a cada mês, quando chegar seu período, ela carrega um influxo com o qual deverá ter cuidado, pois a presença de uma mulher neste estado pode tirar o poder de um homem santo[85]. Portanto, ela deve observar com cuidado os ritos que purificação que vou descrever, e que nos foram dados pelo Grande Espírito numa visão.
Antes de receber a revelação deste rito, era costume que, durante o período menstrual, a mulher ou menina retirava-se para um pequeno tipi fora do círculo do acampamento; uma mulher levava-lhe a comida e ninguém mais podia aproximar-se da tenda. Quando uma mulher tinha seu primeiro período menstrual, uma mulher mais velha a instruía nas coisas que toda mulher deve saber, inclusive na arte de confeccionar mocassinos e roupas. Esta mulher de mais idade, que purifica a menina com a ajuda da fumaça aromática, deve ser uma pessoa boa e pura, pois suas virtudes e seus costumes passam para a menina que ela purifica. Antes de voltar para sua família, a jovem deveria ainda purificar-se na cabana inipi. Mas agora vou contar como recebemos nossos novos ritos de preparação ao estado de mulher casada.
Há muito tempo, um lakota chamado Tatanka Hunkeshni – Bisonte Lento – teve uma visão: uma mãe bisonte limpava uma pequena bisonte, sua filha. Graças aopoder desta visão, Bisonte Lento converteu-se em um homem santo (wichascha wakan), e compreendeu que lhe havia sido revelado um rito para as jovens de sua tribo.
Alguns meses depois de Bisonte Lento ter recebido sua visão, uma menina de quatorze anos, chamada Mulher-Bisonte-Branco-Aparece, teve suas primeiras regras, e seu pai, Pena-Na-Cabeça, lembrou-se imediatamente da visão de Bisonte Lento; tomou, pois, um Calumet cheio de tabaco e ofereceu-o a Bisonte Lento, que aceitou o Cachimbo, dizendo: “Hi ho! Hi ho! Porque motivo me trazes este Cachimbo sagrado?”
Pena-Na-Cabeça respondeu:
“Tenho uma filha que tem suas primeiras regras, e quero que a purifiques e a prepares para seu papel de mulher, pois sei que tiveste uma visão muito poderosa com a qual aprendeste um modo mais eficaz e mais santo de fazê-lo do que o que seguimos até agora.”
“Certamente farei o que desejas”, respondeu Bisonte Lento. O povo dos bisontes, que foi instruído pelo Grande Espírito e que nos deu este rito, está próximo dos homens; ele é nossa fonte de vida sob muitos aspectos[86]. Na origem, a Mulher Bisonte Branco nos deu nosso santo Calumet, e desde então temos sido irmãos dos quadrúpedes e de tudo quanto se move. Tatanka, o bisonte, é o parente mais próximo que temos entre os quadrúpedes; vivem como uma tribo, como nós[87]. É vontade de nosso Avô Wakan-Tanka que seja assim; e sua vontade é que este rito seja realizado pelos homens na terra; é por isso que iremos agora estabelecer este ritual, que será muito proveitoso para nosso povo. É certo que os quadrúpedes e todos os povos que se movem no Universo possuem este rito de purificação, especialmente nossos parentes bisontes. Vi que também eles purificam seus filhos e os preparam para levar frutos. Será um dia sagrado quando fizermos isto, e agradará ao Grande Espírito e a todos os povos que se movem. Primeiro deverás colocar em teu Calumet a todos os povos e a todos os Poderes do Universo para que, junto com eles, possamos enviar uma voz ao Grande Espírito.”
“Vou preparar um local consagrado para tua filha, que é pura[88] e que está a ponto de converter-se em uma mulher. A aurora, que é a luz de Wakan-Tanka, estará neste lugar, e tudo será sagrado. Amanhã deverás levantar uma tenda, justo fora do círculo de nosso acampamento; deverá ter uma via de acesso protegida, exatamente como no tiro do parentesco; e deverás reunir os seguintes objetos: um crânio de bisonte, uma taça de madeira, algumas cerejas, água, erva aromática, sálvia, um Calumet, um pouco de tabaco trançado dos arikara, tabaco kinnikinnik, uma faca, uma machadinha de pedra, pintura vermelha e azul.”
Pena-Na-Cabeça deu a Bisonte Lento cavalos e outros presentes, e se foi a preparar todas as coisas para o dia seguinte.

*********
No dia seguinte tudo estava pronto na tenda ritual, e toda a população reuniu-se ao redor, com exceção das mulheres que preparavam a festa que encerraria os ritos. Bisonte Lento estava sentado a Oeste do tipi; diante dele o solo havia sido escavado e neste local foi depositada uma brasa. Sustentando a erva aromática sobre a brasa, Bisonte Lento pronunciou esta oração:
“Avô e Pai Wakan-Tanka, ofereço-te esta erva sagrada. Avó terra, de quem viemos, e Mãe Terra que trazes muitos frutos, escutai! Vou fazer uma fumaça que penetrará nos Céus e chegará até nosso Avô Wakan-Tanka; ela se estenderá por cima de todo o Universo e tocará todas as coisas.”
Depois de colocar erva aromática sobre o braseiro, Bisonte lento purificou o Calumet e todos os objetos destinados ao rito. A seguir disse:
“Tudo o que for feito hoje, será realizado com a ajuda dos Poderes do Universo. Oxalá nos ajudem a purificar e tornar wakan – sagrada – esta menina que vai agora converter-se em mulher. Encho este Cachimbo de mistério e, ao fazê-lo, ponho nele todos os Poderes que hoje nos ajudarão.”
Bisonte Lento purificou-se com a fumaça, estendendo as mãos sobre a ela e esfregando o corpo, e em seguida, sustentando o Calumet na mão esquerda tomou um pouco de tabaco com a direita e rezou:
“Avô Wakan-Tanka, vamos enviar uma voz a Ti mediante nosso Calumet. Este é um dia eleito, pois vamos purificar esta menina, Mulher-Bisonte-Branco-Aparece. Existe um lugar neste Cachimbo para todos os Poderes do Universo; tende, pois, piedade de nós e aceitai nossas oferendas!”
“Ó Tu, Poder de onde sai o sol, que guardas o Calumet e que apareces de modo tão terrível para purificar o mundo e seus habitantes[89], queremos oferecer este cachimbo ao Grande Espírito e necessitamos tua ajuda e tuas águas purificadoras; estamos dispostos a purificar e santificar não apenas a esta memnina, mas também a toda uma geração. Ajudai-nos com teus dias benéficos vermelho e azul! Há um lugar para Ti neste Calumet.”
Bisonte Lento colocou este tabaco no Cachimbo e, sustentando outro bocado de tabaco na direção de onde vêm os ventos purificadores[90], orou:
“Ó Tu, gigante Wazia, Poder do Norte, que preservas a saúde da tribo com teus ventos e que purificas a terra branqueando-a; Tu, que guardas o caminho pelo qual caminha nosso povo, ajuda-nos hoje com teu influxo purificador; vamos santificar uma virgem, Mulher-Bisonte-Branco-Aparece; dela sairão as gerações de nossa tribo. Há um lugar para Ti neste Calumet; ajuda-nos com teus dias benéficos!”
O Poder do Norte foi colocado no cachimbo; a seguir, sustentando um pouco de tabaco na direção de onde vem a luz, Bisonte Lento continuou orando:
“Ó Tu, Hunkta[91], Ser e Poder do lugar de onde vem a aurora do dia e a luz do Grande Espírito, Tu que tens grande alento e que dás o conhecimento aos homens, daí hoje algo de tua sabedoria a esta virgem, Mulher-Bisonte-Branco-Aparece, que vai ser purificada. Ajudai-nos com teus dias vermelho e azul! Há um lugar para Ti neste Calumet!”
Depois de colocar o Poder do lugar de onde vem a luz no Cachimbo, e sustentando um pouco de tabaco na direção para a qual sempre nos voltamos, rezou:
“Ó Tu, Cisne Branco, Poder do lugar para onde sempre nos voltamos, que controlas o caminho das gerações e de tudo quanto se move, vamos purificar uma virgem para que suas gerações futuras possam caminhar de um modo conforme ao mistério pelo caminho que Tu controlas. Há um lugar para Ti neste Calumet. Ajudai-nos com teus dias vermelho e azul!”
O Poder do Sul foi colocado no Cachimbo e, dirigindo um pouco de tabaco para o ceú, Bisonte Lento continuou:
“Ó Wakan-Tanka, Avô, olhai-nos! Vamos oferecer-te um Calumet!”
A seguir, dirigindo o tabaco à terra:
“Ó Tu, Avó, sobre quem as gerações da tribo têrm caminhado, que Mulher-Bisonte-Branco-Aparece e suas gerações futuras caminhem sobre Ti conforme o mistério nos invernos futuros! Ó Mãe Terra, que dás frutos sem conta, e que és como uma mãe para as gerações, esta virgem que está hoje aqui será purificada e consagrada; oxalá se pareça a Ti, e seus filhos e os filhos de seus filhos caminhem pelo caminho sagrado em conformidade com o mistério. Ajudai-nos, ó Avó e Mãe, com teus dias vermelho e azul!”
A Terra, em suas qualidade de Avó e Mãe, estava agora no tabaco e achava-se no Calumet; e Bisonte Lento ergueu ainda uma vez um pouco de tabaco para o céu e rezou:
“Ó Wakan-Tanka, olhai-nos! Vamos oferecer-te este Calumet!”
Continuando, dirigiu o mesmo tabaco ao crânio do bisonte:
“Ó tu, parente quadrúpede, tu que dentre todos os povos quadrúpedes és o mais próximo a nós, também deves ser posto no Cachimbo, pois nos ensinastes como limpas teu bezerro, e ao purificarmos Mulher-Bisonte-Branco-Aparece queremos imitar tua maneira de fazê-lo. Dou-te como oferenda, ó quadrúpede, água e pintura, suco de cerejas e ervas. Há um lugar para Ti neste Calumet, ajudai-nos!”
Deste modo o povo quadrúpede dos bisontes foi colocado no Cachimbo, e Bisonte Lento elevou pela última vez um pouco de tabaco ao Grande Espírito e rogou:
“Ó Wakan-Tanka e todos os Poderes alados do Universo, olhai-nos! Este tabaco eu ofereço a Ti, Chefe de todos os Poderes, Tu que és representado pela águia pintada que vive nas profundidades dos Céus, e que guardas tudo quanto há neles. Vamos purificar uma jovem ue logo será mulher. Protegei as gerações que sairão dela! Há um lugar para Ti no calumet; ajudai-nos com teus dias vermelho e azul!”
O Cachimbo, que agora continha todo o Universo, foi apoiado no pequeno secador, com o pé tocando o solo e a boca voltada para o céu[92]. Bisonte Lento começou então a preparar o lugar ritual, e somente os parentes mais próximos de Mulher-Bisonte-Branco-Aparece foram admitidos na tenda; os rituais que iriam seguir-se não eram para todo mundo.

*********
“O Grande Espírito – disse Bisonte Lento – deu aos homens um quádruplo parentesco: seu Avô, seu Pai, sua Avó e sua Mãe. Estes são sempre nossos parentes mais próximos. Posto que tudo o que é bom é feito de modo quaternário, os homens passarão atavés de quatro idades; assim, assemelhar-se-ão a todas as coisas. Nosso parente mais próximo entre os quadrúpedes é Tatanka, o bisonte; quero dizer-vos que ele estabeleceu um parentesco comigo. Disponho-me a preparar um lugar consagrado para esta virgem, Mulher-Bisonte-Branco-Aparece, e recebi do bisonte o poder para fazê-lo. Todas as coisas e todos os seres foram reunidos aqui para que sejam testemunhos disto, e para ajudar-nos. Assim é! Hechetu welo!”
Fez-se fumaça com a erva aromática e Bisonte Lento, colocando-se sobre ela, purificou todo seu corpo. Antes de preparar o lugar sagrado, era necessário que Bisonte Lento demonstrasse possui realmente um poder do bisonte, e por isso ele cantou o canto de mistério que aquele lhe ensinara:
Venham ver isto!
Vou fazer um lugar quwe será sagrado.
Venham ver!
Mulher-Bisonte-Branco-Aparece
Está sentada de uma maneira sagrada.
Venham todos vê-la!
Quando terminou este canto, Bisonte Lento emitiu um longo huh!, semelhante ao mugido do bisonte, e de sua boca saiu uma poeira vermelha, tal como faz a bisonte fêmea quando tem um bezerro. Bisonte Lento fez isto seis vezes e lançou fumaça vermelha sobre a jovem e depois sobre todo o lugar consagrado. Todo o tipi ficou cheio desta fumaça vermelha; as crianças que espiavam por uma abertura da porta assustaram-se e fugiram depressa, porque o espetáculo era verdadeiramente assustador.
Bisonte Lento tomou então sua machadinha e, depois de purificá-la na fumaça da erva aromática, golpeou o chão no meio da tenda e fez ali uma cavidade semelhante a um leito de bisonte; com a terra retirada fez um montículo a Leste da cavidade. A seguir tomou um pouco de tabaco e depois de dirigi-lo ao céu colocou-o no centro do lugar ritual; logo traçou com tabaco uma linha que ia de Oeste a Leste e outra que ia de Norte a Sul, formando uma cruz. Todo o Universo achava-se agora contido neste espaço de mistério. Por último, Bisonte Lento tomou um pouco de pintura azul e, depois de dirigi-la ao céu, tocou com ela o centro da cruz; depois colocou tinta azul sobre as linhas de tabaco, primeiro na direção Oeste-Leste e depois na direção Norte-Sul.
O emprego da cor azul é muito importante; sua santidade é evidente quando se compreende seu significado, pois, como já disse, o poder de uma coisa ou de um ato reside na compreensão do seu significado. O azul é a cor dos céus; ao colocar o azul sobre o tabaco, que representa a terra, unimos o céu e a terra, e tudo se torna unificado.
Bisonte Lento colocou então o crânio de bisonte sobre o montículo, com o rosto voltado para o Leste; a seguir pintou um círculo vermelhoao redor do crânio e uma linha reta da mesma cor desde a parte superior da cabeça – ente os chifres – até a fronte, e colocou bolas de sálvia nas órbitas; por último colocou uma taça de madeira cheia d’água diante da boca do bisonte. Então foram colocadas verejas na água; representavam os frutos da terra, que são para a terra como os filhos são para os homens. A cerejeira que vemos é o Universo e estende-se da terra até o céu; os frutos desta árvore, e que são vermelhos como nós, são como os frutos de nossa Mãe Terra; e é por isso – e por outras razões que não poderia aqui enumerar – que esta árvore é para nós wakan, sagrada.
Bisonte Lento confeccionou um pequeno ramo de ervas aromáticas, casca de cerejeira e pelos de um bisonte vivo. Estes pelos são sagrados porque provêm de uma árvore viva[93]; por aí vemos que o povo dos bisontes também possui uma religião: esta é a oferenda que fazem à árvore[94].
Então Mulher-Bisonte-Branco-Aparece levantou-se e Bisonte Lento, sustentando o pequeno ramalhete de substâncias misteriosas sobre a cabeça da jovem, falou assim:
“Aquilo que está sobre tua cabeça é como o Grande Espírito, pois, quando estás de pé, tu te estendes da terra ao céu, e tudo o que há acima da tua cabeça é como o Grande Espírito. Tu és a árvore da vida. Agora serás pura e santa; que tuas gerações tragam muitos frutos! Aonde quer que pousem teus pés o solo será santificado, pois desde agora levarás contigo um influxo poderoso. Que os quatro Poderes do Universo te ajudem a purificar-te, pois no mesmo momento em que eu pronunciar o nome de cada Poder, esfregarei cada lado do teu corpo de cima abaixo com este pequeno ramalhete. Que as águas purificadoras do lugar aonde se põe o sol desçam para purificar-te! Que sejas como a neve purificadora que vem do lugar aonde vive Wazia! Que a estrela Dalva te dê sabedoria quando a aurora do dia descer sobre ti! Que o Poder do lugar para o qual sempre nos voltamos te purifique, e que os povos que caminharam por este caminho reto e bom te ajudem a purificar-te! Que sejas como o Cisne Branco que vive no lugar para onde olhas, e que teus filhos sejam puros como os filhos do Cisne!”

*********
A menina sentou-se, e Bisonte Lento contou a toda a assistência como, em sua visão, havia recebido o poder do bisonte:
“Vi uma grande tribo que levantava seu acampamento e dispunha-se a partir. Dirigia-me até eles quando subitamente agruparam-se todos em círculo, e encontrei-me no meio deles. Conduziram uma menina até o centro e disseram-me que esta menina devia ser purificada segundo o costume de sua tribo. Então prepararam um lugar ritual em forma de leito de bisonte e puseram nele a menina, e a seguir pediram-me que soprasse sobre ela para purificá-la. Soprei sobre ela, mas logo me disseram que queriam ensinar-me seu modo de fazê-lo, que era melhor, e imediatamente transformaram-se em bisontes, e chegou um grande bisonte e soprou, expelindo uma poeira vermelha sobre o pequeno bezerro que estava no centro; e estando o bezerro ali deitado, todos os bisontes vieram e o lamberam, e cada vez que o lambiam respiravam ruidosamente e uma misteriosa fumaça vermelha saía de seus narizes e bocas. Disseram-me que era assim que purificavam seus filhos, e que o pequano bezerro, agora que estava purificado, continuaria vivendo e produziria frutos santamente, e que, continuando sua vida, chegaria ao final das quatro idades. Esta menina, disseram-me, iria pelo caminho sagrado sendo guia de seu povo e ensinaria seus filhos a caminhar de uma maneira santa pelo caminho do mistério. Depois de mostrar-me isto estabeleceram um parentesco comigo; mostraram-me um bisonte adulto e disseram: “Ele será teu avô”; e mostrando-me um mais jovem, disseram: “Ele será teu pai”; em seguida mostraram-me uma fêmea e disseram: “Ela será tua avó”; e por último mostraram-me uma fêmea mais jovem e disseram: “Ela será tua mãe”. Declararam que eu deveria regressar ao meu povo com este parentesco quádruplo e ensinar tudo o que havia aprendido. Isto é o que eu vi e é isto que estou fazendo ao purificar deste modo a uma jovem de minha própria tribo; esta virgem, Mulher-Bisonte-Branco-Aparece, é o pequeno bezerro que vi. Agora quero deixá-la beber água sagrada, e esta água é a vida.”
Bisonte Lento cantou então outro de seus hinos:
Estes povos são sagrados.
Desde todas as partes do Universo vêm ver isto.
Mulher-Bisonte-Branco-Aparece
Está sentada aqui de uma maneira sagrada
Todos vêm vê-la.
Bisonte Lento ergueu o crânio de bisonte pelos chifres, e enquanto cantava seu hino saiu fumaça vermelha pelas narinas do crânio; depois, como se fosse um bisonte, pôs-se a investir sobre a menina com o crânio, empurrando-a até a taça cheia de água; uma vez ali, a jovem ajoelhou-se e bebeu quatro goles, e ao ver isto todos os presentes se alegraram.
Então deram um pedaço de carne de bisonte a Bisonte Lento, e depois de purificá-lo na fumaça das ervas aromáticas e de oferecê-lo às seis Direções, susteve-o diante da jovem e disse:
“Ó Mulher-Bisonte-Branco-Aparece, rezastes para o Grande Espírito; de agora em diante caminharás entre a tribo segundo o mistério e serás um exemplo para todos. Amarás as coisas mais sagradas do Universo; serás como nossa Mãe Terra, humilde e fecunda. Que teus passos e os passos de teus filhos sejam firmes e respeitosos! Assim como o Grande Espírito foi misericordioso contigo, também tu serás misericordiosa com os demais, sobretudo com as crianças sem pais. Quando uma destas crianças vier ao teu tipi, ainda que só tenhas um pedaço de carne que tenhas posto na boca, retira-lo-ás e o darás à criança. Serás assim generosa! Quando eu puser esta carne em tua boca nos lembraremos da misericórdia do Grande Espírito que atende às nossas necessidades; do mesmo modo, atenderás às necessidades dos teus filhos”.
Bisonte Lento colocou a carne na boca da menina; a seguir, a taça de água com cerejas deu a volta e todo mundo bebeu um gole dela. Logo Bisonte Lento tomou o Calumet que estava apoiado no secador e, sustenatndo o cano para o alto, disse quatro vezes: “Hi-ey-hey-i-i!” e pronunciou esta oração:
“Avô Wakan-Tanka, olhai-os! Este povo e todas as gerações futuras são tuas. Olhai esta virgem, Mulher-Bisonte-Branco-Aparece, que foi purificada e honrada neste dia feliz. Que a luz que nunca escurece esteja sempre com ela e com todos os seus parentes! Avó e Mãe Terra, a tribo caminhará sobre Ti; que ela siga o caminho do mistério com a luz, sem a escuridão da ignorância! Que se lembrem sempre de seus parentes das quatro Regiões, e saibam que são parentes de tudo quanto se move no Universo, e antes de mais nada do bisonte, que é o chefe dos quadrúpedes e ajuda a criar a tribo! Ó Wakan-Tanka, ajudai-nos e tende misericórdia de nós, para que vivamos de um modo feliz e santo! Tende misericórdia de nós para que vivamos!”
Então todos exclamaram: “Hi ho! Hi ho!” e alegraram-se. Levaram Mulher-Bisonte-Branco-Aparece para fora da tenda e as pessoas precipitaram-se a tocá-la com as duas mãos, pois agora ela era mulher e os ritos que haviam levado a cabo para ela haviam-lhe conferido muita força misteriosa. A tribo estava em festa; as pessoas fizeram muitos presentes e todos estiveram contentes devido ao grande acontecimento daquele dia.
Assim foram instituídos os rituais de preparação da menina ao estado de mulher; foram fonte de muita força espiritual, não apenas para nossas mulheres, mas para toda a tribo.


VIII

TAPA WANKA YAP:

O LANÇAMENTO DA BOLA




Até os últimos tempos praticava-se entre nós um jogo de bola com quatro equipes e quatro metas situadas nas quatro Regiões. Hoje em dia muito poucos dos nossos compreendem ainda porque este jogo é sagrado ou o que ele foi em sua origem, num passado longínquo, quando não era um simples jogo, mas um de nossos rituais mais importantes. Hoje vou descrever este rito; é o sétimo e último que o Grande Espírito nos deu naquela época, em uma visão.
Este jogo representa o transcurso da vida humana, vida que deveria ser consagrada a pegar a bola, pois esta representa o Grande Espírito, ou o Universo, como explicarei mais adiante. Tal como o jogo é praticado atualmente, é difícil ficar com a bola, pois todas as possibilidades – que representam a ignorância – estão contra o jogador, e só uma ou duas equipes podem tomar a bola e marcar. Mas no rito original todos podiam apoderar-se da bola, e se pensarmos  no que isto representa, veremos que este fato encerra uma grande verdade.
Foi um lakota, Washkan Mani – Que-Se-Move-Caminhando – quem recebeu este rito em uma visão, há muitíssimos invernos. Não falou disto a ninguém durante muito tempo, até o dia em que um lakota chamado Grande-Chifre-Ôco viu em um sonho que Que-Se-Move-Caminhando havia recebido um rito que devia pertencer a todos. Por esta razão, Grande-Chifre-Ôco construiu uma tenda-santuário, segundo nosso costume, no círculo do acampamento, encheu seu Calumet segundo o ritual e, acompanhado de quatro homens santos, foi ver Que-Se-Move-Caminhando, a quem ofereceu o Calumet.
Hi ho! Hi ho! Hechetu welo! Está bem! – disse Que-Se-Move-Caminhando – que desejais de mim?”
“Soube por um sonho – disse Grande-Chifre-Ôco – que recebeste um rito cheio de mistério, que será o sétimo que a Mulher-Bisonte-Branco nos prometeu no princípio. A tribo espera agora que realizes este ritual.”
“Assim será – respondeu Que-Se-Move-Caminhando. Anunciai a todos que amanhã será um dia santo, que todos devem pintar os rostos e colocar suas melhores vestes. Teremos este rito que o Grande Espírito me enviou através do bisonte.”
Que-Se-Move-Caminhando ergueu então o Calumet para o Céu e rogou:
“Ó Avô Wakan-Tanka, olhai-nos! Seste-nos este Calumet para que nos aproximemos deTi! Com o Calumet caminhamos pela via sagrada durante este tempo. Fizemos tua vontade sobre a terra e agora queremos oferecer-te uma vez mais este Calumet. Dai-nos um dia vermelho e azul! Que seja sagrado; que todos se alegrem!”
Que-Se-Move-Caminhando disse então a Grande-Chifre-Ôco e aos quatro outros homens santos que deveriam reunir os seguintes objetos: um Calumet; kinnikinnik; erva aromática; uma pena de águia pintada; uma faca; uma machadinha; sálvia; uma bola de pelos de bisonte recoberta com pele de bisonte; um saquinho cheio de terra; pintura vermelha e azul; um crânio de bisontne; um secador de carne pintado de azul.
Os cinco lakotas foram fazer os preparativos para o dia seguinte. Já se haviam agrupado muitas pessoas ao redor da tenda-santuário. Um homem disse: “Deve ser o sétimo rito, pois até agora só recebemos seis, e creio que se trata do jogo que representa a vida. Parece-me que será lançada uma bola, pois acabo de ouvir que deve haver uma na equipe. Amanhã será um grande dia!” Durante toda a noite as pessoas falaram sobre o que ía acontecer no dia seguinte, e todos estavam felizes, pois aquilo que Mulher-Bisonte-Branco prometera iria cumprir-se inteiramente.
Antes da aurora tudo estava pronto. Havia sido espalhada sálvia em todo o chão da tenda; e no exato instante em que ía sair o sol, Que-Se-Move-Caminhando aproximou-se a passos lentos do santuário, chorando, pois havia pensado nos seis ritos que seu povo já possuía, e sabia que a Mulher-Bisonte-Branco estaria de novo entre eles. Muitos saíram para ir ao encontro de Que-Se-Move-Caminhando, e também eles choraram ao aproximar-se da tenda sagrada. O profeta foi o primeiro a entrar e sentou-se na direção do sol poente; a seguir escavou o chão diante de si com a faca e pediu aos ajudantes que lhe trouxessem uma brasa. Tomou da erva aromática, que sustentou sobre a fumaça, e rezou:
“Avô Wakan-Tanka, sempre fostes e sempre serás. Tu criastes todas as coisas; nada há que não Te pertença. Conduzistes o povo vermelho até esta ilha, e nos destes o conhecimento para que conhecêssemos todas as coisas. Sabemos que é a tua luz que chega com a aurora, e sabemos que é a Estrela Dalva que nos traz a sabedoria. Tu nos destes o poder de conhecer os Quatro Seres do Universo e de saber que na verdade estes Quatro Seres são Um. Vemos sempre os céus sagrados e sabemos o que são e o que representam. Este será um grande dia, e tudo quantno se move na terra e no Universo se alegrará. Neste dia coloco tua erva aromática neste fogo que Te pertence, e a fumaça que se desprender se estenderá por todo o Universo e irá elevar-se até as profundidades do céu.”
Que-Se-Move-Caminhando abaixou o braço para colocar erva aromática sobre o braseiro, detendo-se quatro vezes; a seguir purificou o Calumet, a bola, o crânio de bisontne e todos os apetrechos.
“Ó Wakan-Tanka, Avô – rezou o profeta – fiz uso da tua erva aromática e a fumaça estendeu-se por todo oUniverso. Quero erguer aqui o lugar de mistério, e o dia que se aproxima o verá: olhar-se-ão cara a cara. Ao fazer isto cumpro a tua vontade. Este é teu lugar, ó Wakan-Tanka! Estarás aqui conosco!”
Quando os primeiros raios penetraram na tenda, Que-Se-Move-Caminhando tomou o machado de pedra, ofereceu-o ao Grande Espírito, e golpeou o centro do lugar consagrado que havia escavado diante de si. Ofereceu o machado para o Oeste e golpeou deste lado, e do mesmo modo golpeou o solo nas outras três Regiões; e depois de dirigir o machado para a Terra golpeou de novo o centro.
Logo tomou a faca e retirou lentamente a terra do lugar que havia escavado, e a colocou no Leste; depois pegou um punhado desta terra purificada e, após oferecer um pouco ao Poder do Oeste, colocou-o a Oeste do lugar consagrado. Da mesma maneira, colocou terra nas outras três Direções e no centro. A seguir, com a terra que havia colocado no Leste, fez um montículo no centro e espalhou cuidadosamente por todo o lugar sagrado, nivelando finalmente com a pena de águia.
Que-Se-Move-Caminhando tomou então uma vara pontiaguda[95] e depois de oferecê-la ao Grande Espírito, traçou na terra fofa uma linha que ia de Leste a Oeste e, depois de oferecer o bastão aos céus, traçou outra linha de Norte a Sul. Finalmente, o altar foi terminado com duas linhas de tabaco sobre os dois caminhos desenhados na terra, e em continuação este tabaco foi tingido de vermelho. Assim, o centro deste altar representa o Universo e tudo o que existe nele, e em seu centro reside o Grande Espírito. Ele está realmente presente neste altar, e esta é a razão por que se faz com tanto cuidado e segundo ritos precisos.
Enquanto procedia deste modo, o profeta cantou o canto do Cachimbo sagrado – channon pawakan olowan – enquanto outro homem tocava o tambor rápida e suavemente:
Amigo, faz isto! Amigo, faz isto! Amigo, faz isto!
Se fizeres isto, teu Avô te verá.
Quando estiverers de pé no círculo sagrado,
Pensa em mim ao colocar o  tabaco no Cachimbo.
Se fizeres isto, Ele te dará tudo o que pedires.
Amigo, faz isto! Amigo, faz isto! Amigo, faz isto!
Se fizeres isto, teu Avô te verá.
Quando estiverers de pé no círculo sagrado,
Envia tua voz a Wakan-Tanka.
Se fizeres isto, ele te dará tudo o que desejas.
Amigo, faz isto! Amigo, faz isto! Amigo, faz isto!
Se fizeres isto, teu Avô te verá.
Quando estiverers de pé no círculo sagrado,
Com gritos e lágrimas, envia tua voz a Wakan-Tanka.
Se fizeres isto, terás tudo o que desejas.
Amigo, faz isto! Amigo, faz isto! Amigo, faz isto!
Se fizeres isto, teu Avô te verá.
Quando estiverers de pé no círculo sagrado,
Eleva tua mão a Wakan-Tanka
Faz isto, e Ele te concederá tudo o que desejas.
Existe um grande poder neste canto, pois nos foi dado pela Mulher-Bisonte-Branco quando nos trouxe o Cachimbo santo. Este canto é ainda praticado em nossos dias, e reanima meu coração sempre que o canto ou ouço.
Enquanto o profeta e grande sacerdote Que-Se-Move-Caminhando construía o altar cantando, uma jovem que teria um papel importante no rito foi introduzida na tenda por seu pai; depois de dar a volta à tenda no sentido do sol, colocou-se à esquerda do grande sacerdote. Seu nome era Wasu Sna Win, Mulher-Grito-Estridente, e era filha de Grande-Chifre-Ôco.
Que-Se-Move-Caminhando tomou a bola ritual feita com pelos e couro curtido de bisonte. Pintou-a de vermelho, a cor do mundo, e marcou as quatro Direções com quatro pontos azuis, a cor do céu; depois, pintou dois círculos azuis ao redor da bola, formando assim dois caminhos que unem as quatro Direções. Com estas linhas azuis, que circundavam totalmente a bola vermelha, os Céus e a Terra foram unidos nela, o que lhe conferiu um caráter sagrado.
O grandee sacerdote pôs erva aromática sobre a brasa e purificou o Calumet na fumaça; em seguida, ergueu o Calumet para o céu e rezou:
“Ó Wakan-Tanka, olhai este Calumet que vamos oferecer-te. Sabemos que Tu és o primeiro e que sempre fostes. Queremos caminhar pela via sagrada da vida com o Cachimbo de mistério que nos destes em uma mão e nossos filhos pela outra. Assim, as gerações virão e irão, e viverão segundo o mistério. Este é Teu dia sagrado, pois neste dia estabeleceremos um rito que completará o número de ritos do Calumet. Ó Wakan-Tanka, dirige teu olhar para nós enquanto Te oferecemos este Calumet. Neste dia os quatro Poderes do Universo estarão conosco. Ó Tu, Poder do lugar aonde se põe o sol, que controlas as águas, vamos oferecer este Calumet; ajudai-nos com teus dias benéficos! Ajudai-nos!”
O tabaco destinado ao Oeste e aos demais Poderes ou Direções foi colocado no cachimbo com estas ladainhas:
“Ó Tu, Poder de onde vive o gigante Wazia, que purificas com teu sopro branco; e Tu, ser alado que guardas este caminho reto: nós Te colocamos neste cachimbo; ajudai-nos, pois, com Teus dias vermelho e azul!”
“Ó Tu, Poder de onde nasce o sol; e Tu, Estrela da aurora, que separas as trevas da luz, dando sabedoria aos homens; contigo queremos oferecer este cachimbo; ajudai-nos com teus dias benéficos!”
“Ó Tu, Poder do lugar para o qual sempre olhamos, de onde as gerações vêm e vão; ó Tu, Cisne Branco que guardas o caminho do mistério; há um lugar para Ti neste Calumet que vamos oferecer ao Grande Espírito. Ajudai-nos com teus dois dias benéficos!”
“Ó Tu, Ser alado dos céus azulados; Tu que possuis asas poderosas e olhos que vêem todas as coisas: Tu vives nas profundezas dos céus; estás muito próximo do Grande Espírito. Vamos oferecer este Calumet; ajudai-nos com teus dias vermelho e azul!”
“Ó Tu, Avó, de quem provêm todas as coisas terrestres, e Tu, Mãe Terra, que trazes a todos os frutos e os alimentas: olhai-nos e escutai! Sobre Ti há um caminho sagrado pelo qual caminhamos pensando no mistério de todas as coisas. Sobre Ti será santificada esta virgem jovem e pura, Grito-Estridente, pois ela estará no centro da terra sustetntando a bola ritual. Ajudai-nos, ó Avó e Mãe com teus dois dias felizes, agora que oferecemos este Calumet ao Grande Espírito.”
Durante estas ladainhas o Calumet foi enchido e apoiado no pequeno secador azul; este era formado por três paus, dois dos quais estavam cravados no solo e sustentavam o terceiro
Que-Se-Move-Caminhando tomou então a bola e ofereceu-a à jovem dizendo-lhe que se pusesse de pé, segurando a bola na mão esquerda e levantando a direita para o céu. Então pôs-se a rezar, segurando o Cachimbo com a mão esquerda e erguendo a direita para o céu:
“Ó Avô Wakan-Tanka, Pai Wakan-Tanka, olhai-nos! Olhai Grito-Estridente que está aqui em pé sustentando o Universo em sua mão. Tudo o que se move sobre a terra alegra-se-á hoje. Os quatro Poderes do Universo, assim como os céus, estão na bola, Tudo isto, Grito-Estridente vê. A aurora do dia com a luz do Grande Espírito está agora nela. Ela vê suas gerações futuras e a árvore da vida no centro. Vê também o caminho sagrado que leva do lugar para onde sempre nos voltamos para o lugar aonde vive o gigante Wazia. Vê sua Avó e Mãe Terra e todos os seus parentes nas coisas que se movem e crescem. Ela está ali de pé com o Universo na mão, e ali todos os seus parentes são verdadeiramente Um. Ó Avô Wakan-Tanka, Pai Wakan-Tanka, é por Tua vontade que tua luz brilha nesta jovem. Hoje todos sentimos a Tua presença; sabemos que estás aqui conosco. Por isto, e por tudo o que nos destes, Te damos graças!”
O grande sacerdote colocou-se diante do crânio de bisonte e falou-lhe nestes termos:
“Espírito Huntka, hoje te deram uma cor que ponho sobbre ti, pois és parente do povo bípede e vivemos graças a ti. Quando eu puser esta pintura sagrada sobre ti, sairás com esta jovem e comunicarás tua graça a todos os seres.”
A seguir o profeta e grande sacerdote pintou o bisonte traçando uma linha vermelha ao redor de sua cabeça e uma linha reta que ia por entre os chifres até o meio de suas órbitas. Quando terminou foi sentar-se perto de Grito-Estridente e lhe disse:
“Grito-Estridente, estás sentada aqui de modo sagrado. Está bem, pois os espíritos dos bisontes vieram ver-te. Vou revelar-te, portanto, a visão que tive. Nela, eu me dirigia ao lugar onde vive o Gigante, e vi um grande povo em marcha. Tinham sua guarda, seus chefes e seus homens santos, exatamente como nós. Quando me aproximei detiveram-se, e um de seus chefes avançou até mim e disse:
“Homem, olhai estas pessoas, que são celestes. Vão ensinar a andar a uma jovem muito estimada, e em sua vida verás quatro idades.”
“Trouxeram uma menina de aspecto frágil, Sentou-se, e vi que era um bisonte fêmea jovem. Levantou-se e começou a andar, mas tropeçou e caiu. Sua tribo, que agora eu via como um povo de bisontes, reuniu-se ao seu redor, e um bisonte fêmea soprou sobbre ela, expelindo um hálito vermelho; e quando o pequeno bisonte fêmea tombou pela segunda vez, vi que havia se transformado num bisonte branco muito pequeno. Sua mãe continuou lançando seu sopro vermelho e a empurrou com o focinho; e quando o pequeno animal se levantou pela segunda vez, vi que de novo havia mudado e que agora já era um bisonte maior. Deitou-se, e quando se levantou havia se desenvolvido inteiramente; então fugiu para trás da colina, e todos os bisontes sopraram ruidosamente, a tal ponto que todo o Universo estremeceu. Percebi então uns bisontes nas quatro Regiões, mas transformaram-se em homens e vi a jovenzinha de pé no centro com uma bola na mão. Lançou a bola para o lugar onde o sol se põe, e todos se precipitaram e a devolveram ao centro. Do mesmo modo, a menina lançou a bola para o lugar aonde vive o Gigante, depois para o lugar de onde sai o sol e em seguida para o lugar para onde sempre nos voltamos, e cada vez a bola era devolvida para ela, no centro. Por último, lançou-a para o ar e no mesmo instante todos voltaram a se converter em bisontes, de modo que nenhum deles pode pegar a bola, porque os bisontes não têm mãos como nós. A memnina, que de novo se tornara um pequeno bisonte, me disse:
“Este Universo pertence, em verdade, aos homens, pois os bisontes quadrúpedes não podem jogar com a bola; por isso é necessário que tu a tomes e regresses para teu povo, e lhes expliques o que aqui te ensinamos.”
 Que-Se-Move-Caminhando explicou então o rito a Grito-Estridente e a todos os que estavam ali reunidos:
“O bisonte tem quatro idades, como me mostraram em minha visão. Grito-Estridente e o bisonte representado por este crânio sairão juntos desta tenda, e ela lançará a bola como vos expliquei em minha visão. Não esqueçais que esta bola é o mundo, e que é também nosso Pai Wakan-Tanka, pois o mundo – o Universo – é sua morada. Por isto, aquele que se apoderar da bola receberá uma grande bênção. Deveis tratar de pegá-la e Grito-Estridente será a jovem bisonte do centro. Agora ela irá sair e deter-se quatro vezes, e cada um de seus passos será um benefício para o povo.”
Toda a tribo havia se reunido ao redor da tenda para ouvir o que se dizia; todos haviam posto suas melhores roupas e estavam contentes. Grande-Chifre-Ôco, com o Calumet, foi o primeiro a sair da tenda; depois dele saiu sua filha Grito-Estridente, que levava a bola na mão direita; atrás vinha Que-Se-Move-Caminhando, que sustentava o crânio e soprava; ele empurrou quatro vezes Grito-Estridente com o crânio, e de cada vez saía deste uma fumarola vermelha. Enquanto isto, ele cantava um de seus cantos de mistério:
De uma maneira sagrada, de todas as direções,
Vêm para ver-te.
Grito-Estridente esteve sentada de um modo sagrado.
Todos vêm vê-la!
Finalmente, quando se detiveram pela quarta vez, Grande-Chifre-Ôco e Que-Se-Move-Caminhando colocaram-se de cada lado da jovem, os três voltados pera o lugar aonde o sol se põe. Grito-Estridente lançou a bola para o Oeste e um dos homens a pegou; depois de beijá-la e oferecê-la às seis Direções, devolveu-a para a menina que estava no centro. De igual modo, os três voltaram-se para o lugar onde vive o gigante Wazia, e a bola foi lançada nesta direção; todos se precipitaram para agarrá-la, e a bola foi devolvida ao centro. Continuando, foi lançada para o lugar de onde nasce o sol, e depois para o lugar para onde sempre olhamos; todos os que tiveram a sorte de agarrá-la receberam um cavalo ou algum presente valioso. Na quinta vez a bola foi lançada para cima e houve um grande tumulto, até que finalmente um homem pode pegá-la e devolvê-la ao centro.
Quando o lançamento da bola terminou, Grande-Chifre-Ôco ofereceu o Calumet ao profeta; este dirigiu o cano para o céu e começou a enviar uma voz ao Grande Espírito:
Hi-ey-hey-i-i!”, gritou quatro vezes. “Envio-te uma voz, ó Wakan-Tanka, a Ti que sempre fostes e que estás acima de tudo. Pai Wakan-Tanka, Tu és o chefe de todas as coisas; tudo é Teu, pois fostes Tu que criastes o universo. Pusestes nosso povo nesta grande ilha e nos destes a sabedoria que revela todas as coisas. Tu nos fizestes conhecer a lua e o sol, os quatro ventos e os quatro Poderes do Universo. Sabemos que as gerações vêm do lugar para onde olhamos, e que regressam a ele; e caminhamos santamente por este caminho reto e vermelho que leva ao lugar onde vive o Gigante. E, acima de tudo, sabemos que nossos quatro parentes mais próximos são nosso Avô e Pai Wakan-Tanka e nossa Avó e Mãe Maka, a Terra. Ó Wakan-Tanka, olhai hoje Mulher-Grito-Estridente, que tem na mão a bola que é a Terra. Ela tem na mão aquilo que dará força às gerações que amanhã herdarão a Terra que é Tua; e os passos que darão serão firmes, e serão libertadas das trevas da ignorância. Grito-Estridente está aqui de pé, sustentando teu Universo, e a partir deste dia a bola pertencerá às gerações futuras, e marcharão todos alegres tendo seus filhos pela mão. Ajudai-os a caminhar sem ignorância pelo caminho sagrado. Que os céus nos contemplem e tenham misericórdia de nós! Avô Wakan-Tanka, Pai Wakan-Tanka, que sempre conheçamos e cumpramos a Tua vontade! Que a queiramos e amemos! Ó Wakan-Tanka, tem misericórdia de mim para que meu povo viva!”
Então todos os presentes fumaram ou tocaram o Calumet; os homens que haviam tido a sorte de agarrar a bola sagrada receberam cavalos ou roupas de bisonte; todo o povo estava feliz e cheio de alegria, pois aquilo que Ptesan-Win, a Mulher-Bisonte-Branco, prometeu no princípio, estava realizado.
Eu, Alce negro, devo explicar agora algumas coisas deste rito que talvez sejam difíceis de entender. Deve-se observar que é uma menina e não uma pessoa adulta que está no centro e lança a bola. Assim deve ser, pois o Grande Espírito é eternamente jovem e puro, e assim é também esta criança que acaba de chegar de Wakan-Tanka: é pura e sem obscuridades.
A bola é lançada desde o centro às quatro Regiões, do mesmo modo que o Grande Espírito está em todas as Direções e em todos os rincões do mundo; e a bola cai sobre o povo, assim como o Poder do Grande Espírito é recebido por poucos homens, sobretudo nestes últimos tempos.
Sem dúvida compreende-se que o povgo quadrúpede dos bisontes não era capaz de jogar este jogo, e por esta razão deu-o aos bípedes. Isto é muito justo, pois, como disse anteriormente, de todas as criaturas do Universo, apenas os bípedes, se se purificam e se humilham, podem chegar a ser unos com Wakan-Tanka, ou podem conhecê-lo.
Nestes tristes tempos em que nosso povo se perdeu, corremos atrás da bola, e alguns sequer tentam agarrá-la; e choro quando penso nisto. Mas sei que a bola logo será agarrada, pois o fim acerca-se rapidamente, e então ela será devolvida ao centro, e com ela estará nosso povo. Minha oração é que assim seja; e é para contribuir para este restabelecimento da bola que eu quis fazer este livro.






[1]              Squaw: tratamento ofensivo dado aos índios norte-americanos pelos homens brancos
[2]              “Fala-se geralmente da religião dos índios como sendo um culto da Natureza e dos animais. Este termo é demasiado amplo e confuso. Uma investigação paciente e uma observação cuidados nos ensinam, ao contrário, que o índio não adora os objetos que invoca ou menciona em seus ritos. A terra, os quatro ventos, o sol, a lua e as estrelas, as pedras, a água, os diversos animais, todos são representantes de uma vida e de um poder misterioso...” (Alice C. Fletcher, The Elk Mistery Festival). “Uma coisa não é apenas o que é para os sentidos, mas também aquilo que ela representa. Os objetos, naturais ou artificiais, não são para o primitivo, como podem sê-lo para nós, “símbolos” arbitrários de uma dada realidade distinta e superior; são para ele a manifestação efetiva desta realaidade: a águia ou o leão, por exemplo, não são tanto um símbolo ou uma imagem do Sol, mas são de fato o Sol sob um de seus aspectos (porque a forma essencial é mais importante do que a espécie em que ela se manifesta); do mesmo modo, toda casa é o mundo em efígie e todo altar está situado no centro da terra; se este modo de considerar as coisas parece “inconcebível”, é apenas porque “nós” estamos mais interessados no que as coisas são do que naquilo que elas significam, mais interessados nos fatos do que nas idéias universais. Quando se diz que um grupo humano descende de um tótem, não existe nisto, como crêem os antropólogos,  um absurdo puro e simples; o que está expresso aí é que o grupo descende do Sol, o Progenitor e Prajapati de todos os seres, na forma particular com a qual, numa visão ou em sonhos, este se revelou ao antepassado fundador do clã. O mesmo raciocínio justifica a comida eucarística: o Pai-Progenitor é sacrificado e dividido por seus descendentes nas espécies da carne do animal sagrado: “Este é meu corpo, tomai e comei”. Deste modo, como disse Lévy-Bruhl a respeito dos símbolos deste gênero, “frequentemente estes não tem por função “representar” aos olhos seu objeto, mas permitir participar dele”, e que “se sua função essencial consiste em “representar”,  no pleno sentido desta palavra, a seres ou objetos invisíveis, em tornar efetiva sua presença, resulta daí que não consistem necessariamente em reproduçãoes ou imagens destes seres e destes objetos”. O objetivo da arte primitiva é inteiramente distinto das intenções estéticas ou decorativas do “artista” moderno (para quem os antigos sobrevivem apenas como “formas de arte” desprovidas de significado) e este objetivo explica seu caráter abstrato.” (Ananda K. Coomaraswamy, Figures of Speech or Figures of Though).
[3]              “O fogo de seu conselho ou de sua grande tenda-de-medicina é, como às vezes indicam suas canções, o mais antigo de tudo; vem a ser o que os filósofos gregos da escola de Pitágoras chamavam a Hestia que arde no centro do mundo. Misturando seu hálito com o fogo do tabaco sagrado, toma parte deste fogo central, e é este mesmo fogo que se eleva com sua fumaça até o zênite do Universo ou desce até o nadir tocando a terra, ou que se une aos quatro ventos que percorrem os lados de nosso habitáculo humano cheios da vida sussurrante dos altos céus” (Hartley Burt Alexander, L’Art et la Philosophie des Indiens de l’Amérique du Nord).
[4]              Segundo a mitologia iroquês, “Hino, o Espírito do trovão, é o guardião do Céu. Armado com um potente arco e com flechas de fogo (de raios), destrói todas as coisas nocivas. Sua esposa é o arco-íris (...) Oshadagea, a “Grande Águia do Orvalho”, está também a serviço de Hino. Habita no Céu do Oeste é leva um lago de orvalho entre suas espáduas. Quando os espíritos maléficos do fogo destróem sobre a terra toda espécie de verdor, Oshadagea alça vôo e, de suas asas abertas a umidade benéfica vai caindo gota a gota” (Max Fauconnet, Mythologie des deux Amériques). A associação do relâmpago com o “Pássaro do Trovão” é tanto mais notável na medida em que nas tradições mais diversas o relâmpago é assimilado à Revelação, como a chuva o é com a Graça. A águia pertence ao mesmo simbolismo universal do raio, donde a associação deste animal com São João, autor inspirado do Apocalipse e “filho do Trovão” (Boanerges).
[5]              Convém mencionar, a respeito, o fato de que, no mundo dos pele-vermelha, as Montanhas Rochosas – os penhascos – encontram-se a Oeste, e que delas nascem numerosos rios que fertilizam as planícies. “Quando uma visão vem da parte dos Seres do Trovão do Oeste, vem com terror e como um furacão; mas quando o furacão da visão passa, o mundo está mais verdse e mais feliz; pois cada vez que vem a este mundo a verdae revelada (the truth of vision), esta é como a c huva. O mundo fica mais feliz após o Terror do furacão” (Black Elk Speaks). A ascese responde à mesma conexão cósmica entre o “terror” e a “Graça”: “fazer medicina” é praticar, durante um período especialmente consagrado, o jejum, a ação de graças, a oração, a abnegação e mesmo a tortura voluntária (...) O objetivo é subjugar inteiramente as paixões da carne e aperfeiçoar o “si” espiritual. A abstinência corporal e a concentração mental em pensamentos elevados purifica o corpo e a alma (...) Então o espírito individual se torna  mais conforme ao Espírito da Grande Medicina que está sobre nós” (Woodon Leg – índio cheyenne – em seu livro A Warrior who fought Custer).
[6]              “Lembremos que, em diversas tradições, a imagem do Sol está também vinculada à da árvore, pois está representado nela como o fruto da Árvore do Mundo; ele abandona sua árvore no princípio de um ciclo e vem pousar nela ao final, de modo que a árvore é efetivamente uma “estação do Sol”. (René Guénon, L’Arbre du Monde)
[7]              O “Grande Espírito” é de fato o “Pai” ou o “Avô”; a “Terra” é a “Mãe que engendra todos os seres, a “única Mãe”. Os índios pawnies designam a Deus com o nome de “Pai” (Tirawa) e o distinguem do Espírito manifestado (Kawaharu); na mesma ordem de idéias – a assimilação simbólica do céu a Deus enquanto princípio paterno – os índios pés-pretos chamam o Grande Espírito de “Poder solar” (Natosiwa), mas sem jamais identificá-lo ao sol visível.
[8]              Este adjetivo não é um pleonasmo, pois a presença “natural” de Deus não é outra coisa que a Existência e suas diversas expressões ou formas, tais como, precisamente, os símbolos da Natureza, o Sol, a Lua, o Bisonte e outros que, para o índio, são wakan, sagrados. Citemos aqui a explicação, de um profundo simbolismo, dada por um chefe índio à etnóloga Alice Fletcher: “Tudo o que se move detém-se num lugar para fazer ali seu ninho, em outro para descansar de seu vôo. Um homem que caminha detém-se quando quer. É assim que a Divindade deteve-se. O sol, tão radiante e tão belo, é um dos lugares em que Ela se deteve. Ela esteve com a lua, com as estrelas e os ventos. As árvores, os animais, todos estão aonde Ela se deteve, e o índio pensa nestes lugares e envia a eles suas orações para alcançar o lugar em que Divindade se deteve, e então receberá ajuda e bençãos”.
[9]              Os “moinhos de oração” budistas pertencem a um simbolismo inversamente análogo ao do Calumet; enquanto que neste a Realidade divina se atualiza nas direções do espaço para as quais se dirigem, a partir do centro que é o estado de individuação, as aspirações espirituais do indivíduo, o “moinho de oração” encarnará a Realidade divina na forma da Palavra revelada, fixada no espaço pelas letras sagradas que a transcrevem, e abençoando, mediante sua rotação, o Universo em sua manifestação espacial. Segundo um Upanishad, “Brahma está no Norte, está no Sul, no Leste, no Oeste, no Zênite e no Nadir”. O Corão diz, no mesmo sentido: “Para onde voltares o olhar, ali encontrareis o rosto de Allah”.
[10]             Lembramos que o círculo tem também um significado dinâmico em relação com a cruz considerada segundo seu simbolismo estático; não falamos do quadrado, forma estática por excelência, pois este não intervém na perspectiva nômade de que se trata aqui. De fato, se a cruz representa, não uma tendência centrífuga, mas os pontos cardeais, o círculo por sua vez não indicará uma tendência concêntrica, mas o movimento circular dos “Quatro Ventos” ao redor do mundo, ou seja a “passagem da potência ao ato” dos quatro Princípios cósmicos; a mesma imagem está representada na swastika, na qual a cruz simples é evidentemente estática, enquanto seus braços são dinâmicos e “circulares”.
[11]             Esta perspectiva explica as grandes “revoluções nômades” que, partindo das estepes mongóis com ímpeto inaudito, projetavam varrer as cidades, lugares de corrupção e “petrificação”, da superfície da Terra; acrescerntemos que o anel de Gengis Khan levava a swastika, que aparece também com frequência na arte dos pele-vermelha. Quanto à atitude dos pele-vermelha frente à Natureza de um lado e às cidades do outro, Tácito assinala características análogas nos povos germânicos: “Consideram que o fato de encerrar entre muros e representar com aspecto humano aos deuses seria desagradar à sua magestade: eles lhes consagram bosques e selvas, e invocam, com os nomes de divindades, ao Mistério que não v~eem senão através do temor reverencial (...) É sabido que os germânicos não têm cidades e que nem sequer suportam que suas moradias toquem umas nas outras”. Marcelino, autor do século IV, refere que os germânicos contemplavam as cidades romanas com horror, como se fossem prisões ou sepulcros, e as abandonavam logo após tê-las tomado.
[12]             Como disse um “guardião do Calumet” a Epes Brown, Deus mostra uma bondade mantendo a natureza intacta: “Mesmo que tenhamos sido aplastrados de todas as maneiras possíveis pelo homem branco, ainda nos resta muito por quê dar graças ao Grande Espírito, pois, mesmo neste período de obscurecimento, sua obra na natureza permanece intacta e nos recorda continuamente Sua Presença divina”.
[13]             Cabe perguntar o que foi mais ignóbil, se os métodos desleais empregados durante o avanço para o Oeste, ou o tratamento inflingido aos índios depois de sua derrota: “A tentativa de suprimir a autoridade dos chefes e a ordem social indígena começou com um agente (do governo) que veio a Pine Ridge em 1879 (...) Segundo sua convicção sincera, o índio não poderia adaptar-se à sua nova situação senão aceitando criar gado e estabelecendo-se em terrenos destinados ao cultivo. Sem embargo, como todos os homens de sua época, o agente estimava também que isto deveria ser acompanhado do abandono completo dos costumes índios. Assim, quando os índios pareciam empenhar-se com demasiada tenacidade em seus costumes de acampar em grupos e de celebrar conselhos entre si, ou quando não se mostravam bastante solícitos em colaborar, retinha suas rações ou usava a polícia para impor a mudança à força (...) O soterramento da sociedade indígena e da autoridade dos chefes foi seguida mais tarde por regulamentos oficiais que proibiam as danças e os rituais, em uma palavra, os costumes pagãos (...) De fato, as crianças eram raptadas à força e enviadas às escolas do governo; seu cabelo era cortado, suas vestes índias trocadas; eram proibidos de falar sua própria língua (...) Os que persistiam em seu antigo modo de vida e os que fugiam e eram capturados ganhavam o cárcere. Na medida do possível, as crianças eram retidas na escola ano após ano para serem subtraídas à influ~encia das suas famílias” (Gordon McGregor, Warriors without Weapons).
[14]             “Caim, que matou a seu irmão Abel, o pastor, e construiu u ma cidade, prefigura a civilização moderna – civilização que foi descrita como uma “máquina mortífera desprovida de consciência e de ideal” (G. la Piana) , “nem humana, nem normal, nem cristã” (Eric Gill), e de fato, “uma anomalia, para não dizer uma monstruosidade” (René Guénon). Já se disse: “Os valores da vida declinam lentamente; o que fica é a aparência de uma civilização sem nenhuma das suas realidades” (ª N. Whitehead). Críticas parecidas existem às centenas. “A civilização moderna, por seu divórcio de todo e qualquer princípio, é comparável a um cadáver sem cabeça cujos últimos movimentos são convulsivos e insignificantes; não é, aliás, de suicídio, mas de assassinato que estamos falando” (Ananda K. Coomaraswamy, Am I my Brother’s Keeper?). “Nós os chamamos selvagens porque seus costumes diferem dos nossos, que consideramos como perfeição a urbanidade; eles pensam o mesmos dos seus... Por terem poucas necessidades dispõem de muito tempo livre para cultivar a alma mediante a conversação. Ele estima o nosso gênero laborioso de vida como serrvil e baixo, comparado com o seu; e a instrução segundo a qual nós nos valorizamos, eles a consideram frívola e vã” (Benjamin Franklin, Remarks concerning the Savages of North America)
[15]             Os lakota são sioux do ramo teton; Alce negro pertencia ao grupo oglala deste ramo. Os outros três ramos dos sioux propriamente ditos são os dakota do oeste, os santi e os yankton (nakotas). A família linguística dos sioux compreende muitas outras tribos, principalmente os crow, hidatsa e mandan,
[16]             Alce negro nos explicou que isto não deve ser interpretado simplesmente como um acontecimento temporal, mas também como uma verdade eterna: “Todo homem – disse-nos – que está apegado aos sentidos e às coisas do mundo e que, por isso, vive na ignorância, é devorado por serpentes,  suas próprias paixões”.
[17]             A tenda cerimonial dos sioux é construída com vinte e oito traves; uma delas é a “chave” que sustenta todas as demais e, segundo os sábios, representa o Grande Espírito que sustenta o Universo, que é representado pelo conjunto da tenda.
[18]             A circumabulação segundo o movimento do sol é de uso corrente entre os sioux; sem embargo, o movimento inverso é igualmente utilizado em certas ocasiões, para danças e ritos que se seguem ou que precedem uma catástrofe: este movimento, com efeito, é o dos Seres do Trovão que sempre atuam de modo contnrário às leis gerais da natureza, já que chegam de uma maneira terrível e muitas vezes trazem a destruição. A razão da marcha “solar” é explicada por Alce Negro nestes termos: “Não é o Sul a fonte da vida? E o ramo florido, não vem verdadeiramente dali? E o homem, não vem dali, avançando até o poente de sua vida? Não vem depois o frio do Norte, aonde estão os cabelos brancos? E logo, não chega, se ainda vive, a fontne de luz e de conhecimento que é oLeste? Não regressa, por último, ao lugar de onde veio, que é sua segunda infância, a fim de devolver sua vida a tudo o que é vivo, e sua carne à Terra de onde ela veio? Quanto mais penseis nisto, mais significados achareis.” (Black Elk Speaks)
[19]             Chifre Ôco Em Pé, como chefe da tribo, devia estar sentado no Oeste, o lugar de honra; dali se observa a porta, que está no Leste, de onde vem a luz, que simboliza a sabedoria; um chefe deve possuir sempre esta iluminação para poder guiar sua tribo de uma maneira wakan, “sagrada”, “conforme o mistério”.
[20]             Wakan-Tanka como “Avô” é o Grande Espírito na medida em que é independente da criação; ele é não-qualificado e não-determinado, no sentido da “Divindade” (Godhead) da doutrina cristã, o do Brahma-Nirguna hindu. Wakan-Tanka como “Pai” é o Grande-Espírito considerado em relação com a sua maniferstação, seja como Criador, como Conservador ou como Destruidor; ele é então o “Deus” (God) cristão ou o Brahma-Saguna hindu.
[21]             Também Maka, a Terra divide-se entre “Avó” e “Mãe”; esta é a Terra considerada como produtora de todas as coisas que crescem, portanto das coisas em ato, enquanto que a “Avó” é a substância de todas estas coisas, ou seja sua potencialidade. É a mesma distinção,  no fundo, que os escolásticos estabelecem entre natura naturata e natura naturans.
[22]             O bisonnte era para os índios o mais importante dos quadrúpedes, pois porporcionava-lhes alimento, roupas e mesmo suas casas, que eram feitas de peles curtidas. Como o bisonte continha em si todas estas coisas – e também por muitas outras razões – era um símbolo natural do Universo, ou seja da totalidade das formas manifestadas. Todas as coisas acham-se simbolicamente contidas neste animal: a terra e tudo o que cresce nela, todos o s animais e invclusive os “povos bípedes”; cada parte do bisonte representa, para o índio, uma das categorias da criação. Do mesmo modo, suas patas representam as quatro idades, que são uma condição da criação.
[23]             A Águia Pintada voa mais alto do que todas as demais criaturas, e porisso é considerada como a função reveladora de Wakan-Tanka. É uma ave solar, sua plumas são parecidas com os raios do sol; quando um índio leva uma destas plumas – não importa como, às vezes apenas na mão – ela representa, ou melhor, “é” a “Presença Real”. O índio que porta o cocar de penas de águia “converte-se” em águia, ou seja, identifica-se em princípio – ou virtualmente – com o resplendor de Wakan-Tanka. A Águia Pintada corresponde àquilo que a doutrina hindu chama de Buddhi, ou o Intelecto, princípio informal e transcendente de toda a manifestação; Buddhi é muitas vezes definido como o raio que emana diretamente de Atma, o Sol espiritual. Tudo isso permitirá compreender o que significa o canto – tantas vezes mal interpretado – da “Dança dos Espíritos”: “A Águia Pintada vem para levar-me ao leão” (Wambali Galeshka wanyan nihi youwe).
[24]             O “caminho vermelho” é o eixo que une o Norte e o Sul; é a via boa e reta, pois para os índios o Norte é a Pureza e o Sul é a Vida. Este “caminho vermelho” é assim similar à “via reta e estreita” do Cristianismo; é a linha vertical da cruz, ou também o çirat-el-mustaqin corânico. Por outro lado, existe, na cosmologia sioux, o caminho azul ou negro que liga o Leste ao Oeste, e que é a via do erro e da destruição; “Quem viaja por este caminho – diz Alce Negro – está desorientado, dominado pelos sentidos, e vive mais para si do que para o seu povo”. O “povo”  aqui deve ser entendido no sentido do “próximo”, como nos Evangelhos.
[25]             Quando o índio mata, na caça ou na guerra, deve realizar rituais de reconciliação, de purificação ou de dor, a fim de restabelecer o equilíbrio.
[26]             Os sete círculos estão dispostos circularmente por ordem de tamanho, de modo que o menor acha-se colocado ao lado do maior.
[27]             Segundo Alce negro, dois destes ritos já eram conhecidos dos sioux antes da chegada da Mulher celeste: os ritos purificadores da cabana de suar e os ritos encantatórios para receber uma visão; o ritual do Calumet foi acrescentados a estas duas técnicas espirituais.
[28]             Traduzimos a palavra sioux wanaghi como “alma” e não como “espírito”, como preferem alguns etnólogos; o primeiro termo, entendido em seu sentido cristão e escolástico, é mais exato,  pois o que é guardado e purificado neste rito é a totalidade dos elementos psíquicos do ser; estes elementos, embora estejam localizados em uma forma material – normalmente no redemoinho do cabelo – são na realidade de natureza sutil ou anímica, e intermediária entre o corpo material e o puro Espírito. Não devemos esquecer, por outro lado, que é o Espírito puro – a presença de Wakan-Tanka – que está no “centro” dos elemetnos sutis e materiais. A alma é assim retida, do modo como será descrito, num prolongamento do estado individual, a fim de que a parte sutil ou psíquica seja purificada e possa consumar-se uma libertação virtual. Isto é muito parecido com o estado que a doutrina católica chama de Purgatório.
[29]             “É bom – diz Alce negro – ter diante de nós algo que nos lembre a morte, pois isto nos ajuda a compreender a impermanência da vida terrena, e esta compreensão pode nos ajudar a prepararmos nossa própria morte. Aquele que está bem preparadosabe que ele não é nada perto de Wakan-Tanka, que é tudo; então ele conhece este Mundo divino, que é o único real”.
[30]             Segundo a mitologia dos sioux, no princípio do ciclo um bisonte foi colocado no Oeste para reter as águas que ameaçavam a Terra. A cada ano o bisonte perde um pelo, e em cada uma das idades cíclicas perde uma pata; quando todas as quatro patas e todos os pelos tenham desaparecido, as águas inudarão novamente o mundo e o ciclo terá chegado ao fim. O mesmo mito acha-se, em uma forma bastante concordante, na tradição hindu: cada pata do touro Dharma – a Lei divina – representa uma idade (yuga) do ciclo total (maha yuga), e em cada idade o touro retira uma pata. Ao longo das quatro idades, a espiritualidade obscurece progressivamente, até que o ciclo termina num cataclisma; então a espiritualidade primordial é restaurada e um novo ciclo começa. Tanto os pele-vermelha como os hindus admitem que, em nossa época, o bisonte – ou o touro –  sustenta-se em uma só pata e está quase sem pelos. Existem mitos análogos em outras tradições.
[31]             Mediante um decreto que revela tanta incompreensão quanto hostilidade, este rito de “custódia da alma” foi proibido pelo governo em 1890, e chegou-se inclusive a exigir que todas as almas guardadas pelos sioux fossem liberadas numa certa data fixada arbitrariamente por decreto. Para uma descrição deste rito tal como foi praticado em 1882, ver Alice C. Fletcher, The Shadow of Ghost Lodge, Cambridge, 1884).
[32]             O bisonte, que representa o Universo, contém todas as coisas, como o cavalo ashwamedha. A parte que corresponde ao gênero humano – e também à Mulher Bisonte Branco – é um pedaço de carne tirado do quarto dianteiro. Esta carne é para os índios – mutatis mutandis – o que a Sagrada Eucaristia é para os cristãos; o Calumet tem o mesmo papel, mas a analogia formal é menos direta.
[33]             A erva aromática – wachanga – que os índios preparam em forma de trança tem a mesma função ritual que o incenso nos diversos cultos do “velho mundo”.
[34]             “Elevamos as mãos quando rezamos, porque dependemos inteiramente do Grande Espírito; sua Mão generosa atende a todas as nossas necessidades. Depois golpeamos o solo porque somos miseráveis criaturas, vermes que se arrastam diante de sua Face” – palavras de um sioux pé-preto ao Padre de Smet (Life, Letters and Travels, F.P.Harper, New York, 1905)
[35]             Deste modo o cropo material ou grosseiro é restituído aos elementos de onde provém; ele é deixado esposto aos agentes do céu: os Quatro Ventos, as chuvas, os “seres alados” do ar,  cada qual, assim como a terra, absorvendo uma parte dele.
[36]             O caráter sagrado do parentesco é um dos aspectos mais importantes da civilização pele-vermelha: como a criação é essencialmente una, todas as suas partes estão relacionadas. Os índios dirigem-se uns aos outros,  não por seus nomes próprios, mas com um termo que expressa um grau de relação determinado mais pela idade do que pelos laços de sangue. Assim, um jovem dirige-se a uma pessoa de mais idade chamando-a de “pai” ou “mãe”, ou, se a diferença de idade é muito grande, “avô” e “avó”; por sua vez, os mais velhos dirigem-se aos mais novos chamando-os de “filho”, “filha”, “neto” ou “neta”. Para os índios, todos os graus de parentesco terrestre simbolizam o parentesco metafísico entre o homem e o Grande Espírito, ou entre o homem e a Terra, considerada como Princípio. Ao utilizar estes termos, os píndios invoca realmente o Princípio, ou ao menos recordam-no; o indivíduo, como todas as coisas, é para eles como  um reflexo obscurecido da Realidade principial.
[37]             Para o índio todo ato tem um sentido metafísico, e especialmente a caça, à qual consagra uma grande parte do seu tempo. A perseguição e morte de um animal são vistos pelos índios segundo dois aspectos aparentemente opostos, mas complementares: a morte simboliza a destruição da ignorância, mas também um contato com o Grande Espírito. Este último significado explica a importância ritual do rastreamento,  pois ao seguir a pista do animal, se está ritualmente – e portatnto virtualmente – no caminho que conduz a Wakan-Tanka; encontrar a presa, em meio às dificuldades e aos perigos, equivale a encontrar o Grande Espírito, que é para todos os povos tradicionais a finalidade da existência. “A doutrina dos vestigia pedis é comum aos ensinamentos grego, cristão, hindu, budista e islâmico e constitui a base da iconografia das “pegadas”” (Cf., por exemplo, Platão, Fedro, 253A, 266B; e Rumi, Mathnavi, c60-161). “Qual é o viático do sufi? São as pegadas. Persegue a caça como um caçador; vê o rastro do gamo almiscareiro e segue suas pegadas”. Mestre Eckhart fala da “alma que vai à caça ardente de sua presa, o Cristo”. As pegadas dos precursores podem ser seguidas até a Porta do Sol, Janua Coeli, o Final do Caminho; mais além não se pode seguir sua pista. O simbolismo do rastreamento, assim como o do “erro” (pecado) enquanto “falha em acertar o alvo” é um dos que nos chegaram das mais antigas civilizações de caçadores” (Anada Coomaraswamy, Hindouisme et Bouddhisme). Assinalemos também que cada arma de caça ou de guerra tem seu significado próprio. Assim o arco é especialmente sagrado para os índios, e as flechas são quase sempre decoradas com uma linha vermelha em zig-zag que representa o relâmpago , ou o Conhecimento que é lançado pelo Olho único de Wakinyan-Tanka, a grande Ave do Trovão do Oeste. As flechas assim consagradas são literalmente riscos de luz que dissipam as trevas; são assimiláveis ao raio – vajra – do Indra védico ou à espada dos cruzados cristãos, que era considerada comoum fragmento separado da “Cruz de luz”. A espada da “Guerra santa” islâmica tem o mesmo sentido.
[38]             O kinnikinnik, também chamado chanshasha, é um ingrediente do tabaco ritual dos sioux; é a casca interior seca do alisio vermelho ou do cornejo vermelho (Cornus stolonifera). Raramente é fumado só devido ao seu gosto amargo; é costume acrescentar uma parte igual de tabaco enrolado da tribo dos rees ou arikara, ao qual se adiciona uma pequena porção de raiz ou erva odorífica, como a raiz da Artemisia (Artemisia annua); a mistura dos ingredientes é sempre feita de modo ritual.
[39]             Com este gesto se pede perdão à alma do animal morto e assim o sopro vital que lhe foi tirado é ritualmente restituído mediante o Cachimbo sagrado.
[40]             O couro, identificado simbolicamente com o bisonte, é, como este, o Universo; em outros tempos, quando todos os índios possuíam uma dessas peles, usavam-nas não só para aquecer-se, mas também como suporte para a realização de sua identidade – enquanto homens – com o Universo, a Totalidade.
[41]             Os três pés desta trípode estão orientados para o Oeste, o Norte e o Leste; ela é deixada aberta para o Sul, direção que, para os sioux, é tomada pelos defuntos. O saquinho de mistério é pendurado deste lado, imediatamente abaixo da intersecção dos três bastões; este ponto central representa a Wakan-Tanka, para quem a alma irá partir logo, e deste ponto pende até o solo uma tira de couro que representa o caminho que conduz da terra a Wakan-Tanka. Este caminho que a alma precorre agora e a posição do saquinho indicam que a viagem está quase terminando.
[42]             Trata-se novamente do Bisonte mitológico e celeste, do Bisonte Fêmea Branco, manifestação do Logos revelador.
[43]             Os sioux designam deste modo os “dias” do “fim do mundo”, quando a lua se tornará vermelha e o sol azzul. Se admitimos, como em todas as doutrinas tradicionais, que o macrocosmo tem sua correspondência no microcosmo, existe um “fim do mundo” também para o ser individual, quando este recebe a iluminação de Wakan-Tanka; o ego – ou a ignorância – morre, e o ser vive da permanência do Espírito.
[44]             Quando o Calumet está cheio, todo o espaço – representado pelas oferendas aos Poderes das Seis direções – e todas as coisas criadas – figuradas pelas porçoes de tabaco – estão concentrados num único ponto: o fornilho ou “coração” do Cachimbo. Sendo o mundo, o macrocosmo, o Calumet é também o homem, o microcosmo; e o índio que enche o Cachimbo deve identificar-se com ele e assim atualizar não só o centro do mundo, mas também seu próprio centro. Isto implica que ele se “dilata” virtualmente, de modo que as seis Direções do espaço, que estavam no exterior, situam-se então no interior. Quando esta “dilatação” ou expansão se torna efetiva, o homem deixa de ser uma parte oufragmento e se torna total e santo; a ilusão da separativiodade é abolida. Para tornar mais clara esta identidade misteriosa entre o homem e o Cachimbo-altar, citaremos este canto dos índios osage:
                Esta gente tinha um Calumet do qual fizeram seu corpo.
                Ó Hon-ga, tenho um Calumet do qual fiz meu corpo;
                Se Tu também fizeres dele teu corpo, terás um corpo liberado do que causa morte.
                Vê a ligação do pescoço, fiz dela a ligação do meu próprio pescoço.
                Vê a boca do Calumet, fiz dela minha própria boca.
                Vê o lado direito do Calumet, fiz dele o lado direito do meu corpo.
                Vê a espinha do Calumet, fiz dela minha própria espinha.
                Vê o lado esquerdo do Calumet, fiz dele meu próprio lado esquerdo.
                Vê a cavidade do Calumet; fiz dela a cavidade do meu próprio corpo.
                Vê o que une o Cachimbo ao cano, fiz dele minha traquéia.
                Utilizai o Calumet como oferenda em vossas súplicas:
                Vossas preces serão prontamente atendidas.
                (Extraído de Francis La Flesche, War Ceremony and Peace Ceremony of the Osage Indians, Washington, 1939)
[45]             Uma vez que para o sioux a tenda – tipi – é uma imagem do mundo, o fogo mantido em seu centro representa – ou melhor, “é” – Wakan-Tanka “no mundo”. Par sublinhar o caráter ritual deste fogo central, assinalaremos que, na época em que os sioux ainda eram nômades, um homem designado como “guardião do fogo”  erguia sua tenda habitualmente no centro do acampamento circular. Quando o acampamento se deslocava, o guardião levava o fogo em um pequeno tronco de árvore, e quando o acampamento se estabelecia de novo, todas as tendas acendiam seus fogos neste fogo central. Este fogo nunca era apagado e só era substituído por outro – sempre de maneira ritual – apenas em caso de uma grande calamidade, ou quando todo o acampamento necessitasse de uma purificação completa.
[46]             Assinalemos que o ritual completo do Calumet consta de três fases distintas: a “purificação”, com a fumaça da erva ritual; a “expansão”, pela qual todo o Universo é transferido para o Calumet; e, por último, a “identidade” ou o sacrifício de tudo no fogo que representa Wakan-Tanka “no mundo”. Estas três fases são comuns, de uma forma ou de outra, a todos os métodos tradicionais e ortodoxos de realização espiritual.
[47]             Alce Negro aparentemente perdeu de vista o fato de que estava descrevendo um ritual e não sua instituição, e assim ele substitui o “guardião do Cachimbo” por Grande Chifre Ôco, retomando o relato inicial.
[48]             Cada vez que se fuma em um Calumet original, as cinzas são recolhidas para serem transportadas, em uma época determinada, a um alto cume, de onde são esparcidas aos quatro Ventos, de preferência o pico Harney nas Black Hills (Pa Sapa), que os sioux consideram como o centro do mundo.
[49]             Esta palavra, hokshichankiya, não é usada em linguagem corrente. Significa “semente primordial”, “raiz”, “fonte”, “influência espiritual”.
[50]             Para captar mais claramente o significado deste ato ritual devemos lembrar que o tipi é o Universo, o cosmo, enquanto que o espaço exterior ao tipi é simbolicamente o Infinito, Wakan-Tanka.
[51]             Segundo os sioux, a alma liberada viaja para o Sul, ao longo do “caminho do Espírito” – a Via Láctea – até um lugar em que o caminho se divide. Ali está sentada uma anciã chamada Maya Owichapaha, “a que empurra até a outra margem”, ou seja, a que julga as almas. Deixa os bons prosseguirem seu caminho pela estrada da direita, enquanto “empurra para a outra margem”, à esquerda, os maus. Os que vão pela direita chegam à união com Wakan-Tanka, enquanto que os que vão pela esquerda devem permanecer num estado condicionado até que estejam suficientemente purificados.
[52]             A grande “Ave do Trovão” do Oeste, Wakinyan-Tanka, é um dos aspectos mais importantes e profundos da doutrina sioux. Os índios a descrevem dizendo que ela vive “numa tenda localizada no cume de uma montanha situada no extremo do mundo aonde se põe o sol. Ela é múltipla, mas todos os seus duplos não são mais do que Um. Não tem forma, mas possui umas asas que possuem cada qual quatro articulações; não tem patas, mas possui garras imensas; não tem cabeça mas possui um bico imenso com fileiras de dentes como os dos lobos; sua voz é o estalo do trovão, e o bater de suas asas contra as nuvens é o fragor do trovão que retumba; tem um olho só, cujo olhar éo relâmpago. Num grande cedrosituado ao lado de sua tenda acha-se seu ninho, feito de ossos secos; ali acha-se um ôvo enorme do qual saem continuamente suas crias. Ela devora as crias e cada uma delas se converte em um de seus inumeráveis duplos. Voa ao longo de toda a extensão dos céus, escondida em um manto de nuvens. Suas funções consistem em livrar o mundo das impurezas e combater os monstros que sujam as águas. Seu símbolo é uma linha vermelha em zig-zag com uma forquilha num dos extremos”. (J.R. Walker, in Antrhropological Papers of the American Museum of Natural History, vol XVI, parte II, New York, 1917). Esta Ave do Trovão é na verdade Wakan-Tanka enquanto dispensador da Revelação, simbolizada pelo relâmpago; corresponde a Garuda, o grande pássaro – com um olho só – da tradição hindu, e ao Dragão chinês que cavalga as nuvens de tempestade e cuja voz é o trovão; como dispensador da Revelação, tem a mesma função do Arcanjo Gabriel nas religiões semíticas. É normal que a Ave do Trovão seja para os índios o Protetor do Cachimbo sagrado, pois este, como o relâmpago, é o eixo que une o céu e a terra.
[53]             A entrada na luz depois da permanência na escuridão da tenda de purificação representa a liberação com respeito ao Universo, ou também, do ponto de vista do microcosmo, a desaparição do ego; o ego e o mundo são “escuros”, não possuem mais do que uma realidade relativa ou ilusória, pois, em última instância, não existe outra realidade distinta de Wakan-Tanka, que é representado aqui pela luz do dia ou pelo espaço que rodeia a tenda. Esta libertação com respeito ao cosmo, ou esta desaparição da individualidade, está particularmente bem represntada no rito de Purificação dos índios osage: “Ao final da cerimônia, o chefe diz aos homens que segurem cada um uma das varas que formam a armação da pequena habitação, e quando todos o fizeram, ele exclama: ‘Não há outra saída, amigos meus!’, e juntos lançam a casinha pelos ares em direção ao sol poente” (Francis La Flesche, War and Peace ceremony of the Osage Indians, Washington, 1939)
[54]             Traduzimos wichasha wakan como “homem santo” ou “sacerdote”, em vez de “homem-medicina”, expressão incorreta empregada em muitas obras sobre os índios. O termo lakota que corresponde a “médico” ou “doutor”  é pejuta wichasha. Para esclarecer melhor as coisas, vamos reproduzir a explicação dada por Espada, um sioux ogalalla, a J.R. Walker: Wichasha wakan designa um sacerdote lakota da antiga religião; um homem-medicina se chama, entre os lakotas, pejuta wichaska. Os brancos designam nosso wichasha wakan como homem-medicina, o que é um erro, Ademais, dizem que um wichasha wakan “faz medicina” quando executa um ritual; isto também é um erro. Os lakotas só chamam a uma coisa “medicina” quando ela é usada para curar um enfermos ou um ferido, e então o termo certo é pejuta.” (Anthropological Papers of the American Museum of Natural History, vol XVI, parte II, pg. 152)
[55]             O índio identifica-se espiritualmente com a Qualidade cósmica – ou divina – do ser ou da coisa que aparece numa visão, seja um mamífero, um pássaro, um dos elementos ou qualquer aspecto da criação. Para que este “Poder” nunca o abandone, o índio leva sempre consigo alguma forma material que represente o animal ou objeto do qual recebeu seu “Poder”. Estes objetos foram muitas vezes chamados de “fetiches”, o que é impróprio, pois correspondem mais àquilo que o cristão chama de “anjo custódio”; para o índio, os animais e todas as coisas inanimadas são os “reflexos” – em uma forma material – dos Princípios divinos. O índio não se liga à forma como tal, mas ao Princípio que está de certo modo “contido” na forma.
[56]             O próprio Alce Negro recebeu sua grande visão quando tinha apenas nove anos.
[57]             Esta humilhação através da qual o índio se torna “menor que a menor formiga”, como disse um dia Alce Negro, equivale àquilo que os cristãos chamam de “humildade” ou “pobreza”; é o faqr do sufismo ou o balya do hinduismo; esta pobreza é a condição dos seres que se dão conta de que, em comparação com o Princípio, sua própria individualidade não é nada.
[58]             Quando um homem vai implorar uma visão, é costume que seus parentes e amigos se reunam em sua tenda para cantar e rezar durante os dias e as noites que dura sua lamentação. Ao menos uma vez por noite, todos saem e olham em silêncio para o lugar em que se acha o implorante; observam com atenção qualquer sinal que possa aparecer nesta direção; um relâmpago, por exemplo, símbolo da Revelação, é considerado um sinal particularmente favorável.
[59]             A mensagem “Esteja atento!” expressa muito bem um estado de espírito característico dos índios; implica que em todo ato, em toda coisa, em todo momento, o Grande Espírito está presente, e que a pessoa deve estar contínua e intensamente “atento” à Presença divina. Esta presença de Wakan-Tanka – e a consciência que se tenha dela – é aquilo que os santos cristãos denominaram “a vida no momento”, o “eterno agora”, ou aquilo que o Sufismo designa pela palavra waqt, “instante”, ou seja, “instantaneidade espiritual”. Em lakota, esta presença é denominada Taku Shkanshkan, ou simplesmente Shkan na linguagem dos homens santos. Citemos a respeito a conversação entre um sacerdote lakota e J.R. Walker: “O que é que faz cairem as estrelas? Taku Shkanshkan... faz cair a tudo o que cai e mover-se tudo o que move. Quando faz um movimento, que é que o faz mover-se? Shkan. Quando se lança um flecha com o arco, o que a faz deslocar-se pelo ar? Shkan... Taku Shkanshkan dá o espírito ao arco e o faz lançar a flecha. Que é que faz a fumaça subir? Taku Shkanshkan. O que faz com que a água corra num rio? Taku Shkanshkan. O que faz com que as nuvens se movam por cima do muno? Taku Shkanshkan. Alguns lakotas me disseram que este Taku Shkanshkan é o Céu; é assim? Sim. Taku Shkanshkan é um Espírito, e o azul do Céu é tudo o que a Humanidade pode ver d’Ele, mas ele está em toda parte. Taku Shkanshkan é Wakan-Tanka? Sim” (Anthropological Papers of the American Museum of National History, vol. XVII, pg. 11)
[60]             Em nossos dias,  alguns lakota recorrem a um ritual diferente do que descrevi neste capítulo. As mulheres estabelecem o recinto sagrado no cume da montanha preparando primeiro um leito de sálvia disposto na direção Leste-Oeste e que tem uma pedra como almofada; são colocadas como oferendas flâmulas azuis, brancas, vermelhas e amarelas nas quatro esquinas, que formam um retângulo ao redor do leito. Nestas estacas são penduradas como oferendas bolsas de tabaco. Três grandes cordões, cada um com centenas de saquinhos de tabaco atados, são presos às varas, do Sul para o Oeste, do Oeste para o Norte, do Norte para o Leste, deixando aberto o lado Sul; então é cravado no solo, em frente à almofada de pedra, um bastão de madeira de cerejeira que representa a árvore da vida e que tem uma pluma de águia na ponta. O implorante, que jejuou todo o dia e que acaba de realizar os ritos de purificação, acerca-se então do lugar; ele e todas as pessoas presentes voltam-se para cada uma das quatro Direções e oferecem uma oração apropriada para cada qual. A seguir o imploramte entra no recinto sagrado, com seu Calumet e vestido tão somente com sua tanga e uma manta; a cadeia de saquinhos de tabaco é fechada atrás de si e ele começa a lamentar-se, pedindo ajuda ao Grande Espírito; e permanece neste recinto, orando sem cessar, durante um período que vai de um a quatro dias. Não é raro que lhe sejam atados mãos, braços e pés, o que é uma forma de sacrifício muito penosa, pois mesmo no verão as noites são muito frias no Estado de Dakota.
[61]             No Atharva Veda Sanhita das Escrituras hindus, o significado simbólico da árvore do mundo é idêntico ao que tem a árvore para os lakota: como afirma Ananda Coomaraswamy, “a árvore do mundo, cujo tronco é também uma coluna do sol, o poste do sacrifício ou o axis mundi que se eleva sobre o altar que existe no umbigo da terra, penetra pela porta do mundo e se desenvolve por cima do teto do mundo”, como o “ramo não-existente (não-manifestado) que nossos defuntos conhecem como o Supremo” (X, 7-21).
[62]             Alce negro explicou-nos um dia que a árvore sagrada destinada à dança do sol é capturada como um inimigo pela seguinte razão: “Pouco tempo depois que nos foi entregue o Cachimbo sagrado, saímos à caça e troxemos a cabeleira de um inimigo; fixamos esta cabeleira no Cachimbo para assim guardar uma alma em nosso centro, a fim de que os bípedes, junto com os demais seres do Universo, estivessem representados no Cachimbo. Em memória deste fato colhemos a árvore como se fosse um inimigo, pois, como vêem, a árvore também vai agora para o nosso centro como o fez a alma do inimigo morto. Os nossos não matam jamais como o fazem os brancos; para nós era uma coisa sagrada e honrávamos grandemente os mortos em batalha, inclusive quando eram inimigos”. Cremos que não é demais complementar este relato de Alce Negro com esta explicação de origem omaha: “Meu filho viu uma árvore maravilhosa. As Aves do Trovão vão e vêm ao redor desta árvore, e formam uma estrela de fogo que deixa atrás de si quatro caminhos de erva queimada que se estendem até os Quatro Ventos. Quando as Aves do Trovão pousam nesta árvore, esta incendeia-se e o fogo sobe até a cúspide. A árvore arde, mas ninguém pode ver o fogo, salvo à noite. A tribo deliberou sobre o que isto poderia significar, e os chefes disseram: “Vamos buscá-la; coloquem seus apetrechos e preparem-se como se fossem para o combate”. Os homens despiram-se, pintaram-se, colocaram seus adornos e foram em busca da árvore, que erguia-se junto a um lago. Precipitaram-se sobre ela como se a atacassem, como se fosse um guerreiro inimigo. Todos correram. O primeiro a alcançar a árvore foi um ponca, que a golpeou como se golpeasse um inimigo. Derrubaram a árvore, e quatro homens em fila a levaram sobre os ombros até a povoação.” (Fletcher & La Flesche, The Omaha Tribe)
[63]             Jalal ed-Din Rumi diz em seu Matnawi, falando dos derviches e do combate espiritual: “Existem homens que dançam e giram no campo de batalha; neles, músicos tocam pandeiros: em seu êxtase, os mares explodem em espuma. Vocês não o vêem, mas, para seus ouvidos, até as folhas das árvores batem palmas... é preciso possuir um ouvido espiritual, não o do corpo.”
[64]             Esta lança ou vara servia para “contar golpes”, ou seja, para tocar o inimigo – não para matá-lo – o que era considerado uma grande proeza.
[65]             O ato espiritual não concerne, propriamente falando, ao indivíduo, mas ao estado de existência do qual o ser específico é uma expressão, e a fortiori à Divindade da qual ele é como que um reflexo. Um ato implica sempre a consciência da distinção entre o “eu” e o “próximo”, e, num grau mais elevado, entre “nós” e o Si”.
[66]             Trata-se da tira de couro cru que vai da árvore ao peito do dançarino.
[67]             Esta brasa deve ter sido tirada de um fogo que esteve ardendo durante toda a noite anterior, e que arderá todas as noites enquanto durar a dança. Está situado a Leste, fora do pavilhão, e, segundo Alce Negro, mantém-se aceso para recordar a eterna presença de Wakan-Tanka. Durante o dia o fogo não é necessário,  pois o sol está aí para recordar esta presença.
[68]             Os sioux também pintam de negro o rosto por ocasião da dança que se executa quando regressam do caminho da guerra, pois, como dizia Alce Negro, “sabemos que indo pelo caminho da guerra fazemos algo de mau, e desejamos ocultar nossos rostos de Wakan-Tanka”.
[69]             Isto é evidente, pois o índio devia suportar os piores sofrimentos sem uma queixa. Todos os povos guerreiros são estóicos, mas nenhum superou os pele-vermelhas no domínio da dor. As lágrimas em questão tem a finalidade de apiedar a Divindade.
[70]             Repetimos que o ego identifica-se sempre com a coletividade. “Que todos os seres sejam felizes”, diz a ladainha budista. Por outro lado, não custa lembrar que a vida “sagrada” e a conformidade ao “mistério” coincidem com a obtenção da salvação.
[71]             A Bisonte celeste.
[72]             A “nação” ou o “povo” identificam-se em última instância com o “gênero humano”. Contando em milênios, a divisão em “tribos” é relativamente tardia; é o que os sioux expressam dizendo que todas as tribos indígenas separaram-se deles no transcurso dos séculos, que eles são a humanidade primitiva; outros índios afirmam a mesma coisa de suas respectivas tribos.
[73]             Os quatro passos representam para os sioux as quatro idades ou fases de um ciclo; a idade da pedra, a idade do arco, a idade do fogo e a idade do cachimbo; a pedra, o arco, o fogo e o cachimbo constituem cada qual o prinipal suporte da idade respectiva. As quatro idades podem também referir-se, do ponto de vista microcósmico, às quatro fases da vida humana, do nascimento até a morte.
[74]             Os arikara pertencem à família linguística dos caddo; são, portanto, parentes próximos dos pawnies.
[75]             Não devemos esquecer que o bisonte é como uma encarnação animal do princípio Terra, cuja manifestação material é a terra visível; mas a Terra-Princípio é evidentemente divina, e é esta a razão pela qual a Mulher Bisonte vem do Céu. Terra e Céu – as Regiões visíveis – têm seu protótipo eterno no Divino; estes protótipos formam uma dupla, não se confundem; mas Wakan-Tanka, em sua unidade suprema, supera esta dualidade. O fato de que o Calumet  foi trazido por um Bisonte fêmea celeste significa que aquele é um dom da dupla Terra-Céu: a matéria do Calumet  indica a Terra, e a fumaça, o Céu. 
[76]             E cujos protótipos acham-se incluídos no princípio Terra.
[77]             Esta definição é notável, pois contém a doutrina do altar primordial, do santuário enquanto tal.
[78]             A analogia com o simbolismo cosmológico dos povos mais antigos aparece aqui de modo impressionante; recordemos por exemplo o freixo Ygdrasil, o eixo do m undo na mitologia germânica.
[79]             O continente pele-vermelha, a terra que se estende entre dois oceanos.
[80]             É sasbido que tocar um inimigo sem matá-lo, com uma vara adornada de plumas, era considerado uma façanha particularmentte meritória.
[81]             O papel da pintura ritual encon tra-se também no Hinduismo; na maior parte das civilizações a pintura é substituída pela indumentária, como no caso da vestimenta ocre do sannyasi ou o hábito monacal.
[82]             Também esta obscuridade é simbólica: indica a passagem mais ou menos “caótica” de um plano de consciência a outro.
[83]             Por transposição espiritual: o “eu” se torna uno com o próximo. O simbolismo iniciático desta passagem é especialmente explícito.
[84]             Como a fórmula de cortesia árabe: “Minha casa é tua casa” (dari darek)
[85]             Os índios nos falaram de uma mulher que,  por descuido, entrou um dia na tenda de um “homem de mistério” e com sua presença tirou o poder não só do homem, como também da “bolsa de medicina” deste, que estava pendurada no tipi. Fatos análogos, ainda que menos extremados – o caso citado parece ser muito especial – encontram-se na maioria das tradições; existem incompatibilidades de correntes sutis que devem ser levadas em conta, mas que podem ser neutralizadas por outras influências. Trata-se, em todo caso, do plano psíquico e não do plano espiritual; não obstante, o espiritual pode depender em certa medida – não em si, mas em sua manifestação – de veículos psíquicos, o que explica as prescrições de purificação que se encontram nas mais diversas religiões.
[86]             Devemos recordar que os índios, como todos os povos de espírito ainda primordial, vêem, em primeiro lugar, não o plano de existência que limita, mas a essência que atravessa todos os planos de existência; o bisonte visível “é” o Bisonte-Princípio, ma apenas em um dado nível de manifestação cósmica. Os pele-vermelhas não “adoram”, evidentemente, o animal bisonte, posto que o matam; entretanto, jamais esquecem o “gênio” da espécie, no sentido mais elevado do termo.
[87]             Como o índio, o bisonte vive em grandes rebanhos uma vida nômade.
[88]             Com estas palabras Bisonte Lento declara expressamente que a impureza menstrual não atinge o indivíduo.
[89]             O vento do Oeste, as tormentas.
[90]             O vento Norte purifica pelo frio.
[91]             O pássaro carpinteiro de cabeça vermelha, cujo nome corrente é kankecha; este pássaro vive no Leste, de onde vem a luz.
[92]             Sabe-se que a cabeça de um Calumet tem a forma de um T invertido, pelo menos entre os sioux e a maior parte das outras tribos; por isso, a parte que ultrapassa o fornilho – que é o “altar” – é consniderado como o “pé” do Calumet, enquanto que a boquilha é sua “boca”.
[93]             Os bisontes esfregam-se nas árvores e deixam nelas pelos que os índios recolhem piedosamente.
[94]             Aqui a árvore é que é divinizada porque une a terra ao céu, enquanto que o bisonte é considerado neste caso sob seu aspecto puramente terrestre. Os índios consideram todas as coisas da natureza alternativamente desde o ponto de vista da essência universal, que vincula as coisas ao Divino, e desde a acidentalidade existencial, que as limita no nível da sua aparência imediata. Este modo de ver as coisas encontra-se em todas as tradições de caráter mais ou menos primordial ou mitológico que conservam ainda uma vitalidade suficiente.
[95]             Os sioux tem o costume de traçar os caminhos rituais com a vara que serve para carregar o Cachimbo e que, por esta razão, é um auxiliar do fogo e um instrumento indispensável para o sacrifício. Os índios dizem que representa a vontade do homem, posto que né necessária uma iniciativa por parte do homem para que possa fazer um sacrifício ou receber a sabedoria de Wakan-Tanka.

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