APRESENTAÇÃO
A Viagem ao Mestre do Poder,
que é bastante conhecido em árabe sob o título Risalat-ul-anwar fima yumnah sahib al-khlwa min al-asrar (“Tratado
sobre as luzes dos segredos contados àquele que empreende o retiro”) de
Muhiyddin Ibn ul-‘Arabi (1165-1240) foi originalmente publicado em Konya, na
Turquia. Existem atualmente cerca de setenta cópias do manuscrito nas
bibliotecas do mundo, sob diferentes títulos tais como “O livro da viagem para
a realidade” ou “O livro do retiro”. Foram feitas duas edições publicadas em
árabe: a do Cairo, em 1914, e a de Hiderabad, em 1948. Esta é a primeira
tradução do texto no Ocidente.
Não existe nenhuma edição crítica da Viagem ao Mestre do Poder. Eu consultei também as edições impressas
do texto da cópia parcial do manuscrito, datada do século XVII e que pertence à
Coleção Garret da Universidade de Princeton. Entretanto, a tradução segue em
boa parte uma terceira versão impressa que acompanha o comentário.
A propósito deste comentário, al-Isfar
‘an risalat-ul-anear fima yatajalla li ahl il-dhikr min al-asrar
(“Revelação do Tratado sobre os segredos revelados ao povo do Dhikr”), de Abd
al-Karim al-Jili (1365-1408), dispomos de muito poucas informações. Ele não é
datado; as fontes bibliográficas não fazem referência senão a dois manuscritos.
Ele existe também sob o título de Sharh
ul-khalwt il-mutlag (“Explicação do retiro absoluto”). A única versão que
pude encontrar foi publicada em árabe em Damasco em 1929. Os fragmentos
publicados aqui representam igualmente a primeira tradução ocidental do
comentário.
A Viagem ao Mestre do Poder
de Ibn ‘Arabi foi escrita, como o demonstra o texto, em resposta às questões de
um amigo cujo nome não é mencionado e que era também um santo e um mestre sufi.
Embora tenha sido autor de numerosos volumes, Ibn ‘Arabi afirmava não ter
escrito nada que não obedecesse a uma ordem divina. Nesta carta, ele trata das
condições, das experiências e dos resultados da aniquilação em Deus.
A Viagem ao Mestre do Poder
da khalwa, o retiro espiritual,
prática sufi avançada e perigosa que visa alcançar a presença de Deus por meio
de uma renúncia total ao mundo. A khalwa
não é de modo algum uma técnica que pode ser aplicada por qualquer um. Ibn
‘Arabi declara explicitamente que em razão das fantasias criadas pela
imaginação, não se pode tentá-la sem estar sob a supervisão de um sheikh, ou de alguém que tenha adquirido
o controle sobre si mesmo. Além disso, ele indica que perseguir as experiências
da khalwa sem estar perfeitamente em
dia com todos os deveres e práticas do Islã é um convite à autodestruição.
Enfim, cada etapa da ascensão que ele descreve é uma tentação, e sucumbir a ela
traz a calamidade e a perdição. Apenas aquele cujo desejo de Deus é
irresistível e que não se satisfaz com nada mais está a salvo em tais
circunstâncias.
A prática da khalwa foi
iniciada pelo Profeta Maomé (que a paz e a bênção de Allah estejam com ele),
que tinha o costume de retirar-se para uma gruta no monte Hira para se dedicar
à contemplação. A ascensão espiritual que escala todos os graus da existência e
leva à presença de Deus, tal como a descreve Ibn ‘Arabi, possui igualmente um
precedente profético. Em sua grande viagem noturna e sua ascensão, Maomé foi
transportado – em um instante que valia 70.000 anos – de Meca a Jerusalém e daí
através dos céus, à Presença do Deus Amado, e daí retornou.
Segundo uma tradição, Abu-Jahl, um dos maiores inimigos e perseguidores
do Profeta, ouviu falar deste episódio e foi ver Maomé. O Profeta o recebeu.
- Levante um pé do chão, disse
Abu-Jahl.
O Profeta obedeceu.
- Agora levante o outro.
- Não posso, respondeu o
Profeta.
- E como pode você, se é
incapaz de levantar os dois pés do chão, afirmar que foi até o sétimo céu na
noite passada?
- Ah, mas eu não disse que fui, respondeu o Profeta. Eu disse que
fui transportado.
Conforme observa Abd al-Karim al-Jili em seu comentário, o dom desta
ascensão, embora atribuído sem nenhuma preparação prévia aos profetas, deve ser
merecido. Seu preço é a perfeição das artes interiores e exteriores do Islã, ou
seja a submissão a Deus. Sem o conhecimento adquirido graças à Lei sagrada e à
batalha interior com o ego, não pode haver nenhuma contemplação, conforme
escreve Ibn ‘Arabi:
“A revelação corresponde à extensão e à forma do conhecimento. O
conhecimento d’Ele, que vem d’Ele, que você adquire no momento de sua luta e de
seu treinamento, você o realizará na contemplação. Mas o que você contemplará
d’Ele terá a forma do conhecimento que você tiver adquirido até então. Você não
avançará nada senão pela transferência do seu conhecimento (‘ilm) para a visão (ayn); e a forma é uma.”
A Viagem ao Mestre do Poder,
no espaço de uma carta breve e extremamente condensada, toca em diversos temas
que só em outras obras de Ibn ‘Arabi foram desenvolvidos completamente. Abd
al-Karim al-Jili observa isto claramente em seu comentário, e esclarece outras
declarações igualmente obscuras, por seu conhecimento e sua familiaridade
profunda com a obra de Ibn ‘Arabi.. Os comentários que ele produziu sobre
algumas passagens mais difíceis foram anexadas sob a forma de notas.
Chegaram a nós numerosas histórias em que aparece Ibn ‘Arabi., muitas
das quais relatadas na introdução. Ao contrário, sabemos bem pouco sobre
al-Jili. Este homem tão respeitado, que morreu entre 1408 e 1417, era também um
sheikh, descendente do grande santo
Abdul-Qadir Jilani. Ele foi o principal sistematizador e um dos maiores
intérpretes da obra de Ibn ‘Arabi. Seu livro, al-Insan al-kamil (“O homem Universal”), que explica os
ensinamentos de Ibn ‘Arabi quanto à estrutura da realidade e da perfeição
humana , é considerado como uma obra prima da literatura sufi.
Já se disse que o objeto do sufismo é a produção de santos. No Islã, os
santos são chamados awliya, os
“amigos de Deus”. O Corão descreve seu
estado: “Os amigos de Allah – nenhum medo cai sobre eles, e eles não se afligem[1]”. Os awliya
são aqueles nos quais não subsiste mais nenhum traço de existência falsa. Deus
os guarda em uma submissão perfeita, de tal modo que suas ações são Suas ações.
Um hadith qudsi diz: “Nada me é mais
agradável, dentre os meios que meu servidor tem para se aproximar de mim, do
que o culto ao qual eu o submeti; e meu servidor não cessa de se aproximar de
mim com devoções voluntárias contínuas até que eu o ame; e quando eu o amo eu
me torno o ouvido com o qual ele escuta, o olho com o qual ele vê, a mão com a
qual ele segura e o pé com o qual ele
caminha.” Graças aos santos, cuja vida testemunha este estado, a humanidade
pode compreender a obra para a qual ela foi criada, e reconhecer que o
verdadeiro ser humano é o representante de Deus. Por uma promessa divina, o
mundo não se verá desprovido deles até o final dos tempos.
Gostaria de mencionar a assistência que me foi dada pelo professor Roy
Parviz Mottahedeh da universidade de Princeton e pelo senhor Simon Bryquer de
Nova Iorque pela revisão do manuscrito. Glória a Allah pela generosidade do
al-Hajj Sheikh Muzafferuddin Ozak Effendi al-Jerrahi al-Halveti de Istambul,
cujas palavras oferecem uma edificante introdução ao textp de Ibn ‘Arabi, e
pelo apoio inestimável do al-Hajj Sheikh Tosun Bekir Bayrak Effendi al-Jerrahi
al-Haveti de Nova Iorque. Quero dedicar esta tradução a meus pais.
Todos os erros contidos neste livro são meus; a Deus pertencem os
elogios. Possa o leitor encontrar proveito na sua leitura.
Rabia Terri Harris
INTRODUÇÃO
Este tratado, que encerra mistérios divinos, é um guia edificante para
aqueles que buscam a verdade e a visão. Aqueles que desejam ser íntimos de
Deus, que deambulam pelos jardins à procura dos botões de rosa do saber, devem
ler este livro e aprender a ser. Pelo
fato de que o autor desta obra é Ibn 'Arabi, quem quer que folheie estas
páginas conversará com ele.
A influência espiritual milagrosa deste santo, no oriente e no
ocidente, é impressionante. Ele ensinou o tawhid,
a Unidade, à humanidade, e continuará a esclarecê-la até o dia do Juízo Final.
Seus ensinamentos sobre as maravilhas da Criação e seu conhecimento miraculoso
– expressos em obras como al-Futuhat
al-Makkiyya (“As revelações [ou as conquistas
espirituais] de Meca”), Fuçuç
al-Hikam (“As gemas da sabedoria dos Profetas”) e em mais de 500 obras –
testemunham sua importância.
Ele possuía tanto inimigos como partidários fervorosos, pessoas de
visão religiosa e estreita, que ficavam ofuscados como morcegos pela luz do
santo. Alguns se tornavam inimigos de quem sequer conheciam, que não podiam
conhecer nem compreender. Mesmo os que o denominaram aç-sheikh al-akbar (“o maior dos Mestres”) estavam entre os que não
o compreendiam. Alguns dentre eles chegaram a detestá-lo. Mas o santo não se
contentou em perdoar essas pessoas fracas; ele declarou que intercederia por
elas no dia do Juízo, pois era preciso apiedar-se delas por aquilo que elas não
não haviam podido compreender. Do mesmo modo como o ourives conhece o valor do
ouro, o sábio conhece o valor do saber e
o homem perfeito e onisciente perdoa aos ignorantes sua indigência. Esta
compaixão é uma prova suficiente da perfeição do santo.
Um dia, um dos adversários de Ibn 'Arabi caiu doente. O sheikh foi visitá-lo. Ele bateu à porta
e pediu à esposa do doente que anunciasse que desejava apresentar-lhe seus
votos de melhora. A mulher foi levar o recado e voltou para dizer-lhe que seu
marido não desejava vê-lo. O sheikh
não tinha nada a fazer naquela casa, informou ela. O lugar que lhe convinha era
a igreja. O sheikh agradeceu à
senhora e declarou que um homem bom como seu esposo certamente não o enviaria a
um lugar ruim, e que assim ele se conformaria com sua sugestão. Então, após
haver feito uma oração pela saúde e bem estar do doente, o sheikh dirigiu-se à igreja.
Lá chegando, ele descalçou suas sandálias, entrou com humilde cortesia,
e dirigiu-se lentamente e sem ruído até um canto, onde sentou-se. O padre
estava começando um sermão que Ibn 'Arabi escutou com a maior atenção. No
decurso do sermão, o sheikh teve o
sentimento de que o padre estava caluniando Jesus atribuindo-lhe a afirmação de
ser Filho de Deus. O sheikh levantou-se e emitiu cortesmente uma objeção a esta
declaração. “Ó venerável padre, começou ele, o santo Jesus não disse isto. Ao
contrário, ele anunciou a boa nova da chegada do Profeta Ahmad (Maomé, a paz e
a bênção estejam com ele).”
O padre negou que Jesus houvesse dito isto. O debate prolongou-se
indefinidamente. Para terminar o sheikh,
indicando a imagem de Jesus sobre a parede da igreja, disse ao padre que
interrogasse o próprio Jesus. Ele responderia e decidiria de uma vez por todas.
O padre protestou com veemência, argumentando que uma imagem não poderia
responder. “Esta imagem pode falar, insistiu o sheikh, pois Deus, que fez Jesus falar quando ainda era um bebê nos
braços da Virgem Maria, é também capaz de fazer falar a uma imagem.” A
congregação que acompanhava o debate animou-se ouvindo isto. O padre foi
constrangido a voltar-se para a imagem de Jesus e dirigir-se a ela: “Ó Filho de
Deus! Mostre-nos o caminho da verdade. Diga-nos qual de nós dois está certo.”
Pela vontade de Deus, a imagem falou e respondeu: “Eu não sou filho de Deus, eu
sou seu mensageiro, e depois de mim virá o último dos profetas, o santo Ahmad;
eu o anunciei, e repito esta boa nova agora.”
Diante deste milagre, toda a congregação aceitou o Islã e, com Ibn
'Arabi à frente, partiu para a mesquita. Quando eles passavam diante da casa do
doente, ele foi visto, com os olhos esbugalhados de estupefação, espiando pela
janela este curioso espetáculo. O santo deteve-se, bendisse e agradeceu ao
homem que o havia insultado, dizendo-lhe que ele ainda merecia ser louvado pela
salvação de todas aquelas pessoas.
Poucas pessoas entenderam o santo enquanto ele era vivo. Um dia ele
subiu a montanha perto de Damasco, onde ele pregava, e disse: “Povo de Damasco,
o deus que vocês adoram está aos meus pés.”
Ouvindo estas palavras, eles o aprisionaram e prepararam-se para
matá-lo. De fato, segundo uma tradição, logo após este incidente ele foi
martirizado. Segundo uma outra tradição, um sheikh desta época, Abul-Hasan,
convenceu-o a suavizar suas palavras e salvou-o da morte com o seguinte
diálogo:
-
Como pode você ter pretendido aprisionar alguém, disse ele a Ibn
'Arabi, graças a quem o mundo dos anjos chegou ao mundo mortal?
-
Minhas palavras foram pronunciadas, respondeu o sheikh, na embriaguez do estado que você descreveu.
E no entanto as palavras e as obras de Ibn 'Arabi provocaram uma reação
tão violenta em seu tempo, que após sua morte seu túmulo foi destruído sem
deixar traço.
Uma de suas declarações mais enigmáticas foi: “Quando o S penetrar em
SH (as letras sin e shin do alfabeto árabe) o túmulo de
Muhyiddin será descoberto.” Quando o nono sultão otomano, Selim II, conquistou
Damasco em 1516, ele soube desta declaração pela boca de um erudito
contemporâneo chamado Zembilli Ali
Efendi, que a interpretou como sendo uma profecia, que significava: “Quando
Selim (culo nome começa pela letra sin)
entrar na cidade de Sham (nome árabe de Damasco, que começa pela letra shin), ele descobrirá o túmulo de Ibn
'Arabi. Graças aos teólogos da cidade, o sultão Selim descobriu o local aonde o
santo havia declarado: “o deus que vocês adoram está aos meus pés” e o mandou
escavar. Primeiro ele descobriu um tesouro em peças de ouro, que revelava o que
o santo havia querido dizer. E nas proximidades, ele encontrou o túmulo deste.
Com o tesouro, o sultão fez construir um magnífico mausoléu, que é ao mesmo
tempo uma mesquita, no mesmo lugar da tumba. Ele existe ainda hoje em Damasco,
num lugar chamado Salihiyya, nas encostas do monte Qasiyun.
Muhibbudin al-Tabari*[2]
atribui a seguinte história à sua mãe:
“Muhiyddin Ibn 'Arabi estava se preparando para pronunciar um sermão na
Kaaba, sobre o significado da própria Kaaba. Em meu foro interior, eu no estava
de acordo com seu ensinamento. Nesta mesma noite eu vi o sheikh em sonhos. Neste sonho, Fakhruddin al-Razi, um dos maiores
teólogos da época, vinha em Peregrinação com grande pompa e aparato, e
caminhava ao redor da Kaaba. Seus olhos pousaram sobre um homem humilde em
trajes de peregrino que ali se achava tranqüilamente sentado. Ele disse para si
mesmo: “Que insolência a deste homem, que não se levanta em presença de um
grande homem como eu!” Um pouco mais tarde, ele foi pregar na Grande Mesquita
de Meca. Toda a população da cidade santa estava reunida para ouvir as palavras
do célebre erudito que era autor da mais importante interpretação do Corão.
Fakhruddin al-Razi subiu lentamente até seu posto de orador e começou: “Ó
grande congregação de muçulmanos...” e nada mais saiu de sua boca. Parecia que
todo o conteúdo de seu espírito havia evaporado. Ele começou a transpirar de
tão embaraçado. Ele desculpou-se, dizendo que não se sentia bem, e deixou a
cátedra sem uma palavra. Quando ele chegou à sua casa, ele protestou e rezou,
dizendo: “Ó Senhor, que fiz eu para que me punisse assim, colocando em tal
embaraço?” Nesta mesma noite foi-lhe mostrado em sonhos o homem a quem ele
havia censurado por não se colocar em pé na sua presença. Era Muhiyddin Ibn
'Arabi. Durante muitos dias ele o buscou. Quando havia perdido toda esperança
de encontrá-lo, bateram à sua porta, e Ibn 'Arabi estava lá, em pé, diante dele.
Ele pediu perdão, e seu saber lhe foi restituído.”
Em época recente produziu-se o caso de um outro erudito, Ibrahim
Haleri, imã da Mesquita Fatih de Istambul, homem extremamente ortodoxo que se
opunha aos ensinamentos religiosos de Ibn 'Arabi. Um dia, durante uma discussão
apaixonada com pessoas que defendiam o sheikh,
ele bateu o pé, dizendo: “Se eu estivesse lá, ter-lhe-ia aberto a cabeça
assim!” Ao fazer isto, ele tropeçou num enorme buraco[3].
A ferida não se curou jamais, e acabou provocando sua morte.
Segundo uma tradição oral, um dia em Damasco Ibn 'Arabi viu um belo
jovem judeu. Enquanto o observava, o jovem veio até ele e o chamou de “pai”. A
partir deste dia o jovem não o deixou mais. Seu pai procurou-o, encontrou-o com
o sheikh, e quis levá-lo consigo. O
jovem não o reconheceu e afirmou que o sheikh
era seu pai. Este, estupefato, disse ao sheikh
que ele poderia apresentar centenas de testemunhas para provar que o rapaz era
seu filho. O sheikh respondeu: “O
rapaz diz que é meu filho, então sou seu pai.” O pai foi aos tribunais para
reclamar seu filho, a apresentou sua centena de testemunhas. Quando o juiz
perguntou ao sheikh se o menino era
dele, o sheikh exigiu que esta
pergunta fosse feita ao menino. Este declarou que o sheikh era seu pai. Então o sheikh
perguntou às testemunhas se este menino judeu havia estudado o Corão. “Como uma
criança judia poderia ter aprendido o Corão?”, responderam eles. O juiz pediu
ao jovem que recitasse o Corão, o que ele fez com grande desenvoltura. Então o
sheikh perguntou às testemunhas se o rapaz conhecia as tradições do Profeta
Maomé. Eles responderam: “Como um menino judeu poderia conhecer tal ciência,
que não corresponde ao seu modo de vida?” O juiz interrogou minuciosamente o
menino a respeito das tradições proféticas. O jovem respondeu a cada uma das
suas questões corretamente e de maneira completa. Os judeus que assistiram a
este milagre aceitaram o Islã.
A história a seguir está incluída no final das “Revelações de Meca”: na
atmosfera ortodoxa de uma escola de direito canônico, um professor ensinava a
raiz da palavra que significa “herético” (zindiq)
Alguns estudantes maliciosos se perguntavam se isto não viria da palavra zenuddin, que quer dizer “mulher
religiosa” Um outro estudante disse: “Zindiq
é alguém como Muhiyddin Ibn 'Arabi, não é, Mestre?” O professor respondeu
brevemente: “Sim.”
Era o Ramadã, o mês do jejum, e o professor havia convidado os
estudantes à sua casa para quebrarem juntos o jejum. Sentados, enquanto
aguardavam o começo da refeição, os mesmos estudantes maliciosos brincaram com
o Mestre: “Se você não puder nos revelar o nome do homem mais santo de nossa
época , não quebraremos o jejum com sua comida.” O professor respondeu que o
maior sheikh de todos os tempos era
Muhiyddin Ibn 'Arabi. Os estudantes protestaram, dizendo que um pouco mais
cedo, na escola, quando eles deram Ibn 'Arabi como exemplo de herético, ele
aprovara. E agora ele afirmava que o sheikh
era o maior santo de todos os da sua época! O professor respondeu, com um leve
sorriso nos lábios: “Na escola estávamos entre pessoas da ortodoxia, eruditos,
legistas; aqui, estamos entre pessoas do amor.”
Sheikh Muzzafer Ozak al-Jerrahi
ESBOÇO BIOGRÁFICO
O pai de Ibn 'Arabi, Ali Ibn Muhammad Ibn 'Arabi, partiu para Bagdá
numa idade avançada. Seu desejo mais caro era o de deixar um filho depois de si
quando ele morresse. Ele foi ver o grande sheikh
Muhiyddin Abdul Qadir Jilani e pediu-lhe que rezasse a Deus para que lhe
concedesse o dom de um filho. O sheikh
retirou-se e entrou em profunda contemplação. Quando voltou, ele informou Ali Ibn Muhammad: “Eu contemplei o mundo dos
segredos e me foi revelado que você não terá nenhum descendente, portanto não
se esgote tentando.”
Embora desencorajado, o ancião não queria desistir. Ele suplicou e
insistiu: “Ó santo, Deus certamente escutará sua preces. Eu lhe peço que
intervenha por mim nesta quastão.”
O sheikh Abdul Qadir Jilani retirou-se mais uma vez e caiu em profunda
contemplação. Depois de algum tempo ele voltou e disse que, embora Ali Ibn Muhammad não estivesse destinado a
ter descendente, ele próprio estava destinado a ter um filho. O ancião gostaria
de ter o futuro filho do santo?
Seu visitante aceitou com alegria. Os dois homens colocaram-se de
costas um para o outro e entrelaçaram os braços. Ali Ibn Muhammad contou mais tarde:
“Quando me vi costas contra costas com o santo Abdul Qadir Jilani, senti uma coisa quente
descer pelo meu pescoço até os rins. Algum tempo depois chegou-me um filho, a
quem eu chamei de Muhiyddin, conforme
Abdul Qadir Jilani me havia ordenado.”
O nome completo de Muhiyddin Ibn ‘Arabi era Abu-Bakr Muhammad Ibn ‘Ali
Ibn Muhhamad al-Hatimi al-Ta’i al-Andalusi. Ele recebeu diversos títulos: aç-sheikh al-akbar, o maior dos Mestres;
khatim al-awliya’al-Muhaqmmadi, o
Selo dos Santos de Maomé; aç-sheikh
al-a’zam, o mestre exaltado; qutb
al-‘arifin, o Eixo do verdadeiro saber;
umam ul-munahiyuddin, o chefe religioso dos convertidos; rahbar ul-‘alam, o Guia do mundo; e
outros ainda. Em seus ensinamentos, Ibn Jawziya comentou: “Ibn ‘Arabi era
versado em alquimia, e conhecia os segredos do maior dos Nomes de Deus, que se
oculta no Corão.” O sheikh Sa’duddin Hamawi* disse: “Muhiyddin é um oceano de
saber que não tem margens.”
Muhiyddin Ibn ‘Arabi nasceu na cidade de Múrcia na então província
muçulmana de Andaluzia, na Espanha, numa segunda-feira, dia 17 do mês santo do
Ramadan do ano 560 da Hégira (28 de julho de 1165). Seu pai era um sufi muito
renomado e respeitado. Na sua primeira infância, ele foi reconhecido e educado
por duas santas, Yasmin de Marchena e Fátima de Córdoba. Com a idade de oito
anos, Ibn ‘Arabi e sua família instalaram-se em Sevilha, onde ele estudou com
Abu-Muhammad e Ibn Bashkuwal, dois dos maiores teólogos e eruditos em matéria
de tradições proféticas da época. Quando Ibn ‘Arabi tinha dezenove anos, um
amigo de seu pai, o célebre filósofo místico Ibn Rushd (que conhecemos no
Ocidente como Averroes) expressou o desejo de encontrá-lo. Emocionado pelo
intenso poder que sentiu ao trocar não mais do que poucas palavras com o jovem,
o erudito falou a seu pai em termos que Ibn ‘Arabi recorda da seguinte maneira:
“Ele agradeceu a Deus por ter podido encontrar alguém que havia entrado
em retiro espiritual em estado de ignorância e saído dele como jamais se vira
antes. Ele disse: “Trata-se de um caso cuja possibilidade eu afirmei, sem nunca
ter encontrado ninguém que o tivesse experimentado. Glória seja dada a Deus por
eu ter vivido numa época em que existe um mestre com tamanha experiência, um
dos que abrem os ferrolhos de Suas portas. Glória seja dada a Deus que me
concedeu o dom de ver um deles em pessoa.”
Como foi o rumor daquilo que “Deus havia revelado ao jovem em seu
retiro espiritual” que atraiu a atenção de Ibn Rushd, ficamos sabendo que Ibn
‘Arabi teve sua primeira experiência sobre o objeto deste livro, a ascensão
mística na khalwa, quando não tinha
sequer vinte anos. Entretanto, ele não escreveu a Viagem ao Mestre do Poder senão mais de vinte anos depois.
Em 1201, com a idade de trinta e seis anos, Ibn ‘Arabi cumpriu sua
Peregrinação a Meca. Nestya época ele orava a Deus para que lhe revelasse tudo
o que estava reservado aos mundos material e espiritual. Deus, aceitando este
pedido, abriu-lhe o mundo dos seus segredos. A este respeito, Ibn ‘Arabi declararia
mais tarde: “Eu sei o nome e a genealogia de cada qutb que virá até o dia do Juízo. Mas como opor-se ao que está
escrito carrega consigo a destruição certa, por compaixão com as futuras
gerações eu decidi dissimular este conhecimento.”
Após sua peregrinação, Ibn ‘Arabi viajou ao Egito, Iraque, Damasco,
deteve-se em Konya, na Turquia, aonde ele encontrou Sadruddin Qunyawi, um jovem
erudito sufi, cuja mãe desposou. O jovem Sadruddin tornou-se um de seus
discípulos mais próximos, a quem ele enriqueceu com um grande conhecimento
material e espiritual. A Viagem ao Mestre
do Poder, publicada em Konya pelo autor três anos após sua peregrinação,
provavelmente está endereçada a este sábio homem.
No ano de 1223, Ibn ‘Arabi retornou a Damasco, aonde encontrou, visível
e invisivelmente, numerosos outros mestres sufis. Lá ele passou o resto de sua
vida; acredita-se que tenha falecido em 1240.
Ibn ‘Arabi menciona três encontros com Khidr, o guia secreto dos sufis.
Ele relata seu primeiro encontro da seguinte maneira:
“Eu estava no início de minha educação. Meu sheikh, Abul-Hassan, distribuía seu conhecimento a qualquer um.
Durante todo um dia eu não parei de expressar meu desacordo com isto. Quando
odeixei e voltei para casa, encontrei um ser de grande beleza que me fez um
sinal e disse: “O que seu mestre falou é certo – aceite-o.” Eu corri ao meu sheikh e contei-lhe o que havia
acontecido. Ele me disse que havia rezado a fim de que Khidr fosse ao meu
encontro e confirmasse seu ensinamento. Ouvindo isto, eu decidi de uma vez por
todas jamais entrar novamente em desacordo com ele.”
De seu segundo encontro, ele diz:
“Eu me encontrava no porto da Tunísia a bordo de um navio. Uma noite
não pude conciliar o sono e subi à ponte para dar um passeio. Eu contemplava
uma magnífica lua cheia, quando de repente vi um grande homem de barbas brancas
vir em minha direção, caminhando sobre a água ao lado do barco. Fiquei
estupefato. Ele chegou até onde eu estava e colocou seu pé direito sobre seu pé
esquerdo, à guisa de saudação. Vi que seus pés não estavam molhados. Ele
saudou-me, disse algumas palavras e seguiu em direção à cidade de Benares, que
se achava sobre uma colina próxima. Para meu grande espanto ele percorria
quatro quilômetros a cada passada. De longe eu o escutava a recitar o dhikr com sua bela voz. No dia seguinte
fui à cidade, onde encontrei um velho sheikh
que me perguntou como havia sido meu serão com Khidr, e sobre quê havíamos
conversado.”
O terceiro encontro de Ibn ‘Arabi com Khidr, segundo uma tradição, teve
lugar numa pequena mesquita espanhola, às margens do Atlântico, onde Ibn ‘Arabi
fazia suas orações do meio-dia. Uma pessoa que o acompanhava negava a
existência de milagres. Havia mais alguns viajantes na mesquita. Subitamente
ele viu a mesma pessoa que havia encontrado antes na Tunísia. O grande homem de
barbas brancas pegou seu tapete de orações de palha no nicho, elevou-se a
quatro metros de altura no ar, e fez suas preces nesta posição. Mais tarde ele
voltou para dizer a Ibn ‘Arabi que havia feito isto como demonstração em vista
do céptico que havia contestado a existência de milagres.
Quando Ibn ‘Arabi atingiu uma ponto acima do nível do sheikh Abul-Hassam al-Uryani, ele
escreveu uma carta ao seu professor, dizendo: “Volte-se para mim de todo seu
coração e pergunte-me o que quiser, e eu me voltarei para você de todo meu
coração e lhe responderei.”
Ao cabo de certo tempo, ele recebeu uma carta de seu professor, que
dizia:
“Eu sonhei que todos os santos estavam reunidos em círculo com dois
homens no centro. Um deles era Abul-Hassan Ibn Siban. Eu não podia ver o rosto
do segundo, Depois ouvi uma voz que dizia que o outro homem no centro era
andaluz, e que um deles seria o qutb
de nosso tempo. Um verso do Corão foi cantado, os dois homens prosternaram-se,
e a voz disse: “Aquele que primeiro levantar a cabeça será o qutb.” O andaluz levantou a cabeça
primeiro. Eu fiz à voz uma pergunta sem letras nem palavras. A voz respondeu
soprando em minha direção. Este sopro continha a resposta a todas as minhas
questões. Todos os santos reunidos em círculo, e inclusive eu, entramos em
êxtase sob o efeito deste sopro. Eu então vi o rosto do andaluz no centro do
círculo. Era você, ó Muhiyddin Ibn ‘Arabi.”
Tosun Bayrak al-Jerrahi
VIAGEM AO MESTRE DO PODER
EM NOME DE DEUS,
O
CLEMENTE E MISERICORDIOSO
Glória a Deus, Dispensador e Criador da Razão, Ordenador e Instituidor
da Transmissão. A Ele pertencem a graça e o poder; dele emanam o poder e a
força. Não existe outro Deus senão Ele, Senhor do Trono gigantesco. E que a paz
e a bênção de Deus estejam com aquele sobre quem estão estabelecidos os sinais
da conduta, aquele que Ele enviou com a luz com qual Ele guia – ou perde – a
quem Ele deseja; e que eles estejam com sua nobre família e seus companheiros
puros, até o dia do Juízo.
Responderei à sua pergunta, ó nobre amigo e companheiro íntimo, a
respeito da Viagem ao Mestre do poder (seja Ele exaltado), da chegada à Sua
presença e do retorno, graças a Ele, para a Sua criação, sem separação. É claro
que não existe outra coisa na existência senão Deus Altíssimo, seus atributos e
suas ações. Tudo é Ele, d’Ele e para Ele. Se ele pudesse ser oculto e separado
do mundo pelo espaço de um piscar de olhos, o mundo desapareceria no mesmo
instante; ele só permanece porque Ele o preserva e guarda. Entretanto, Sua
aparição em Sua luz é tão intensa que ele subjuga nossas percepções, de tal
modo que chamamos à Sua manifestação um véu.
Descreverei em primeiro lugar (que Allah lhe conceda o sucesso) a
natureza da viagem que leva a Ele, depois como devemos proceder quando
chegarmos e nos apresentarmos diante d’Ele, e o que Ele dirá quando tomarmos
lugar no tapete de Sua visão. Depois a natureza do retorno à presença (hadra) de Sua ações: com Ele e para Ele.
E descreverei a aniquilação n’Ele, que é um estado que precede ao estado de
retorno[4].
Saiba, ó nobre irmão, que embora os caminhos sejam numerosos, apenas um
é o caminho da verdade. Aqueles que buscam este caminho diferem entre si.
Embora não haja senão um caminho que conduza à verdade, o aspecto que ele
apresenta varia segundo as diferentes condições daqueles que o procuram:
conforme o equilíbrio ou o desequilíbrio de sua constituição, a persistência ou
a ausência de motivação, a força ou a fraqueza de sua natureza espiritual, a
retidão ou o desvio de sua aspiração, a salubridade ou a indisposição de sua
relação quanto ao objetivo. Alguns possuem todas as características favoráveis,
enquanto outros só possuem algumas. Assim vemos que a constituição, por
exemplo, pode ser um entrave para um, ainda que sua luta espiritual seja nobre
e boa. E este princípio aplica-se a todos os casos.
Antes de mais nada devo explicar o que são as matrizes dos Reinos, e o
que implicam aqui estes reinos[5].
Reinos (mawatin) é o termo que
designa os planos do momento durante o qual as coisas vêm à existência e onde a
experiência se produz verdadeiramente. É indispensável que você saiba o que a
verdade espera de você em cada Reino, a fim de que você chegue a ele sem
hesitação nem resistência.
Os Reinos, embora numerosos, derivam todos de seis Reinos principais[6].
O primeiro Reino é a existência antes da existência, quando nos foi colocada a
questão: “Não sou Eu teu Senhor?” Nossa existência física nos fez deixar este
Reino[7].
O segundo é o mundo em que estamos presentemente[8].
O terceiro é o Intervalo que atravessamos depois da pequena e da grande morte[9].
O quarto Reino é a Ressurreição sobre a terra que desperta e o retorno à
condição original[10].
O quinto Reino é o Jardim e o Fogo[11].
O sexto Reino é a duna de areia ao redor do Jardim[12].
E em cada um desses Reinos existem lugares que são Reinos no interior de
Reinos, e apreendê-los todos ultrapassa o poder humano[13].
Na nossa situação, não temos necessidade mais do que da explicação do
Reino deste mundo, que é o lugar da responsabilidade, da prova e do trabalho.
Saiba que depois que Deus criou os seres humanos e os fez surgir do
nada, eles não cessaram de viajar. Eles não têm nenhum direito de repousar de
sua viagem a não ser no Jardim do Fogo, e cada Jardim e cada Fogo estão na
medida de cada pessoa. Todo ser racional deve saber que a viagem está fundamentada no trabalho e nas dificuldades
da vida, sobre a aflição e as provas, e a aceitação de perigos e medos aterrorizantes.
É impossível ao viajante achar um conforto em sua viagem, uma segurança ou uma
alegria intactas. Pois as águas têm sabores diferentes e os tempos variam, e o
caráter das pessoas em cada lugar que nos detemos difere do caráter daquelas da
etapa seguinte. O viajante deve aprender em cada situação aquilo que é útil.
Ele é o companheiro de todos pelo espaço de uma noite ou de uma hora, depois
ele se vai. Como alguém nesta situação poderia esperar facilidades?
Não frisamos isto como uma resposta àqueles que se ligam ao conforto
neste mundo, que lutam para adquiri-lo e consagram suas forças em ajuntar as
pedrinhas deste mundo: não invejamos aqueles que se engajam nesta atividade
desprezível, nem lhes damos nossa atenção. Mas nós o oferecemos como conselho a
qualquer um que deseje atingir a felicidade da contemplação e conhecê-la em
outra parte que não no Reino que lhe é próprio, e alcançar o estado de fana', a aniquilação, para conhecê-la em
outro lugar que não o seu, e a todo aquele que aspira fundir-se no Real por
meio da obliteração dos mundos[14].
Entre nós, os mestres desprezam esta [ambição], pois isto faz perder
tempo e faltar ao seu nível [verdadeiro], e associa o Reino ao que não lhe é
pertinente[15].
Pois o mundo é a prisão do rei, não sua morada; e quem quer que procure o rei
em sua prisão, sem tê-la deixado inteiramente, viola a lei da justa conduta (adab), e algo de essencial lhe escapa.
Pois o tempo de fana’ na verdade é o
tempo da renúncia a uma estação mais alta do que aquela que é alcançada.
A revelação corresponde à extensão e à forma do conhecimento. Quanto ao
conhecimento d’Ele, que você obtém graças a Ele no momento da sua luta e do seu
treinamento, você terá consciência deste ulteriormente na contemplação. Mas o
que você contemplará d’Ele terá a forma dom conhecimento que você tiver
adquirido até então. Você não avançará nada a não ser pela transferência do
saber (‘ilm) à visão (‘ayn); e a forma é uma.
[Na contemplação] você obtém aquilo que você deveria ter deixado em seu
Reino próprio, e que é a Morada do Outro Mundo na qual não existe o trabalho.
Será melhor para você que, no momento de sua contemplação, você se veja
engajado exteriormente a trabalhar e, ao mesmo tempo, interiormente recebendo o
conhecimento de Deus. Você acrescentará então a virtude e a beleza de sua
natureza espiritual, que busca seu Senhor no conhecimento recebido dele pelas
obras e pela piedade, bem como as das sua natureza pessoal, que busca o
paraíso. Pois a natureza humana sutil é ressuscitada sob a forma do conhecimento,
e os corpos são ressuscitados sob a forma de suas obras, seja em beleza, seja
em pesandez.
Será assim até seu último suspiro, quando você será separado do mundo
da obrigação e do Reino dos caminhos ascendentes e do desenvolvimento
progressivo. E só neste momento você recolherá o fruto que você semeou.
Se você entendeu isto, então saiba (que Deus nos conceda o sucesso, a
nós dois) que se você deseja entrar na presença da Verdade e receber d’Ele sem
intermediário, e se você deseja ser íntimo d’Ele, isto não acontecerá enquanto
seu coração reconhecer alguma supremacia que não a d’Ele. Pois você pertence a
quem exerce autoridade sobre você; quanto a isto, não há dúvida. E o isolamento
se tornará inevitável para você, e você preferirá o retiro (khalwa)[16]
à sociedade humana, pois a extensão da distância que o separa da criação é a
extensão da distância que o aproxima de Deus – exterior e interiormente.
Seu primeiro dever é o de buscar o conhecimento que regula suas
abluções e suas orações, o jejum e a reverência. Você não precisa ir mais
longe. Este é o primeiro portal da viagem; depois vem o trabalho; depois a
vigilância moral; depois o ascetismo; depois a confiança. E no primeiro estado
da confiança, você encontrará quatro milagres. São os sinais e as provas de que
você atingiu o primeiro degrau da confiança. Estes sinais consistem em
atravessar a terra, caminhar sobre as águas, atravessar os ares e ser
alimentado pelo universo. E é a realidade sobre a qual abre-se esta porta.
Depois disto, as estações, os estados, os milagres e as revelações chegarão a
você continuamente até sua morte.
E pelo amor de Deus, não tente o retiro antes de saber em que etapa
você se encontra, e de conhecer sua força no que toca ao poder da imaginação.
Pois se sua imaginação o governa, nenhuma via o levará ao retiro, a menos que
você se deixe guiar pela mão do sheikh
que sabe pesar cada coisa e permanecer acordado. Se você domina sua imaginação,
então pode tentar o retiro sem medo.
A disciplina é necessária antes de qualquer retiro. A disciplina
espiritual (riyada) supõe o
treinamento do caráter, o abandono da irresponsabilidade e a permanência na
humilhação. Pois se uma pessoa começa antes de haver adquirido a disciplina,
ela não se tornará nunca um homem, salvo raras exceções.
Quando você renunciar ao mundo, guarde-se daqueles que vêm lhe ver e
que se aproximam, pois quem se distancia do mundo não lhe abre mais a porta.
Claro, o objeto do isolamento é o de afastar-se das pessoas e de sua sociedade,
e o objeto deste distanciamento não é o de abandonar sua companhia física, mas
antes o de não permitir que nem seu coração nem seu ouvido sejam receptáculos
das palavras vãs que elas trazem. Seu coração não se libertará das divagações
do mundo, senão afastando-se dele. E quem quer que se “retire” em sua casa e
abra sua porta aos que o visitam, buscando e estimando o poder, será expulso da
porta de Deus Altíssimo; e para alguém como este a destruição está mais próxima
do que o laço de sua sandália. Pelo amor de Deus, pelo amor de Deus, proteja-se
da falsidade do ego nesta etapa, pois a maior parte dos que aí se encontram é
destruída por causa dele. E feche sua porta ao mundo; e assim a porta de sua
moradia ficará apenas entre você e os seus.
E consagre-se ao dhikr, à
lembrança de Deus, qualquer que seja a forma de dhikr que você escolher. A mais alta é o Nome supremo; é quando
você diz “Allah, Allah”, e nada além de “Allah”.
Proteja-se de uma imaginação corrompida que o distrai de sua
concentração. Tenha cuidado com sua alimentação. É melhor que sua alimentação
seja nutritiva mas desprovida de gordura animal[17].
Desconfie da saciedade e de uma fome excessivas. Preserve o equilíbrio de sua
constituição, pois uma secura excessiva leva a uma imaginação corrompida e a
longas divagações.
Se ocorrer uma influência que altere a constituição[18]
– e que seja desejável – distinga entre as influências angélica e demoníaca
observando o que permanece em você quando elas cessam. Vale dizer, se a
influência é angélica, ela é seguida de bem estar e felicidade. Você não terá
consciência de nenhuma dor, não sofrerá nenhuma alteração de forma[19]
e a influência deixará detrás de si o conhecimento. Mas se ela é demoníaca, ela
terá como efeito a desorientação física, a dor e a desordem, a confusão e a
baixeza; e ela deixa atrás de si o desvio. Proteja-se, e não cesse de repetir o
dhikr em seu coração, até que Deus expulse dele a influência demoníaca[20].
É isto que requer a situação.
Procure formular bem sua intenção. Ao iniciar o retiro, você concordou
com que nada do que existe é comparável a Deus. E a cada forma que aparecer em
seu retiro e lhe disser: “Eu sou Deus”, responda: “Deus é maior do que isto!
Você é graças a Deus.” Lembre-se da
forma daquilo que você viu. Depois desvie sua atenção dela e consagre-se sem
parar ao dhikr.
Isto é um compromisso. O segundo é que você não buscará d'Ele, quando
de seu retiro, nada além d'Ele, e que você não colocará seu himma, a força de intenção de seu coração, em nada senão n'Ele. E
se tudo o que contém o universo lhe for colocado aos pés, receba-o gentilmente
– mas não pare por aí. Persista em sua busca, pois Ele o está colocando à
prova. Se você ficar com o que lhe é oferecido, Ele lhe escapará. Mas se você
chegar a ele, nada lhe escapará.
Se você sabe disto, saiba que Deus o coloca à prova por meio daquilo
que ele coloca diante de você. Ele lhe revela primeiro seu poder sobre a ordem
material, como veremos mais adiante. É o desvendamento do mundo sensorial que
estava escondido, a fim de que as paredes e as sombras não escondam de você o que
as pessoas fazem nas suas casas. No entanto, se Deus lhe informar um segredo da
vida de alguém, você tem a obrigação de preservá-lo e de impedir sua
divulgação. Pois se você tivesse que divulgar e dizer: “Este é um fornicador,
aquele um bêbado, o outro um assassino, aquele um ladrão”, você seria o maior
dos pecadores e Satã estaria verdadeiramente em você. Aja portanto conforme o
Nome divino aç-Sattar, Aquele que
coloca o véu. E se esta pessoa vier a encontrá-lo, advirta-a em segredo sobre
sua conduta e aconselhe-a a humilhar-se diante de Deus e não transgrida os
limites divinos. Desvie-se o mais possível deste tipo de percepção de
consagre-se ao dhikr.
Explicaremos agora [como vemos] a diferença entre a percepção sensorial
e a percepção imaginária sutil. Isto quer dizer que, quando você vê a forma de
uma pessoa ou uma ação criada, se você fechar os olhos e a percepção continuar
em você, ela provém da sua imaginação; mas se ela lhe for ocultada, é porque a
consciência que você tem dela está ligada ao lugar em que você a viu. Se se
tratar de uma percepção do segundo tipo, ao se desviar dela e consagrar-se ao dhikr, você passará do nível sensorial
ao nível imaginário.
É aí que descerão sobre você idéias abstratas inteligíveis sob formas
sensoriais. Esta descida é difícil, porque ninguém sabe o que essas formas
significam a não ser um profeta, ou alguém a quem Deus escolheu de entre os
justos. Portanto, não se preocupe com isso. Se lhe oferecerem bebida, prefira a
água. Se não houver água no que lhe for oferecido, escolha o leite. E se os
dois lhe forem apresentados, misture a água e o leite. Isto também se aplica ao
mel: beba-o. Desconfie do vinho a menos que ele tenha sido misturado com água
da chuva. Evite bebe-lo de outra forma, mesmo que ele tenha sido misturado com
água de riachos ou nascentes[21].
Consagre-se ao dhikr até que o mundo
da imaginação seja sobrepujado e que o mundo dos significados abstratos livres
de toda matéria lhe seja revelado.
Consagre-se ao dhikr, à
rememoração, até que Aquele a quem você lembra se manifeste a você e que o fato
de você chamá-lo à sua memória desapareça diante da lembrança verdadeira.
Entretanto, este desfalecimento [trazido pelo dhikr] é a essência não só da contemplação, mas também do sono. O
modo de distingui-los é que a contemplação deixa marcas e é seguida pela
felicidade enquanto que o sono não deixa
rastros e é seguido, ao acordar, pelo remorso e a imploração.
Então Deus Todo-Poderoso o colocará à prova colocando à sua frente os
graus do reino. Isto lhe será indicado como uma obrigação.
Primeiro você descobrirá os segredos do mundo mineral. Você conhecerá
os segredos de cada pedra e sua propriedades específicas, nefastas e benéficas.
Se você se encantar com este mundo, ele o prenderá com seus enganos, e você
ficará exilado longe de Deus. Ele o despojará de tudo ao que você se agarra, e
você estará perdido. Mas se você se consagrar unicamente ao dhikr, e se refugiar junto Àquele de
quem você se lembra, então ele o protegerá e lhe revelará o mundo vegetal. Cada
ramo de erva lhe descreverá suas propriedades nefastas e benéficas. Que seu
julgamento permaneça imutável. A partir do momento em que o mundo mineral lhe
foi desvendado, seu alimento aumentou o calor e a umidade, e a partir do
momento em que o mundo vegetal lhe foi desvendado,
que ele seja o fator de equilíbrio entre o calor e a umidade.
E se você não se detiver aí, Ele lhe revelará o mundo animal. Os
animais o saudarão e lhe farão conhecer suas propriedades nefastas e benéficas.
Cada espécie o fará conhecer sua proclamação de majestade e de louvor. Preste
atenção nisto: se você tomar consciência de que todos os mundos estão engajados
neste mesmo dhikr ao qual você de
dedica e se consagra, sua percepção é imaginária, e não real. É seu próprio
estado que é evocado em tudo o que existe. Mas se você descobrir neles a
variedade de seu próprio dhikr, trata-se de uma percepção verdadeira. Esta
ascensão é a ascensão da dissolução da ordem da natureza, e o estado de
contração (qabd) o acompanhará ao
longo desses mundos[22].
Depois disso, Ele revelará a infusão do mundo da força vital nas vidas,
e que o que influencia este processo varia segundo a predisposição de cada um,
e como as expressões [da fé] se acham incluídas nesta infusão[23].
E se você não se detiver aí, Ele lhe revelará os “sinais da superfície”[24].
Você será advertido por sinais terrificantes e conhecerá muitos tipos de
estados. Você verá distintamente o mecanismo das transformações: como o denso
se torna sutil, como o sutil se torna denso. E se você não se detiver aí, a luz
das fagulhas e das centelhas se tornará visível, e você deverá cobrir-se para
se proteger delas. Não tenha medo, e persevere no dhikr, pois se você perseverar no dhikr, o desastre não o alcançará.
Se você não se detiver aí, Ele lhe mostrará a luz das estrelas móveis[25]
e a forma da ordem universal[26].
E você verá diretamente a adab, a
conduta conveniente, para ingressar na Presença divina e a adab para deixar Sua Presença a fim de retornar à criação; e a
contemplação perpétua pelos diferentes aspectos dos Nomes divinos (al-asma’ al-ilahiyya), o “Manifesto” e o
“Oculto”; e a perfeição da qual poucos tomam consciência. Porque tudo o que sai
do aspecto do Manifesto entra no aspecto do Oculto. A essência é uma. Nada se
perde.
E depois disso, você saberá o que quer dizer receber o conhecimento
divino de Deus Altíssimo, e como nos devemos preparar para recebe-lo. Saiba
então a conduta que convém para receber e para dar, as da contração e da
expansão; e como proteger o coração, que é o ponto de chegada dos diferentes estados,
das chamas da destruição; e saiba que todos os caminhos são círculos. Não
existem linhas retas. Mas esta carta é demasiado curta para abordar estes
assuntos.
E se você não se detiver aí, Ele lhe revelará os graus das ciências
especulativas, das idéias integrais, e a forma das questões complexas que
mergulham a inteligência na confusão. Ele revelará a diferença entre suposição
e saber, o nascimento das possibilidades entre o mundo dos espíritos e o mundo
físico[27],
a causa desta gênese, a infusão do Mistério divino no domínio de seu Cuidado
cheio de amor[28],
a razão do abandono do mundo pelo esforço ou de outro modo – e outras questões
do gênero que requereriam longas explicações.
E se você ainda não se deteve, Ele lhe revelará o mundo da formação, do
ornamento e da beleza, sobre quê deve o intelecto meditar entre as formas
santas, o sopro vital da beleza das formas e da harmonia, e o transbordamento
da ternura, da doçura e da misericórdia com tudo o que as caracterizam. Deste
nível vem a inspiração dos poetas, enquanto que do precedente vem a inspiração
dos pregadores.
E se você não se detiver, Ele lhe revelará os graus do gutb. Tudo o que você viu antes veio do
mundo da mão esquerda, e não do mundo da mão direita. E é o lugar do coração.
Se Ele tornar este mundo manifesto aos seus olhos, você conhecerá o reflexo, o
infinito dos infinitos e a eternidade das eternidades, a ordem das existências
e o modo como o ser se acha aí infundido. Você receberá sabedorias divinas, o
poder de preservá-las e a integridade para transmiti-las aos sábios, e lhe será
dado o poder dos símbolos e uma visão do todo, e autoridade sobre o véu e o
descerramento.
E se você não se detiver aí, Ele lhe revelará o mundo da febre, da
raiva e do zelo quanto à verdade e ao erro; o fundamento das aparências
diferentes que se produzem no mundo, a variação das formas, a discórdia e a
angústia. E se você não se detiver aí, Ele lhe revelará o mundo do ciúme e o
descerramento da verdade diante da mais perfeita das faces; as opiniões
justificadas, as escolas verdadeiras e as tradições reveladas; e você verá com
todo conhecimento de causa que Deus Altíssimo as dotou, dentre todos os santos
conhecimentos, com a beleza mais sublime. E não há nada que pertença a uma
etapa que Ele lhe revelar, que não chegue a você com reverência e exaltação;
seu grau na Presença divina aparecerá claramente a você, e [cada um] o amará em
sua essência[29].
E se você não se detiver, Ele lhe revelará o mundo da dignidade, da
serenidade e da firmeza; a astúcia (makr),
os enigmas e os segredos, e outras coisas do gênero. E se você não se detiver
aí, Ele lhe revelará o mundo da confusão, da impotência, da incapacidade e dos
tesouros do trabalho; e este é o céu supremo[30].
E se você não se detiver lá, Ele lhe revelará os Jardins: os graus dos
caminhos que chegam até eles, a maneira como se articulam, e como eles se
comparam uns aos outros pelos prazeres que oferecem.. E você estará parado
sobre o caminho reto e será transportado até a borda do Inferno, e do alto você
verá os caminhos que descem para ali, a maneira como eles se articulam, e como
eles se comparam uns aos outros por sua aspereza. Ele lhe revelará as obras que
correspondem a esses dois lugares. E se você não se detiver, Ele lhe revelará
um dos santuários onde os espíritos são absorvidos na Visão divina. Nela eles
são embriagados e desviados. O poder do êxtase os conquistou, e seu estado é um
sinal para você.
E se você não se detiver neste sinal, uma luz se revelará, na qual você
não verá nada senão seu próprio reflexo. Nesta luz você será tomado de um
grande enlevo e de transportes de amor, e nela você encontrará uma felicidade
divina que até então lhe era desconhecida. Tudo o que você viu antes lhe
parecerá pequeno, e você balançará como uma lâmpada[31].
E se você não se detiver aí, Ele lhe revelará a forma original dos
filhos de Adão. E os véus se erguerão. E os véus descerão[32].
E eles lançarão um louvor particular que você reconhecerá ao ouvir[33],
e você não sucumbirá. Você verá sua forma no meio deles, e é ela que lhe
permitirá identificar o momento em que você se encontra.
E se você não se detiver aí, Ele lhe revelará o Trono de misericórdia (sarir al-rahmaniyya). Tudo se encontra
aí. Se você observar, você encontrará aí a totalidade de tudo o que você
conhece, e mais ainda: não restará nenhum mundo, nenhuma essência, que você não
reconheça. Procure-se: se for conveniente, você encontrará seu destino, o lugar
onde você se encontra e o limite de seu grau, o Nome divino de seu Senhor e
onde residem sua parte de gnose e de santidade – a forma da sua unicidade.
E se você não se detiver, Ele lhe revelará a Pena, o primeiro
Intelecto, o mestre e professor de todas as coisas. Você examinará seu traço e
conhecerá a mensagem que ele traz e testemunhará sua inversão, a recepção e a particularização dos vastos
[conhecimentos] que fluem do anjo al-Nuni[34].
E se você não se detiver, Ele revelará aquele que faz a Pena se mover,
a mão direita da verdade[35].
E se você não se detiver, você será desenraizado[36],
depois retirado[37],
depois apagado, depois esmagado[38],
depois abolido.
Quando os efeitos do desenraizamento e do que segue forem terminados,
você será afirmado[39],
depois tornado presente, depois feito capaz de permanecer, depois reunido,
depois assinalado. E os trajes de honra que [seu estado] requer lhe serão
conferidos, e eles são numerosos.
Depois você retomará seu caminho e examinará tudo o quer você viu sob
formas diferentes até seu retorno ao mundo dos seus sentidos terrestres e
limitados. Ou [você se agarrará solidamente] lá onde você esteve ausente; e o
destino daquele que busca depende da rota que ele seguiu.
Dentre [os que terminam esta viagem] estão aqueles a quem foi confiada
Sua Palavra, e aqueles a quem Sua Palavra não foi confiada. E todos aqueles a
quem uma Palavra foi confiada, seja Ela qual for, se tornam herdeiros do
profeta desta linguagem[40].
É isto que querem dizer os que seguem esta via quando dizem que alguém é Moisés
ou Abrahão ou Enoch. Dentre eles encontram-se alguns a quem foram confiadas
duas, três ou quatro Palavras, ou mesmo mais. Aquele que foi tornado perfeito
vê ser-lhe confiada a totalidade das Palavras, e ele procede especificamente de
Maomé.
Agora que ele chegou ao seu destino, enquanto ele não empreender seu
retorno, o buscador será chamado “aquele que se detém” (al-waqif). Dentre aqueles que se detém estão os que são absorvidos
por este estado, como Abu-‘Iqal e outros. Deus os guarda em Si e nele eles
serão ressuscitados[41].
A classificação waqif inclui também
aqueles que são reenviados (mardudun).
Estes são mais perfeitos do que os que são absorvidos (mustahlikun), embora estejam todos na mesma posição. Se [um
buscador] se vê absorvido numa posição superior àquela da qual retorna [um
outro buscador], então não se diz que aquele que retorna é superior. A condição
que permite estabelecer uma comparação é a semelhança mútua entre eles. Se esta
condição existe, aquele que retorna vive, depois de ter descido da posição
daquele quem foi absorvido, de tal sorte que ele atinge o grau do outro, e o
ultrapassa ao se aproximar, ao descer e também no desenvolvimento e na recepção
do saber.
Quanto àqueles que retornam, distinguimos entre eles dois tipos de
homens. Existe aquele que retorna só; ele é o que desce, de que falamos. Este
tipo de homem é o gnóstico, ‘arif,
entre nós. Ele retorna para o aperfeiçoamento de si por um outro caminho do que
o que havia tomado. Dentre eles está também aquele que é reenviado à Criação
com a linguagem do chefe e do guia. Ele herdou seu saber, ele é o ‘alim.
Os que convocam e os herdeiros não estão todos na mesma posição, mas a
posição de sua convocação os reúne, e alguns ultrapassam os outros em grau.
Assim, disse o Deus Altíssimo: “Nós fizemos de tal modo que alguns destes
mensageiros excedem os outros” (Corão, II, 253). Dentre os herdeiros acham-se convocadores
que exprimem as Palavras de Moisés, de Jesus, de Sem, de Noé, de Isaac, de
Ismael, de Adão, de Enoch, de Abrahão, de José e de Aarão, e de outros ainda;
são os sufis. Eles são os adeptos dos estados, comparados com os mestres que
contamos entre nós[42].
Dentre [os herdeiros], encontramos também convocadores que exprimem a Palavra
de Maomé (que a paz e a bênção estejam sobre ele); são os Malamiyya, os adeptos da permanência e da realidade.
E quando eles convocam a Criação diante do Deus Altíssimo, dentre eles
se encontra aquele que os chama da porta de fana’
na realidade da servidão, Ubudiyya[43].
[É feita uma alusão a este fana’]
quando Ele (seja Ele exaltado) diz: “Eu o criei antes quando você era nada”
(Corão, IXX, 9). E entre eles acha-se aquele que chama da porta da atenção à
servidão, que é humildade e indigência, e que é requerida pela etapa da
servidão. E dentre eles está aquele que chama da porta da atenção à natureza
misericordiosa; e o que chama da porta da atenção à natureza conquistadora; e o
que chama da porta da atenção à natureza divina, que é a quarta porta e a mais
sublime[44].
Saiba que a profecia e a santidade participam de três coisas: uma, o
conhecimento sem tê-lo adquirido; duas, a ação levada a cabo pelo himma, a intenção do coração, sobre
aquilo que temos o costume de crer realizável somente pelo corpo, ou sobre o
que é irrealizável mesmo pelo corpo; terceiro, a visão das imagens no mundo
sensorial. Os dois diferem unicamente no modo como se dirigem às pessoas, pois
o discurso do santo é diferente do discurso do profeta[45].
Não pense que a ascensão do santo é igual à do profeta. Isto não
acontece, porque a ascensão requer ações específicas. Se os santos e os
profetas tomassem parte das mesmas coisas em virtude de uma ascensão idêntica,
os santos seriam idênticos aos profetas, o que não é o nosso caso[46].
Embora as duas classes tenham um ponto em comum – as etapas da tomada de
consciência divina – a ascensão dos profetas é feita pela própria luz
fundamental, enquanto que a ascensão dos santos se faz por meio daquilo que
esta luz concede providencialmente[47].
Embora, por exemplo, eles [um santo e um profeta] possam ambos estar na etapa
da Confiança, esta etapa não apresentará o mesmo aspecto para os dois. A
superioridade não está na tomada de consciência, mas no aspecto de que ela se
reveste. Os aspectos da confiança dependem de quem exerce esta confiança, e o
caso permanece o mesmo em cada estado e em cada etapa de fana' e de baga', a união
e a separação, a harmonia e a discórdia, e assim por diante.
E saiba que cada santo de Deus Altíssimo recebe o que recebe pela
mediação espiritual do profeta cuja Via sagrada ele segue, e é nesta etapa que
ele se dedica à contemplação. Mas existem os que sabem disto, e os que ignoram
e dizem: “Deus me disse”; mas isso não passa da natureza espiritual [de seu
profeta]. E existem segredos próprios à Sua sutileza, mas estas páginas, que
visam apenas a fornecer uma breve introdução, são demasiado breves para
tratarmos deste assunto agora.
Dentre os santos da comunidade de Maomé – o Reunidor dos estados dos
profetas, a paz e a bênção estejam sobre ele – pode estar um herdeiro do estado
de Moisés, mas ele recebe sua herança da luz de Maomé, não da luz de Moisés.
Seus estado procede de Maomé, assim como o estado de Moisés procedia de Maomé.
Às vezes um santo, ao aproximar-se a morte, parece prestar atenção a Moisés ou
Jesus. As pessoas comuns e as que não detêm o conhecimento imaginam que ele se
tornou judeu ou cristão, porque ele menciona estes profetas no momento de morrer,
mas [de fato esta alusão] decorre da tomada de consciência poderosa que
caracteriza esta etapa. Entretanto o qutb
pertence diretamente ao coração de Maomé. E nós encontramos homens que
pertenciam ao coração de Jesus – dentre os quais está o primeiro sheikh que você conheceu – e homens que
pertenciam ao coração de Moisés, outros que pertenciam ao coração de Abrahão, e
outros [pertencimentos similares] ainda . E isto permanece um segredo para
todos menos para os nossos amigos.
Saiba que o Profeta – a paz e a bênção estejam sobre ele – é quem deu a
todos os profetas e mensageiros a posição que eles ocupam no Mundo dos
Espíritos, até que ele seja enviado a um corpo[48].
Nós o seguimos, [herdando assim sua conduta direta no mundo temporal]. Os
profetas que deram testemunho dele, ou que descerão depois dele[49],
juntam-se a nós, e os santos dos profetas que precederam [seu nascimento
físico] recebem igualmente [sua herança espiritual] de Maomé. Assim, os santos
de Maomé dividem com os profetas uma herança direta que vem dele. Por causa
disso é dito no hadith: “Aqueles desta comunidade que têm o conhecimento
são como os profetas de Israel.” E o Deus Altíssimo disse a respeito: “a fim de
que vocês sejam os testemunhos do povo” (Corão, XXII, 78); e Ele disse, a
respeito dos Mensageiros: “Neste dia suscitaremos em cada comunidade um
testemunho que se levantará dentre eles e contra eles” (Corão, XVI, 89). Assim
somos todos, os profetas e nós, os testemunhos de seus sucessores. Da mesma
forma, no retiro, consagre o himma à herança total de Maomé.
Saiba que o sábio verdadeiro, longânimo e perfeito, é aquele que trata
cada condição e cada momento da maneira apropriada, e não os mistura. É o
estado de Maomé – a paz e a bênção estejam sobre ele – pois ele estava a dois
tiros de flecha ou menos de seu Senhor; e então ele se levantou dentre sua
gente e falou disso aos que estavam presentes; os politeístas não creram nele,
pois ele não trazia nenhum traço [de sua ascensão], e sua aparência era a mesma
que a deles. Isto foi impossível até para Moisés que, ao se deparar com a marca [da Revelação divina], teve de
cobrir o rosto.
Todo buscador conhecerá inevitavelmente o impacto dos estados, e a
fusão dos mundos entre si, mas o desenvolvimento, a partir desta etapa, para a
etapa da sabedoria divina que aparece nos princípios exteriores habituais é
para ele uma obrigação. A transcendência da ordem habitual se tornará o seu
segredo, de tal modo que os eventos que ultrapassam o ordinário o acompanharão
naturalmente. A transcendência da ordem habitual tornar-se-á seu segredo, de
tal modo que eventos que ultrapassam o comum o acompanharão naturalmente. Ele
não cessará de dizer a cada sopro: “Senhor, aumente meu saber enquanto a esfera
celeste se move graças ao Teu sopro”[50],
e deve esforçar-se por fazê-lo de tal modo que este momento seja Seu sopro.
Quando o influxo do Momento se manifestar, ele o receberá. Que ele evite
apaixonar-se [pelo influxo do Momento], mas que ele se lembre dele, pois isto
lhe será necessário se ele for ensinar. A maior parte dos sheikhs perdem
seu papel de professores apenas por terem negligenciados isto que mencionamos,
e de que eles se abstêm totalmente.
O Momento[51]
se prolonga ou se retrai conforme a presença daquele que toma parte nele.
Existem aqueles cujo Momento é uma hora, um dia, uma semana, um mês ou um ano,
ou a quem ele não chegue senão uma vez na vida. E no seio da humanidade existe
também não conheça nenhum Momento. Pois aquele que volta sua atenção para o
sopro tem as horas em seu poder, e tudo o que está além disto; e aquele cujo
Momento é a presença das horas perde a noção do sopro; assim, aquele cujo
Momento são os dias perde as horas; e aquele cujo Momento são as semanas perde
os dias; e aquele cujo Momento são os anos perde os meses; e aquele cujo momento
é a existência perde os anos; e que não possua um Momento não terá existência e
perderá sua vida após a morte. Ele não poderá prolongar seu himma
animal. A elevação pessoal indica quão
estreito é o Momento e quão pequeno é o saber.
Quem não possui um Momento está privado dele, mas apenas enquanto
estiver doente, enquanto for governado pela sua natureza animal. Pois é
impossível que a porta do mundo invisível e de seus segredos permaneça aberta
agora que o coração os deseja ardentemente[52].
No que concerne à porta do conhecimento contemplativo de Deus, ela não se abre
enquanto o coração ainda esteja voltado para o que quer que seja pertencente ao
mundo, seja o visível ou o invisível.
E saiba que a propósito destas coisas [que nos foram] confiadas [por
Deus – os deveres da Lei sagrada]: se uma pessoa as busca e as coloca em marca,
sem visar (himma) nenhuma empresa superior, senão apenas [com a
esperança de atingir] o Paraíso – ela é o fiel, o companheiro da água e o nicho
de oração. Ao contrário, se sua intenção está voltada para o que está além da
adoração sem que esteja preparada, nada lhe será revelado e sua intenção não
lhe trará proveito algum. Ao contrário, esta pessoa parece-se com um doente.
Suas forças e suas possibilidades estão acabadas, e com elas a vontade, himma,
e a capacidade de agir são seriamente prejudicadas. Como poderá ele alcançar
aquilo que busca seu himma? A preparação para a Perfeição, por meio do himma
e muitas outras coisas ainda[53],
é necessária.
E se ele alcançar a essência da realidade, e que sua intenção seja
dissolvida – e a realização daquilo que está além não tem limite – aquele que
chegou ao objetivo dirá: “Isto não convém senão desta maneira, e é apenas no
interesse do espanto que suscita erguer os véus.” Pois pelo conhecimento que
emana da contemplação ele acaba por voltar-se para aquilo que está além de cada
aparência: a Verdade além das aparências. Pois Aquele que é aparente, embora
não seja senão um em Sua essência, é infinito em Seus aspectos. Eles são Seu
rastro em nós[54].
E no entanto aquele que sabe conhece uma sede eterna, o desejo e o
respeito aderem a ele para sempre. É para que isto se reproduza que os
trabalhadores trabalham, e para que isto se reproduza que os pretendentes se
enfrentam.
E que a bênção de Deus esteja com nosso Mestre Maomé, sobre sua família
e seus companheiros; e a paz. E louvado seja Deus, Senhor dos Mundos.
GLOSSÁRIO
Abu-'Iqal al-Maghribi – Sufi que viveu no final do século XI, e que viveu
quatro anos em Meca sem comer nem beber, em estado de ghayba, perdido
para o mundo.
Abu-Yaziz Bistami – Abu-Yaziz ibn 'Isa al-Bistami (m. 848 ou 874 A.D.), grande sufi célebre por seu
êxtase e sua viagem mística pela realidade. Neto de um zoroastriano, quando lhe
perguntaram: “Como você encontrou a sabedoria?”, ele respondeu: “Pela fome e a
pobreza. Ele meditou durante trinta anos, e foi um dos que memorizaram o Corão.
Um dia ele levou seu filho para ver um santo muito conhecido na época. Ele o
viu vomitar em direção à Kaaba. Ele tomou seu filho e partiu imediatamente,
dizendo: “Como ser discípulo de um homem que não obedece ao adab do
Profeta (a paz e a bênção estejam com ele)?” Ele dizia não poder exprimirem
palavras a maior dificuldade que ela havia encontrado no caminho espiritual, mas
a mais fácil de que ele se lembrava foi quando, num dia em que nafs
recusava-se a orar, ele o havia punido não bebendo água durante um ano. O sheikh
Musa ibn'Isa recebeu de seu pai que Hazrat Bistami disse: “Se você ver um homem
sentado com as pernas cruzadas no ar, mas perceber que ele não se conforma
totalmente à Lei sagrada, não creia nele.”
adab – a
etiqueta, a conduta; no sufismo, o modo de ação justo, a cortesia espiritual da
Via.
ahadiyya – a
unidade indivisível de Allah, conhecida apenas por Ele e daqueles que não são
outros do que Ele.
'alim – o
sábio; no uso geral, todo homem erudito, em especial um teólogo. Aqui, para
Ibn'Arabi, um mestre a quem Allah assinalou a tarefa de ensinar e guiar,
conforme a tradição profética: “Aqueles que sabem são os herdeiros dos
profetas.”
'arif –
gnóstico, aquele a quem o Ser divino tornou-se familiar. Aqui, para Ibn'Arabi,
sobretudo aquele que não tem responsabilidades para com a Criação, mas apenas
para com o Criador.
Asma'ilahiyya –
os Nomes divinos, tais como os menciona o Corão (XX, 8): “Seus Nomes são os
mais belos.” Os Nomes divinos dividem-se em Nomes de Essência, que exprimem a
pura transcendência. E os Nomes de Atributos, que exprimem as qualidades e as
ações divinas. No singular: ism ilahi.
'ayn – o
olho, mas também o ego, como por exemplo na expressão 'ayn al-yaqin, o
olho da certeza, que representa o conhecimento visto, mas também a verdadeira
realidade do conhecimento.
baga' – a
instalação de todos os bons atributos no homem; a existência eterna. (ver fana')
Baga' –
marca o início da viagem para Deus.
Barzaqh –
intervalo; todo estado intermediário entre dois estados de existência,
particularmente o mundo das formas sutis que existe entre os mundos físico e
supra-formal.
dhikr –
rememoração, menção; lembrança de Allah pela invocação dos Seus Nomes.
fana' – a
desaparição total dos maus atributos do homem, a aniquilação; como diz o Corão
(LV, 26-27): “Tudo o que se acha sobre a terra desaparece; a face de teu Senhor
permanece na sua majestade e dignidade.” Fana' é o fim da viajem para
Deus.
Fuçuç al-hikam
- “As gemas da sabedoria dos profetas”, livro no qual Ibn'Arabi discute as
palavras proféticas, as variedade únicas de perfeição realizadas em cada um dos
27 profetas principais.
Al-Futuhat al-Makkiyya - “Livro das conquistas espirituais de Meca” (assim
chamado porque o anjo de inspiração apareceu a ele pela primeira vez em Meca
para anunciar-lhe sua obra) é o livro mais conseqüente de Ibn'Arabi, e
compõe-se de 560 capítulos. É uma compilação de ensinamentos e observações
sobre uma grande quantidade de assuntos.
ghayba – a
ausência; o estado em que se é inconsciente do mundo. A ausência do mundo
pressupõe a presença diante de alguma outra coisa.
hadith –
narrativa, relato; relação dos atos e das palavras do Profeta (que a paz esteja
com ele) transmitida por fontes dignas de fé. O Profeta disse a respeito do hadith:
“O olhar fiel com a luz (nur) de Allah.” “Os crentes olham com uma
conhecimento ('ilm) e uma percepção (basira) concedidas
especialmente a eles.” No caso, nur significa 'ilm e basira.
Uma “tradição” sobre o Profeta não se torna um hadith a menos que se o
considere com 'ilm e basira, dons que Allah concede ao fiel.
hadith qudsi
– relato sagrado; uma palavra divina não corânica revelada por intermédio do
Profeta (que a paz esteja com ele).
hadra –
presença; um dos modos ou níveis da Presença divina. Existem cinco hadarat
principais, relacionados a seguir:
hadrat ul-ghayb il-mutlaq – a não-manifestação absoluta, refletida nas
essências eternas fixas.
hadrat ul-ghayb il-mudaf – a não-manifestação relativa, refletida no universo
dos espíritos.
hadrat ul-mithal – a manifestação relativa, refletida nas formas sutis.
hadrat ul-mushahadat il-mutlaqa – a manifestação absoluta, refletida no mundo físico.
hadrat ul-jami'a – a presença da totalidade, refletida no Homem perfeito.
hafira – o
começo; o estado original. Ver Corão, LXXIX, 10: “Eles dizem: seremos nós
verdadeiramente reenviados ao estado original?”
haqq – a
Verdade, o Real; a realidade divina distinta da Criação.
himma –
resolução, determinação, ardor; para Ibn'Arabi, a vontade espiritual, o poder
concentrado da intenção do coração.
huwiyya – do
pronome huwa, “Ele”: a identidade divina inefável; atributo ou descrição
do Deus transcendente em Si mesmo.
Ibn Jawziya
– Shamsuddin Muhammad ibn Abu-Bakr al-Jawziya (1295-1356 A.D.), teólogo e
discípulo de Ibn Taymiyya, pregador e escritor fundamentalista.
Ibn Rushd –
Abud Walid Muhammad ibn Ahmad ibn Rushd (1126-1198 A.D.), também conhecido como
Averroés, o maior filósofo árabe da Espanha, notável por seus comentários sobre
Platão e Aristóteles e suas análises perceptivas. Ele foi acusado de heresia
pelos teólogos de sua época.
'ilm – o
conhecimento, o saber. 'Ilm é uma luz que emana da lâmpada da profecia
dentro do coração do servidor, por meio da qual ele encontra o caminho para
Deus, para a obra de Deus e para as ordens de Deus.'Ilm é a
característica específica do ser humano que não está referenciada nem pela
compreensão dada pelos sentidos nem pela razão. O intelecto é aquilo que opera
uma discriminação entre o bem e o mal. O intelecto que distingue o bom do mal
neste mundo pertence tanto aos crentes como aos não-crentes. O intelecto que
distingue o bem do mal no mundo do porvir pertence apenas aos crentes. 'Ilm
é específico dos crentes; 'ilm e o verdadeiro intelecto são necessários
um ao outro. O conhecimento da certeza ('ilm al'yaqin) é ouvir
dizer que o fogo existe; a visão da certeza ('ayn al-yaqin) é
vê-lo por si mesmo. Mas a realidade da certeza (haqq al-yaqin) é ser
o fogo.
istihlak – a
absorção; para Ibn'Arabi, o estado em que se é consumido ou apagado pela
presença divina ao ponto que toda consciência da multiplicidade e do mundo
relativo é destruída.
ithbat – a
afirmação; aqui, a afirmação daquilo que Deus ordenou.
khala' – o
vazio; segundo Ibn'Arabi, o estado do universo antes de sua criação, e origem
do termo khalwa.
khalq jadid
– a criação renovada. Ver Corão, L, 14: “Eles têm a ilusão de uma nova
criação.” Para Ibn'Arabi, a destruição e a recriação instante por instante do
mundo que é a manifestação infinita de Allah.
khalwa – o
retiro; o ato da renúncia total inspirada pelo desejo da presença divina.
Aquele que empreende o khalwa, como um morto, abandona todos os negócios
religiosos e profanos exteriores, o que é o primeiro passo para o abandono de
sua própria existência. No isolamento total ele repete continuamente o nome de
Deus. Perguntaram a um homem se ele era sacerdote. Ele respondeu: “Eu sou o
guarda dos cachorros, eu vigio para que eles não mordam as pessoas, que assim
podem viver em paz e segurança. Eu tranquei os cachorros de meu nafs, e
eu os guardo.”
lawa'ih – a
aparência, o aspecto, os sinais exteriores. Quando um estado (hal) não é
contínuo, é chamado de lawa'ih ou bada'ih – ou seja, um estado
isolado. O estado de claridade que aparece ocasionalmente entre noviços é lawa'ih.
Um poeta disse: “Ó raio brilhante, que parte do céu iluminas agora?”
lawa'ih lawiyya
– os “sinais de superfície” ou “aparências exteriores da Tabuinha”. Esta
expressão de Ibn'Arabi é obscura. Jili a identifica com lawa'ih hliyya. O
termo deriva talvez de al-lawh al-mahfuz, a Tabuinha Guardada na qual
estão escritos todos os destinos, idêntica ao Trono de Misericórdia (sarir
al-rahmaniyya). No texto, porém, a Tabuinha é revelada num nível muito
superior ao dos “sinais de superfície”.
mahq – a
obliteração; estado imutável no qual a pessoa não consegue sequer ver a si
mesma. É o estado que vem acima de mahw, pois no estado de mahw
ainda restam traços, enquanto que no estado de mahq já não resta mais
nada. Jili declara que é a manifestação do vice-reinado de Deus e que sua
perfeição não é deste mundo.
mahq al-mahq
– a obliteração da obliteração; a dissimulação do vice-reinado que Allah
destina ao ser humano verdadeiro. Jili diz que mahq al-mahq poderia ser
aquele se que torna perfeito neste mundo.
mahw – a
eliminação dos hábitos pessoais (dos atributos habituais); corresponde a ithbat,
ação que deriva das necessidades do culto. Mahw significa a eliminação
dos erros do ser visível, da inconsciência do coração, e da tendência a
considerar em sua alma outra coisa além de Allah. Mahw é aquilo que
Deus, por sua vontade, esconde e elimina; ithbat é o que Ele revela e
torna existente. Quem abandona seus hábitos, que são o produto das ações
pessoais, e os substitui pelos maravilhosos atributos dos estados, dos dons e
dos retornos concedidos pela adoração de Allah, possui então as qualidades de mahw
e ithbat.
makr – o
complô, a armadilha, o truque, a astúcia, a habilidade; a habilidade de Allah é
a bênção que segue a transgressão da Lei, a continuação de um estado malgrado a
violação de adab, e a aparição de milagres sem esforço espiritual.
malmiyya ou malamatiyya
– sufis cuja disciplina consiste em carregar a vergonha, aceitar a culpabilidade
do mundo mesmo mantendo-se secretamente inocentes. Ibn'Arabi aplica este termo
ao grau máximo do sufismo, que encarna o segredo de Maomé (a paz esteja com
ele). No singular: malami ou malamati.
maqam – uma
etapa ou nível de desenvolvimento espiritual.
mardudun –
os que são reenviados; termo de Ibn'Arabi que designa os que, após haver
conseguido a presença de Allah, são por Ele reenviados à Sua criação. Eles são
considerados superiores aos que permanecem na contemplação exclusiva (mustahlikun).
Singular: mardud.
Mawatin – os
Reinos; termo de Ibn'Arabi que designa o domínio último ou “pária” de toda
experiência criada. Eles sãos eis: a pré-Criação, este mundo, o mundo sutil, a
Ressurreição, o Inferno/Paraíso, e o lugar da Visão divina “fora do Paraíso”. Singular:
mawtin.
Muhibbuddin al-Tabari – Muhibbuddin Abul'Abbas Ahmad ibn' Abdullah
al-Tabari (1218-1295 A.D.), jurista e tradicionalista de Meca, autor de uma
série bem conhecida de hadith e de outras 216 obras que sobreviveram.
Muhyiddin 'Abdul-Qadir Jilani – Muhyiddin Abou-Muhammad 'Abdul-Qadir ibn Abu-Salih
al Jilani Zengi Dost (1077-1166 A.D.), santo de prestígio e graça espiritual
imensos. Inúmeras histórias e lendas o cercam. Ele recebeu primeiramente uma
educação de jurista, depois foi feito sufi pelas mãos do sheikh
'Abul-Khayr Muhammad ibn Muslim al-Dabbas, que, ao que se diz, o levou ao
sufismo com apenas um golpe de vista. O sheikh 'Abdul-Qadir Jilani
começou a pregar em público em Bagdá em 1127. Logo ele ficou conhecido como o
orador mais eloqüente, e pregava para enormes platéias. Ele respondia a
questões que lhe chegavam de todas as partes do mundo e praticava um alto grau
de caridade. Seu status espiritual era tamanho que ele declarou um dia:
“Meu pé está colocado sobre o pescoço de cada santo”. Numerosos professores das
mais altas dignidades, desde sua época, o reconheceram como mestre.
mustahlikun
– expressão de Ibn'Arabi para qualificar aqueles que se perdem na contemplação
da Unidade divina excluindo Sua manifestação na multiplicidade (ver istihlak).
Seu estado não é tão elevado quanto o daqueles que apreenderam os dois aspectos
(ver mardudun). Singular: mustahlik.
an-nafas ar-rahmani – o Sopro misericordioso; a Piedade divina que “expira” a existência
do mundo.
nafs – a
personalidade, o ego, os desejos. Diz-se que não pode haver aproximação a Deus
senão por Deus, e que não existe outro véu entre o Servidor e seu Mestre do que
seu nafs. O sufismo reconhece sete etapas de refinamento do nafs.
al-Nuni –
aquele que tem a forma da letra nun; nome de um anjo, personificação do
Primeiro Intelecto em seu aspecto passivo enquanto receptáculo de todo
conhecimento.
qabd –
contração, fechamento. No sufismo, diminuição do ego pelo retiro da
personalidade de superfície para o interior. Enquanto etapa, descreve o sufi
que passou além de khawf (o temor de Allah) e raja' (a
esperança). Neste nível khawf se torna qabd; raja' se
torna bast, expansão. Khawf e raja' pertencem ao porvir,
enquanto qabd é o medo do presente e bast a esperança do
presente.
al-Qalam – a
Pena, ou Pluma, título da sétima Surata. É o termo corânico para designar a
consciência divina ativa, compreensiva e primordial. A expressão filosófica
paralela, utilizada por Ibn'Arabi, é Primeiro Intelecto.
qutb – eixo
ou pivô: a estação mais alta na hierarquia sufi dos santos. O qutb é
diretamente responsável pelo bom estado do mundo inteiro. Diz-se que o qutb
é o sucessor espiritual de Maomé.
al-Rabb –
Nome divino, o Senhor. O termo árabe implica idéia daquele que cuida, que
orienta o desenvolvimento de algo. Ibn'Arabi diz que este Nome governa a Nuvem,
entidade primordial na qual se forma todas as condições.
ar-Rahman –
Nome divino, o Misericordioso, A misericórdia indicada por este nome é a
compaixão que envolve o universo em sua totalidade, e por maio da qual este
universo foi criado. Ibn'Arabi declara que este Nome governa o Trono da
Misericórdia. (ver sarir ar-rahmaniyya)
riyada –
educação do caráter pela ascese.
Sa'duddin Hamawi – Sa'duddin Muhammad ibn al-Mu'ayad al-Hamawi (1191 ou 1198 a 1252 ou
1260 A.D.) era um dos doze herdeiros do grande sheikh Najmuddin Kubra, e
um célebre sufi de sua época. Sadruddin Qunyawi, discípulo de Ibn'Arabi,
assistiu às suas reuniões quando era adolescente. O sheikh Hamawi era
conhecido como compositor de poesia mística e de textos sufis. Numerosos
milagres lhe são atribuídos. Diz-se que certa vez sua alma deixou o corpo por
treze dias.
sarir ar-rahmaniyya – o Trono da Misericórdia, também chamado de Tabuinha Guardada, é a
Alma do Universo. Ele engloba todos os destinos e todo o saber.
aç-Sattar –
Nome divino, Aquele que coloca o véu (que cobre os pecados humanos).
shahwa –
desejo ardente, apetite natural.
sheikh –
mestre, guia espiritual; literalmente “ancião”. Título do professor de sufismo.
sura – forma
física, sutil ou abstrata.
taklif –
obrigação que tem o ser humano de escolher o serviço de Deus. Ibn'Arabi o
define como um princípio constitutivo deste mundo.
tawali' –
estrelas ascendentes. No curso do desenvolvimento, elas sucedem a lawa'ih.
Os tawali' são os sinais anunciadores dos Nomes que iluminam o servidor
e embelezam seu caráter. São as luzes do tawhid que ultrapassam todas as
luzes inferiores.
tawhid – a
declaração da Unidade de Deus expressa na afirmação La ilaha ila 'llah:
“Não há outro deus senão Deus.”
ubudiyya – a
qualidade do servidor, que, diz-se, torna-se perfeito em Maomé (que a paz
esteja com ele).
Uqlat al-mustawfiz – obra de Ibn'Arabi citada por Jili. Trata do Homem perfeito e dos
graus do ser, e foi escrito quando Ibn'Arabi tinha cerca de vinte anos, antes
de sua peregrinação a Meca.
waqif –
aquele que se detém. Ibn 'Arabi utiliza este termo em referência ao buscador no
momento em que ele atinge seu objetivo, seja se ele permanecer em contemplação
(ver mustahlikum), seja se ele retornar ao mundo (ver mardudun).
waqt – o
Momento; em sufismo, duração de um episódio de existência realmente consciente,
de rememoração de Allah.
watan –
pátria, da mesma raiz de mawatin, Reino.
[1] “Não é, acaso,
certo que os diletos de Deus jamais serão presas do temor, nem se
atribularão?” (Corão, X, 62).
[2] Este sinal * indica referência no Glossário.
[3] A mesquita Fatih tem um chão de pedras, não de
pranchas de madeira.
[4] “Um estado que
precede o estado de retorno”: porque a absorção (istihlak) é um fana’
[extinção] no qual não se experimenta as múltiplas manifestações da Essência ou
a diversidade de suas descidas na Presença dos Nomes. Este estado de
experiência da multiplicidade é uma das características de baga após fana’, e é a
causa da manifestação, do conhecimento bem-amado pelo qual Ele criou o mundo.
[5] “O conhecimento
das matrizes dos Reinos.”: de um
ponto de vista geral, não em detalhe. Não podemos compreender [os reinos] antes
de sabermos de onde viemos, onde estamos e para onde vamos. Saberemos então de
maneira geral o que cada um deles requer em sua essência própria ou a partir de
uma referência de um outro Reino, ou as duas coisas. Desta maneira podemos nos
preparar para nos conduzirmos como convém em função do Reino em que estamos, e
em função do Reino para o qual seremos transportados segundo o modo como nos
comportamos neste. E eu observarei que estes reinos implicam “aqui”, ou seja,
no Reino onde nos encontramos presentemente, não está dito aquilo que eles implicam
no absoluto. Você não encontrará [sua natureza absoluta] senão quando for
transportado para lá, assim, é inútil discuti-lo. Aquele que busca deve
empreender o que mais importa; ele deve respeitar cada Reino concedendo-lhe o
que lhe é devido, Pois quando aquele que procura é transportado para fora de um
Reino, se aquilo que ele devia alcançar lhe escapou, ele não o cumprirá jamais.
Isto terminará num eterno fracasso. [Como diz o hadith:] “Uma das belezas do Islã é um homem que abandona aquilo
que não lhe diz respeito”, e: “O tempo é uma lâmina afiada: se você não o
corta, ele o cortará.” [E como é dito:] “O sufi é o filho de seu momento” e “o
presente não volta.”
E
saiba que o mundo desaparece a cada instante na não-existência pela acachapante
vitória da Unidade (ahadiyya) sobre a
multiplicidade. E um mundo igual é produzido ]a cada instante] pela autoridade
do amor essencial. Pois a existência do mundo é o instante de sua
não-existência. Assim o Manifestado impõe sua manifestação sobre a primeira
coisa oculta, e o mundo é produzido. Depois o que é escondido impõe seu estado
de dissimulação sobre a primeira manifestação, e o mundo desaparece. Depois a
autoridade retorna ao Manifestado – e assim por diante, até o infinito. É o que
se chama uma “criação renovada” (khalq
qadid). O prolongamento imaginário que parece resultar deste fluxo de
similaridades é o Tempo; e o movimento é a sua medida. Tudo o que é “outro que
Deus” é temporal. E se é impossível que a duração [real] de um evento exceda um
instante, então tudo o que sobrevem é “filho de seu momento”, e nada além
disso. O evento é necessário ao instante, e o instante é necessário ao evento.
Ou melhor: o momento determina essencialmente o evento, que não pode ser
separado dele. Assim o momento é o lugar do evento, ou o reino (watan). Os momentos são infinitos;
portanto os reinos são igualmente infinitos.
E
saiba que a renovação das similaridades [representada pelo Tempo] se desenvolve
de tal maneira que uma coisa desaparece e outra igual a sucede – o Branco se
torna não-existência, e produz-se outro Branco; se ele desaparecesse e fosse
sucedido pelo seu oposto – se o Branco desaparecesse e se produzisse o negro –
isto alteraria a ordem das coisas.
E
se os lugares das similaridades são os seus instantes, os lugares dos instantes
serão a forma na qual as similaridades são renovadas. Os Reinos universais, em
relação com a totalidade dos reinos, parecem-se com a matriz composta destas
formas, e por esta razão o sheikh
disse: “Reinos é o termo que designa os
planos do momento durante o qual as coisas vêm à existência e onde a
experiência se produz verdadeiramente”; ou seja, procedendo da
não-existência para a existência por meio de uma criação renovada. Esses planos
inferiores são o lugar onde situa-se o evento quando ele se produz. Entenda
bem, isto é importante.
“É indispensável”, ó estudante, depois
que você adquiriu o conhecimento dos Reinos, “que você saiba o que a verdade espera de você em cada Reino” no
qual você se encontra “a fim de que você
chegue aí” mais depressa e o produza da melhor maneira, “sem hesitação”, ou seja, sem se engajar
em nenhuma atividade que o impeça de chegar lá, pois isto levaria à sua
destruição, “nem resistência”, aquela
que você encontra em si mesmo devido à dificuldade daquilo que Deus lhe pede –
pois isto levaria à acídia e ao fracasso.
[6] “Os Reinos”
a respeito do qual lhe prometemos dar informações, “embora numerosos” do ponto de vista de sua particularidade e de sua
enumeração que ultrapassa o entendimento humano, “derivam todos de seis.”
[7] “O primeiro
Reino” é aquele em que nos foi perguntado: “Não sou eu teu Senhor?” É o Reino no qual você estava antes de sua
existência física, sob a forma de um átomo em meio a uma multidão de espíritos.
E você soube que Deus quer que você O encontre neste Reino quando Ele lhe fez
saber que ele concebeu sua singularidade por pura bondade e generosidade. Assim
você é incitado a cumprir imediatamente [o que se espera de você neste lugar],
sem hesitar, porque Ele o quer e exige diretamente. A autoridade de Sua Vontade
é irresistível, em particular quando a exigência se manifesta diretamente, sem
a intervenção de intermediários.
O
que lhe foi pedido neste Reino é a confirmação de Sua supremacia. Ele disse
(seja Ele exaltado): “E quando teu Senhor tomou os filhos de Adão de entre as
manifestações de átomos e os chamou a prestar testemunho contra si mesmos: “Não
sou Eu teu Senhor?”, eles responderam “Sim.” Este é um segredo sutil conhecido
daqueles que têm familiaridade coma
realidade do dever e da responsabilidade.
Depois,
quando você desceu deste pináculo do mundo dos espíritos para ganhar as
profundezas do mundo dos corpos, você esqueceu este Mundo e o que lhe
aconteceu. E se você se voltar para Deus, se você o buscar, você lembrará [se
Deus permitir] de sua afirmação quanto à Sua supremacia. E você dirá, nestas
circunstâncias, o que o Selo dos Santos de Maomé, o sheikh Ibn ‘Arabi (que Deus o tenha em seus favores) disse num
poema: Diante do Teu reino eu levei o
testemunho antes de nossa existência / naquilo que o olho via num punhado de
átomos, / testemunho particular cuja essência compreendo agora. / No momento do
testemunho não houve nenhuma falsidade, / o caminho que segui, segui com
alegria e simplicidade. /Eu não era um cativo mentido em reclusão.
O
sheikh aludiu à sua separação deste
Reino por seu comentário “Nossa existência física nos fez deixar este Reino.”
[8] “O mundo em que estamos presentemente” [o
segundo Reino] estende-se, segundo o sheikh, da superfície côncava da esfera
das Moradas Celestes até a superfície da terra.
[9] O “Intervalo” (al-barzakh), o terceiro Reino, é a
barreira entre este mundo e o seguinte. O sheikh
(que Deus o tenha em seus favores) disse: “Saiba que o Intervalo é uma
expressão que designa aquilo que separa duas coisas, como a linha que divide a
sombra do sol, e, assim como Ele disse – seja Ele exaltado – a respeito da
mistura dos dois mares: “Entre eles existe uma barreira (barzakh) que eles não podem ultrapassar” (Corão, LV, 20). “Eles não
podem ultrapassar” significa que eles não podem se misturar [completamente] um
com o outro devido à barreira que os separa. Ela não é perceptível à vista. E
quando a percebemos subitamente a barreira já não existe. E quando a barreira
separa o conhecido do desconhecido, o não-existente do existente, o negado do
afirmado, o racional do irracional, ela é chamada de Intervalo, e este
Intervalo é a imaginação. Pois se você a percebe – se você é racional – você
sabe que sua visão captou uma coisa que existe, mesmo sabendo sem sombra de
dúvida que não se trata de uma “coisa” de maneira completa e fundamental. E o
que é isto cuja natureza é afirmada e negada simultaneamente? A imaginação não
é nem existência nem não-existência, ela não é conhecida nem desconhecida, nem
negada nem afirmada. E o ser humano viaja para esta realidade durante o sono e
depois de sua morte, e vê qualidades descritivas como formas existentes, disto
não há dúvida. E o ser intuitivo vê em seu estado de vigília aquilo que o
adormecido vê no sono e o defunto vê após a morte.
[10] “O quarto Reino é
a Ressurreição”, e a reunião dos homens “na terra que desperta” (ver Corão, LXXIX, 124). Trata-se da
superfície da terra, e diz-se que ela desperta porque ela reune os estados de
vigília e de sono. O sheikh
disse: “Saiba, irmão, que quando os
homens se levantarem de seus túmulos e o Deus Altíssimo decidir que a terra se
torne outra terra, então a terra se estenderá com a permissão de Deus e um
ponto se formará acima das trevas. Toda a criação estará aí. Então Deus transformará
a terra como melhor Lhe aprouver, em uma outra terra chamada “despertar”; esta
é uma terra que está apenas no conhecimento de Deus; ninguém dorme sobre sua
superfície. Deus glorioso e exaltado a estenderá como uma pele. Nesta expansão
Ele reforçará a fraqueza do que havia antes, estendendo-a de vinte e uma parte
para noventa e nove: Ele a estenderá como uma pele. E não se encontrará nela
irregularidade nem desvio.”
“E o retorno à condição original”: esta
condição original (hafira) designa em
seu sentido etimológico o modo como um homem chega. Diz-se: “tal homem retornou
à sua condição original”, quando ele parte da mesma maneira como veio. E o
significado de: “Eu sou daqueles que retornam à condição original” é que nós
retornamos à vida após a morte.
[11] “O quinto Reino é
o Jardim” e se situa entre a concavidade da esfera sem estrelas e a
convexidade da esfera das Moradas Celestes, e “o Fogo”, que se estende da concavidade da esfera das Moradas
Celestes até o centro da terra. Pois os sete céus e os elementos mudarão de
forma, depois da divisão e do julgamento, e tomarão a forma do Inferno.
[12] “O sexto Reino é
a Duna de Areia” (ver Corão, LXXIII, 14). É uma colina de musgo branco onde
estão as criaturas no momento da visão de Deus Glorioso e Exaltado. Ela está
“ao redor do Jardim” porque ela se encontra no Jardim do Éden que é a praça
forte e a cidadela exterior dos outros Jardins. A maioria dos homens não
entrarão na Presença e nas Qualidades do Rei sem terem antes visitado este
lugar.
[13] “Em cada um
destes Reinos existem lugares que são Reinos no interior de Reinos, e
apreendê-los todos ultrapassa o poder humano. Em nossa situação não temos mais
necessidade do que da explicação do Reino deste mundo, que é lugar da
responsabilidade, da prova” – ou seja quando se é posto à prova – “e do trabalho” que necessita da bênção
[divina] nos Reinos que se seguem. Pois dentre todos os Reinos não existe
nenhum que seja o lugar da obrigação [especificamente da obrigação de escolher
o serviço de Deus (taklif)], com
exceção deste. Isto faz transparecer o sentido [do provérbio]: “o momento não
prolonga sua recompensa.” E se você disser que a responsabilidade moral das
crianças e dos loucos será certamente engajada no Reino da Ressurreição, e que
nosso mundo atual é a raiz dos outros Reinos, de tal maneira que os Reinos do
Intervalo, da Ressurreição, do Jardim e do Fogo, e da Duna de Areia são graus
que pertencem à manifestação deste Reino profano, você poderá deduzir daí que
todos esses Reinos dependem especificamente da obrigação. Mas compreenda que
não é este o caso. Pois você verá que a obrigação, se você a considerar, é uma
realidade [constitutiva] do Reino do mundo presente.. Entretanto, ainda que ele
aparecesse na Ressurreição, ele não aparece nela porque é essencial que seja
assim. A Ressurreição, diferentemente do Reino do mundo presente, não requer
fundamentalmente a obrigação. Ela necessita a expiação e a repartição – nada
além disso. Do mesmo modo, se [o mundo atual] torna a obrigação necessária em
razão de sua estrutura essencial, ele poderia também requerer a repartição
passando por outra coisa que não sua estrutura essencial, assim como a
Ressurreição adquire a obrigação a partir de outra coisa que não sua essência.
E o sheikh não fala disto sobre as
matrizes dos Reinos, mas afirma que não nos é absolutamente necessário
descrever sequer o menor dentre eles, com exceção do mundo presente.
[14] “Fundir-se no
Real por meio da obliteração (*) dos
mundos.” Trata-se de uma inversão de frase técnica. O sheikh disse que a “obliteração” (maqh) é a sua chegada à existência, ao mundo, por Seu intermédio,
na qualidade de vice-regente e embaixador que Ele lhe concedeu, de tal modo que
o mundo está submetido à sua autoridade. E a “obliteração da obliteração” (maqh al-maqh) é sua aparição sob Seu
véu. Na “obliteração da obliteração” você coloca um véu sobre Ele, de modo que
as pessoas o consideram como uma criação desprovida de direito [de governar].
Pois eles não podem saber que Deus o enviou como um véu diante d’Ele até que
eles voltem para Ele seus olhos. Assim, a “obliteração da obliteração” forma um
contraste com a “obliteração”; não é um desenvolvimento exagerado da
obliteração. Isto se parece mais com a “não-existência da não-existência”. É
verdade que o servidor, no momento em que se afasta da presença de Deus para
ganha r a Criação, é dotado de meios de ação para cumprir seu papel de
governante em meio ao povo. Eles não têm consciência disto, embora já tenham,
ouvido falar de certos governantes, designados pelo nome de Mensageiros (que a
paz e as bênçãos de Deus os acompanhem) que Deus enviou um dia para que agissem
como vice-regentes sobre a terra, a fim de dar a conhecer Seu julgamento. Deus
dissimulou esta capacidade entre os herdeiros dos profetas, que não obstante
são vice-regentes mesmo quando não o sabem. E saiba que entre as pessoas de
Deus, a “obliteração da obliteração” se dá neste mundo, e a “obliteração” se dá
no seguinte. E apenas os mais eleitos dentre estes são bem sucedidos no que diz
respeito à obliteração da obliteração; ela é destinada aos intelectos
esclarecidos. Os eleitos obtém sucesso no que concerne à obliteração; ela é
destinada às almas iluminadas. Que Deus nos integre à obliteração de Sua
obliteração, e que Sua justiça seja atribuída exclusivamente a Ele.
(*) Obliterar:
fazer desaparecer pouco a pouco, apagar insensivelmente deixando vestígios.
(N.T.)
[15] “Entre nós, os
mestres desprezam esta ambição.” Nós não preconizamos a contemplação, o fana’ e a absorção no Real no meio da
obliteração deste mundo. De fato, “os
mestres entre nós” – os santos – “desprezam
esta ambição”. A palavra de Deus – seja Ele exaltado – vai na mesma
direção: “O Messias jamais negou ser um servidor de Deus” (Corão, IV, 172). “Porque é perda de tempo”, um tempo que
deveríamos passar lutando, observando a religião, adquirindo a ciência divina
da piedade; e porque isto significa “faltar
ao seu nível [verdadeiro]” na visão e na obliteração do mundo do porvir.
Pois
a visão de Deus no mundo do porvir corresponde à medida do conhecimento de Deus
que se adquire aqui. Assim, este mundo é feito para adquirir o conhecimento com
esforço. O seguinte é o domínio da facilidade e da contemplação. Durante o
tempo que você dedica à contemplação neste mundo você perde um conhecimento
que, se tivesse sido adquirido, seria acrescentado à sua contemplação no
próximo. Assim, a contemplação neste mundo, que leva à ausência de aquisição
deste conhecimento, carrega consigo uma perda do nível contemplativo no mundo a
seguir, pois a contemplação corresponde à medida do saber. Você só contemplou
neste mundo depois de ter um certo conhecimento, e só contemplou a forma do seu
conhecimento. Este conhecimento que formou a base da sua contemplação foi
adquirido perseguindo um conhecimento superior. Se você tivesse atingido o
conhecimento superior, sua contemplação se aprofundaria na mesma medida. Se a
contemplação lhe escapa neste mundo porque você persegue o conhecimento, ela
não lhe escapará no próximo mundo; mas se o conhecimento lhe escapa neste mundo
porque você cobiça a contemplação – pois se trata de um fana’ que não é acompanhado de consciência – a contemplação lhe
escapará no mundo por vir. É uma perda de nível visual.
No
que concerne esta perda em relação à obliteração: saiba que a manifestação da
qualidade de embaixador e de vice-regente não convém, salvo no mundo por vir,
onde não existe obrigação nem petrificação das categorias do ser. No mundo a
seguir é o homem [reproduzindo a descrição corânica da ação criadora de Deus]
que diz a uma coisa “seja”, e ela é. Assim foi contado que Deus enviou às
pessoas do Jardim uma mensagem contendo as seguintes palavras [e o conhecimento
de Deus é sempre superior]: “Carta do Eterno ao Eterno. Eu digo a uma coisa
“seja”, e ela é, e Eu lhe farei dizer a uma coisa “seja”, e ela será” – e
jamais acontecerá que digam a uma coisa “seja” e ela não venha a ser. É a
essência da manifestação da vice-regência, e este mundo não lhe convém. Pois
este mundo é a casa do trabalho e da responsabilidade e o grau em que a
vice-regência aparece aqui, é o grau em que ela se perdeu no mundo a seguir.
Como diz o Deus Altíssimo: “Você esgotou suas bênçãos na vida deste mundo”
(Corão XL, 20). Entretanto isto só acontece quando a manifestação da
vice-regência neste mundo não provém da Ordem divina. Quando ela decorre desta
Ordem divina – como é o caso dos Mensageiros – eles não a desprezam.
[16] O sheikh disse: “Saiba (que Deus nos traga
o sucesso, a nós dois) que a raiz de khalwa
acha-se na Lei sagrada: “Quem quer que se lembre de Mim em si mesmo, dele
lembrarei em Mim mesmo. E quem quer que se lembre de Mim numa assembléia, dele lembrarei numa
assembléia ainda maior” (hadith qudsi).
A raiz de khalwa é al-khala, o vazio no qual o mundo
existia [antes da criação].
[17] “É melhor que sua
alimentação seja nutritiva”, a fim de que a constituição não perca seu
equilíbrio em função de uma secura excessiva, “mas desprovida de gordura animal” porque a gordura animal reforça a
animalidade, e seus princípios podem dominar os princípios espirituais.
[18] “Se ocorrer uma
influência que altere a constituição”, como as dores que tomaram o
Mensageiro de Deus quando Gabriel lhe apareceu e que [o Corão] desceu em seu
coração puro. Este estado era característico da presença [de Gabriel]. Como a
[natureza angélica] não é compatível com [a natureza humana], era muito sofrido
para o Profeta; sua constituição era posta à prova, e sua fronte transpirava.
[19] “...não sofrerá
nenhuma alteração de forma”. Se o influxo tiver sua origem no nível das
essências abstratas e chegar até o mundo das imagens, você não sofrerá nenhuma
alteração de forma ao ficar sob sua influência.
[20] “...até que Deus expulse dele a influência
demoníaca”. Pois Deus é o companheiro daquele que o chama, e o diabo
afasta-se de Deus Altíssimo; assim, jamais encontramos a Deus e ao diabo em
mútua companhia.
[21] “Se lhe
oferecerem bebida” durante esta revelação, “prefira a água”, pois esta é a forma que adquire o conhecimento
absoluto. “Se não houver água no que lhe
for oferecido, escolha o leite”, símbolo da religião pura e original, como
o fez o Mensageiro (que a paz e as bênçãos estejam com ele) quando subiu aos
Céus [e lhe foi proposta uma escolha similar]; pois o leite é a forma que
adquire o conhecimento das Vias sagradas. “E
se os dois lhe forem apresentados, misture a água e o leite”, pois esta é a
forma que adquire a relação entre o resto dos conhecimentos e o conhecimento
legal, sagrado e ordenado, ou seja a relação que existe entre cada um deles e
ele, e sua relação para com cada. “Isto
também se aplica ao mel: beba-o”, pois esta é a forma do conhecimento
filosófico admissível e dos sistemas santificados que foram estabelecidos pelos
filósofos e os sacerdotes com o objetivo de agradar a Deus. “Desconfie do vinho” não misturado. Ele o
fará perder-se – pois esta é a forma que adquire o conhecimento dos estados – “a menos que ele tenha sido misturado com
água da chuva”, que é a forma da qual se reveste o conhecimento concedido
[por Deus] e que o guiará pelo bom caminho. Os estados, quando desprovidos do
saber divinamente concedido que não contém nenhum erro, desviam aqueles que os
abordam. “Mesmo que ele tenha sido
misturado com água de riachos ou nascentes”, que é a forma do conhecimento
natural, “evite bebe-lo”, porque ele
conduz à heresia, à apostasia e à corrupção das opiniões. E se ele for
misturado com água de poço, que é a forma do conhecimento intelectual, dá-se o
mesmo. Pois quando os estados se tornam confusos pela reflexão, o erro aumenta
e a justiça diminui. Beba a água pura dos riachos e das fontes, e também quando
ela for misturada com água de chuva ou leite, mas não a beba quando for
misturada com água de poço ou mel. E não beba água de poço a menos que ela
esteja misturada com água de chuva ou leite.
[22] “Esta ascensão é
a ascensão da dissolução”, pois as origens materiais se dissolvem nela,
como indicou o sheikh. E sua
desintegração não está em relação senão com a consciência daquele que busca,
assim como seu encadeamento só existe em relação com esta consciência.
Certamente você conhecerá a realidade deste fato. Esta dissolução não passa da
dissolução “da ordem” dos elementos
do mundo exterior. Você sabe que “o
estado de contração (qabd) o
acompanhará” na descoberta e no exame “desses
mundos” porque você se encontra na ascensão da dissolução na qual sua
essência se desvanece; e isto requer a contração, sem nenhuma dúvida.
[23] “...a infusão do
mundo da força vital”, como a vida que surgia das mãos de Jesus – que a paz
esteja com ele – nas criaturas que recebera, a vida graças a ele, como por
exemplo o morto que ele levantou de entre os mortos e os pássaros de argila aos
quais ele deu vida. Os efeitos produzidos por esta força vital em cada criatura
morta corresponderam à estrutura preexistente desta. Por exemplo, se a essência
era a de um pássaro, um pássaro ganhava a vida, e se a essência fosse de um
homem, uma homem ganhava a vida, e a força vital permanecia uma e mesma
realidade [independente de ser pássaro, homem ou qualquer outra forma trazida à
vida]. Os efeitos diferem segundo as diversas estruturas preexistentes que
foram expostas a ela. “E como as
expressões [da fé] se acham incluídas nesta infusão”, como, por exemplo,
quando Ele declara (seja Ele exaltado): “quando você modelou na argila a
aparência de um pássaro, com Minha permissão, e curou o que nascera cego e o
leproso, com Minha permissão, e quando você levantou os mortos, com Minha
permissão” (Corão, V, 110), e quando Ele declara: “Eu assoprei nele e ele se
tornou um pássaro, pela graça de Allah; eu curei aquele que havia nascido cego
e o leproso, e eu levantei os mortos, pela graça de Allah” (Corão, III, 49).
[24] “Sinais da superfície”. Eu não conheço o
significado dos “sinais de superfície” (al-lawa’ih
al-lawhiyya), mas temos conhecimentos dos “sinais de estado”. Saiba que o sheikh, que Deus o tenha em seus
favores, disse: “Os sinais (lawa’ih)
significam, para as pessoas de Deus, a elevação de um estado ao estado que
começa a se mostrar à sua sensibilidade interior. Para nós, isto se refere às
luzes essenciais – a glória transcendente vista segundo uma perspectiva de
afirmação, mais do que de negação – e às luzes dos Nomes divinos que aparecem
quando contemplamos seus efeitos. Tudo isto se torna visível ao olho cuja
avidez não mais o limita.” É assim que você distinguirá estas luzes.
No
que se refere à elevação de um estado a um outro estado, não se volta a um
estado após have-lo abandonado em proveito de um estado superior. O objeto [de
um estado] é a influência divina e o conhecimento de Deus que ele traz. [Os
estados em si] são etapas, e não dons de graça específica. Eles podem se
apresentar de diversas maneiras, mas quem os experimenta não deve louvá-los a
menos que eles aumentem seu conhecimento de Deus [o que não é necessariamente o
caso].
[25] “A luz das estrelas móveis.” O sheikh
disse: “As estrelas móveis (tawali) é
uma expressão técnica empregada para designar as luzes da declaração da unidade
(tawhid) que nasce no coração dos
gnósticos, e que extingue todas as outras luzes” – ou seja as luzes das provas
especulativas, e não as das provas proféticas e revelatórias. E elas extinguem
também as luzes da intuição. É o tawhid
que Deus espera de seu fiel. A parte de reflexão especulativa que isto supõe
reduz-se à declaração de unidade de grau; Sua existência enquanto objeto de um
culto particular, de tal modo que nenhum outro fora Ele possa ser adorado. A
este propósito, diz ele, a evidência é clara.
[26] “A forma da ordem universal.” É uma expressão que faz referência à aparição
de Deus sob a forma da Criação. E você saberá que a existência compõe-se em sua
essência de haqq, a verdade, e de khalq, a Criação; mas você não alcançará
isto antes de haver franqueado a luz das estrelas móveis.
[27] “Os graus das ciências especulativas”
correspondentes à realidade, Você poderá discernir quais são os superiores e
quais os inferiores, qual precede e qual segue. E Ele lhe revelará a realidade
das “idéias integrais” sem que você
possa se enganar, “e a forma das questões
complexas que mergulham a inteligência na confusão” de tal modo que aqueles
que as consideram perdem o equilíbrio de sua constituição, “e a diferença entre suposição e saber” –
e são poucos os que, possuindo o conhecimento, sabem disto. A maior parte dos
observadores não fazem diferença entre as duas coisas na maioria dos casos. E “o nascimento das possibilidades entre o
mundo dos espíritos e o mundo físico”, assim como Jesus veio ao mundo entre
Maria e Gabriel – a paz esteja com eles – e a alma entre o espírito e o corpo;
e a causa desta concepção.
[28] “A infusão do Mistério divino no domínio de
seu Cuidado cheio de amor.” Trata-se da unidade da Essência no mundo dos
Nomes, da unidade do Intelecto no mundo dos espíritos, e da unidade dos Trono
no mundo dos corpos. Esta unidade é a essência da misericórdia. A unidade
penetra a atenção das pessoas de Deus até que ela se espalhe em sua essência,
seus atributos e seus atos, assim como ela se espalha na Essência divina, no
Intelecto e no Trono, este caráter aparece entre eles do rei à formiguinha.
Entre as pessoas que conhecem o infortúnio é o contrário que se produz.
Mas
se você é capaz de me acompanhar, diga: “Não existe infortúnio. Pois o mistério
divino se espalha através de todo o mundo, e assim não existe infortúnio. Tudo
aquilo em que Deus está envolvido é do domínio de Seu cuidado cheio de amor,
porque isto faz parte do campo do Real. Tudo o que está em Seu campo está
próximo d’Ele, e o que está próximo de Deus é bom e preservado; o infortúnio é
mau e não há nada de mau n’Ele. Portanto, compreenda! Eu lhe trouxe um mar de
realidades e de conhecimentos. SE você chegar a esta profundidade e colher suas
pérolas, você será o mestre do seu momento. E Deus, seja ele exaltado, é o
Guia. Não existe outro Mestre além d’Ele.
[29] “ E não há nada que pertença a uma etapa”, uma etapa já
mencionada ou qualquer outra, “que Ele lhe revelar” entre os céus, os elementos
e as criaturas vivas, “que não chegue a você com reverência e exaltação; seu
grau na Presença divina aparecerá claramente a você, e [cada um] o amará em sua
essência.” É uma prova enviada a você pelo Deus Altíssimo, a fim de conhecer a
profundidade de sua concentração e a sinceridade de sua busca, e seu abandono
de tudo que não seja Ele. Se você apossar-se das coisas preciosas que Ele lhe
revela e se detiver nelas, você será expulso de Sua porta e estará perdido. Mas
se você perseverar na Sua busca e se desviar de tudo o que não é Ele e chegar à
Sua santa Presença, você triunfou, você é vitorioso, e adquiriu a autoridade,
por Sua ordem, sobre tudo o que foi apresentado diante de você.
[30] “O mundo da confusão.” Ele fez um mundo
de “confusão e impotência” porque a
luz da natureza indizível do ser de Deus (huwiyya)
o engloba, e ninguém pode vê-lo nem percebe-lo através da intensidade da sua
luz. E a contemplação da natureza do ser herda a vida, como não se pode negar.
[31] “E você balançará
como uma lâmpada” ao sopro da brisa. Saiba – que Deus lhe conceda Sua
misericórdia – que este lugar é uma etapa que exige a mais extrema coragem por
parte daquele que busca a verdade. Pois se ele chegar aí e esta singularidade
se manifestar a ele, e se esta luz de que falou o sheikh erguer-se sobre ele, ele acreditará ter chegado na Presença
da Unidade (ahadiyya) e ter triunfado
na revelação essencial. Isto é resultado da felicidade divina que ele
encontrará nesta etapa, e do fato de que toda outra realidade diferente da sua
estará ausente. Portanto, ó Buscador que anda pelos caminhos, se você chegar a
esta revelação, não se ligue a ela, e não a deseje malgrado a felicidade e o
enlevo que ela lhe causar.
[32] “E os véus se erguerão.
E os véus descerão” sobre “as formas
dos filhos de Adão.” É porque quando o primeiro de nós [Adão] desobedeceu
ao Deus Altíssimo, sua forma foi alterada. Um véu proveniente do Nome aç-Sattar, Aquele que coloca o véu,
desceu entre [a forma alterada de Adão] e todas as outras formas, de modo a que
estas não ficaram sabendo o que aconteceu ao homem nem conheceram a alteração
que lhe foi marcada pela sua transgressão. Quando ele se arrependeu, sua forma
voltou ao que era antes. Então o véu foi erguido e as outras formas viram Adão
em seu estado original. Isto graças à misericórdia e à generosidade de Deus...
[33] “Um louvor
particular que você reconhecerá ao ouvir”: “Exaltado seja Aquele que revela
o belo e esconde o feio.”
[34] “E se você não se
detiver”, ou seja, no Trono do Misericordioso, “Ele lhe revelará (...) o
primeiro Intelecto”, que é o primeiro professor, e a primeira existência do
mundo do registro e da inscrição. É o diretor e a origem de todas as coisas por
permissão e ordem de Deus Altíssimo. É portanto o “mestre de todas as coisas”, sendo que “todas as coisas” significa o
Trono, a Alma e o Universo. Pois o Intelecto transmite à alma tudo o que
recebeu de Deus Altíssimo. Quando o Trono é chamado de “Tabuinha”, o Intelecto
é a Pena (al-qalam) que escreve sobre
ela; quando é chamado Alma, o Intelecto é seu mestre Assim, o Intelecto é seu “professor”. “Você examinará seu traço” através das realidades do mundo e da
realidade de sua posição, e conhecerá “a
mensagem que ela traz, e testemunhará sua inversão” no sentido de que foi
uma Pena que escreveu sobre uma Tabuinha. Pois, quando você escreve com uma
pena, ela é invertida. E você testemunha “a
recepção” dos vastos conhecimentos [como quando a pena é enchida de tinta]
e a “particularização dos vastos [conhecimentos]” sobre a Tabuinha “que fluem do anjo al-Nuni.” No que tange
a aprender Sua linguagem, eles são como elementos governantes e governados de
uma construção genitiva. Saiba que o sheikh
escreveu em seu livro ‘Uglat al-mustawfiz
que não existe nenhum mediador entre o Intelecto e o Criador – glória lhe seja
dada – embora se diga que entre eles se acha um anjo chamado al-Nuni [como a letra nun, a letra abreviada que abre a
septuagésima surata do Corão, intitulada “A Pena”], que compreende o conhecimento
universal e é comparado a um tinteiro, enquanto o Intelecto é a pena e a Alma a
tabuinha. Isto não é correto. O Intelecto, no que concerne a compreensão do
conhecimento em sua essência, é chamado al-Nuni;
e o fato de ativar os detalhes deste conhecimento escrevendo-os sobre a
Tabuinha é chamado de Pena.
[35] “E se você não se detiver”, ou seja,
neste Mestre de todas as coisas que é a Pena superior, “Ele lhe revelará aquele que faz mover” esta Pena. É a “mão direita da verdade”, que representa
os atributos de Sua Beleza, pois eles são necessários para que o mundo exista.
É por isso que eles ativam a Pena. Então compreenda: se Deus quiser, você será
guiado corretamente. E se você não se detiver aí Ele lhe revelará os Anjos
enlevados criados a partir da Nuvem. E se você não se detiver aí, Ele lhe
revelará a Nuvem na qual nosso Mestre existia antes de haver criado o mundo (*)
e a Palavra, a mensagem do Sublime, antes que Ele nos introduzisse em Sua
realidade. O sheikh, que Deus
Altíssimo lhe conceda seus favores, disse:
“A
Nuvem é a sede do nome “o Senhor” (ar-Rabb)
assim como o Trono é a sede do nome “o Misericordioso” (ar-Rahman). A Nuvem é a primeira das coisas. Nela aparecem as
condições do espaço e o grau d’Aquele que não entra nem no lugar nem no grau. É
dela que foi manifestado o patamar inferior [de todas as existências
possíveis], de tal modo que ela recebe as essências abstratas da encarnação (al-ma’ani al-jismaniyya) dos mundos
sensorial e imaginário. Trata-se de um existente exaltado cuja essência
abstrata é a Verdade; é a verdade pela qual todas as coisa foram criadas, e que
não é outra senão Deus Altíssimo. É a entidade na qual as formas originais de
todos os seres foram fixadas de maneira imutável. Ela recebe a realidade das
possibilidades e a condição do lugar e do nível, e o nome de “o Lugar”. E da
terra até esta Nuvem não existe nenhum Nome representando Deus Altíssimo fora
os Nomes de ação. No mundo inteiro, inteligível e perceptível, não existe
nenhum traço de outra coisa.”
E
saiba que se você não se detiver na Nuvem, Ele lhe revelará o Sopro do
Misericordioso(an-nafas ar-rahmani).
É a origem da Nuvem.
E
se você não se detiver aí, Ele lhe revelará o lado dos Nomes de Transcendência.
Depois os Nomes de ação se desfarão. Você adquirirá o conhecimento da negação,
e será honrado acima da totalidade do mundo. E você saberá que grau lhe é
necessário.
(*) Perguntaram ao Profeta: “Onde estava Deus antes da Criação do mundo?”
Ele respondeu: “Numa nuvem. Não havia espaço nem acima nem abaixo.” (N.T.)
[36] “E se você não se
detiver”, você será elevado à unicidade essencial e “apagado” neste lugar.
O sheikh disse:
“Este
apagamento (mahw) é para os eleitos –
que Deus lhes conceda suas bênçãos – o apagamento do caracteres habituais, o
desenraizamento dos vícios, e de tudo o que o Real vela e nega. Ele – seja
exaltado! - disse: “Deus extirpa e e estabelece o que Ele escolheu” (Corão,
XIII, 39). Por conseguinte, ele estabeleceu o apagamento. Entre os legistas, o
termo correspondente é “ab-rogação”(*). Trata-se de uma ab-rogação divina. Deus
Altíssimo eleva [aquele que Ele escolheu] e o apaga quando se produz uma
determinação na existência e no ser positivos. Em si, isso significa o fim do
intervalo emprestado à sua existência, e a passagem além da fronteira que
continua “até um tempo fixado” (Corão, VI, 2). Pois Ele disse: “Tudo dura até
um tempo fixado e permanece estabelecido até um momento determinado” (Corão,
XX, 129). Em seguida Ele elimina este fim, mas não sua forma essencial ('ayn), pois foi dito “durar até um tempo fixado” [e as formas essenciais
não tem sua existência no tempo]. E quando chega o tempo fixado, sua
“continuidade” (ou “fluxo”) cessa, mas sua forma original permanece.”
(*) Ab-rogar =
revogar, anular. (N.T.)
[37] “Depois retirado”. O
sheikh disse:
“A
ausência (ghayba) é para as pessoas a
ausência de coração no conhecimento daquilo que se passa no mundo, pois sua
atenção se concentra naquilo que as impressiona. Quando não e trata de mais do
que isto, não passa da ausência numa manifestação divina. Não é correto que a
ausência se deva a uma coisa criada que suscita emoção; [deveria ser antes]
porque estamos [verdadeiramente] ocupados, ausentes das condições deste mundo.
E é nisto que o Grupo [das pessoas da verdade] se distingue dos outros, po0rque
a ausência [em si mesma] existe virtualmente em todos os grupos. A ausência que
caracteriza este grupo é devida à concentração imposta pela verdade, e se
acontece na dependência da manifestação, de modo que no que lhes concerne [a
ausência] é nobre e louvável. E as pessoas e o Deus Altíssimo conhecem graus
diferentes de ausência, embora sejam todos devidos a uma concentração imposta
pela verdade. A ausência dos gnósticos é a ausência com a verdade, da
verdade; a ausência das outras pessoas
de Deus Altíssimo é ausência com a verdade, da Criação. A ausência dos maiores
dentre aqueles que conhecem a Deus é ausência com a Criação, da Criação, porque
eles tomaram consciência de que não existe outra existência senão Deus, que dá
forma à determinações possíveis das formas originais imutáveis.”
[38] “Depois esmagado”. É uma expressão que
designa a desaparição das estruturas da sua realidade, operada pelo poder
dominante da revelação da Unicidade essencial.
[39] “Você será
afirmado.” O sheikh, que Deus lhe
conceda suas bênçãos, disse:
“A
afirmação [ou a fixidez: ithbat] é a
ordem predestinada do mundo em sua totalidade. Assim, qualquer um que procure a
ab-rogação da ordem habitual certamente viola o adab, a regra da boa conduta, e se mostra ignorante. O que alguns
chamam de deslocamento do hábito é em si um hábito, pois o constante
deslocamento do hábito é um hábito. Da
mesma forma, o costume não é obliterado se não for em sua afirmação. Mas [para
que seja o caso], aquele que empreende esta afirmação deve estar em contato com
o Real, e isto deve ser para salvaguardar este contato, que ele estabelece os
princípios relativos aos costumes. Pois seu Amigo os instituiu por amizade e
consentimento. Como ser Seu amigo, entreter uma relação com Ele, e ao mesmo
tempo decidir – malgrado Ele – eliminar aquilo que a Sabedoria achou bom
afirmar? Sobretudo pelo fato de que quem toma parte nesta etapa sabe certamente
que Deus se mostra “sábio e onisciente” naquilo que ele estabelece e suscita.
Portanto ele deverá afirmar aquilo que seu Amigo afirma. Se ele não o fizer, e
buscar a obliteração [daquilo que Deus afirmou], trata-se de um polemista. Quem
polemiza com você não é seu amigo, e você não é amigo dele. Esta pessoa está
próxima da intransigência. Mas o amigo da afirmação está perpetuamente em
relação com a Verdade, de sorte que ele afirma os princípios relativos aos
costumes e Lhe dá testemunho afirmando-os. Ele não está estabelecido firmemente
em sua [amizade] se ele procura a ab-rogação, [mesmo momentânea] das leis e não
sua obliteração.”
[40] Cada Profeta
manifesta um aspecto particular do discurso divino, e “fala” na “linguagem”
deste aspecto, representando uma Palavra. Os santos que realizam esta relação
perfeita são assim os herdeiros dos profetas que os primeiros manifestaram. O
Profeta Maomé, enquanto Selo do Cumprimento dos profetas, contém em si a
totalidade destas palavras proféticas. (N.T.)
[41] “Agora que ele
chegou ao seu destino”, é mantido solidamente lá aonde sua busca terminou,
ele é chamado “aquele que se detém” – o capturado, o consumido, e ele vê
ser-lhe atribuída a metade da perfeição, “a vinda sem retorno”, “enquanto ele não empreender seu retorno”.
Quando ele retorna, a perfeição da perfeição lhe é atribuída. “Aqueles que se detêm” designa os que
chegaram ao destino para o qual dirigiram-no suas predisposições. Pois não
existe fim que não esteja relacionado ao seu princípio. A existência de uma
finalidade absoluta é inimaginável; de outro modo a realidade seria invertida.
“Aqueles que são absorvidos neste estado”,
que é o fim de seu caminho, “como por
exemplo Abu-'Igal” al Maghribi, dentre os grandes que alcançaram o
objetivo, “e outros”, como Abu-Yazid
Bistami, ao chegar entre os buscadores da Presença, foi honrado com o manto de
vice-regente e embaixador, e a quem foi dito: “Saia para a Minha criação
tomando a Minha forma, e quem quer que o veja, Me vê...”; “nele”, representando este estado
em que eles são absorvidos, “Deus
os guarda em si e eles são ressuscitados” porque uma pessoa morre como ela
viveu, e é ressuscitada tal como morreu.
[42] “Eles são os adeptos dos estados, comparados
com os mestres que contamos entre nós”, que são adeptos das estações.
[43] “Ubudiyya”. Saiba que Ubudiyya, a servidão, é a característica
essencial do servidor. É a essência da pobreza, portanto da possibilidade. Ubudiyya é a atenção dada integralmente
à contemplação que convém ao servidor, sua observância contínua em cada estado,
revelação, divulgação, contemplação, e etapa. E o serviço é aquele decorrente
das exigências da servidão. O fana’
na ubudiyya é a não-existência da
contemplação considerada [da posição] da suserania, e uma concentração igual
sobre todos os aspectos [do Real que se apresentam].
[44] “A mais sublime” porque ela engloba
[todas] as portas... e convoca para a totalidade dos Nomes.
[45] “Os dois diferem
unicamente no modo como se dirigem às pessoas, pois o discurso do santo é
diferente do discurso do profeta.” O
santo se dirige a todos os que estão atrás dele e o seguem. O profeta se dirige a todos os que
estão adiante, em razão de uma autoridade fundamental, e não porque eles o
seguem. O santo se exprime mantendo-se atrás do véu de seu profeta, enquanto
que o profeta se exprime sem véu, ou
seja sem mediação de um outro profeta.
[46] “...o que não é o
nosso caso” porque aquele que segue, na medida em que segue, jamais atinge
a posição daquele que o precede. E não há santo senão na medida em que segue,
pois a santidade é a essência do ato de seguir.
[47] “A ascensão dos
profetas é feita pela própria luz fundamental”, ou seja pelo conhecimento
divinamente revelado. “Fundamental”, porque ele se espalha sobre eles dese a
origem e não ulteriormente, e somente os profetas sobrem por esta luz. “Enquanto que a ascensão dos santos se faz
por meio daquilo que esta luz concede providencialmente” a uma
predisposição à santidade, “por esta luz” que se derrama sobre todo aquele que
se colocar sob ela. Um grau de santidade não possui a luz fundamental senão na
medida atribuída à sua forma original. A predisposição à santidade não é outra
coisa senão isto. A capacidade dos santos cresce com o esforço humano. Assim o
santo não sobe a não ser pela força desta luz fundamental que lhe é concedida
na medida do seu mérito. Esta ascensão se faz pela luz, porque a ascensão da
Verdade é escura aos olhos dos gnósticos. Esta luz é o conhecimento revelado
por meio do qual Ele os esclarece. Ela é dada aos profetas sem preparação.
Assim, a qualidade de profeta não pode ser conquistada. O sheikh disse, é assim que ele pensa. E ela é dada aos santos
unicamente porque eles a mereceram, pelas obras que eles receberam do profeta.
As obras do espírito não tomam parte nesta preparação, pois a santidade é
conquistada pelas obras da Lei sagrada, e não pelas da reflexão.
[48] “Saiba que Maomé”, por ser [como é dito
no célebre hadith] profeta enquanto
Adão ainda se encontrava entre a água e a argila, “é quem deu a todos os profetas e mensageiros” sua ciência, suas
Vias sagradas e suas “estações” e
estados “no Mundo dos Espíritos”
porque ele é o guardião dos segredos divinos. Pois seu espírito é o primeiro
Intelecto, tesoureiro do Divino e princípio do mundo do registro e da
inscrição, a realidade da primeira determinação que está na origem de todas as
determinações. Assim, conforme o Nome “o Oculto”, por sua realidade e seu
espírito ele é o dispensador de tudo o que é dado. Segundo o Nome “o Manifesto”
todos aqueles que distribuem seus dons são seus embaixadores e seus discípulos.
Eles recebem dele em Nome do Oculto, e regem este mundo em Nome do Manifesto. E
assim sua dominação não cessará “até que
ele seja enviado a um corpo”, o corpo físico, às [raças] “negras e
vermelhas” [ou seja toda a humanidade].
[49] “...os
profetas que deram testemunho dele” na época de sua aparição na carne, como
Khidr, que a paz esteja com ele, que segundo o sheikh é um dos profetas, e que
encontrou o Mensageiro, no mundo material, dele recebendo os dons, e que o
seguiu. Esta expressão não faz referência a nada que a tradição sagrada
contradiga [o que significa que não pode haver aí uma retomada em questão da
dignidade de Maomé enquanto último dos profetas], pois isto não seria correto
nem segundo o ensinamento transmitido nem segundo a intuição. “Ou que
descerão” do céu “depois dele” ou seja depois de Maomé Trata-se de
Jesus, que a paz esteja com ele, que descerá no final dos tempos, governará
pela nossa Lei, sacrificará o porco, destruirá as cuzes, e chamará os homens à
comunidade de Maomé, a paz e a bênção estejam com ele. Ele é o Selo da
Santidade geral.
[50] “Eventos
que ultrapassam o comum o acompanharão naturalmente.” Ele possuirá a plena
consciência de todos os estados na medida em que eles venham a existir. Isto é
necessário para “o exato equilíbrio dos pratos da balança” (Corão LV, 9) e para
a não-existência de “pequenos pesos e medidas.”
“Ele não cessará
de dizer a cada sopro...” os sopros do Misericordioso, cujo objeto é uma
criação renovada; ou interpretando de outro modo, a cada sopro humano – o que é
a interpretação mais evidente.
“Enquanto a
esfera celeste se move-se graças ao Teu sopro.” O sheikh disse:
“Então você conhecerá o ensinamento sufi segundo o qual a esfera celeste opera
sua revolução por meio do sopor do mundo, o mundo que é respirado. Isto quer
dizer que a causa de sua revolução é a existência deste sopro; por meio desta
revolução, Deus renova o sopro.”
[51] “O
Momento” (waqt) é uma expressão que designa o seu estado no tempo.
Este estado não está ligado nem ao passado nem ao futuro. Trata-se de um
existente entre dois inexistentes. Se seu Momento é a fonte do seu estado, você
é filho do seu Momento, e o seu Momento determinará aquilo que você é, porque
ele existe e você não, você é ilusório e ele é positivo. Se seu Momento é
obediência, e a contemplação que acolhe a servidão qualquer que seja o estado,
então você será contado entre os que permanecerão. Caso contrário, você estará
no número dos que serão efêmeros. No primeiro caso seu Momento será a
proximidade, no segundo uma distância; porém, de um modo ou de outro, o Momento
lhe dispensará inevitavelmente sua experiência. Se seu Momento for a
proximidade, sua experiência virá da Presença da proximidade; se seu Momento
for a distância, sua experiência irá derivar
da Presença da distância. E quem quer que se lamente sobre seu passado e
preencha o momento presente com seu passado, está entre os que serão tornados
distantes. Pois ele deixa escorregar por entre os dedos aquilo que o momento
exige, absorvendo-se no que não volta mais. É a essência da não-existência. E
quem se preocupa com o futuro está na mesma situação.
[52] “Agora
que o coração os deseja ardentemente”, porque o desejo obsedante (shahwa),
como disse o sheikh, é um desejo natural limitado. Por conseguinte este
desejo não está ligado a nada se não for pela inclinação ou por um impulso
natural. Se alguém descobre em si uma inclinação que não é devida a um impulso
natural – como por exemplo um pendor para os significados abstratos, as altas
essências espirituais, a perfeição, a visão e o conhecimento de Deus – ele não
precisa descartar esta inclinação. Mas se sua inclinação o dirige para as
coisas pelo prazer que lhe trazem suas imaginações mentirosas, então [esta
mesma inclinação] está ligada ao desejo obsedante. Trata-se [de uma atração]
baseada na forma. Pois a imaginação, quando faz corpo com o que não tem forma – e isto decorre da ação da
natureza – simplesmente cessa.
O sheikh disse:
“A vontade é um atributo espiritual divino e natural... Se a inclinação está
ligada ao imaterial sem imaginação (...) trata-se de uma inclinação da vontade,
não de um desejo natural. Pois o desejo obsedante não tem efeito sobre as
entidades independentes da matéria, mas a vontade está ligada a todo objeto em
relação com a alma e o intelecto, quer
este objeto desperte [o apetite] quer não. O desejo obsedante está
ligado apenas à alma que obtém um prazer particular.”
[53] “Himma
e muitas outras coisas ainda” - um culto externo, que é a perfeição do
seu exterior.
[54] “E
se” aquele que busca estiver dotado da preparação que descrevemos, e “alcançar
a essência da realidade” - a essência da realização na forma - “e sua
atenção for dissolvida” - ou seja, sua vontade dissolvida na de Deus – ele
saberá que sua vontade é um ramo que deriva da vontade de Deus. Deus Altíssimo
disse: “E tu não desejarás outra coisa do que aquilo que Deus deseja” (Corão,
LXVI, 33). Se Deus não quisesse que o buscador da verdade chegasse a Ele, o
buscador jamais chegaria. Existem mais passagens no Corão do q ue podemos citar
aqui, mas entre elas está esta: “Ele se voltará para eles a fim de que eles se
voltem para Ele” (Corão, IX, 118), e esta outra: “Ele os ama tanto quanto eles
lhe devotam este amor” (Corão, V, 54). Pois a realidade é a negação dos
vestígios dos seus atributos pelos atributos d'Ele, que age através de você, em
você, por você, e que você não é. “E não existe criatura viva senão aquelas que
Ele ergueu pela mecha de sua cabeça” (Corão, XI 56) A dissolução do himma
é a essência da realização do ser humano em sua forma [vale dizer, na sua
verdadeira forma humana por essência], porque seus atributos tornam-se neste
momento a essência dos atributos divinos. Assim, entenda bem.
E saiba que a
viagem para Deus é limitada, porque ela pressupõe atravessar a distância
ilusória [que separa o homem de Deus] e que é a essência do mundo. E quanto à
viagem em Deus, que é conhecimento d'Ele em Seus atributos, esta é infinita;
porque Seus atributos – seja Ele exaltado – não têm fim. É por isso que a
viagem para Deus tem um fim, “e a viagem para aquilo que está além não tem
limite”.
Aquele que chegou
declara pela voz “daquele que chegou”, aquele em quem alguns aspectos de
Deus – Seus Nomes – foram revelados, “não convém” que Deus exista no
limite de sua essência “senão desta maneira” - senão como se tornou aquele que atingiu o
objetivo. Pois [em todos os outros casos] isto O limitaria. Enquanto que Ele –
glórias Lhe sejam dadas – não conhece condição nem limite. Ou segundo uma outra
interpretação da frase: “Não é necessário” que o que chegou tenha chegado como
ele veio a se tornar aí, mas que isto tenha acontecido “no interesse do
espanto que suscita erguer os véus”. E todas as coisas são as faces de
Deus, que compõem Sua forma essencial. E “pelo conhecimento que suscita a
contemplação ele se volta para fazer face ao que se encontra além de cada
aparência”, ou seja para o que está além daquilo que lhe apareceu segundo
suas possibilidades; pois o conhecimento tem uma vastidão incompatível com
estreitezas de qualquer tipo, [não pode ser confinada nos limites daquele que o
busca, mas o transforma]. Do mesmo modo como Ele se manifesta ao Seu servidor
pela revelação, esta prepara o servidor para uma outra revelação; e assim
prossegue até o infinito. Do mesmo modo, a própria saciedade é inimaginável no
amor perfeito do Real, e a limitação e o fim são inconcebíveis para aquele que
recebe a revelação. O sheikh disse a respeito: “É como se a experiência
daquele que é consciente penetrasse em seu coração graças Àquele cujo ser é
infinito, impondo-lhe uma finitude para que a manifestação seja assim tornada
possível naquele” que está “além das aparências. Pois Aquele que é aparente,
embora não seja senão um em Sua essência, é infinito em Seus aspectos. Eles são
Seu rastro em nós”. Seus atributos jamais são finitos, salvo em nós. Assim
nos Lhe damos os atributos, e Ele nos dá o ser. E se a viagem para o que se
situa além não tem limite, é porque cada
contemplação nos coloca face a face com uma contemplação ainda mais elevada. E
isto não tem fim.
“É para que isto
se reproduza que os trabalhadores trabalham, e para que isto se reproduza que
os pretendentes se enfrentam.”